Mais louco - Cia. Atelie das Artes

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12.04.2013 Views

ATO I SALA NUMA CLÍNICA PARTICULAR. MANHÃ. HÁ PORTAS PARA AS ENFERMARIAS, PARA A FARMÁCIA E PARA HALL DE ENTRADA. GRANDE PORTA DE VENEZIANAS, DE DOBRAR, ABRE PARA O JARDIM AGRADÁVEL, COM ARBUSTOS. PIA. ESCRIVANINHA. CAMA DE FERRO, PARA EXAMES MÉDICOS, CERCADA POR CORTINAS. ENTRA PRENTICE, COM ANDAR RÁPIDO. GERALDINE BARCLAY SEGUE-O, CARREGANDO UMA PEQUENA CAIXA DE PAPELÃO. PRENTICE (VOLTANDO-SE, NA ESCRIVANINHA). Sente-se. Este é o seu primeiro emprêgo? GERALDINE (SENTADO). É, doutor. PRETICE PÕE ÓCULOS, ENCARA-A UM TEMPO. ELE ABRE A GAVETA DA ESCRIVANINHA, TIRA UM BLOCO PARA ANOTAÇÕES. PRENTICE (PEGANDO UM LÁPIS). Tome nota. Em inglês, por favor. (VOLTA À ESCRIVANINHA, SENTA-SE E SORRI). Quem era o seu pai? ponha isso no alto da página. GERALDITE POUSA NA ESCRIVANINHA A CAIXA DE PAPELÃO QUE TRAZIA, CRUZA AS PERNAS, POUSA O BLOCO SOBRE O JOELHO, E FAZ AS ANOTAÇÕES. A resposta deve ir logo abaixo da pergunta, para facilitar as consultas. GERALDINE - Eu não tenho a menor idéia de quem era o meu pai. PRENTICE FICA PERTURBADO COM A RESPOSTA EMBORA NÃO DÊ MOSTRAS DISSO. ELE SORRI BONDOSAMENTE PARA ELA. 1

ATO I<br />

SALA NUMA CLÍNICA PARTICULAR. MANHÃ. HÁ PORTAS<br />

PARA AS ENFERMARIAS, PARA A FARMÁCIA E PARA HALL DE<br />

ENTRADA. GRANDE PORTA DE VENEZIANAS, DE DOBRAR,<br />

ABRE PARA O JARDIM AGRADÁVEL, COM ARBUSTOS. PIA.<br />

ESCRIVANINHA. CAMA DE FERRO, PARA EXAMES MÉDICOS,<br />

CERCADA POR CORTINAS.<br />

ENTRA PRENTICE, COM ANDAR RÁPIDO. GERALDINE<br />

BARCLAY SEGUE-O, CARREGANDO UMA PEQUENA CAIXA DE<br />

PAPELÃO.<br />

PRENTICE (VOLTANDO-SE, NA ESCRIVANINHA). Sente-se. Este é o<br />

seu primeiro emprêgo?<br />

GERALDINE (SENTADO). É, doutor.<br />

PRETICE PÕE ÓCULOS, ENCARA-A UM TEMPO. ELE ABRE A<br />

GAVETA DA ESCRIVANINHA, TIRA UM BLOCO PARA<br />

ANOTAÇÕES.<br />

PRENTICE (PEGANDO UM LÁPIS). Tome nota. Em inglês, por favor.<br />

(VOLTA À ESCRIVANINHA, SENTA-SE E SORRI). Quem era o seu pai?<br />

ponha isso no alto da página.<br />

GERALDITE POUSA NA ESCRIVANINHA A CAIXA DE PAPELÃO<br />

QUE TRAZIA, CRUZA AS PERNAS, POUSA O BLOCO SOBRE O<br />

JOELHO, E FAZ AS ANOTAÇÕES.<br />

A resposta deve ir logo abaixo da pergunta, para facilitar as consultas.<br />

GERALDINE - Eu não tenho a menor idéia de quem era o meu pai.<br />

PRENTICE FICA PERTURBADO COM A RESPOSTA EMBORA<br />

NÃO DÊ MOSTRAS DISSO. ELE SORRI BONDOSAMENTE PARA<br />

ELA.<br />

1


PRENTICE- Preciso ser franco, senhorita. Não poderei empregá-la se suas<br />

origens tiverem qualquer aspecto miraculoso. É contra o regulamento. A<br />

senhorita teve pai?<br />

GERALDINE - É claro que tive. Minha mãe era muito econômica, mas<br />

sempre dentro de limites razoáveis.<br />

PRENTICE - Se a senhorita teve pai, por que razão não é capaz de dar<br />

conta dele?<br />

GERALDINE - Ele abandonou minha mãe. Há muitos anos. Ela foi vítima<br />

de uma agressão profundamente constrangedora.<br />

PRENTICE (PERSPICAZ).- Ela era freira?<br />

GERALDINE - Não. Era arrumadeira no Motel da Estação.<br />

PRENTICE FRANZE A TESTA, TIRA OS ÓCULOS, E ACERTA<br />

COM OS DEDOS O ALTO DO NARIZ.<br />

PRENTICE - Dê-me esse volume grande, encadernado em couro, por<br />

favor.<br />

Preciso verificar sua história. Para salvaguardar meus interesses,<br />

compreende?<br />

GERALDINE PEGA O LIVRO NA ESTANTE E LEVA-O A<br />

PRENTICE. ÊLE CONTESTA.<br />

O Motel da Estação?<br />

GERALDINE - É.<br />

PRENTICE (ABRINDO O LIVRO, CORRENDO O DEDO PELA<br />

PÁGINA) .Ah! Aqui estamos! Trata-se de um edifício de pouco interesse<br />

arquitetônico construído para fins desconhecidos no final do século. Foi<br />

convertido em hotel por subscrição pública. (ACENA SABIAMENTE A<br />

CABEÇA). Eu mesmo fiquei hospedado lá uma vez, quando jovem. Tem<br />

uma fama de luxo e conforto incompreensível até mesmo para o menos<br />

exigente dos hóspedes. (FECHA O LIVRO COM ESTRONDO E O<br />

EMPURRA PARA O LADO). Sua história parece ser correta, ao menos nos<br />

pontos principais. Esta obra admirável, é claro, entre a maioria dos detalhes.<br />

O que é de se esperar em publicações destina<strong>das</strong> à mais ampla divulgação,<br />

(PÕE OS ÓCULOS). Declare aí que seu pai desapareceu. Não diga nada a<br />

respeito <strong>das</strong> circunstâncias. Poderia influenciar a minha decisão final.<br />

GERALDINE ESCREVE. PRENTICE RECOLOCA O VOLUME NA<br />

ESTANTE.<br />

PRENTICE - Sua mãe está viva? Ou será que ela também desapareceu de<br />

maneira inexplicável? Essa é uma pergunta marota. Muito cuidado - poderá<br />

perder pontos no escore final.<br />

ELE VOLTA À ESCRIVANINHA E SE SERVE DE WHISKY.<br />

2


GERALDINE - Há muitos anos que não vejo minha mãe. Fui criada por<br />

uma Sra. Barclay, recentemente falecida.<br />

PRENTICE - Qual a causa mortis?<br />

GERALDINE - Uma explosão - devida a um defeito no encanamento do<br />

gás matou-a instantaneamente, arrancou o telhado da casa.<br />

PRENTICE - A senhorita pediu indenização?<br />

GERALDINE - Só pelo telhado.<br />

PRENTICE - Não houve outras vítimas da catástrofe?<br />

GERALDINE - Houve. Uma estátua recém-inaugurada de Sir Winston<br />

Churchill foi danificada a ponto de se falar em novas condecorações por<br />

heroísmo. Partes do grande homem foram efetivamente encontra<strong>das</strong><br />

entranha<strong>das</strong> na minha madrasta.<br />

PRENTICE - Que partes?<br />

GERALDINE - Receio não poder ajuda-lo nessa ponto. Fiquei transtornada<br />

demais para poder providenciar pessoalmente as pompas fúnebres.<br />

E até mesmo para identificar o corpo?<br />

PRENTICE - Mas a família Churchill não tomou providências?<br />

GERALDINE - Sem dúvida. Foram de extrema bondade.<br />

PRENTICE - A senhorita teve uma experiência rara. Não é todo mundo<br />

que tem a madrasta assassinada pela Companhia de Gás do Norte de<br />

Londres. (SACODE A CABEÇA, COMPARTILHANDO A DOR DA<br />

POBRE MOÇA) Aceita uma aspirina?<br />

GERALDINE - Não, senhor, muito obrigada. Não quero viciar-me em<br />

tóxicos.<br />

PRENTICE - Sua prudência é mais que louvável, minha cara. (SORRISO<br />

AMIGÁVEL). E agora, tenho de fazer-lhe uma pergunta que poderá causar<br />

algum constrangimento. Por favor lembre-se que seu médico. (PAUSA).<br />

Quantas palavras a senhorita taquigrafa por minutos?<br />

GERALDINE - Eu pego com facilidade vinte palavras por minuto, doutor.<br />

PRENTICE - E sua velocidade na datilografia?<br />

GERALDINE - Há muitos segredos de teclado que ainda não penetrei.<br />

Acontece que o meu dinheiro acabou.<br />

PRENTICE TIRA O BLOCO DA MÃO DELA E O PÕE DE LADO.<br />

PRENTICE - Talvez a senhorita tenha outras qualidades menos aparentes<br />

à primeira vista. Deite-se naquela cama.<br />

GERALDINE - Por que, doutor?<br />

PRENTICE - Não faça perguntas. Essa é a primeira regra que toda<br />

secretária aprende. (ABRE AS CORTINAS EM TORNO DA CAMA). E<br />

3


por favor tire as meias. Desejo verificar os efeitos da morte de sua madrasta<br />

em suas pernas.<br />

GERALDINE - Isso não é um pouco inusitado?<br />

PRENTICE - Não tenha medo, sta. Barclay. O que eu vejo nessa cama não<br />

é uma moça linda e desejável. É uma mente enferma necessitada de<br />

tratamento psiquiátrico. O corpo não interessa a um homem do meu estofo.<br />

Certa vez uma mulher se atirou em cima de mim. Não preciso dizer que esta<br />

revelação é estritamente confidencial. Ela estava nua em pelo. Queria que eu<br />

esquecesse os hábitos morais de toda uma vida. Pois sabe eu só conseguia<br />

pensar numa coisa, no fato dela ter uma deformação umbilical? É esse o<br />

valor que eu dou nos corpos femininos.<br />

GERALDINE - Por favor me perdoe, doutor. Não foi minha intenção<br />

sugerir que suas solicitações tivessem o que quer que fosse de impróprio.<br />

ELA TIRA OS SAPATOS E AS MEIAS E SE DEITA NA CAMA.<br />

PRENTICE PASSA AS MÃOS PELAS PERNAS DELA E ACENA<br />

COM A CABEÇA, SABIAMENTE.<br />

PRENTICE - É o que eu pensava. A senhorita está com as canelas<br />

ligeiramente febris. Tem toda a razão de estar querendo fazer um exame<br />

geral. (EMPERTIGA-SE E TIRA OS ÓCULOS). Dispa-se.<br />

ELE SE VOLTA PARA A ESCRIVANINHA E TIRA O PALETÓ.<br />

GERALDINE SENTA-SE, ALARMADA.<br />

GERALDINE - Eu nunca me despi na frente de um homem.<br />

PRENTICE - Levarei em conta sua inexperiência na matéria.<br />

ELE POUSA OS ÓCULOS NA ESCRIVANINHA E ARREGAÇA AS<br />

MANGAS DA CAMISA.<br />

GERALDINE - Não posso permitir que um homem me toque enquanto<br />

estiver sem roupa.<br />

PRENTICE - Eu usarei luvas de borracha.<br />

GERALDINE ESTÁ PREOCUPADA E NÃO FAZ NENHUM<br />

ESFORÇO PARA CONTAR SUAS CRESCENTES DÚVIDAS.<br />

GERALDINE - Quanto tempo terei de permanecer despida?<br />

PRENTICE - Se as suas reacções forem normais estará tudo acabado num<br />

abrir e fechar de olhos.<br />

GERALDINE - A diretora não faz nenhuma referência a isto em meu<br />

manual de “Conselhos às Recém-Forma<strong>das</strong>”.<br />

PRENTICE - É possível que o capítulo relativo a exame médicos tenha<br />

sido omitido na impressão.<br />

GERALDINE - Mas isso seria ridículo, em se tratando de um livro<br />

didático.<br />

4


PRENTICE - Compreendo muito bem suas preocupações. Nosso sistema<br />

educacional está precisando de um inquérito rigorosíssimo. Fale com a sua<br />

diretora no próximo “papo <strong>das</strong> veteranas”.<br />

ELE SE VOLTA PARA A PIA E LAVA AS MÃOS<br />

GERALDINE - Gostaria que outra mulher estivesse presente. Sua esposa<br />

não poderia vir?<br />

PRENTICE - A sra. Prentice está participando de uma reunião longüíssima<br />

com sua quadrilha. Só voltará tarde da noite.<br />

GERALDINE - Eu posso esperar.<br />

PRENTICE - Falta-me a paciência, minha cara. Tenho uma tendência<br />

natural para precipitar os acontecimentos. Mas não a perturbarei com<br />

detalhes da minha particular enquanto não estiver de novo vestida. (PEGA<br />

UMA TOALHA E ENXUGA AS MÃOS). Coloque suas roupas na<br />

cadeira fornecida para esse fim. (GERALDINE ABRE O FECHO<br />

ÉCLAIR DO VESTIDO E O TIRA . PRENTICE A OBSERVA.<br />

PAUSA. ELE POUSA A TOALHA E COLOCA OS ÓCULOS). Peçolhe<br />

que não mencione este exame na frente de minha mulher. Ele não está<br />

incluído nas normas do Seguro de Saúde. E ela começaria logo a fazer<br />

relatórios em quadruplicata, o que poderia dar lugar a inúmeras<br />

incompreensões.<br />

GERALDINE - Como é a sra. Prentice? Já ouvi tantas histórias a respeito<br />

dela.<br />

ELA PÕE DE LADO O VESTIDO, FICA DE CALCINHA E<br />

SOUTIEN.<br />

PRENTICE - Minha mulher é ninfomaníaca. E por isso, assim como o<br />

Santo Graal, ela é ardentemente buscada por enxames de jovens. Eu casei<br />

com ela por dinheiro, e ao descobri que ela era paupérrima tentei estrangulala.<br />

Ela escapou da minha fúria assassina, e desde então eu tenho tido de<br />

arrastar sua incrível maldade.<br />

GERALDINE (COM UM SUSPIRO). Pobre Dr. Prentice. Que cruz o<br />

senhor carrega. (SUBINDO NA CAMA). Gostaria de poder fazer alguma<br />

coisa para consola-lo.<br />

ELA FECHA AS CORTINAS. PRENTICE VESTE UM AVENTAL<br />

CIRÚRGICO.<br />

PRENTICE - Bom, minha cara, se isso lhe dá algum prazer, poderá testar<br />

meu mais recente equipamento anticoncepcional.<br />

GERALDINE OLHA POR CIMA DA CORTINA E SORRI COM<br />

DOÇURA.<br />

5


GERALDINE (ATIRANDO AS CALCINHAS E O SOUTIEN NUMA<br />

CADEIRA) Ficarei encantada de ajuda-lo no que me for possível, doutor.<br />

PRENTICE (COM SORRISO SUPERIOR E INDULGENTE). Deite-se,<br />

cruze as mãos sob a nuca, e pense nos capítulos finais de sua obra de ficção<br />

favorita. O resto pode ser deixado por minha conta.<br />

GERALDINE DESAPARECE ATRÁS DAS CORTINAS. PRENTICE<br />

ABRE UMA GAVETA DA ESCRIVANINHA. A SRA. PRENTICE<br />

ENTRA DO HALL. TRAZ UM RICO CASACO DE PELE.<br />

SRA. PRENTICE - Com quem você estava falando?<br />

PRENTICE FICA SURPRESO E IRRITADO COM O<br />

APARECIMENTO INESPERADO DA MULHER.<br />

PRENTICE (ENFURECIDO, CULPADO) - Eu insisto em lhe pedir que<br />

não entre em meu consultório sem aviso prévio. Você está interrompendo<br />

os meus estudos.<br />

SRA. PRENTICE (OLHANDO PELA SALA). Não há ninguém aqui.<br />

Você estava falando sozinho?<br />

PRENTICE - Estava ditando uma mensagem para a Enfermeira Chefe. Ela<br />

está muito preocupada com um problema de controle da bexiga.<br />

SRA. PRENTICE - E a urina pode ser controlada com a leitura de<br />

SERVIDÃO HUMANA?<br />

PRENTICE - Minha teoria ainda está nos estágios iniciados. Prefiro não<br />

discuti-la.<br />

A SRA. PRENTICE VAI ATÉ A ESCRIVANINHA E SE SERVE DE<br />

WHISKY.<br />

PRENTICE - Por que é que você voltou? Você sabe que eu não suporto a<br />

tortura da sua companhia.<br />

SRA. PRENTICE - Quando cheguei lá, a reunião estava um caos. Holem<br />

Duncanon declarou-se apaixonada por um homem. E, como você sabe, o<br />

clube é basicamente dedicado às lésbicas. O regulamento não me afeta<br />

pessoalmente porque você conta como mulher. Nós expulsamos Holen e eu<br />

passei a noite no Hotel da Estação. (BEBE WHISKY).<br />

NICHOLAS BECKETE ENTRA. É UM BOY DE HOTEL,<br />

DEVIDAMENTE UNIFORMIZADO. NICK (À SRA. PRENTICE).<br />

Quer verificar sua bagagem, madame? Eu tenho de voltar ao trabalho.<br />

SRA. PRENTICE (AO DOUTOR) - Dá uma olhada na minha bagagem,<br />

sim? Metade já foi roubada pelo pessoal do hotel. (VOLTA À MESA E SE<br />

SERVE DE NOVO). Como é difícil ser mulher.<br />

PRENTICE - Ninguém melhor do que você para saber.<br />

6


ELE VAI ATÉ O HALL, ATRAPALHADO. SRA. PRENTICE PÕE<br />

GELO EM SEU WHISKY E SE VOLTA PARA NICK, COM<br />

EXPRESSÃO FRIA NO ROSTO.<br />

SRA. PRENTICE - Já não peço que devolva nem minha bolsa nem o<br />

dinheiro que roubou, mas a não ser que meu vestido e minha peruca sejam<br />

devolvidos, apresentarei queixa aos seus patrões. Você tem até a hora do<br />

almoço.<br />

NICK - O vestido já vendi. Precinho de liquidação. Se quiser de volta terá<br />

de negociar por um preço muito mais alto. E além disso já tenho uma pessoa<br />

com opção para a compra <strong>das</strong> fotografias.<br />

SRA. PRENTICE - (ENFRENTANDO-O) - Que fotografias?<br />

NICK - Eu tinha uma câmera escondida no quarto.<br />

SRA. PRENTICE - (DE BOCA ABERTA) - Quando eu me dei a você o<br />

contrato não incluía os direitos cinematográficos.<br />

NICK - Quero cem libras pelas fotografias. A senhora tem até a hora do<br />

almoço.<br />

SRA. PRENTICE - Eu vou me queixar no gerente.<br />

NICK - Não adiante. É ÊLE que tira as fotografias.<br />

SRA. PRENTICE - Mas isso é um escândalo! Eu sou uma mulher casada.<br />

NICK - Pois ontem à noite ninguém diria.<br />

SRA. PRENTICE - Eu estava pertubada. Uma lésbica minha amiga tinha<br />

acabado de anunciar seu noivado com um Membro do Parlamento.<br />

NICK - Pois devia escolher seus amigos com mais cuidado. Eu quero sair<br />

dessa jogada de foto pornográfica. Faz um mal danado aos nervos. A<br />

senhora não podia me arranjar um emprego decente? Eu sou vítima de uma<br />

infância trágica.<br />

SRA. PRENTICE - Que espécie de emprego você quer?<br />

NICK - Eu sou excelente datilógrafo. Aprendi com um senhor que trabalha<br />

numa tipografia.<br />

SRA. PRENTICE (FIRME) - Concordo em pagar pelas fotografias. Mas<br />

não posso me responsabilizar pela sua datilografia.<br />

NICK - Eu quero cem libras e um lugar no escritório do seu marido.<br />

SRA. PRENTICE - Você está me colocando numa posição insuportável.<br />

NICK - Não há posições insuportáveis para quem é jovem e sadio.<br />

SRA. PRENTICE VOLTA À ESCRIVANINHA, SERVE MAIS UM<br />

WHISKY, SUA MÃO TREME. PRENTICE ENTRA DO HALL.<br />

CARREGA UMA VALISE NA MÃO. SRA. PRENTICE PÕE DE<br />

LADO GARRAFA VAZIA E DEIXA GELO NO COPO.<br />

7


PRENTICE -(A NICK) - Não pense que é o primeiro porre dela. (POUSA<br />

A VALISE)<br />

NICK - O senhor tem filho?<br />

PRENTICE - Não. Minha mulher declarou que a amamentação no peito<br />

podia estragar suas formas. Muito embora, ao que me lembre, uma<br />

beliscadinha aqui e ali até que podia ajudar um pouco.<br />

SRA. PRENTICE SACODE A CABEÇA NUM TIQUE NERVOSO E<br />

BEBE O WHISKY<br />

PRENTICE - Ela é um caso ontológico de degeneração da espécie na faixa<br />

dos jardineiros amadores da classe média. Um fracasso eugônico que, aliado<br />

à sua fixação pelo álcool e pelas relações sexuais, tornem a maternidade<br />

profundamente desaconselhável.<br />

SRA. PRENTICE (QUIETA) - Eu quase nunca tenho relações sexuais.<br />

PRENTICE - Você nasceu de pernas abertas. Seu caixão vai ter de ser em<br />

forma de Y.<br />

SRA. PRENTICE (RISO AMARGO) - Meus problemas nasceram <strong>das</strong><br />

suas deficiências como amante! É constrangedor. Você deve ter aprendido a<br />

sua técnica num curso de boas maneiras por correspondência. (A BOCA<br />

CONTORCE-SE COM DESDÉM). Não há pílula de rejuvenescimento<br />

que dê jeito em você.<br />

PRENTICE (POMPOSO) - Eu nunca tomo pílulas.<br />

SRA. PRENTICE - Não faz outra coisa o tempo todo quando nós fazemos<br />

amor. O ruído ensurdecedor do seu mastigar é a razão de eu nunca atingir o<br />

orgasmo.<br />

PRENTICE É FERIDO POR TAIS COMENTÁRIOS. CHEGA MAIS<br />

PERTO<br />

PRENTICE - Como ousa dizer isso? O seu livro a respeito do orgasmo<br />

feminino é em grande parte autobiográfico. (PAUSA. ELE A ENCARA).<br />

Ou será que você tem apenas representado o papel da mulher sexualmente<br />

realizada?<br />

SRA. PRENTICE - Há muito tempo que minhas contrações uterinas são<br />

vinga<strong>das</strong>.<br />

ELA APANHA SEU COPO E FAZ UMA SAÍDA TRIUNFAL NA<br />

DIREÇÃO DA ENFERMARIA, LEVANDO A VALISE NA MÃO.<br />

PRENTICE (AINDA VOLTADO PARA ELA) - Quem diria! Eu, casado<br />

com a rainha do clímax fraudulento. (SERVE-SE DE MAIS WHISKY)<br />

NICK (DEPOIS DE PAUSA) - Meus pais eram divorciados, doutor.<br />

Faltou-me o calor de uma atmosfera familiar feliz.<br />

8


PRENTICE - Como psicanalista eu faço tudo para reconciliar casais que<br />

estão estremecidos. (ENFIA DINHEIRO NA MÃO DE NICK). Não<br />

hesite em me chamar quando estiver mentalmente desequilibrado.<br />

NICK PEGA O DINHEIRO E VAI PARA O HALL. PRENTICE,<br />

COM O COPO NA MÃO, AFASTA A CORTINA DA CAMA E OLHA<br />

PARA DENTRO.<br />

PRENTICE - Não adianta ficar aí deitada. Minha mulher voltou.<br />

GERALDINE OLHA POR CIMA DA CORTINA<br />

GERALDINE - Que bom! Assim ela pode ajudar no exame.<br />

PRENTICE - O exame foi cancelado até segunda ordem. (ELE APANHA<br />

A ROUPA DE BAIXO QUE ESTAVA NA CADEIRA). Vista-se!<br />

SRA. PRENTICE VOLTA DA ENFERMARIA. ESTÁ COM UM<br />

COPO VAZIO NA MÃO.<br />

SRA. PRENTICE (INDO ATÉ A ESCRIVANINHA) - Sua nova<br />

secretária já chegou?<br />

PRENTICE ESCONDE ROUPAS DE BAIXO ATRÁS DE SI.<br />

GERALDINE ESTÁ OCULTA PELA CORTINA DA CAMA.<br />

PRENTICE - Já. Os dados estão por aí em algum lugar.<br />

INCAPAZ DE CONTINUAR A ESCONDER AS ROUPAS, DEIXA-AS<br />

CAIR NUMA CESTA DE PAPEIS. A SRA. PRENTICE ABRE<br />

OUTRA GARRAFA.<br />

SRA. PRENTICE - Algum dia você já pensou em ter um secretário?<br />

PRENTICE - Um homem jamais se adaptaria ao meu tipo de trabalho.<br />

SRA. PRENTICE - Meu pai teve um secretário. Minha mãe sempre achou<br />

que ele era muito melhor do que as mulheres.<br />

PRENTICE - Não se pode pedir a um rapaz que trabalhe horas extras só na<br />

base de um baton aqui, uma água de colônia ali.<br />

SRA. PRENTICE - Experimente um rapaz para variar. Você é rico. Pode<br />

se dar aos luxos desta vida.<br />

PRENTICE - E a senhorita Barclay? Eu já fiz a entrevista preliminar.<br />

SRA. PRENTICE - É só explicar que as circunstâncias mudaram.<br />

GERALDINE OLHA POR CIMA DA CORTINA. PRENTICE<br />

GESTICULA PARA QUE ELA DESAPAREÇA. ELA DESAPARECE.<br />

ELE PEGA O BLOCO DE TAQUIGRAFIA, RABISCA UMA NOTA<br />

NO MESMO, ATIRA-A SOBRE A CORTINA. SRA. PRENTICE<br />

SERVE-SE DE MAIS UM WHISKY. PRENTICE VÊ O VESTIDO DE<br />

GERALDINE PENDURADO NA CADEIRA E PEGA-O. ESTÁ A<br />

PONTO DE JOGÁ-LO NA CESTA COM AS OUTRAS ROUPAS<br />

QUANDO NA SRA. PRENTICE SE VIRA DE COPO NA MÃO.<br />

9


PRENTICE TENTA ESCONDER O VESTIDO ATRÁS DE SI. A<br />

PONTA APARECE POR BAIXO.<br />

SRA. PRENTICE ( SURPREENDIDA ) - O que é que você está fazendo<br />

com esse vestido?<br />

PRENTICE ( PAUSA ) - É um vestido seu, velho.<br />

SRA. PRENTICE - Você agora é travesti? Não sabia que nesse casamento<br />

tinha de se submeter a todos os caprichos da moda.<br />

PRENTICE - Nosso casamento é como a paz de Deus - fica além de<br />

qualquer compreensão.<br />

SRA. PRENTICE ENGOLE O WHISKY E ESTICA A MÃO.<br />

SRA. PRENTICE - Dá aqui o vestido. Vou usá-lo.<br />

PRENTICE (RELUTANTE) - Então quer me dar o que você está usando<br />

agora?<br />

SRA. PRENTICE (POUSANDO COPO) - Acontece que eu estou sem<br />

vestido.<br />

ELA TIRA O CASACO DE PELES. POR BAIXO ESTÁ DE<br />

COMBINAÇÃO.<br />

PRENTICE NÃO PODE ESCONDER SEU ESPANTO.<br />

PRENTICE - Por que é que você está sem vestido? O culto do pra frentex<br />

já chegou a esse ponto ?<br />

SRA. PRENTICE (VESTINDO O VESTIDO DE GERALDINE) - Vou<br />

contar a verdade, quase nua e totalmente crua. Faça o favor de ouvir com<br />

atenção, reservando quaisquer comentários para mais tarde. (FECHA O<br />

FECHO DO VESTIDO). Meu quarto no hotel era pequeno, abafado e<br />

inconfortável. Enfim, um modelo no gênero. Quando eu estava me vestindo<br />

para jantar, notei que a roupa de cama não estava lá muito limpa. Fui então<br />

até a rouparia, que eu sabia que ficava no segundo andar, procurar a<br />

arrumadeira. Em lugar dela encontrei um boy que me atraiu até o armário de<br />

roupa e depois me fez propostas indecorosas. Quando o repeli ele tentou<br />

estuprar-me. Eu lutei para me livrar, porém não o consegui antes dele roubar<br />

minha bolsa e vários outros artigos do vestuário.<br />

PRENTICE - Não me parece o tipo de comportamento que um hóspede<br />

deva esperar de um hotel de quatro estrelas.<br />

SRA. PRENTICE - O boy prometeu devolver meu vestido. Ele o tinha<br />

vendido a um amigo, provavelmente para uso em orgias sexuais.<br />

PRENTICE (REUNINDO-SE A ELA JUNTO À ESCRIVANINHA) -<br />

Você compreende o que aconteceria se suas aventuras se tornassem<br />

públicas? Eu ficaria desmoralizado. As portas da sociedade londrina<br />

10


ateriam na minha cara. (SERVE-SE DE WHISKY). Você informou as<br />

autoridades sobre essa sua pequena diversão noturna?<br />

SRA. PRENTICE - Não.<br />

PRENTICE - Por que?<br />

SRA. PRENTICE - Eu ví naquela pobre criança vestígios de uma bondade<br />

inata quase destruída pelas pressões da sociedade. Procurei encontrar um<br />

emprego decente para ele<br />

PRENTICE - Há mercado para esse tipo de atividade?<br />

SRA. PRENTICE - Ele precisa de um campo de fácil penetração.<br />

PRENTICE - Que outras qualificações tem ele?<br />

SR. PRENTICE - Sabe datilografia.<br />

PRENTICE - Não há muitos empregos para datilógrafos homens.<br />

SRA. PRENTICE - Eu sei. Foi uma série de desapontamentos com esse<br />

mercado de emprego que o levou a dedicar-se ao estupro.<br />

PRENTICE - E onde pretende emprega-lo?<br />

SRA. PRENTICE - Como seu secretário. Ele voltará dentro de uma hora.<br />

Você poderá verificar cuidadosamente as referências do rapaz. Onde está a<br />

sta. Barclay?<br />

PRENTICE - Lá em cima.<br />

SRA. PRENTICE - Vou informa-la do que o pôsto não está mais vago.<br />

PRENTICE ENGOLE WHISKY E POUSA O COPO.<br />

PRENTICE - Você podia me emprestar um dos seus vestidos por uns<br />

momentos, querida?<br />

SRA. PRENTICE - Devo dizer que essa sua obsessão por roupas<br />

femininas me parece um assunto desinteressante e, de modo geral, de<br />

bastante mau gosto.<br />

ELA POUSA SEU COPO E VAI PARA O HALL. PRENTICE PASSA<br />

A MÃO NA TESTA.<br />

PRENTICE - Ela não descansa enquanto não me ver na cova. ( VAI ATÉ<br />

A CAMA, ABRE A CORTINA, OLHA PARA DENTRO). Sta. Barclay,<br />

nossa situação é de maior perigo. Minha mulher está com a impressão de<br />

que o seu vestido é dela.<br />

GERALDINE OLHA POR CIMA DA CORTINA.<br />

GERALDINE - Nós precisamos explicar, com o maior tato, naturalmente,<br />

que ela cometeu um engano.<br />

PRENTICE - Receio que seja impossível. A senhorita precisa ter um<br />

pouquinho mais de paciência.<br />

GERALDINE - Doutor - eu estou nua! O senhor já percebeu, não<br />

percebeu?<br />

11


PRENTICE (UM TREMOR LHE PERCORRE O ROSTO). Muito mais<br />

do que possa pensar. Tenho a certeza de que isso me causa um profundo<br />

embaraço. Eu vou procurar roupas adequa<strong>das</strong>.<br />

ELE SE VOLTA PARA A CESTA DE PAPÉIS E ESTÁ A PONTO DE<br />

RETIRAR DELA A ROUPA DE BAIXO QUANDO RANCE ENTRE,<br />

VINDO DO JARDIM. PRENTICE DEIXA AS ROUPAS CAIR DE<br />

NOVO NA CESTA E POUSA ESTA NO CHÃO. GERALDINE<br />

ABAIXA-SE PARA FICAR INVISÍVEL.<br />

RANCE (SORRISO PEDIDO). Bom dia. (TIRA O CHAPÉU) - O<br />

Senhor é o Dr. Prentice?<br />

PRENTICE - O senhor tem hora marcada?<br />

RANCE - Não. Eu nunca marco hora. ( POUSA O CHAPÉU E A PASTA,<br />

APERTOU-SE AS MÃOS). Eu gostaria de obter detalhes pormenorizados<br />

a respeito da sua clínica. Suponha que ela funciona com pleno<br />

conhecimento e permissão <strong>das</strong> autoridades hospitalares locais?<br />

PRENTICE - Claro. Mas tudo dentro do maior sigilo. Nenhum estranho<br />

pode ter acesso aos nossos arquivos.<br />

RANCE - Pode falar livremente na minha presença. Eu represento o<br />

Governo de Sua Majestade. Seus superiores imediatos em questão de<br />

loucura. Vim da parte da Superintendência.<br />

PRENTICE (PREOCUPADO, TIRANDO OS ÓCULOS) - De qual<br />

deles?<br />

RANCE - Da moral.<br />

PRENTICE - O Senhor se ocupa do hospícios propriamente ditos? Ou só<br />

de instituições de loucura experimental?<br />

RANCE - Meu âmbito é ilimitado. Eu poderia intervir numa toca de<br />

coelhos se algum deles estivesse mentalmente perturbado.<br />

ABRE A PASTA E TIRA UM BLOCO PARA ANOTAÇÕES.<br />

PRENTICE, UM POUCO CAMBALEANTE. SERVE-SE DE<br />

WHISKY.<br />

PRENTICE - Pelo visto o senhor é uma potência.<br />

RANCE - Espero que nosso relacionamento seja dos mais agradáveis. Este<br />

aqui é o seu consultório?<br />

PRENTICE (ENGULINDO WHISKY) É.<br />

RANCE - Por que é que há tantas portas? A casa foi desenhada por algum<br />

lunático?<br />

PRENTICE - Foi (SERVE-SE DE MAIS WHISKY). Ele é nosso<br />

paciente de tempos em tempos.<br />

RANCE - (OLHANDO PARA O AUTO) - Tem até clarabóia? Funciona?<br />

12


PRENTICE - Não. Ela não tem a menor utilidade - a não ser deixar entrar a<br />

luz.<br />

RANCE SACODE A CABEÇA, GRAVEMENTE. ANDA PELA SALA<br />

EXAMINANDO TUDO, OBSERVADO POR PRENTICE.<br />

RANCE (PERTO DA CAMA) - Essa comoda é do tamanho regulamentar?<br />

A mim parece suficiente para duas pessoas.<br />

PRENTICE - Eu dou consultar duplas. As crianças pequenas têm pavor dos<br />

médicos, de modo que comecei a examinar as mães ao mesmo tempo.<br />

RANCE - Sua teoria tem sido muito divulgada?<br />

PRENTICE - Eu não vejo com bons olhos o cientista que fica fazendo<br />

alarde de suas teorias.<br />

RANCE - De acordo, de perfeito acordo! Quem dera que um número maior<br />

de cientistas jamais divulgasse suas idéias.<br />

UM PEDAÇO DE PAPEL ENTRA FLUTUANDO POR DEBAIXO DA<br />

CORTINA.<br />

RANCE (PEGANDO O PAPEL) - Isto aqui é com você, Prentice?<br />

PRENTICE - É uma receita doutor.<br />

RANCE (LENDO) - “Fique com a cabeça abaixada e não faça o menor<br />

ruído”. (PAUSA) - E os seus pacientes têm reagido bem a esse tipo de<br />

tratamento?<br />

PRENTICE - Posso dizer que já tive algum sucesso com esse.<br />

RANCE (SECO) - Suas idéias me parecem muito avança<strong>das</strong> para nossos<br />

dias.<br />

ELE ABRE A CORTINA E A FECHA DE NOVO,<br />

IMEDIATAMENTE. VIRA-SE PARA PRENTICE,<br />

DESCONCERTADO.<br />

RANCE - Há uma mulher nua ali atrás.<br />

PRENTICE - É uma cliente, doutor. Eu mal havia conseguido acalma-la<br />

quando o senhor entrou.<br />

RANCE - O senhor foi atacado por uma mulher nua?<br />

PRENTICE - Fui.<br />

RANCE - Bom, Prentice, não sei se devo aplaudir sua coragem ou invejar<br />

sua sorte. Vamos dar uma olhada nela.<br />

PRENTICE VAI ATÉ AS CORTINAS.<br />

PRENTICE - Sta. Barclay, um cavalheiro deseja falar-lhe.<br />

GERALDINE (OLHANDO POR CIMA DA CORTINA) - Recuso-me a<br />

ter qualquer tipo de convívio social enquanto continuar sem roupa.<br />

PRENTICE (FRIAMENTE, A RANCE) - Observe com que obstinação<br />

ela se agarra à sua formação moral suburbana.<br />

13


RANCE - O senhor já experimentou tratamento de choque?<br />

PRENTICE - Não.<br />

RANCE - Há quanto tempo ela está em tratamento?<br />

PRENTICE - A ordem de internamento ainda não foi assinada.<br />

RANCE - Traga aqui. Eu assino.<br />

PRENTICE VAI À ESCRIVANINHA. RANCE VOLTA-SE PARA<br />

GERALDINE E DIRIGE-SE A ELA COM MANEIRAS BRUSCAS.<br />

RANCE - Por que razão tirou suas roupas? Não lhe ocorreu que o seu<br />

psiquiatra poderia ficar embaraçado com o seu comportamento?<br />

GERALDINE - Eu não sou cliente. Sou da Agência de Empregos Sorriso<br />

Amigo.<br />

RANCE ( POR SOBRE O OMBRO, A PRENTICE ) - Quando foram as<br />

primeiras manifestações alucinatórias ?<br />

PRENTICE ( VOLTANDO COM UM DOCUMENTO ) - Há já algum<br />

tempo que venho tendo consciência delas, doutor.<br />

RANCE ( À GERALDINE ) - E você acha que algum homem de negócio<br />

admitiria uma datilógrafa pelada em seu escritório ?<br />

GERALDINE ( SORRINDO, E TENTANDO EXPLICAR, EM TOM<br />

RAZOÁVEL ) - O Doutor Prentice pediu que eu me despisse afim dele<br />

poder determinar minha adequação às tarefas futuras. Nunca foi sugerido<br />

que eu trabalhasse permanentemente sem roupas.<br />

RANCE ( À PRENTICE ) - Ficarei encarregado deste caso. Ele parece ter<br />

uma bizarraria preciosa para a elaboração de teses fascinantes. ( ASSINA<br />

OS DOCUMENTOS ) - Registre a admissão da paciente e ponha a<br />

farmácia de alerta para tudo o que eu possa precisar.<br />

PRENTICE SAI PARA A FARMÁCIA COM O DOCUMENTO.<br />

RANCE ( PARA GERALDINE ) - Há outros casos de doença mental em<br />

sua família ?<br />

GERALDINE ( PURITANA ) - Suas perguntas são irrelevantes. Recusome<br />

a respondê-las.<br />

RANCE - Eu acabo de atestar a sua loucura. Não sabia ?<br />

GERALDINE, COM SUSTO VIOLENTO, AFASTA-SE DE RANCE.<br />

GERALDINE - E que direito tem o senhor de tomar uma decisão tão<br />

arbitrária ?<br />

RANCE - Todo o direito. A senhorita teve um colapso nervoso.<br />

GERALDINE - Eu estou no gozo de mais perfeito juízo.<br />

RANCE - Controle-se. Por que então a senhorita teria sido declarada louca<br />

? Até para uma louca a senhorita me parece particularmente mal educada ?<br />

14


PRENTICE ENTRA DA FARMÁCIA, EMPURRANDO UMA MACA.<br />

NELA HÁ UM COLCHÃO DE BORRACHA, UM TRAVESSEIRO E<br />

UM COBERTOR. NO BRAÇO TRAZ UMA CAMISOLA BRANCA,<br />

DE HOSPITAL. RANCE PEGA-A E ATIRA SOBRE A CORTINA<br />

PARA GERALDINE.<br />

RANCE - Vista isso !<br />

GERALDINE - Obrigada. Que alívio ficar vestida de novo.<br />

RANGE LEVA PRENTICE PARA UM CANTO. GERALDINE<br />

VESTE A CAMISOLA.<br />

RANGE - Quais são os antecedentes deste caso? A paciente tem família?<br />

PRENTICE - Não, senhor. Sua madrasta faleceu recentemente após um<br />

envolvimento muito íntimo com Sir Winston Churchill.<br />

RANCE - E o pai?<br />

PRENTICE - Parece ter sido um sujeito muito desagradável. Engravidou a<br />

mãe no lugar de trabalho dela.<br />

RANGE - Houve alguma razão especial para tal conduta?<br />

PRENTICE - A paciente foi muito retissente a esse respeito.<br />

RANCE - Que estranho. Mas muito revelador. (ABRE AS CORTINAS, A<br />

GERALDINE). Deite-se na maca. (A PRENTICE). Faça o favor de<br />

preparar um sedativo.<br />

PRENTICE VAI À FARMÁCIA. RANCE AJUDA GERALDINE A<br />

DESCER DA CAMA.<br />

GERALDINE - O senhor faça o favor de chamar um taxi. Eu quero ir para<br />

casa. Positivamente não tenho as qualificações necessárias para este<br />

emprego.<br />

RANCE (COLOCANDO-A NA MACA E COBRINDO-A COM O<br />

COBERTOR) Assim a sua recuperação sera cada vez mais lenta.<br />

PRENTICE ENTRA DA FARMÁCIA COM UMA BANDEJA TIPO<br />

RIM, ALGODÃO, E UMA SERINGA HIPODÉRMICA. RANGE<br />

DESCOBRE O BRAÇO DE GERALDINE E ESFREGA COM O<br />

ALGODÃO.<br />

GERALDINE (APELANDO PARA PRENTICE) - Diga a verdade,<br />

doutor! Conte a ele que eu sou datilógrafa e taquígrafa diplomada!<br />

RANCE DÁ-LHE UMA INJEÇÃO. ELA ESTREMECE E CAI EM<br />

PRANTOS.<br />

GERALDINE - Isto é incrível! Os senhores envergonham sua profissão.<br />

Depois do almoço eu vou telefonar para a Associação Médica da Inglaterra.<br />

RANCE - Aceite a realidade sem lágrimas e sem ofender as autoridades.<br />

15


POUSA A SERINGA E VAI LAVAR AS MÃOS. SRA. PRENTICE<br />

ENTRA DO HALL.<br />

SRA. PRENTICE (PREOCUPADA) - Ninguém encontra a sta. Barclay.<br />

RANCE - Ela tomou uma forte dose de sedativos e não pode ser perturbada.<br />

PRENTICE (SORRINDO NERVOSO PARA RANCE) - Minha mulher<br />

está falando de minha secretária, doutor. Ela desapareceu há algum tempo.<br />

GERALDINE - Eu sou Geraldine Barclay. Estou procurando um emprego<br />

de secretária de meio expediente. E fui declarada louca.<br />

RANCE (À SRA. PRENTICE) - Por favor não dê ouvidos a essas<br />

divagações. Não passam de sintomas do estado da paciente. (A<br />

PRENTICE). O nome dela é o mesmo da sua secretária?<br />

PRENTICE - Ela tomou o nome da minha secretária como seu “nom de<br />

folie”. Apesar de moralmente condenável, receio que não se possa fazer<br />

nada a respeito legalmente.<br />

RANCE (ENXUGANDO AS MÃOS) - Parece-me um capricho<br />

mesquinho, porém os <strong>louco</strong>s são famosos por seus hábitos desatinados.<br />

SRA. PRENTICE - Vou falar para a agência de emprego. A sta. Barclay<br />

não pode ter<br />

sumido, assim no ar. (SAI PARA O HALL).<br />

PRENTICE - Minha esposa não está familiarizada com os hábitos <strong>das</strong><br />

mocinhas de hoje,<br />

doutor. Já conheci várias que desapareceram assim, no ar. E algumas que<br />

tinham nisso um<br />

prazer todo especial.<br />

RANCE (VESTINDO CASACO BRANCO) - Na minha experiência as<br />

moças só desaparecem à meia noite ou então após uma refeição pesada.<br />

(ABOTOA O CASACO). as suas relações com sua secretária eram<br />

normais?<br />

PRENTICE - Eram.<br />

RANCE - Bem, sua vida particular é problema seu. Mas nem por isso eu<br />

deixo de ficar chocado. A paciente tinha conhecimento de sua relação com<br />

sua secretária?<br />

PRENTICE - É possível que sim.<br />

RANCE - Percebo. Um claro quadro sistemático começa a se delinear. (<br />

VOLTA À MACA E FICA DE PÉ OLHANDO GERALDINE) .Sob a<br />

influência da droga que lhe ministrei, sta. Barclay, a senhorita está tranquila<br />

e confiante. Vou fazer-lhe algumas perguntas que quero que responda em<br />

estilo claro, sem termos técnicos. ( A PRENTICE). Ela vai interpretar isso<br />

16


como uma sugestão para o uso de expressões grosseiras. (A<br />

GERALDINE). Quem foi o primeiro homem na sua vida?<br />

GERALDINE - Meu pai.<br />

RANCE - Ele a violentou?<br />

GERALDINE - Não.<br />

RANCE (A PRENTICE) - Esse “não”pode querer dizer “sim”. É<br />

psicologia feminina elementar. (A GERALDINE). A sua madrasta tinha<br />

conhecimento de seu amor por seu pai?<br />

GERALDINE - Minha família era inteiramente normal. Eu nunca amei<br />

meu pai.<br />

RANCE (A PRENTICE) - Aposto que foi vítima de uma agressão<br />

incestuosa. Ela associa claramente a violência com o ato sexual. A tentativa<br />

dela, quando despida, de provocar no senhor uma reação erótica pode ter<br />

uma significação mais profunda. (A GERALDINE). Seu pai tinha<br />

convicções religiosas?<br />

GERALDINE - Eu acho que sim.<br />

RANCE (A PRENTICE) - E no entanto ela ainda diz que vivia numa<br />

família normal. A gravidade de seu estado pode ser avaliado por uma<br />

declaração dessas. ( A GERALDINE). A religião de seu pai aprova o<br />

estupro? (A PRENTICE). Há seitas que fecham os olhos ao que quer que<br />

seja, desde a coisa não ultrapasse os limites do círculo familiar. (A<br />

GERALDINE). Houve alguma cerimônia religiosa antes da senhorita ser<br />

atacada?<br />

GERALDINE - Não posso responder suas perguntas, doutor. Elas me<br />

parecem gratuitas e repugnantes.<br />

RANCE - O que me interessa são os estupros, e não a estética dos<br />

interrogatórios! Faça o favor de responder! A senhorita foi violentada por<br />

seu pai?<br />

GERALDINE (COM UM GRITO DE MORRER) - Não, não, não!<br />

RANCE EMPERTIGA-SE E ENCARA PRENTICE.<br />

RANCE - A veemência dessa negativa é prova de culpa. É um caso<br />

ontológico! um homem corrupto, uma jovem sedenta de experiências. A<br />

beleza, a confusão e a premência de sua paixão a impeli-los. Atiram-se a um<br />

caso amoroso insensato. Ele tem dificuldade em conciliar seu segredo<br />

culposo com suas convicções espirituais. É uma tortura mental. Cessa a<br />

atividade sexual. Ela, que vivia do amor dele, entra em angústia quando o<br />

perde, e busca o conselho de seu sacerdote. A Igreja, fiel a suas antigas<br />

tradições, opina pela castidade. Resultado: a loucura.<br />

RANCE COLOCA O ALGODÃO E A SERINGA NO RIM.<br />

17


PRENTICE - Uma teoria fascinante, doutor, e muito engenhosamente<br />

construída. Mas será que coincide com os fatos conhecidos?<br />

RANCE (PEGANDO O RIM) - Isso não tem a menor importância.<br />

Civilizações inteiras têm sido funda<strong>das</strong> e manti<strong>das</strong> segundo teorias que se<br />

recusam a levar os fatos em consideração. Para mim, essa criança foi<br />

violentada pelo próprio pai. Basearei to<strong>das</strong> as minhas ações futuras nesse<br />

pressuposto.<br />

SAI PARA A FARMÁCIA, LEVANDO CONSIGO O RIM,<br />

ALGODÃO E SERINGA.<br />

GERALDINE (PAUSA) - Eu estou louca, doutor?<br />

PRENTICE - Não.<br />

GERALDINE - O senhor está <strong>louco</strong>?<br />

PRENTICE - Não.<br />

GERALDINE - Isto é parte de alguma foto-novela?<br />

PRENTICE - Há uma explicação perfeitamente racional para tudo o que<br />

está acontecendo. Fique calma. Tudo vai dar certo.<br />

RANCE (VOLTANDO) - Fica claro para o mais primário dos amadores,<br />

Dr. Prentice, que o senhor se parece com o pai da paciente. É por isso que<br />

ela se despiu. Quando cheguei ela estava a reviver a experiência inicial com<br />

o genitor. Desse modo fica perfeitamente esclarecida a irritante questão do<br />

motivo. Ela tinha conhecimento do arranjo existente entre o senhor e a sua<br />

secretária. O senhor representa seu pai. A identificação dela com a sta..<br />

Barclay completa o quadro. (ELE SOLTA O FREIO DA MACA)<br />

PRENTICE - Talvez haja uma explicação mais simples para as aparentes<br />

complexidades do caso, doutor.<br />

RANCE - As explicações simples são para os pobres de espírito. Umas e<br />

outros me irritam. (EMPURRA A MACA NA DIREÇÃO DA<br />

ENFERMARIA). Abra a porta, doutor. Vou supervisionar o corte do<br />

cabelo da paciente.<br />

PRENTICE ABRE A PORTA DA ENFERMARIA, RANCE<br />

EMPURRA PARA A MESMA A MACA DE GERALDINE.<br />

PRENTICE VAI ATÉ A ESCRIVANINHA, SERVE-SE DE WHISKY<br />

E ENGOLE RÁPIDO. SEU OLHAR CAI NA CESTA DE PAPÉIS.<br />

SACODE-A,<br />

ENCONTRA AS ROUPAS DE BAIXO, SAPATOS E MEIAS E<br />

GERALDINE E ELE OS APANHA. SRA. PRENTICE ENTRA NO<br />

HALL. PRENTICE DÁ AS COSTAS E ELA COMEÇA A SE<br />

AFASTAR, CURVANDO NA TENTATIVA DE ESCONDER AS<br />

ROUPAS.<br />

18


SRA. PRENTICE (ALARMADA COM SUA CONDUTA) O que é que<br />

houve? (APROXIMA -SE) Está sentido alguma dor?<br />

PRENTICE (DE COSTAS PARA ELA, ESTRANGULADO) Estou. Vá<br />

buscar um copo d’água.<br />

SRA. PRENTICE CORRE PARA A FARMÁCIA. PRENTICE OLHA<br />

DE VOLTA EM DESESPERO. VÊ UM VASO COMPRIDO COM<br />

ROSAS. TIRA AS ROSAS E ENFIA AS ROUPAS DEBAIXO E UM<br />

SAPATO NO VASO. O OUTRO SAPATO NÃO ENTRA. PAUSA,<br />

PERPLEXO. ESTÁ A PONTO DE RECOLOCAR AS ROSAS NO<br />

VASO QUANDO SRA. PRENTICE O ENCARA. ELE ESTÁ<br />

SEGURANDO AS ROSAS. SORRI FRACAMENTE E OFERECE AS<br />

ROSAS A ELA COM REVERÊNCIA. ELA FICA SURPREENDIDA E<br />

ZANGADA.<br />

SRA. PRENTICE - Ponha-as de volta no lugar imediatamente! (O<br />

SAPATO ESCORREGA E PRENTICE, NUM ESFORÇO PARA NÃO<br />

DEIXÁ-LO CAIR, DOBRA-SE EM DOIS). Quer que eu chame um<br />

médico?<br />

PRENTICE - Não. Eu estou bem.<br />

SRA. PRENTICE - Toma aqui, bebe logo.<br />

PRENTICE (RECUANDO, AINDA SEGURANDO ROSAS E<br />

SAPATO). Você não podia mudar de copo? A forma desse aí é<br />

inteiramente desaconselhável.<br />

SRA. PRENTICE - Forma desaconselhável?<br />

PRENTICE - É.<br />

ELA O OLHA FIRMEMENTE, DEPOIS VAI PARA A FARMÁCIA.<br />

PRENTICE TENTA REPOR AS ROSAS NO VASO. MAS ELAS NÃO<br />

ENTRAM. ELE PEGA UMA TESOURA NA ESCRIVANINHA E<br />

CORTA OS CABOS A UNS 3CM. DA FLOR. PÕE AS ROSAS NO<br />

VASO EMBRULHA OS CABOS EM SEU LENÇO. ENFIA NO<br />

BOLSO. PROCURA UM LUGAR PARA ESCONDER O SAPATO.<br />

FICA DE GATINHAS E EMPURRA O SAPATO PARA O ESPAÇO<br />

ATRÁS DOS LIVROS NA PRATELEIRA DA ESTANTE. SRA.<br />

PRENTICE TRAZENDO OUTRO COPO. ELA PARA E FICA<br />

OLHANDO ATÔNITA.<br />

SRA. PRENTICE - E agora o que é que você está fazendo?<br />

PRENTICE (LEVANTANDO AS MÃOS) - Rezando.<br />

SRA. PRENTICE - Essa infantilidade não combina de todo com as suas<br />

altíssimas qualificações acadêmicas. (POUSA O COPO. SACODE A<br />

19


CABEÇA). O jovem que eu desejo que você contrate para seu secretário já<br />

chegou.<br />

PRENTICE (BEBENDO A ÁGUA) - Talvez ele pudesse voltar mais<br />

tarde. Eu ainda estou meio esquisito.<br />

SRA. PRENTICE - Vou ver. Trata-se de um jovem extremamente<br />

impaciente.<br />

PRENTICE - É por isso que ele se dedicou ao estupro?<br />

SRA. PRENTICE - Exatamente. Não pode esperar por nada.<br />

E SAI CORRENDO PARA O HALL. PRENTICE ENXUGA A<br />

TESTA.<br />

PRENTICE - Vinte anos lutando contra ela e a queda dos cabelos! Acho<br />

que já me enchi <strong>das</strong> duas.<br />

RANCE (ENTRANDO DA ENFERMARIA) - O senhor não terá<br />

dificuldade em reconhecer sua paciente. Cortei seus cabelos rente ao crânio.<br />

PRENTICE (CHOCADO) - Terá sido sensato, doutor? Esse gosto está de<br />

acordo com a atitude esclarecida de hoje em dia com relação aos doente<br />

mentais?<br />

RANCE - Acordo perfeito. Já publiquei uma monografia a respeito.<br />

Escrevi-a ainda na Universidade. A conselho de meu orientador. Tendo<br />

fracassado em sua tentativa pessoal de atingir a loucura, ele passou a<br />

dedicar-se a ensina-la aos outros.<br />

PRENTICE - E o senhor foi o primeiro da classe?<br />

RANCE - Havia outros ainda mais bem dotados.<br />

PRENTICE - E onde se encontram agora?<br />

RANCE - Em manicômios.<br />

PRENTICE - Como diretores?<br />

RANCE - Em grande parte.<br />

SRA. PRENTICE (ENTRANDO, DO HALL, A PRENTICE) Ele insiste<br />

na pontualidade. Deu cinco minutos.<br />

PRENTICE (A RANCE) - Um candidato a emprego, doutor. Não adiante<br />

querermos nos iludir que o socialismo não tem tido repercusão.(A SRA.<br />

PRENTICE) - Nada da secretária?<br />

SRA. PRENTICE - Nada. Já falei com a Agência de Empregos. Seus<br />

clientes têm ordens severas de telefonar imediatamente após cada entrevista.<br />

A sta. Barclay não telefonou.<br />

RANCE - É preciso organizar uma busca. (A PRENTICE). O que há por<br />

aqui em matéria de cães?<br />

PRENTICE - Um pequinês e um poodle miniatura.<br />

20


RANCE - Pois que sejam soltos! Geraldine Barclay precisa ser encontrada e<br />

as autoridades informa<strong>das</strong>.<br />

SRA. PRENTICE - Vou falar com o chefe da guarda. Ele controla o portão<br />

e há de saber se ela deixou a clínica. (VIRA-SE PARA SAIR).<br />

PRENTICE - Não. não faça isso. A sta. Barclay está inteiramente a salvo.<br />

Está lá em baixo. Acabo de me lembrar.<br />

RANCE (PAUSA. SURPRESO) - Por que ocultou o fato por tanto tempo?<br />

PRENTICE - Eu tinha esquecido.<br />

RANCE - O senhor já teve esses lapsos de memória outras vezes?<br />

PRENTICE - Não que eu me lembre.<br />

RANCE - A sua memória o engana até mesmo a respeito de sua própria<br />

insuficiência?<br />

PRENTICE - Eu posso ter tido uma curta amnésia. Não me lembro de ter<br />

tido amnésia em qualquer outra ocasião.<br />

RANCE - O senhor pode ter esquecido. Acabou de confessar que sua<br />

memória não merece confiança.<br />

PRENTICE - Só posso afirmar o que sei, doutor. Ninguém pode esperar<br />

que eu me lembre de coisas que esqueci.<br />

SRA. PRENTICE - E o que é que sua secretária está fazendo lá em baixo?<br />

PRENTICE - Bruxinhas de pano para piorar a imagem dos bonecos em<br />

áreas de atrito por preconceito de cor.<br />

RANCE E SRA. PRENTICE TROCAM OLHARES ASSUSTADOS.<br />

RANCE - E o senhor tem coragem de nos dizer, Dr. Prentice, que havia<br />

esquecido que sua secretária estava fabricando esses monstrinhos?<br />

PRENTICE - Tenho.<br />

RANCE - É difícil de acreditar. Uma vez vista, uma bruxa dessas<br />

dificilmente é esquecida. Qual é o objetivo da fabricação desses pesadelos?<br />

PRENTICE - Eu esperava que promovessem maior harmonia racial.<br />

RANCE - Esses monstros infernais precisam ser liquidados. Eu lhe ordeno<br />

que os destrua antes que seus flúidos maléficos comecem a surtir efeito.<br />

PRENTICE (CANSADO) - Eu direi à sta. Barclay para executar suas<br />

ordens doutor.<br />

SAI PELA PORTA DA ENFERMARIA. RANCE VOLTA-SE PARA A<br />

SRA. PRENTICE E ENXUGA A TESTA.<br />

RANCE - Esse homem é um segundo Frankenstein.<br />

SRA. PRENTICE VAI ATÉ A ESCRIVANINHA E SE SERVE DE<br />

MAIS WHISKY.<br />

SRA. PRENTICE - Meu marido é uma pessoa estranha, doutor. Será que é<br />

génio, ou apenas um idiota nervoso?<br />

21


RANCE - Eu gostaria de conhece-lo um pouco melhor antes de arriscar<br />

uma resposta. Ele tem tido outras idéias brilhantes além dessa <strong>das</strong> bruxas?<br />

SRA. PRENTICE (BEBENDO) - Ele escreve tonela<strong>das</strong> de cartas aos<br />

jornais.<br />

PEGA O SEU COPO E VAI ATÉ A ESTANTE. PEGA, NA<br />

PRATELEIRA DE BAIXO, UM ÁLBUM DE RECORTES<br />

ENCADERNADO EM COURO. ABRE-O E MOSTRA) Aqui estão,<br />

desde a primeira carta, escrita aos doze anos, queixando-se <strong>das</strong> informações<br />

erra<strong>das</strong> que lhe foram forneci<strong>das</strong> por uma criança alemã enquanto<br />

brincavam de “mamãe e papai”- o que o levou a uma série de especulações a<br />

respeito da natureza e eficácia da propaganda nazista...-RANCE OLHA<br />

ATENTAMENTE O ÁLBUM. A SRA PRENTICE VIRA AS<br />

PÁGINAS. - Até a mais recente, publicada há um mês, na qual ele chama<br />

os lavatórios para cavalheiros de “último reduto do privilégio masculino”...<br />

RANCE (DEVOLVENDO O ÁLBUM, DEPOIS DE LER) - O<br />

comportamento de seu marido me provoca a mais profunda inquietação. A<br />

senhora está pessoalmente convencida de que esses métodos podem resultar<br />

na diminuição <strong>das</strong> tensões entre <strong>louco</strong>s e não-<strong>louco</strong>s?<br />

SRA. PRENTICE - O objetivo da clínica do meu marido não é o de curar,<br />

e sim o de liberar e explorar a loucura.<br />

RANCE - No que parece ser extremamente bem sucedida. (ENCARA A<br />

FRANCAMENTE). Eu nunca vi nada que se parecesse com o métodos<br />

usados nesta casa. (TIRA UM PEDAÇO DE PAPEL DO BOLSO E<br />

ENTREGA A ELA). Leia isso.<br />

SRA. PRENTICE - (LENDO) - “Fique com a cabeça abaixada e não faça<br />

o menor ruído”. (DEVOLVENDO). - O que quer dizer isso?<br />

RANCE - Seu marido está usando métodos perigosamente anticonvencionais<br />

no tratamento dos <strong>louco</strong>s. (VAI ATÉ SUA PASTA E<br />

GUARDA O PAPEL)<br />

SRA. PRENTICE - Não sei se devia dizer isto, doutor - Minha lealdade de<br />

esposa ficou em jogo, mas ainda hoje pela manhã meu marido comunicou<br />

sua intenção de usar Somerset Maugham para curar uma perturbação da<br />

bexiga.<br />

RANCE (SOMBRIO) - Como psiquiatra, seu marido me parece não só<br />

ineficiente como também indesejável.<br />

SRA. PRENTICE LEVA O ÁLBUM DE RECORTES DE VOLTA<br />

PARA A ESTANTE E TENTA GUARDA-LO. NÃO CONSEGUE.<br />

INVESTIGA. DESCOBRE O SAPATO DE GERALDINE.<br />

22


SRA. PRENTICE (OLHANDO COM ESPANTO) - Que coisa esquisita<br />

para se encontrar numa instante!<br />

RANCE - É seu?<br />

SRA. PRENTICE - Não.<br />

RANCE - Deixe-me ver.<br />

ELA LHE ENTREGA O SAPATO E ELE EXAMINA? SEGURANDO-<br />

O<br />

RANCE (LEVANTANDO OS OLHOS APÓS UMA PAUSA) - Tenho de<br />

lhe pedir que seja muito franca. A algum momento o Dr. Prentice lhe deu<br />

causas para que duvi<strong>das</strong>se de sua sanidade mental?<br />

SRA. PRENTICE - Ele é um membro respeitado de sua profissão. Seu<br />

trabalho em todos os campos tem sido altamente elogiado por inúmeros<br />

colegas.<br />

RANCE - O pensamento radical é sempre fácil para o lunático.<br />

SRA. PRENTICE (PAUSA) - O senhor tem toda a razão. (ENXUGA O<br />

NARIZ COM UM LENCINHO). Há muito tempo que eu sei que as coisas<br />

não andam bem. Mas tentei me convencer de que meus temores eram<br />

infundados. Sempre soube que estava querendo enganar a mim mesma.<br />

RANCE LEVA-A PARA UMA CADEIRA. ELA SE SENTA,<br />

ARRASADA PELO CHOQUE.<br />

RANCE (BAIXO) - Como nasceram suas primeiras suspeitas?<br />

SRA. PRENTICE - Acho que foi com sua atitude pouco cortês para com<br />

minha mãe. Ele costumava telefonar para ela sugerindo métodos dolorosos<br />

de suicídio. Afinal, desgastada por aquela perseguição, ela acabou aceitando<br />

os conselhos dele.<br />

RANCE - E mais recentemente, digamos... a partir desta manhã, o estado<br />

dele parece ter-se agravado?<br />

SRA. PRENTICE - Ah, sem dúvida, doutor. Ele não mostrou a menor<br />

compreensão quando eu lhe contei que havia sido atacada por um boy do<br />

Hotel da Estação.<br />

RANCE - De que natureza foi o ataque?<br />

SRA. PRENTICE - O jovem queria me violar.<br />

RANCE - E foi bem sucedido?<br />

SRA. PRENTICE - Não.<br />

RANCE (SACUDINDO A CABEÇA)- O serviço nos hotéis está cada vez<br />

pior.<br />

SRA. PRENTICE - E pouco depois da minha volta meu marido começou a<br />

ter umas idéias esquisitíssimas, que teria tido o maior prazer em satisfazer,<br />

se não tivessem ultrapassado de muito os limites do bom gosto.<br />

23


RANCE - Exemplifique.<br />

SRA. PRENTICE - Começou a demonstrar um desejo incontrolável por<br />

peças de vestiário feminino.<br />

RANCE (TOMANDO O SAPATO DE GERALDINE) Isto confirma a<br />

minha história.<br />

SRA. PRENTICE - Eu me recusei a lhe emprestar minhas roupas, e saí à<br />

procura da sta. Barclay. Um pouco mais tarde, na minha presença, meu<br />

marido numa espécie de ataque pediu para buscar água. Quando voltei, ele<br />

me ofereceu um buque de flores.<br />

RANCE - Na certa para congratular-se pela senhora ter voltado sã e salva.<br />

SRA. PRENTICE - Mas eu só tinha ido até a farmácia. E ele havia tirado<br />

as flores daquele vaso. (PAUSA). Eu fiquei furiosa, e bastante amedrontada.<br />

Nessa altura um espasmo de agonia cruzou seu rosto normalmente tranquilo.<br />

Eu lhe ofereci a água, que ele recusou de forma violenta, alegando que a<br />

forma do copo era desaconselhável.<br />

RANCE - Que frase reveladora!<br />

SRA. PRENTICE - Eu fui buscar outro. Quando voltei ele estava de<br />

joelhos, rezando.<br />

RANCE - Que coisa chocante! Sua anormalidade o levou a buscar consolo<br />

na religião. Essa é sempre a última trincheira do homem no limiar da<br />

catástrofe. (DÁ UNS TAPINHAS NO OMBRO DA SRA. PRENTICE).<br />

Não há dúvida de que tudo o que me contou tem a maior significação. E<br />

precisamos também levar em conta os lapsos de memória confessados, e a<br />

tentativa de criação de formas estranhas de vida. ( PÕE O SAPATO EM<br />

SUA PASTA). Nem uma palavra sobre nossas suspeitas. As fantasmagorias<br />

crescem como mato no solo doentio de uma mente insana.<br />

SRA. PRENTICE ( ENXUGANDO OS OLHOS COM LENÇO) - Ah,<br />

doutor, nem pode imaginar que alívio é falar com uma pessoa assim como<br />

senhor.<br />

RANCE - Por que não o fez antes?<br />

SRA. PRENTICE - Não há mulher que goste de encarar o fato do homem a<br />

quem ama ser <strong>louco</strong>. Faz ela parecer tamanha idiota.<br />

GUARDA O LENÇO, SERVE UM WHISKY, PÕE GELO.<br />

PRENTICE ENTRA DA ENFERMARIA.<br />

RANCE (VOLTANDO-SE PARA ELE) - Cumpriu minhas<br />

determinações?<br />

PRENTICE - Cumpri.<br />

24


RANCE - Vocês, cientistas do pecado, ainda vão destruir o mundo com<br />

seus segredos nefandos. (PEGA NA PASTA O SAPATO DE<br />

GERALDINE) - Isto pertenceu à sua secretária?<br />

PRENTICE - Não. (PAUSA). É meu.<br />

RANCE E A SRA. PRENTICE TROCAM OLHARES. RANCE<br />

LEVANTA UMA SOBRANCELHA.<br />

RANCE (COM PESADA IRONIA) - E o senhor tem o hábito de usar<br />

calçado feminino?<br />

PRENTICE (RÁPIDO, DESESPERADO) - Minha vida particular não é<br />

pública. A sociedade não deve ser tão precipitada em seus julgamentos.<br />

RANCE (PONDO O SAPATO DE LADO) - Onde está essa sua<br />

secretária? Eu tenho algumas perguntas a fazer a ela.<br />

PRENTICE - Não posso permitir que a perturbe. Tem muito trabalho.<br />

RANCE DÁ-LHE UM SORRISO GÉLIDO.<br />

RANCE - Acho que não está compreendendo bem a situação, Prentice. Os<br />

poderes a mim concedidos pela Superintendência me dão o direito de<br />

entrevistar qualquer membro da sua equipe, se necessário. Onde está<br />

Geraldine Barclay?<br />

PRENTICE - No jardim.<br />

RANCE - Que pedir que ela venha aqui?<br />

PRENTICE - Ela está preparando a pira funerária para as bruxinhas. Não<br />

seria aconselhável perturba-la.<br />

RANCE - Está bem. (ENTRE DENTES) - Vou procura-la eu mesmo. Mas<br />

pode ficar certo de que sua conduta não será esquecida no meu relatório.<br />

SAI PARA O JARDIM, PRENTICE VIRA-SE PARA A MULHER<br />

COM FÚRIA GÉLIDA.<br />

PRENTICE - O que foi que você disse a ele?<br />

SRA. PRENTICE - A verdade.<br />

PRENTICE (SERVINDO-SE DE WHISKY) - Você andou ou não andou<br />

por aí espalhando que eu sou um travesti?<br />

SRA. PRENTICE - Havia um sapato de mulher escondido na sua estante.<br />

O que é que ele estava fazendo lá?<br />

PRENTICE - E por que é que você estava xereteando os meus livros?<br />

SRA. PRENTICE - Estava procurando o álbum de recortes. Para mostrar<br />

ao Dr. Rance.<br />

PRENTICE - Você não tinha direito de mostrá-lo.<br />

SRA. PRENTICE - Você se envergonha de saberem que você escreve<br />

cartas a homens desconhecidos?<br />

25


PRENTICE - Não há nada de suspeito nas minhas relações com vários<br />

redatores-chefes.<br />

SRA. PRENTICE (SERVINDO-SE DE MAIS WHISKY) - O Dr. Rance<br />

e eu estamos procurando ajuda-lo. Para nós, seu estado não é satisfatório.<br />

PRENTICE - Nem para mim. É insustentável. E a culpa é sua. Eu deveria<br />

ter te abandonado à ignomínia há muitos anos.<br />

SRA. PRENTICE AFASTA A GARRAFA VAZIA DE WHISKY E<br />

VIRA-SE PARA PRENTICE COM RESSENTIMENTO.<br />

SRA. PRENTICE - E de quem é a culpa do fracasso do nosso casamento?<br />

Você é um egoísta e sem consideração. Não abuse da minha paciência.<br />

(TIQUE DE CABEÇA). Eu podia dormir com mais alguém.<br />

PRENTICE - Com quem?<br />

SRA. PRENTICE - Um estudante indiano.<br />

PRENTICE - Você não conhece nenhum.<br />

SRA. PRENTICE - Nova Delhi está “assim”deles.<br />

PRENTICE (ATÔNITO, APAVORADO) - Você não pode começar a<br />

arranjar amantes na Ásia. As passagens aéreas estão extorsivas.<br />

SRA. PRENTICE PÕE GELO NO SEU COPO E IGNORA<br />

PRENTICE, SEMPRE DE NARIZ PARA O ALTO. PRENTICE VAI<br />

ATÉ BEM JUNTO A ELA E GRITA-LHE AO OUVIDO - O seu<br />

comportamento irresponsável me causa angústia indizíveis. Eu não esqueci<br />

aquele homem que não parava de se exibir para você, no ano passado.<br />

SRA. PRENTICE (SEM OLHAR PARA ELE) - Eu não vi coisa<br />

nenhuma.<br />

PRENTICE - E ficou tão desapontada que estragou nossas férias.<br />

SRA. PRENTICE - Você não entende a psicologia dos problemas que eu<br />

tenho de enfrentar. (BEBE)<br />

PRENTICE (FAZENDO-A VOLTAR-SE, FURIOSO) - Se você tomar<br />

muito cuidado ainda vai acordar aos pedaços numa mala esquecida num<br />

depósito de bagagens.<br />

SRA. PRENTICE (COM RISO AGUDO) - Essas ameaças vela<strong>das</strong><br />

confirmam as dúvi<strong>das</strong> que eu já tinha a respeito da sua sanidade.<br />

ELA BEBE WHISKY E SE AFASTA DE PRENTICE, QUE AMARRA<br />

A CARA PARA ELA. NICK ENTRA, VINDO DO HALL. CARREGA<br />

UMA CAIXA DE PAPELÃO ONDE ESTÃO IMPRESSAS AS<br />

PALAVRAS “HOTEL DA ESTAÇÃO”.<br />

NICK (À SRA. PRENTICE) - Se a senhora me der o dinheiro eu lhe<br />

entrego as fotografias, madame. Mas só entrego os negativos com o<br />

emprego garantido.<br />

26


PRENTICE, INTRIGADO, VOLTANDO-SE PARA A MULHER.<br />

PRENTICE - Do que é que ele está falando?<br />

SRA. PRENTICE - Ele tem consigo uma série de estudos fotográficos da<br />

minha pessoa. tirados ontem à noite sem o meu conhecimento.<br />

PRENTICE (DÁ-LHE AS COSTAS, CANSADO, QUASE EM<br />

LÁGRIMAS) - Nunca vi mulher mais desfrutável! Vou ter de virar<br />

pederasta para livra-la dessa encrenca. (PASSA A MÃO NA TESTA).<br />

NICK ENTREGA A CAIXA À SRA. PRENTICE.<br />

SRA. PRENTICE (ENCANTADA) - Meu vestido e minha peruca!<br />

PRENTICE (APERTANDO OS OLHOS E SOLTANDO BREVE<br />

EXCLAMAÇÃO) - Um vestido?Esse vai ficar comigo. (TIRA-LHE A<br />

CAIXA).<br />

SRA. PRENTICE (COSPE AS PALAVRAS NO ROSTO ATÔNITO<br />

DO MARIDO) - Vou dar parte ao Dr. Rance de seu roubo de um dos meus<br />

vestidos.<br />

PRENTICE - Não ouse levantar a voz. Pegue o pão, a laranja, e vá para o<br />

seu quarto.<br />

SRA. PRENTICE SACODE A CABEÇA, PEGA GARRAFA CHEIA<br />

DE WHISKY, SAI TRIUNFANTE PARA O HALL.<br />

NICK - Peço desculpas se o meu comportamento de ontem à noite causou<br />

alguma preocupação à sua esposa, mas acontece que eu tenho um desejo<br />

incontrolável de dormir com to<strong>das</strong> as mulheres que encontro.<br />

PRENTICE - Isso é um hábito repugnante e, na minha opinião, péssimo<br />

para a saúde.<br />

NICK - Eu sei, doutor. Minha saúde não é mais a mesma depois que eu<br />

deixei de colecionar selos.<br />

PRENTICE PÕE A CAIXA SOBRE A MESA E SE SERVE DE<br />

WHISKY.<br />

PRENTICE - Esta clínica tem uma política para questões morais da qual<br />

nem eu fico isento. Enquanto trabalhar aqui terei de pedir que não se<br />

interesse pelos órgãos sexuais de ninguém, a não ser os seus próprios.<br />

NICK - Mas assim a gente não se diverte nada.<br />

PRENTICE - É exatamente esse o nosso objetivo.<br />

RANCE (ENTRANDO DO JARDIM) - Não encontrei nenhum vestígio<br />

da sua secretária. E devo dizer, Dr. Prentice, que estou chegando aos limites<br />

da minha paciência.<br />

PRENTICE - Pode ser que ela esteja na farmácia.<br />

RANCE - A não ser que eu descubra o paradeiro dessa moça em poucos<br />

minutos, o senhor estará em graves dificuldades.<br />

27


RANCE ENTRA NA FARMÁCIA. SRA. PRENTICE ENTRA DO<br />

HALL.<br />

SRA. PRENTICE - Há um polícia lá fora. Deseja falar com alguém da<br />

casa.<br />

PRENTICE - Peça a ele para vir até aqui.<br />

SRA. PRENTICE VAI PARA O HALL. NICK LEVANTA-SE E FAZ<br />

UM APELO EMOCIONAL A PRENTICE.<br />

NICK - Doutor! Ele veio me prender!<br />

PRENTICE - Sua paranóia é inteiramente gratuita. É muito provável que o<br />

oficial tenha vindo pedir a mão da minha cozinheira.<br />

NICK - O senhor está enganado. Se me pegarem, são cinco anos.<br />

PRENTICE - Por que razão o senhor está ameaçado de prisão? Pode ser<br />

inteiramente franco comigo.<br />

NICK - Bom, como sua esposa já lhe disse, tentei ter conduta indecorosa<br />

com ela ontem à noite. Não consegui.<br />

PRENTICE - Claro que não. Apesar <strong>das</strong> aparências, é mais difícil penetrar<br />

na sra. Prentice do que na sala de leitura do Museu Britânico.<br />

NICK - Sem me deixar abater, tomei o elevador até o terceiro andar do<br />

hotel, onde estava hospedado um grupo de alunas de um colégio interno.<br />

Que vida de solidão e desperdício elas levam!<br />

PRENTICE (FRANZINDO A TESTA) - Não estavam acompanha<strong>das</strong>?<br />

NICK - Uma mestra ocupava um quarto do outro lado do corredor.<br />

PRENTICE - O senhor a molestou?<br />

NICK - Não, e ela nunca há de me perdoar. Foi ela quem denunciou o<br />

incidente à polícia. Por favor, doutor, não me atire nas garras da lei!<br />

RANCE (ENTRANDO DA FARMÁCIA) - Estou lhe avisando, Prentice,<br />

a ser que esteja disposto a cooperar na busca da sta. Barclay eu terei de<br />

pedir que explique seu desaparecimento. Se não puder explicar, a polícia<br />

terá de ser informada. ( SAI PARA A ENFERMARIA)<br />

NICK - O senhor já pensou no meu problema?<br />

PRENTICE - Não. Só consigo pensar no meu. (ENXUGA A TESTA) - Se<br />

as coisas continuarem assim nós vamos ser companheiros de cela. (DÁ<br />

COM OS OLHOS NA CAIXA. VIRA-SE PARA NICK, IDÉIA<br />

NASCENDO) - Tire a roupa.<br />

NICK - O senhor vai se aproveitar de mim, doutor?<br />

PRENTICE - Claro que não! É isso que costuma acontecer quando um<br />

homem lhe pede para tirar a roupa?<br />

NICK - É. Eles me dão cinco shillings.<br />

28


PRENTICE - Cinco shillings! Mas esse preço não muda há trinta anos!<br />

Para o que é que serve os sindicatos? (PÕE A MÃO NO OMBRO DE<br />

NICK) - Vamos tire a roupa.<br />

NICK LUTA COM UM FECHO ÉCLAIR. O CASACO ABRE DO<br />

OMBRO PARA O QUADRIL. ELE O TIRA, CHUTA OS SAPATOS E<br />

DEIXA CAIR AS CALÇAS. PRENTICE (OBSERVA COM<br />

ADMIRAÇÃO).<br />

PRENTICE - Impressionante. Nem minha última secretária ganhava de<br />

você. E olhe que ela era de circo.<br />

NICK ENTREGA AS ROUPAS A PRENTICE. ESTÁ SÓ DE<br />

CUECAS. ESTÁ A PONTO DE TIRÁ-LAS QUANDO PRENTICE<br />

LEVANTA A MÃO.<br />

A cueca não. Meus estudos médicos já me familiarizaram com o que está<br />

por baixo.<br />

SRA. PRENTICE (ENTRA DO HALL. PÁRA HORRORIZADA) - Em<br />

que monstruosidade você está se metendo agora?<br />

PRENTICE - Estou fazendo um exame médico.<br />

SRA. PRENTICE - Mas você não é médico. Por que razão há de precisar<br />

despir essa criança.<br />

PRENTICE (SORRINDO COM INFINITA PACIÊNCIA) - Um exame<br />

de seu corpo inteiramente vestido seria completamente “anti-científica”, é,<br />

inevitavelmente, superficial. Afim de me certificar de que ele possa vir a ser<br />

útil para mim, tenho de examiná-lo total e epidermicamente.<br />

SRA. PRENTICE - Monstro! Nunca, em toda a minha vida, ouvi desculpa<br />

mais mal arranjada ou mais estúpida. Esse ato de loucura vai custar-lhe seu<br />

registro profissional. (APANHANDO O UNIFORME DE NICK) - Vem<br />

comigo, queridinho. Você não pode ficar com esse homem.<br />

ELA LEVA O UNIFORME PARA O HALL.<br />

NICK - E agora? Se a lei chega, não posso nem sequer dar no pé.<br />

PRENTICE ABRE A CAIXA DE PAPELÃO E TIRA DE DENTRO<br />

UM VESTIDO ESTAMPADO DE LEOPARDO E UMA PERUCA.<br />

PRENTICE - Tive uma ideia. Eu quero que você tome o lugar da minha<br />

secretária. O nome dela é Geraldine Barclay. Se você concordar, todos os<br />

nossos problemas estarão resolvidos. (ENTREGA O VESTIDO E A<br />

PERUCA A NICK) - É particularmente importante convencer o Dr. Rance<br />

que você é mulher. Creio que não terá dificuldade. Trata-se de um homem<br />

idoso. Acho que já faz tempo que ele não confere com o original. (LEVA<br />

NICK A PORTA DA FARMÁCIA)- Logo depois de ser apresentado a ele<br />

você diz que está doente e sai da clínica. Eu espero lá fora com as suas<br />

29


oupas. Terminada a operação você receberá uma soma em dinheiro e uma<br />

passagem para qualquer lugar que escolher. (EMPURRANDO-O PARA A<br />

FARMÁCIA) - Se você tiver dificuldade eu negarei sequer conhece-lo.<br />

Vista-se aí dentro.<br />

FECHA A PORTA DA FARMÁCIA, VAI AO HALL E CHAMA O<br />

SARGENTO COM VOZ AMIGÁVEL.<br />

PRENTICE - Quer entrar um momento, sargento? Desculpe tê-lo feito<br />

esperar.<br />

VAI ATÉ A ESCRIVANINHA E ABRE NOVA GARRAFA DE<br />

WHISKY. NICK ABRE A PORTA DA FARMÁCIA E ESPIA.<br />

NICK - Os sapatos, doutor!<br />

PRENTICE (GIRANDO, ALARMADO) - Sapatos! (POUSA A<br />

GARRAFA) Um momento. (TIRA O SAPATO DE GERALDINE DA<br />

PASTA DE RANCE E ATIRA-O A NICK. VAI ATÉ O VASO E<br />

RAPIDAMENTE LEVANTA AS ROSAS. METE A MÃO NO VASO,<br />

PROCURANDO O OUTRO SAPATO. ENTRA SARGENTO MATON.<br />

NICK SOBE RÁPIDO NA FARMÁCIA. PRENTICE SEGURA AS<br />

ROSAS ATRÁS DAS CESTAS. EM TOM FRIO) - O senhor se<br />

importaria de não entrar em meu consultório sem permissão?<br />

MATCH (UM POUCO SEM GRAÇA) - O senhor me chamou, doutor.<br />

PRENTICE - Eu creio que não. Faça o favor de esperar lá fora.<br />

MATCH SAI DA SALA. PRENTICE SACODE O VASO E O<br />

SAPATO DE GERALDINE SAI. ELE CORRE ATÉ A FARMÁCIA,<br />

ATIRA O SAPATO PAR DENTRO E CORRE DE VOLTA PARA O<br />

VASO. ESTÁ A PONTO DE RECOLOCAR AS ROSAS QUANDO A<br />

SRA. PRENTICE ENTRA DO HALL. ELA VÊ PRENTICE<br />

SEGURANDO AS FLORES E DÁ UM PASSO ATRÁS, DE SUSTO.<br />

PRENTICE OFERECE-LHE AS ROSAS. A FACE DELA FICA COR<br />

CINZA. ELA ESTÁ ZANGADA E UM POUCO ASSUSTADA.<br />

SRA. PRENTICE - Por que é que você fica me dando flores?<br />

PRENTICE - Porque gosto muito de você, minha querida.<br />

SRA. PRENTICE - Suas ações se tornam mais desatina<strong>das</strong> a cada<br />

momento. Por que toda aquela grosseria com o sargento?<br />

PRENTICE - Ele foi entrando assim, sem dizer como vai.<br />

SRA. PRENTICE - Mas você mandou ele entrar. Não vai dizer que<br />

esqueceu?<br />

PRENTICE - Esqueci. (PAUSA) - Minha memória já não é o que era. Pode<br />

dizer a ele que eu o verei agora. (SRA. PRENTICE VAI PARA O HALL.<br />

PRENTICE RECOLOCA AS FLORES, VAI À ESCRIVANINHA,<br />

30


SERVE-SE DE UM WHISKY DUPLO. GERALDINE ENTRA DA<br />

ENFERMARIA. SEU CABELO FOI CORTADO RENTE À CABEÇA.<br />

USA UMA CAMISOLA DE HOSPITAL. PRENTICE FICA<br />

CONSIDERAVELMENTE ALARMADO POR SUA PRESENÇA NA<br />

SALA) - Sta. Barclay! o que é que está fazendo aqui?<br />

GERALDINE - Nada me faria permanecer mais um momento que fosse a<br />

seu serviço, doutor. Vim pedir demissão.<br />

MATCH ENTRA DO HALL. GERALDINE ESTÁ OCULTA PELA<br />

CAMA.<br />

MATCH - Desculpe o mal-entendido, doutor.<br />

PRENTICE (VOLTA-SE ABRUPTO) - Por favor fique lá fora. Eu pensei<br />

que tinha falado claro.<br />

MATCH (PAUSA) - O senhor não deseja me ver?<br />

PRENTICE - Não. (MATCH, UM TANTO PERPLEXO ANTE A<br />

SITUAÇÃO, SAI PARA O HALL. PRENTICE TOMA GERALDINE<br />

PELO BRAÇO) - As suas revelações me arruinariam. Dê-me a<br />

oportunidade de nos tirar desta confusão.<br />

GERALDINE - O senhor precisa esclarecer as coisas, contando a verdade.<br />

PRENTICE (FECHANDO AS CORTINAS DA CAMA) - Esconda-se ali<br />

atrás. Nada de desagradável lhe acontecerá. Dou-lhe minha palavra de<br />

cavalheiro.<br />

GERALDINE - Nós precisamos contar a verdade!<br />

PRENTICE - Isso é uma atitude inteiramente derrotista.<br />

ELE A EMPURRA PARA TRÁS DAS CORTINAS.<br />

GERALDINE (OLHANDO POR CIMA DA CORTINA) - Pelo menos<br />

me dê de volta as minhas roupas. Eu me sinto nua sem elas.<br />

PRENTICE TIRA AS ROSAS DO VASO, RETIRA AS ROUPAS DE<br />

BAIXO E MEIAS DE GERALDINE, E ATIRA-AS PARA ELA. SRA.<br />

PRENTICE E SARGENTO ENTRAM DO HALL. GERALDINE<br />

AFUNDA ATRÁS DA CORTINA. PRENTICE ESTÁ COM AS<br />

ROSAS NA MÃO. SRA. PRENTICE AGARRA O BRAÇO DE<br />

PRENTICE.<br />

SRA. PRENTICE - Ai, se ele me der de novo aquelas rosas eu tenho uma<br />

coisa! (OBSERVA EM SILÊNCIO ENQUANTO PRENTICE REPÕE<br />

ROSAS NO VASO, CONFIANTE. SEM AS ROUPAS POR BAIXO OS<br />

CABOS ESTÃO CURTOS DEMAIS. AS ROSAS AFUNDAM NO<br />

VASO, SRA. PRENTICE GRITA DE SUSTO)<br />

SRA. PRENTICE - Ele cortou os talos! Está mais <strong>louco</strong> do que eu pensava.<br />

PRENTICE PEGA SEU COPO E SE VIRA, PARA O SARGENTO.<br />

31


PRENTICE - Desculpe a história da minha mulher, sargento. Um homem<br />

tentou violentá-la ontem à noite. Ainda não se recuperou.<br />

MATCH - Pelo que compreendi a sra. Prentice lhe apresentou o jovem em<br />

questão?<br />

PRENTICE - Apresentou. Não pretendemos dar queixa.<br />

MATCH - Eu creio que sua esposa está cometendo um engano em não<br />

tornar a relatar sua experiência ante um juiz. Mas não tenho nada com esse<br />

caso. Meu problema são os movimentos do rapaz entre meia noite e sete da<br />

manhã. Nesse período ele está acusado de conduta dolorosa com inúmeras<br />

alunas de um colégio interno.<br />

SRA. PRENTICE (SERVINDO WHISKY) - Que escândalo! Mas que<br />

vergonha!<br />

MATCH - Após os exames de corpo de delito nossa doutora ficou em pé de<br />

guerra. Está louca para encontrar o rapaz cara a cara.<br />

PRENTICE - Bem, sargento, por aqui ele não está. Se aparecer, pode<br />

deixar que eu o enformarei.<br />

SRA. PRENTICE (CHOCADA) - Como ousa dar informações falsas à<br />

polícia? (AO SARGENTO) - Ele estava aqui. Eu estou com as roupas dele<br />

lá fora.<br />

MATCH - A senhora agiu com grande sabedoria ao confiscar as roupas. Se<br />

mais mulheres fizesse o mesmo o número de estupros baixaria de uns 50%.<br />

PRENTICE (NA ESCRIVANINHA) - Ou dobrava.<br />

SRA. PRENTICE - Não leve em conta o que o meu marido diz. Vou<br />

busca-las.<br />

ELA VAI PARA O HALL LEVANDO O COPO. SARGENTO VIRA-<br />

SE PARA PRENTICE.<br />

MATCH - Eu estou também interessado em localizar uma moça chamada<br />

Barclay. O senhor pode me ajudar na investigação?<br />

PRENTICE (UM ESPASMO DE ANGÚSTIA NO ROSTO) E por que<br />

deseja ver a sta. Barclay?<br />

MATCH - É uma questão de importância nacional. A madrasta da sta.<br />

Barclay, que em tudo o mais era um carater sem jaça, faleceu recentemente.<br />

Pouco antes de sua morte seu nome esteve ligado de forma extremamente<br />

desagradável com o de Sir Winston Churchill. A associação da sra. Barclay<br />

com o grande homem ofendeu determinados círculos. No entanto, a<br />

administração regional, composta em grande parte de cidadãos que não<br />

estão para aturar asneiras, resolveu que em vista de sua folha de guerra -<br />

relevaria o lapso moral de Sir Winston. Um grupo de especialistas foi<br />

encarregado de reintegra-lo na vida da comunidade. Mas quando se concluiu<br />

32


a tarefa tornou-se evidente que o grande homem estava incompleto. Quando<br />

os fatos vieram a público os saudosistas criaram a maior gritaria. A<br />

imprensa pegou a história, que em breve havia adquirido proporções<br />

absolutamente gigantesca. E finalmente - com o total apoio dos partidos<br />

Conservador o Uni mista - a administração resolveu processar os herdeiros<br />

da sra. Barclay, para obter a devolução <strong>das</strong> partes do Sir Winston Churchill<br />

que o médico militar provara estar faltando. Os advogados do conselho<br />

conseguiram uma ordem de exumação. Esta manhã o caixão foi aberto na<br />

presença de Lord Prefeito e da Lady Prefeita desta região. Mulheres<br />

desfalecentes eram conti<strong>das</strong> enquanto o funcionário encarregado buscava<br />

por todos os cantos do patrimônio público. Seus esforços não foram<br />

coroados de sucesso. A sra. Barclay não havia levado para o túmulo nada<br />

que não lhe competisse. A polícia foi alertada ao meio-dia de hoje.<br />

PRENTICE (SERVINDO WHISKY) - E o senhor suspeita que a minha<br />

secretária tenha roubado certas partes de Sir Winston Churchill?<br />

SRA. PRENTICE ENTRA COM O UNIFORME DE NICK NAS<br />

MÃOS.<br />

SRA. PRENTICE - Eis a prova de que o rapaz estava nesta sala.<br />

MATCH - Bom, sem roupa ele não pode chegar muito longe.<br />

PRENTICE - O ponto que ele atingiu ontem à noite sem roupa é de causar<br />

inveja.<br />

MATCH (A PRENTICE) - O senhor ainda insiste, doutor, que não tem<br />

ideia do paradeiro do rapaz?<br />

PRENTICE - Ainda.<br />

MATCH - E para onde foi a sta. Barclay?<br />

PRENTICE - Não tenho a menor ideia.<br />

SRA. PRENTICE - Você disse ao Dr. Rance que ela estava queimando as<br />

bruxas.<br />

PRENTICE - É possível. Eu não me lembro.<br />

SRA. PRENTICE (SACUDINDO IMPACIENTEMENTE A CABEÇA)<br />

- O senhor precisa falar com o Dr. Rance, sargento. É possível que ele possa<br />

explicar as esquisitices do comportamento do meu marido.<br />

MATCH - E onde está o doutor?<br />

SRA. PRENTICE - No jardim. Faça o favor de lhe dizer que seus<br />

conhecimentos técnicos são urgentemente exigidos.<br />

MATCH VAI PARA O JARDIM. SRA. PRENTICE DIRIGI-SE AO<br />

MARIDO EM TOM DE SURPREENDENTE TRANQUILIDADE E<br />

COMPREENSÃO.<br />

33


Meu querido, está claro que você já atingiu o estágio em que perdeu a<br />

capacidade para gravar informações recentes, resolver problemas fora da<br />

rotina, e até mesmo para permanecer orientado. Não deixe que isso o<br />

preocupe. Estarei a seu lado durante todo o curso da sua enfermidade. Vou<br />

até tomar notas detalha<strong>das</strong> da evolução de seu colapso. Não se deve perder<br />

nada. Tente lembrar-se por que você destruiu as flores deste vaso. É<br />

possível que seja muito importante para o caso.<br />

ELA LHE DÁ UM SORRISO ENCANTADOR, PEGA O VASO E VAI<br />

PARA O HALL. GERALDINE LEVANTA A CABEÇA ACIMA DA<br />

CORTINA.<br />

GERALDINE - Diga a verdade, doutor. Todos os seus problemas nascem<br />

da sua falta de sinceridade.<br />

PRENTICE - Meus problemas todos nasceram da minha insensata tentativa<br />

de seduzi-la.<br />

GERALDINE (REAÇÃO DE SUSTO) - O senhor não me disse que<br />

estava me seduzindo. Disse que só estava interessado na minha mente.<br />

PRENTICE - Mas é assim que essa coisas são feitas. Parece até que nunca<br />

levou uma cantada na vida.<br />

O SARGENTO APARECE NA PORTA DO JARDIM. GERALDINE<br />

SE ABAIXA ATRÁS DA CORTINA.<br />

MATCH - O senhor tem certeza de que o Dr. Rance está lá fora?<br />

PRENTICE - Tenho.<br />

MATCH - Mas onde?<br />

PRENTICE - No meio dos arbustos. Nós temos uma fonte com um elfo nú.<br />

Sempre há gente escondida espiando.<br />

MATCH - Eu gostaria que o senhor me acompanhasse, doutor.<br />

PRENTICE DÁ DE OMBROS E O SEGUE PARA O JARDIM.<br />

GERALDINE DESCE DA CAMA. ESTÁ DE CALCINHA E<br />

SOUTIEN. CARREGA A CAMISOLA. ELA PEGA O UNIFORME<br />

DE NICK, POUSA A CAMISOLA NUMA CADEIRA, ENTRA NA<br />

FARMÁCIA. RECUA RÁPIDO.<br />

GERALDINE - Uma mulher desconhecida! (CORRE PARA A PORTA<br />

DA ENFERMARIA, ESPIA, RECUA ATERRORIZADA) - O Dr.<br />

Rance!, o que é que eu vou fazer?<br />

ELA CORRE PARA O HALL, VOLTA PARA A CAMA E FECHA AS<br />

CORTINAS. SRA. PRENTICE ENTRA TRAZENDO AS ROSAS<br />

NUM VASO MENOR. NICK ENTRA, VINDO DA FARMÁCIA. USA<br />

UM VESTIDO DE MULHER E UMA PERUCA LOURA. SRA.<br />

PRENTICE DÁ UM SUSPIRO DE SURPRESA E POUSA O VASO.<br />

34


SRA. PRENTICE - Você é Geraldine Barclay?<br />

NICK - Sou. (FALA EM TONS GRAVES, REQUINTADOS).<br />

SRA. PRENTICE - Onde é que você andou?<br />

NICK (PUDOROSO) - Realizando as mil e uma tarefas que ocupam toda<br />

secretária em seu horário de trabalho.<br />

SRA. PRENTICE - Mas lixar as unhas não leva a manhã inteira, leva?<br />

NICK - Eu tive de ir me deitar um pouco. Estava indisposta.<br />

SRA. PRENTICE - Você está grávida?<br />

NICK (SACUDINDO PARA TRÁS UM CACHO LOURO) - Não posso<br />

discutir assuntos particulares de meu patrão com a senhora.<br />

SRA. PRENTICE - Qual foi o seu último emprego?<br />

NICK - Recepcionista numa excelente casa noturna.<br />

SRA. PRENTICE (APERTANDO OS LÁBIOS EM<br />

DESAPROVAÇÃO) - Fica perfeitamente claro que o trabalho não é de seu<br />

gênero. Eu não a recomendarei para o emprêgo. ( PRENTICE E O<br />

SARGENTO ENTRAM DO JARDIM, AO SARGENTO)- Esta é a<br />

secretária do meu marido, sargento. Ela terá o maior prazer em ajudá-lo em<br />

suas investigações.<br />

MATCH (A NICK) - Sta. Barclay, tenho de lhe pedir que devolva, ou que<br />

faça com que devolvam, as partes de Sir Winston Churchill que<br />

desapareceram.<br />

NICK - E que aspecto tem elas?<br />

MATCH - A senhorita afirma desconhecer a forma e a estrutura dos<br />

objetos que buscamos?<br />

NICK - Só estou garantindo que nunca vi coisa nenhuma.<br />

MATCH - Quer dizer que só os manuseou à noite? Nós tiraremos nossas<br />

próprias conclusões.<br />

NICK - Não sou do tipo de moça que se envolve em coisas desse gênero.<br />

Eu fui bandeirante.<br />

MATCH - A senhorita está escondendo algum objeto roubado na sua<br />

pessoa?<br />

NICK - Não.<br />

MATCH - Sua história só poderá ser comprovada por testemunho médico.<br />

a senhorita terá de ser cuidadosamente examinada.<br />

PRENTICE - Eu sou médico formado.<br />

MATCH - Só mulheres podem examinar suspeitas do sexo feminino.<br />

PRENTICE - E isso não causa descontentamento nas fileiras?<br />

35


MATCH - Há certo ressentimento entre os solteiros. Os casados, já<br />

familiarizados com o terreno, ficam até aliviados de não ter de fazer novos<br />

levantamentos topográficos.<br />

SRA. PRENTICE - Eu examinarei a sta. Barclay. Isso resolve o assunto.<br />

MATCH - Obrigado, madame. Aceito o seu oferecimento. Leve a moça<br />

para a farmácia e submeta-a ao exame.<br />

SRA. PRENTICE LEVA NICK PARA A FARMÁCIA. RANCE<br />

APARECE, DA ENFERMARIA, SEU ROSTO UMA MÁSCARA DE<br />

TERROR.<br />

RANCE - Prentice! A paciente fugiu! Dê o alarme.<br />

MATCH - Há quanto tempo ela fugiu, doutor?<br />

RANCE - A apenas alguns minutos.<br />

MATCH - Tudo o que o senhor achar necessário para a recaptura da sua<br />

paciente será feito, doutor.<br />

RANCE CRUZA, ACIONA A MANIVELA DO ALARME, E CORRE<br />

PARA O HALL - Ela deve ter passado por aqui. O senhor e eu estávamos<br />

no jardim, a sra. Prentice estava no hall. A fuga é impossível. Ela ainda deve<br />

estar nesta sala. (VOLTANDO-SE TRIUNFANTE PARA PRENTICE )<br />

Só há um esconderijo possível. (ELE ABRE A AS CORTINAS DA<br />

CAMA. APARECE GERALDINE, ELA ESTÁ VESTIDA COM O<br />

UNIFORME DE NICK, INCLUSIVE BONÉ E SAPATOS, E BOTOU<br />

OS ÓCULOS DE PRENTICE) MATCH, AVALIANDO O QUADRO<br />

QUE VÊ) - O senhor é do Hotel da Estação?<br />

GERALDINE (COM A VOZ ASSUSTADA) - Sou.<br />

MATCH - Eu quero ter uma conversinha com você, meu rapaz. (TIRA DO<br />

BOLSO SEU BLOCO DE NOTAS)<br />

A SIRENE COMEÇA A SOAR.<br />

CORTINA<br />

ATO II<br />

UM MINUTO MAIS TARDE. A SIRENE PÁRA. PRENTICE ABRE<br />

OUTRA GARRAFA DE WHISKY. GERALDINE DESCE DA CAMA<br />

ALIVIADA.<br />

GERALDINE (AO SARGENTO) - O senhor não imagina o meu alívio em<br />

ir para a prisão.<br />

36


MATCH - Por que?<br />

GERALDINE - Porque aqui estou correndo grave perigo.<br />

MATCH - Perigo?<br />

GERALDINE - O Dr. Prentice. Sua conduta é um escândalo. Leve-me até a<br />

delegacia. Eu quero dar queixa.<br />

MATCH (A PRENTICE ) - `O senhor tem alguma coisa a dizer, doutor?<br />

PRENTICE - Tenho. Tudo o que essa moça diz é sempre mentira.<br />

MATCH (COÇANDO A CABEÇA. PAUSA) - Isto aqui é um rapaz,<br />

doutor, não é uma moça. Se a diferença o deixa perplexo, seria aconselhável<br />

que se aproximasse de um e outra com bastante cuidado. (A GERALDINE)<br />

Vejamos o que tem a dizer.<br />

GERALDINE - Eu vim aqui procurar emprego. Usando não sei que<br />

desculpa, o doutor me fez tirar a roupa. E depois disso comportou-se de<br />

maneira estranhíssima.<br />

MATCH - O que é que ele fez?<br />

GERALDINE - Me disse para deitar naquela cama.<br />

SARGENTO OLHA PRENTICE COM REPREENSÃO. PRENTICE<br />

BEBE WHISKY.<br />

MATCH (PARA GERALDINE, BAIXO) - A algum momento ele tentou<br />

molestá-lo?<br />

PRENTICE (POUSANDO O COPO) - Se o senhor está pensando que<br />

esse rapaz perdeu a virgindade, sargento, vai ficar muito desapontado.<br />

MATCH - Eu só espero que ele tenha muito mais experiência antes de uma<br />

perda como essa, doutor. Que razoes tinha o senhor para manda-lo tirar a<br />

roupa?<br />

PRENTICE - Queria certificar-me de sua obediência cega. Eu dou um<br />

prêmio anual. Algum dia ainda hei de conseguir inclui-lo no esquema do<br />

Troféu de Duque de Edimburgo.<br />

MATCH - Prefiro que a realeza não seja mencionada neste caso, doutor. -<br />

O senhor já tinha se metido em encrencas deste gênero antes?<br />

PRENTICE - Eu não estou metido em nenhuma encrenca.<br />

MATCH- O senhor não compreende que este rapaz vai dar uma queixa<br />

muito séria contra o senhor?<br />

PRENTICE - Compreendo. E é ridículo. Eu sou casado.<br />

MATCH - E desde quando casamento é prova de normalidade?<br />

PRENTICE - Eu sou um homem respeitado na minha profissão. Sua<br />

acusação é absurda.<br />

MATCH- Eu não faço acusações alguma antes de compreender muito bem<br />

o caso em questão.<br />

37


PRENTICE - Esse rapaz tem péssima reputação. A noite de ontem precisa<br />

ser investigada antes da manhã de hoje.<br />

GERALDINE - Eu não tive nada a ver com aquela pouca vergonha no<br />

Hotel da Estação.<br />

MATCH - O senhor nega que na noite de quarta feira atentou contra a<br />

moral com um grupo de alunas de um internato muito respeitável?<br />

GERALDINE - Nego.<br />

MATCH- Nicholas Beckett, devo avisá-lo que qualquer coisa que disser<br />

poderá ser anotada e usada no testemunho contra o senhor.<br />

GERALDINE - Meu nome não é Nicholas Beckett.<br />

MATCH (FRANZINDO A TESTA) - Então por que é que eu haveria de<br />

querer prendê-lo?<br />

GERALDINE - Para proteger a minha integridade.<br />

PRENTICE (NA ESCRIVANINHA, SERVINDO-SE DE WHISKY) - E<br />

você acha que na delegacia ficará a salvo dos atentados contra a moral?<br />

GERALDINE - Claro.<br />

PRENTICE - Gostaria de compartilhar do seu otimismo.<br />

RANCE (ENTRANDO DO HALL) - Todo o esquema de segurança ja está<br />

armado. Ninguém pode deixar a clínica sem permissão por escrito. Prentice,<br />

faça sua secretária redigir ordens para todos os integrantes da sua equipe.<br />

PRENTICE - Eu o farei assim que ela estiver em condições de reassumir<br />

seus deveres rotineiros.<br />

MATCH (A RANCE) - Doutor, será que o senhor poderia nos ajudar a<br />

esclarecer um problema? É um pouco urgente. Ontem à noite esse rapaz<br />

atacou certo número de crianças, esta manhã ele foi, por sua vez, atacado.<br />

RANCE (DÁ DE OMBROS) - Como direi? Trata-se um exemplo perfeito<br />

de que “quem com ferro fere com ferro será ferido”.<br />

MATCH - O rapaz fez um acusação séria ao Dr. Prentice. Afirmou que foi<br />

obrigado a despir-se e a deitar naquela cama.<br />

RANCE (A PRENTICE) - Uma relação completa <strong>das</strong> suas pequenas<br />

escorregadelas iria sem dúvida para a lista de “best-sellers”.<br />

PRENTICE - Todos aqui estão redondamente enganados.<br />

RANCE - Ouça, Prentice, neste momento só posso aconselhar uma coisa,<br />

franqueza total. O senhor se comportou de maneira escusa?<br />

PRENTICE - Não.<br />

MATCH - O doutor disse que estava querendo fazer o rapaz entrar para<br />

uma espécie de clube.<br />

RANCE - Mas que bobagem. Meninos não podem pertencer ao clube.<br />

Nisso é que reside metade do seu encanto.<br />

38


PRENTICE PASSA A MÃO PELA TESTA. SEU ROSTO TEM<br />

EXPRESSÃO DE DESERTAR DA ANGÚSTIA.<br />

PRENTICE - Peço desculpas se minha declaração levou o sargento a uma<br />

pista errada. Meus nervos estão em frangalhos.<br />

RANCE - O senhor deveria consultar um psiquiatra competente.<br />

PRENTICE - Eu sou um psiquiatra competente.<br />

RANCE - Você é um idiota. O que não é exatamente a mesma coisa, muito<br />

embora no seu caso os dois tenham muito em comum. (AO SARGENTO)<br />

O rapaz já era conhecido da polícia?<br />

MATCH - Não em casos deste tipo. É por isso que temos de ter cuidado.<br />

Como diz muito bom o doutor, a reputação dele é péssima. Ele pode ter lá<br />

um ressentimento qualquer contra o Dr. Prentice.<br />

RANCE (A PRENTICE) - Talvez a acusação nasça do desapontamento. Se<br />

o senhor tivesse concretizado o ato talvez não estivesse sendo acusado.<br />

PRENTICE - Eu não poderia concretiza-lo. Sou heterossexual.<br />

RANCE - Quer deixar de falar difícil? Tudo fica muito mais confuso. (AO<br />

SARGENTO). Como é que o senhor pretende esclarecer isso?<br />

MATCH - Uma pessoa acima de qualquer suspeita tem de examinar o<br />

rapaz.<br />

GERALDINE - Ninguém põe a mão em mim para me examinar.<br />

MATCH - Sua opinião não interessa. Você está preso.<br />

GERALDINE - Eu não sou Nicholas Beckett. E exigo que me levem para a<br />

cadeia.<br />

MATCH - Se você não é Nicholas Beckett não pode ir para a cadeia porque<br />

não está preso.<br />

GERALDINE (PAUSA. MORDENDO OS LÁBIOS) - Eu sou Nicholas<br />

Beckett.<br />

MATCH - Nessa caso está preso e vai ser examinado.<br />

RANCE - Por mim. A mente da vítima desse tipo de ataque tem de ser<br />

examinada junto com o corpo.<br />

GERALDINE - Eu não fui vítima de nenhum ataque.<br />

RANCE - Então por que fez aquelas acusações monstruosas?<br />

GERALDINE - Eu não acusei ninguém. Quem acusou foi o sargento.<br />

RANCE (AO SARGENTO) - O Dr. Prentice o atacou? (A PRENTICE).<br />

O senhor anda atrás de policiais ou de rapazinhos? Na sua idade já deveria<br />

ter se decidido há muito tempo. (AO SARGENTO). Espere lá fora.<br />

Examinarei o rapaz e farei um relatório. Depois darei uma olhada no senhor.<br />

MATCH (APAVORADO) - Em mim?<br />

RANCE - É. Todo cuidado é pouco.<br />

39


MATCH - Isso me parece um pouco desapropriado.<br />

RANCE (COM UM RELINCHE DE RISO) - O senhor está num<br />

hospício. Os comportamentos despropositados aqui são a norma.<br />

MATCH - Só para os pacientes.<br />

RANCE - Nós aqui não temos classes privilegia<strong>das</strong>. A nossa loucura é<br />

inteiramente democrática. (O SARGENTO VAI PAR O HALL,<br />

PERPLEXO. RANCE VAI A PIA, DOBRA AS MANGAS, LAVA AS<br />

MÃOS. )- Tire a roupa, meu filho. Deite-se ali na cama. (VOLTA À PIA).<br />

GERALDINE (AGARRANDO O BRAÇO DE PRENTICE,<br />

SUSSURRO FRENÉTICO) -E agora? Eu não posso tirar a roupa. Ele ia<br />

perceber o engano.<br />

PRENTICE - Calma! A situação, embora desesperadora, não está perdida<br />

de modo algum.<br />

RANCE PEGA UMA TOALHA E ENXUGA AS MÃOS<br />

GERALDINE - Eu não devia ter dito nada, doutor. Ninguém me fez mal.<br />

RANCE - Você gostou da experiência? ( POUSA A TOALHA E<br />

COMEÇA A COLOCAR AS LUVAS DE BORRACHA) - Você gostaria<br />

de ter uma relação normal?<br />

GERALDINE - Não. Podia ficar grávida... (NOTA SEU ERRO E<br />

TENTA ENCOBRI-LO)... Ou seria causa da gravidez em outra pessoa.<br />

RANCE, RÁPIDO EM PERCEBER O ERRO, VOLTA-SE PARA<br />

PRENTICE.<br />

RANCE - Ela acaba de fazer uma revelação vital. (AVANÇA PARA<br />

GERALDINE) - Você pensa em você mesma como sendo uma moça?<br />

GERALDINE - Não.<br />

RANCE - Por que não?<br />

GERALDINE - Porque sou rapaz.<br />

RANCE (BONDOSO) - Pode prová-lo pessoalmente?<br />

GERALDINE (SEUS OLHOS MANDA MENSAGEM DE APELO A<br />

PRENTICE) - Eu devo ser rapaz. Eu gosto de moças.<br />

RANCE PÁRA E FRANZE A TESTA ATÔNITO.<br />

RANCE (À PARTE PARA PRENTICE) - Não consigo perceber a lógica<br />

desse raciocínio.<br />

PRENTICE - Há muitos homens que julgam que uma preferência por<br />

mulheres constitui ipso facto prova de virilidade.<br />

RANCE (ACENANDO A CABEÇA SABIAMENTE) - Alguém devia<br />

escrever um livro desmistificando essas crendices populares. (A<br />

PRENDICE) - Abaixe as calças. Eu lhe direi a que sexo pertence.<br />

GERALDINE (RECUANDO) - Eu prefiro não saber!<br />

40


RANCE - Quer dizer que prefere continuar nessa dúvida atroz?<br />

GERALDINE - Prefiro.<br />

RANCE - Desculpe mas eu não estou aqui para apaparicar tarados. Você<br />

tem de encarar os fatos tanto quanto qualquer um de nós.<br />

FORÇA GERALDINE DE VOLTA PARA A CAMA.<br />

PRENTICE - O senhor está forçando o rapaz a passar por uma repetição da<br />

experiência traumatizando, doutor. Ele poderia enlouquecer.<br />

RANCE - Isto aqui é uma clínica para distúrbios mentais. Ele não poderia<br />

escolher local mais apropriado. (A GERALDINE). Dispa-se, eu tenho mais<br />

o que fazer.<br />

GERALDINE, INCAPAZ DE AGUENTAR A SITUAÇÃO POR UM<br />

MINUTO MAIS, GRITA ANGUSTIADA PARA PRENTICE.<br />

GERALDINE - Não posso continuar doutor! Tenho de dizer a verdade. (A<br />

RANCE) - Eu não sou menino, sou menina!<br />

RANCE (A PRENTICE) - Ótimo. Finalmente uma confissão. Ele deseja<br />

acreditar que é uma moça afim de minimizar seus sentimentos de culpa após<br />

a relação homossexual.<br />

GERALDINE (DE OLHOS ESBUGALHADOS, DESATRADA - Eu só<br />

fingi que era rapaz para ajudar o Dr. Prentice.<br />

RANCE - E como é que uma moça ajuda um homem fingindo que é rapaz?<br />

GERALDINE - É que as esposas em feral ficam muito zanga<strong>das</strong> quando os<br />

maridos pegam uma moça para despir, e seduzir....<br />

RANCE - Mas rapaz não faz mal, não é? Pois eu pessoalmente duvido<br />

muito que essa sua visão muito pessoal da sociedade não seja alvo de<br />

ataques.<br />

PROVOCADA ALÉM DE SEUS LIMITES DE RESISTÊNCIA,<br />

GERALDINE SE ATIRA NOS BRAÇOS DE RANCE E CHORA<br />

HISTERICAMENTE.<br />

GERALDINE - Então me despe, doutor! Faz o que quiser, desde que prove<br />

que eu sou uma moça.<br />

RANCE (AFASTANDO-SE E VOLTANDO-SE, RÍGIDO, PARA<br />

PRENTICE) - Se ele continuar a se comportar assim vai ser preciso<br />

amarra-lo.<br />

SRA. PRENTICE ( A RANCE, ENTRANDO DA FARMÁCIA) - O<br />

senhor poderia dar uma olhada na sta. Barclay, doutor? Ela se recusa<br />

terminantemente a se despir na frente de uma mulher.<br />

RANCE -E de um homem?<br />

SRA. PRENTICE - Ainda não sondei a possibilidade.<br />

41


RANCE - Vejamos se consigo tentá-la. (MORDE O LÁBIO) - Vou<br />

experimentar. Ela pode ser ninfomaníaca. (A PRENTICE). Se ele começar<br />

a usar linguagem obscena, mantenha-o conversando até eu voltar.<br />

VAI PARA A FARMÁCIA SEGUIDO PELA SRA. PRENTICE.<br />

GERALDINE (CONTROLANDO-SE) - Vou sair pelo jardim, doutor.<br />

Posso tomar um táxi até em casa.<br />

PRENTICE - Impossível. Medi<strong>das</strong> severíssimas de segurança foram<br />

toma<strong>das</strong> até que a paciente seja recapturada.<br />

GERALDINE - E quando ela for recapturada, posso ir?<br />

PRENTICE - Não.<br />

GERALDINE - Mas por que?<br />

PRENTICE - Porque você é a paciente.<br />

GERALDINE DÁ UM GRITINHO DE DESESPERO. RANCE<br />

VOLTA DA FARMÁCIA RETIRANDO AS LUVAS DE BORRACHA.<br />

RANCE - Sua secretária está em pé em cima da mesa lutando com unhas e<br />

dentes contra qualquer tentativa de ser despida. Ela me parece<br />

completamente incapaz de qualquer comportamento normal e correto.<br />

PRENTICE - A mim ela nunca deu qualquer motivo de queixa.<br />

RANCE - Mas todos esperam que uma secretária tenha moral duvidosa. É<br />

parte do contrato de trabalho. (ENCARA PRENTICE COM<br />

VIOLÊNCIA)- O senhor já reparou que ela usa gilete?<br />

PRENTICE - Nada de mais. A sra. Prentice ocasionalmente também<br />

remove pelos endesejáveis.<br />

RANCE - No queixo? (ATIRA LONGE AS LUVAS DE BORRACHA) -<br />

Há dois sexos. Essa verdade desagradável tem de ser enfrentada. Suas<br />

tentativas para obter estágios intermediários só lhe trarão sofrimento.<br />

DA FARMÁCIA ENTRA A SRA. PRENTICE E UM NICK MAIS<br />

OBEDIENTES.<br />

SRA. PRENTICE - A sta. Barclay está mais calma agora, doutor. Eu lhe<br />

dei um sedativo.<br />

RANCE (VOLTANDO-SE PARA NICK E SACUDINDO A CABEÇA)<br />

- Que quadro fascinante de uma mente em decomposição.<br />

PRENTICE - A sta. Barclay não está nem um pouco mais doente do que<br />

eu.<br />

RANCE - O seu caso ainda é pior do que o dela.<br />

PRENTICE - Isso eu não admito.<br />

RANCE - Não há <strong>louco</strong> que admita sua loucura. Só os sãos é que o fazem.<br />

(A NICK BRUSCO) - Por que não permito que a sra. Prentice a dispa?<br />

42


SRA. PRENTICE - As objeções dela parecem ser de natureza religiosa.<br />

Afirma que se uniu a Deus.<br />

RANCE (A NICK) - A que momento a senhorita tomou consciência desse<br />

relacionamento especial com o Todo Poderoso?<br />

NICK - Quando me presentearam com uma edição da Bíblia encadernada<br />

em pelica.<br />

RANCE - Cópia autografada?<br />

NICK - Não creio que tenha sido assinada por Deus pessoalmente.<br />

RANCE - Claro que não. Que distração. Havia alguma inscrição?<br />

NICK - Havia.<br />

RANCE - Qual?<br />

NICK - O nome da editora.<br />

RANCE - Ah, são os representantes de Deus. Fica claro que a senhorita<br />

viveu uma experiência religiosa de natureza mística. (APONTA PARA<br />

GERALDINE) - A senhorita estava presente quando o Dr. Prentice usou<br />

esse rapaz para fins anti-naturais?<br />

NICK - O que é anti-natural.<br />

RANCE (À SRA PRENTICE) - Pergunta de <strong>louco</strong> é sempre indiscreta. (A<br />

NICK)- Suponhamos que eu lhe fizesse uma proposta indecorosa... Se a<br />

senhorita concor<strong>das</strong>se poderia ocorrer alguma coisa que, via de regra, seria<br />

considerada como natural. Se, por outro lado (ELE SORRI PARA<br />

GERALDINE), eu fizesse o mesmo com esta criança, minha ação resultaria<br />

numa grave violação da ordem geral <strong>das</strong> coisas.<br />

SRA. PRENTICE (INDICANDO GERALDINE) - Meu marido andou se<br />

desmunhecando com esse rapaz?<br />

RANCE - Impossível responder com um mínimo de precisão. Ele se recusa<br />

a passar pelo exame médico.<br />

SRA. PRENTICE (A PRENTICE) - O que é que aconteceu com ele?<br />

PRENTICE - Ele quem?<br />

SRA. PRENTICE - O rapaz que você despiu.<br />

RANCE - É esse o rapaz que ele despiu.<br />

SRA. PRENTICE - Não. Ele despiu o rapaz que se engraçou comigo.<br />

RANCE (PAUSA) - E não é este?<br />

SRA. PRENTICE - Não.<br />

RANCE (OLHOS ESBUGALHADOS, PERPLEXO) - Hú um outro<br />

rapaz?<br />

SRA. PRENTICE - Ele estava sendo entrevistado para o posto de<br />

secretário. Meu marido mandou que ele se despisse.<br />

43


RANCE (FRIAMENTE A PRENTICE) - Há quanto tempo o senhor é<br />

pervertido?<br />

PRENTICE - Eu não sou pervertido.<br />

RANCE - Do que é que o senhor chamaria um homem que manuseia<br />

rapazes adolescentes, importuna policiais, e coabita com uma mulher que se<br />

barbeia duas vezes por dia?<br />

PRENTICE - De pervertido.<br />

RANCE - Ainda bem que o senhor está concordando a encarar a realidade<br />

dos fatos. ( A GERALDINE) - Se você não é Nicholas Beckett, então quem<br />

é?<br />

GERALDINE OLHA PRENTICE E MORDE O LÁBIO.<br />

PRENTICE - O nome dele é Gerald Barclay.<br />

RANCE (INDICANDO NICK) - Ele é irmão dessa jovem?<br />

PRENTICE - Não.<br />

RANCE - E então o que foi que aconteceu com Nicholas Beckett?<br />

PRENTICE - Saiu daqui há uma hora para retornar suas obrigações no<br />

Hotel da Estação.<br />

SRA. PRENTICE - Não é possível. Eu tirei o uniforme dele. Está nú.<br />

PRENTICE - Pelo que ouvi dizer do Hotel da Estação, ele raramente<br />

trabalha de uniforme.<br />

RANCE (SACUDINDO A CABEÇA, PREOCUPADO) - Espero que não<br />

tenhamos deixado escapar mais um. Daqui a pouco só vamos sobrar nós e as<br />

nossas drogas miraculosas. (À SRA. PRENTICE) - Faça o favor de<br />

descobrir se o rapaz voltou para o hotel.<br />

SRA. PRENTICE VAI PARA O HALL. RANCE VOLTA-SE PARA<br />

PRENTICE. - Prepare os papéis necessários. Vou atestar a loucura destes<br />

dois.<br />

GRITOS DE ALARME DE NICK E GERALDINE. NICK FALA A<br />

PRENTICE.<br />

NICK - O senhor não pode fazer alguma coisa com ele, doutor? Ele está<br />

ruim da cabeça.<br />

RANCE (SEVERO) - Eu represento a ordem, e vocês o cáos. A não ser que<br />

reconheçam essa verdade fundamental, não posso esperar curá-los. (A<br />

PRENTICE) - Preencha os formulários de internação para eu assinar.<br />

PRENTICE (AGITADO E RAIVOSO) - Não posso concordar com<br />

providências tão drásticas. Não há nenhuma prova de insanidade.<br />

RANCE - Vou afasta-lo de posto de chefe da clínica. De agora em diante o<br />

senhor fará apenas o que eu disser.<br />

44


PRENTICE - Protesto contra o seu enfoque deste caso, doutor.<br />

Apresentarei meu ponto de vista à Superintendência Mental.<br />

RANCE - Acho muito difícil que as autoridades em questão se deixe<br />

impressionar muito pelos pontos de vista de um <strong>louco</strong>.<br />

PRENTICE - Eu não estou <strong>louco</strong>. Só pareço.<br />

RANCE - Suas ações no dia de hoje seriam suficientes para que se atestasse<br />

a demência do Arcebispo de Canterbury.<br />

PRENTICE - Mas eu não sou Arcebispo de Canterbury.<br />

RANCE - Realmente essa fase só vem um pouco mais tarde.<br />

PRENTICE - Sua interpretação do meu comportamento é mal dirigida e<br />

completamente errada. Se há aqui alguém no limiar da loucura é o senhor.<br />

RANCE - Levando em conta a sua anormalidade, essa reação é<br />

perfeitamente normal. As pessoas de mente sã parecem tão loucas para os<br />

malucos quanto estes se parecem para os lúcidos. Fique onde está. Vou darlhe<br />

um comprimido. (CORRE PARA A FARMÁCIA).<br />

GERALDINE (SOLUÇANDO) - Ser declarada louca duas vezes no<br />

mesmo dia. E tinham me dito que eu ia trabalhar num ambiente alegre e<br />

saudável! (ASSOA O NARIZ).<br />

NICK - Por que é que ele está usando o meu uniforme?<br />

PRENTICE - Ele não é ele, é ela.<br />

GERALDINE - Por que é que ela está usando os meus sapatos?<br />

PRENTICE - Ela não é ela, é ele. (SERVINDO WHISKY) - Eu nunca<br />

mais tentarei uma relação sexual, nem que viva até os noventa anos.<br />

NICK - Doutor, se nós dois trocássemos de roupa, talvez pudessemos fazer<br />

as coisas voltarem ao normal.<br />

PRENTICE - Mas nesse caso nós teríamos de explicar o desaparecimento<br />

da minha secretária e do boy do hotel.<br />

GERALDINE - Mas eles não existem.<br />

PRENTICE - Quando uma pessoa que não existe desaparece, a sua partida<br />

precisa ser muito convincente.<br />

NICK (PAUSA) - O sargento pode ser conversado?<br />

PRENTICE - Não.<br />

NICK - Eu preciso do uniforme dele.<br />

PRENTICE - Para que?<br />

NICK - Para me prender.<br />

PRENTICE (PASSANDO A MÃO NA TESTA, TONTO E<br />

CANSADO). Já passei tempo demais entre <strong>louco</strong>s para ainda saber quem<br />

não é<br />

NICK - Uma vez preso, todos podem me esquecer.<br />

45


GERALDINE - Você quer enrolar as coisas ainda mais, em vez de<br />

simplificar.<br />

NICK (A PRENTICE) -É só inventar uma desculpa qualquer para tirar ela<br />

daqui. E aí nós podemos trocar as roupas.<br />

PRENTICE (PAUSA, DESCONFIADO) - Pode sair pior a emenda que o<br />

soneto.<br />

RANCE ENTRA DA FARMÁCIA. ENTREGA UMA CAIXA<br />

VERMELHA DE PAPÉIS A PRENTICE.<br />

RANCE - Tome duas.<br />

PRENTICE (OLHANDO A CAIXA) - O que é isso?<br />

RANCE - Uma droga perigosíssima indicada para o alívio da euforia<br />

patológica. Cuidado para não exagerar na dose. (A NICK) - Controle-se,<br />

mocinha, e entregue logo os tais pedaços que estão botando a polícia do país<br />

inteiro em polvorosa. (TOMA GERALDINE PELO BRAÇO). Este aqui<br />

vai para o isclamento. Não se pode deixar o hermafroditismo aguso andar à<br />

solta.<br />

GERALDINE - Que bom que meus pais estão mortos. Se não, iam morrer<br />

com isso tudo. (RANCE LEVA-A PARA A ENFERMARIA).<br />

PRENTICE (A NICK). Vou conseguir que o sargento se dispa. Se já estou<br />

acusado de um crime, o melhor é comete-lo de uma vez.<br />

NICK - Será que o senhor não pode dar uma injeção nele? Só para ele ficar<br />

mais cordato.<br />

PRENTICE - Um calmantezinho não faz mal a ninguém. Tem uns antidepressivos<br />

aí na escrivaninha. (NICK VAI À ESCRIVANINHA E PEGA<br />

UMA CAIXA BRANCA DE PÍLULAS NA GAVETA. PRENTICE<br />

ABRE A PORTA PARA O O HALL E CHAMA COM VOZ<br />

AMÁVEL) - Quer dar um pulinho aqui, sargento?<br />

NICK ENTREGA A CAIXA BRANCA A PRENTICE E ENTRA NA<br />

FARMÁCIA.<br />

MATCH (ENTRANDO VINDO DO HALL) - Deseja falar comigo,<br />

doutor?<br />

PRENTICE - Desejo. Eu queria que o senhor se despisse e se deitasse<br />

naquela cama.<br />

MATCH (PAUSA) - Mas ninguém me molestou.<br />

PRENTICE - Não tem a menor importância. Fique só com a roupa de<br />

baixo.<br />

MATCH (SENTANDO NA CAMA E DESAMARRANDO AS BOTAS)<br />

- Se o senhor fizer qualquer tentativa para me excitar, doutor, eu grito por<br />

socorro.<br />

46


PRENTICE - Vê-se logo que não foi molestado. Cria muita dificuldade.<br />

O SARGENTO TIRA AS BOTAS. NICK APARECE NA PORTA DA<br />

FARMÁCIA. PRENTICE DÁ-LHE AS BOTAS. NICK LEVA-AS<br />

PARA A FARMÁCIA. SARGENTO TIRA A TÚNICA E ENTREGA-A<br />

A PRENTICE. NICK, SEM SAPATOS, APARECE NA PORTA DA<br />

FARMÁCIA. PRENTICE ENTREGA-LHE A TÚNICA, NICK VIRA<br />

DE COSTAS. PRENTICE ABRE O FECHO DO VESTIDO. NICK<br />

LEVA A TÚNICA PARA A FARMÁCIA. SARGENTO TIRA<br />

GRAVATA E CAMISA. NICK, SÓ DE CUECAS, APARCE NA<br />

PORTA DA FARMÁCIA. PRENTICE ENTREGA-LHE GRAVATA E<br />

CAMISA. NICK ENTRA NA FARMÁCIA. O SARGENTO DEIXA<br />

CAIR AS CALÇAS, SRA. PRENTICE ENTRA DO HALL E VENDO<br />

O SARGENTO SEM CALÇAS, DÁ GRITO AGUDO. CHOCADO E<br />

EMBARAÇADO O SARGENTO TORNA A LEVANTAR AS<br />

CALÇAS.<br />

SRA. PRENTICE (GÉLIDA) - O que é que o senhor estava fazendo com<br />

as calças abaixa<strong>das</strong>, sargento?<br />

MATCH - O doutr ia me examinar.<br />

SRA. PRENTICE - Por que?<br />

MATCH - Há razões para supor que eu passei por uma experiência<br />

desagradável há pouco tempo.<br />

SRA. PRENTICE - Que tipo de experiência?<br />

PRENTICE - Ele foi molestado.<br />

SRA. PRENTICE - Por quem?<br />

PRENTICE - Por mim.<br />

SRA. PRENTICE - Então para que o exame?<br />

PRENTICE - Para saber se ele está dizendo a verdade.<br />

SRA. PRENTICE - Você não sabe?<br />

PRENTICE - Não. Eu não senti nada.<br />

SRA. PRENTICE (TIQUE DA CABEÇA) - Onde está o Dr. Rance?<br />

PRENTICE - Ele acaba de ordenar a internação do boy do hotel. No<br />

momento está pondo o rapaz no isolamento.<br />

SRA. PRENTICE - Eu preciso falar com ele. As coisas já estão indo longe<br />

demais.<br />

ELA CORRE PARA A ENFERMARIA. PRENTICE VOLTA-SE<br />

PARA O SARGENTO.<br />

PRENTICE - Tire as calças, sargento, para podermos continuar.<br />

(SARGENTO TIRA AS CALÇAS E AS ENTREGA A PRENTICE.<br />

FICA SÓ DE CUECAS E MEIAS. COM UMA MESURA PRENTICE<br />

47


TOCA A CAIXA VERMELHA DO BOLSO E A ENTEGA AO<br />

SARGENTO. SORRI) - Gostaria que tomasse estas cápsulas. Tome<br />

quantas quizer. São inteiramente inócuas. (SARGENTO ACEITA A<br />

CAIXA) - Agora eu gostaria que o senhor se deitasse naquela cama e se<br />

concentrasse nos últimos capítulos de sua obra de ficção favorita. ( O<br />

SARGENTO DEITA-SE NA CAMA. PRENTICE FECHA AS<br />

CORTINAS EM TORNO E CORRE PARA A FARMÁCIA COM AS<br />

CAIXAS, ENCONTRA NICK NA PORTA. NICK CARREGA O<br />

UNIFORME DO SARGENTO. PRENTICE DÁ-LHE AS CALÇAS) -<br />

No jardim há um caramanchão. Lá estará tranquilo.<br />

NICK - O capacete, doutor.<br />

PRENTICE (CORENDO ATÉ A CAMA) - O capacete, urgente!<br />

MATCH (ATRÁ DA CORTINA) No hall doutor!<br />

PRENTICE (A NICK) - Onde estão as roupas da sta. Barclay?<br />

NICK - Na farmácia.<br />

NICK CORRE PARA O HALL. PRENTICE CORRE PARA A<br />

FARMÁCIA. SRA. PRENTICE ENTRA DA ENFERMARIA, NICK<br />

VOLTA DO HALL USANDO CUECAS E CAPACETE. AO VÊ-LO<br />

SRA. PRENTICE GRITA E RECUA. NICK CORRE PARA O<br />

JARDIM.<br />

SRA. PRENTICE (FRACA, NA ESCRIVANINHA) - Meu Deus, isto<br />

parece um hospício! (RANCE ENTRA DA ENFERMARIA. SRA.<br />

PRENTICE ATIRA-SE SOBRE ELE, DESVAIRADA) - O senhor tem<br />

de me ajudar, doutor. eu só vejo homem nu.<br />

RANCE (PAUSA) - E quando começaram essas alucinações?<br />

SRA. PRENTICE - Alucinação o que, é de verdade.<br />

RANCE (RELINCHO DE RISO) - Todo mundo que sofre de alucinação<br />

acha que elas são de verdades. Qual foi a última vez que a senhora viu um<br />

homem nu?<br />

SRA. PRENTICE - Agora mesmo. Nu, com um capacete de polícia.<br />

RANCE (SECO) - Não é muito difícil deduzir o que é que a senhora tem na<br />

cabeça, minha cara. A senhora está com problemas conjugais?<br />

SRA. PRENTICE - Bom, eu tenho nofrite. Mas o meu marido se recusa a<br />

receitar para mim.<br />

RANCE - Narcotizar a mulher não é o melhor meio de um homem alcançar<br />

uma união feliz.<br />

SRA. PRENTICE - Eu não quero narcóticos. Quero que seja levada em<br />

conta a minha natureza sexual. (VAI À ESCRIVANINHA E SE SERVE<br />

WHISKY)<br />

48


RANCE- Contribuindo para o colapso de seu marido, no menos em parte,<br />

onde está o Dr. Prentice?<br />

SRA. PRENTICE (PONDO GELO NO COPO) - Não sei. Quando voltei<br />

depois de ter telefonado para o Hotel da Estação ele estava despindo o<br />

sargento.<br />

RANCE - Como a senhora descreveria as relações dele com o sargento?<br />

SRA. PRENTICE - Como estranhas e, sob muitos aspectos, pertubadores.<br />

Ele o havia chamado várias vezes a esta sala, mandando-o embora de modo<br />

muito grosseiro logo depois.<br />

RANCE - Se fazendo de regado, einh? Bom, isso sempre dá um sabor todo<br />

especial a qualquer caso. Alguma novidade sobre a paciente?<br />

SRA. PRENTICE - Nenhuma. A não ser pelo fato disto aqui parecer a<br />

camisola que ela estava usado. (MOSTRA A CAMISOLA DE<br />

GERALDINE) -<br />

RANCE - Então ela deve está nua?<br />

SRA. PRENTICE - Deve.<br />

RANCE - E o que nos informa o Hotel da Estação?<br />

SRA. PRENTICE - Que não têm nenhum boy chamado Gerald Barclay lá .<br />

O rapaz declarado <strong>louco</strong> deve ser impostor.<br />

RANCE - E sobre o Nicholas, o boy verdadeiro?<br />

SRA. PRENTICE - Não voltou ao hotel. E no entanto quando desapareceu<br />

o seu uniforme estava sob minha custódia.<br />

RANCE (MUITO PREOCUPADO) - Dois jovens. ele <strong>louco</strong>, ela<br />

sexualmente insaciável - e ambos desnudos - estão perambulando pela casa.<br />

Temos de evitar a qualquer preço que haja uma colisão.<br />

SRA. PRENTICE - Doutor, alguma coisa nisto tudo faz sentido para o<br />

senhor?<br />

RANCE - Claro. É uma história de profundo interesse humano. Um<br />

membro respeitável da classe médica é casado com uma mulher<br />

deslumbrante. Desesperadamente apaixonados, porém - por desconfiança<br />

mútua recusando-se a admiti-lo, há muito pouco que possam fazer para<br />

evitar que uma relação outrora preciosa se deteriore. O doutor tem uma<br />

paciente encantadora porém mentalmente desequilibrada. Ela é a chave do<br />

nosso mistério. Em tenra idade ela foi vítima de um ataque sexual. O<br />

atacante foi seu próprio pai. Um ato de transferência, comum na experiência<br />

de todo psiquiatra, permite que ela identifique o doutor com seu pai. As<br />

exigências de uma esposa e uma paciente ninfomaníacas, alia<strong>das</strong> às de sua<br />

tórrida secretária, são demais para sua saúde mental. Em sua angústia, ele<br />

passa a atacar rapazinhos. Retendo, no entanto, alguns vestígios de seus<br />

49


sentimentos normais., ele persuade seus amiguinhos a se vestirem com<br />

roupas femininas. Com isso já expliquei por que ele andava atrás de roupas<br />

femininas. E a medida que sua neurose for evoluindo poderemos decidir<br />

mais facilmente se ele quer que os seus menininhos tomem o lugar da<br />

mulher, da paciente, ou da secretária.<br />

SRA. PRENTICE - E por que foi que ele atacou o polícia?<br />

RANCE - Pura loucura. Nada mais.<br />

SRA. PRENTICE - Há quanto tempo o senhor acha que meu marido está<br />

<strong>louco</strong>?<br />

RANCE - Eu localizo as origens da doença nos idos da primeira carta<br />

escrita a um jornal. Das surpreendentes idéias do Dr. Goobberls sobre o<br />

funcionamento do órgão sexual masculino não há mais que um passo<br />

pequeno e lógico até a fabricação de bruxinhas de pano. Trata-se de na<br />

verdade uma tentativa de se alterar a ordem da criação - e o<br />

homossexualismo se enquadra aqui. - por meio de experiências com magia<br />

negra. A denúncia de roubo <strong>das</strong> partes puden<strong>das</strong> de uma figura pública<br />

muito conhecida se adapta muito bem a esta teoria. Macacos me mordam se<br />

não estamos diante de um caso de culto fálico (RELINÇÃO DE RISO).<br />

Com a publicação de tudo isto eu ficarei rico. Minha pequena novela de<br />

gênero “gênero documentário”terá doze edições consecutivas, quebrando<br />

recordes a cada passo. Poderei deixar a Superintendência para tornar-me o<br />

centro <strong>das</strong> atenções de todos aqueles que, como eu mesmo, descobrem que a<br />

iniquidade alheia é uma nina de ouro.<br />

SRA. PRENTICE (BEBENDO WHISKY COM UM ARREPIO) - Que<br />

história horrenda. Se fosse ficção, eu a condenaria em termos<br />

excpencionalmente fortes.<br />

RANCE - Não poderei mais convidar o Dr. Prentice para inaugurar nossa<br />

Feira da Saúde Mental. (APERTANDO OS LÁBIOS) - Terei de apelar<br />

para um dos membros do Gabinete menos desequilibrados. ( A SRA.<br />

PRENTICE PEGA UMA CAIXA VERMELHA NO CHÃO PERTO<br />

DA MESA. RANCE NOTA IMEDIATAMENTE). O que é isso?<br />

SRA. PRENTICE - Uma caixa de pílulas. Está vazia.<br />

RANCE AGARRA-A.<br />

RANCE - Ele tomou uma dose excessiva. Temos aqui uma prova terrível de<br />

conflito. Sua mente torturada, buscando alívio, levou-o a uma tentativa de<br />

auto-destruição.<br />

SRA. PRENTICE (VIOLENTO CHOQUE E SURPRESA) - Suicídio?<br />

Mas que coisa inesperada.<br />

50


RANCE - O inesperado sempre acontece quando menos se espera.<br />

Precisamos encontrá-lo antes que seja tarde.<br />

SEPARAM-SE RAPIDAMENTE EM DIREÇÕES OPOSTAS: SRA<br />

PRENTICE PARA O HALL, RANCE PARA A ENFERMARIA.<br />

PRENTICE E NICK ENTRAM SIMULTANEAMENTE DA<br />

FARMÁCIA E DO JARDIM. PRENTICE CARREGA OS SAPATOS<br />

E A PERUCA EMBRULHADOS NO VESTIDO. NICK ESTÁ COM O<br />

UNIFORME DO SARGENTO.<br />

NICK (URGENTE) - Doutor, a sta. Barclay está pendurada na janela da<br />

cela de isolamento.<br />

PRENTICE (CHEGANDO A SALA) - Onde será que se pode esconder<br />

um vestido de mulher num consultório médico?<br />

( ELE PEGA O VASO. É PEQUENO DEMAIS PARA CONTER O<br />

VESTIDO. OLHA EM VOLTA RÁPIDO, DESESPERADO. AS<br />

CORTINAS DA CAMA SE ABREM E O SARGENTO CAI DE<br />

FRENTE PARA O CHÃO, NARCOTIZADO E INCONSCIENTE.<br />

PRENTICE E NICK REAGEM À CONDIÇÃO DO SARGENTO.<br />

PRENTICE APALPA O BOLSO E TIRA A CAIXA BRANCA DE<br />

PÍLULAS, SEUS OLHOS SE ARREGALAM. AGARRA A<br />

GARGANTA. UM GRITO ESTRANGULADO) Meu Deus! Eu o<br />

envenenei.<br />

NICK CORRE ATÉ A PIA, OLHA UMA TOALHA E SALPICA O<br />

ROSTO DO SARGENTO. PRENTICE POUSA O VESTIDO E<br />

TENTA FAZER O SARGENTO FICAR DE PÉ. ESTA GELADO.<br />

OLHA EM VOLTA NUM ESTUPOR E CALAFRIOS<br />

INCONTROLÁVEIS.<br />

NICK (SEGURANDO O PULSO DO SARGENTO) - Ele está gelado,<br />

doutor.<br />

PRENTICE - É o efeito da droga. A mesma coisa acontece aos cadáveres.<br />

NICK - Vamos enfiar uma roupa nele e jogar ele no jardim para dormir até<br />

isso passar. (PEGA O VESTIDO)<br />

PRENTICE (TORCENDO AS MÃOS) - Como poderei explicar a<br />

presença, no meu jardim, do corpo narcotizado de um sargento de polícia?<br />

51


NICK (VESTINDO O VESTIDO NO SARGENTO) - O senhor é<br />

culpado, não precisa explicar nada. Só inocente é que explica.<br />

FECHA O VESTIDO. PRENTICE TENTA FICAR DE PÉ.<br />

PRENTICE (NUM GEMIDO) - Se os jornais sabem disso, vou acabar<br />

meus dias vendendo esticador de colarinho.<br />

OS DOIS ARRASTAM O SARGENTO SEMI-CONSCIENTE PARA<br />

O JARDIM. SRA. PRENTICE ENTRA DO HALL, RANCE ENTRA<br />

DA ENFERMARIA.<br />

SRA. PRENTICE - Alguém roubou o capacete do sargento da mesa do<br />

hall. O senhor acha que pode ter sido o meu marido?<br />

RANCE - É possível. O comportamento dele é tão ridículo que quase dá<br />

para desconfiar que esteja em seu juízo perfeito. (A SRA. PRENTICE, NA<br />

PORTA PARA O JARDIM, REPETINAMENTE GRITA<br />

ASSUSTADA) - O que foi? A senhora parece expressar mais emoção do<br />

que é necessário para se falar de um capacete de polícia.<br />

SRA. PRENTICE - Eu acabo de ver meu marido carregando uma mulher<br />

para o meio dos arbustos.<br />

RANCE - Ela estava se debatendo?<br />

SRA. PRENTICE - Não.<br />

RANCE - Então uma nova e terrível possibilidade se apresenta. As drogas<br />

desta caixa (LEVANTA A CAIXA VERMELHA) podem não ter sido<br />

usa<strong>das</strong> para suicídio e sem para assassinato. Seu marido liquidou a<br />

secretária.<br />

SRA. PRENTICE SE SERVE DE WHISKY COM UM RISO<br />

NERVOSO.<br />

SRA. PRENTICE - Isso não é um pouco melodramático, doutor?<br />

RANCE - Os <strong>louco</strong>s são melodramáticos. As sutilezas do drama são<br />

despediça<strong>das</strong> neles. A horrenda sombra do anti-critos ronda esta casa.<br />

Tendo descoberto seu pai/amante no Dr. Prentice, a paciente o subustitui,<br />

numa reoganização psicológica, pela grande figura paterna arquetípica - o<br />

próprio Diabo. Tudo está claro agora. Os últimos capítulos de meu livro<br />

estão tomando forma: incosto, formicação, mulheres perdi<strong>das</strong> e estranhos<br />

cultos do amor a serviço de noites depravados. Enfim to<strong>das</strong> as taras da<br />

moda. Uma moça linda mas neurótica levou o doutor a sacrificar uma<br />

virgem branca afim de propiciar os deuses da insensatez. “Quando<br />

52


arrombaram o antro nauseabundo encontraram seu pobre corpo<br />

ensanguentado aos pés do falo obsceno e semi-erecto”. (À SRA.<br />

PRENTICE) - O meu relato “totalmente objetivo”de caso do infame<br />

assassino sexual Prentice sem dúvida acrescentará muito à nossa<br />

compreensão de tais criaturas. A sociedade tem de tomar consciência da<br />

crescente ameaça da pornografia. Todo o solapador movimento<br />

vanguardista será denunciado desmascarado o visto pelo que realmente é<br />

um instrumento para incitar cidadãos respeitáveis a cometer crimes bizarros<br />

contra a humanidade e o estado. (PARA, UM POUCO ASSOMBRADO,<br />

E LIMPA A TESTA. - A senhora tem, sob o seu teto, um dos lunáticos<br />

mais notáveis de todos os tempos. Precisamos começar a procurar o corpo.<br />

Como travesti, fetichista e assassino bi-sexual o Dr. Prentice demonstrou<br />

considerável justaposição de anomalias. Talvez possamos incluir a<br />

necrofilia. Como uma espécie de brinde extra. (PRENTICE ENTRA DO<br />

JARDIM. RANCE DÁ-LHE UM OLHAR DESDENHOSO) - O senhor<br />

confirma, doutor, que sua esposa o viu arrastando um corpo para o meio dos<br />

arbustos?<br />

PRENTICE - Confirmo. E posso explicar minha conduta.<br />

RANCE - Suas explicações não me interessa. Darei as minhas próprias.<br />

Onde está a sua secretária?<br />

PRENTICE - Eu a despedi.<br />

RANCE - Sua resposta está de acordo com a complexa estrutura da sua<br />

neurose.<br />

PRENTICE - A pessoa que a minha mulher viu não estava morta. Eles<br />

estavam dormindo<br />

RANCE (À SRA. PRENTICE ) - Ele espera uma ressurreição. <strong>Mais</strong> uma<br />

ligação com as religiões primitivas. ( A PRENTICE) - O senhor repudiou<br />

o Deus de seus pais?<br />

PRENTICE - Eu sou racionalista.<br />

RANCE - Não é racional ser racionalista num mundo irracional.<br />

(PEGANDO A PERUCA E OS SAPATOS) - Era sua intenção usar isto<br />

para excitação auto-erótica?<br />

PRENTICE - Não. Eu sou um homem inteiramente normal.<br />

RANCE - (A SRA. PRENTICE) - Sua crença na normalidade é<br />

inteiramente anormal. (A PRENTICE) - A moça foi morta antes ou depois<br />

do senhor tirar a roupa dela?<br />

PRENTICE - Ele não era uma moça. Era um homem.<br />

SRA. PRENTICE - Ele estava usando um vestido.<br />

PRENTICE - Mas mesmo assim era homem.<br />

53


RANCE - Quem usa vestido é mulher, Prentice, não é homem. Não desejo<br />

compactuar com a destruição de uma esplêndida e antiga tradição. O senhor<br />

trocou de roupa com a vítima antes que morresse?<br />

PRENTICE - Ninguém morreu! A pessoa que o senhor viu comigo era um<br />

polícia que tomou uma dose excessiva de narcóticos.<br />

SRA. PRENTICE - Mas por que vestido de mulher?<br />

PRENTICE - Ele estava nú quando eu o encontrei. O vestido estava por<br />

perto.<br />

SRA. PRENTICE - Onde estavam as roupas dele?<br />

PRENTICE - Um rapaz as tinha jogado.<br />

RANCE LEVA SRA. PRENTICE À PARTE, SEU ROSTO UMA<br />

MÁSCARA DE CONDENAÇÃO.<br />

RANCE - É chegada a hora de dar cobre a esta alucinação greco-romana.<br />

Há alguma camisa de força nesta casa?<br />

SRA. PRENTICE - Os métodos modernos de tratamento tornaram a<br />

camisa de força obsoleta.<br />

RANCE - Eu sei. Mas nem por isso ela deixou de ser usada. Pode me<br />

arranjar uma?<br />

SRA. PRENTICE - Acho que o porteiro tem alguma.<br />

RANCE - Não podemos nos arriscar com o seu estado em que está.<br />

RANCE SAI PARA O HALL. PRENTICE, NA ESCRIVANINHA, SE<br />

SERVE DE WHISKY E COSPE VENENOSAMENTE AS PALAVRAS<br />

À SUA MULHER.<br />

PRENTICE - Este é mais um de seus planos para solapar minha reputação<br />

do critério e responsabilidade, sua harpia traidora?<br />

SRA. PRENTICE NEM TENTA RESPONDER. ELA SORRI E ELE<br />

PÕE UMA DAS MÃOS NO OMBRO DE PRENTICE.<br />

SRA. PRENTICE (DELICADA) - Você causou a morte de uma pobre<br />

moça, meu querido. Acho que vamos pedir-lhe que aceite um período de<br />

confinamento.<br />

54


PRENTICE (BEBENDO) - A sta. Barclay não está morta.<br />

SRA. PRENTICE - É só traze-la aqui que seus problemas estarão todos<br />

solucionados.<br />

PRENTICE - Não posso.<br />

SRA. PRENTICE - Por que não?<br />

PRENTICE - Você está usando o vestido dela. ( SACODE OS OMBROS<br />

COM DESIGNAÇÃO)- Hoje de manhã você me surpreendeu tentando<br />

seduzi-la num momento contra-indicado.<br />

SRA. PRENTICE (COM SORRISO DE TRANQUILA<br />

DESCONFIANÇA) - Para que possamos salvar nosso casamento, querido,<br />

você precisa confessar que gosta mais de rapazes que de moças. O Dr.<br />

Rance já explicou os motivos de sua aborração. Eu sou muito tolerante.<br />

Falar a verdade eu conheço vários rapazinhos. Posso passar alguns dos mais<br />

jovens para você. Isso levantaria consideravelmente o nivel de nosso<br />

casamento.<br />

PRENTICE ESTÁ ESTUPEFACTO PELA SUGESTÃO DELA.<br />

VOLTA-SE CONTRA ELA COM FÚRIA.<br />

PRENTICE - Não admito que faça alegações escandalosas a respeito de<br />

assuntos dos quais não sabe coisa nenhuma.<br />

SRA. PRENTICE ( COM TIQUE DE CABEÇA) - O boy do hotel te<br />

acusou de comportamento indecoroso.<br />

PRENTICE - Aquilo não era o homem. Era mulher.<br />

SRA. PRENTICE - Confesse que prefere o seu sexo ao meu. Eu não hesito<br />

em dizer que eu prefiro.<br />

PRENTICE - Sua degenerada imunda! Tire a roupa já.<br />

SRA. PRENTICE ( ABRINDO O FECHO DO VESTIDO. SEQUIOSA)<br />

- Você vai me bater? Não faça cerimônia. Suas experiências psicóticas tem<br />

enorme valor para você e devem ser encoraja<strong>das</strong>, e não cercea<strong>das</strong> ou<br />

reprimi<strong>das</strong>.<br />

55


PRENTICE AGARRA-A, ESBOFETANDO-LHE O ROSTO E<br />

ARRANCA-LHE O VESTIDO. ELA LUTA.<br />

SRA. PRENTICE (ARFANDO COM O TAPA) -Oh, meu querido! Este é<br />

que é o caminho para o ajuste sexual no casamento.<br />

PRENTICE ATIRA-A PARA LONGE DE SI. ELA ESBARRA NO<br />

VASO QUE CAI NO CHÃO. RANCE ENTRA CORRENDO DO<br />

HALL COM DUAS CAMISAS DE FORÇA. PRENTICE CORRE<br />

PARA O JARDIM. COM O VESTIDO DA MULHER. SRA.<br />

PRENTICE ESTÁ SENTADA ENTRE AS FLORES DERPANADAS,<br />

O CABELO DESPENTIADO, USANDO APENAS SUA ROUPA DE<br />

BAIXO.<br />

RANCE - Houve uma tentativa de destruição dessas flores?<br />

SRA. PRENTICE - Elas cairam na luta.<br />

RANCE - A senhora conhece a legoria floral? A rosa é frequentemente o<br />

código para a mulher. Ele tencionava fazer mal à senhora.<br />

SRA. PRENTICE - Eu sei. Ele me espancou até eu perder os sentidos,<br />

quase .<br />

RANCE - Ora, isso foi um mero ato físico sem qualquer significação<br />

psicológica especial. Temos de confinar o Dr. Prentice imediatamente. E<br />

precisamos de ajuda. A senhora não tem nenhum jovem musculoso para o<br />

qual apelar em momentos de necessidade?<br />

SRA. PRENTICE - Eu sou uma mulher casada, doutor. Sua sugestão é de<br />

pior gosto.<br />

NICK (ENTRANDO DO JARDIM, COM O UNIFORME DO<br />

SARGENTO) - Eu gostaria de ter uma palavra com o senhor, doutor, a<br />

respeito de meu irmão Nicholas Beckett. Eu acabo de prendê-lo.<br />

RANCE - Essa comovente demonstração de amor fraterno está em plena<br />

sintonia com o espírito de nossa época. Por que o prendeu?<br />

NICK - Ele infringiu a lei.<br />

RANCE - E só por isso deve ser tratado como um criminoso? Que fim<br />

levou o espírito esportivo ing inglês? Onde está seu irmão agora?<br />

NICK - Na cadeia.<br />

56


RANCE (À SRA. PRENTICE) - Ao menos o seu sono não será pertubado<br />

esta noite.<br />

SRA. PRENTICE - A vida só nos traz desapontamentos.<br />

RANCE (A NICK) - Onde está o sargento Match?<br />

NICK - Fazendo companhia ao meu irmão.<br />

RANCE - Ele foi indiciado?<br />

NICK - Ele não cometeu nenhum crime.<br />

RANCE (À SRA. PRENTICE) - Quando a punição para a culpa e a<br />

inocência se tornam idênticas, cometer um crime torna-se o triunfo da<br />

lógica. (A NICK) - O Dr. Prentice estava no jardim?<br />

NICK - Não.<br />

RANCE - O senhor talvez tivesse dificuldade em reconhece-lo. É provável<br />

que estivesse vestido de mulher.<br />

SRA. PRENTICE - Ele matou a secretária.<br />

NICK (HORORISADO) - Não é possível. Ele foi condecorado no ano<br />

passado.<br />

RANCE - Aquelas letrinhas to<strong>das</strong> depois de nome tem tanta capacidade de<br />

evitar o mal quanto as luas e estrelas dos chapéus dos mágicos. Nós vamos<br />

precisar da sua colaboração na perseguição do irresponsável assassino de<br />

Geraldine Barclay.<br />

NICK OLHA DE OLHOS ESBUGALHADOS PARA O DR. RANCE.<br />

NICK (GEMENDO) - Doutor, meu sentimento de culpa está me<br />

sufocando, tenho de lhe fazer uma confissão.<br />

RANCE - Faça o favor de marcar hora. Eu não ouço confisões assim, sem<br />

mais aquela.<br />

NICK - Eu sou Nicholas Beckett. Não tenho o menor direito de usar este<br />

uniforme. (TIRA O CAPACETE) - Eu vesti porque o doutor pediu, mas eu<br />

não tinha a menor idéia de que estava auxiliando um psicopata.<br />

RANCE - O senhor não tem irmão? E o sargento Match não está sob<br />

custódia?<br />

57


NICK - Não. Eu sou um boy que trabalha no Hotel da Estação. Conheci o<br />

Dr. Prentice inteiramente por acaso. Gostei dele de estalo. Após uma breve<br />

conversa durante a qual discutimos questões sexuais de modo aberto e<br />

desabrido, ele me perguntou se eu me importava de me vestir de mulher. Eu<br />

concordei em servi-lo porque já fui informado de que ser travesti não é mais<br />

considerado como um vício debilitante. O doutor me apresentou a seus<br />

colegas como “senhorita Barclay”. Eu deveria receber determinada soma<br />

em dinheiro. (À SRA. PRENTICE) - É por isso que fiz objeções a ser<br />

despido. Teria sido muito embaraçoso.<br />

SRA. PRENTICE (A RANCE) - O senhor compreende o que isto<br />

significa?<br />

RANCE- Claro. A sta. Barclay está desaparecida desde hoje de manhã. (A<br />

NICK) - Quando o Dr. Prentice lhe pediu para fingir de mulher ele deu<br />

alguma razão para o pedido?<br />

NICK - Não.<br />

RANCE - Você já colaborou com outros homens em suas loucuras<br />

perverti<strong>das</strong>?<br />

NICK - No meu último semestre na escola eu era escravo de um cabo dos<br />

Fusileiros Galeses.<br />

RANCE - Ninguém nunca o esclareceu a respeito dos perigos inerentes a<br />

esse tipo de relação?<br />

NICK - Quando ele foi transferido para o estrangeiro ele me deu um livro<br />

chamado “A chave da Masculinidade Saudável”.<br />

RANCE (SECO, À SRA. PRENTICE) - Um caso típico de se fechar a<br />

porteira depois do gado já ter entrado. (A NICK) - Sua vida, ao que vejo, se<br />

tem passado nas cama<strong>das</strong> mais brutais e irresponsáveis da sociedade. É<br />

melhor você me deixar corrigir os seus erros.<br />

NICK - Corrigir como, doutor? O senhor há de compreender que depois <strong>das</strong><br />

minhas experiências mais recentes eu me tornei muito desconfiado.<br />

58


RANCE - Você verá que as exigências da medicina são bem mais suaves<br />

que as de algumas outras armas. (PEGA UMA CAMISA DE FORÇA) -<br />

Isto é uma camisa de força. Vou pedir-lhe que me ajude a persuadir o Dr.<br />

Prentice a vesti-la. Talvez haja violência. O corpo dele tem personalidade<br />

própria. (À SRA. PRENTICE) - A senhora tem um revolver?<br />

SRA. PRENTICE ABRE UMA GAVETA E TIRA DOIS<br />

REVOLVERES.<br />

SRA. PRENTICE (DANDO UM A RANCE) - Faça o favor de não atirar<br />

se o meu marido sacudir seu raminho de oliveira...<br />

RANCE - Um ramo de oliveira pode ser usado como arma de ataque. Se<br />

houver qualquer dificuldade ele será desintegrado no local.<br />

NICK (A RANCE) - O senhor vai usar fumigação para arranca-lo de seu<br />

esconderijo, doutor?<br />

RANCE - Vou. Deveríamos usar batedores, mas com transporte, casa e<br />

comida, risco de vida, e horas extras, ia ficar muito caro. (VAI À PORTA<br />

DO JARDIM. SACUDINDO A<br />

CABEÇA) - Não gosto de presenciar a loucura de um companheiro de<br />

profissão. Cria um profundo mal-estar no mundo da psiquiatria. (VAI<br />

PARA O JARDIM)<br />

SRA. PRENTICE (A NICK) - Não se arrisque. Peça socorro assim que vir<br />

o Dr. Prentice. (SAI PARA O HALL, BRANDINDO O REVOLVER) -<br />

Procure não quebrar nem os braços nem as pernas dele. Fica muito difícil<br />

vestir a camisa de força.<br />

ELA SAI PARA HALL. NICK ABRE A CAMISA DE FORÇA.<br />

PRENTICE ENTRA DA ENFERMARIA CARREGANDO O<br />

VESTIDO QUE TIROU DA MULHER. PARECE ARRAZADO.<br />

PRENTICE - A sta. Barclay caiu da janela da cela de isolamento. Quando<br />

eu lhe pedi que se despisse, teve um acesso histérico.<br />

NICK ACENA A CABEÇA, COMPREENSIVO. CRUZA ATÉ<br />

PRENTICE E O TOMA COM FIRMEZA PELO OMBRO.<br />

59


NICK - Vamos, doutor. Eu quero que o senhor vista isto. (MOSTRA A<br />

CAMISA)<br />

PRENTICE (MAL OUVE) - Preciso da sua colaboração para botar as<br />

coisas de volta ao normal nesta casa.<br />

NICK (CALMAMENTE) - Pode contar comigo, doutor.<br />

PRENTICE - Já me ajudaria bastante se você tirasse a roupa.<br />

NICK (PAUSA) - Se eu tirar, doutor, o senhor veste isto? (MOSTRA A<br />

CAMISA DE FORÇA A PRENTICE)<br />

PRENTICE (COM RAIVA, PERDENDO A PACIÊNCIA) - Claro que<br />

não. Isto é uma camisa de força. Eu não tomo parte em brincadeiras de<br />

anormais. Pelo visto a vida que leva no Hotel da Estação não deixa que se<br />

lembre mais o que é decência! Agora trate de tirar a roupa.<br />

MATCH (USANDO VESTIDO DE LEOPARDO, APARECE NA<br />

PORTA DO JARDIM. CAMBALEANDO, TONTO)- Estou pronto para<br />

o exame quando o senhor quizer, doutor.<br />

ELE VAI AOS TRAMBOLHÕES PARA A FARMÁCIA,<br />

AGARRANDO-SE AOS MÓVEIS, O ROSTO PÁLIDO, OS OLHOS<br />

ESGAZEADOS. GERALDINE, COM UNIFORME DE NICK, ENTRA<br />

DO JARDIM, AOS TRAMBOLHÕES, SEU ROSTO ESTÁ<br />

MACHUCADO E SUJO DE TERRA. ESTÁ BRANCA DE CHOQUE.<br />

GERALDINE - Estão nos procurando por toda parte, doutor. Com<br />

revólveres! O que é que nós vamos fazer?<br />

PRENTICE - A senhora não tem um minuto a perder. Dispa-se. (ELE A<br />

AGARRA E TENTA DESABOTOAR O UNIFORME).<br />

GERALDINE (EM PRANTOS, BATENDO NELE PARA AFASTA-<br />

LO) - O senhor está se comportando como um tarado.<br />

NICK - Ele é um tarado. Ele assassinou uma mulher e escondeu o corpo<br />

não sei aonde.<br />

60


PRENTICE - Quem inventou essas calúnias infames?<br />

NICK - O Dr. Rance vai atestar sua loucura. (SACUDINDO A CAMISA<br />

DE FORÇA) - Eu tenho de mete-lo nisto aqui.<br />

ELE SALTA SOBRE PRENTICE E TENTA METE-LO NA CAMISA<br />

DE FORÇA. PRENTICE PUXA PARA BAIXO AS CALÇAS DE<br />

GERALDINE. ELA BATE NELE, CHORANDO<br />

PROFUNDAMENTE. ELA LEVANTA AS CALÇAS. O SARGENTO<br />

ENTRA TONTO, DA FARMÁCIA, TROPEÇANDO PELA SALA,<br />

ABAIRROANDO E DERRUBANDO A MOBÍLIA.<br />

MATCH - Estou pronto, doutor. Quando quizer!<br />

SAI CANBALEANDO PARA A ENFERMARIA, PRENTICE LIVRA-<br />

SE DE NICK, AOS SAFANÕES.<br />

PRENTICE (A GERALDINE) - Dê as roupas que está usando a esse<br />

rapaz. (LEVANTA O VESTIDO) - E vista isto. -(A NICK) - Entregue o<br />

uniforme de volta ao sargento. Quando ele passar aqui de novo nós<br />

confiscamos o vestido de minha mulher e nossos problemas ficam todos<br />

resolvidos.<br />

NICK TIRA O UNIFORME. GERALDINE ABAIXA AS CALÇAS.<br />

OUVE-SE UM TIRO NA ENFERMARIA. O SARGENTO ENTRA.<br />

CORRE SANGUE DE SUA PERNA.<br />

MATCH - Eu estava no banheiro, doutor, quando apareceu um homem e<br />

me deu um tiro com um revolver. Gostaria de ter a sua opinião a respeito da<br />

extensão do dano.<br />

ELE CAMBALEIA PARA A ENFERMARIA, OUVE-SE UM RUIDO<br />

DE QUEDA. NICK ESTÁ SÓ DE CUECAS. SRA. PRENTICE ENTRA<br />

DO HALL. NICK ESCONDE-SE ATRÁS DA ESCRIVANINHA,<br />

GERALDINE ESTÁ OCULTA PELA CAMA DE EXAME. SRA.<br />

PRENTICE AVANÇA SOBRE PRENTICE.<br />

61


SRA. PRENTICE (BRANDINDO O REVOLVER) - Venha comigo e<br />

deite-se.<br />

PRENTICE - Mas essa mulher é insaciável.<br />

SRA. PRENTICE - Ou você faz amor comigo ou eu atiro.<br />

PRENTICE - Não há marido que dê a mulher de si servindo de alvo.<br />

PRENTICE VAI RECUANDO. SRA. PRENTICE ATIRA.<br />

PRENTICE SALTA PARA UM LADO E CORRE PARA O JARDIM.<br />

SRA. PRENTICE O SEGUE E TORNA A ATIRAR. SARGENTO<br />

ENTRA CORRENDO DA FARMÁCIA, ATERRORIZADO. AO VÊ-<br />

LO SRA. PRENTICE GRITA. SARGENTO DÁ UM URRO DE<br />

SUSTO E CORRE PARA O HALL. NICK CORRE DE DETRÁS DA<br />

ESCRIVANINHA PARA O HALL. SRA. PRENTICE DÁ UM<br />

GRITINHO DE SURPRESA. GERALDINE, COM TÚNICA DO<br />

UNIFORME DE NICK POREM SEM AS CALÇAS, CORRE PARA A<br />

FARMÁCIA. SRA. PRENTICE CORRE PARA A PORTA DA<br />

ENFERMARIA. QUANDO CHEGA NA PORTA OUVE-SE UM TIRO<br />

E NICK TORNA A ENTRAR, GEMENDO E AGARRANDO O<br />

OMBRO. GRITANDO O DE HORROR A SRA. PRENTICE ATIRA<br />

COMO LOUCA EM NICK, QUE DÁ UM GEMIDO DE DOR E<br />

CORRE PARA O JARDIM. RANCE ENTRA DA ENFERMARIA<br />

SEGURANDO UM REVOLVER FUMEGANTE. SRA. PRENTICE<br />

ATIRA-SE SOBRE ELE.<br />

SRA. PRENTICE - Doutor! Doutor! Todos os homens do mundo estão nús<br />

correndo de um lado para outro.<br />

RANCE AGARRA O BRAÇO DELA.<br />

RANCE - Onde é que a senhora guarda os seus tranquilizantes?<br />

SRA. PRENTICE CORRE PARA A FARMÁCIA. UM GRITO E UMA<br />

COLISÃO SÃO OUVIDOS E GERALDINE APARECE CORRENDO.<br />

TIROU O UNIFORME E ESTÁ SÓ DE SUTIEN E CALCINHAS.<br />

62


RANCE (RELINCHE DE SATISFAÇÃO) - Finalmente pegamos a<br />

paciente.<br />

APONTA O REVOLVER PARA GERALDINE. A SRA. PRENTICE<br />

ENTRA CORRENDO DA FARMÁCIA COM A CAMISA DE FORÇA<br />

E A ATIRA SOBRE GERALDINE.<br />

GERALDINE - Eu não sou paciente. Estou dizendo a verdade.<br />

RANCE - Agora é tarde demais para a verdade. (OS DOIS ARRASTAM<br />

A MOÇA QUE CHORA, PARA A CAMA DE EXAMES, E A<br />

AMARRA NA CAMISA DE FORÇA).<br />

RANCE - (ENQUANTO A SRA. PRENTICE ACABA DE AMARRA-<br />

LA) Estas últimas e aterrorizantes cenas serão amplamente ilustra<strong>das</strong> com<br />

gráficos demonstrando os efeitos da perdição sobre essa pobre mente<br />

torturada. E nosso meio tempo, em seu templo de amor, o o hediondo Dr.<br />

Prentice e seus acólitos estão orando a seus ídolos falsos, sem saber que as<br />

forças da razão já os alcançaram. (SRA. PRENTICE RECUA). - Traga<br />

uma seringa. (SRA. PRENTICE VAI PARA A FARMÁCIA)<br />

GERALDINE (ATADA, SEM PODER SE MOVER) - O que é que eu fiz<br />

para merecer isto? Eu sempre levei uma vida tão respeitável.<br />

RANCE - Sua mente entrou em decomposição. É uma experiência preciosa<br />

para sua tentativa de adaptação à vida no século XX. Por que é que você<br />

convenceu seu pai de matar Geraldino Barclay?<br />

GERALDINE - Eu sou Geraldine Barclay.<br />

RANCE - Ah, você pensa que é uma secretária. Na verdade você é a<br />

principal protagonista dos casos mais notáveis e sinistros da história<br />

contemporânea. Ainda não nos foi possível avaliar a medida em que você<br />

influenciou o seu patrão e contribuiu para o seu calapso.<br />

GERALDINE (EM PRANTOS) - Isto é horrível. É horrível.<br />

RANCE - Ainda bem que você está tomando uma atitude mais responsável.<br />

É muito encorajador. Onde está o corpo?<br />

63


GERALDINE - Não sei.<br />

RANCE - Não pode revelar um segredo de confissão? Em que repugnantes<br />

ritos obscuros você foi iniciada por aquele objeto sacerdote do<br />

desconhecido? (GERALDINE SOLUÇA, INCAPAZ DE FALAR.<br />

RANCE REPENTINAMENTE ATIRA-SE SOBRE ELA E TOMA-A<br />

NOS BRAÇOS) - Deixe que eu cure a sua neorose. É o meu único desejo<br />

na vida.<br />

SRA. PRENTICE ENTRA DA FARMÁCIA COM A SERINGA<br />

NUMA BANDEJA DE RIM.<br />

SRA. PRENTICE - O que significa esse espetáculo?<br />

RANCE (AFASTANDO-SE DE GERALDINE) É um tipo novo, ainda<br />

não testado, de terapeutica. Creio que é viável, nas circunstâncias.<br />

SRA. PRENTICE - Esse tratamento tem mais probabilidades de afundar a<br />

paciente na loucura total do que de curar quem quer que seja.<br />

RANCE (VOLTANDO-SE PARA ELA COM DIGNIDADE GÉLIDA) -<br />

Ninguém com um sub-consciente tão conturbado quanto o seu pode<br />

compreender meus métodos.<br />

SRA. PRENTICE - O que é que o senhor quer dizer com isso?<br />

RANCE - Estou falando dessas aparações do penis que a senhora encontra<br />

com frequência cada vez maior.<br />

SRA. PRENTICE - Mas o senhor também viu.<br />

RANCE - E daí? Isso só prova que a senhora me contagiou com sua deonça<br />

desgraçada. (TOMA-LHE A SERINGA)<br />

SRA. PRENTICE - Quer que eu desinfete o braço da paciente?<br />

RANCE - E a senhora está pensando que eu vou desperdiçar isto aqui com<br />

ela? (ENTREGA SUA PRÓPRIA MANGA) - Com a grama a mais de<br />

64


cinco libras, seria um crime. (INJETA-SE A SI MESMO) - Vá chamar a<br />

polícia.<br />

SRA. PRENTICE VAI PARA O HALL. RANCE POUSA A SERINGA.<br />

SRA. PRENTICE VOLTA, COM OLHAR ESGAZEADO, AS MÃOS<br />

MANCHADAS DE SANGUE.<br />

SRA. PRENTICE - Há um polícia lá fora. Está nú e coberto de sangue.<br />

RANCE - Os limites da decência já foram ultrapassados há muito tempo<br />

nesta casa. (ELE A ESBOFETEIA) -O seu subconsciente não pode ser<br />

encorajado em suas tramóias.<br />

SRA. PRENTICE (DESESPERADA, DESTRANDO AS MÃOS) - Este<br />

sangue é de verdade?<br />

RANCE - Não.<br />

SRA. PRENTICE - Mas o senhor está vendo?<br />

RANCE - Estou.<br />

SRA. PRENTICE - Então qual é a explicação?<br />

RANCE - Eu sou um cientista. Eu anuncio os fatos, não se pode esperar que<br />

forneça explicações. Rejeito todos os fenômenos para normais. É a única<br />

maneira de se permanecer lúcido.<br />

SRA. PRENTICE - Mas parece verdade.<br />

RANCE - E quem lhe dá o direito de decidir o que é a verdade? Fique onde<br />

está. Eu chamo a polícia.<br />

ELE VAI PARA O HALL. SRA. PRENTICE SE SERVE DE<br />

WHISKY. NICK APARECE NA PORTA DO JARDIM, PÁLIDO,<br />

CAMBALEANDO, SEGURANDO FERIDA NO OMBRO<br />

SANGRANDO. O SANGUE JORRA ENTRE SEUS DEDOS.<br />

65


NICK (ANGUSTIADO, DESMAIANDO) - Está doendo muito. Atiraram<br />

em mim. Chamem um médico.<br />

SRA. PRENTICE (DEIXANDO CAIR O COPO, ESCONDENDO O<br />

ROSTO NAS MÃOS) Eu estou ficando louca. (COMEÇA A SOLUÇAR)<br />

GERALDINE (CHAMANDO NICK) - Socorro! Eu não aguento mais.<br />

Por favor me desamarre.<br />

NICK - Por que é que você foi amarrada?<br />

GERALDINE - Foi o Dr. Rance. Ele diz que eu estou louca.<br />

NICK - Ele é psiquiatra. Deve saber. Ele não ia te meter numa camisa de<br />

força se não estivesse louca. Só se fosse <strong>louco</strong>.<br />

GERALDINE - Ele é <strong>louco</strong>.<br />

NICK SE APOIA NA ESCRIVANINHA OBSERVANDO A<br />

SOLUÇANTE SRA. PRENTICE.<br />

NICK ( A GERALDINE) - Ela está louca?<br />

GERALDINE - Ela acha que sim. Ela acha que você é produto da<br />

imaginação.<br />

NICK (À SRA. PRENTICE, APONTANDO PARA GERALDINE) - Ela<br />

está me vendo. Isto não prova que eu existo?<br />

SRA. PRENTICE - Não. Ela está maluca.<br />

NICK - Se a senhora acha que eu sou imaginação de seu subconsciente,<br />

deve está maluca.<br />

SRA. PRENTICE (NUM GUINCHO HISTÉRICO) - Eu estou maluca.<br />

GERALDINE DESMANCHA-SE EM LÁGRIMAS. NICK<br />

DESBRUÇA-SE SOBRE A ESCRIVANINHA, O SANGUE<br />

66


JORRANDO DE SEU FERIMENTO. PRENTICE ENTRA<br />

CORRENDO, DO JARDIM.<br />

PRENTICE - Minha mulher atirou em mim. Ela pensa que eu estou <strong>louco</strong>.<br />

NICK - O senhor está <strong>louco</strong>. Tive ordens de metê-lo numa camisa de força.<br />

ELE APANHA O REVOLVER DA SRA. PRENTICE NA<br />

ESCRIVANINHA, LEVANTA A CAMISA DE FORÇA E AVANÇA<br />

PARA PRENTICE. SRA. PRENTICE COBRE O ROSTO COM AS<br />

MÃOS. RANCE ENTRA CORRENDO DO HALL, TRAZENDO<br />

OUTRA CAMISA DE FORÇA. ATIRA-A SOBRE SRA. PRENTICE.<br />

DESABAM NO CHÃO LUTANDO E GRITANDO.<br />

PRENTICE (À NICK) - Largue esse revolver. (A RANCE) Deve-se<br />

permitir ao marido enfiar a mulher num camisa de força. É um dos poucos<br />

prazeres que restam ao casamento moderno.<br />

ELE SE MOVE. NICK OFERECE-LHE A CAMISA DE FORÇA<br />

COM UMA DAS MÃOS E SACODE O REVOLVER COM A OUTRA.<br />

PRENTICE - É preciso cuidar desse ferimento. Você tem um lenço?<br />

NICK - Não.<br />

PRENTICE - Use o meu.<br />

ELE TIRA O LENÇO DO BOLSO. ESTÁ CHEIO DE CABOS DE<br />

ROSAS. ELE ATIRA NO ROSTO DE NICK, QUE É APANHADO DE<br />

SURPRESA. PRENTICE ATIRA-SE SOBRE ELE. ELES SE<br />

JUNTAM A RANCE E A SRA. PRENTICE NUMA PILHA DE<br />

GENTE LUTANDO E GRUNINDO NO CHÃO, OBSERVADOS<br />

PELA LACRIMOSA GERALDINE QUE ESTÁ NA CAMA DE<br />

EXAMES. PRENTICE ARRANCA O REVOLVER DE NICK E FICA<br />

DE PÉ. RANCE LEVANTA APÓS TER AMARRADO A SRA.<br />

PRENTICE NA CAMISA DE FORÇA.<br />

67


PRENTICE (BRANDNDO O REVOLVER) - Fique onde está, doutor.<br />

Seu comportamento hoje é um exemplo de irresponsabilidade oficial e de<br />

sanguinolência. Vou declara-lo <strong>louco</strong>.<br />

RANCE (QUIETO, COM DIGNIDADE) - Não, eu é que vou declara-lo<br />

<strong>louco</strong>.<br />

PRENTICE - Eu é que estou armado. Pode escolher. Como é que é?<br />

Loucura ou morte?<br />

RANCE - Nenhuma <strong>das</strong> duas alternativas lhe permitiria continuar a serviço<br />

do Governo de sua Magestade.<br />

PRENTICE - Não é verdade. Os mais altos escalões de serviço público são<br />

inteiramente constituidos por <strong>louco</strong>s e defuntos. Sôa o alarme.<br />

RANCE VAI ATÉ A PAREDE ACIONAR O ALARME. A SIRENE<br />

GUINCHA. GRADES DE TÁLICAS CAEM SOBRE TODAS AS<br />

PORTAS. A SALA SÓ FICA ILUMINADA PELOS REFLEXOS DE<br />

UM POR DE SOL SANGRENTO, BRILHANDO ATRAVÉS DAS<br />

ÁRVORES DO JARDIM.<br />

PRENTICE - O circuito foi sobrecarregado. Caimos numa armadilha.<br />

RANCE (SECO) - Eu só espero que as medi<strong>das</strong> de segurança para as<br />

enfermarias sejam tão eficientes quanto as do consultório. Nós podemos<br />

morrer de inanição trancados aqui.<br />

PRENTICE - Um tributo perfeito à eficiência de nosso alarme de<br />

emergência.<br />

RANCE - Já que nenhum de nós pode fugir, sua arma é inútil. Largue-a<br />

PRENTICE POUSA O REVOLVER. RANCE PUXA O SEU E O<br />

APONTA PARA O ATÔNITO PRENTICE.<br />

RANCE (MANTENDO PRENTICE À DISTÂNCIA COM UM<br />

REVÓLVER E APANHANDO O OUTRO) - Num minuto o veremos<br />

numa camisa de força. Foi um golpe.<br />

68


PRENTICE - Isto é um novo recorde para o senhor?<br />

RANCE (PONDO NO BOLSO O REVOLVER DE PRENTICE) - De<br />

modo algum. Certa vez enfiei uma família inteira numa camisa de força<br />

comunitária.<br />

PRENTICE - Sua mãe deve ter ficado orgulhosíssima.<br />

RANCE - Receio que não. Acontece que era a minha própria família. Eu<br />

tenho um retrato da cena lá em casa. Com meu pé bem em cima da cabeça<br />

do meu pai. Mandei uma cópia para Sigmund Freud e ele me mandou um<br />

cartãozinho muito amável.<br />

NICK ARRASTA-SE QUASE DESMAIANDO PARA UMA<br />

CADEIRA.<br />

NICK - E eu, doutor? Eu não sou <strong>louco</strong>.<br />

RANCE (COM UM SORRISO) - Você não é humano.<br />

NICK - Eu não posso ser uma alucinação. (MOSTRA O OMBRO<br />

SANGRANDO). - Veja esta ferida. É de verdade.<br />

RANCE - Parece.<br />

NICK - Se a dor é real eu também devo ser.<br />

RANCE - Eu não gosto de me envolver em especulações metafísicas.<br />

PRENTICE - Este rapaz é o boy do Hotel da Estação. Ele desrespeitou<br />

minha mulher. E não tinha nada de alucinação naquele momento.<br />

RANCE - Sua mulher é vítima de um distúrbio nervoso que a leva a<br />

imaginar que está sendo perseguida por figuras masculinas despi<strong>das</strong>. Esse<br />

rapaz é uma delas. Se foi ele quem a atacou podemos deduzir que o ataque<br />

foi produto imaginário de sua mente doentia.<br />

PRENTICE - Mas o sargento quer prender o rapaz.<br />

69


RANCE - É possível que o sargento também não exista. Segundo sua<br />

esposa ele lhe apareceu despido. Pode ser que se trate de algum espírito a<br />

serviço da Scotland Yard. Ele confessou que seu irmão não passava de um<br />

produto de sua imaginação, o que confirma a minha lei de que os aparentes<br />

de aparições também são aparições. (COM VOZ FIRME) - O que é que o<br />

senhor fez com Geraldine Barclay?<br />

GERALDINE (FRACAMENTE) - Eu estou aqui.<br />

PRENTICE (SERVE-SE. À ESCRIVANINHA, DE UM WHISKY<br />

DUPLO. A RANCE) - A história que o senhor está a ponto de ouvir só<br />

trata do coração, a mente e seus mistérios não podiam estar mais longe de<br />

meus pensamentos do que quando, hoje de manhã cedo, eu persuadi aquela<br />

moça a tirar sua roupa. (BEBE).<br />

GERALDINE (A RANCE) - A sra. Prentice pensou que o meu vestido era<br />

dela, e, num momento de descuido, o senhor pensou que eu era uma<br />

paciente. O dr. Prentice pediu-me que ficasse quieta para proteger seu bom<br />

nome. O que é que eu podia fazer? Estava morrendo de medo de um<br />

escândalo.<br />

RANCE - A senhorita estava nua naquele momento?<br />

GERALDINE - Estava. Sob pressão eu concordei em anxiliar o doutor.<br />

Desde então não canso de me arrepender. Eu passei o dia inteiro numa luta<br />

inglória para manter a minha respeitabilidade.<br />

RANCE MORDE O LÁBIO E VOLTA-SE ABRUPTAMENTE PARA<br />

PRENTICE.<br />

RANCE - Solte-a. E sua mulher também. (ENQUANTO PRENTICE O<br />

FAZ ELE OLHA EM VOLTA, PERPLEXO). Eu estava pronto a arriscar<br />

minha reputação no fato desta moça ter sido vítima de uma agressão<br />

incestuosa. Não abro mão desse diagnóstico. Meus editores me<br />

processariam por cessação de lucros nos direitos autorais.<br />

GERALDINE (DESCENDO DA CAMA) - Tenho certeza de que a minha<br />

velocidade na máquina foi afetada por tudo o que eu passei hoje.<br />

70


(CHOROSA PARA PRENTICE) - E também quero dar parte do<br />

desaparecimento de meu elefante de boa sorte.<br />

RANCE (TIRANDO BROCHE DO BOLSO) - É esta a jóia a que se<br />

refere?<br />

GERALDINE - É. Tem grande valor estimativo.<br />

RANCE ENTREGA-A A ELA. NICK PEGA AS CALÇAS DE SEU<br />

UNIFORME.<br />

NICK - Eu tenho um broche igual a esse. (MOSTRA A GERALDINE)<br />

Viu? É um par.<br />

SRA. PRENTICE, JÁ LIVRE DA CAMISA DE FORÇA, DÁ UM<br />

GRITO DE SURPRESA.<br />

SRA. PRENTICE -Deixem eu ver essas jóias. (OS DOIS BROCHES<br />

LHE SÃO MOSTRADOS) - Pode-se fazer um único broche com esses<br />

dois pedaços. (ELA OS ENGATA) Ai! Meu coração bate como um <strong>louco</strong>.<br />

RANCE (EXAMINANDO O BROCHE) - Dois elefantes carregando um<br />

palanquim ricamente trabalhado no qual estão sentados um rapaz e um linda<br />

moça - talvez uma princesa de sangue real. Trata-se de um magnífico<br />

exemplo de ouriversaria oriental. (À SRA. PRENTICE) - Como é que a<br />

senhora sabia que se tratava de uma única jóia?<br />

SRA. PRENTICE - Outrora ela me pertenceu. Há muitos anos, quando eu<br />

era jovem, fui estuprada na rouparia do segundo andar do Hotel da Estação.<br />

Quando o homem saiu deixou-me esse broche nas mãos à guisa do<br />

pagamento.<br />

RANCE - E como é que essas crianças ficaram na posse <strong>das</strong> duas metades?<br />

SRA. PRENTICE - Eu paguei por meu mau passo concebendo gêmeos.<br />

Não me era possível guarda-los comigo - a essa altura eu estava noiva de<br />

um jovem psiquiatra de futuro. Resolvi abandoná-los à própria sorte. Abri o<br />

broche em dois e prendi metade em cada um dos bebês. E depois depositei<br />

cada um deles num extremo da pequena aldeia na qual residia então.<br />

71


Pessoas bondosas devem tê-las criado como seus. (CHORANDO,<br />

ABRAÇANDO NICK E GERALDINE). Crianças. Eu sou sua mãe. Será<br />

que vocês podem me perdoar pelo que fiz?<br />

NICK - Que espécie de mãe você devia ser, para se hospedar sozinha no<br />

Hotel da Estação.<br />

SRA. PRENTICE - Eu trabalhava como camareira. Fou uma espécie de<br />

brincadeira, logo depois da guerra. As consequências do Governo<br />

Trabalhista sobre a classe média beiraram o grotesco.<br />

GERALDINE - Nosso pai também trabalhava no Hotel da Estação?<br />

SRA. PRENTICE - Eu nunca vi seu pai. O incidente ocorreu durante um<br />

corte de energia elétrica. Eu engravidei enquanto esperava que o<br />

fornecimento fosse restabelecido.<br />

PRENTICE, LÍVIDO DE CHOQUE, ADIANTA-SE.<br />

PRENTICE (FRACO, A RANCE) - O senhor encotrará uma inscrição na<br />

parte posterior do broche, doutor... (RANCE VIRA O BROCHE) - “De<br />

Lílian para Avis. Natal de 1939”. Eu encontrei esse broche há muitos anos.<br />

Estava na calçada em frente a um grande magazin.<br />

RANCE - Quem eram Lílian e Avis?<br />

PRENTICE - Não tenho a menor idéia. Ele caiu da coleira de um pequinês.<br />

É possível que Lílian e Avis fossem os donos do animalzinho. (ELE OLHA<br />

EM TORNO TOCADO DE VERGONHA). Não o vejo desde que enfiei<br />

na mão de uma camareira que eu violei pouco antes do meu casamento.<br />

SRA. PRENTICE (NUM GRITO DE RECONHECIMENTO) - Agora é<br />

que compreendo por que razão você quiz que nós passássemos nossa noite<br />

de núpcias numa rouparia.<br />

PRENTICE - Eu desejava reviver um momento que me era precioso. Se<br />

você tivesse cedido aos meus desejos, nosso casamento não teria fracassado.<br />

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SRA. PRENTICE - De hoje em diante nós só faremos amor em rouparias.<br />

É o mínimo que eu posso fazer depois de todos os anos de sofrimento que te<br />

causei.<br />

PRENTICE A ABRAÇA E TAMBÉM A NICK E GERALDINE.<br />

RANCE (A PRENTICE, DELIRANTE DE PRAZER) Se você é pai<br />

desta criança, meu livro pode ser escrito de boa fé - ela foi vítima de uma<br />

agressão encestuosa.<br />

SRA. PRENTICE - E eu também, doutor. Meu filho tem uma coleção de<br />

fotografias obscenas que provas sem sombra de dúvida que ele tomou<br />

liberdades comigo no mesmo hotel - na verdade na mesma rouparia na qual<br />

foi concebido.<br />

RANCE - Ah, que alegria essas revelações me trazem. (ABRAÇANDO A<br />

SRA. PRENTICE, GERALDINE E NICK) - Um incesto duplo deve<br />

vender ainda mais do que um assassinato - o que é muito certo porque o<br />

amor deve trazer maiores alegrias do que a violência.<br />

TODOS SE ABRAÇAM. A CLARABÓIA ABRE, UMA ESCADA DE<br />

CORDA É BAIXADA, E ENVOLTO NUMA GLORIOSA NÚVEM DE<br />

LUZ, O SARGENTO, COM O VESTIDO DE LEOPARDO RASGADO<br />

NO OMBRO, E PINGANDO SANGUE, DESCE)<br />

Estamos nos aproximando daquilo que todo romancista barato chama “o<br />

climax”.<br />

CHEGANDO AO CHÃO O SARGENTO OLHA EM TORNO,<br />

ATÔNITO)<br />

MATCH - Será que alguém poderá apresentar, ou fazer com que sejam<br />

apresenta<strong>das</strong>, as partes desapareci<strong>das</strong> de Sir Winston Churchill?<br />

RANCE - Nós não sabemos nada a esse respeito.<br />

MATCH - Estou pedindo a cooperação de todos numa questão de vital<br />

importância para o país. (ELE CAMBALEIA, MAS SE AGARRA NA<br />

73


ESCADA DE CORDA) - Quem foi a última pessoa a ver a sra. Barclay<br />

morta?<br />

GERALDINE - O agente funerário.<br />

MATCH - E ele não teve uma palavra de conforto para com a senhorita,<br />

como única descendente da mulher violada pelo heroi de 1940?<br />

GERALDINE - Ele me deu uma caixa.<br />

MATCH - O que havia nela?<br />

GERALDINE - Eu supuz que contivesse as roupas que minha madrasta<br />

estava usando no dia de sua morte. Ia doa-las a alguma pessoa necessitada.<br />

MATCH- Onde está a caixa?<br />

GERALDINE PEGA A CAIXA QUE TINHA NAS MÃOS QUANDO<br />

ENTROU NA SALA. A MESMA FICOU SOBRE A ESCRIVANINHA<br />

DESDE ENTÃO. O SARGENTO ABRE A CAIXA, OLHA E SEU<br />

CONTEÚDO, E DÁ UM SUSPIRO.<br />

MATCH - O Grande Homem pode agora tomar de novo seu lugar na<br />

praça como um exemplo para todos nós de espírito que triunfou na Batalha<br />

da Inglaterra.<br />

RANCE (OLHANDO NO INTERIOR DA CAIXA, COM<br />

ADMIRAÇÃO) - Como teria sido mais inspirador se, naqueles dias<br />

sombrios, nós pudessemos ter visto o que estamos vendo agora. Ao invés<br />

tínhamos de nos contentar com um charuto - o símbolo ficando muito<br />

aquém - como todos nós bem sabíamos - do objeto em si.<br />

GERALDINE (OLHANDO TAMBÉM DENTRO DA CAIXA) - Mas é<br />

um charuto.<br />

RANCE - Ah, as ilusões da juventude.<br />

O SARGENTO FECHA A CAIXA COM ESTRONDO E COLOCA-A<br />

DEBAIXO DO BRAÇO.<br />

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PRENTICE - Bem, sargento, nós fomos instrumento da descoberta de uma<br />

série de pequenos mas memoráveis pecadinhos, hoje. Acho que podemos<br />

contar com o senhor para mantê-los fora da imprensa, não podemos?<br />

MATCH - Claro, doutor.<br />

RANCE - Alegro-me que o senhor saiba respeitar as tradições. Vistamos<br />

nossas roupas e enfrentemos o mundo.<br />

ELES APANHAM SUAS ROUPAS E CANSADOS, SANGRANDO,<br />

NARCOTIZADOS, E BÊBADOS, SOBEM A ESCADA DE CORDA<br />

EM DIREÇÃO DA LUZ FLANENJANTE.<br />

FIM<br />

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