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GARCIA, Neiva Kampff. MIA COUTO E UMA HISTÓRIA - WWLivros

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<strong>MIA</strong> <strong>COUTO</strong> E <strong>UMA</strong> <strong>HISTÓRIA</strong> CONTRA O MEDO<br />

<strong>Neiva</strong> <strong>Kampff</strong> Garcia <br />

RESUMO: O presente trabalho propõe que palavra, sentimento e imaginação constituem uma tríade<br />

fundamental do gênero infantil e/ou juvenil, descortinando a literatura como elemento de constituição e<br />

construção do sujeito-leitor e do homem. Por essa ótica acompanhamos o escritor moçambicano Mia Couto<br />

na sua “incursão” pelo universo da história infantil com O gato e o escuro (2001) na sua edição brasileira, de<br />

2008, ilustrada por Marilda Castanha. Em nossa perspectiva, que terá por base considerações do próprio<br />

autor, de Walter Benjamin e de Regina Wernek, essa é uma história em que a tríade que propomos ultrapassa<br />

as fronteiras assimétricas do gênero, da geografia e da delimitação temporal e estabelece um diálogo cultural<br />

entre o universo criador diferenciado desse autor – enquanto reconhecido “artesão” da palavra – e o universo<br />

infantil, este como espaço de formação e evolução do leitor.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Mia Couto, literatura infantil, leitor.<br />

ABSTRACT: The present work proposes that word, feeling and imagination form a fundamental triad in the<br />

infantile and/or juvenile gender, unveiling the literature as an element of constitution and construction of the<br />

reader-subject and of the man. In this point of view, we followed the Mozambique writer Mia Couto in his<br />

“foray” by the universe of infantile history with O gato e o escuro (2001) in its Brazilian edition, 2008,<br />

illustrated by Marilda Castanha. In our point of view, that will be based in the considerations of the own<br />

author, of Walter Benjamin and of Regina Werneck, this is a history in which the proposed triad surpasses<br />

the asymmetric borders of the gender, of the geography and of the temporal boundaries and establishes a<br />

cultural dialogue between the distinguished creative universe of this author – as a recognized word<br />

“craftsman” – and the infantile universe, as a space of formation and evolution of the reader.<br />

KEYWORDS: Mia Couto, infantile literature, reader.<br />

1 O Autor<br />

O que me move é a vocação divina da palavra, que não apenas nomeia<br />

mas que inventa e produz encantamento.<br />

Mia Couto<br />

A palavra, o sentimento e a imaginação constituem uma tríade fundamental do<br />

gênero infantil e/ou infanto-juvenil, descortinando a literatura como elemento de<br />

constituição e construção do sujeito-leitor e do homem. Por essa ótica, acompanhamos o<br />

escritor moçambicano Mia Couto na sua “incursão” pelo universo da história infantil com<br />

O gato e o escuro (2001) na sua edição brasileira, de 2008, ilustrada por Marilda Castanha.<br />

Em nossa perspectiva, é uma história em que essa tríade ultrapassa as fronteiras<br />

assimétricas do gênero, da geografia e da delimitação temporal e estabelece um diálogo<br />

cultural entre o universo criador diferenciado desse autor – enquanto reconhecido “artesão”<br />

da palavra – e o universo infantil, este como espaço de formação e evolução do leitor.<br />

Doutoranda em Estudos de Literatura, na especialidade de Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas, do<br />

Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:<br />

nkg316@gmail.com.br.


Mia Couto é um cidadão moçambicano, africano, universal que faz da palavra um<br />

instrumento de sentir, sonhar, crescer e construir. Reconhecido internacionalmente por<br />

contos e romances, incursiona pela poesia, crônica, teatro e ensaio, exercendo também a<br />

profissão de biólogo, onde diz não morar, mas apenas estar como um visitante, tendo “a<br />

alma errando pelos domínios da literatura” (<strong>COUTO</strong>, 2005, p. 113). Na literatura infantil e<br />

juvenil seus escritos são pouco conhecidos estando editados, até o presente, os títulos: Mar<br />

me quer – conto escrito em 1998 para a Exposição Mundial de Lisboa – cuja primeira<br />

edição pela Editorial Caminho de Lisboa data de 2000, com ilustrações de João Nasi<br />

Pereira 1 , tendo atingido, em 2007, a sétima edição e a recomendação, em Portugal, do<br />

Plano Nacional de Leitura 2009 para os 10º, 11º e 12º anos de escolaridade; A chuva<br />

pasmada, de 2004 pela mesma editora, com ilustrações de Danuta Wojciechowska 2 .<br />

Na área infantil, apresenta dois títulos: O gato e o escuro – escrito inicialmente a<br />

pedido de uma revista – editado em 2001 pela Caminho, com ilustrações de Danuta<br />

Wojciechowska (na 4ª edição em 2009), e publicado no Brasil, pela Companhia das<br />

Letrinhas, em 2008, ilustrado por Marilda Castanha 3 ; O beijo da palavrinha publicado,<br />

primeiramente, no Rio de Janeiro pela Língua Geral, em 2006, ilustrado por Malangatana<br />

Valente Ngwenya 4 , e pela Caminho de Lisboa em 2008 (ilustrado por Wojciechowska),<br />

que recebeu a recomendação, em 2009, do Plano Nacional de Leitura para o 4º ano de<br />

escolaridade.<br />

Em O gato e o escuro, o próprio Mia Couto apresenta o livro e a si mesmo dizendo:<br />

1 Arquiteto, professor, pintor e ilustrador, moçambicano; reside atualmente em Portugal.<br />

2 Danuta Wojciechowska nasceu em 1960 no Canadá. É licenciada em Design de Comunicação pela Escola<br />

Superior de Design de Zurique, tem pós-graduação em Educação pela Arte, pelo Emerson College, Sussex,<br />

Inglaterra e, desde 1984, vive em Portugal. Foi selecionada em 2002 pela THE WHITE RAVENS – A<br />

Selection of International Children´s and Youth Literature, com o livro O Gato e o Escuro; em 2003 para a<br />

Exposição Internacional de Ilustradores da Feira do Livro Infantil de Bolonha; em 2004 foi a candidata<br />

nacional portuguesa ao Prêmio Hans Christian Andersen, atribuído pelo IBBY – International Board on<br />

Books for Young People. Em 2003 recebeu o Prêmio Nacional de Ilustração, no qual já havia sido<br />

distinguida com Menções Especiais do Júri em 1999, 2000, 2001 e 2002.<br />

3 Escritora e ilustradora mineira formada na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.<br />

No Brasil, recebeu os prêmios: Jabuti de Ilustração da Câmara Brasileira do Livro (CBL), 42ª edição, em<br />

2000, Melhor Ilustração em 1999 e Melhor Livro Informativo em 2002, pela Fundação Nacional do Livro<br />

Infantil e Juvenil (FNLIJ). Recebeu na França, em 2002, o Prix Graphique Octogone do Centre International<br />

D'Etudes en Litterature de Jeunesse (CIELJ) e em Tóquio, em 2000, o Prêmio NOMA de Ilustração do<br />

UNICEF, na categoria Runner-Up.<br />

4 Pintor moçambicano nascido em Matalana, em 1936, freqüentou o Núcleo de Arte de Maputo e, em Lisboa,<br />

foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian (cerâmica e gravura). É detentor de importantes prêmios<br />

internacionais e da Medalha Nachingwea, pela contribuição dada à Cultura Moçambicana, de 1984; tem suas<br />

obras expostas em museus, galerias particulares e coleções em Moçambique, Angola, Cabo Verde, Índia,<br />

Paquistão, Portugal, Bulgária, Suíça, Estados Unidos, Uruguai, etc. Faleceu em janeiro de 2011.


Não sei se alguém pode fazer livros “para” crianças. Na verdade, ninguém se<br />

apresenta como fazedor de livros “para” adultos. O que me encanta no acto da<br />

escrita é surpreender tanto a escrita como a língua em estado de infância. E lidar<br />

com o idioma como se ele estivesse ainda em fase de construção, do mesmo<br />

modo que uma criança converte o mundo inteiro num brinquedo. Eu penso<br />

assim e, por todas estas razões, nunca acreditei que, um dia, eu escreveria uma<br />

história que iria constar de um livro infantil. Mas sucedeu assim. À força de<br />

contar histórias para meus filhos adormecerem, inventei uma convicção para<br />

mim mesmo e acredito que invento histórias para que a Terra inteira adormeça e<br />

sonhe. O escritor traria, assim, o planeta ao colo. Espero que o gatinho que<br />

habita estas páginas possa afastar ideias escuras que temos sobre o escuro. A<br />

maior parte dos medos que sofremos, crianças e adultos, foi fabricada para nos<br />

roubar curiosidade e para matar a vontade de querermos saber o que existe para<br />

além do horizonte. Esta é uma história contra o Medo. (<strong>COUTO</strong>, 2008, p. 5,<br />

grifos do autor)<br />

Sou um escritor de um país africano chamado Moçambique. Nesse país fala-se<br />

português como no Brasil. Tenho 52 anos e, para além de escritor, sou biólogo e<br />

trabalho com os bichos e as plantas da minha terra. Nasci numa cidade pequena<br />

à beira do Oceano Índico. Ali aprendi a ser menino para toda a vida. A maior<br />

parte dos habitantes da minha terra não sabe ler nem escrever. Mas eles sabem<br />

contar histórias. E sabem escutar. São pessoas que guardam essa meninice<br />

dentro de si e acreditam que esse olhar de criança é importante para ser feliz e<br />

produzir felicidade para os outros. Eu quis muito que os meus filhos<br />

aprendessem a escutar os outros, a escutar a Vida. Se fizermos como o gato<br />

desta história, o Mundo inteiro se transforma num brinquedo. E nós poderemos,<br />

então, perder o medo de sermos felizes. (<strong>COUTO</strong>, 2008, p. 38)<br />

As palavras do autor traduzem a sua posição diante da escrita, que ultrapassa a ideia<br />

de ofício, para expor um artesanato composto de sentimentos individuais no âmbito do real<br />

(o pai que conta histórias, as lembranças da infância, etc.) e de sentidos universais no da<br />

ficção (a imaginação, o medo, o escuro, o papel do escritor). A obra, na sua essência, como<br />

palavra significada, gera o que Mia Couto propõe como “ensinar a ler”, que para ele “é<br />

sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e<br />

invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra ‘pensar’ que significava ‘curar’<br />

ou ‘tratar’ um ferimento” (<strong>COUTO</strong>, 2009, p. 105, grifos do autor).<br />

Ao propor a sua história como um enfrentamento do medo, qualquer que seja a sua<br />

aparência ou sua marca geográfico-temporal, o autor convida o ouvinte-leitor a superar as<br />

suas próprias fronteiras simbólicas e olhar, a partir do seu interior, para o horizonte onde o<br />

outro e os outros podem alcançar. De acordo com Mia Couto (2009, p. 107) a leitura, não é<br />

apenas uma “questão do domínio de técnicas de decifração do alfabeto”, mas sim de<br />

“possuirmos instrumentos para sermos felizes”. Ainda de acordo com ele:<br />

[...] o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é<br />

visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos<br />

tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários<br />

com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.<br />

(<strong>COUTO</strong>, 2009, p. 107)


No seu “ser” e “estar” no mundo adulto permanece intacta a memória que guarda a<br />

meninice – de quem ouviu e leu histórias – e ele a transpõe para um gato. As palavras<br />

escritas e as imagens do livro remetem ao contexto originalmente moçambicano, africano,<br />

numa análise mais ampla, tanto pelos cenários que acompanham as palavras quanto pela<br />

sua especificidade 5 . Entretanto, ao elencar elementos de compreensão universal, como o<br />

gato, o escuro, o pôr-do-sol, o arco-íris, etc., a história – enquanto palavra e imagem –<br />

passa a atuar como mensagem, sugerindo sentidos apenas possíveis, conforme<br />

encontramos em Palo e Oliveira (1998, p. 11), ultrapassando os limites originais para um<br />

contexto universal. Afirmam as autoras que: “Cada coisa, cada ser pode ter similaridade<br />

com outros, redescobrindo o princípio da correspondência que os integra no todo universal;<br />

nesse fugaz instante entre o dito e o não-dito” (1998, p. 11).<br />

Conforme diz Mia Couto: “[...] a infância não é apenas um estágio para a<br />

maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós”<br />

(<strong>COUTO</strong>, 2009, p. 110). Com essa incursão na literatura infantil ele está certamente numa<br />

janela aberta de onde, hoje, como escritor de tantas prosas, retoma a palavra que ouviu,<br />

enquanto crescia “escutando os velhos contadores de histórias” que lhe “traziam o<br />

encantamento de um momento sagrado” (<strong>COUTO</strong>, 2005, p. 150), e a re-significa<br />

devolvendo-a ao literário universal, com as marcas buscadas na própria memória.<br />

O desafio de escrever de um território interior, quando os caminhos literários o<br />

colocam como um autor engajado em questões contemporâneas como buscas identitárias,<br />

afirmações de nacionalidades, resgates de tradições, e polêmicas sobre oralitura e<br />

oralidade, analfabetismo e letramento, parece vencido por Mia Couto. Ele nos fala de um<br />

reduto que permanece vazio em cada adulto, pronto para ser (re)habitado, fala com a voz<br />

do outro, dos outros – neste caso, de um gato – sem limitação de idade e/ou nacionalidade.<br />

É o encontro do real com o ficcional conforme ele próprio diz em entrevista:<br />

5 Exemplarmente, citamos o termo “pangolim” que designa um mamífero, encontrado nas regiões tropicais<br />

da África e Ásia, de corpo comprido e fusiforme, coberto por escamas epidérmicas sobrepostas. Tem a língua<br />

muito comprida e viscosa, não tem dentes e possui cinco grandes garras nas patas, alimentando-se<br />

basicamente de formigas e cupins. O mais próximo na fauna brasileira seria imageticamente um misto de<br />

tamanduá e tatu.


2 A História<br />

Acho que não existe simplesmente ficção. Todo texto sempre tem essa relação<br />

de fronteira mal desenhada entre o que é real e o que é ficcional. O escritor<br />

brinca com isso, e ele próprio não sabe o que é. Fica confuso, mas, pelo menos,<br />

é verdadeiro nessa declaração de que não está dizendo algo inteiramente<br />

verdadeiro. Estou convidando as pessoas a brincarem nesse terreiro em que não<br />

se sabe o que é real, o que é utópico, o que é sonho. No fundo, complicamos um<br />

assunto que é muito simples. Eu acompanhei meus filhos, agora meus netos e<br />

vejo essa necessidade quase biológica de construir histórias. A necessidade de<br />

encantamento é uma coisa que me parece da nossa própria espécie. Por isso, a<br />

criança fica em êxtase quando ouve uma história. O que o escritor faz, no fundo,<br />

é eternizar essa relação que mexe com o nosso próprio lado criança. (<strong>COUTO</strong>,<br />

2010)<br />

A história do gato preto que o narrador constrói começa assim:<br />

Vejam meus filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história. Pois ele<br />

nem sempre foi dessa cor. Conta a mãe dele que, antes, tinha sido amarelo, às<br />

malhas e às pintas. Tanto que lhe chamavam o Pintalgato. (<strong>COUTO</strong>, 2008, p. 6)<br />

A história que o ilustrador nos conta começa, na capa, com um gato amarelo de<br />

pintas brancas atravessando para o escuro da noite, onde a cabeça e a pata começam a<br />

escurecer, e segue com um gato preto-azulado num pulo sobre uma superfície branca que<br />

tem três desenhos: um peixe, um pavão e um cão. Na página 4, ladeando a apresentação do<br />

livro feita pelo escritor, surge uma criança abarcando num abraço um imenso globo onde<br />

sobressaem os continentes. Na página 7, dando seguimento à história vemos um gato preto<br />

sentado sobre um livro azul, de cujas páginas emerge um rabo amarelo com pintas brancas.<br />

O fundo do desenho retrata elementos da cultura africana ou, quem sabe, de qualquer lugar<br />

do planeta.<br />

Marilda Castanha estabelece com as ilustrações uma comunicação direta o que, de<br />

acordo com Regina Werneck, constitui-se “numa comunicação mais direta do que o código<br />

verbal escrito que se representa de forma abstrata” sendo também “uma linguagem<br />

internacional, passível de compreensão por qualquer povo” (WERNECK, 1986, p. 148). O<br />

traço e o código pictórico são identificáveis como arte africana, mas trazem os elementos<br />

simbólicos universais, permitindo o que Werneck classifica como o “apoio, a pausa e o<br />

devaneio tão importantes numa leitura criadora” que é, para ela, “o resultado da percepção<br />

única e individual, graças às combinações perceptivas que se realizam e que fazem com<br />

que nunca uma pessoa descreva o que leu exatamente como o outro” (WERNECK, 1986,<br />

p. 148).


Nessa análise situamos Walter Benjamin quando ele afirma que “ao elaborar<br />

histórias, crianças são cenógrafos que não se deixam censurar pelo ‘sentido’”<br />

(BENJAMIN, 2002, p. 70). Encontramos, pois, no ato de ilustrar, a potencialização dessa<br />

possibilidade. Ainda nesta linha de raciocínio Werneck nos diz que:<br />

Na consolidação da linguagem a criança cria uma interpretação para as imagens<br />

representadas e estabelece relação entre elas. Numa atitude ativa, a criança<br />

compara, discrimina, enumera, descreve, recria e interpreta segundo o que já<br />

sabe. Em outras palavras, a criança descobre a imagem graças a sua experiência<br />

do mundo. Ela aprende, sobretudo, a se acostumar à enorme diferença que<br />

separa a realidade da sua representação num espaço em duas dimensões,<br />

submetido a critérios específicos de seleção e de organização. (WERNECK,<br />

1986, p. 150)<br />

Os fatores estruturais da história – narrativa, personagem, espaço, tempo – são<br />

assumidas por dois narradores, o verbal (escrito) e o pictórico (ilustrador) que estabelecem<br />

um diálogo entre si e com o receptor que, por sua vez, se apropria desses elementos e<br />

(re)elabora, na sua linguagem, a história contada. Na ilustração, conforme analisam Maria<br />

José Palo e Maria Rosa D. Oliveira, “genericamente, ocorre a amplificação, por acréscimo<br />

de atributos, da história narrada pelo verbal” (1998, p. 33), que gera, continuamente, novas<br />

possibilidades de leitura. O gato, elemento concreto que funda a narração, ultrapassa a<br />

fronteira delimitada do escuro e torna-se outro assumindo uma dupla metáfora das<br />

travessias que o ser humano realiza no seu processo evolutivo – a de superação psicológica<br />

dos medos e a de uso da imaginação como instrumento de compreensão do mundo. O<br />

diálogo entre o psicológico e a imaginação é estabelecido a partir do todo composto pela<br />

palavra e pela imagem.<br />

O narrador verbal conta a história oriunda da sua própria imaginação e dialoga<br />

diretamente com o leitor de dentro do seu universo geográfico e do seu tempo interior. Ele<br />

fornece os elementos de apreensão, compreensão e verossimilhança com que a criança irá<br />

(re)compor, de dentro do seu próprio mundo, a história que ouve ou lê. O narrador<br />

pictórico toma a si a história contada e abre nela outros desafios de apreensão e<br />

compreensão, que levam diretamente a um imaginário sem as limitações de elementos<br />

conhecidos. Dessa apropriação podem surgir, no ouvinte-leitor, histórias múltiplas, “reescritas”<br />

semelhantes ou muito diversas do conteúdo original. Os dois narradores<br />

completam os elementos necessários ao que Mia referiu como uma brincadeira com o real,<br />

com o utópico e com o sonho.


Temos assim a literatura como ponte ligando o mundo interior (subjetivo) com o<br />

exterior (real). O escritor e o ilustrador são os contadores da história, que manejam letras e<br />

formas, em diálogo com a linguagem das cores, para narrar as peripécias do gato. Este, um<br />

ser curioso que, desafiando a sabedoria dos adultos, ultrapassa gradualmente a fronteira<br />

entre o dia e a noite, aventurando-se a pisar o poente situado além do muro chamado pôrdo-sol.<br />

A cada incursão ele vai escurecendo até tornar-se invisível aos seus próprios olhos.<br />

Desse momento em diante o gato passa a dialogar com o escuro que nada vê e<br />

ambos se encontram no território da tristeza. A presença de sua mãe altera o rumo dos<br />

acontecimentos, trazendo cor aos olhos do escuro que se amarelam em contato com a luz.<br />

No diálogo dessas personagens transita a naturalidade diante do medo do escuro e a sua<br />

relação direta com o sentimento e a imaginação de todas as crianças; na ilustração, surgem<br />

os adultos com os seus diferentes olhares. Dona Gata diz “– Os meninos não sabem que o<br />

escuro só existe é dentro de nós.” e “– Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro<br />

só mora quem lá inventamos.” (<strong>COUTO</strong>, 2008, p. 25). É perceptível, pois, que texto<br />

escrito e ilustração vão contando a história ancestral do medo e do escuro e estes, enquanto<br />

são expostos, vão traduzindo para uma nova forma, a da linguagem que contém todas as<br />

cores – o arco-íris.<br />

É olhando nos olhos da mãe que Pintalgato vai compreender o interior da escuridão<br />

o que o faz despertar. Ao final da história reavivamos o simbólico “olho de gato” que<br />

brilha na escuridão, metáfora do duplo no ser humano, quando lemos sobre o fundo branco<br />

da página:<br />

Ante a luz, porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo<br />

uma estreita fenda preta. Então, o gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda<br />

escura como se vislumbrasse o abismo. Por detrás dessa fenda o que é que ele<br />

viu? Adivinham? Pois ele viu um gato preto, enroscado do outro lado do<br />

mundo. (<strong>COUTO</strong>, 2008, p. 37)<br />

Dessa cena em diante, cada ouvinte-leitor tem como incumbência perpetuar no seu<br />

horizonte o arco-íris que for capaz de imaginar. A tarefa do escritor e do ilustrador será<br />

completada a cada nova continuidade, isto é, quando a criança em cada ouvinte e/ou leitor<br />

se apropriar desse texto e recriá-lo ao longo do tempo, onde quer que se encontre. O gato e<br />

o escuro traz, em palavras e imagens, a infância do indivíduo criador, mas a apropriação da<br />

temática é universal, significada e re-significada quantas vezes for acessada.<br />

Ao apropriar-se do simbólico o texto imprime a possibilidade da expressão artística<br />

servir como meio de catarse e sublimação para os anseios, angústias, conflitos e buscas do


ser humano. Ao abrir-se a infância como uma espécie de metáfora dessa possibilidade,<br />

abrem-se múltiplas janelas interiores que o ouvinte-leitor poderá, ou não, acessar ao longo<br />

da vida. A palavra absorve diferentes sentidos que tornam a história universal, tal qual os<br />

sentimentos com os quais ela compõe a trama narrativa.<br />

Medo e escuro são sinônimos quando nos referimos à evolução humana e ao<br />

distribuí-los entre dois momentos da vida de um gato – símbolo tanto do bem, quanto do<br />

mal – o autor dá ao seu leitor a oportunidade de (re)significar a seu critério as duas<br />

designações. Nesse percurso ele permite a co-autoria da história, oportuniza a sua retomada<br />

e re-criação com os elementos que se apresentarem no passado-presente de seu ouvinteleitor.<br />

Mia Couto introduz n’O gato e o escuro uma criação vocabular que é marca de sua<br />

poética. Unindo dois significados em uma palavra, como, por exemplo, “pirilampiscavam”<br />

(2008, p. 10), “noitidão” (2008, p. 14), “despersianar” (2008, p. 16), “arco-iriscando”<br />

(2008, p. 28), “ataratonto” e “antecoisa” (2008, p. 31) ou “estremolhado” (2008, p. 34) ele<br />

convida, e/ou desafia, o seu leitor a decifrar os códigos postos e incita-o a elaborar os seus.<br />

É a posse da língua no ato de exercer a linguagem, é, como ele próprio define na<br />

apresentação do livro, “lidar com o idioma como se ele estivesse ainda em fase de<br />

construção [...]”. Sob essa perspectiva, escritor e leitor são posseiros em uníssono do<br />

idioma e, retomando as palavras de Mia, com ele convertem “o mundo inteiro num<br />

brinquedo”.<br />

Se o enredo tem como narrador um contador de histórias que se vale do<br />

maravilhoso para inserir mobilidade às personagens, a história interna de cada leitor, por<br />

sua vez, é trazida à tona através dos elementos da vida real, da verossimilhança que, no<br />

caso, são os papéis das personagens (menino, mãe), e dos elementos da natureza (sol, pôrdo-sol,<br />

arco-íris, dia, noite) que estão presentes no seu cotidiano. Com isso, a leitura<br />

permite a criação de realidades próprias, que podem ser múltiplas num “transitar de vidas”<br />

como diz o autor, que afirma ainda que “de pouco vale escrever ou ler se não nos<br />

deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras<br />

vozes” (<strong>COUTO</strong>, 2009, p. 106-107).<br />

O gato moçambicano de Mia Couto e de Marilda Castanha ultrapassa na palavra, no<br />

sentimento e na imaginação o “muro-poente” de cada ouvinte-leitor e lhe dá a autoridade<br />

de assumir a sua própria voz identitária, onde quer que este se encontre. É a literatura como<br />

processo de (re)apropriação de mundo através da leitura, atemporal e universal.


REFERÊNCIAS<br />

BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de<br />

Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Editora 34, 2002.<br />

<strong>COUTO</strong>, Mia. A chuva pasmada. Ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa:<br />

Caminho, 2004.<br />

______. Entrevista com o autor por Natalia da Luz. G1-Globo.com, Editoria Pop & Arte.<br />

26.Jul.2009. Disponível em . Acesso em: 10 mai 2010.<br />

______. E se Obama fosse africano? e outras interinvenções. Lisboa: Caminho, 2009.<br />

______. Mar me quer. Ilustrações de João Nasi Pereira. Lisboa: Caminho, 2000.<br />

______. O beijo da palavrinha. Ilustrações de Malangatana Valente Ngwenya. Rio de<br />

Janeiro: Língua Geral, 2006.<br />

______. O gato e o escuro. Ilustrações de Marilda Castanha. São Paulo: Companhia das<br />

Letrinhas, 2008.<br />

______. Pensatempos. Textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005.<br />

PALO, Maria José; OLIVEIRA, Maria José D.. Literatura infantil: voz de criança. São<br />

Paulo: Ática, 1998.<br />

WERNECK, Regina Yolanda. O problema da ilustração no livro infantil. In: KHÉDE,<br />

Sonia Salomão (Org.). Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. Porto Alegre:<br />

Mercado Aberto, 1986, p. 147-154.

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