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amostra da obra - Tarja Editorial

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Copyright © 2012 by <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong><br />

Todos os direitos desta edição<br />

estão reservados à <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>;<br />

direitos de autoria dos contos<br />

pertencem a sua autora. Nenhuma<br />

parte deste livro poderá ser<br />

reproduzi<strong>da</strong> sem permissão formal,<br />

por escrito <strong>da</strong> editora, exceto para<br />

citações incorpora<strong>da</strong>s em críticas<br />

ou resenhas.<br />

EDITORES:<br />

REVISÃO:<br />

PROJETO GRÁFICO:<br />

ILUSTRAÇÃO DE CAPA:<br />

ILUSTRAÇÃO DE MIOLO:<br />

DIAGRAMAÇÃO:<br />

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NÃO PUBLICAÇÃO (CIF)<br />

Metanfetaedro/ Alliah -- São Paulo : <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>, 2012.<br />

ISBN 978-85-61541-51-4<br />

1. Contos brasileiros: Literatura brasileira: Coletâneas - I. Alliah.<br />

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:<br />

1. Contos : Antologia : Literatura brasileira<br />

869.9308<br />

LITERATURA FANTÁSTICA<br />

MUITO ALÉM DOS GÊNEROS<br />

[2012]<br />

Noster Anno, Fictio Iuris<br />

TARJA EDITORIAL LTDA.<br />

Rua Silvio Rodini, 399/34<br />

Para<strong>da</strong> Inglesa - São Paulo<br />

CEP 02241-000 / SP<br />

editora@tarjaeditorial.com.br<br />

Twitter: @tarjaeditorial<br />

www.facebook.com/tarjaeditorial<br />

www.tarjalivros.com.br<br />

www.tarjaeditorial.com.br<br />

Gianpaolo Celli<br />

Richard Diegues<br />

Cristina Lasaitis<br />

Richard Diegues<br />

Aaron Rutten<br />

Alliah<br />

Richard Diegues<br />

1ª edição na primavera de 2012<br />

Impresso no Brasil<br />

CDD-869.9308<br />

To<strong>da</strong>s as citações e nomes incidentes neste<br />

livro são fruto do inconsciente de sua<br />

autora, devendo ser encarados como não<br />

intencionais. Ain<strong>da</strong> assim, caso sinta-se<br />

ofendido com algo nestas páginas, basta<br />

fechar a <strong>obra</strong>. To<strong>da</strong>via, se resolver insistir,<br />

compreen<strong>da</strong> que coincidências realmente<br />

ocorrem. To<strong>da</strong>s as opiniões expressas<br />

nessa <strong>obra</strong> pertencem a sua autora. Os<br />

animais que eventualmente foram feridos,<br />

molestados e traumatizados durante a<br />

produção desta <strong>obra</strong> receberam um funeral<br />

decente; poucos animais e crianças foram<br />

molestados fora dos padrões <strong>da</strong><br />

convençào de Haia. A cola usa<strong>da</strong> na<br />

lomba<strong>da</strong> pode conter glúten. Sim,<br />

exercício provoca enfarto e TV causa<br />

retar<strong>da</strong>mento mental. Vá ler!


“No theory, no ready-made system, no book that<br />

has ever been written will save the world. I cleave to<br />

no system. I am a true seeker.” Mikhail Bakunin<br />

Atenção,<br />

“Je t’écris ébloui par tant d’humanité.”<br />

Marc Lévy<br />

você está prestes a navegar por páginas estranhas.


Não subestime o aviso. Aliás, não subestime a Alliah!<br />

Para aqueles que acreditam que a literatura contemporânea<br />

apenas dá voltas macarronicamente em torno dos<br />

mesmos temas, empelotados nas mesmas almôndegas de<br />

gênero, que servem a um público faminto por mais do<br />

mesmo ou tentam agra<strong>da</strong>r a críticos de pala<strong>da</strong>r muito pessoal,<br />

e por isso mesmo não é mais capaz de surpreender,<br />

faço uma proposta: deixem seus velhos conceitos sobre<br />

ficção de lado e tomem uma dose de Metanfetaedro!<br />

Metanfetaedro tem sabor de frutas azuis, garanto<br />

que você nunca experimentou. É de uma literatura fantástica<br />

eleva<strong>da</strong> à última potência, e também a primeiríssima<br />

<strong>obra</strong> brasileira dentro de um gênero inédito: o new weird,<br />

ou “novo estranho”. Mas o que é isso?<br />

Dizem os centauros que o novíssimo weird é um<br />

filhote <strong>da</strong> ficção especulativa que mora em um cruzamento<br />

entre a ficção científica, a fantasia, o horror, e também o<br />

policial, o noir, o pulp e mais tudo o que a criativi<strong>da</strong>de permitir.<br />

Já as sereias dizem que é uma ficção surrealista, o<br />

resultado químico de uma omelete de elementos aparentemente<br />

sem conexão entre si, mas encaixados harmoniosamente<br />

para compor um todo esteticamente bizarro,<br />

estranhamente excitante e – por que não? – poético, e até<br />

mesmo hiper-realista.<br />

Esse new weird way of life é encontrado nas <strong>obra</strong>s fantásticas<br />

mais espantosamente originais <strong>da</strong> última déca<strong>da</strong>,<br />

como Perdido Street Station e Rei Rato, de China Miéville, e A<br />

Situação, de Jeff VanderMeer (os dois últimos publicados pela<br />

<strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>), e visualmente arquitetados nos quadrinhos


Promethea, de Alan Moore. Dentre essas poucas mas representativas<br />

referências <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> new weird, não é precipitado<br />

dizer que a brasileiríssima e precoce Alliah está entre<br />

os grandes, posto que em seus 21 aninhos domina o<br />

gênero com uma competência que é de assombrar os demônios<br />

de Hyeronymus Bosch.<br />

O Metanfetadro é uma droga metafórica mas de<br />

efeitos permanentes. A viagem por estas páginas estranhas<br />

subvertem os conceitos de reali<strong>da</strong>de. Há cenários que rebentam<br />

os horizontes <strong>da</strong> imaginação, como os mundos de<br />

Morgana Memphis e a Ci<strong>da</strong>de Sonhando os Seus Metais.<br />

Há ficções como Moleque e Tupac Amaru III, que com<br />

suas imagens oníricas enfiam a unha em feri<strong>da</strong>s bastante<br />

reais: mazelas históricas, políticas, sociais. Há o tema universal<br />

do amor impossível transfigurado nas linhas de<br />

Contemplafantasiação, e o luto pela per<strong>da</strong> de alguém querido<br />

no Jardim de Nenúfares Suspensos. Ca<strong>da</strong> história germina<strong>da</strong><br />

em um universo próprio <strong>da</strong> mais fértil engenhosi<strong>da</strong>de;<br />

são frutos <strong>da</strong> melhor safra <strong>da</strong> literatura fantástica nacional.<br />

Por isso digo: deixe por terra os seus velhos concei-<br />

tos. Tranque o senso comum no quintal, arrume uma al-<br />

mofa<strong>da</strong> com o melhor coeficiente de maciez que puder<br />

encontrar, limpe bem as lentes dos óculos (se é que você<br />

usa um), e prepare-se para se perder – ou se encontrar –<br />

nos lisérgicos mundos de Alliah.<br />

A você, leitor, as frutas azuis.<br />

Cristina Lasaitis


dedico essa <strong>obra</strong> para os ninguéns


9<br />

Moleque


Alliah<br />

Mogul aju<strong>da</strong>va Iara a lavar os cabelos esverdeados.<br />

Acomo<strong>da</strong>dos embaixo de uma passarela, esfregavam-se<br />

com querosene. O cheiro de combustível empesteava o ar,<br />

sobrepondo-se ao cheiro de esgoto. A sereia transfigura<strong>da</strong><br />

em humana praguejava em línguas esqueci<strong>da</strong>s. Seus olhos<br />

de um verde apagado estavam avermelhados e ardiam como<br />

ponta de cigarro. O rangido <strong>da</strong>s tábuas e do ferro mal pregado<br />

<strong>da</strong> passarela marcava a sinfonia quebra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

junto com o trânsito. Os carros mal an<strong>da</strong>vam, quase<br />

abalroados uns aos outros. Gigantescas carcaças de metal<br />

velho e fedorento buzinando ininterruptamente.<br />

Devido a uma <strong>obra</strong> interminável na estra<strong>da</strong>, apenas<br />

uma pista estava livre, criando uma convergência. O veículo<br />

responsável pela paralisação estava parado bem na boca<br />

do funil, esperando sabe-se lá o quê. Mogul, de pele preta<br />

como carvão e olhinhos amarelos amassados por alguma<br />

doença que lhe pesava as pálpebras, deixou a mulher terminando<br />

de lavar o cabelo e enfiou-se no meio <strong>da</strong>quela<br />

escultura urbana de engarrafamento. Subiu em dois cones<br />

fluorescentes e começou a fazer malabarismo com cabeças<br />

de rato. Os minúsculos crânios com pe<strong>da</strong>ços de pele e<br />

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Metanfetaedro<br />

pelo agarrados giravam no ar, rodopiando quase imperceptíveis,<br />

voltavam às mãos habilidosas do menino e eram<br />

jogados novamente naquele ciclo. Cinza apodrecido sobre<br />

cinza nevoento. Mas os vidros engordurados dos veículos<br />

permaneceram fechados e indiferentes.<br />

Aborrecido, o menino chutou os cones para o meio<br />

<strong>da</strong> rua e voltou a passos pesados para debaixo <strong>da</strong> passarela.<br />

Iara, comovi<strong>da</strong>, pegou as cabeças de rato e andou até o<br />

carro mais próximo, aquele que estava parado causando o<br />

engarrafamento. Bateu no vidro. Não obteve resposta. Bateu<br />

novamente. Na<strong>da</strong>. Mais uma vez. Ouviu o motor engasgando<br />

e um acelerador suspirando impotente. Impaciente,<br />

socou a janela. O vidro espatifou, voando sobre o<br />

banco vazio do carona. A mulher debruçou-se, olhando<br />

para um motorista paralisado de susto que tentava balbuciar<br />

alguma coisa. O suor escorria pingando de sua testa gor<strong>da</strong><br />

e o terno amarfanhado parecia ser de alguém bem mais<br />

magro que ele. Enfiando-se para dentro do carro, Iara puxou<br />

aquela massa abobalha<strong>da</strong> pela gola e meteu as cabeças<br />

de rato na boca do infeliz. Ele cuspia, engasgava, debatiase<br />

e chorava. Ela insistiu até ter certeza que to<strong>da</strong>s as seis<br />

cabecinhas haviam descido pela garganta do homem, que<br />

agora tinha espasmos e tentava vomitar. Iara afastou-se do<br />

carro e foi sentar-se ao lado de Mogul. Seu corpo nu de<br />

um verde-água ain<strong>da</strong> estava sujo por pontilhados de esgoto.<br />

Num relance poderia ser confundido com uma mancha<br />

de mofo crescendo no concreto.<br />

O homem atacado saiu do carro aos tropeções, enfiando<br />

o dedo na goela, forçando um vômito que não vinha.<br />

Sua agonia fez com que an<strong>da</strong>sse até as imediações <strong>da</strong><br />

|| 12 ||


Alliah<br />

<strong>obra</strong> ali perto. Curvado e olhando para o chão enquanto<br />

engolia quase o braço inteiro, não ouviu os gritos de alerta<br />

e teve a cabeça atingi<strong>da</strong> por uma viga que se desprendeu<br />

do guin<strong>da</strong>ste. O crânio amassou e afundou. O corpo caiu<br />

estrebuchando e rolou até uma vala. Seu carro largado na<br />

pista estremeceu e lamentou choroso. Perdera seu vínculo<br />

orgânico e morreria junto com o dono. Desfez-se em segundos.<br />

Pereceu derretendo no asfalto. O trânsito foi liberado<br />

e os veículos avançaram velozes.<br />

— As buzinas estavam me irritando – disse Iara<br />

depois de sorrir e puxar um cigarro do bolso de Mogul.<br />

Marmelo ain<strong>da</strong> se lembrava dos gritos <strong>da</strong> irmã.<br />

Esganiçados, preenchiam o ar como navalhas degolando<br />

ca<strong>da</strong> centímetro <strong>da</strong> culpa que sufocava aqueles que a haviam<br />

vendido aos traficantes. Agachado num canto, o<br />

menino abraçava os joelhos ossudos com mãos erodi<strong>da</strong>s<br />

de calos e arrebenta<strong>da</strong>s de pó, tão frágeis como gravetos<br />

secos. Seus olhos úmidos distinguiam sombras agiganta<strong>da</strong>s<br />

que queimavam as paredes num contraste entre a luz<br />

amarela<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tochas e os contornos obtusos dos mercadores.<br />

Levariam a menina embora, e a mutilariam por<br />

meses seguidos com uma brutali<strong>da</strong>de tão rapace que em<br />

pouco tempo ela arranjaria um jeito de se suici<strong>da</strong>r <strong>da</strong>ndo<br />

com a cabeça na parede, num desespero eviscerado em<br />

ossos partidos e lágrimas catarrentas.<br />

Mas eles precisavam do dinheiro. Seus pais não perderiam<br />

a oportuni<strong>da</strong>de de garantir um naco de pão duro e<br />

fatias de carne salga<strong>da</strong> em troca <strong>da</strong> violação de sua filha.<br />

Afinal, crianças são fáceis de fabricar, poderiam fazer mais<br />

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Metanfetaedro<br />

uma quando a fome apertasse novamente. Ou talvez a<br />

pressão <strong>da</strong>queles canos de ferro amassando suas nucas e<br />

cavando sulcos enferrujados em sua pele fosse apenas<br />

um incentivo a mais. Amedrontado, Marmelo pensou que<br />

também seria vendido, mas os traficantes apenas o miraram<br />

com desprezo e cuspiram em seus olhos, não sem<br />

antes fazê-lo chupar seus membros enrijecidos, por puro<br />

capricho e zombaria. O gosto do esperma misturou-se<br />

ao gosto de seu próprio sangue assim que as laterais de<br />

sua boca foram rasga<strong>da</strong>s. Sua irmã desmaiara com uma<br />

coronha<strong>da</strong> na cabeça. Seus pais estavam ocupados demais<br />

contando o dinheiro. E o tempo pareceu estancar<br />

naquele fim de tarde calorento, estagnado entre a savana<br />

lá fora e o casebre emporcalhado, pintando em sua memória<br />

o rapto e o assassinato de uma inocência há tanto<br />

perdi<strong>da</strong>, em seus míseros oito anos de i<strong>da</strong>de.<br />

Mogul não era <strong>da</strong>li. Nem Iara. Ele viera traficado<br />

<strong>da</strong> África. Ela fora parar na lagoa Rodrigo de Freitas por<br />

acidente. Encontraram-se pela Aveni<strong>da</strong> Brasil algum tempo<br />

depois e estabeleceram uma amizade. Faziam malabarismos<br />

nos sinais com frutas ou cabeças de animais mortos.<br />

Roubavam comi<strong>da</strong>, bebi<strong>da</strong>, dinheiro e um pouco de<br />

paciência. Cheiravam cola e fumaça. Tentavam conformar-se<br />

no equilibrismo de suas existências ignora<strong>da</strong>s.<br />

O menino ocupava-se de raspar a erva <strong>da</strong>ninha<br />

que crescia nos trechos de um muro. O grafite descascado<br />

que forrava o tijolo movimentava-se vagaroso, com<br />

preguiça de se mexer debaixo <strong>da</strong>quele mormaço. Dois<br />

|| 14 ||


Alliah<br />

alienígenas segurando crânios de búfalo, olhando-se num<br />

espelho que refletia humanos sem cabeça. Mogul só conseguia<br />

entender aquilo quando estava chapado.<br />

— Tu acha que essa erva dá algum barato? – perguntou<br />

a Iara.<br />

— Deve <strong>da</strong>r mais barato se você lamber minha<br />

pele – respondeu a sereia. – As coisas gru<strong>da</strong>m no meu<br />

corpo e são absorvi<strong>da</strong>s, metaboliza<strong>da</strong>s, dissolvi<strong>da</strong>s na<br />

minha corrente sanguínea. Se é que eu posso chamar de<br />

sangue essa linfa contamina<strong>da</strong>.<br />

— Coisas, que coisas?<br />

— Garrafas plásticas, embalagens de biscoito,<br />

latinhas de refrigerante, pneus queimados, sofás rasgados,<br />

molas quebra<strong>da</strong>s, espumas químicas, carne de peixe<br />

com chumbo, psicotrópicos vencidos, produtos duvidosos,<br />

câncer em bisnagas, qualquer porra menos água pura<br />

e simples.<br />

Mogul riu e aproximou-se de Iara, afastando-lhe<br />

os cabelos e lambendo seu pescoço.<br />

— Argh! Tem gosto de mer<strong>da</strong>! – disse o moleque,<br />

cuspindo e limpando a boca com as costas <strong>da</strong> mão.<br />

— E esgotos. Esqueci de mencionar os esgotos –<br />

suspirou a sereia. – E pensar que nesse ramo não podemos<br />

mu<strong>da</strong>r de profissão... Que puta mãe-d’água eu sou,<br />

sem uma porra de um pingo-d’água s<strong>obra</strong>ndo.<br />

— Olha! O Maestro!<br />

Mogul apontava para a sombra que se aproximava.<br />

Era o líder do espetáculo itinerante de performances<br />

sinestésicas que ro<strong>da</strong>va o país nos últimos anos, um arlequim<br />

com chapéu de malandro, avançando pelas ruas<br />

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Metanfetaedro<br />

brandindo um chicote que serpenteava vivo. A figura de<br />

roupas extravagantes desfilava um sorriso pre<strong>da</strong>dor e<br />

olhos mor<strong>da</strong>zes. Anunciava as atrações de seus espetáculos<br />

com uma projeção vocal que ecoava nos paredões<br />

envidraçados dos arranha-céus e assentava nos capôs dos<br />

carros. Atrás de si, uma profusão de maravilhas.<br />

Chegara o circo. Veio pintando as ruas, saltando as<br />

calça<strong>da</strong>s, agitando os viadutos. Os homens de perna de pau<br />

realmente tinham perna de pau. Eram longuíssimas e<br />

enverniza<strong>da</strong>s. Costuravam por entre os carros e prédios. Vez<br />

ou outra se acidentavam, pisando em falso numa tampa de<br />

bueiro mal coloca<strong>da</strong> (isso quando o bueiro ain<strong>da</strong> tinha tampa).<br />

As bailarinas rodopiavam leves e etéreas pela multidão.<br />

Seus corpos flutuantes viravam fitas colori<strong>da</strong>s, que brilhavam<br />

esforça<strong>da</strong>s sob a luz filtra<strong>da</strong> de um sol laranja. Os raios<br />

chegavam fracos de luz e vermelhos de fogo. Esturricavam<br />

cabeças desprotegi<strong>da</strong>s e assavam gatos vira-latas que se rendiam<br />

tostados pelas esquinas. Os palhaços perambulavam<br />

despreocupados, jorrando tinta de seus dedos e lábios borrados.<br />

As pessoas que passavam por essas criaturas assustadoramente<br />

felizes tinham seus rostos e roupas pintados em<br />

espirais abstratas e padrões geométricos. A purpurina que se<br />

acumulava no meio-fio fazia brilhar o embolorado de lixo e<br />

lama que entupia os ralos. Mogul abaixava-se para observar<br />

de perto as cores metaliza<strong>da</strong>s que sobressaíam do preto. Lembrava<br />

petróleo. Era o maior show <strong>da</strong> Terra.<br />

— Meu irmão mais novo ia querer assistir aos espetáculos...<br />

– murmurou Mogul, embevecido momentaneamente<br />

pela espiral de criaturas colori<strong>da</strong>s passando diante<br />

de seus olhos arregalados.<br />

|| 16 ||


Alliah<br />

— E cadê ele? – in<strong>da</strong>gou Iara, rodea<strong>da</strong> por um grupo<br />

de bailarinas que <strong>da</strong>nçavam e a puxavam para participar.<br />

— Em casa – respondeu o menino.<br />

A sereia desvencilhou-se <strong>da</strong>s mãos delica<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>nçarinas. Aqueles corpos magrelos e esguios, de faces<br />

brancas como porcelana e feições de boneca a lembravam<br />

sua irmã bastar<strong>da</strong> que se desgarrara e fugira. Sangue<br />

de divin<strong>da</strong>de indígena norte-americana com carne de<br />

elemental amazonense. Sumi<strong>da</strong>, provavelmente perdera<br />

os dotes xamânicos. Ou se vendera em busca de diversão<br />

humaniza<strong>da</strong>.<br />

— Do outro lado do oceano – completou Mogul.<br />

Seus dedos esverdeados agora cheiravam a algodão-doce.<br />

Deu vontade de comê-los.<br />

— Minha irmã também – Iara falou.<br />

Acor<strong>da</strong>ra atordoado com as lembranças<br />

ensandeci<strong>da</strong>s que lhe perfuravam o crânio. Uma cumbuca<br />

de barro cheia de água turva e um fuzil melecado de suor<br />

eram suas mais agradáveis companhias. Gritos expandiam-se<br />

lá fora, alternando dialetos tribais e xingamentos em<br />

uma cornucópia de línguas colonizadoras. A cabana de lona<br />

verde-musgo protegia-o tão eficientemente quanto um útero<br />

a poucos centímetros de ser retalhado por uma peixeira.<br />

Mas aprendera a ser tão parasita quanto um feto, e ocupava-se<br />

de sugar com vigor e indiferença to<strong>da</strong> e qualquer<br />

oportuni<strong>da</strong>de de conseguir mais alguns nacos de mastigação,<br />

assassínio e orgasmo. Era tudo que lhe restara e tudo que o<br />

mantinha, após estourar a cabeça dos pais com uma rocha,<br />

|| 17 ||<br />

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Metanfetaedro<br />

aos nove anos. Golpeara ambos com tanta truculência e<br />

cegueira que, muito depois de reduzir suas cabeças e cérebros<br />

a uma pasta rosa<strong>da</strong> com croutons de cálcio, continuou<br />

desferindo pedra<strong>da</strong>s na esteira de palha abaixo de seus corpos<br />

sem sequer perceber que já os havia ultrapassado. Berrara<br />

o nome de sua irmã a ca<strong>da</strong> panca<strong>da</strong>.<br />

Marmelo foi despertado do estupor com um chute<br />

nas costelas. Uma bota preta lhe pressionou o rosto,<br />

enquanto seus ouvidos lambiam as ordens que lhe eram<br />

dita<strong>da</strong>s. Saiu apressado e juntou-se aos outros meninos lá<br />

fora, com o fuzil desajeita<strong>da</strong>mente seguro nas mãos. A<br />

paisagem estendia-se desértica, com uma vegetação<br />

esparsa em tons de sépia. Ao longe, arbustos erguiam-se<br />

tímidos. As cabanas, os veículos blin<strong>da</strong>dos e as centenas<br />

de militares que se agrupavam naquele fim de mundo africano<br />

preparavam-se para mais uma batalha. Alguém de<br />

uma determina<strong>da</strong> tribo insultara alguém de outra tribo,<br />

que revi<strong>da</strong>ra com ofensas religiosas, atingindo líderes<br />

inconformados e deflagrando um estouro de libertinagem<br />

política e autoritarismo movido por pura vai<strong>da</strong>de.<br />

No fim <strong>da</strong>s contas, a matança era apenas uma diversão<br />

para uma elite sádica espectadora e um meio de movimentar<br />

o comércio de armas e o tráfico de crianças. E lá<br />

estava ele, guerreando ao lado dos mesmos homens que<br />

compraram sua irmã havia pouco mais de dois anos. Mas<br />

tudo tinha um preço. Até mesmo a memória.<br />

Marcharam disciplinados após uma bateria de exercícios.<br />

As ordens eram simples e diretas. Invadiriam o<br />

vilarejo, incendiariam ca<strong>da</strong> casa e matariam ca<strong>da</strong> homem,<br />

mulher e criança com quem esbarrassem pelo caminho.<br />

|| 18 ||


Alliah<br />

Saqueariam alimentos, roupas e metais. Poderiam estuprar<br />

um ou outro para amenizar a tensão e divertir-se um<br />

pouco, e abandonariam o local o quanto antes. Mensagem<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>, missão frustra<strong>da</strong>. Pois eles não contaram com<br />

a resistência surpresa que os emboscou numa chuva de<br />

flecha<strong>da</strong>s e tiros cuspidos por armamentos de fabricação<br />

israelense e alemã, comprados através de uma rede que<br />

conectava sul-africanos, norte-americanos e egípcios. A<br />

munição globaliza<strong>da</strong> explodiu na carne subdesenvolvi<strong>da</strong><br />

de uma lavadeira, atravessou seus músculos cansados e entrou<br />

no estômago do bebê que ela carregava nos braços.<br />

O garoto, assustado com o contra-ataque, escondia-se<br />

em meio aos barracos e atirava como um louco<br />

nos vultos apavorados que corriam entre tropeções. Mas<br />

não demorou até que alguém o estrangulasse com braços<br />

que ardiam sob um sol infernal lhes escal<strong>da</strong>ndo a cabeça.<br />

Jurou que podia sentir a traqueia torrando como um pe<strong>da</strong>ço<br />

de bacon. Desvencilhou-se com cotovela<strong>da</strong>s antes<br />

que apagasse, virou-se e enfiou o cano do fuzil no olho<br />

do infeliz que o agarrara, deixando o corpo tombar no<br />

chão com um baque surdo, ostentando a arma entranha<strong>da</strong><br />

na cabeça como um troféu macabro, borbulhando<br />

sangue e gordura.<br />

Acovar<strong>da</strong>do, Marmelo fugiu do pandemônio e escondeu-se<br />

com certa dificul<strong>da</strong>de entre árvores baixas espinhentas<br />

e ossa<strong>da</strong>s de elefante além dos limites do vilarejo.<br />

Infelizmente o marfim já havia sido cortado fora e coletado<br />

para abastecer o tráfico, mas achou que carregar um<br />

pe<strong>da</strong>ço de costela gigante poderia ser útil de alguma maneira.<br />

Adormeceu exausto, ain<strong>da</strong> ouvindo o crepitar do<br />

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Metanfetaedro<br />

fogo que subira pelos casebres e pintara a paisagem com<br />

cinzas enegreci<strong>da</strong>s bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s por fagulhas. Os gritos extinguiram-se<br />

logo após os tiros, um silêncio emoldurado<br />

num entrelace de cadáveres pretos, tão esqueléticos quanto<br />

o espectro de terror que emanava de suas expressões paralisa<strong>da</strong>s.<br />

Pneus cantando na gramínea denunciaram a fuga<br />

dos militares. Ninguém o vira. Apagou.<br />

— O que aconteceu com teu irmão? – perguntou<br />

Iara enquanto an<strong>da</strong>vam acompanhando uma trupe de<br />

acrobatas que usavam a geografia acidenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

como palco.<br />

— Não sei. A última vez que eu vi o moleque ele<br />

era uma lombriga de gente, pequenininho e magrelo, parecendo<br />

um pe<strong>da</strong>ço de pão desses compridos que vende<br />

na pa<strong>da</strong>ria.<br />

— Uma bisnaga?<br />

— Não. Lombriga.<br />

O Maestro aproximou-se <strong>da</strong> dupla a passos<br />

acarpetados. Olhando de perto era possível distinguir o<br />

rosto debaixo <strong>da</strong>quele chapéu. As cama<strong>da</strong>s grossas de<br />

maquiagem sobrepunham-se infinitas, absorvendo-se<br />

umas às outras, renovando-se continuamente. Pareciam<br />

nascer diretamente dos ossos, brotar <strong>da</strong>s entranhas como<br />

fluidos orgânicos. O arlequim adiantou-se, pondo-se na<br />

frente <strong>da</strong> dupla e passou a acompanhar Mogul e Iara com<br />

passos para trás. Seu chicote enrolava-se em seu corpo,<br />

fundia-se à roupa de losangos vermelhos e pretos e renascia<br />

nalgum canto, sibilando e sumindo novamente.<br />

|| 20 ||


Alliah<br />

— Ora, ora, ora, quem eu vejo por aqui... Iara, a<br />

rainha <strong>da</strong>s águas! – exclamou, estendendo uma <strong>da</strong>s mãos<br />

para cumprimentá-la.<br />

— Se ain<strong>da</strong> existissem águas que merecessem algum<br />

reinado... – resmungou a sereia, mal olhando para o<br />

Maestro e ignorando o cumprimento.<br />

— Ouviu falar que o Boto agora é nosso sócio?<br />

Por que não se junta à nossa família? – in<strong>da</strong>gou o arlequim<br />

com um sorriso de canto de boca.<br />

— Eu quero! – respondeu o moleque, pulando de<br />

excitação e com aqueles olhos nojentos brilhando de uma<br />

maneira torta.<br />

— Não falei com você, menino, desinfeta <strong>da</strong>qui! –<br />

disse rispi<strong>da</strong>mente. – Estou tratando de negócios com<br />

uma divin<strong>da</strong>de, não com um ninguém.<br />

Mogul ficou puto ao mesmo tempo em que queria<br />

chorar. Levava esse tipo de porra<strong>da</strong> na cara todos os dias,<br />

com os olhares acusadores <strong>da</strong>s pessoas e os xingamentos<br />

gratuitos. Talvez merecesse um palavrão ou outro quando<br />

roubava. Mas aquele insulto partindo de quem mais admirava<br />

nos últimos tempos foi como uma bigorna nas costelas<br />

(se soubesse exatamente o que era uma bigorna). Mogul virou<br />

e seguiu outro caminho, procurando algo em que descontar.<br />

Iara apenas suspirara entedia<strong>da</strong>. O Maestro tentou<br />

puxá-la pela mão, mas tudo que conseguiu foi atravessar<br />

um pe<strong>da</strong>ço suspenso de água suja. A pele esverdea<strong>da</strong> tremeluzia<br />

como uma película de limo envelhecido.<br />

— Você não vai durar muito tempo aqui fora –<br />

sentenciou o arlequim antes de afastar-se e seguir o caminho<br />

dos acrobatas.<br />

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Metanfetaedro<br />

“Como se precisassem de mim”, pensou a sereia, fechando<br />

a expressão num tom melancólico. Via as sombras<br />

dos corpos magníficos dos acrobatas interagindo com os prédios<br />

e ruas e sentia a ci<strong>da</strong>de respirando em preto e branco.<br />

Foi atrás de Mogul. Encontrou-o socando outro<br />

menino de rua. Os dentes do garoto agredido estavam<br />

ensanguentados (os que ain<strong>da</strong> restavam inteiros na boca).<br />

Três estavam cuspidos no chão. Baba e lágrimas escorriam<br />

por suas bochechas e queixo. Mogul ain<strong>da</strong> segurava-o pela<br />

camisa encardi<strong>da</strong> quando Iara o tocou no ombro, chamando-o.<br />

Os dedos gelatinosos e frios arrepiaram-lhe a espinha.<br />

— Vou embora.<br />

— Por quê?<br />

— Porque não posso ficar nem morrer. Água é<br />

instabili<strong>da</strong>de e movimento, mesmo quando se torna lodosa<br />

e poluí<strong>da</strong>.<br />

— Tu vai fazer uma puta falta.<br />

— Vê se te cui<strong>da</strong> pra não acabar que nem teu irmão.<br />

Iara estava partindo. Ficaria sozinho novamente.<br />

Sentiu o peso do mundo amassando o saco.<br />

— Ele deve tá melhor que eu... Espero que esteja<br />

melhor que eu... Pra onde tu tá indo?<br />

— Pra baía de Guanabara.<br />

— Aquele entulho?<br />

— Tem uns cantos interessantes nos destroços <strong>da</strong><br />

antiga ponte. Eu posso fingir que são rochas margea<strong>da</strong>s<br />

por límpi<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s azula<strong>da</strong>s e cantar para os náufragos...<br />

– disse a sereia enquanto escorria pelas ruas e descia pelos<br />

esgotos.<br />

|| 22 ||


Alliah<br />

— Depois eu que sou o maluco – murmurou<br />

Mogul para si mesmo, despedindo-se de Iara logo depois<br />

com um aceno de mão.<br />

Roubou uns trocados amassados que estavam nos<br />

bolsos do garoto que desmaiara meio zonzo ali perto, e<br />

saiu deixando o corpo arfante para trás.<br />

Marmelo sonhava. A terra quebrava-se e abria-se<br />

num abismo de enxofre. Labare<strong>da</strong>s engolfavam suas pernas<br />

e arrastavam-no, enquanto suas unhas podres quebravam-se<br />

ao afun<strong>da</strong>r no solo seco e infectavam a carne<br />

viva de seus dedos arrebentados. Acordou gritando de<br />

pavor, mas apenas os abutres que lhe rodeavam a cabeça<br />

ouviram suas lamúrias de agonia. Seu corpo desnutrido<br />

exalava o cheiro <strong>da</strong> morte, a poucos instantes de perecer<br />

e cozinhar sob o sol, servindo de alimento aos carniceiros<br />

que o espreitavam. Tão famintos que podia sentir a<br />

baba escorrendo de seus bicos. Na sede insuportável que<br />

contraía sua garganta, seria capaz de esmagar a cabeça<br />

<strong>da</strong>queles pássaros e beber de sua saliva num banquete<br />

empenado que lhe martelou a cabeça com tambores tribais<br />

e cânticos vudu.<br />

Assaltado pela loucura, arrastou-se a esmo pela savana<br />

tentando lembrar a trilha de volta para o acampamento, afastando-se<br />

ca<strong>da</strong> vez mais do vilarejo destruído. Não sabia mais<br />

distinguir as direções que galgava, podia estar an<strong>da</strong>ndo em<br />

círculos havia dias. O horizonte escorreu por seu olhar e as<br />

nuvens esparsas giravam num caleidoscópio sanguinolento<br />

que o assombrava com os fantasmas <strong>da</strong>queles que havia<br />

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Metanfetaedro<br />

matado. Suas bochechas ain<strong>da</strong> estavam marca<strong>da</strong>s pela bota,<br />

e seus movimentos ain<strong>da</strong> estavam marcados pela coerção.<br />

Inebriado pela atmosfera seca que lhe arranhava<br />

as narinas e arrebentava as veias, o garoto apalpou as roupas<br />

à procura de qualquer coisa que pudesse comer. Roeria<br />

o osso de elefante se não tivesse largado a costela pelo<br />

caminho devido ao peso.<br />

Descobriu um punhado de munição nos bolsos,<br />

como pequenas jujubas de metal. Incandescentes, queimaram-lhe<br />

a palma, e caíram em meio à poeira. O menino<br />

abaixou-se para pegá-las de volta, mas em vez de repôlas<br />

nos bolsos encardidos, enfiou-as na boca. Os dentes<br />

desgastados e a gengiva apodreci<strong>da</strong> doeram e sangraram<br />

ao contato com a bala de metal. O gosto do ferro passeou<br />

por sua língua com o amargo e o azedo beijando-se<br />

num lamaçal de fumaça. Quebrou alguns dentes, e engoliu<br />

os pe<strong>da</strong>ços junto com três balas inteiras. Esfomeado,<br />

devorou to<strong>da</strong> a munição, chupando-as e trincando-as<br />

como açúcar mascavo. O sangue e a baba escorriam de<br />

seu beiço ressecado, molhando seu queixo proeminente.<br />

A cabeça oval muito grande em comparação com o corpo<br />

miúdo e sugado pendia com feroci<strong>da</strong>de sobre aquela<br />

lambança. E logo estava lambendo seus dedos infectados,<br />

mastigando-os junto com as últimas lascas de metal que<br />

se empoleiravam nos tocos de dentina que se expunham<br />

num amarelo-gema.<br />

O ensopado de pólvora e canibalismo urgia em seu<br />

estômago. Deixou-se cair no chão, estrebuchando, enquanto<br />

suas pupilas perdiam-se no topo <strong>da</strong> cabeça e sua consciência<br />

espatifava-se num redemoinho de ácido. Sua visão<br />

|| 24 ||


Alliah<br />

semicerrou-se num recorte de colagens afetivas. Uniformes<br />

camuflados, armamentos de quase a sua altura, uma<br />

boca feminina gritando de dor e mãos colossais apertando-lhe<br />

o ombro, transferindo a dor física para o seu lobo<br />

frontal, onde tomaria suas decisões de acordo com aquilo<br />

que ameaçava os ossos.<br />

O moleque caminhou desiludido. Já sentia falta <strong>da</strong><br />

presença confortante <strong>da</strong> mãe-d’água, o único tipo de mãe<br />

que tivera por perto. Arrastava os pés cheios de calos e<br />

feri<strong>da</strong>s pelas ruas abarrota<strong>da</strong>s do centro. Gente apressa<strong>da</strong><br />

movendo-se como grandes correntes humanas. Pacotes<br />

de preocupação e urgência conti<strong>da</strong>. Esbarravam nele<br />

como se fosse invisível. Se alguém se demorasse um<br />

tiquinho que fosse para mirar seu rosto, atravessaria a rua<br />

com medo de ser assaltado. Sua cor o precedia.<br />

Passou pela Cinelândia, parando entre um passo e<br />

outro para ver uma apresentação de malabares e pirofagia.<br />

O fogo cuspido quase incendiava o ar em volta, com to<strong>da</strong><br />

aquela névoa cinza-alaranja<strong>da</strong> de poluição. Mas o encanto<br />

lhe era descolorido agora. Prosseguiu a caminha<strong>da</strong>.<br />

Chegou à Lapa.<br />

Os arcos abrigavam bolsões orgânicos de podridão.<br />

Medi<strong>da</strong> de segurança. Grandes sacos de tecido vivo que<br />

cobriam os espaços e vãos debaixo dos arcos, onde antes<br />

se abrigavam bêbados e mendigos, estropiados e prostitutas,<br />

vadios e ninguéns. Era o buraco de sujeira faltante depois<br />

que os moradores de rua haviam sido gentilmente<br />

dizimados. Higienização, diziam. Segurança, argumentavam.<br />

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Metanfetaedro<br />

Filha <strong>da</strong> putisse, Mogul pensava. O menino gostava de<br />

ficar olhando os bolsões. Pareciam os estômagos de uma<br />

planta carnívora gigante. Meio avermelhados, meio<br />

esverdeados. Inchavam e ondulavam. Bolhas de ar cresciam<br />

lá dentro, estouravam deixando escorrer uma gosma<br />

amarela<strong>da</strong> pelas paredes do tecido. Mastigava e digeria lixo.<br />

Ou pessoas, se alguém chegasse perto demais.<br />

Mogul comprou um acarajé ali perto e sentou no<br />

gramado. O camarão parecia ter gosto de qualquer coisa<br />

menos camarão. Seus olhos fechavam-se ca<strong>da</strong> vez mais,<br />

aquela maldita massa cancerosa escorrendo pus e pesando<br />

sobre seu globo ocular estava começando a irritar.<br />

Terminou de comer e foi sentar-se de frente para um dos<br />

bolsões. Escolheu o que estava digerindo um cachorro.<br />

Seu nariz a apenas poucos centímetros do tecido<br />

translúcido. Pequenas espículas perfuravam o corpo do<br />

animal, pareciam sugar seus músculos, ou desfragmentálos<br />

com algum ácido. Escorria uma pasta rosa<strong>da</strong> dos buracos<br />

deixados em seu cadáver. Ossos triturados e enzimas<br />

borbulhando. O moleque jurou ter enxergado uma lata<br />

de cerveja saindo <strong>da</strong> garganta aberta do cachorro. Tentou<br />

enxergar melhor. Curvou o corpo para frente,<br />

semicerrou os olhos, perdeu a noção. A maçaroca doentia<br />

em suas pálpebras projetava-se. Tocou o tecido do<br />

bolsão e foi suga<strong>da</strong>. O menino gritou de dor pelo pouco<br />

tempo que teve para reagir antes que seu corpo fosse<br />

tragado para dentro <strong>da</strong>quela carnificina urbaniza<strong>da</strong>.<br />

Mergulhou num líquido viscoso. Boiando, era reconhecido<br />

pelos sensores do bolsão que o apalpavam e beliscavam.<br />

Arreganharam sua boca, rasgaram suas roupas e puxa-<br />

|| 26 ||


Alliah<br />

ram seu cabelo. Fedia a erva. Começou a ser amassado por<br />

movimentos de sucção e contração dos músculos <strong>da</strong> parede.<br />

Parecia que seu corpo esquelético era amassado<br />

num pilão gigante. Foi preparado e temperado. Caiu numa<br />

vesícula, foi transportado até em cima, num rombo na<br />

estrutura, e entrou em combustão. O bondinho parou<br />

no meio do caminho para não ser incendiado também.<br />

Os passageiros, a maioria um bando de turistas<br />

apalermados, espichou as cabeças e as câmeras fotográficas<br />

para fora, tentando registrar um naco <strong>da</strong>quele evento<br />

incomum. A fumaça perfuma<strong>da</strong> exalando inebriante entorpecia<br />

os mais próximos.<br />

As expressões curiosas eram estúpi<strong>da</strong>s.<br />

A ci<strong>da</strong>de o fumava em grandes bafora<strong>da</strong>s.<br />

E o Rio de Janeiro continua lindo.<br />

Sentiu algo gelatinoso e frio tocando seu corpo<br />

em choque. Marmelo abriu os olhos com preguiça. A<br />

língua pastosa posta para fora como um tumor inchado<br />

recolheu-se vagarosa. Um gigantesco tentáculo azul rodeava-lhe.<br />

Um tentáculo de polvo, ou criatura semelhante.<br />

Vasculhou as imediações. Os tentáculos surgiam do<br />

na<strong>da</strong> e perdiam-se no na<strong>da</strong>. Então percebeu a sombra<br />

delica<strong>da</strong> de uma mulher para<strong>da</strong> logo atrás de si. De pele<br />

branca como porcelana, feições de boneca e maquiagem<br />

circense, a jovem trajava um espartilho simples e uma<br />

saia vaza<strong>da</strong> e arma<strong>da</strong> que atingia a altura dos joelhos, aberta<br />

no formato de um sino. Um pequeno guar<strong>da</strong>-chuva branco<br />

e vermelho, seguro em suas mãos de dedos finos e<br />

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Metanfetaedro<br />

quase translúcidos, protegia-lhe a cabeça. O menino, boquiaberto,<br />

tentou levantar apoiando-se nos tentáculos, mas<br />

estava sem forças.<br />

A mulher tocou-lhe o peito ossudo, abrindo-o com<br />

sutileza e expondo uma miríade de diamantes incrustados<br />

na superfície porosa do esterno e <strong>da</strong>s costelas do menino.<br />

Apavorado e embevecido, ele olhava para a bela figura enquanto<br />

ela minerava seu corpo e guar<strong>da</strong>va os diamantes no<br />

decote. Os tentáculos apertaram suas pernas, a jovem afastou-se<br />

assim que terminou o trabalho e ambos sumiram<br />

no horizonte alaranjado e salpicado de miragens quebra<strong>da</strong>s.<br />

O garoto estava com um sorriso de palhaço pintado<br />

no rosto, acompanhando as cicatrizes que lhe esgarçavam<br />

os lábios. Intoxicado pela curiosi<strong>da</strong>de, recolheu-se como<br />

um feto, abraçou os joelhos e tentou dormir lembrandose<br />

do lindo rosto <strong>da</strong>quela mulher. Suas costelas deflora<strong>da</strong>s<br />

germinavam como uma mutilação plástica. Mas seu coração<br />

de menino estava em polvorosa. Pe<strong>da</strong>ços de seu corpo<br />

alimentariam a vai<strong>da</strong>de carnívora de uma joia mol<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

mãos tão agrilhoa<strong>da</strong>s quanto as suas, transporta<strong>da</strong>s por uma<br />

mescla de identi<strong>da</strong>des rouba<strong>da</strong>s e deposita<strong>da</strong> nos dedos de<br />

uma ocidental qualquer desejosa de camuflar suas infelici<strong>da</strong>des<br />

com hipocrisias consumistas. Afinal, as rotulações<br />

que o totalitarizavam eram <strong>da</strong> mesma síntese econômica<br />

que colava os preços sangrados nos diamantes de uma vitrine.<br />

Adormeceu internacionalizado.<br />

O resto é silêncio.<br />

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Uma<br />

ci<strong>da</strong>de<br />

sonhando<br />

seus<br />

metais<br />

29


Alliah<br />

Esta é uma <strong>amostra</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong><br />

Metanfetaedro, gera<strong>da</strong> pela <strong>Tarja</strong><br />

<strong>Editorial</strong> para fins de divulgação. A<br />

<strong>obra</strong> final é composta por 8 contos<br />

totalizando um livro com 232 páginas.<br />

As imagens aqui conti<strong>da</strong>s estão em<br />

baixa resolução para diminuição do<br />

arquivo final, porém na versão impressa<br />

elas encontram-se no tamanho final.<br />

Esse arquivo pode ser distribuido desde<br />

que seja incorpora<strong>da</strong> sua fonte.<br />

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