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Basta apurar os ouvidos. Percebe o choro dos anjos? Percebe o grito <strong>da</strong>s feras?<br />
Apure a visão! Veja o céu enegrecido, o campo coberto de sangue. Em breve,<br />
os corpos celestes estarão estraçalhados; os homens estarão famintos. E, se tudo<br />
falhar, se não houver oração suficiente, se não houver anjos o bastante, se sua<br />
fé particular não o tranqüilizar, é melhor que sua vi<strong>da</strong> acabe rapi<strong>da</strong>mente.<br />
Depois, na<strong>da</strong> mais além de sofrimento eterno e dor. Sem memória de amor.<br />
Sem memória de bom pala<strong>da</strong>r. Sem memória de perdão. Tudo estará podre e<br />
morto, e lhe restará apenas perambular e fazer matar. Não haverá luz, apenas<br />
trevas. Não haverá novos filhos, apenas as bestas. Suas lágrimas secarão e<br />
seus olhos queimarão. Seu desejo será a morte. Mas, brincalhona,<br />
estranhamente ela não lhe ouve e dá as costas. Você não conseguirá descansar.<br />
Suicídio não será mais possível. O astro-rei, a única maneira, parecerá tão<br />
dolori<strong>da</strong> e apavorante que, ao sinal <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de sua presença, sua mente<br />
o abandonará; suas pernas correrão, e seu corpo desesperado irá buscar abrigo<br />
para lançar-se novamente intacto à noite escura. Sua doce casa, seu doce lar,<br />
onde você procurará a morte, e a única morte que encontrará será borbulhando<br />
entre seus caninos, esvaindo-se do corpo de outrem. Agora, enquanto seu<br />
corpo é vivo, não chore, ore. Com fé ver<strong>da</strong>deira. Para seus sol<strong>da</strong>dos, seus<br />
defensores... os sol<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> luz são sua última defesa. Nas mãos deles está<br />
seu futuro. Ore do fundo do coração. Sua fé será ver<strong>da</strong>deira... a salvação.<br />
Boa fortuna é tudo que podemos desejar...<br />
Dez e seis <strong>da</strong> manhã. Os homens cercavam a capela. Ouviram barulhos<br />
semelhantes a passos, mas poderiam ser ratos, é ver<strong>da</strong>de. Os que estavam<br />
armados dirigiram-se para a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> construção. Os outros esperaram do<br />
lado de fora, embrenhados na mata. Jonas foi o primeiro a entrar. Empurrou a<br />
porta de madeira, que abriu sem oferecer resistência. Empunharam a<br />
espingar<strong>da</strong>, prontos para disparar. Já estavam dentro do salãozinho, onde o<br />
fedor de carniça dominava. O cômodo estava completamente escuro. O<br />
Gauchão dirigiu-se para um dos vitrais e quebrou-o com a coronha <strong>da</strong><br />
espingar<strong>da</strong>. Os homens não sabiam se o Gauchão estava fazendo aquilo para<br />
que entrasse luz ou para que o cheiro saísse. O cheiro não se foi, mas metade<br />
<strong>da</strong> sala emergiu <strong>da</strong> escuridão, e o restante ficou um pouco mais iluminado. O<br />
chão estava coberto por vegetação rasteira; não ouviam mais os estranhos<br />
ruídos. O cheiro de podridão parecia concentrar-se à frente do grupo, na<br />
direção do altar, onde havia uma imagem de Jesus crucificado completamente<br />
deforma<strong>da</strong> e coberta de bolor, de tamanho natural, obscureci<strong>da</strong> pelas sombras<br />
e, provavelmente, pelo tempo. "Imagens?" perguntou-se o Gauchão.<br />
No piso do altar, jazia um caixão trabalhado em madeira de lei, lindo. O<br />
cheiro de podridão aumentava à medi<strong>da</strong> que se aproximavam do objeto. Os<br />
homens entreolharam-se e chegaram mais perto. Certamente um cadáver em<br />
avançado estado de decomposição.