amostra da obra - Tarja Editorial
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Copyright © 2012 by <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong><br />
Todos os direitos desta edição<br />
estão reservados à <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>;<br />
direitos de autoria dos contos<br />
pertencem a sua autora. Nenhuma<br />
parte deste livro poderá ser<br />
reproduzi<strong>da</strong> sem permissão formal,<br />
por escrito <strong>da</strong> editora, exceto para<br />
citações incorpora<strong>da</strong>s em críticas<br />
ou resenhas.<br />
EDITORES:<br />
REVISÃO:<br />
PROJETO GRÁFICO:<br />
ILUSTRAÇÃO DE CAPA:<br />
ILUSTRAÇÃO DE MIOLO:<br />
DIAGRAMAÇÃO:<br />
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NÃO PUBLICAÇÃO (CIF)<br />
Metanfetaedro/ Alliah -- São Paulo : <strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>, 2012.<br />
ISBN 978-85-61541-51-4<br />
1. Contos brasileiros: Literatura brasileira: Coletâneas - I. Alliah.<br />
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:<br />
1. Contos : Antologia : Literatura brasileira<br />
869.9308<br />
LITERATURA FANTÁSTICA<br />
MUITO ALÉM DOS GÊNEROS<br />
[2012]<br />
Noster Anno, Fictio Iuris<br />
TARJA EDITORIAL LTDA.<br />
Rua Silvio Rodini, 399/34<br />
Para<strong>da</strong> Inglesa - São Paulo<br />
CEP 02241-000 / SP<br />
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Gianpaolo Celli<br />
Richard Diegues<br />
Cristina Lasaitis<br />
Richard Diegues<br />
Aaron Rutten<br />
Alliah<br />
Richard Diegues<br />
1ª edição na primavera de 2012<br />
Impresso no Brasil<br />
CDD-869.9308<br />
To<strong>da</strong>s as citações e nomes incidentes neste<br />
livro são fruto do inconsciente de sua<br />
autora, devendo ser encarados como não<br />
intencionais. Ain<strong>da</strong> assim, caso sinta-se<br />
ofendido com algo nestas páginas, basta<br />
fechar a <strong>obra</strong>. To<strong>da</strong>via, se resolver insistir,<br />
compreen<strong>da</strong> que coincidências realmente<br />
ocorrem. To<strong>da</strong>s as opiniões expressas<br />
nessa <strong>obra</strong> pertencem a sua autora. Os<br />
animais que eventualmente foram feridos,<br />
molestados e traumatizados durante a<br />
produção desta <strong>obra</strong> receberam um funeral<br />
decente; poucos animais e crianças foram<br />
molestados fora dos padrões <strong>da</strong><br />
convençào de Haia. A cola usa<strong>da</strong> na<br />
lomba<strong>da</strong> pode conter glúten. Sim,<br />
exercício provoca enfarto e TV causa<br />
retar<strong>da</strong>mento mental. Vá ler!
“No theory, no ready-made system, no book that<br />
has ever been written will save the world. I cleave to<br />
no system. I am a true seeker.” Mikhail Bakunin<br />
Atenção,<br />
“Je t’écris ébloui par tant d’humanité.”<br />
Marc Lévy<br />
você está prestes a navegar por páginas estranhas.
Não subestime o aviso. Aliás, não subestime a Alliah!<br />
Para aqueles que acreditam que a literatura contemporânea<br />
apenas dá voltas macarronicamente em torno dos<br />
mesmos temas, empelotados nas mesmas almôndegas de<br />
gênero, que servem a um público faminto por mais do<br />
mesmo ou tentam agra<strong>da</strong>r a críticos de pala<strong>da</strong>r muito pessoal,<br />
e por isso mesmo não é mais capaz de surpreender,<br />
faço uma proposta: deixem seus velhos conceitos sobre<br />
ficção de lado e tomem uma dose de Metanfetaedro!<br />
Metanfetaedro tem sabor de frutas azuis, garanto<br />
que você nunca experimentou. É de uma literatura fantástica<br />
eleva<strong>da</strong> à última potência, e também a primeiríssima<br />
<strong>obra</strong> brasileira dentro de um gênero inédito: o new weird,<br />
ou “novo estranho”. Mas o que é isso?<br />
Dizem os centauros que o novíssimo weird é um<br />
filhote <strong>da</strong> ficção especulativa que mora em um cruzamento<br />
entre a ficção científica, a fantasia, o horror, e também o<br />
policial, o noir, o pulp e mais tudo o que a criativi<strong>da</strong>de permitir.<br />
Já as sereias dizem que é uma ficção surrealista, o<br />
resultado químico de uma omelete de elementos aparentemente<br />
sem conexão entre si, mas encaixados harmoniosamente<br />
para compor um todo esteticamente bizarro,<br />
estranhamente excitante e – por que não? – poético, e até<br />
mesmo hiper-realista.<br />
Esse new weird way of life é encontrado nas <strong>obra</strong>s fantásticas<br />
mais espantosamente originais <strong>da</strong> última déca<strong>da</strong>,<br />
como Perdido Street Station e Rei Rato, de China Miéville, e A<br />
Situação, de Jeff VanderMeer (os dois últimos publicados pela<br />
<strong>Tarja</strong> <strong>Editorial</strong>), e visualmente arquitetados nos quadrinhos
Promethea, de Alan Moore. Dentre essas poucas mas representativas<br />
referências <strong>da</strong> vanguar<strong>da</strong> new weird, não é precipitado<br />
dizer que a brasileiríssima e precoce Alliah está entre<br />
os grandes, posto que em seus 21 aninhos domina o<br />
gênero com uma competência que é de assombrar os demônios<br />
de Hyeronymus Bosch.<br />
O Metanfetadro é uma droga metafórica mas de<br />
efeitos permanentes. A viagem por estas páginas estranhas<br />
subvertem os conceitos de reali<strong>da</strong>de. Há cenários que rebentam<br />
os horizontes <strong>da</strong> imaginação, como os mundos de<br />
Morgana Memphis e a Ci<strong>da</strong>de Sonhando os Seus Metais.<br />
Há ficções como Moleque e Tupac Amaru III, que com<br />
suas imagens oníricas enfiam a unha em feri<strong>da</strong>s bastante<br />
reais: mazelas históricas, políticas, sociais. Há o tema universal<br />
do amor impossível transfigurado nas linhas de<br />
Contemplafantasiação, e o luto pela per<strong>da</strong> de alguém querido<br />
no Jardim de Nenúfares Suspensos. Ca<strong>da</strong> história germina<strong>da</strong><br />
em um universo próprio <strong>da</strong> mais fértil engenhosi<strong>da</strong>de;<br />
são frutos <strong>da</strong> melhor safra <strong>da</strong> literatura fantástica nacional.<br />
Por isso digo: deixe por terra os seus velhos concei-<br />
tos. Tranque o senso comum no quintal, arrume uma al-<br />
mofa<strong>da</strong> com o melhor coeficiente de maciez que puder<br />
encontrar, limpe bem as lentes dos óculos (se é que você<br />
usa um), e prepare-se para se perder – ou se encontrar –<br />
nos lisérgicos mundos de Alliah.<br />
A você, leitor, as frutas azuis.<br />
Cristina Lasaitis
dedico essa <strong>obra</strong> para os ninguéns
9<br />
Moleque
Alliah<br />
Mogul aju<strong>da</strong>va Iara a lavar os cabelos esverdeados.<br />
Acomo<strong>da</strong>dos embaixo de uma passarela, esfregavam-se<br />
com querosene. O cheiro de combustível empesteava o ar,<br />
sobrepondo-se ao cheiro de esgoto. A sereia transfigura<strong>da</strong><br />
em humana praguejava em línguas esqueci<strong>da</strong>s. Seus olhos<br />
de um verde apagado estavam avermelhados e ardiam como<br />
ponta de cigarro. O rangido <strong>da</strong>s tábuas e do ferro mal pregado<br />
<strong>da</strong> passarela marcava a sinfonia quebra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
junto com o trânsito. Os carros mal an<strong>da</strong>vam, quase<br />
abalroados uns aos outros. Gigantescas carcaças de metal<br />
velho e fedorento buzinando ininterruptamente.<br />
Devido a uma <strong>obra</strong> interminável na estra<strong>da</strong>, apenas<br />
uma pista estava livre, criando uma convergência. O veículo<br />
responsável pela paralisação estava parado bem na boca<br />
do funil, esperando sabe-se lá o quê. Mogul, de pele preta<br />
como carvão e olhinhos amarelos amassados por alguma<br />
doença que lhe pesava as pálpebras, deixou a mulher terminando<br />
de lavar o cabelo e enfiou-se no meio <strong>da</strong>quela<br />
escultura urbana de engarrafamento. Subiu em dois cones<br />
fluorescentes e começou a fazer malabarismo com cabeças<br />
de rato. Os minúsculos crânios com pe<strong>da</strong>ços de pele e<br />
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Metanfetaedro<br />
pelo agarrados giravam no ar, rodopiando quase imperceptíveis,<br />
voltavam às mãos habilidosas do menino e eram<br />
jogados novamente naquele ciclo. Cinza apodrecido sobre<br />
cinza nevoento. Mas os vidros engordurados dos veículos<br />
permaneceram fechados e indiferentes.<br />
Aborrecido, o menino chutou os cones para o meio<br />
<strong>da</strong> rua e voltou a passos pesados para debaixo <strong>da</strong> passarela.<br />
Iara, comovi<strong>da</strong>, pegou as cabeças de rato e andou até o<br />
carro mais próximo, aquele que estava parado causando o<br />
engarrafamento. Bateu no vidro. Não obteve resposta. Bateu<br />
novamente. Na<strong>da</strong>. Mais uma vez. Ouviu o motor engasgando<br />
e um acelerador suspirando impotente. Impaciente,<br />
socou a janela. O vidro espatifou, voando sobre o<br />
banco vazio do carona. A mulher debruçou-se, olhando<br />
para um motorista paralisado de susto que tentava balbuciar<br />
alguma coisa. O suor escorria pingando de sua testa gor<strong>da</strong><br />
e o terno amarfanhado parecia ser de alguém bem mais<br />
magro que ele. Enfiando-se para dentro do carro, Iara puxou<br />
aquela massa abobalha<strong>da</strong> pela gola e meteu as cabeças<br />
de rato na boca do infeliz. Ele cuspia, engasgava, debatiase<br />
e chorava. Ela insistiu até ter certeza que to<strong>da</strong>s as seis<br />
cabecinhas haviam descido pela garganta do homem, que<br />
agora tinha espasmos e tentava vomitar. Iara afastou-se do<br />
carro e foi sentar-se ao lado de Mogul. Seu corpo nu de<br />
um verde-água ain<strong>da</strong> estava sujo por pontilhados de esgoto.<br />
Num relance poderia ser confundido com uma mancha<br />
de mofo crescendo no concreto.<br />
O homem atacado saiu do carro aos tropeções, enfiando<br />
o dedo na goela, forçando um vômito que não vinha.<br />
Sua agonia fez com que an<strong>da</strong>sse até as imediações <strong>da</strong><br />
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Alliah<br />
<strong>obra</strong> ali perto. Curvado e olhando para o chão enquanto<br />
engolia quase o braço inteiro, não ouviu os gritos de alerta<br />
e teve a cabeça atingi<strong>da</strong> por uma viga que se desprendeu<br />
do guin<strong>da</strong>ste. O crânio amassou e afundou. O corpo caiu<br />
estrebuchando e rolou até uma vala. Seu carro largado na<br />
pista estremeceu e lamentou choroso. Perdera seu vínculo<br />
orgânico e morreria junto com o dono. Desfez-se em segundos.<br />
Pereceu derretendo no asfalto. O trânsito foi liberado<br />
e os veículos avançaram velozes.<br />
— As buzinas estavam me irritando – disse Iara<br />
depois de sorrir e puxar um cigarro do bolso de Mogul.<br />
Marmelo ain<strong>da</strong> se lembrava dos gritos <strong>da</strong> irmã.<br />
Esganiçados, preenchiam o ar como navalhas degolando<br />
ca<strong>da</strong> centímetro <strong>da</strong> culpa que sufocava aqueles que a haviam<br />
vendido aos traficantes. Agachado num canto, o<br />
menino abraçava os joelhos ossudos com mãos erodi<strong>da</strong>s<br />
de calos e arrebenta<strong>da</strong>s de pó, tão frágeis como gravetos<br />
secos. Seus olhos úmidos distinguiam sombras agiganta<strong>da</strong>s<br />
que queimavam as paredes num contraste entre a luz<br />
amarela<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tochas e os contornos obtusos dos mercadores.<br />
Levariam a menina embora, e a mutilariam por<br />
meses seguidos com uma brutali<strong>da</strong>de tão rapace que em<br />
pouco tempo ela arranjaria um jeito de se suici<strong>da</strong>r <strong>da</strong>ndo<br />
com a cabeça na parede, num desespero eviscerado em<br />
ossos partidos e lágrimas catarrentas.<br />
Mas eles precisavam do dinheiro. Seus pais não perderiam<br />
a oportuni<strong>da</strong>de de garantir um naco de pão duro e<br />
fatias de carne salga<strong>da</strong> em troca <strong>da</strong> violação de sua filha.<br />
Afinal, crianças são fáceis de fabricar, poderiam fazer mais<br />
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Metanfetaedro<br />
uma quando a fome apertasse novamente. Ou talvez a<br />
pressão <strong>da</strong>queles canos de ferro amassando suas nucas e<br />
cavando sulcos enferrujados em sua pele fosse apenas<br />
um incentivo a mais. Amedrontado, Marmelo pensou que<br />
também seria vendido, mas os traficantes apenas o miraram<br />
com desprezo e cuspiram em seus olhos, não sem<br />
antes fazê-lo chupar seus membros enrijecidos, por puro<br />
capricho e zombaria. O gosto do esperma misturou-se<br />
ao gosto de seu próprio sangue assim que as laterais de<br />
sua boca foram rasga<strong>da</strong>s. Sua irmã desmaiara com uma<br />
coronha<strong>da</strong> na cabeça. Seus pais estavam ocupados demais<br />
contando o dinheiro. E o tempo pareceu estancar<br />
naquele fim de tarde calorento, estagnado entre a savana<br />
lá fora e o casebre emporcalhado, pintando em sua memória<br />
o rapto e o assassinato de uma inocência há tanto<br />
perdi<strong>da</strong>, em seus míseros oito anos de i<strong>da</strong>de.<br />
Mogul não era <strong>da</strong>li. Nem Iara. Ele viera traficado<br />
<strong>da</strong> África. Ela fora parar na lagoa Rodrigo de Freitas por<br />
acidente. Encontraram-se pela Aveni<strong>da</strong> Brasil algum tempo<br />
depois e estabeleceram uma amizade. Faziam malabarismos<br />
nos sinais com frutas ou cabeças de animais mortos.<br />
Roubavam comi<strong>da</strong>, bebi<strong>da</strong>, dinheiro e um pouco de<br />
paciência. Cheiravam cola e fumaça. Tentavam conformar-se<br />
no equilibrismo de suas existências ignora<strong>da</strong>s.<br />
O menino ocupava-se de raspar a erva <strong>da</strong>ninha<br />
que crescia nos trechos de um muro. O grafite descascado<br />
que forrava o tijolo movimentava-se vagaroso, com<br />
preguiça de se mexer debaixo <strong>da</strong>quele mormaço. Dois<br />
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Alliah<br />
alienígenas segurando crânios de búfalo, olhando-se num<br />
espelho que refletia humanos sem cabeça. Mogul só conseguia<br />
entender aquilo quando estava chapado.<br />
— Tu acha que essa erva dá algum barato? – perguntou<br />
a Iara.<br />
— Deve <strong>da</strong>r mais barato se você lamber minha<br />
pele – respondeu a sereia. – As coisas gru<strong>da</strong>m no meu<br />
corpo e são absorvi<strong>da</strong>s, metaboliza<strong>da</strong>s, dissolvi<strong>da</strong>s na<br />
minha corrente sanguínea. Se é que eu posso chamar de<br />
sangue essa linfa contamina<strong>da</strong>.<br />
— Coisas, que coisas?<br />
— Garrafas plásticas, embalagens de biscoito,<br />
latinhas de refrigerante, pneus queimados, sofás rasgados,<br />
molas quebra<strong>da</strong>s, espumas químicas, carne de peixe<br />
com chumbo, psicotrópicos vencidos, produtos duvidosos,<br />
câncer em bisnagas, qualquer porra menos água pura<br />
e simples.<br />
Mogul riu e aproximou-se de Iara, afastando-lhe<br />
os cabelos e lambendo seu pescoço.<br />
— Argh! Tem gosto de mer<strong>da</strong>! – disse o moleque,<br />
cuspindo e limpando a boca com as costas <strong>da</strong> mão.<br />
— E esgotos. Esqueci de mencionar os esgotos –<br />
suspirou a sereia. – E pensar que nesse ramo não podemos<br />
mu<strong>da</strong>r de profissão... Que puta mãe-d’água eu sou,<br />
sem uma porra de um pingo-d’água s<strong>obra</strong>ndo.<br />
— Olha! O Maestro!<br />
Mogul apontava para a sombra que se aproximava.<br />
Era o líder do espetáculo itinerante de performances<br />
sinestésicas que ro<strong>da</strong>va o país nos últimos anos, um arlequim<br />
com chapéu de malandro, avançando pelas ruas<br />
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Metanfetaedro<br />
brandindo um chicote que serpenteava vivo. A figura de<br />
roupas extravagantes desfilava um sorriso pre<strong>da</strong>dor e<br />
olhos mor<strong>da</strong>zes. Anunciava as atrações de seus espetáculos<br />
com uma projeção vocal que ecoava nos paredões<br />
envidraçados dos arranha-céus e assentava nos capôs dos<br />
carros. Atrás de si, uma profusão de maravilhas.<br />
Chegara o circo. Veio pintando as ruas, saltando as<br />
calça<strong>da</strong>s, agitando os viadutos. Os homens de perna de pau<br />
realmente tinham perna de pau. Eram longuíssimas e<br />
enverniza<strong>da</strong>s. Costuravam por entre os carros e prédios. Vez<br />
ou outra se acidentavam, pisando em falso numa tampa de<br />
bueiro mal coloca<strong>da</strong> (isso quando o bueiro ain<strong>da</strong> tinha tampa).<br />
As bailarinas rodopiavam leves e etéreas pela multidão.<br />
Seus corpos flutuantes viravam fitas colori<strong>da</strong>s, que brilhavam<br />
esforça<strong>da</strong>s sob a luz filtra<strong>da</strong> de um sol laranja. Os raios<br />
chegavam fracos de luz e vermelhos de fogo. Esturricavam<br />
cabeças desprotegi<strong>da</strong>s e assavam gatos vira-latas que se rendiam<br />
tostados pelas esquinas. Os palhaços perambulavam<br />
despreocupados, jorrando tinta de seus dedos e lábios borrados.<br />
As pessoas que passavam por essas criaturas assustadoramente<br />
felizes tinham seus rostos e roupas pintados em<br />
espirais abstratas e padrões geométricos. A purpurina que se<br />
acumulava no meio-fio fazia brilhar o embolorado de lixo e<br />
lama que entupia os ralos. Mogul abaixava-se para observar<br />
de perto as cores metaliza<strong>da</strong>s que sobressaíam do preto. Lembrava<br />
petróleo. Era o maior show <strong>da</strong> Terra.<br />
— Meu irmão mais novo ia querer assistir aos espetáculos...<br />
– murmurou Mogul, embevecido momentaneamente<br />
pela espiral de criaturas colori<strong>da</strong>s passando diante<br />
de seus olhos arregalados.<br />
|| 16 ||
Alliah<br />
— E cadê ele? – in<strong>da</strong>gou Iara, rodea<strong>da</strong> por um grupo<br />
de bailarinas que <strong>da</strong>nçavam e a puxavam para participar.<br />
— Em casa – respondeu o menino.<br />
A sereia desvencilhou-se <strong>da</strong>s mãos delica<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong>nçarinas. Aqueles corpos magrelos e esguios, de faces<br />
brancas como porcelana e feições de boneca a lembravam<br />
sua irmã bastar<strong>da</strong> que se desgarrara e fugira. Sangue<br />
de divin<strong>da</strong>de indígena norte-americana com carne de<br />
elemental amazonense. Sumi<strong>da</strong>, provavelmente perdera<br />
os dotes xamânicos. Ou se vendera em busca de diversão<br />
humaniza<strong>da</strong>.<br />
— Do outro lado do oceano – completou Mogul.<br />
Seus dedos esverdeados agora cheiravam a algodão-doce.<br />
Deu vontade de comê-los.<br />
— Minha irmã também – Iara falou.<br />
Acor<strong>da</strong>ra atordoado com as lembranças<br />
ensandeci<strong>da</strong>s que lhe perfuravam o crânio. Uma cumbuca<br />
de barro cheia de água turva e um fuzil melecado de suor<br />
eram suas mais agradáveis companhias. Gritos expandiam-se<br />
lá fora, alternando dialetos tribais e xingamentos em<br />
uma cornucópia de línguas colonizadoras. A cabana de lona<br />
verde-musgo protegia-o tão eficientemente quanto um útero<br />
a poucos centímetros de ser retalhado por uma peixeira.<br />
Mas aprendera a ser tão parasita quanto um feto, e ocupava-se<br />
de sugar com vigor e indiferença to<strong>da</strong> e qualquer<br />
oportuni<strong>da</strong>de de conseguir mais alguns nacos de mastigação,<br />
assassínio e orgasmo. Era tudo que lhe restara e tudo que o<br />
mantinha, após estourar a cabeça dos pais com uma rocha,<br />
|| 17 ||<br />
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Metanfetaedro<br />
aos nove anos. Golpeara ambos com tanta truculência e<br />
cegueira que, muito depois de reduzir suas cabeças e cérebros<br />
a uma pasta rosa<strong>da</strong> com croutons de cálcio, continuou<br />
desferindo pedra<strong>da</strong>s na esteira de palha abaixo de seus corpos<br />
sem sequer perceber que já os havia ultrapassado. Berrara<br />
o nome de sua irmã a ca<strong>da</strong> panca<strong>da</strong>.<br />
Marmelo foi despertado do estupor com um chute<br />
nas costelas. Uma bota preta lhe pressionou o rosto,<br />
enquanto seus ouvidos lambiam as ordens que lhe eram<br />
dita<strong>da</strong>s. Saiu apressado e juntou-se aos outros meninos lá<br />
fora, com o fuzil desajeita<strong>da</strong>mente seguro nas mãos. A<br />
paisagem estendia-se desértica, com uma vegetação<br />
esparsa em tons de sépia. Ao longe, arbustos erguiam-se<br />
tímidos. As cabanas, os veículos blin<strong>da</strong>dos e as centenas<br />
de militares que se agrupavam naquele fim de mundo africano<br />
preparavam-se para mais uma batalha. Alguém de<br />
uma determina<strong>da</strong> tribo insultara alguém de outra tribo,<br />
que revi<strong>da</strong>ra com ofensas religiosas, atingindo líderes<br />
inconformados e deflagrando um estouro de libertinagem<br />
política e autoritarismo movido por pura vai<strong>da</strong>de.<br />
No fim <strong>da</strong>s contas, a matança era apenas uma diversão<br />
para uma elite sádica espectadora e um meio de movimentar<br />
o comércio de armas e o tráfico de crianças. E lá<br />
estava ele, guerreando ao lado dos mesmos homens que<br />
compraram sua irmã havia pouco mais de dois anos. Mas<br />
tudo tinha um preço. Até mesmo a memória.<br />
Marcharam disciplinados após uma bateria de exercícios.<br />
As ordens eram simples e diretas. Invadiriam o<br />
vilarejo, incendiariam ca<strong>da</strong> casa e matariam ca<strong>da</strong> homem,<br />
mulher e criança com quem esbarrassem pelo caminho.<br />
|| 18 ||
Alliah<br />
Saqueariam alimentos, roupas e metais. Poderiam estuprar<br />
um ou outro para amenizar a tensão e divertir-se um<br />
pouco, e abandonariam o local o quanto antes. Mensagem<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>, missão frustra<strong>da</strong>. Pois eles não contaram com<br />
a resistência surpresa que os emboscou numa chuva de<br />
flecha<strong>da</strong>s e tiros cuspidos por armamentos de fabricação<br />
israelense e alemã, comprados através de uma rede que<br />
conectava sul-africanos, norte-americanos e egípcios. A<br />
munição globaliza<strong>da</strong> explodiu na carne subdesenvolvi<strong>da</strong><br />
de uma lavadeira, atravessou seus músculos cansados e entrou<br />
no estômago do bebê que ela carregava nos braços.<br />
O garoto, assustado com o contra-ataque, escondia-se<br />
em meio aos barracos e atirava como um louco<br />
nos vultos apavorados que corriam entre tropeções. Mas<br />
não demorou até que alguém o estrangulasse com braços<br />
que ardiam sob um sol infernal lhes escal<strong>da</strong>ndo a cabeça.<br />
Jurou que podia sentir a traqueia torrando como um pe<strong>da</strong>ço<br />
de bacon. Desvencilhou-se com cotovela<strong>da</strong>s antes<br />
que apagasse, virou-se e enfiou o cano do fuzil no olho<br />
do infeliz que o agarrara, deixando o corpo tombar no<br />
chão com um baque surdo, ostentando a arma entranha<strong>da</strong><br />
na cabeça como um troféu macabro, borbulhando<br />
sangue e gordura.<br />
Acovar<strong>da</strong>do, Marmelo fugiu do pandemônio e escondeu-se<br />
com certa dificul<strong>da</strong>de entre árvores baixas espinhentas<br />
e ossa<strong>da</strong>s de elefante além dos limites do vilarejo.<br />
Infelizmente o marfim já havia sido cortado fora e coletado<br />
para abastecer o tráfico, mas achou que carregar um<br />
pe<strong>da</strong>ço de costela gigante poderia ser útil de alguma maneira.<br />
Adormeceu exausto, ain<strong>da</strong> ouvindo o crepitar do<br />
|| 19 ||<br />
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Metanfetaedro<br />
fogo que subira pelos casebres e pintara a paisagem com<br />
cinzas enegreci<strong>da</strong>s bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s por fagulhas. Os gritos extinguiram-se<br />
logo após os tiros, um silêncio emoldurado<br />
num entrelace de cadáveres pretos, tão esqueléticos quanto<br />
o espectro de terror que emanava de suas expressões paralisa<strong>da</strong>s.<br />
Pneus cantando na gramínea denunciaram a fuga<br />
dos militares. Ninguém o vira. Apagou.<br />
— O que aconteceu com teu irmão? – perguntou<br />
Iara enquanto an<strong>da</strong>vam acompanhando uma trupe de<br />
acrobatas que usavam a geografia acidenta<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
como palco.<br />
— Não sei. A última vez que eu vi o moleque ele<br />
era uma lombriga de gente, pequenininho e magrelo, parecendo<br />
um pe<strong>da</strong>ço de pão desses compridos que vende<br />
na pa<strong>da</strong>ria.<br />
— Uma bisnaga?<br />
— Não. Lombriga.<br />
O Maestro aproximou-se <strong>da</strong> dupla a passos<br />
acarpetados. Olhando de perto era possível distinguir o<br />
rosto debaixo <strong>da</strong>quele chapéu. As cama<strong>da</strong>s grossas de<br />
maquiagem sobrepunham-se infinitas, absorvendo-se<br />
umas às outras, renovando-se continuamente. Pareciam<br />
nascer diretamente dos ossos, brotar <strong>da</strong>s entranhas como<br />
fluidos orgânicos. O arlequim adiantou-se, pondo-se na<br />
frente <strong>da</strong> dupla e passou a acompanhar Mogul e Iara com<br />
passos para trás. Seu chicote enrolava-se em seu corpo,<br />
fundia-se à roupa de losangos vermelhos e pretos e renascia<br />
nalgum canto, sibilando e sumindo novamente.<br />
|| 20 ||
Alliah<br />
— Ora, ora, ora, quem eu vejo por aqui... Iara, a<br />
rainha <strong>da</strong>s águas! – exclamou, estendendo uma <strong>da</strong>s mãos<br />
para cumprimentá-la.<br />
— Se ain<strong>da</strong> existissem águas que merecessem algum<br />
reinado... – resmungou a sereia, mal olhando para o<br />
Maestro e ignorando o cumprimento.<br />
— Ouviu falar que o Boto agora é nosso sócio?<br />
Por que não se junta à nossa família? – in<strong>da</strong>gou o arlequim<br />
com um sorriso de canto de boca.<br />
— Eu quero! – respondeu o moleque, pulando de<br />
excitação e com aqueles olhos nojentos brilhando de uma<br />
maneira torta.<br />
— Não falei com você, menino, desinfeta <strong>da</strong>qui! –<br />
disse rispi<strong>da</strong>mente. – Estou tratando de negócios com<br />
uma divin<strong>da</strong>de, não com um ninguém.<br />
Mogul ficou puto ao mesmo tempo em que queria<br />
chorar. Levava esse tipo de porra<strong>da</strong> na cara todos os dias,<br />
com os olhares acusadores <strong>da</strong>s pessoas e os xingamentos<br />
gratuitos. Talvez merecesse um palavrão ou outro quando<br />
roubava. Mas aquele insulto partindo de quem mais admirava<br />
nos últimos tempos foi como uma bigorna nas costelas<br />
(se soubesse exatamente o que era uma bigorna). Mogul virou<br />
e seguiu outro caminho, procurando algo em que descontar.<br />
Iara apenas suspirara entedia<strong>da</strong>. O Maestro tentou<br />
puxá-la pela mão, mas tudo que conseguiu foi atravessar<br />
um pe<strong>da</strong>ço suspenso de água suja. A pele esverdea<strong>da</strong> tremeluzia<br />
como uma película de limo envelhecido.<br />
— Você não vai durar muito tempo aqui fora –<br />
sentenciou o arlequim antes de afastar-se e seguir o caminho<br />
dos acrobatas.<br />
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Metanfetaedro<br />
“Como se precisassem de mim”, pensou a sereia, fechando<br />
a expressão num tom melancólico. Via as sombras<br />
dos corpos magníficos dos acrobatas interagindo com os prédios<br />
e ruas e sentia a ci<strong>da</strong>de respirando em preto e branco.<br />
Foi atrás de Mogul. Encontrou-o socando outro<br />
menino de rua. Os dentes do garoto agredido estavam<br />
ensanguentados (os que ain<strong>da</strong> restavam inteiros na boca).<br />
Três estavam cuspidos no chão. Baba e lágrimas escorriam<br />
por suas bochechas e queixo. Mogul ain<strong>da</strong> segurava-o pela<br />
camisa encardi<strong>da</strong> quando Iara o tocou no ombro, chamando-o.<br />
Os dedos gelatinosos e frios arrepiaram-lhe a espinha.<br />
— Vou embora.<br />
— Por quê?<br />
— Porque não posso ficar nem morrer. Água é<br />
instabili<strong>da</strong>de e movimento, mesmo quando se torna lodosa<br />
e poluí<strong>da</strong>.<br />
— Tu vai fazer uma puta falta.<br />
— Vê se te cui<strong>da</strong> pra não acabar que nem teu irmão.<br />
Iara estava partindo. Ficaria sozinho novamente.<br />
Sentiu o peso do mundo amassando o saco.<br />
— Ele deve tá melhor que eu... Espero que esteja<br />
melhor que eu... Pra onde tu tá indo?<br />
— Pra baía de Guanabara.<br />
— Aquele entulho?<br />
— Tem uns cantos interessantes nos destroços <strong>da</strong><br />
antiga ponte. Eu posso fingir que são rochas margea<strong>da</strong>s<br />
por límpi<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s azula<strong>da</strong>s e cantar para os náufragos...<br />
– disse a sereia enquanto escorria pelas ruas e descia pelos<br />
esgotos.<br />
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Alliah<br />
— Depois eu que sou o maluco – murmurou<br />
Mogul para si mesmo, despedindo-se de Iara logo depois<br />
com um aceno de mão.<br />
Roubou uns trocados amassados que estavam nos<br />
bolsos do garoto que desmaiara meio zonzo ali perto, e<br />
saiu deixando o corpo arfante para trás.<br />
Marmelo sonhava. A terra quebrava-se e abria-se<br />
num abismo de enxofre. Labare<strong>da</strong>s engolfavam suas pernas<br />
e arrastavam-no, enquanto suas unhas podres quebravam-se<br />
ao afun<strong>da</strong>r no solo seco e infectavam a carne<br />
viva de seus dedos arrebentados. Acordou gritando de<br />
pavor, mas apenas os abutres que lhe rodeavam a cabeça<br />
ouviram suas lamúrias de agonia. Seu corpo desnutrido<br />
exalava o cheiro <strong>da</strong> morte, a poucos instantes de perecer<br />
e cozinhar sob o sol, servindo de alimento aos carniceiros<br />
que o espreitavam. Tão famintos que podia sentir a<br />
baba escorrendo de seus bicos. Na sede insuportável que<br />
contraía sua garganta, seria capaz de esmagar a cabeça<br />
<strong>da</strong>queles pássaros e beber de sua saliva num banquete<br />
empenado que lhe martelou a cabeça com tambores tribais<br />
e cânticos vudu.<br />
Assaltado pela loucura, arrastou-se a esmo pela savana<br />
tentando lembrar a trilha de volta para o acampamento, afastando-se<br />
ca<strong>da</strong> vez mais do vilarejo destruído. Não sabia mais<br />
distinguir as direções que galgava, podia estar an<strong>da</strong>ndo em<br />
círculos havia dias. O horizonte escorreu por seu olhar e as<br />
nuvens esparsas giravam num caleidoscópio sanguinolento<br />
que o assombrava com os fantasmas <strong>da</strong>queles que havia<br />
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Metanfetaedro<br />
matado. Suas bochechas ain<strong>da</strong> estavam marca<strong>da</strong>s pela bota,<br />
e seus movimentos ain<strong>da</strong> estavam marcados pela coerção.<br />
Inebriado pela atmosfera seca que lhe arranhava<br />
as narinas e arrebentava as veias, o garoto apalpou as roupas<br />
à procura de qualquer coisa que pudesse comer. Roeria<br />
o osso de elefante se não tivesse largado a costela pelo<br />
caminho devido ao peso.<br />
Descobriu um punhado de munição nos bolsos,<br />
como pequenas jujubas de metal. Incandescentes, queimaram-lhe<br />
a palma, e caíram em meio à poeira. O menino<br />
abaixou-se para pegá-las de volta, mas em vez de repôlas<br />
nos bolsos encardidos, enfiou-as na boca. Os dentes<br />
desgastados e a gengiva apodreci<strong>da</strong> doeram e sangraram<br />
ao contato com a bala de metal. O gosto do ferro passeou<br />
por sua língua com o amargo e o azedo beijando-se<br />
num lamaçal de fumaça. Quebrou alguns dentes, e engoliu<br />
os pe<strong>da</strong>ços junto com três balas inteiras. Esfomeado,<br />
devorou to<strong>da</strong> a munição, chupando-as e trincando-as<br />
como açúcar mascavo. O sangue e a baba escorriam de<br />
seu beiço ressecado, molhando seu queixo proeminente.<br />
A cabeça oval muito grande em comparação com o corpo<br />
miúdo e sugado pendia com feroci<strong>da</strong>de sobre aquela<br />
lambança. E logo estava lambendo seus dedos infectados,<br />
mastigando-os junto com as últimas lascas de metal que<br />
se empoleiravam nos tocos de dentina que se expunham<br />
num amarelo-gema.<br />
O ensopado de pólvora e canibalismo urgia em seu<br />
estômago. Deixou-se cair no chão, estrebuchando, enquanto<br />
suas pupilas perdiam-se no topo <strong>da</strong> cabeça e sua consciência<br />
espatifava-se num redemoinho de ácido. Sua visão<br />
|| 24 ||
Alliah<br />
semicerrou-se num recorte de colagens afetivas. Uniformes<br />
camuflados, armamentos de quase a sua altura, uma<br />
boca feminina gritando de dor e mãos colossais apertando-lhe<br />
o ombro, transferindo a dor física para o seu lobo<br />
frontal, onde tomaria suas decisões de acordo com aquilo<br />
que ameaçava os ossos.<br />
O moleque caminhou desiludido. Já sentia falta <strong>da</strong><br />
presença confortante <strong>da</strong> mãe-d’água, o único tipo de mãe<br />
que tivera por perto. Arrastava os pés cheios de calos e<br />
feri<strong>da</strong>s pelas ruas abarrota<strong>da</strong>s do centro. Gente apressa<strong>da</strong><br />
movendo-se como grandes correntes humanas. Pacotes<br />
de preocupação e urgência conti<strong>da</strong>. Esbarravam nele<br />
como se fosse invisível. Se alguém se demorasse um<br />
tiquinho que fosse para mirar seu rosto, atravessaria a rua<br />
com medo de ser assaltado. Sua cor o precedia.<br />
Passou pela Cinelândia, parando entre um passo e<br />
outro para ver uma apresentação de malabares e pirofagia.<br />
O fogo cuspido quase incendiava o ar em volta, com to<strong>da</strong><br />
aquela névoa cinza-alaranja<strong>da</strong> de poluição. Mas o encanto<br />
lhe era descolorido agora. Prosseguiu a caminha<strong>da</strong>.<br />
Chegou à Lapa.<br />
Os arcos abrigavam bolsões orgânicos de podridão.<br />
Medi<strong>da</strong> de segurança. Grandes sacos de tecido vivo que<br />
cobriam os espaços e vãos debaixo dos arcos, onde antes<br />
se abrigavam bêbados e mendigos, estropiados e prostitutas,<br />
vadios e ninguéns. Era o buraco de sujeira faltante depois<br />
que os moradores de rua haviam sido gentilmente<br />
dizimados. Higienização, diziam. Segurança, argumentavam.<br />
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Metanfetaedro<br />
Filha <strong>da</strong> putisse, Mogul pensava. O menino gostava de<br />
ficar olhando os bolsões. Pareciam os estômagos de uma<br />
planta carnívora gigante. Meio avermelhados, meio<br />
esverdeados. Inchavam e ondulavam. Bolhas de ar cresciam<br />
lá dentro, estouravam deixando escorrer uma gosma<br />
amarela<strong>da</strong> pelas paredes do tecido. Mastigava e digeria lixo.<br />
Ou pessoas, se alguém chegasse perto demais.<br />
Mogul comprou um acarajé ali perto e sentou no<br />
gramado. O camarão parecia ter gosto de qualquer coisa<br />
menos camarão. Seus olhos fechavam-se ca<strong>da</strong> vez mais,<br />
aquela maldita massa cancerosa escorrendo pus e pesando<br />
sobre seu globo ocular estava começando a irritar.<br />
Terminou de comer e foi sentar-se de frente para um dos<br />
bolsões. Escolheu o que estava digerindo um cachorro.<br />
Seu nariz a apenas poucos centímetros do tecido<br />
translúcido. Pequenas espículas perfuravam o corpo do<br />
animal, pareciam sugar seus músculos, ou desfragmentálos<br />
com algum ácido. Escorria uma pasta rosa<strong>da</strong> dos buracos<br />
deixados em seu cadáver. Ossos triturados e enzimas<br />
borbulhando. O moleque jurou ter enxergado uma lata<br />
de cerveja saindo <strong>da</strong> garganta aberta do cachorro. Tentou<br />
enxergar melhor. Curvou o corpo para frente,<br />
semicerrou os olhos, perdeu a noção. A maçaroca doentia<br />
em suas pálpebras projetava-se. Tocou o tecido do<br />
bolsão e foi suga<strong>da</strong>. O menino gritou de dor pelo pouco<br />
tempo que teve para reagir antes que seu corpo fosse<br />
tragado para dentro <strong>da</strong>quela carnificina urbaniza<strong>da</strong>.<br />
Mergulhou num líquido viscoso. Boiando, era reconhecido<br />
pelos sensores do bolsão que o apalpavam e beliscavam.<br />
Arreganharam sua boca, rasgaram suas roupas e puxa-<br />
|| 26 ||
Alliah<br />
ram seu cabelo. Fedia a erva. Começou a ser amassado por<br />
movimentos de sucção e contração dos músculos <strong>da</strong> parede.<br />
Parecia que seu corpo esquelético era amassado<br />
num pilão gigante. Foi preparado e temperado. Caiu numa<br />
vesícula, foi transportado até em cima, num rombo na<br />
estrutura, e entrou em combustão. O bondinho parou<br />
no meio do caminho para não ser incendiado também.<br />
Os passageiros, a maioria um bando de turistas<br />
apalermados, espichou as cabeças e as câmeras fotográficas<br />
para fora, tentando registrar um naco <strong>da</strong>quele evento<br />
incomum. A fumaça perfuma<strong>da</strong> exalando inebriante entorpecia<br />
os mais próximos.<br />
As expressões curiosas eram estúpi<strong>da</strong>s.<br />
A ci<strong>da</strong>de o fumava em grandes bafora<strong>da</strong>s.<br />
E o Rio de Janeiro continua lindo.<br />
Sentiu algo gelatinoso e frio tocando seu corpo<br />
em choque. Marmelo abriu os olhos com preguiça. A<br />
língua pastosa posta para fora como um tumor inchado<br />
recolheu-se vagarosa. Um gigantesco tentáculo azul rodeava-lhe.<br />
Um tentáculo de polvo, ou criatura semelhante.<br />
Vasculhou as imediações. Os tentáculos surgiam do<br />
na<strong>da</strong> e perdiam-se no na<strong>da</strong>. Então percebeu a sombra<br />
delica<strong>da</strong> de uma mulher para<strong>da</strong> logo atrás de si. De pele<br />
branca como porcelana, feições de boneca e maquiagem<br />
circense, a jovem trajava um espartilho simples e uma<br />
saia vaza<strong>da</strong> e arma<strong>da</strong> que atingia a altura dos joelhos, aberta<br />
no formato de um sino. Um pequeno guar<strong>da</strong>-chuva branco<br />
e vermelho, seguro em suas mãos de dedos finos e<br />
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Metanfetaedro<br />
quase translúcidos, protegia-lhe a cabeça. O menino, boquiaberto,<br />
tentou levantar apoiando-se nos tentáculos, mas<br />
estava sem forças.<br />
A mulher tocou-lhe o peito ossudo, abrindo-o com<br />
sutileza e expondo uma miríade de diamantes incrustados<br />
na superfície porosa do esterno e <strong>da</strong>s costelas do menino.<br />
Apavorado e embevecido, ele olhava para a bela figura enquanto<br />
ela minerava seu corpo e guar<strong>da</strong>va os diamantes no<br />
decote. Os tentáculos apertaram suas pernas, a jovem afastou-se<br />
assim que terminou o trabalho e ambos sumiram<br />
no horizonte alaranjado e salpicado de miragens quebra<strong>da</strong>s.<br />
O garoto estava com um sorriso de palhaço pintado<br />
no rosto, acompanhando as cicatrizes que lhe esgarçavam<br />
os lábios. Intoxicado pela curiosi<strong>da</strong>de, recolheu-se como<br />
um feto, abraçou os joelhos e tentou dormir lembrandose<br />
do lindo rosto <strong>da</strong>quela mulher. Suas costelas deflora<strong>da</strong>s<br />
germinavam como uma mutilação plástica. Mas seu coração<br />
de menino estava em polvorosa. Pe<strong>da</strong>ços de seu corpo<br />
alimentariam a vai<strong>da</strong>de carnívora de uma joia mol<strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />
mãos tão agrilhoa<strong>da</strong>s quanto as suas, transporta<strong>da</strong>s por uma<br />
mescla de identi<strong>da</strong>des rouba<strong>da</strong>s e deposita<strong>da</strong> nos dedos de<br />
uma ocidental qualquer desejosa de camuflar suas infelici<strong>da</strong>des<br />
com hipocrisias consumistas. Afinal, as rotulações<br />
que o totalitarizavam eram <strong>da</strong> mesma síntese econômica<br />
que colava os preços sangrados nos diamantes de uma vitrine.<br />
Adormeceu internacionalizado.<br />
O resto é silêncio.<br />
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Uma<br />
ci<strong>da</strong>de<br />
sonhando<br />
seus<br />
metais<br />
29
Alliah<br />
Esta é uma <strong>amostra</strong> <strong>da</strong> <strong>obra</strong><br />
Metanfetaedro, gera<strong>da</strong> pela <strong>Tarja</strong><br />
<strong>Editorial</strong> para fins de divulgação. A<br />
<strong>obra</strong> final é composta por 8 contos<br />
totalizando um livro com 232 páginas.<br />
As imagens aqui conti<strong>da</strong>s estão em<br />
baixa resolução para diminuição do<br />
arquivo final, porém na versão impressa<br />
elas encontram-se no tamanho final.<br />
Esse arquivo pode ser distribuido desde<br />
que seja incorpora<strong>da</strong> sua fonte.<br />
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