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+soma . #14<br />

“Entre o sim e o não existe um vão”,<br />

cantava Itamar Assumpção em “Chavão Abre a Porta Grande”.<br />

A vida do compositor nascido em Tietê, que encontrou seu<br />

destino em Londrina e elegeu a cidade de São Paulo como musa,<br />

foi um salto cego nesse vão. Ali, entre o sim e o não, ele disse suas<br />

verdades mais profundas, viveu seus grandes dilemas, plantou<br />

suas orquídeas e colheu tudo que a vida dá a quem vive sem<br />

medo da morte. A <strong>+Soma</strong> mergulhou nesse vão atrás do rastro do<br />

fenômeno cósmico chamado Itamar Assumpção, que completaria<br />

60 anos neste ano. Apesar de sua aparição ainda ser ignorada<br />

pela maioria dos brasileiros, falamos com um punhado valente<br />

deles, que se dedica bravamente a manter viva a influência de um<br />

compositor cada vez mais essencial, em um mundo onde a música<br />

popular desafia cada vez menos os ouvintes.<br />

Igualmente desafiadora é a seleção de discos peneirados por Rob<br />

Mazurek, jazzista de Chicago que vive lá e cá, emprestando sua<br />

dose de excelência a projetos como o São Paulo Underground e<br />

vários outros. Aceitar o desafio de Mazurek, por sinal, foi uma das<br />

coisas que levaram Richard Ribeiro do punk ao instrumental sagaz<br />

do Porto, aparentado musical do gaúcho Marcelo Armani. Para<br />

Daniel Melim, o desafio é produzir transformação social real. Sua<br />

arte urbana engajada e contestadora encontra ecos no trabalho<br />

do polivalente rapper paulistano Criolo Doido, idealizador da Rinha<br />

dos MCs, principal celeiro do hip-hop na capital paulista,<br />

e do carioca Marechal, que se divide entre seu projeto musical e<br />

oficinas com crianças carentes. Também do Rio vem o impagável<br />

artista e comediante nas horas vagas Felipe Motta, que fez<br />

história no mundo do skate desde os anos 90 com seu traço<br />

inconfundível em shapes, camisetas e trabalhos comerciais,<br />

e que tem um trabalho autoral ainda não muito conhecido,<br />

mas tão significativo quanto. De quebra, ele fala ainda sobre<br />

seu mítico personagem Cara de Cavalo, sucesso há vários anos<br />

no YouTube. Longe de dualidades simplórias, os artistas Paulo<br />

Monteiro e Rodrigo Andrade, ícones da Geração 80, exploram<br />

os limites da forma e da pintura figurativa como nos dizeres de<br />

Beckett: “Ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar. Tentem<br />

de novo, falhem de novo, falhem melhor!”<br />

Apesar de perspectivas autorais e visões de mundo diferentes,<br />

esses artistas estão aqui por uma mesma razão. Como Itamar,<br />

fazem de sua arte um aviso: “Não adianta vir arreganhando os<br />

dentes para mim, porque sei que isso não é um sorriso.”<br />

+SOMA


+conteúdo<br />

Shuffle: Rob Mazurek<br />

Itamar Assumpção<br />

Paulo Monteiro + Rodrigo Andrade<br />

Buenos Aires Hardcore<br />

Daniel Melim<br />

Editorial de Fotos: Patrícia Araujo<br />

Acertando as Contas: Felipe Motta<br />

Entre (Outros)<br />

Fernando Chamarelli<br />

Bate-Panela: Curumin<br />

Criolo Doido: Filósofo do Submundo<br />

MC Marechal: Mais Que Música, Uma Missão<br />

Marcelo Armani: Encontro de Sons e Pessoas<br />

Porto<br />

Quem Soma: Lucas Pexão<br />

Seleta: Ronnie Von<br />

Mini<br />

Reviews<br />

Quadrinhos<br />

Agenda<br />

16<br />

18<br />

28<br />

36<br />

40<br />

44<br />

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98<br />

105<br />

10 11<br />

ezekielbrasil.com<br />

*$ 1,99 é o nome do disco! Se você pagar um pouquinho mais, leva um pra casa, sangue bom...<br />

Lançamento do novo album $ 1,99<br />

Faça o download gratuito do album na integra em<br />

www.cemporcentoskate.com.br/afilial


O projeto <strong>+Soma</strong> é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo.<br />

Para informações acesse: www.maissoma.com<br />

Iniciativa . ssssssssssssssssss<br />

Kultur Studio<br />

Rua Fidalga, 98 . Pinheiros<br />

05432 000 . São Paulo . SP<br />

www.kulturstudio.com<br />

REVISTA SOMA #14<br />

Novembro 2009<br />

Fundadores . Kultur<br />

Alexandre Charro, Fernanda Masini,<br />

Rodrigo Brasil e Tiago Moraes<br />

Editor . Mateus Potumati<br />

Assistente Editorial . Marina Mantovanini<br />

Fotografia . Fernando Martins<br />

Revisão . Alexandre Boide<br />

Projeto gráfico . Fernanda Masini<br />

Arte . Jonas Pacheco e Rodolfo Herrera<br />

Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro e Fernando Stutz<br />

Colunistas . Gustavo Mini, Tiago Nicolas,<br />

Ricardo “Mentalozzz” Braga & Daniel “Ouriço” Peixoto, Alex Vieira, Stêvz e Gabriel Renner<br />

Gostaríamos de agradecer a Fotonauta, Agência Alavanca, Arthur Dantas, Kiko Dinucci, Luciano<br />

Valério, Pedro Potumati, Paulo Lepetit, Arrigo Barnabé, Suzana Salles, Luiz Tatit, Luiz Calanca e<br />

Baratos Afins, Anelis Assumpção, Rogério Velloso, Carol Dantas e Movie&Art, Lucas Carrasco,<br />

Jorge Rosenberg, Jairo Torres, a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que<br />

enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista.<br />

Muito obrigado!<br />

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista<br />

se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.<br />

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de<br />

seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.<br />

Publicidade . Cristiana Namur Moraes<br />

cris@kulturstudio.com<br />

Para anunciar ou enviar material para review, entre em contato através<br />

do e-mail redacao@maissoma.com.<br />

Capa<br />

Itamar Assumpção nos anos 1980, em frente a uma das<br />

colunas do MASP. Foto de Jairo Torres.<br />

Periodicidade . Bimestral<br />

Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros culturais,<br />

shows, eventos e casas noturnas.<br />

Veja os endereços em: www.maissoma.com/info<br />

Impressão . Prol Gráfica<br />

Tiragem . 10.000 exemplares<br />

C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K


+colaboradores<br />

Pedro Pinhel<br />

Pedro Pinhel é diretor de arte<br />

profissional, jornalista amador,<br />

colecionador de discos obstinado<br />

e blogueiro fanfarrão. Gosta muito<br />

de basquetebol, suco de abacaxi<br />

com hortelã e de seu setter, Banza.<br />

André Maleronka<br />

É jornaleiro, editor da Vice, não sabe<br />

cozinhar e gosta de comer stognoff<br />

de carne frio às três da manhã.<br />

Arthur Dantas<br />

31 anos. O capitalismo roubou minha<br />

virgindade e atualmente sou contra<br />

TUDO que tá aí. Ama Crass, 4 Walls<br />

e Itamar Assumpção. A favor da<br />

paz, do amor e da esperança.<br />

Flávio Grão<br />

Ilustrador, educador, pintor e<br />

escritor de fanzines. Acredita<br />

no que é arcaico: em artistas<br />

honestos, no trabalho pesado, no<br />

amor ao próximo, na sutileza da<br />

vida e na lei de causa e efeito.<br />

Tiago Mesquita<br />

Tiago Mesquita é crítico de<br />

arte, professor e está fantasiado<br />

de pirata.<br />

Janaina Felix<br />

É professora de inglês e faz<br />

traduções de graça em troca de<br />

entradas para o Espaço <strong>+Soma</strong>. Já<br />

voltou a beber e abriu uma Quilmes.<br />

14 15<br />

Fotonauta<br />

O Coletivo Fotonauta é: Andrea<br />

Marques, Daryan Dornelles e<br />

Eduardo Monteiro.<br />

Daniel Tamenpi<br />

Jornalista, pesquisador musical<br />

e DJ especializado em soul, funk<br />

e hip-hop. Escreve o blog Só<br />

Pedrada Musical, onde apresenta<br />

lançamentos e clássicos da<br />

música negra.<br />

Paulo Borgia<br />

Jornalista, são-paulino e pai do<br />

Pedro. De vez em quando faz<br />

umas fotos e ainda prefere as<br />

câmeras analógicas.<br />

Débora Pill<br />

É jornalista, produtora cultural<br />

e apresentadora do programa<br />

“Conexões Urbanas”, na rádio<br />

Eldorado FM.<br />

Amauri Stamboroski<br />

Jornalista, cover do Jack Black e<br />

orgulho de Ijuí. Durante o verão caça<br />

insetos para a sua filha, Ramona.<br />

Joshua Klein<br />

Jornalista, mora em Chicago e<br />

escreve para o Pitchfork, Chicago<br />

Tribune e Time Out Chicago,<br />

entre outros. Faz um frango<br />

assado responsa e gasta seu<br />

saleario comprando giz de cera<br />

para as duas filhas.


ROB MAzuREK segue à risca o<br />

sábio provérbio que diz que de<br />

americano carnavalesco e louco<br />

todo brasileiro tem um pouco,<br />

tanto que é americano e é um<br />

pouquinho de Brasil, aiá... Aqui,<br />

ali, acolá e além do acolá, Maza<br />

vem colecionando discos, sons,<br />

experiências, ideias, trabalhos e<br />

exalando boas vibrações por todos<br />

os poros, especialmente para nós<br />

brazucas, que temos a alegria de<br />

estar com esse folião boa parte do<br />

ano. Conheça nove discos da sua<br />

coleção e mais um que eu tive a<br />

difícil missão de escolher entre<br />

os seus projetos, discos solo,<br />

bandas etc. 1<br />

uM DISCO DE OuTROS<br />

16 17<br />

CARNAVAIS<br />

Sun Ra – Nothing Is.<br />

Não existe nenhum<br />

outro carnaval de som e visão como o<br />

grande Sun Ra. Lembro da primeira vez que o<br />

vi, num festival em Chicago nos anos 80.<br />

A banda entrou no palco usando roupões<br />

roxos ao som de percussão, pessoas<br />

cuspindo fogo, um grupo de dançarinos e<br />

sopros com Sun Ra tocando acordes<br />

mágicos pela noite.<br />

uM DISCO DA zONA<br />

FRANCA DE MANAuS<br />

Guilherme Vaz – Povos<br />

Dos Ares. Guilherme Vaz<br />

é o rei do avant garde<br />

brasileiro. Essa gravação, feita na Amazônia,<br />

usa o extraordinário vocabulário do grande<br />

compositor e seu diálogo com os elementos<br />

naturais da vida e morte. Um som assombroso<br />

de minimalismo intenso, levado aos extremos<br />

da ressonância natural.<br />

COM ROB MAzuREK<br />

Por tiago nicolas<br />

DISCO PRA APRECIAR<br />

ESTREBuCHANDO<br />

A BOA E VElHA<br />

CACHACINHA MINEIRA<br />

Bill Dixon – Intents and Purposes. Tem que ser o<br />

som mais de verdade possível. Bill Dixon é um<br />

mestre da orquestração, mesmo usando apenas<br />

a orquestra que vive dentro do seu trompete<br />

celestial. Levanto meu copo de cachaça (de<br />

preferência Coqueiro Velho, feita em Heliodora)<br />

ao mestre Bill Dixon.<br />

O DISCO DE CHI-TOwN<br />

Fred Anderson, Steve<br />

McCall – Vintage<br />

Duets. Fred Anderson<br />

acabou de fazer 80 anos e ainda toca seu<br />

saxofone tenor como um vulcão. Esse disco<br />

extraordinário, gravado com um dos meus<br />

bateristas preferidos (Steve McCall), é um<br />

ciclone de som, fúria e beleza, e encapsula a<br />

ideia da vanguarda de Chicago. Fred também é<br />

o proprietário do famoso Velvet Lounge, a casa<br />

quintessencial do avant garde da cidade.<br />

uM DISCO SEu quE VOCê GOSTARIA quE<br />

TIVESSE uMA Ou MAIS MúSICAS TOCANDO<br />

NuMA PISTA DE DANçA ESFuMAçENTA (NO<br />

CASO DE SãO PAulO, Ex-ESFuMAçENTA)<br />

São Paulo Underground – Três Cabeças<br />

Loucuras. Acabamos de gravar esse disco,<br />

e “Just Lovin” tem uma das batidas mais<br />

neuróticas do século. Se você tocar esse som<br />

numa pista de dança em que estejam presentes<br />

o mestre do Chicago house Matthew Lux,<br />

os paulistanos Chico-Akin e Tiago Mesquita,<br />

provavelmente verá uma dissolução de todos os<br />

valores estabelecidos de certo e errado.<br />

uM DISCO PRO TIO<br />

OBAMA ACABAR DE<br />

VEz COM O EMBARGO<br />

CONTRA CuBA<br />

Nuno Canavarro – Plux Quba. O disco desse<br />

português é um dos que mais mudaram minha<br />

cabeça. Um pouco disso na Casa Branca ia<br />

não só acabar com o embargo sem sentido<br />

contra Cuba como também poderia abrir<br />

mentes para uma visão de amor universal e<br />

acabar com o evangelismo de extrema direita.<br />

uM DISCO DA SuA<br />

COlEçãO quE FOGE<br />

MAIS DO SEu ESTIlO<br />

MuSICAl E AuTORAl<br />

Conlon Nancarrow – Studies for Player Piano.<br />

Uma viagem de som mecânico, primal,<br />

meticuloso e que enche o coração. Os estudos<br />

para piano mecânico de Conlon Nancorrows<br />

compõem o disco que eu sempre escuto<br />

na minha mente, mas seria completamente<br />

incapaz de tocar.<br />

O DISCO MAIS<br />

ElEGANTE DO MAzA<br />

NA MINHA OPINIãO<br />

Sound Is.<br />

2TIAGO NICOlAS é 1/6 DA CHAKA HOTNIGHTz


Itamar<br />

Assumpção,<br />

60 Anos:<br />

O Vão Que Persiste<br />

POR MATEUS POTUMATI . FOTOS DE SHOw POR JORGE ROSENBERG<br />

Na vida sou passageiro<br />

Eu sou também motorista<br />

Fui trocador, motorneiro<br />

Antes de ascensorista<br />

Tenho dom pra costureiro<br />

Para datiloscopista<br />

Com queda pra macumbeiro<br />

Talento pra adventista<br />

Agora sou mensageiro<br />

Além de para-quedista<br />

Às vezes mezzo engenheiro<br />

Mezzo psicanalista<br />

Trejeito de batuqueiro<br />

A veia de repentista<br />

Já fui peão boiadeiro<br />

Fui até tropicalista<br />

Outrora fui bom goleiro<br />

Hoje sou equilibrista<br />

De dia sou cozinheiro<br />

À noite sou massagista<br />

Sou galo no meu terreiro<br />

Nos outros abaixo a crista<br />

Me calo feito mineiro<br />

No mais, vida de artista.<br />

“Vida de Artista”, Itamar Assumpção.<br />

18 19


“Itamar era universal,<br />

a tradução do<br />

Brasil profundo.”<br />

Jorge Mautner<br />

No dia 13 de setembro deste ano, Itamar Assumpção completaria 60<br />

anos de idade. A fase madura da carreira de um dos compositores<br />

mais singulares da música brasileira foi interrompida seis anos<br />

atrás, após uma longa luta contra o câncer. Os pouco mais de 20 anos<br />

que ele dedicou à sua produção musical deixaram dez discos, dezenas<br />

de parcerias e um legado tão poderoso quanto mal divulgado e digerido.<br />

Apesar da aceitação efusiva de parte pensante da crítica e da classe musical<br />

(entre fãs notórios e assumidos estão Hermeto Pascoal, Tom Zé,<br />

Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Rita Lee e Z’África Brasil, para ficar em poucos<br />

nomes), em termos de público seu trânsito ficou restrito a um nicho<br />

formado principalmente por universitários e intelectuais, mais rarefeito à<br />

medida que se afasta da cidade de São Paulo.<br />

A capital paulista, onde ele se radicou nos anos 1970, foi figura central<br />

na sua composição. É difícil imaginar outro músico que traduza de forma<br />

tão profunda e abrangente a cidade. “São Paulo não é exatamente amor,<br />

é identificação absoluta... Sou eu”, ele canta na ainda inédita “Eu Persigo<br />

São Paulo”. Talvez essa relação simbiótica explique em parte seu isolamento<br />

do resto do país e do mundo (à exceção da Alemanha, onde tocou<br />

algumas vezes e teve parte da discografia lançada, Itamar é praticamente<br />

ignorado internacionalmente). Desde sua morte, obras importantes têm<br />

tentado reverter esse déficit, como o monumental songbook duplo Pretobrás,<br />

de 2006, de onde foram tiradas algumas aspas que ilustram esta<br />

matéria. O ano de 2010 promete dar um impulso significativo no processo,<br />

com o lançamento de um documentário e da longamente aguardada<br />

Caixa Preta, coleção idealizada pelo compositor ainda em vida, que conterá<br />

todos os seus discos de estúdio e mais dois inéditos.<br />

Contraditório, arredio, “maldito”, Itamar viveu intensamente uma série de<br />

dilemas e dicotomias: independência/sucesso, excitação/amargura, vida<br />

em família/boemia pesada, doçura/draconismo, modalismo do candomblé/vanguardismo<br />

europeu. Fez da independência completa sua grande<br />

obsessão, muito antes de o termo fazer algum sentido no Brasil. “Essa<br />

coisa de ficar de rabo preso não dá certo, nem com os amigos. Porque<br />

aí os amigos pisam no tomate e você tem que ficar quieto”, ele já disse<br />

ao parceiro Luiz Chagas. Não gostava nem que o defendessem e ironizava:<br />

“Minha música dá muito trabalho”. A poetisa Alice Ruiz, uma de<br />

suas melhores amigas e principais parceiras, dizia que tentar entender<br />

e explicar Itamar era “uma honra; mas, como é impossível, contento-me<br />

em contar nossa história”. Como ela, a <strong>+Soma</strong> não tem a pretensão de<br />

desvendar Itamar Assumpção, mas aproveita estas páginas para contar<br />

outras histórias de sua trajetória, costurar algumas relações e lançar uma<br />

pergunta: será que o Brasil triunfalista do século XXI tem condições de<br />

finalmente dar a um de seus gênios mais injustiçados um tratamento à<br />

altura de sua grandeza? 1<br />

20 21


4caPa do disco bicho de 7 cabeças vol. 1 . reProdução<br />

“Em todas as<br />

músicas está<br />

presente a diferença.<br />

O gênio com vocação<br />

para o sacrifício.”<br />

Quando despontou, no começo dos anos 1980, em São Paulo, Itamar<br />

Assumpção foi rapidamente elevado à condição de ícone de uma<br />

nova e brilhante geração de compositores e intérpretes, a chamada<br />

Vanguarda Paulista. Reunida em torno do extinto teatro Lira Paulistana, que<br />

ficava em frente à Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros, a Vanguarda<br />

era formada, além de Itamar e sua banda Isca de Polícia, por nomes<br />

como Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Tetê Espíndola e Ná Ozetti (e, de forma<br />

indireta, grupos como Premeditando o Breque, Língua de Trapo e outros).<br />

Partindo de influências diversas como o dodecafonismo, o atonalismo, a<br />

canção popular, a poesia, o teatro, o rock, o funk, o reggae e elementos da<br />

cultura pop como os quadrinhos e a narrativa radiofônica, os integrantes da<br />

Vanguarda criaram uma linguagem fortemente conectada a uma época que<br />

ansiava pelo próximo passo pós-Tropicalismo. Não à toa, muitos a consideram<br />

o movimento mais significativo na música brasileira surgido depois do<br />

encontro entre Caetano, Gil, Duprat, os Mutantes e Cia.<br />

Parte fundamental desse fenômeno começou a ser gestada em Londrina,<br />

onde Itamar conheceu Arrigo e morou de 1969 a 73. Em entrevista à <strong>+Soma</strong>,<br />

Arrigo Barnabé descreve o espírito da época.<br />

Arrigo Barnabé. Lembro a primeira vez que eu vi o Itamar, no Festival<br />

de Música de Londrina, em 1971. Eu me apresentei com uma música do<br />

Robinson [Borba, compositor e produtor], com o Paulinho [Barnabé] na<br />

percussão e o Antônio Carlos Tonelli no violão. O Itamar se apresentou com<br />

o irmão dele, Narciso e a irmã, Denise. Os caras faziam umas coisas muito<br />

legais – tocavam atabaque, tumbadora, era um barato. Depois eu voltei pra<br />

São Paulo, tranquei matrícula na faculdade por meio ano e fiquei em Londrina.<br />

Aí, em 73, foi feito o Na BOCA do BODE (misto de show coletivo e<br />

happening que marcou época na cidade, organizado pelo escritor Domingos<br />

Pellegrini com artistas locais, incluindo Arrigo e Itamar). A única coisa<br />

que eu tinha era “Clara Crocodilo” (apresentada pela primeira vez naquele<br />

show), um negócio pequeno, na época não tinha narração ainda, não tinha<br />

nada, era só uma parte musical. O Itamar era o star do Na BOCA do BODE,<br />

junto com o Edwaldo Viecili, o Robinson Borba. Ficamos mais próximos e<br />

continuamos conversando, até que falamos “Itamar, se você quiser ir pra<br />

São Paulo a gente arruma um lugar pra você ficar”.<br />

Ele já veio tocar baixo com você ou não?<br />

AB . Ainda não. O Itamar estava compondo as coisas dele, e a gente montou<br />

um grupinho pra tocar os projetos. Isso já era 74. Ele cantava, o Sérgio<br />

“Se Jorge Ben era<br />

o Sol, Itamar era<br />

a ausência da Lua.”<br />

Pamps tocava baixo, o Tonelli flauta, o Paulinho bateria, eu tocava piano e<br />

o guitarrista era o Ricardo Guará, médico e compadre do Itamar, que viria<br />

a ser seu parceiro. A gente se apresentou na Faculdade de Medicina de<br />

Pinheiros com “Sabor de Veneno”, umas músicas do Itamar – “Prezadíssimos<br />

Ouvintes” e tal – e aí eu lembro que nessa época o Itamar fez “Luzia”<br />

(cantarola, “chega de conversa mole, Luzia”) e colocou no Festival Abertura,<br />

da Globo. Eu coloquei “Clara Crocodilo”, e não fomos classificados.<br />

Já tinha “luzia” em 74, então? (A música só foi lançada em 81, no disco<br />

Beleléu, Leléu, Eu.)<br />

AB . Ah, sim, essas coisas estavam sendo gestadas. E aí nós fomos morar<br />

juntos, o Itamar na casa do Guará, uma república no Bixiga, e depois eu<br />

fui pra lá também.<br />

Foi nessa fase que apareceu o Duprat, não?<br />

AB . Isso, o Rogério Duprat se interessou pelo meu trabalho, eu levei uma<br />

fita pra ele e ele falou “monta um grupo e ensaia que a gente grava”. Aí,<br />

pô, nossa! Eu, o Itamar, o Tonelli e o Paulinho fomos morar em Eldorado<br />

(bairro na divisa de São Paulo com Diadema, perto da represa Billings),<br />

numa chácara em frente à represa. Um lugar sem carro, sem telefone...<br />

Isolados, né.<br />

Estilo “Novos londrinenses”.<br />

AB . Pois é. Ficamos ensaiando, ensaiando, ensaiando, só músicas minhas<br />

nessa época. Mas não deu certo, a coisa era muito difícil. A Zena (viúva<br />

de Itamar) ficou grávida e o Itamar falou “agora eu tenho que me virar”.<br />

A gente desmontou a casa e cada um foi tocar sua vida, o Itamar foi tocar<br />

percussão com o Jorge Mautner um tempo, mas ficamos sempre em<br />

contato. Aí, quando veio o festival da TV Cultura (1º Festival Universitário<br />

de MPB, em 1979), eu classifiquei duas músicas e chamei ele e o Paulinho<br />

pra escrever uns arranjos de base. Eles fizeram coisas muito legais mesmo,<br />

deram a cara pra “Diversões Eletrônicas” e “Infortúnio”, sabe? Ganhamos<br />

e fomos pro estúdio, nossa primeira experiência de gravação (nota: o prêmio<br />

era a gravação de um disco, que foi recusado pela gravadora; Arrigo<br />

foi em frente e bancou o que seria Clara Crocodilo do próprio bolso). Depois<br />

veio o festival da Tupi, onde fomos um relativo sucesso, ganhei como<br />

melhor arranjo, Neuza Pinheiro (então vocalista de Arrigo) melhor intérprete.<br />

Aí, em 80, o Itamar apareceu com “Nego Dito”. Puta, era um barato,<br />

a música era super legal. E aí ele colocou no festival da Vila Madalena, tirou<br />

2º lugar e com isso ficou muito conhecido. A carreira dele começou ali.<br />

22 23<br />

Tom Zé<br />

Arrigo Barnabé


Os shows da Isca de Polícia e dos outros grupos no Lira Paulistana e<br />

em outros espaços de São Paulo atraíam plateias grandes e empolgadas,<br />

entre universitários, fãs de MPB, figuras das artes e da comunicação<br />

e punks da periferia. Porém, sem conseguir despertar interesse<br />

de grandes gravadoras, a cena erguida por Itamar e seus pares se viu ilhada.<br />

Como efeito disso, no entanto, eles praticamente inventaram o conceito de<br />

música independente no Brasil (Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé, é considerado<br />

o primeiro disco independente do país). Quando conversei com<br />

o linguista e líder do extinto Grupo Rumo Luiz Tatit para a feitura desta<br />

matéria, perguntei a ele se se arriscava a dizer por que, ao contrário de<br />

outros músicos de vida conturbada e propostas arrojadas (citei Miles Davis,<br />

um dos ídolos de Itamar), o brasileiro não gozou de consideração parecida<br />

pela tríade indústria-imprensa-público. Isso, claro, excluídas as razões mais<br />

óbvias e conhecidas: o espaço que a música ocupa nos EUA e aqui e a explosão<br />

do pop-rock nacional oitentista, alternativa mais fácil e segura para<br />

satisfazer os anseios por rebeldia e diversão de uma juventude cada vez<br />

mais americanizada.<br />

Mas, ao contrário de companheiros de Vanguarda como Arrigo Barnabé<br />

e o próprio Rumo, as músicas de Itamar, por menos lineares que fossem,<br />

tinham forte vínculo com o rock, o reggae, o balanço e a canção popular. O<br />

próprio Tatit, em seu texto para o songbook Pretobrás, aponta que Itamar é<br />

“um dos raros exemplos de artista que se imbuiu de alguns procedimentos<br />

vanguardistas da música erudita sem nunca perder a dicção pop enraizada<br />

desde a infância”. Mesmo assim, quando comenta a música “Milágrimas”,<br />

parceria do compositor com Alice Ruiz lançada no disco Bicho de 7 Cabeças<br />

Vol. 2 (Baratos Afins, 1993), ele observa, sem esconder certa decepção,<br />

que “poucas vezes os criadores de nosso universo cancional (...) chegaram<br />

a obras-primas desse calibre sem que a maioria esmagadora da população<br />

tomasse conhecimento de sua existência”. Pelo telefone, o músico completou<br />

o raciocínio: “Ele tinha uma expressão extraordinária, chegou a fazer<br />

shows que pareciam de grandes nomes pop como Gilberto Gil e outros.<br />

Quem chegou a ver shows assim não consegue entender como ele não<br />

teve sucesso em atividade, pelo menos nos anos 90, quando o trabalho<br />

estava bem maduro.” Para Arrigo Barnabé, as razões passam também pelo<br />

temperamento de Itamar, muito resistente a mergulhar nas águas turvas<br />

do mercado. “O Itamar era um cara complicado, ele não tinha a diplomacia<br />

necessária pra entrar no mercado. Ele falava ‘eu não sou bonzinho, Arrigo,<br />

o bonzinho é você’ (risos), porque eu conversava com as pessoas, sabe?<br />

Acabei ficando sozinho.” Na sua avaliação, as coisas poderiam ter sido diferentes<br />

se Itamar tivesse tido “um pouco mais de jogo de cintura”.<br />

Voltando à comparação com Miles Davis, Tatit defende que um fato crucial<br />

diferencia os dois: a intervenção de Itamar na música foi mais audaciosa<br />

que a do norte-americano. “Apesar de toda a genialidade do Miles Davis<br />

e de outros jazzistas, eles estavam falando a linguagem do jazz e produzindo<br />

algo integrado com outros músicos menos problemáticos. O Itamar<br />

apostou numa coisa muito difícil. Sua proposta de arranjos, de shows, de<br />

“Antes do Itamar, a<br />

imagem do negro na<br />

música brasileira era a<br />

representação do malandro.<br />

Ele foi o primeiro a colocar<br />

agressividade abertamente,<br />

muito antes do rap.”<br />

24 25<br />

Ricardo Guará


cantar simultaneamente várias vozes é difícil de assimilar até hoje.” Quem<br />

tem familiaridade com a discografia do compositor e o viu no palco – em<br />

especial na primeira metade dos anos 80, quando ainda se apresentava<br />

com a Isca de Polícia –, sabe que nenhum show era igual ao outro. E não<br />

se trata de figura de linguagem: além de serem exaustivamente arranjadas<br />

nos discos, as músicas eram constantemente alteradas ao vivo, ou por novos<br />

andamentos, novas articulações nos diálogos com os vocais de apoio,<br />

ou mesmo seções instrumentais completamente novas. Os ensaios, diários,<br />

começavam às 8h da manhã e chegavam a durar 6 horas.<br />

Essa prática foi muito intensa durante a primeira fase da carreira de Itamar<br />

Assumpção, que vai de 1981 a 85 e compreende o já citado Beleléu,<br />

Leléu, Eu e também os discos Às Próprias Custas S/A (1982) e Sampa<br />

Midnight – Isso Não Vai Ficar Assim (1985), obras-primas cuja experiência<br />

de audição só se completava no palco. “É um formato de obra<br />

criado por ele”, diz Tatit, que chama de “rock de breque” as músicas<br />

dessa época, entrecortadas por baixos desnorteantes e guitarras que<br />

se descabelam junto com falas de forte teatralidade. A banda Isca de<br />

Polícia, ele diz, é a antítese da Banda do Sargento Pimenta do quarteto<br />

mais famoso de Liverpool: música negra, de cabelo ruim, que “não transa<br />

parente” e passa longe de tudo que use uma farda. “Os breques e as<br />

frases instrumentais dialógicas sugeriam e ao mesmo tempo abortavam<br />

as respostas corporais da juventude dançante. Era rock até certo ponto...<br />

Jamais completamente. Pouca coisa em Itamar mostrava-se regular a<br />

ponto de justificar seus anseios de popularidade.”<br />

Ao contrário do que parece, no entanto, as músicas eram baseadas em acordes<br />

simples de violão e harmonias pouco complexas. “Ele tocava um violãozinho<br />

muito simples”, segue Tatit, “brincava que não gostava de pegar músicas<br />

muito difíceis pra cantar, com ‘esses acordes que parecem aranha’(risos).<br />

O Itamar é um grande exemplo do fato de que a formação musical não distingue<br />

o cancionista.” Paulo Lepetit, que foi baixista da Isca e trabalhou em<br />

quase todos os discos de Itamar, reforça a ideia: “Dificilmente uma música<br />

dele tem mais de quatro acordes. Com os arranjos, parecem que são composições<br />

complicadas, mas você vai tocar no violão e vê que são canções,<br />

mesmo. Ele tinha uma maneira muito própria de desenvolver a música, com<br />

essa característica dos arranjos”. Ele, o músico que trabalhou mais tempo<br />

com Itamar, lembra bem quão “próprio” era esse procedimento: “Quando<br />

alguém falava ‘vamos fazer aquela música?’ a gente brincava: ‘vamos, qual<br />

arranjo?’ ‘Ah, o 632 (risos)’”. Apesar de Itamar dizer, faceiro e com todas as<br />

letras, que queria “cantar na televisão” (“Prezadíssimos Ouvintes”, 1985), facilitar<br />

as coisas para o público certamente não era um de seus objetivos.<br />

“As pessoas ouviam uma coisa no disco e queriam aquilo, né? Um cara que<br />

faz sucesso no rádio dificilmente muda o arranjo de forma substancial, porque<br />

o público quer cantar junto, quer entender.” Às vezes, segue Lepetit, a<br />

coisa era explícita: “Chegava no show e alguém pedia uma música, que seria<br />

o nosso hit. Ele falava, ‘Ah, agora só porque você pediu nós não vamos tocar.<br />

Se você quiser, compra o disco e vai ouvir’ (risos). Quer dizer, era tudo pra<br />

dificultar o andamento da coisa.”<br />

A obsessão por fugir às expectativas era tanta que mais de uma vez, depois de<br />

shows catárticos, a banda exultante nos camarins recebia um balde de água<br />

fria de Itamar. “Ele entrava berrando ‘Minha música não é nada disso, vocês<br />

não entenderam nada!’”, lembra Suzana Salles, uma das vocalistas da Isca de<br />

Polícia. “Ele não queria soar parecido nem com ele mesmo”, completa Lepetit,<br />

sem segurar o riso. “E essa era só uma entre várias outras incoerências na vida<br />

dele. Mas em uma coisa ele foi sempre coerente: permanecer fiel a uma maneira<br />

de fazer música e não facilitar as coisas. Nisso ele foi até o final.”<br />

“Montanha russa de<br />

sentimentos que raros<br />

artistas proporcionam.<br />

Eu o tenho como um<br />

dos mestres.”<br />

B. Negão<br />

Inicialmente, Rogério Velloso foi chamado pelo Itaú Cultural para fazer um<br />

especial de meia hora sobre Itamar Assumpção. Quase 150 horas de material<br />

depois, o trabalho de cinco dias se transformou no projeto de um ano. São 4<br />

Terabytes de espaço em disco – 20 Gigas só de fotos – e quase 30 entrevistas.<br />

Com direção de Velloso, roteiro seu e de George Queiroz e produção de Carol<br />

Dantas, da Movie&Art, o documentário ainda sem nome sobre Itamar deve<br />

ficar pronto em janeiro de 2010. Entre as imagens a que tive acesso estão dezenas<br />

de shows nunca vistos, como um especial para a Globo que não foi ao<br />

ar, imagens de acervo da TV Cultura e a última apresentação do compositor,<br />

da qual ele saiu direto para uma maca.<br />

Como trilha sonora, além de músicas conhecidas figuram faixas já finalizadas<br />

da Caixa Preta. Uma das mais fortes, sem dúvida, é a belíssima “Devia<br />

Ser Proibido”, parceria com Alice Ruiz que Itamar gravou pouco antes de<br />

morrer e que, até o fechamento desta edição, a poetisa ainda não tinha<br />

ouvido. Mesmo com uma voz às vezes vacilante, que sai com extremo esforço,<br />

está ali uma versão ainda melhor do Itamar maduro dos últimos dez<br />

anos de carreira, eternizado na trilogia Bicho de 7 Cabeças (Baratos Afins,<br />

1993) e nos álbuns Preto Brás (Atração Fonográfica, 1998) e Isso Vai Dar<br />

Repercussão (Elo Music, 2004, parceria com Naná Vasconcelos).<br />

Rogério Velloso explica que, quando recebeu o convite para dirigir o documentário,<br />

havia uma expectativa de fazer algo mais experimental, ligado à sua experiência<br />

em vídeo-arte. “Passei vários meses brigando com a forma, até que eu<br />

percebi que não tinha como fazer algo à altura dele, a não ser entrar na história<br />

mesmo.” A partir daí, o filme passou a ter um caráter investigativo. “Queríamos<br />

conhecer um Itamar mais íntimo possível, não o que ficou na história.<br />

No fim, acho que a gente foi bem no íntimo mesmo, nas lembranças,<br />

na dor das pessoas. Circulamos muito pelas cozinhas, pelos quintais, e<br />

era como o Itamar chegava na casa dos outros. Se a cozinha estava desarrumada,<br />

ele arrumava a cozinha. Depois ia olhar as plantas. Isso na<br />

casa de quem fosse. Foi esse cara que fez essa obra tão revolucionária,<br />

tão particular.”<br />

Especialmente após a audição de suas músicas inéditas, é inevitável<br />

ceder à tentação de fazer um questionamento comum, ainda que tolo,<br />

diante da morte precoce de artistas tão talentosos: o que Itamar Assumpção<br />

estaria fazendo se estivesse vivo? Ouvir “Devia Ser Proibido”<br />

ou vê-lo puxando o erre suave e palatar característico em vídeos nunca<br />

lançados nos dá, ainda que por um momento, a sensação de poder espiar<br />

esse futuro condicional. Ainda que Tonho Penhasco, um dos guitarristas<br />

de Sampa Midnight, defenda que a obra de Itamar provavelmente<br />

não seria tão forte se ele fosse o tipo de artista que morre de velhice,<br />

uma frase de Arrigo Barnabé ainda ecoa na cabeça: “Ele mudava sempre<br />

os arranjos e as coisas ficavam melhores, melhores, melhores. Era<br />

incrível, poucas pessoas conseguem isso”. Em um texto de Pretobrás o<br />

mesmo Arrigo, autor de Missa In Memoriam Itamar Assumpção, define,<br />

em tom litúrgico: “Ele não recuou em nenhum momento. Vociferando<br />

como um louco, grinfando como uma cotovia, fera ou anjo, poeta ou<br />

profano, arrancou a coragem necessária para o (seu) sacrifício como<br />

um animal que rói a própria pata para se livrar da armadilha, pois ele<br />

sabia que esperar seria a escravidão e a morte.” O sentimento, estranho<br />

e contraditório, é de um saudosismo do futuro. Pensando bem, nada<br />

mais Itamar. 3<br />

4banda isca de PolÍcia em 1983 . Por oscar bastos<br />

2 SAIBA MAIS<br />

Pretobrás, Ediouro, 2006 (2 Vol.)<br />

Na BOCA do BODE, AtritoArt, 2005.<br />

last.fm/music/Itamar+Assumpção<br />

baratosafins.com.br/itamar<br />

26 27


&<br />

Paulo Monteiro<br />

rodrigo andrade<br />

Por tiago mesquita<br />

o linear e o Pictorico<br />

RODRIGO ANDRADE 4CARAguá, óLEO SOBRE TELA, 80X100CM, 2008<br />

28 29<br />

i


PAulO MONTEIRO 4SEM TíTuLO. óLEO SOBRE TELA, 50X40CM, 2008<br />

No ano passado, volumes dedicados às obras de Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade chegaram às<br />

livrarias. O livro sobre Monteiro acompanhou a primeira retrospectiva do artista, que aconteceu<br />

na Estação Pinacoteca, em São Paulo. Lá ele mostrou obras conhecidas e inéditas, tanto na idade<br />

como na linguagem. Andrade também aproveitou o lançamento para exibir seu filme Uma Noite<br />

no Escritório. Para quem começou em um período em que diziam não haver nada de novo sob o<br />

sol, é um baita feito.<br />

Os dois artistas vivem um período particularmente produtivo. Trabalham como nunca,<br />

desenvolvem novas formas de lidar com linguagens e se aventuram por novas manifestações<br />

da arte. Assim, além de recontar a história de sua obra, os livros indicam caminhos que eles<br />

estão trilhando agora. Hoje, a obra de um compartilha apenas algumas questões com a do<br />

outro. Apesar da origem comum, cada um tomou seu rumo, mas ambos lidam com uma forte<br />

presença da matéria, trabalham sobre um material viscoso e pesado. Além disso, o modo como<br />

tratam os elementos nos transmite a impressão de uma obra que, por mais abstrata, mantém<br />

características da figuração. Se em Monteiro isso parece guardar alguma relação com o desenho<br />

e a caricatura, em Andrade vem da definição espacial que suas formas, ao se relacionarem umas<br />

com as outras, realizam. 1<br />

Geração 80<br />

Tudo que foi dito até agora ainda é pouco. O que os apro-<br />

xima de fato é a origem e o sentido que deram a um tipo<br />

de arte que parecia condenar a renovação da linguagem: a<br />

pintura figurativa dos anos 80. Acredito que o modo peculiar<br />

como um e outro entenderam, encararam e responderam aos<br />

impasses de alguns artistas daquela época ajudou a definir<br />

os caminhos que seguiriam depois. Foi por se interessar em<br />

aspectos diferentes da pintura que seu trabalho se afastou de<br />

uma matriz neo-expressionista.<br />

Embora se dediquem a questões diversas, os dois se tornaram<br />

artistas na mesma época, no mesmo estúdio, trabalhando<br />

dentro da mesma linguagem. Isso sem contar que expuseram<br />

juntos mais de uma vez e, no início de carreira, era<br />

comum que o trabalho de um fosse associado ao do outro.<br />

Amigos de longa data, começaram desenhando quadrinhos.<br />

Na época de escola, publicavam seus desenhos na revista<br />

Papagaio (1977). O interesse pelo desenho os aproximou da<br />

arte contemporânea.<br />

Enquanto estudavam com o pintor Sérgio Fingermann, observavam<br />

obras clássicas e do século XX até a retina doer. À<br />

medida que olhavam, pensavam e articulavam suas próprias<br />

imagens, sua própria linguagem. Começaram a produzir seriamente<br />

no mesmo ateliê, a Casa Sete, onde dividiam o espaço<br />

com outros ótimos artistas: Fábio Miguez, Carlito Carvalhosa e<br />

Nuno Ramos. Sobre papel craft, todos pintavam imagens um<br />

pouco cômicas e trágicas, partindo do esmalte sintético e passando<br />

a outras tintas.<br />

A pintura neo-expressionista da época os influenciou, mas a<br />

influência maior era, como reforça Alberto Tassinari, a pintura<br />

refinada do canadense Philip Guston. O gosto pelo trabalho<br />

de Guston não é gratuito. Um dos artistas da passagem da<br />

arte moderna para a arte contemporânea, ele vinha do expressionismo<br />

abstrato da década de 50. Mais velho, se interessou<br />

pelos quadrinhos, por temas vulgares e rotineiros. Começou<br />

a figurá-los com traço caricatural e cor pesada, que<br />

muitas vezes dava aos corpos a aparência de carne esfolada,<br />

de matéria bruta e massuda. O modo de lidar com a matéria<br />

pegou os dois artistas paulistanos em cheio.<br />

Com esse tratamento da tinta em mente, Paulo Monteiro e Rodrigo<br />

Andrade abordavam temas da pintura alemã e americana<br />

dos anos 80. Ao contrário de teutos como Markus Lüpertz<br />

e Anselm Kiefer, no entanto, esvaziavam o conteúdo simbólico<br />

das imagens e transformavam as figuras em objetos pesados,<br />

feitos com pinceladas carregadas de tinta e pouca uniformidade.<br />

A pintura de Kiefer lidava com um aspecto oculto nos<br />

símbolos pictóricos e históricos de um país recém-saído do nazismo.<br />

Sua obra traz à tona sentidos que aquelas imagens cívicas<br />

e míticas queriam carregar para o túmulo. Responde com<br />

gestos violentos e intensos a uma violência cultural silenciosa.<br />

Do mesmo modo, a arte dos norte-americanos tem muito de<br />

resposta histórica. Julian Schnabel, David Salle e Jean Michel<br />

Basquiat eram associados a uma estética descompromissada,<br />

preocupada com certa espontaneidade e leveza, supostamente<br />

deixadas de lado pelos artistas do minimalismo e da<br />

30 31


arte conceitual. Os trabalhos de Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade não se preocupam<br />

nem com o lado oculto dos símbolos e nem pretendem ser uma resposta<br />

histórica ao minimalismo. Embora ambos tenham sofrido a influência de Kiefer,<br />

Schnabel e Lüpertz, sua pintura não busca ser um veículo para a revelação. O que<br />

os interessava naqueles pintores era o acabamento, o modo de usar as cores, que<br />

lembra um uso de adjetivos exagerados e uma certa figuração caricata e deformada.<br />

Além disso, eles também se interessavam pelo tratamento tátil da tinta, a<br />

camada espessa de cor que vinha sobre a tela.<br />

A questão do tema, bem como a concepção da arte como experiência de revelação,<br />

passa longe dos dois artistas. Na verdade, ao longo de sua trajetória,<br />

de maneiras diferentes, a figura (em Paulo Monteiro) e o gênero (em Rodrigo<br />

Andrade) parecem se diluir a cada passo. Paulo Monteiro se concentra no gesto<br />

como tentativa de conformar uma massa de chumbo, uma mancha difusa de cor<br />

ou mesmo um espaço em branco do papel. Se existe um tema, é a possibilidade<br />

de o gesto artístico conformar uma massa. Já a trajetória de Rodrigo Andrade é<br />

mais cheia de idas e vindas. Como Monteiro, ele também trabalha em uma zona<br />

cinzenta entre a figuração e a abstração. Porém, ao contrário dele, que procura<br />

mostrar o caráter resistente da matéria, Andrade retira a definição linear dos<br />

espaços. O desenho desaparece, e o espaço da tela torna-se lugar para manifestação<br />

de formas regulares de luminosidade.<br />

Trabalhando no grau zero da teologia, nenhum dos artistas revela mistérios escamoteados.<br />

Preferem aproveitar a densidade de cor e de matéria para desfazer<br />

a imagem e estabelecer outras relações entre os materiais. Incrível como um e<br />

outro desenvolveram maneiras tão distintas de lidar com a imagem e nos contar<br />

coisas a partir de uma relação tão pouco discursiva.<br />

“Ser artista é falhar,<br />

como ninguém ousou<br />

falhar. O fracasso<br />

é o seu mundo e<br />

recuar diante dele é<br />

deserção [...] incapaz<br />

de agir, obrigado a<br />

agir, ele gera um<br />

ato expressivo,<br />

mesmo que apenas<br />

de si mesmo, de sua<br />

impossibilidade e de<br />

sua obrigatoriedade.”<br />

Samuel Beckett<br />

Paulo Monteiro: Errante<br />

O artista desenha sempre a partir das margens. Mas o branco, corrosivo, aparece com uma força gigantesca, que<br />

empurra os traços para a borda. O curioso é que, muitas vezes, o traçado insinua formas reconhecíveis: fragmentos<br />

do corpo humano, um homem a desenhar. Eles nunca aparecem inteiros, mas como uma tentativa de insinuar forma<br />

em uma natureza que não quer ser reconhecível. Os desenhos parecem buscar a síntese do traçado de Matisse, com a<br />

diferença de que o que eles contornam não é algo plano e estável, mas um branco luminoso, que nas curvas dos traços<br />

nos ilude e sugere um volume que quebra a linha. Dessa forma, sua poética fala de uma tentativa que sempre tem algo<br />

de falha, da forma que nunca se encontra na matéria. Diante de tal consciência, o artista começou a sugerir relações<br />

de equilíbrio nessas massas fugidias. Nas esculturas feitas a partir de 2000, a poética deixou de falar só do gesto, mas<br />

tratou de relações mais compositivas que o artista estabeleceu com seus volumes.<br />

Aquelas formas molengas, em vez de se desfazerem ou desabarem com o gesto, agora estabelecem relações de equilíbrio.<br />

É como se o artista cortasse a peça de argila e a torcesse no limite. Acredito que esses gestos e manchas desencontradas<br />

revelam muito de uma reflexão do ofício de quem figura, de quem tenta encontrar uma forma idealizada em<br />

um material que nem sempre é simpático. Por isso o trabalho tem algo de cômico, de uma forma que não consegue se<br />

completar, se desfaz e se torna algo diferente do que o artista havia planejado.<br />

O procedimento de Paulo Monteiro tem algo de errante, nos dois sentidos que a palavra pode ter. Por um lado, tenta<br />

procurar uma forma desenhada, apesar de não saber perfeitamente onde ela está. Mas é errante também no aspecto<br />

do erro. O artista parece não acertar a mão, finge que seu gesto não dá conta da configuração que ele quer dar ao<br />

material. Pura cascata, pois é aí que ele acerta.<br />

Não sei se alguém me sugeriu isso, mas quando vi a exposição retrospectiva de Paulo Monteiro lembrei da descrição<br />

que Samuel Beckett fez da pintura de Bram Van Velde: “Ser artista é falhar, como ninguém ousou falhar. O fracasso é<br />

o seu mundo e recuar diante dele é deserção [...] incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera um ato expressivo, mesmo<br />

que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade.”<br />

32 33<br />

RODRIGO ANDRADE 4PINTuRA PARA PEIxES, óLEO SOBRE AQUÁRIO DE VIDRO, ÁGUA E PEIXES, 2008<br />

4Paulo monteiro e rodrigo andrade


PAulO MONTEIRO 4SEM TíTuLO. óLEO SOBRE TELA, 160X179,5CM, 1999 E SEM TíTuLO. CHUMBO, 44X44X27CM, 2000<br />

RODRIGO ANDRADE 4FRAME DO FILME uMA NOITE NO ESCRITóRIO, 2007 E SEM TíTuLO, óLEO SOBRE TELA, 190X240CM, 1992.<br />

Acredito que essa dificuldade de moldar algo seja fundamental na explicação<br />

de seu trabalho, tal como um personagem de Beckett fala em Worstward<br />

Ho (1983): “Tentem de novo, falhem de novo, falhem melhor”. Diante<br />

de uma vida que se mostra tão arisca, Monteiro encontra um jeito de fazer<br />

com que a linha dê sentido ao que nos escapa.<br />

Rodrigo Andrade: Ilusão e<br />

Alucinação<br />

Em mais de uma oportunidade, ouvi de Rodrigo Andrade ou de Paulo<br />

Monteiro que ambos tinham temperamentos artísticos muito diferentes de<br />

quando começaram a desenhar. Monteiro desenhava caricaturas, com um<br />

traço influenciado pelos grandes nomes do humor. Rodrigo Andrade sempre<br />

teve mais facilidade para o traço realista. Isso aconteceu faz muito tempo,<br />

mas parece um bom esteio para diferenciar a obra dos dois. Enquanto<br />

Monteiro tenta descrever o material e lhe atribuir característica, além de<br />

preferir um formato satírico, Andrade parece fazer um esforço da busca da<br />

verossimilhança. Mas como falar de verossimilhança quando se trata de um<br />

artista que pinta pastilhas de cor tão naturais como a bala Chita?<br />

Existe um conflito doutrinário na história da arte que tem mais de mil anos<br />

de idade. Ele coloca de um lado artistas que unificam sua cena pela linha<br />

e de outro artistas que unificam sua obra pela cor. Os artistas do desenho<br />

são vistos como racionalistas e os da mancha, ligados à percepção dos sentidos.<br />

Os primeiros são chamados de lineares, os segundos, de pictóricos.<br />

A conversa veio de longe e animou boa parte da produção moderna. Em<br />

grande medida, a oposição mais simplória entre artistas concretos e neoconcretos<br />

passa por esse embate.<br />

No caso do trabalho de Rodrigo Andrade, tanto a linha como a mancha são<br />

da maior importância. Mas, se Paulo Monteiro tratou do gesto de conformar a<br />

matéria como um assunto, falando mais de linha, ou da possibilidade de a linha<br />

conformar a matéria, o trabalho de Andrade parece tirar as determinações da<br />

linha do espaço e fazer com que o percebamos a partir da junção de formas<br />

regulares de cor. Nos últimos dez anos, ele simplificou os elementos de sua<br />

pintura, diminuiu o número de cores e passou a trabalhar com formas bastante<br />

simples. Mas, pela relação que ele estabelece com as outras formas, logo entendemos<br />

o que Andrade quer dizer. Em uma linda pintura de 1998, você não<br />

vê o cômodo pela sua arquitetura, mas pela relação que manchas regulares<br />

estabelecem entre si. Trata-se de uma mesa preta diante de dois retângulos,<br />

que parecem se abrir para fora de uma sala que não é lugar nenhum. Mas não<br />

há luz e nem algo que marque uma particularidade do lugar, só a relação entre<br />

formas mais superficiais e outras que sugerem a tridimensionalidade.<br />

De 1995 a 1998, os lugares onde acontecem a figuração tornaram-se cada<br />

vez mais indefinidos. Nessa época, ele fez pinturas quase monocromáticas<br />

inspiradas nas gravuras de Oswaldo Goeldi. A escuridão, típica da obra goeldiana,<br />

se revelava como um breu, onde não percebíamos os limites visuais<br />

dos lugares. Apreendíamos a singularidade dos corpos do modo como um<br />

cego faz, pela tatilidade das formas, moldadas cuidadosamente pelo pincel.<br />

A pintura raleou um pouco, mas os lugares se tornaram ainda mais indeterminados.<br />

No fim da década de 90, aqueles interiores se tornaram espaços<br />

vazios. Alguns pareciam cômodos que acabaram de receber a mudança. Um<br />

lugar onde moram caixas fechadas e móveis que não sabem onde vão ficar.<br />

É importante lembrar que esse tema sempre foi um dos preferidos de Andrade.<br />

Em 1985, ele fez quartos vazios, bagunçados com uma paleta gustoniana.<br />

Certamente alguns dos melhores trabalhos que a chamada Geração 80 realizou.<br />

Mas os espaços não perdiam apenas a ordem. Pouco a pouco, as paredes<br />

deixam de ter cantos, o chão e o teto desaparecem. O que antes sugeria<br />

um espaço arquitetônico agora é apenas o intervalo entre formas volumosas<br />

que sugerem alguma relação de anterioridade e posterioridade diante da cor.<br />

Eis que, em 1999, o procedimento se torna anônimo. O artista tem a ideia<br />

de eliminar o fundo colorido e aplicar formas previamente determinadas na<br />

tela branca. Agora, as formas são sobrepostas, justapostas com distâncias<br />

diferentes. Alguns retângulos coloridos são mais espessos que os outros.<br />

Quem olha essas pinturas inevitavelmente estabelece relações entre as formas,<br />

dadas pelas cores, pelo tamanho e formato de cada catoto de tinta.<br />

Andrade por vezes, através de formas tão artificiais, sugere um intervalo<br />

na tela – abstrato, mas que faz com que percebamos profundidade. Como<br />

bem descreveu Taísa Palhares: “O procedimento, que segue uma regra comum<br />

básica, torna-se infinitamente diversificado, na medida em que nunca<br />

sabemos como cores, por vezes tão alheias entre si, reagirão lado a lado”.<br />

Em 2000, o artista resolveu ampliar essas relações e inserir os seus retângulos<br />

direto no espaço comum. A primeira intervenção foi no corredor do<br />

MAM/SP. No ano seguinte, foi a vez do contaminadíssimo Lanches Alvorada,<br />

bar perto da estação Santa Cecília do metrô. Em vez de estabelecermos<br />

relações entre as cores em um espaço neutro, como o da tela, aqui a tinta se<br />

relacionava com tudo ao redor. Mais que isso, conseguia, assim como o artista<br />

fez quando geometrizou suas formas em interiores, diluir algo do significado<br />

da televisão, dos azulejos e da tabela de preço e fazer com que tudo<br />

o que estava na parede se relacionasse com os quatro quadriláteros de tinta.<br />

Um movimento duplo se instalava: os objetos ganhavam o mesmo valor da<br />

“pintura”, e a arte se tornava mais um freguês a circular pelo recinto popular<br />

do centro da cidade. Quando decidíamos comparar um objeto ao outro,<br />

suspendíamos o sentido funcional dos cacarecos do bar, ou o aspecto meio<br />

autista das grossas camadas de tinta. Andrade retirava o sentido utilitário<br />

das coisas. Tudo passou a ser relativo. Embora o espaço do bar não fosse<br />

redefinido, as relações entre os seus objetos já não era tão óbvia. Como<br />

em um botequim qualquer, tudo se relacionava com tudo e criava relações<br />

entre quem passava. Esse tipo de relação tinha algo de ilusório. Os objetos<br />

não se tornavam parte de uma obra de arte, mas acredito que é dessa diluição<br />

entre os elementos que o trabalho de Andrade fala.<br />

Curiosamente, no filme uma Noite no Escritório (2007), essas relações<br />

de uma cor com outra e delas com as coisas não-artísticas é apresentada<br />

como uma alucinação, ou melhor, como o resultado de “moléstias nervosas”.<br />

Cansado, o artista, na pele de Sr. wilson, enxerga manchas por todos<br />

os lados, que perturbam sua relação com as coisas. No filme, tive a impressão<br />

de que o personagem central vive aquele sonho da razão de Goya, que<br />

“produz monstros”. Porém as formas não são parte desse sonho, mas um<br />

momento em que essa racionalidade instrumental, de cumprir tarefas, de<br />

viver por demanda, relaxa e nós podemos estabelecer as relações que quisermos<br />

com as coisas que quisermos. 3<br />

34 35<br />

2SAIBA MAIS<br />

cosacnaify.com.br


História<br />

Oral dO<br />

HardcOre<br />

de BuenOs<br />

aires<br />

Por arthur dantas . imagens arquivo Julian vadala<br />

4 Julian vadala, autor de HISTOrIA DEl BS AS HArDCOrE<br />

Botinada! A Origem do Punk no Brasil<br />

e guidable – A Verdadeira História do<br />

Ratos de Porão têm em comum, além de<br />

resgatar a história do punk no país, o fato<br />

de serem dirigidos por pessoas exteriores<br />

ao movimento. No caso de documentos<br />

escritos, a impressão transmitida por<br />

pessoas envolvidas com o assunto, ainda<br />

mais no caso de uma subcultura tão específica,<br />

tem uma característica distinta: um certo vigor e<br />

tenacidade próprios de quem participou. Esse é<br />

o maior mérito do livro Historias Del Buenos Aires<br />

Hardcore, de Julian Vadala, 33, ex-editor do ótimo zine<br />

Tiempo de Cambio e um dos líderes da cena straight<br />

edge portenha dos anos 90. Vadala, que foi vocalista<br />

do seminal XautocontrolX – grupo influenciado por<br />

bandas como Snapcase, worlds Collide, Turning<br />

Point e Quicksand –, hoje é um raggaman fumeta<br />

que, apesar disso, crê na importância do hardcore<br />

como instrumento de transformação. 1<br />

Lançado em 2009 na Argentina, Historias Del<br />

Buenos Aires Hardcore é um trabalho um tanto<br />

amador no rigor histórico e no poder de análise,<br />

mas um exemplo emblemático do próprio<br />

assunto retratado. Emulando a sonoridade do<br />

hardcore nova-iorquino dos anos 90, bandas<br />

como Diferentes Actitudes Juveniles (DAJ) e<br />

No Demuestra Interes (NDI) alcançaram algo<br />

que a cena brasileira do mesmo período não<br />

conseguiu: cativar plateias que já não cabiam em<br />

inferninhos para 200 pessoas. Através da voz<br />

dos protagonistas, podemos tomar contato com<br />

seu cotidiano adolescente, suas frustrações, as<br />

motivações pessoais para entrar no hardcore, as<br />

dificuldades e as conquistas de uma cena unida e<br />

atuante. O livro é um verdadeiro antídoto para a<br />

juventude que identifica no consumo de roupas<br />

descoladas um termômetro para medir atitude.<br />

Confira um bate-papo com o autor.<br />

Por que você resolveu escrever o livro?<br />

Quando meu zine acabou, em 2000, eu queria<br />

reunir o melhor de 16 edições em um número<br />

especial. A ideia inicial foi amadurecendo até se<br />

transformar no livro. Ninguém havia feito isso,<br />

e eu tinha muito material de arquivo do zine e<br />

todos os contatos também – só faltava dinheiro<br />

para imprimir. Comecei a procurar patrocinadores<br />

e ajuda de pessoas para que o projeto se<br />

tornasse realidade.<br />

Quatro anos depois, temos o primeiro livro sobre<br />

HC em espanhol e o primeiro sobre a cena de<br />

Buenos Aires.<br />

A cena hardcore argentina tem alguma<br />

característica que a torne diferente<br />

das outras?<br />

Acredito que tenha uma personalidade especial,<br />

que se deve principalmente ao fato de muito<br />

pouca gente entender inglês na época e de a<br />

cena ter crescido em torno de bandas que cito<br />

no início do livro (DAJ, BOD, EDO, NDI). Foram<br />

elas que influenciaram a cena, e não importava<br />

muito o que acontecia nos EUA ou na Europa.<br />

Falávamos de temas próprios, sobre atualidades<br />

nacionais, e tínhamos um som próprio.<br />

Em geral, hardcore/punk é uma música<br />

politicamente esquerdista.<br />

é impressão minha ou na Argentina havia<br />

bandas abertamente de direita?<br />

Sim, é verdade, ainda que não se assumissem<br />

como tal, seja porque não tinham ideias<br />

muito claras ou porque não eram politizadas.<br />

Mas no geral havia muita gente com valores<br />

tradicionalistas, e no início havia muita confusão,<br />

influência dos skinheads de direita.<br />

quais eram os temas dessas primeiras bandas<br />

do hardcore argentino?<br />

A questão principal era que o país passava por<br />

4 Público no show do buscando otra diversion, em 1992.<br />

uma transição, vivíamos em uma democracia<br />

havia menos de 10 anos, tínhamos o nefasto<br />

governo Menem, quando entraram as políticas<br />

neoliberais, as privatizações, a destruição de<br />

todos os valores da sociedade argentina, e nos<br />

queriam fazer acreditar que éramos “primeiro<br />

mundo”. O custo para isso era vender o<br />

Estado, negociar nossos recursos naturais,<br />

enfim, destruir o país em certa medida.<br />

Até 96, o hardcore foi muito grande em<br />

Buenos Aires. Com exceção do Fun People<br />

(a maior banda punk/hardcore do continente<br />

no período), que continuou grande até 99, a<br />

cena encolheu. O que aconteceu?<br />

Não sei dizer. Houve uma mudança de<br />

geração, o pessoal que começou no início<br />

dos anos 90 aos 15 anos começou a formar<br />

família e a emigrar no fim da década, por<br />

questões econômicas. Isso fez com que<br />

bandas desaparecessem. As novas gerações<br />

não tinham a mesma vontade da anterior, tudo<br />

estava desvirtuado.<br />

A banda argentina dos anos 90 mais<br />

conhecida no Brasil foi o Fun People, que<br />

também foi muito grande na Argentina, no<br />

uruguai e no Chile. Por que não há referência<br />

ao grupo no seu livro?<br />

Houve gente que quis colaborar com o livro<br />

e gente que não. Os que não apareceram é<br />

porque não tiveram interesse no projeto. Da<br />

minha parte, fiquei anos buscando informação<br />

e convocando gente para que participasse.<br />

Cada um dos que não apareceram tem seus<br />

motivos e, ainda que eu não os entenda,<br />

respeito essa decisão. No geral, a maioria<br />

das bandas e pessoas que procurei tiveram<br />

muito boa vontade e se mostraram contentes<br />

em participar. No caso específico do Nekro<br />

(ex-vocalista/letrista do Fun People, atual<br />

36 37


4 no demuestra interes, em 1992.<br />

Boom Boom Kid), ele me pediu para que não<br />

o mencionasse, nem à sua banda, que retirasse<br />

as fotos.<br />

Você imagina o porquê dessa recusa tão<br />

forte?<br />

Ele me disse que não se sentia parte do<br />

movimento BAHC. Tenho boa relação com<br />

o Nekro há muitos anos, ele me ajudou no<br />

começo do XautocontrolX. Se decidiu não<br />

participar, preferi não pressionar. Outros não se<br />

recusaram de forma tão firme, mas enrolaram<br />

tanto que senti falta de interesse no projeto.<br />

Você conheceu a cena hardcore de São<br />

Paulo daquele período, sobretudo straight<br />

edge. A cena a de Buenos Aires foi muito<br />

mais expressiva que a de São Paulo. quais as<br />

principais diferenças entre as duas para você?<br />

Como disse antes, a cena portenha tinha muita<br />

personalidade. Todas as bandas cantavam em<br />

espanhol, sobre temas atuais. São Paulo estava<br />

mais ligada a cenas estrangeiras: os nomes<br />

das bandas eram em inglês, as letras também,<br />

tudo dependia muito do que acontecia nos<br />

Estados Unidos e na Europa. Claro, aqui havia<br />

uma grande influência do HC NY, mas muito<br />

pouca gente queria ser exatamente como as<br />

pessoas de lá, a maioria estava preocupada em<br />

ser BAHC.<br />

Em poucas palavras, o que seria o espírito BAHC?<br />

É difícil resumir, mas o principal era esse<br />

sentimento de amizade e unidade entre as<br />

diversas tribos. Ainda que a cena não fosse<br />

muito politizada, havia aspectos políticos<br />

de fundo, protesto, inconformidade, um<br />

sentimento de estar fora da sociedade. O<br />

tempo passou e posso estar idealizando um<br />

pouco, porque também havia competição,<br />

inveja e brigas, mas, em geral, se aquilo tudo<br />

“...a cena portenha<br />

tinha muita<br />

personalidade. todas<br />

as bandas cantavam em<br />

espanhol, sobre temas<br />

atuais. sao Paulo<br />

estava mais ligada a<br />

cenas estrangeiras:<br />

os nomes das bandas<br />

eram em inglês, as<br />

letras também, tudo<br />

dependia muito do que<br />

acontecia nos estados<br />

unidos e na europa”<br />

4 diferentes actitudes Juveniles em show de retorno, em 2004.<br />

transcendeu o passar dos anos é porque houve<br />

gente com uma “atitude mental positiva”<br />

(referência à música “PMA”, dos Bad Brains).<br />

Atualmente você está ligado mais ao reggae/<br />

dub portenho. O que de melhor e pior você<br />

aprendeu com o hardcore?<br />

Na verdade tenho um projeto reggae/ragga<br />

desde 2004, Kaya Dub Sistema, mas não<br />

me sinto parte da cena reggae. Sigo me<br />

movimentando de forma independente e<br />

underground. Aqui o reggae é um estilo 100%<br />

comercial e mainstream. Me considero um<br />

“HC raggamuffin”, já que continuo fazendo<br />

as mesmas coisas da época em que cantava<br />

HC, só que agora meu estilo musical é mais<br />

influenciado pela música jamaicana.<br />

O livro é uma espécie de relato autobiográfico<br />

de um período da sua vida e tem um ponto de<br />

vista estritamente straight edge, não?<br />

Sim, pode-se dizer que é uma história da<br />

cena contada em primeira pessoa. Também<br />

dei espaço para que amigos contassem suas<br />

histórias. É como um grande papo entre<br />

amigos, de como nos envolvemos com o<br />

4 XautocontrolX, com vadala à frente, em show de retorno em 2008.<br />

hardcore. Não posso ter a arrogância de<br />

acreditar que o meu ponto de vista sobre<br />

o hardcore seja o único que vale, mas os<br />

comentários que venho recebendo me dão<br />

motivo para acreditar que a cena BAHC tinha<br />

uma forte influência do straight edge das<br />

antigas, e com os anos foi deixando de lado a<br />

parte militante para ser algo menos estrito.<br />

As ultimas edições do Tiempo de Cambio<br />

eram muito amargas, desiludidas. O que<br />

contribuiu para que o xautocontrolx<br />

acabasse? Você ganhou ou perdeu mais em<br />

dedicar tanto tempo ao hardcore?<br />

Sim, é verdade, nos últimos anos eu estava<br />

desiludido com a cena hardcore, me sentia<br />

um Dom Quixote brigando com moinhos de<br />

vento. XautocontrolX terminou porque não<br />

encontrávamos músicos com quem tivéssemos<br />

empatia e eu estava cansado de fazer tudo, já<br />

que o resto da banda não fazia nada.<br />

Acredito que minha experiência no straight<br />

edge foi boa, mas não por ser um straight<br />

edge, e sim porque na raiz disso tudo estavam<br />

a força e a convicção que me fizeram realizar<br />

muitas coisas positivas, que deixaram sua<br />

marca no tempo. 3<br />

2SAIBA MAIS<br />

www.myspace.com/concienciaydisciplina<br />

www.myspace.com/buenosaireshardcore<br />

SEIS DISCOS FuNDAMENTAIS<br />

PARA ENTENDER O BAHC<br />

Coletânea<br />

Mentes Abiertas (1992)<br />

Realidade Virtual,<br />

do Diferente Actitudes Juveniles (1993)<br />

Extremo Sur,<br />

do No Demuestras Interes (1992)<br />

Pura Adrenalina,<br />

do BOD (1992)<br />

Coletânea<br />

HC Asunto Nuestro (1994)<br />

Coletânea<br />

Nuevas Generaciones (1995)<br />

38 39<br />

Por Julian vadala<br />

“sim, é verdade, nos<br />

últimos anos eu<br />

estava desiludido<br />

com a cena hardcore,<br />

me sentia um dom<br />

Quixote brigando<br />

com moinhos de<br />

vento.”


Por flávio grão<br />

imagens de obras divulgação<br />

Se há uma palavra que não combina com a arte de Daniel Melim é apatia. Sobre<br />

as texturas dos muros ou suportes, suas imagens explodem, questionadoras,<br />

sustentadas por cores brutais e marcantes em um trabalho de resgate e releitura<br />

de uma técnica esquecida da arte urbana: o estêncil. A arte desse paulista de<br />

São Bernardo do Campo transita com naturalidade dos muros da periferia para<br />

galerias nacionais, estrangeiras e museus. Além disso, Melim desenvolve um<br />

interessante projeto social no Jardim Limpão, periferia de sua cidade natal.<br />

Nesta entrevista, o artista fala sobre suas origens, ideais, técnicas e influências<br />

surpreendentes, que vão do punk rock nacional aos movimentos sindicalistas do<br />

ABC paulista, passando pelo skate. 1<br />

Como você iniciou sua história com o desenho?<br />

Fale sobre sua formação, a passagem para os<br />

muros e depois para o estêncil.<br />

Como toda criança, eu desenhava. Minha mãe<br />

era professora e tinha muitos livros infantis<br />

com ilustrações. Essa com certeza foi minha<br />

primeira referência. Mas só fui me preocupar<br />

de verdade no início da década de 90, quando<br />

frequentava a pista de São Bernardo. Ela era<br />

toda pintada, graffiti, estêncil, pichação. Eu<br />

pirava nisso tudo! Tinha dias que colava lá só<br />

pra ficar observando os desenhos, tentando<br />

entender um pouco daquilo, pra chegar em<br />

casa e tentar descarregar no papel. Mas os<br />

quadrinhos eram mais fáceis de consultar,<br />

sempre podia abrir uma página, observar um<br />

desenho e aprender. Nesse período, o que eu<br />

mais curtia eram os quadrinhos alternativos,<br />

tipo Chiclete com Banana – eram mais baratos<br />

e reuniam vários artistas: desenhos do Luiz<br />

Gustavo, Marcatti, xilos do Rubem Grilo, além<br />

das histórias do Angeli. Mais ou menos em<br />

95, comecei a pichar, talvez para ter contato<br />

com spray ou simplesmente me comunicar.<br />

Foi minha primeira forma ativa de expressão.<br />

Comecei a fazer parte de gangue, e com<br />

isso veio tudo de bom e ruim envolvido:<br />

amizades, rolês, brigas, confusão. Por uma<br />

série de acontecimentos, e por começar a<br />

dominar mais a técnica com spray, me afastei<br />

da pichação e comecei a me aproximar do<br />

graffiti. O primeiro trabalho foi na pista de<br />

skate: o nome da gangue. Isso representou<br />

a passagem de uma<br />

fase. Depois, comecei<br />

a trabalhar em<br />

metalúrgica e já não<br />

tinha tanto tempo<br />

pro desenho. Esse<br />

período era trabalho,<br />

bar e casa. No<br />

máximo um desenho<br />

zoando alguém no<br />

guardanapo ou no<br />

papel que forrava<br />

as mesas (risos).<br />

Um dia, colou um<br />

cara que fazia uns<br />

rabiscos aqui na<br />

vila (Ferrazópolis),<br />

o Maionese<br />

(Rodrigo Souto).<br />

Ele literalmente me<br />

Gosto do<br />

aspecto<br />

irônico do<br />

estêncil, de<br />

poder retirar<br />

imaGens de<br />

comerciais<br />

e dar outro<br />

sentido a<br />

elas.<br />

tirou do bar pra mostrar<br />

uns trampos de graffiti e<br />

revistas como a Fiz (editada<br />

pelOSGEMEOS). Na mesma<br />

hora eu pirei! Aí comecei a<br />

ter acesso a varias formas<br />

de street art e pintar na rua<br />

de verdade. O Maionese me<br />

ajudou muito nisso, ele já<br />

manjava de fazer um traço<br />

mais fino. Na época não<br />

existia material igual a hoje,<br />

pinos de spray com várias<br />

espessuras, importados etc.<br />

Pra fazer traço fino tinha que<br />

entupir bico ou inventar outro<br />

jeito. Os primeiros graffitis<br />

eram todos à mão livre, com<br />

poucos detalhes em estêncil.<br />

Mas eu não achava uma identidade legal no<br />

trabalho, até que resolvi resgatar a técnica do<br />

estêncil. Não se viam mais tantos trabalhos<br />

com estêncil naquela época. Comecei a<br />

fazer as máscaras de forma precária mesmo,<br />

experimentando. Tentativa, acerto e erro. Foi<br />

meio assim que parti pro estêncil.<br />

Quais são suas influências em termos<br />

de ilustração?<br />

Curto muita coisa: ilustração comercial da<br />

década de 50, quadrinhos, capas de LPs,<br />

clichês. Na adolescência lia muito quadrinhos<br />

alternativos, curto o aspecto sujo desses gibis.<br />

Seu trabalho carrega uma carga política forte.<br />

Essa postura surgiu como?<br />

Quando moleque, fui com minha mãe a<br />

uma greve dos professores, vi toda aquela<br />

movimentação. Adolescente, trampei em<br />

metalúrgica e peguei resquícios de toda<br />

articulação trabalhista que existia, chegando<br />

a fazer desenhos pra panfletos e informativos<br />

de greve. Isso é uma coisa meio impregnada<br />

no ABC Paulista, a cidade meio que estampa<br />

toda essa desigualdade. Depois fui ministrar<br />

oficinas em projetos sociais (em Heliópolis e<br />

Mauá). Acredito que tudo isso serviu pra minha<br />

formação social. Isso naturalmente passou para<br />

os trabalhos e também é minha forma de gritar.<br />

40 41


Além das artes gráficas, que outros meios influenciam seu trabalho<br />

(esporte, música, etc.)?<br />

Andei de skate e BMX um bom período e foi uma influência forte também,<br />

não só como esporte, mas como estilo de vida. A cultura do skate envolve<br />

uma diversidade de expressões: música, moda, pensamento etc. Mesmo<br />

não andando mais, sempre procuro me informar sobre o que está rolando.<br />

Música também é uma coisa que carrego comigo. Ouço bastante coisa,<br />

mas o que vira e mexe tô ouvindo é o punk rock nacional. É o que mais<br />

curto ouvir quando vou pintar.<br />

é interessante observar que seu trabalho está presente em meios diferentes<br />

e até antagônicos – nos muros da periferia, em galerias e museus. O que<br />

você pensa sobre a atuação de sua arte em cada um desses lugares?<br />

Legal essa observação. Acredito que, quanto mais eu puder pulverizar<br />

minha ideia e expressão, melhor. Penso em ocupar os lugares. Lógico que<br />

cada um tem sua especificidade, e isso influencia na leitura e construção<br />

do trabalho. Mas acho que devemos e temos o direito de usar esses<br />

diferentes lugares como instrumentos para expressão, ou vamos continuar<br />

vendo as mesmas pessoas usarem eles. Não falo só de ocupar galerias<br />

e museus, mas espaços públicos – não esperar representantes, políticos<br />

(não acredito em representação, principalmente política). Gosto de estar<br />

nos lugares, fazendo e tentando apresentar meu ponto de vista, minha<br />

opinião expressada através da pintura. Normalmente o tema é o mesmo<br />

na rua ou na tela. A rua pede uma forma de postura e ação, tem toda uma<br />

pressão psicológica na cabeça quando estou pintando – muitas vezes o<br />

local não é autorizado, nem todos compreendem o que estou fazendo ou<br />

a mensagem. Isso influencia de alguma forma o resultado do trabalho. A<br />

busca pelo local é outro ponto: procuro lugares destruídos, que forneçam<br />

algum tipo de textura ou informação que posso agregar ao estêncil.<br />

Como você escolhe os motivos dos seus trabalhos? Como é seu<br />

processo de criação?<br />

Gosto do aspecto irônico do estêncil, de poder retirar imagens de<br />

comerciais e dar outro sentido a elas. Uso várias ferramentas para<br />

construir os motivos, desde apropriação de imagens até a criação autoral<br />

do desenho, montagem na mesa de luz, colagem. Vou unindo diversas<br />

técnicas para chegar ao desenho que eu quero.<br />

Além do estêncil, você aprecia e utiliza outras técnicas e suportes?<br />

Curto impressão (xilo, silk, monotipia etc). Nem sempre as utilizo no<br />

meu trabalho, mas são fontes constantes de pesquisa, principalmente na<br />

textura – a ideia da impressão falhada, desgastada ou fora de registro.<br />

Com essa pesquisa de textura, também uso suportes que já forneçam<br />

alguma informação do tipo, como chapas de aço, madeira, placas, coisas<br />

que sempre vejo jogadas nas ruas.<br />

Fale um pouco sobre o projeto do Jardim limpão.<br />

Ele surgiu de uma ideia simples: trabalhar com intervenção urbana junto às<br />

comunidades (Jd. Limpão e Jd. Regina, em São Bernardo). Tentamos levar<br />

outras referências, sensibilizando os moradores através do graffiti. Quisemos<br />

fugir da ideia hipócrita de deixar a favela “mais bonita”, mas procurando<br />

talvez humanizar seus becos e vielas espremidos. O Jd. Limpão ficou<br />

conhecido porque era onde morava o assassino do fotógrafo Luiz Antônio<br />

da Costa. Ele cobria uma invasão do MST no terreno da Volkswagen, em<br />

2003, e registrou um assalto no posto em frente. Os assaltantes perceberam<br />

e o executaram. Esse projeto é realizado de forma independente, contando<br />

apenas com o apoio da própria comunidade, em especial o Fabio Mendonça<br />

e o Vanderlei Viana (Capoeira Angoleiros Sim Sinhô). Ambos vêm<br />

desenvolvendo treinos de capoeira angola pra comunidade. Na primeira<br />

vez em que eu pintei, colou muita gente pra ver, principalmente molecada.<br />

Aí percebi que poderia trabalhar com as crianças, meio no esquema de<br />

workshop, fazendo o trabalho e eles me ajudando. Passo esquemas de<br />

como usar o spray, a tinta, pergunto sobre o que fazermos e assim vai.<br />

Além da produção dos trabalhos junto com a<br />

comunidade, venho registrando o cotidiano<br />

local e capturando momentos da vida dos<br />

moradores em geral. Assim como diversas<br />

favelas espalhadas pelo Brasil, o Jardim Limpão<br />

e Jardim Regina são marcados pelo tráfico<br />

intenso e atos de violência. Mas a ideia do<br />

reGistro ou do projeto não é<br />

mostrar as vidas na comunidade<br />

de forma sensacionalista ou<br />

estereotipada, mas apresentar o<br />

cidadão comum, que se esforça<br />

pra sobreviver nesses quilombos<br />

modernos com pouco mais de<br />

r$ 300 por mês, tendo pouco<br />

acesso a qualquer instrumento<br />

público (saúde, escola, lazer,<br />

transporte etc). A experiência do<br />

projeto e a troca de ideias com moradores<br />

possibilitaram a reflexão sobre a organização<br />

da comunidade, sem ajuda de políticos ou algo<br />

do gênero, via ação direta dos moradores para<br />

melhoria do convívio local. Acredito ser esse o<br />

principal resultado do projeto até agora. Mas<br />

penso que podemos oferecer mais. 3<br />

2SAIBA MAIS<br />

flickr.com/photos/melim_abc<br />

choquecultural.com.br/blogs/danielmelim<br />

42 43


A cidade de ponta-cabeça e a mulher de pernas pro ar.<br />

O corpo, estático e invertido, tranfigura-se num ser novo, estranho ao espaço.<br />

Ao se relacionar com a cidade por outra perspectiva, cria paisagens temporárias.<br />

Árvores humanas, plantando ilusões no concreto. saia<br />

PROJETO PATRíCIA ARAUJO E CLARICE LIMA<br />

FOTOS POR PATRíCIA ARAUJO . PERFORMER . CLARICE LIMA<br />

44 45


46 47


48 49


50 51


Acertando<br />

as Contas<br />

Entrevista com Felipe Motta aka Mottilaa<br />

52 53<br />

POR TIAGO MORAES<br />

4feliPe motta incorPorando cara de cavalo


Há mais ou menos dez anos, época em que<br />

dedicava cem por cento do meu tempo<br />

ao skate – seja dando meus grinds por aí<br />

ou tocando a Agacê, marca que criei em 1997 junto com<br />

três amigos de infância –, resolvi criar e divulgar o projeto<br />

Portfolio, com o intuito de revelar jovens talentos do<br />

universo do skate e posteriormente desenvolver projetos<br />

colaborativos.<br />

E foi entre quase uma centena de cartas e telefonemas<br />

recebidos durante o período da promoção que o traço<br />

de um garoto carioca impregnado de humor e sarcasmo<br />

acabou me chamando a atenção. Foi dessa forma que<br />

conheci Felipe Motta e a partir daí, de 1999 a 2004, fizemos<br />

dezenas de trabalhos juntos e viramos grandes amigos.<br />

Se Billy Argel criou praticamente<br />

sozinho toda a estética do skate nos<br />

anos 80, Motta é sem sombra de dúvida<br />

o maior nome que surgiu no universo<br />

de arte de skate desde o final da<br />

década de 90 até os dias de hoje, em<br />

um mercado em que, salvo raras exceções,<br />

ainda prevalece a falta de identidade, de<br />

originalidade e de cultura de investimento em<br />

arte e conceitos originais.<br />

Mesmo que no mercado de skate seu traço seja<br />

facilmente reconhecido em shapes, camisetas, anúncios<br />

e outros trabalhos comerciais, muitos ainda não tiveram<br />

o prazer de conhecer seu trabalho autoral, que Mottilaa<br />

compulsivamente põe para fora em seus caderninhos<br />

para depois transportar para telas, muros, banheiros e<br />

qualquer outro suporte que tiver coragem suficiente de<br />

aparecer na sua frente.<br />

Como amigo e fã de carteirinha, sempre incentivei o<br />

seu lado autoral, e talvez seja por isso que, mesmo com<br />

vontade de entrevistá-lo desde a primeira edição, tenha<br />

esperado o momento ideal para bater esse papo com o<br />

figura. E foi no meio da reta final de produção para a sua<br />

primeira individual – que acontecerá no fim de outubro<br />

no Espaço <strong>+Soma</strong> – que decidi ser a hora de finalmente<br />

acertar minhas contas com ele. 1<br />

4la hoJita de coca no és droguita . acrÍlica sobre madeira mdf recortada . 2009<br />

“Até hoje tento sempre fazer<br />

um shape tão inspirado<br />

quanto o primeiro que fiz. Por<br />

mais que pareça clichê, essa<br />

primeira série me mostrou que<br />

aquele sonho de moleque meio<br />

improvável poderia rolar. “<br />

Motta, conta pra mim, quando foi que você pegou num pincel pela<br />

primeira vez?<br />

(Risos) Na primeira vez que fui fazer xixi sozinho! Agora, sério, eu tenho um<br />

quadrinho na casa dos meus pais que fiz em 84, com 6 anos. Entre um monte<br />

de profissões, meu pai se formou em arquitetura e, apesar de não ter seguido<br />

profissionalmente a carreira de artista, pintava uns quadros quando tinha a<br />

idade que eu tenho agora. E ele sempre me incentivou muito a desenhar, esse<br />

primeiro quadrinho que eu fiz ele tava do meu lado, me ensinando como<br />

mexer com aquarela. E [quando se é] criança, além de pegar as coisas rápido,<br />

esses acontecimentos marcam muito. Lembro desse momento como se fosse<br />

hoje, é muito louco!<br />

Você era um daqueles moleques que ficava na sala de aula fazendo<br />

caricaturas de todo mundo, dos amigos, do professor?<br />

Era uma desgraça, cara! Tomei bomba duas vezes na escola e sinceramente<br />

nem sei como não repeti mais, me passavam de ano! E eu não era um aluno<br />

burro, até porque quando sentava pra estudar tirava até uns 10, mas tava<br />

mais preocupado em desenhar como se não houvesse amanhã! Mais tarde,<br />

no terceiro ano, antes de entrar pra faculdade, na sala de aula tinha dois<br />

murais, o da esquerda e o da direita. E o da esquerda era meu! (Risos) No<br />

fim do ano, tinha umas setenta caricaturas e charges de coisas que rolavam<br />

na sala de aula! Eu chegava do recreio e tinha gente de outras turmas<br />

vendo, às vezes até visitante de fora do colégio!<br />

Fala um pouco das tuas influências (e más influências).<br />

Eu geralmente não curto focar em fulano, cicrano, mas tem algumas<br />

pessoas que me influenciaram e influenciam muito. Meu pai<br />

sempre esteve lá, me deu apoio, até hoje quando vou pra<br />

casa dos meus pais pintar no terraço do sobrado ele<br />

não reclama quando eu cago tudo! (Risos) O Bruno<br />

Shulyba, amigo de infância, desenhava comigo<br />

desde criança e, apesar de não ter seguido<br />

carreira, desenhava demais, tinha um traço<br />

animal. O [Don] Torelly é um grande amigo<br />

e uma inspiração até hoje, passo mal com<br />

ele. Já o Billy Argel me mostrou que shape<br />

brasileiro podia ser lindo também. Tem o<br />

Evan Hecox, que é foda também, sei lá…<br />

tem vários!<br />

Como (e quando) você se envolveu<br />

com o skate, e que estrago isso fez na<br />

sua vida daí em diante?<br />

(Risos) Ganhei o meu primeiro skate<br />

com uns 10 anos. Essa história acabou<br />

54 55<br />

4maXimo de cusco . acrÍlica sobre madeira mdf recortada . 2009


ficando famosa por causa da minha parte no RE:BOARD (documentário<br />

recém-lançado sobre arte de skate no Brasil em que Motta foi um dos<br />

destaques). Pedi pra minha avó um skate com um desenho de dragão no<br />

meu aniversário e ela viajou pro Paraguai e me trouxe um que tinha uma<br />

lagartixa rosa bebê de óculos escuros em cima de um skate! De lá pra cá,<br />

eu simplesmente não sei como seria minha vida sem o skate junto. Tudo<br />

o que o skate me trouxe de brinde, no pacote, mudou minha vida. Arte,<br />

amigos, experiências de vida, roupa, gosto musical, tudo, cara... Minha<br />

carreira profissional é calçada na cultura de rua, mais especificamente do<br />

skate. E não tem como negar isso, nem quero!<br />

E a sua história com os shapes, só esse assunto renderia mais uma<br />

entrevista… fala um pouco disso.<br />

A minha história com os shapes é de longa data. Desde que ganhei meu<br />

primeiro skate, eu era vidrado nos desenhos. Colocava grabber nos shapes<br />

só pra não arranhar os desenhos e falava que era pra ‘grebar’! (Risos)<br />

Quando a primeira série de shapes que desenhei saiu pela Agacê, eu<br />

desacreditei! Foi um marco na minha vida, de verdade! Depois, desenvolvi<br />

em conjunto contigo na Agacê muitas outras séries, foi uma época muito<br />

divertida. Desde moleque sempre tive em mente que o meu maior desejo<br />

era de um dia andar com um shape que eu tinha desenhado, e ver gente<br />

andando na rua então, nem se fala!<br />

Até hoje tento sempre fazer um shape tão inspirado quanto o primeiro<br />

que fiz. Por mais que pareça clichê, essa primeira série me mostrou que<br />

aquele sonho de moleque meio improvável poderia rolar. Por isso é sempre<br />

bom olhar pra trás e não esquecer dessa sensação que senti quando abri o<br />

pacote e vi os shapes finalmente prontos ali na minha frente!<br />

Você também tem um trabalho forte com o rap carioca e já emprestou<br />

seu traço a vários artistas da cena, como De leve, A Filial, BNegão e<br />

Marcelo D2, não necessariamente nessa ordem. Como rolaram<br />

essas parcerias?<br />

Tudo amigo! O lance da música sempre foi muito<br />

presente na cultura do skate e sem querer a gente<br />

acaba conhecendo e ficando amigo de muita<br />

gente do meio musical, meio que uma coisa puxa<br />

a outra. O Edu [Lopes, do grupo A Filial] eu<br />

conheço desde moleque, do skate mesmo, o De<br />

Leve foi o Serginho que me apresentou, sempre<br />

me dizia que eu tinha que conhecer ele de<br />

quaquer jeito e acabou virando um amigão<br />

também. O Bê [BNegão] morava no mesmo<br />

lugar que o Edu, em Santa Teresa, daí<br />

acabou rolando o convite pra fazer o logo,<br />

o site dele. O Marcelo [D2] eu conhecia de<br />

vista, mas só fui conhecer mesmo quando<br />

ele quis samplear uns diálogos de filme<br />

da Pepa Filmes, de que eu participava na<br />

época. Daí o tempo passou, a gente acabou<br />

ficando amigo e rolaram vários trabalhos<br />

juntos, fiz a coleção da Manisfesto pra ele,<br />

e tem uns projetos aí pra rolar.<br />

4el cuco . acrÍlica sobre madeira mdf recortada . 2009<br />

“... fui a uma reunião de<br />

um trabalho em que me<br />

contrataram como ilustrador<br />

mostrar o layout dos<br />

personagens e o diretor de arte<br />

falou: ‘O Motta fez as mãos<br />

aqui no layout sem dedos para<br />

agilizar, né?’, e eu: ‘Não, não, é<br />

assim mesmo!’.”<br />

Já que você citou a Pepa Filmes, fale um pouco dessa época.<br />

Foi uma época engraçada da minha vida. Eu estudava e namorava, já trabalhava, mas não tinha<br />

muitas obrigações na vida! Morava a uns quinze minutos a pé da casa do Pepa e do Renatim, e<br />

chegava lá, nego de bobeira e a gente: “Porra, vamo fazer um filme?” Não tinha roteiro e, na minha<br />

opinião, a parada era essa, o descompromisso. Depois o Pepa fez faculdade de cinema e, normal,<br />

quis deixar as coisas mais organizadas, marcava reuniões etc. E a onda dele eram mesmo os<br />

efeitos especiais, as sátiras com ficção cientifica, e a minha pegada era outra, do humor. Fora que<br />

depois já não tinha mais o tempo livre que a coisa demandava, daí acabei desencanando. Mas, sem<br />

resentimentos, foi uma época animal, de chorar de tanto rir, a gente não ganhava porra nenhuma,<br />

mas se divertia!<br />

Mas o Cara de Cavalo tá na ativa até hoje, né?<br />

O Cara de Cavalo é um personagem que saiu do Coronel Cabelinho vs grajaú Soldiaz, o longa<br />

metragem da Pepa Filmes, que era pra ter trinta minutos e acabou com quase uma hora e meia!<br />

Tenho uma relação meio maluca com ele, tá na ativa, mas aparece quando dá na telha, não manda<br />

e-mail nem liga antes (risos)!<br />

é tipo um espírito que baixa em você de vez em quando?<br />

É, tem uma parada engraçada que minha mãe e minha vó me contam. Meu avô materno morreu<br />

antes de eu nascer, e elas falam que ele também tinha essa coisa, do nada dava uma ziquizira e ele<br />

aparecia na sala, incorporando um personagem. E desde moleque eu sou assim, tem até filmagem<br />

minha pequenininho todo montado, incorporando personagem… E com o Cara de Cavalo rola isso<br />

também, ele acabou ganhando vida própria, ainda mais depois da vinhetinha que gravei pro disco do<br />

Quinto Andar.<br />

Você tem um pequeno arsenal de personagens que criou, e alguns deles já te acompanham por<br />

um bom tempo, como o Negolindo, o Abarreta, o Theo22. Como nascem esses personagens?<br />

São inspirados em pessoas que você conhece ou são ficção? Conta um pouco a história de<br />

cada um deles.<br />

Muita coisa eu tiro da vida real mesmo. O Negolindo é meio que uma tiração de sarro com os<br />

personagens bonitinhos que pipocaram no graffiti nos ultimos tempos. Ele é a síntese do que as<br />

pessoas mal resolvidas na vida acham de ruim: é um pivete preto, zarolho, desdentado, descalço<br />

e sem camisa. Mas tem cara de feliz. O Abarreta é uma tiração com os famosos wannabes,<br />

como são chamados na gringa. Ele não faz nada de bom, não sabe cantar, é um mimado, mas se<br />

fantasia de rapper e vive uma vida de glamour que não existe. O Theo22 é um cara que existe na<br />

ZN, num condomínio na Vila Isabel. É um cara sinistrão! Já fiz uns graffitis dele na frente da sua<br />

56 57<br />

agenor, o rei da bocha . acrÍlica e sPray sobre madeira . 2007<br />

4los dos hermanos . acrÍlica sobre fotografia . 2007<br />

4oZZy Jr . acrÍlica e sPray sobre madeira . 2007


4muvuca . nanquim e cor no PhotoshoP . 2008<br />

casa, ele já virou até shape pra uma marca alemã (Subvert). Fiz o cara<br />

saindo duma tumba no cemitério. E tenho alguns outros personagens<br />

que criei e ainda não fiz nada com eles, pretendo um dia, mas por<br />

enquanto estão na minha cabeça, bem guardados.<br />

Seu trabalho parece ter sempre uma dose de humor impregnado.<br />

Você não consegue levar nada na vida a sério?<br />

Por incrível que pareça, eu levo essa sacanagem muito a sério (risos)!<br />

Tenho um prazer muito grande em provocar o riso, mesmo que interno,<br />

nas pessoas. Pintei um banheiro químico no Circo Voador um tempo<br />

atrás, que era um boneco do lado de fora e dentro só bilhete sacana! E<br />

tá lá até hoje. As pessoas entram e saem rindo. Isso pra mim não tem<br />

preço.<br />

Você é do tipo que perde o amigo, mas não perde a piada?<br />

Cara, pior que não! Eu não curto o humor que parte pro plano da<br />

humilhação. Dei apelido pra um monte de gente já, apelidos que<br />

ficaram até hoje, mas não lembro de nada humilhante. Tenho esse<br />

sarcasmo que não larga de mim, gosto de dar umas alfinetadas, mas<br />

acho que dá pra ser sacana sem ter que humilhar.<br />

Falando em apelidos, você um tempo atrás andou mudando a grafia<br />

do seu nome, primeiro de “Felipe” para “Fellipe”, e depois começou a<br />

assinar seus trabalhos como Mottilaa, com dois “a” no final… qual foi o<br />

motivo dessas mudanças? Numerologia, esoterismo ou porque já tinha<br />

Felipe Motta demais por aí, de campeão de snowboard a dono de loja<br />

de vinhos online?<br />

[A Mari, mulher de Felipe responde por ele] Todas as respostas acima!<br />

(Risos) Todas e mais um pouco! É um assunto delicado, que mexe com<br />

forças ocultas, prefiro não comentar mais sobre isso! (Risos)<br />

(Risos) Ok, vamos esquecer esse assunto. Me explica então por que<br />

quase todos os teus personagens têm mãos de pinguim, sem dedos?<br />

Faltou na aula no dia que ensinaram a desenhar dedos ou é pura<br />

preguiça mesmo?<br />

(Risos) Na real os meus personagens têm dedos, sim, é que de longe eles<br />

não aparecem! E se precisar eu boto dedos neles, sim, quando eles têm<br />

que mandar um fuck ou um joinha… Outro dia rolou um lance engraçado,<br />

fui a uma reunião de um trabalho em que me contrataram como ilustrador<br />

mostrar o layout dos personagens e o diretor de arte falou: “O Motta fez<br />

as mãos aqui no layout sem dedos para agilizar, né?”, e eu: “Não, não, é<br />

assim mesmo!”<br />

(Risos) Vai, chegou a hora de vender o seu peixe! Fala um pouco do<br />

Petit Pois Studio.<br />

Opa! Essa a Mari responde! (Risos) O Petit Pois Studio nem era um<br />

projeto, mas acabou rolando. Como a Mari também é designer, a gente<br />

começou a pegar uns trabalhos juntos e, quando a gente viu, precisamos<br />

alugar um lugar pra trabalhar. O nome do estúdio é o nome do nosso<br />

cachorro, e o logo é a cara dele. A gente fala que criou o conceito de<br />

“Live Logo”: ele fica aqui junto com a gente, então é o logo andando pelo<br />

estúdio o dia inteiro! (Risos) Na real, o Pois é o nosso chefe, a gente só<br />

obedece!<br />

E o graffiti, você considera mais como uma técnica ou leva a parada a<br />

sério, toda a questão da ideologia, da tradição e das regras, de ter que<br />

fazer bomb, letras etc?<br />

Eu tenho uma relação engraçada com o graffiti. Comecei com os caras<br />

do FleshBeck aqui no Rio, me pilhando pra colocar meus desenhos no<br />

muro, daí fui me interessando, ficando vidrado nessa coisa da escala, do<br />

tamanho das coisas. É muito louco ver um personagem teu com quatro<br />

metros de altura na entrada de um viaduto por onde passam milhares de<br />

pessoas por dia. Você fica pensando “o que todas essas pessoas devem<br />

4lhama e 1 sole! . naquim, nanquim aguado e ecoline sobre PaPel canson montval . 2009<br />

58 59


“Pedi pra minha avó um skate<br />

com um desenho de dragão no<br />

meu aniversário e ela viajou<br />

pro Paraguai e me trouxe um<br />

que tinha uma lagartixa rosa<br />

bebê de óculos escuros em<br />

cima de um skate! “<br />

pensar quando passam por aqui?” Acho legal essa coisa do graffiti, de<br />

deixar lugares horrorosos mais bonitos. Fiquei um tempo sem pintar,<br />

pintando uma coisinha aqui e outra ali, mas da metade do ano pra cá acho<br />

que me deu um estalo e voltei com pique! Essa coisa de as pessoas se<br />

reunirem pra pintar também é meio que uma terapia…<br />

Você já é bem conhecido no cenário do skate e da música, mas pouca<br />

gente conhece o seu trabalho autoral. Agora que está se preparando<br />

para a sua primeira individual, no fim de outubro, onde vai poder<br />

mostrar esse seu outro lado que nem todos conhecem, fala um pouco<br />

sobre a temática da exposição e o que pretende mostrar por lá.<br />

Então, eu viajei em abril com a Mari pro Peru. Passamos só 10 dias lá,<br />

mas a quantidade de coisas que vimos foi absurda! Rodamos meio sem<br />

destino, mal sabíamos pra onde a gente ia no dia seguinte. E é um país<br />

com muita diversidade, a fauna, a flora, as pessoas, cores pra tudo quanto<br />

é lado. E a gente, que trabalha com isso, não tem como não voltar com a<br />

cabeça pipocando de ideias! Então essa exposição será a minha leitura, a<br />

minha interpretação do que vi por lá. Sempre com essa pegada bemhumorada,<br />

nem que seja apenas no traço. E é uma puta oportunidade pra<br />

eu dar um gás nesse meu lado autoral, que sempre esteve latente. Sempre<br />

pintei e ilustrei autoralmente, mas ainda tem todo um trabalho que tem<br />

que ser feito... Estou na maior expectativa, tá chegando, mas eu funciono<br />

bem na pressão... pelo menos nos últimos 31 anos! (Risos)<br />

E no geral, como você cria? Parte de uma ideia ou de um conceito<br />

pré-definido, se inspira em fatos ao seu redor ou simplesmente sai<br />

desenhando?<br />

Geralmente tenho a ideia e quando boto no papel, mesmo que seja só<br />

pra rascunhar, ela já está bem definida na cabeça. Mas às vezes não, é um<br />

processo que nem sempre é linear. Saio na rua e ouço um cara falando<br />

uma merda, acho engraçado e aquilo me lembra de alguma outra coisa,<br />

que me dá uma ideia que às vezes não tem nada a ver com a merda que o<br />

cara falou! (Risos)<br />

Defina seu trabalho em uma frase curta, estilo frase de msn ou twitter.<br />

(Risos) [Mari diz] Você faz esse tipo de tortura com todo mundo que<br />

entrevista, tipo Marília Gabriela?<br />

(Risos) Não, mas quando é com amigo tem que dar uma judiada, né?<br />

quem vai ao programa dela já sabe que tem que chegar com uma frase<br />

pronta na ponta da língua. Então, assim, de surpresa é mais divertido!<br />

A Mari mandou outro dia uma que me define bem: “Se Deus escreve certo<br />

por linhas tortas porque eu é que vou ter que fazer linhas retas?” (risos)<br />

Para terminar, gostaria de dizer mais alguma coisa em sua defesa?<br />

(Risos) Deixa eu pensar… “Quem não deve não treme!” 3<br />

4saluda el tricitáXi! . acrÍlica sobre madeira mdf recortada . 2009<br />

4navalhada . láPis de cor sobre PaPel kraft . 2007<br />

60 61<br />

2SAIBA MAIS<br />

www.mottamobil.blogspot.com


Entre Entre Entre<br />

(Outros) (Outros) (Outros)<br />

Na edição passada, publicamos um especial com obras<br />

selecionadas para a 1ª Exposição Anual Entre (Outros). A<br />

exposição aconteceu no Espaço <strong>+Soma</strong>, foi incrível e resultou em<br />

um livro-catálogo que já está disponível na nossa loja. Na seleção<br />

para a exposição e o livro, algumas obras bem bacanas ficaram<br />

de fora por motivos de espaço. Mas esta seção nasceu justamente<br />

para não deixar os (Outros) na mão. Por isso, nesta edição<br />

publicamos uma segunda leva de trabalhos de alguns artistas<br />

selecionados para o projeto Entre (Outros). 1<br />

SãO ElES:<br />

Cena 7<br />

Ignore Por Favor<br />

Lucas Biazon<br />

Rômolo<br />

Tinico Rosa<br />

Vagner DoNasc<br />

Vital Lordelo<br />

Quer publicar seu trabalho na revista e expor no<br />

nosso espaço? Mande um email para entreoutros@<br />

maissoma.com com amostras da sua arte em baixa<br />

resolução (72dpi) e torça para ser selecionado!<br />

ENTRE (OUTROS) CONTA COM O APOIO DA NIKE, QUE, ASSIM COMO A<br />

+SOMA, NASCEU DA TÍPICA ENERGIA E PAIXÃO QUE MOTIVAM JOVENS<br />

NO MUNDO TODO A CORRER ATRÁS DE SEUS SONHOS. UM ESPAÇO<br />

DEMOCRÁTICO QUE CELEBRA A ARTE, TRAZENDO A CADA EDIÇÃO<br />

NOVOS ARTISTAS E IDEIAS QUE INSPIRAM.<br />

Especial<br />

Parte 2<br />

VITAl lORDElO 4FLICKR.COM/PHOTOS/DOM_VITAL<br />

TINICO ROSA 4FLICKR.COM/PHOTOS/TINICO_ROSA


luCAS BIAzON 4FLICKR.COM/PHOTOS/ANYWHEREDOTDOC<br />

IGNORE POR FAVOR 4FLICKR.COM/PHOTOS/IGNOREPORFAVOR<br />

64 65


VAGNER DONASC 4FLICKR.COM/PHOTOS/VAGNERDONASC<br />

CENA 7 4FLICKR.COM/PHOTOS/CENA7-MPC<br />

66 67


arte<br />

Por marina mantovanini<br />

Multicultural<br />

Fernando<br />

chaMarelli<br />

Na contramão da maioria dos artistas, que se envolvem com arte desde<br />

muito cedo, o primeiro contato de Fernando Chamarelli com as tintas<br />

e as telas aconteceu há apenas dois anos, quando ele tinha 25. Suas<br />

criações recentes têm ecos das técnicas aprendidas no curso de<br />

design gráfico – formato vetorial, cores chapadas e um processo de<br />

elaboração que começa no papel para depois se espalhar pela tela.<br />

Equilíbrio, harmonia, forma e contraste também seguem um método<br />

baseado nas leis da psicologia Gestalt. As regras que guiam seu processo<br />

criativo o levaram na direção de uma linguagem urbana, expressa por<br />

ares pré-colombianos. Para suavizar tanto perfeccionismo, Chamarelli se<br />

inspira em artistas como Anil Gupta, OSGEMEOS, Dali, Klimt e Magritte,<br />

e agrupa esses diferentes estilos em suas pinturas. 1<br />

68 69<br />

4detalhe da obra beiJa-flor canhoto . acrilica e óleo sobre tela . 2009


Em comparação com a maioria dos artistas, você começou a pintar tarde.<br />

qual o caminho que percorreu até estrear nas telas?<br />

Quando eu tinha 14 anos, um amigo me deu um gibi do wolverine. Fiquei<br />

muito impressionado e logo comecei a desenhar os personagens dos X-Men<br />

todos os dias. Depois das HQs, comecei a fazer desenhos em vários outros<br />

estilos. Desde o início fui autodidata, e ganhei os meus primeiros trocados<br />

desenhando retratos e reproduzindo fotos em folhas tamanho A3. E em Penapólis,<br />

onde nasci, a molecada costumava fazer máquinas de tatuagem<br />

caseiras. Fiz uma pra mim com uma colher, motor de carro de brinquedo e<br />

tubo de caneta bic amarrado com linha e fita (crianças, não façam isso em<br />

casa). Eu me identifiquei muito com esse universo da tattoo, e às vezes viajava<br />

para as convenções de tatuagem. Com o tempo, comprei equipamento<br />

profissional e por um curto período passei a frequentar o estúdio de um amigo.<br />

Depois fui cursar a faculdade de Design e ia para as ruas fazer algumas<br />

intervenções, como graffitis e lambe-lambes. Somente depois que terminei<br />

a faculdade é que encontrei o meu estilo e comecei a pintar.<br />

Como funciona o seu processo criativo?<br />

No design existe todo um processo de elaboração antes de chegar ao resultado<br />

final. Acho que por isso eu ainda não consigo pintar direto na tela.<br />

Começo a criar no sulfite, estudo umas cores no papel pra depois reproduzir<br />

na tela. O rádio está sempre ligado durante todo o processo. A música ajuda<br />

a fazer fluir o meu trabalho. Para a tela que estou pintando no momento,<br />

criei a arte ouvindo Lia de Itamaracá e o CD das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha.<br />

Às vezes vem à cabeça a história de alguma lenda ou mito que li<br />

e começo a criar. Mas basta ficar na frente de uma folha branca que surgem<br />

os personagens. Não gosto de ficar pensando muito no que vou fazer, tenho<br />

uma ideia geral e deixo rolar. Se pensar muito o desenho trava. Parece que<br />

quanto mais eu penso menos [a ideia] se desenvolve.<br />

Os seus quadros têm particularidades que indicam, mesmo sem a sua<br />

assinatura, que determinada obra é sua. Como chegou tão rápido no<br />

estilo atual?<br />

Dois acontecimentos têm vital importância no amadurecimento das minhas<br />

pinturas. Trabalhei por alguns anos com o Adobe Illustrator, e isso fez com<br />

que eu enxergasse tudo em forma de vetores, com poucas sombras e cores<br />

chapadas. Gosto de misturar personagens e as cores vibrantes do graffiti<br />

com vetores da arte digital. O outro motivo foi uma viagem que fiz para<br />

Olinda. Levei um choque ao conhecer a cultura que existia naquela região do<br />

país. O artesanato é muito rico, e os estilos musicais, como o maracatu, samba<br />

de coco, ciranda, mangue beat e baião, são densos. Também tenho uma<br />

ligação muito forte com povos e culturas antigas que não sei explicar de<br />

onde vem. Mesclo arte maia, inca e asteca com arte africana. Arte marajoara<br />

com chinesa e maori, egípcia, rupestre e indiana com arte das tribos antigas<br />

do extremo norte da América e assim por diante. Além disso, com o tempo<br />

o estilo foi evoluindo e se desenvolvendo aos poucos, sem eu perceber. Me<br />

preocupo mesmo em fazer algo legal e que me agrade.<br />

O fato de você viver em uma cidade do interior muda em alguma coisa o<br />

seu processo de produção? A vida mais tranquila define de alguma maneira<br />

os seus trabalhos?<br />

Acho que sim, pois a tranquilidade é essencial quando estou criando. Gosto<br />

de ficar próximo da natureza, acho que isso me ajuda a criar mais formas<br />

orgânicas com harmonia e equilíbrio.<br />

quando você percebeu que poderia viver de arte?<br />

Há pouco tempo descobri que muitos artistas de rua de São Paulo, que eu<br />

admirava, conseguiram mostrar seus trabalhos também dentro das galerias.<br />

Daí senti que também poderia ter meu lugar ao sol. Deixei o trampo de<br />

4detalhe da obra fronteira . acrilica e óleo sobre tela . 2009<br />

70 71<br />

4<br />

designer em uma agência para tentar viver de arte, pintando e ilustrando.<br />

A correria não para, e é preciso ser uma pessoa criativa. Recentemente as-<br />

sisti a uma palestra de um sociólogo italiano que dizia que a profissão do<br />

futuro vai unir trabalho, estudo e diversão, então creio que estou no caminho<br />

certo.<br />

Você já expôs em coletivas fora do país. Isso trouxe algum retorno para a<br />

sua carreira? Como rolou esse contato?<br />

As primeiras exposições de que participei foram coletivas fora do país. É<br />

estranho conseguir mostrar primeiro meu trabalho no exterior e só depois<br />

no Brasil, mas por outro lado é bem massa, porque abre as portas e aos<br />

poucos vira uma bola de neve. Depois que comecei a divulgar o meu trabalho<br />

na internet, os gringos foram os primeiros a entrar em contato comigo<br />

pelo flickr. E assim rolaram os convites. É muito bom poder divulgar<br />

em outros países. Outras exposições coletivas estão para acontecer e estou<br />

conversando com uma importante galeria dos EUA, que me convidou<br />

pra fazer uma expo individual lá ano que vem. Espero que dê tudo certo.<br />

quais são os materiais que você usa para criar as suas telas?<br />

Depois de desenhar com um lápis na tela o que criei no papel, eu pinto<br />

com tinta acrílica e um pouco de tinta a óleo. Meu próximo passo deve ser<br />

misturar pintura com escultura. No geral, tudo na arte me atrai, gosto de<br />

usar as mais diferentes superfícies e diferentes técnicas e materiais. Acho<br />

que não devem existir regras, cada um pode pintar com o que quiser ou com<br />

o que tiver ao alcance.<br />

Como você define o seu trabalho?<br />

Não curto impor um significado muito exato para as minhas pinturas e dizer<br />

essa tela significa “x” e aquela outra, “y”. É legal ouvir dos observadores suas<br />

diferentes interpretações da mesma obra. Muitas vezes eles veem muitas<br />

coisas que eu não enxergo dentro daqueles “mosaicos”. Afinal, Kant dizia<br />

que nunca seremos capazes de saber com toda a certeza como as coisas<br />

são em si. Só podemos saber como elas se mostram a nós.<br />

Como você enxerga o mercado de arte contemporânea no Brasil? Sente<br />

que nos dias de hoje tem mais espaço ou continua difícil encontrar o lugar<br />

ao sol?<br />

Não tenho muita experiência pra fazer uma análise profunda sobre o<br />

mercado de arte contemporânea brasileiro. Sou novo nesse mundo, nunca<br />

fui a nenhuma bienal e moro distante das grandes capitais que consomem<br />

esse tipo de arte. Mas na minha opinião é bem difícil pra quem está<br />

chegando agora, eu estou vivendo isso. A educação do país ainda é ruim,<br />

e são poucas as pessoas que admiram arte. É um tipo de trabalho bem<br />

desvalorizado. Você tem de fazer porque gosta. Principalmente aqui no<br />

interior, muitas pessoas veem minhas telas e dizem: “Legal, mas por que<br />

você não pinta uma paisagem, um cavalo, flores ou um gato bem bonito?”<br />

Por outro lado, têm surgido novas galerias e espaços, e a internet ajuda<br />

muito quem está começando. Acho que quem não desiste encontra algum<br />

dia o seu espaço.<br />

O que espera daqui pra frente?<br />

Espero que os artistas da nova geração sejam valorizados pelo excelente trabalho<br />

que fazem e que cada vez aconteçam mais exposições e surjam novos<br />

espaços culturais. E torço para que eu consiga me manter vivendo apenas<br />

das minhas pinturas e ilustrações. 3<br />

2SAIBA MAIS<br />

www.flickr.com/lfchamarelli


BATE<br />

PANela<br />

Frutas na mesa, pia, chaleira, fogão, pano de prato,<br />

geladeira. E pratos, é claro. Foi nesse ambiente familiar<br />

que o cantor, compositor e multi-instrumentista<br />

paulista Curumin viajou no tempo e revisitou<br />

momentos da sua vida que ajudam a entender de onde<br />

vem a vitalidade da sua música.<br />

Curumin é mesmo multi: agita seus pratos<br />

tanto em ondas pop, como Arnaldo Antunes,<br />

Vanessa da Matta, Céu e Otto, até nas mais<br />

independentes, como Instituto, Rômulo Froes<br />

e Guizado. Lá fora, já batucou com Tommy<br />

Guerrero e Femi Kuti. Sua desenvoltura no palco<br />

parece tão natural quanto a preparação do chá<br />

na cozinha de sua mulher, a cantora<br />

Anelis Assumpção.<br />

Descontraído e sofisticado, ele reinventa seu som<br />

costurando soul, funk, dub, reggae, hip-hop, samba<br />

e baião. Experimentalismo, psicodelia e, quem diria,<br />

psicologia. Receita tão boa que levou seu segundo<br />

disco a se destacar entre os mais vendidos de música<br />

latina no iTunes. Pronto. Está na mesa. 1<br />

POR DEBORA PILL . FOTOS AO VIVO DIVULGAÇÃO<br />

Como surgiu sua história com a música?<br />

Sempre gostei de música. Antes de tocar um instrumento, lá pelos 6 anos, eu<br />

adorava Sidney Magal. Vestia roupas parecidas e cantava que nem ele. Essa<br />

história é bem queima-filme, né? (Risos.) Mas era isso que rolava na época, é<br />

uma coisa daquela geração. As TVs e rádios investiam pesado nos sucessos<br />

populares, todo mundo via o clipe do cara e saía imitando, assim como foi com<br />

o Michael Jackson. Não é que nem hoje, que as pessoas gostam de coisas mais<br />

particulares, tem um monte de nicho.<br />

quando você descobriu a bateria?<br />

A gente descolou um amigo da classe que tocava. E nos ensaios eu<br />

pirava na bateria. Todo intervalo eu ficava lá, tocando. Até o dia em que<br />

saiu um ritmo. Porque tem toda a coisa da coordenação, que é difícil.<br />

E daí, quando consegui encaixar o chimbau com a caixa e o bumbo<br />

e acertei a coordenação dos membros, cara, eu pirei! Ficava em casa<br />

batendo no corpo, no ar. Fiquei tão instigado que resolvi montar uma<br />

bateria em casa. Um tio me deu uma pandeirola, eu montei o chimbau,<br />

um amigo me deu um pandeiro, eu fiz a caixa. Daí tinha um móvel que<br />

eu usei como prato, um tablado de madeira e um pé de enxada torto<br />

que, quando eu batia, tirava o som. Eu colocava os discos e ficava<br />

acompanhando. Nessa época rolava muito Led Zeppelin, Pink Floyd…<br />

E quando veio a primeira bateria de verdade?<br />

Eu devia ter uns 12 anos. Fiz até caixinha – ligava pra família toda dizendo que<br />

não queria presente de aniversário, queria dinheiro pra comprar a bateria! Aí eu<br />

achei uma baratinha, no [jornal de anúncios paulistano] Primeiramão.<br />

72 73


Era um cara de Sapopemba, e eu morava no Paraíso. Então escalaram minha<br />

avó pra me levar, ela já velhinha. Foi uma epopeia, viagem de um dia inteiro, a<br />

gente se perdeu no meio do caminho e tudo. A bateria era bem ruim, mas durou<br />

uns cinco anos.<br />

Como você descobriu que tipo de som queria fazer?<br />

Comecei a prestar mais atenção no que meu irmão mais velho escutava.<br />

Ele sempre foi interessado em música, estudava, lia as revistas, ia atrás<br />

dos discos que indicavam. E um dia ele chegou com o Inner Visions,<br />

do Stevie wonder. Aí mudou tudo. Até então eu só conhecia “I Just<br />

Called To Say I Love You” e achava o cara um mala. Ouvi o disco e pirei<br />

totalmente. Foi quando descobri a música negra americana e comecei a<br />

investigar o funk soul. E como foi o lançamento nos EuA?<br />

O primeiro show foi engraçado. Eu estava assutado. Foi em NY, no CMJ,<br />

que é um festival gigante. Foi um show estranho, numa cobertura, tipo<br />

private party. Rolava churrasco em cima e o show embaixo. E, como eles<br />

só tinham grana pra levar duas pessoas, tive que me virar. Acabei pegando<br />

um músico de lá, o Victor Rice, pra tocar baixo, o Quincas [Moreira] foi<br />

tocando teclado, e a gente ia soltando os beats.<br />

“A PERSPECTIVA DA BATERIA EM RELAÇÃO<br />

AO PúBLICO É BEM DIFERENTE.<br />

EM LUGAR PEQUENO ROLA ESSA<br />

COMUNICAÇÃO FÁCIL, MAS EM LUGAR<br />

MAIOR O DESAFIO É GRANDE. E OS úLTIMOS<br />

SHOwS QUE ROLARAM NOS EUA FORAM<br />

PRA UMAS CINCO MIL PESSOAS, EU NÃO<br />

ESTAVA ACOSTUMADO.”<br />

Fala sobre o seu primeiro disco, Achados e Perdidos.<br />

O Achados veio assim que acabou a Zomba (banda de funk com Paula Lima).<br />

Eu tinha um monte de ideia, umas músicas prontas. Tinha “Guerreiro”, mas<br />

com outra letra, mais filosófica. Era bem ruim! E eu tinha acabado de comprar<br />

uma MPC e ficava montando base. O [Gustavo] Lenza tinha um computador<br />

com Pro Tools e trabalhava na YB. A gente gravou disco nos períodos de férias,<br />

pegava dois, três dias produzindo e ficava uns meses parado. Isso tudo rolou em<br />

uns dois anos. A gente criava aos poucos na MPC e ia jogando no computador,<br />

fazendo as letras.<br />

Você acha que poderia ter feito ele em menos tempo?<br />

Acho que não. Eu estava me formando em psicologia na época, inclusive<br />

meu trabalho final foi sobre Jung. Foi também nessa época que comecei a<br />

garimpar coisas desconhecidas, tinha o Ramiro [Zwetsch, jornalista], que<br />

discotecava em várias festas e a gente ficava pesquisando sons. Eu era<br />

meio viciado, comprava uns cinco CDs por mês. O Achados é resultado<br />

dessa fórmula: um cara que estudou o funk soul americano, pirou no funk<br />

soul brasileiro e usou as possibilidades do Pro Tools da época.<br />

Foi quando a quannum resolveu lançar o disco?<br />

É. E foi um desafio pra mim, porque eu sempre fui meio na<br />

minha. De repente veio a Quannum querendo mostrar o meu<br />

som no território americano! Foi assustador no começo, eu<br />

estava com os caras que admirava. Na época eu nem tinha um<br />

formato certo de banda, fazia várias experimentações. Daí o<br />

Blackalicious veio tocar no Brasil e o Lenza estava fazendo o<br />

som. E acabou rolando o clássico “deu o disco pros caras, os<br />

caras ouviram e curtiram!” (risos).<br />

Como foi o show nesse formato enxuto?<br />

Essa linguagem é muito dos americanos, né? Você tem o MC<br />

e o cara soltando a base. Eu não tinha essa capacidade de<br />

entretenimento! Entrei na cobertura e tinha um monte de pôster<br />

meu, o Charlie Tuna passando o som com o Mistical… Comecei a<br />

suar frio. Me lembrou o primeiro show que fiz na vida, na escola.<br />

A gente subiu no palco e a partir dali deu um branco. Até hoje<br />

não sei o que rolou. Foi ali que eu conheci o Tommy Guerrero, que<br />

também estava lançando disco. A gente fez um som junto no dia<br />

e logo depois abrimos o show dele, e foi bem mais legal, com um<br />

público mais tranquilo, skatista.<br />

E as turnês pelos EuA?<br />

Ah, sempre rolou do jeito que deu. Da segunda vez eu ia com banda,<br />

mas o produtor me ligou um dia antes falando que os vistos não tinham<br />

saído. Foi uma loucura atrás de gente com visto de turista! Comecei a<br />

perguntar quem tinha e poderia ficar uma semana nos EUA. Cheguei lá,<br />

peguei um dia de ensaio num estúdio e foi isso, no dia seguinte a gente<br />

estava abrindo show do Femi Kuti em Miami! Loucura total. Foi só na<br />

terceira vez que rolou a turnê mais bacana, do jeito que a gente estava<br />

acostumado a tocar.<br />

Como foi no Brasil depois disso?<br />

Quando o Achados saiu pela Quannum, comecei a tocar mais<br />

aqui, rolou Blen Blen, Funhouse, Sesc. E o show também<br />

começou a ficar mais legal. Teve uma fase de experimentação,<br />

sem bateria e com beat programado, eu no cavaco com uma<br />

banda diferente. Daí foi mudando, comecei a tocar mais bateria,<br />

porque é do que eu gosto mais. E aí rolou turnê com a Céu,<br />

o batera dela não pôde ir e eu acabei passando um mês lá.<br />

Fiquei no estúdio do [DJ/produtor do Blackalicious] Chief Xcel,<br />

conheci melhor os caras, com tempo de sair e trocar ideia. Tudo<br />

isso fez muito parte da feitura do Japan [Pop Show].<br />

Por quê?<br />

A gente começou a encontrar novas referências. Eu tocava em lugares<br />

diferentes, via shows de uma galera nova. Isso tudo abriu minha cabeça,<br />

era um novo circuito. Desde o dia em que o meu irmão trouxe o Inner<br />

Visions, saquei que gostava daquilo. Então o foco que eu já tinha na<br />

música negra do mundo acabou se expandindo, porque comecei a ouvir<br />

coisas que não conhecia, como reggae, música brasileira também. Tudo na<br />

rede, pesquisando.<br />

O que mudou do Achados e Perdidos para o Japan Pop Show?<br />

Rolou um amadurecimento como músico, coisa que só o trabalho<br />

gera. Toquei com o Arnaldo [Antunes] por uns cinco anos, com<br />

Otto, Vanessa, Céu. Também percebi que toda a música negra ao<br />

meu redor tinha algo em comum, dava pra costurar numa coisa só.<br />

No Japan rola também a coisa da relação dos japoneses com<br />

o tempo. Eles são ultra modernos e ao mesmo tempo ultra<br />

tradicionais. Tudo que eu ouço é dos 60 e 70, e no disco usei a<br />

sonoridade e a textura das músicas antigas.<br />

Mas eu vivo nos anos 2000. Então espelhei isso da tradição com o<br />

moderno, através das ferramentas que a gente passou a usar.<br />

Falando em ferramenta, você abandonou de vez o cavaco?<br />

Eu gosto, mas nunca esteve internalizado, saca? Com a bateria me sinto<br />

mais à vontade, estudei, curto. Consigo estar mais dentro da música,<br />

conversar melhor com ela. Me sinto mais solto no palco também. E com<br />

isso passei a construir essa coisa de envolver mais o público.<br />

Isso é uma das características mais marcantes do seu show.<br />

A perspectiva da bateria em relação ao público é bem diferente.<br />

Em lugar pequeno rola essa comunicação fácil, mas em lugar<br />

maior o desafio é grande. E os últimos shows que rolaram<br />

nos EUA foram pra umas cinco mil pessoas, eu não estava<br />

acostumado.<br />

Para fechar, por que Curumin?<br />

Ah, é apelido de criança, coisa de escola. Na época eu tinha franja, e como<br />

sou moreno, com olho puxado, a galera acabou me chamando assim.<br />

Mas, quando vou tocar no Norte, o pessoal pergunta: “Por que esse<br />

nome?”. Eles não entendem. Porque lá tem os originais, né? (risos).3<br />

2SAIBA MAIS<br />

www.myspace.com/curumin<br />

74 75


CRiolo doido<br />

filÓsofo do submundo<br />

POR ANDRÉ MALERONKA<br />

A fala do MC Criolo Doido tem seu ritmo pontuado por pausas dramáticas e<br />

interpretações nas alturas e intensidades. Isso, mais o uso desbragado de linguagem<br />

corporal em suas explicações cheias de parábolas e certezas, dão a sensação de que<br />

o Criolo não subestima seu interlocutor. “Sim, é isso, estou aqui representando o<br />

personagem Criolo Doido, é o que tem pra hoje”, ele parece sinalizar o tempo todo.<br />

Ainda que interpretando, ele não poderia ser mais franco: o personagem que criou,<br />

um filósofo, é também a maneira que Kleber gomes encontrou para lidar com a vida e<br />

as coisas do mundo. 1<br />

76 77


“NiNguém coNsegue<br />

fazer Nada soziNho,<br />

eNtão a riNha, hoje, é da<br />

cidade de são Paulo, é um<br />

PatrimôNio. lá é o úNico<br />

lugar oNde o cara que<br />

aiNda Não tá muito firme<br />

Na ceNa Pode caNtar.”<br />

Prestes a lançar um DVD ao vivo, ele concorre ao Hutúz e também é o<br />

protagonista do recém-lançado Profissão MC, filme dirigido por Alessandro<br />

Buzo, escritor “suburbano convicto” e apresentador do quadro “Buzão” no<br />

programa Manos e Minas da TV Cultura, e por Toni Nogueira, que apresenta<br />

o quadro “Domingão Aventura” no Domingão do Faustão. Criolo é um MC<br />

habilidoso: suas músicas parecem ser escritas a partir das levadas criadas à<br />

rap bate-cabeça, e seu senso de humor é ímpar, como sabem todos os que<br />

já o viram apresentando a Rinha dos MCs, evento semanal que começou em<br />

parceria com o DJ Dandan – hoje o DJ Marco e Kiko, do Pentágono, também se<br />

responsabilizam pela organização. É uma noite com discotecagem só em vinil<br />

e microfone aberto para batalhas de freestyle, nas quais o público decide os<br />

ganhadores. Um espaço de criação musical único na cidade.<br />

Porque você resolveu fazer um DVD?<br />

Um dia eu tava chateado com umas coisas na Rinha e falei “pode colocar<br />

aí, gravação do DVD do Criolo Doido, quero ver se o negócio vai estourar<br />

ou não vai”.<br />

No microfone?<br />

Não, entre a gente mesmo, depois do evento. Aí o DJ Marco – a gente tava<br />

começando a trabalhar junto, isso foi ano passado, ele não conhecia esse meu<br />

jeito meio maluco de ser – colocou no flyer na outra semana! Aí eu conheci a<br />

Vivi [Rocha, diretora do DVD] e ela disse que daria uma força. Quando fomos<br />

ver, tinha quase vinte profissionais envolvidos. Tá muito bonita a parada, parte<br />

técnica de alto nível. A gente tá correndo pra sair este ano ainda. Fatalmente<br />

será independente, mas, se tiver alguma proposta em que o DVD saia a um<br />

preço justo, a gente pode conversar. A grande ideia é que o máximo de<br />

pessoas veja esse trabalho, porque não é só um registro de músicas, é um<br />

registro de sentimentos. E esses sentimentos podem modificar alguma coisa.<br />

As músicas são apenas um detalhe dentro de toda essa história. O grande<br />

lance é o teu olhar, o porquê de você estar fazendo a música – e aí as coisas<br />

vão acontecendo.<br />

Foi tudo gravado no Executivo, na Rinha?<br />

Tudo gravado no Executivo Bar, um antigo puteiro que tá sendo<br />

re-significado. Às sextas-feiras é o encontro de uma massa humana:<br />

jovens, adolescentes e o pessoal das antigas que gosta de música boa.<br />

A gente transformou esse lugar. Você pode escutar boa música, rever<br />

amigos e fazer novos amigos – a proposta da festa e do encontro<br />

cultural que é a Rinha dos MCs sempre foi essa. E acontece lá, na Sete<br />

de Abril (rua no centro de São Paulo), abaixo do nível da terra e...<br />

(risos) estamos com a sétima chave da sétima porta do umbral.<br />

Como começou?<br />

A Rinha surgiu da necessidade de uma festa em que a gente pudesse<br />

escutar as músicas que queríamos. A gente tinha saudade dos anos<br />

90, e pouquíssimos DJs estavam saciando nossa sede de música. Era<br />

a necessidade de um espaço para discutir nossas músicas e onde<br />

a rapaziada – no começo a da Zona Sul, porque a Rinha nasceu no<br />

Grajaú e no Iporanga – se encontrasse e cantasse suas músicas,<br />

mostrasse fotografias, esculturas. A gente jamais imaginou que ia<br />

chegar aonde chegou. É muito louco isso: a partir do momento em<br />

que você divide uma ideia, ela não é mais sua, e as pessoas vão se<br />

sensibilizando. Ninguém consegue fazer nada sozinho, então a Rinha,<br />

hoje, é da cidade de São Paulo, é um patrimônio. Lá é o único lugar<br />

onde o cara que ainda não tá muito firme na cena pode cantar. E<br />

imprime pressão nele. Não é um lugar onde o cara sai tipo “cantei<br />

por cantar”, ele sabe que tem uma pressão positiva ali. Ele vai pra lá<br />

assim: “tem muita gente aqui que manja muito, então vamos ver se é<br />

isso mesmo – da parte deles e da minha também”. O que acontece lá<br />

é uma avaliação de quatro ou cinco situações ao mesmo tempo.<br />

quando começou?<br />

Em 2006, na Robert Kennedy. Foi em seis lugares diferentes, todos na<br />

Zona Sul de São Paulo. Agora tá há um ano no Executivo.<br />

Você só tem um disco e já é conhecido – indicado ao Hutúz e tudo<br />

mais. Como surgiu o disco?<br />

Muitos parceiros cederam as instrumentais, ninguém me cobrou nada.<br />

Muita gente me ajudou: o w-Jay do SNJ, o Slim Rimografia, o Apolo<br />

do Pentágono, o Raul do Iporanga. Eu demorei dois anos, e depois de<br />

pronto demorei um ano pra pôr na rua. Agora tem um rapaz de uma<br />

empresa que ficou interessado em algumas músicas e vamos ver o<br />

que acontece. Ele tinha pensado num single da música “Vasilhame”,<br />

mas agora escutou os outros sons e tá pensando num EP virtual.<br />

Eu ouvi uma versão demo de “Grajaúex”. Você vai gravar essa?<br />

Eu pretendo, tem muita música nova. A gente tem que equacionar<br />

falta de grana e qualidade técnica, então demora um pouco.<br />

Mas você pretende lançar fisicamente também?<br />

Sim, a gente não pode se iludir com isso. Muitas pessoas ainda têm<br />

videocassete. Muitas casas não têm nem luz! Se a gente for parar<br />

pra pensar, o Haiti é aqui com todas as forças. Inclusive as Forças<br />

Armadas (risos).<br />

Recentemente o hip-hop ganhou mais espaço na mídia de novo. Isso é<br />

verdade ou não?<br />

Era inimaginável cinco anos atrás ter um programa como o Manos e Minas<br />

na TV aberta. Acho que isso mostra o poder de consumo do nosso povo e<br />

da música negra. Não é só o afoxé, o samba, que são coisas maravilhosas,<br />

mas também essa outra parte que tem o rap e o reggae. Já, já, vai ter um<br />

programa de reggae na TV aberta. Tem muito grupo, muita gente, muito show.<br />

Perceberam que os barrigudinhos têm poder de consumo. Tudo tem um<br />

custo, e agora tem uns patronos, mas tudo é transitório. Os amores, os cortes<br />

de cabelo e até o estilo musical podem ser – não é porque tá na TV que é pra<br />

sempre. As coisas têm que ter história – o que é eterno você vai guardar na sua<br />

biblioteca de coisas boas.<br />

E como você escreve?<br />

Tomado por muita emoção, cara. Tomado por muita indagação, por muita<br />

vontade de mudança minha, interna. Porque, se eu não estiver disposto a<br />

enxergar tanta coisa errada que tenho dentro de mim, o que eu vou querer<br />

mudar? Comecei com 12 anos de idade. Um colega de escola tava preocupado<br />

em não passar de ano e fez uma rima dizendo que ia pegar o pergaminho dele.<br />

Foi a primeira vez que vi um cara fazendo uma rima, e era uma baita de uma<br />

analogia, ainda por cima. Tinha o programa Metro Tech na rádio Metropolitana.<br />

Acho que era do Armando Martins – meu Deus, será que alguém vai me bater<br />

de eu estar falando errado? (risos) Quando fui ver tinha uma multidão de gente<br />

de várias outras quebradas fazendo isso também.<br />

O hip-hop no Brasil já passou por várias fases. Você acha que isso tem a<br />

ver com o quê? Com a produção dos grupos? Com a postura?<br />

A gente pode pensar no rap – ou em qualquer outra coisa, na verdade – da<br />

seguinte forma: quando você tem um terreno muito grande e constrói uma<br />

cidade sem nenhum projeto de urbanização, ela vai crescer de um jeito. Se<br />

planejar, vai crescer de outro jeito. Mas também não podemos jogar toda a<br />

culpa em quem tava na linha de frente cantando esse rap. Era uma estética<br />

nova que trazia consigo um monte de auto-estima. A gente tinha que se firmar<br />

naquele momento, era importante falar daquilo, bater de frente com alguns<br />

temas. A gente tava vivendo aquilo, de verdade, dia a dia. Se tivesse uma ou<br />

duas pessoas dessas que fazem mega eventos e mega situações vendo o rap<br />

nascendo ali com a noção de quanto ia crescer no nosso país, isso talvez tivesse<br />

sido diferente. Teve muito guerreiro que gritou muito forte, mas não teve<br />

como ser ouvido. É tudo planejamento. Mas não dá pra planejar algo novo, a<br />

gente tá num processo ainda. É tudo muito novo, e a dinâmica do ser humano<br />

mudou muito. Antigamente uma pessoa podia ficar o dia inteiro discutindo<br />

temas filosóficos. Hoje a gente não pode – e não quer! Demorava três meses<br />

pra uma fita minha chegar num outro bairro, a gente achava o máximo um cara<br />

de outro bairro vir cantar na nossa escola. Hoje tem tudo a um clique, e cabe<br />

a você ver o que tá exacerbado e o que tá faltando. Mas o rap é um diamante<br />

que brilha muito, e as pessoas não tão sabendo encontrar o ângulo dele com o<br />

brilho mais perfeito. É que a gente valoriza a individualidade, mas nunca aceita<br />

a individualidade do outro. 3<br />

2 SAIBA MAIS<br />

www.myspace.com/criolomc<br />

twitter.com/criolomc<br />

78 79


Mais que música,<br />

uma missão<br />

ma<br />

re<br />

Para quem está ligado no cenário do rap<br />

brasileiro atual, o MC Marechal é uma<br />

grande expectativa. Seu nome começou<br />

a vagar pela cena no fim dos anos 90,<br />

através da lendária festa carioca Zoeira<br />

Hip-Hop, com seu primeiro grupo, o<br />

subversivo coletivo Quinto Andar, além<br />

da Academia Brasileira de Rimas. Com 10<br />

anos de carreira e considerado por muitos<br />

uma das promessas do rap no país,<br />

Marechal é visto como um talento sem<br />

nunca ter lançado um disco. Em um papo<br />

franco e aberto em seu estúdio no bairro<br />

de Itaipu, em Niterói, Marechal soltou<br />

o verbo, falou de projetos com novas<br />

propostas e diferentes visões de mercado<br />

e afirmou: seu momento é agora. 1<br />

chal<br />

POR DANIEL TAMENPI<br />

FOTOS POR FOTONAUTA<br />

Você já tem uma história dentro do hip-hop. Como tudo aconteceu?<br />

Quando eu era moleque, meu sonho era ser jogador de basquete. Eu via os<br />

vídeos pra estudar os lances e o rap sempre tava no meio. Era aquela época<br />

do Lakers, Chicago Bulls. Quando saiu o primeiro disco do Shaquille O’Neal,<br />

eu pirei. Pensava: vou jogar na NBA e lançar um disco de rap (risos). Depois<br />

conheci os caras daqui: Racionais e Gabriel o Pensador. Foram os sons que<br />

me impulsionaram pra esse caminho. Eu já sabia que Public Enemy era uma<br />

parada de atitude, mas não entendia as letras. Quando o Gabriel lançou<br />

“Matei o Presidente”, comecei a me ligar que não era só atitude, mas também<br />

a mensagem. Daí comecei a me envolver.<br />

E quando surgiu a ideia do quinto Andar?<br />

Eu já andava com o De Leve, que também jogava basquete, e a gente co-<br />

meçou a brincar. Depois conheci o Speed, com uns 15 anos. Ele foi um cara<br />

muito importante, me apresentou outros estilos, como o jazz. Daí começou<br />

meu vício de comprar disco, um pouco antes da época da Zoeira (festa de<br />

hip-hop que fez história no Rio). O Quinto Andar foi uma ideia de espírito<br />

de coletivo – no começo tinha grafiteiros, b-boys. Eu comecei a gravar com<br />

aqueles mics de CPU, jogava no Napster e a parada começou a espalhar. E<br />

acabou se tornando uma coisa meio revolucionária, subversiva. Hoje em dia<br />

eu olho pra trás e vejo mérito, foi uma parada maneira pra época. Política e<br />

ideologicamente eu não concordo com a maioria dos envolvidos hoje em dia,<br />

mas respeito muito aquele momento.<br />

80 81


Desde a sua saída do quinto Andar, expectativas<br />

muito grandes foram criadas em cima do seu<br />

trabalho pessoal, mas até hoje você não lançou nada<br />

oficialmente. Por que essa demora tão grande?<br />

Na minha cabeça não demorou, porque foi um bom<br />

tempo de amadurecimento. E não digo amadurecimento<br />

só do rap, mas da música. Quero atingir as pessoas com<br />

isso, porque foi esse lado que me inspirou. Eu fui atingido<br />

pela mensagem do rap, não entendia nada de música. A<br />

mensagem foi o que me fez querer estudar a música. É<br />

complexo. O tipo de mensagem que pretendo propagar,<br />

que foi o que ouvi e me inspirou, com GOG, Racionais,<br />

Sabotage, é o tipo de coisa que eu quero, mas tem que<br />

ter muita responsabilidade. E cautela. Eu escrevo coisas<br />

relevantes, mas não por ser melhor ou pior. Lido com<br />

uma frase que é a seguinte: tenha certeza de que o que<br />

você vai dizer é mais relevante que o silêncio. Isso é rap.<br />

Nego é muito afobado, não acho que demorou tanto.<br />

Tem gente que demora uma vida inteira pra lançar um<br />

disco. Eu queria montar uma estrutura, que você está<br />

vendo aqui. Um escritório, com um estúdio que não deve<br />

pra ninguém. Agora a gente pode falar como “adulto”<br />

com qualquer pesssoa. Não dá pra passar por moleque.<br />

Já tô com 29 anos, sacou? E essa estrutura precisa ser<br />

planejada para se sustentar. Eu nunca vou parar de fazer<br />

música, mas fazer um disco é um investimento.<br />

Tudo bem, o disco é um investimento, mas você podia ter lançado faixas<br />

soltas. Por que não fez isso?<br />

Acho que as coisas conspiraram a meu favor nesse lado. Eu faço as<br />

músicas e apresento nos shows. Nesses shows vai um cara e grava, joga<br />

no Youtube e a parada se dissemina. Essas gravações ao vivo, na minha<br />

concepção, funcionam como mixtapes, tá ligado? Geral já teve acesso a<br />

várias músicas, tanto que não lancei nada, mas todos cantam nos shows.<br />

Essas “mixtapes ao vivo” acabaram se tornando um trabalho de base que<br />

funcionou. Não era exatamente o que a gente pretendia. Fazer música, a<br />

gente tá pronto pra fazer a qualquer hora. Nem é o meu estilo, na real. Eu<br />

espero, estudo, essa é a minha forma de fazer. Na minha concepção você<br />

só pode extravasar sua arte da forma como ela realmente é, não pode<br />

virar um padrão de mercado e tentar se adaptar a isso, sacou? A minha<br />

arte é o contraponto do padrão de mercado.<br />

Mas e agora? Chegou o momento?<br />

Sim. Estou com novas ideias na cabeça. É uma coisa mais dinâmica. Meu foco é chegar com<br />

trabalho na rua no formato clássico de empreendedorismo que aprendi vendo. Produto bom,<br />

barato e de fácil acesso. A ideia é lançar três discos com uma periodicidade de quatro meses.<br />

Serão cinco músicas por cinco reais. O nome dos discos vai ser Porradão de 5. O formato<br />

do CD vai ser tipo um disquinho (mostra o modelo: um CD com uma arte e um rótulo como<br />

se fosse um vinil), e também vai sair em vinil. Cinco faixas de um lado, os instrumentais do<br />

outro. O vinil é muito importante. Faz parte da cultura. Além disso, tô montando cenário,<br />

telão, videoclipe. Toda uma ideia pras apresentações ao vivo. Em dezembro o primeiro vai<br />

estar na rua. Estamos com várias prontas, como você pôde ver aqui. Tem toda uma galera<br />

envolvida que acredita no projeto: o Emicida, Gutierrez, Rael da Rima, Carlos Dafé, um coral<br />

chamado Boca Que Usa, músicos e produtores como o Donatinho, Kassin, Berna Ceppas,<br />

Damien Seth, Luís Café, Felipe Pinaud, Ramon Torres, Felipe Mendoça, Tricky Trompete, Helio<br />

Bents. Na parte da mixagem e masterização, vou fazer tudo lá fora. A intenção é estar no<br />

topo da qualidade mesmo. Já estou em contato com alguns engenheiros, como o Ken Lewis<br />

(que já trabalhou com Kanye west, Notorious BIG) e o Steve Sola (Mobb Deep, Alchemist).<br />

Na parte de masterização estou em contato com Bernie Grundman, que fez masters clássicas<br />

como “Thriller”, do Michael Jackson, e “The Chronic”, do Dr. Dre. A ideia é criar todo um<br />

conceito sobre o que seria o “Espírito Independente” e a forma de empreendedorismo das<br />

comunidades, tá ligado? Vamos distribuir cultura. Venda de mão em mão, com ajuda de<br />

revendedores em áreas demarcadas estrategicamente, nos shows e também via internet,<br />

pelo www.umsocaminho.com.br, que contém informações sobre nossas ações e conteúdo<br />

relacionado a música, conhecimento e filosofia.<br />

4foto Por fernando gomes<br />

Lido coM uMa frase<br />

que é a seguinte: tenha<br />

certeza de que o que<br />

você vai dizer é Mais<br />

reLevante que o siLêncio.<br />

isso é rap.<br />

E essa frase, “um Só Caminho”?<br />

É uma concepção a que a gente chegou, muito<br />

baseada na filosofia oriental: o sentimento de<br />

trabalhar focado em um objetivo. E com várias<br />

pessoas a seu lado nessa mesma energia. Não<br />

tem muito como explicar. Como o Bushidô, que é<br />

um código de honra não escrito. A gente não tá<br />

criando uma seita, ou uma religião, é somente um<br />

conceito, uma filosofia em que a gente acredita.<br />

Nossa marca é o “Espírito Independente”.<br />

Você está oficializando sua marca de roupas<br />

né? Vai ser esse o nome?<br />

Sim. Nós já temos toda a estrutura, anos de<br />

experiência com a Tujaviu. Vai se chamar Muro<br />

Brasil (www.murobr.com). É um conceito novo<br />

de roupa. Um artista de música, um artista<br />

plástico, uma música com um conceito e a<br />

coleção sendo lançada em cima desse conceito.<br />

A música é enviada para artistas plásticos,<br />

que desenvolvem um desenho cada, com sua<br />

assinatura, inspirado nesse tema, para ampliar<br />

a mensagem com algo visual. Todas as peças<br />

saem com o disco contendo a música tema.<br />

As coleções são permanentes, em respeito à<br />

atemporalidade dos sons e das mensagens.<br />

Vamos trabalhar com as melhores malhas,<br />

costuras e estampas, em sete tamanhos.<br />

Você tem um projeto muito interessante<br />

no Rio de Janeiro chamado Batalha do<br />

Conhecimento. Fale um pouco sobre isso.<br />

Começou como oficina de rap. Eu tentava<br />

ensinar pra molecada o lance de 16 barras, a<br />

história, quem foi Chuck D, sabe? Eu fazia o lance<br />

do rap e tinha um professor de literatura falando<br />

sobre poesia. Esse começo foi muito didático,<br />

mas não atingiu a forma que eu queria. Era pra<br />

20 cabeças, não pra 400, sacou? Então pensei<br />

em fazer uma parada mais interativa, que tinha<br />

a ver também com esse lance do conhecimento.<br />

Daí surgiu a Batalha do Conhecimento. Por<br />

enquanto, é só o começo. Eu tô acabando de<br />

finalizar o projeto, pra começar a correr atrás<br />

de Leis de Incentivo, porque a ideia é fazer isso<br />

nas escolas, com palestras, workshops de outros<br />

tipos de empreendimentos: mecânica, como<br />

criar sua marca de roupa e por aí vai. A ideia<br />

não é fazer uma oficina pra pessoa virar MC, e<br />

sim uma oficina de educação pra vida mesmo,<br />

onde a gente interage pelo rap. Tipo uma<br />

nova universidade. Batalha do Conhecimento<br />

é a minha vida. A gente vive na batalha por<br />

conhecimento, tá ligado? E isso gera tudo que<br />

a gente conhece. Se não fosse vários caras pra<br />

mostrar outros caminhos pra gente, ficaríamos<br />

só vendo o que nos é imposto. 3<br />

2SAIBA MAIS<br />

umsocaminho.com.br<br />

82 83


M. ARMANI<br />

POR ARTHuR DANTAS . RETRATOS MAuRíCIO CAPEllARI<br />

Ainda que a palidez de sua pele possa sugerir o contrário,<br />

Marcelo Armani, o multi-instrumentista gaúcho notório por<br />

seu trabalho como baterista da banda SOL (Screams of<br />

Life), imprime calor, sabor e vitalidade em tudo o que realiza artisticamente,<br />

fazendo jus ao sangue que corre nas veias e, como é comum a esse tipo tão<br />

especial de pessoa, fazendo da criação necessariamente uma missão. Seu<br />

trabalho solo, o CD-R Os Conceitos do seu Mundo Definem a sua Vida?, lançado<br />

em julho deste ano, é um dos experimentos musicais mais audaciosos<br />

da temporada. Do modo de produção do disco ao conceito e a forma, tudo<br />

tem a passionalidade típica dos idealistas.<br />

Marcelo é um autodidata da música. Em dezesseis anos dedicados à bateria,<br />

só recentemente se meteu a realizar um estudo mais formal e sistemático do<br />

instrumento. Sua relação com a música tem raízes familiares. “Meu avô tocava<br />

acordeão e bateria e, como meus pais trabalhavam, era ele que cuidava de<br />

mim quando eu tinha uns 3 anos de idade. Ele me botava numa perna e na<br />

outra apoiava o acordeão. Não por acaso fiquei meio surdo de um ouvido, que<br />

é o que ficava do lado do acordeão (risos). A primeira vez que prestei atenção<br />

na bateria foi com 11 anos, no disco Killers, do Iron Maiden. Tive aquela percepção<br />

de como soa o bumbo etc. Em casa se escutava muita música gaúcha, Sidnei<br />

Lima, irmãos Bertucci. Com o tempo comecei a escutar Ramones. Naquela<br />

época não tinha dinheiro, fazia bateria de travesseiro, tirando bateria do D.R.I.<br />

Com 14 anos meus pais me deram uma bateria bem vagabunda, os tambores<br />

eram feitos de papelão, era uma maravilha de carregar”, ele conta com o bom<br />

humor que lhe é característico.<br />

Sua primeira banda séria foi a SOL, formada em 1998, seguindo a sugestão<br />

do amigo nas sessions de skate Roger Canal, guitarrista e letrista do SOL. E,<br />

estranho em se tratando de um baterista, tudo deveu-se a um problema com<br />

seu “instrumento” de trabalho: “Eu quebrei o braço e fiquei sem andar de skate<br />

– foi nessa época que decidimos fazer uma banda. O Roger me passava<br />

fitas do NOFX, Pennywise e Bad Religion, falava pra ouvir aquilo e, quando<br />

melhorasse o braço, tentar tirar aqueles sons”. Feita a recuperação, gravaram<br />

a primeira demo, que chamou muito a atenção na época, ao realizar um som<br />

que misturava Agent Orange com Dinosaur Jr. A formação mais conhecida do<br />

grupo, a segunda, contava ainda com o baixista Felipe (“ele trouxe um sangue<br />

novo, mostrou My Bloody Valentine pra gente, mudou bastante as coisas”) e o<br />

percussionista Tetsuo (“foi uma grande escola, porque passei a tocar com instrumentos<br />

meio primos do meu, mudou minha percepção completamente”), e<br />

foi como quarteto que gravaram dois álbuns pelo finado selo Amplitude Discos,<br />

de São Paulo. O segundo álbum, A Força, era um rolo compressor sonoro<br />

que sintetizou as maiores virtudes do grupo: uma parede de ruídos acachapante<br />

despachada em camadas de repetição e uma lírica simples e entusiasta<br />

das coisas boas da vida, como o amor e a amizade, que propagam uma certa<br />

esperitualidade que ainda guia em certo nível as ambições artísticas de Armani.<br />

“Quando a banda acabou, fiquei meio perdido, acabou um ciclo – descobri<br />

que aquela conexão que tinha entre os membros da banda não é em qualquer<br />

lugar que se alcança. Cresci ali como músico e, acima de tudo, como pessoa”.<br />

Em seu trabalho solo, Armani ressente-se um pouco do individualismo<br />

inerente a tal situação (“Tocar sozinho me incomoda, por causa do lance<br />

individualista. É louco: hoje você vê mais duos do que trios, inclusive! Muita<br />

gente tocando sozinha... pra mim, isso é uma questão séria”). Nos sete<br />

temas de seu mais recente álbum, ele comanda bateria, percussão, clarinete,<br />

metalofone (criado artesanalmente), samplers, captações de campo e<br />

outros sons. No processo de gravação caseiro (grava tudo em seu quarto e<br />

capta ruídos da rua diretamente de sua janela), Armani se vale do processo<br />

de “sound by sound”, no qual as texturas e notas que aparecem sempre<br />

pela tangente em seus experimentos são construídos em tempo real. A linha<br />

condutora, obviamente, é a bateria. Da explosão sonora de seu grupo<br />

anterior, pouco restou: o novo disco é altamente imagético, e cumpriria<br />

bem o papel de trilha tanto para uma película sci fi perdida de Tarkóvski<br />

como para a obra de um David Lynch. Minimalismo, intuição free jazz e<br />

batidas africanas se amealham, se confundem e acabam por criar uma obra<br />

que coloca o recém-formado projeto de Marcelo Armani na companhia do<br />

melhor que se tem realizado em termos música de invenção no país. 3<br />

84 85<br />

2SAIBA MAIS<br />

www.myspace.com/marceloarmani


86<br />

richard ribeiro não tem dedos suficientes para contar em<br />

quantas bandas já tocou. Calma, isso não é nenhuma piada de<br />

mau gosto. Richard é um dos músicos mais versáteis do cenário<br />

independente paulistano e, além das mãos, já emprestou sangue<br />

e talento para nomes como Diagonal, São Paulo Underground,<br />

Cidadão Instigado, Debate, Jeneci, Echoplex, Fóssil e, claro, seu<br />

projeto próprio, Porto, que recentemente lançou Fora de Hora.<br />

Confira um bate-papo com ele. 1<br />

Por rodolfo herrera<br />

fotos Paulo borgia<br />

Você se envolveu com música muito cedo. Seu<br />

primeiro instrumento foi a bateria?<br />

Eu comecei a tocar violão por volta dos 12 anos,<br />

e o interesse pela bateria veio mais tarde, aos<br />

14. Na época, meu pai era cantor sertanejo e eu<br />

acompanhava. Ele chegou a ir ao Bolinha! (risos)<br />

De certa forma, fui influenciado a começar cedo.<br />

Você é criança e vai aos shows do pai, rodeado<br />

de amigos músicos...<br />

E a primeira banda, veio quando?<br />

Aos 14, com um amigo de infância, o Sérgio<br />

[Ugeda]. Ele estava aprendendo a tocar guitarra<br />

e eu disse que ia aprender bateria. Em casa<br />

tinha uma que havia sido da banda do meu pai<br />

e estava jogada (nessa época a dupla já tinha<br />

acabado), olhei e saí tocando. A nossa banda se<br />

chamava Stazzmatazz, mas o nome mudava de<br />

acordo com o que a gente ouvia.<br />

O Sérgio sempre foi o seu companheiro de música.<br />

O que vocês ouviam?<br />

Ouvíamos Helmet. Era só isso que existia pra<br />

gente (risos).<br />

Depois do Stazzmatazz veio o Diagonal. qual<br />

foi a maior mudança entre as duas bandas?<br />

O Cláudio. A banda acabou e eu já tocava com o<br />

Edmundo, o Meireles e o Xan no Echoplex. Nesse<br />

meio tempo, o Sérgio conheceu o Cláudio e<br />

começaram a montar o Diagonal. Peguei o bonde<br />

andando e fui convidado.<br />

quando o Sérgio te chamou pra tocar no Diagonal,<br />

vocês estavam ouvindo outras coisas?<br />

Nós ouvíamos as bandas da Dischord. E começamos<br />

a compor tendo esse selo como diretriz,<br />

tudo por influência do Cláudio. Como todo garoto<br />

com sede das coisas, comecei a dissecar as<br />

bandas de lá. Quando você é mais novo acaba<br />

sendo obsessivo com as coisas que conhece.<br />

O Echoplex existiu em paralelo com o Diagonal<br />

e teve fôlego durante uma época, mas o<br />

disco só saiu quando a banda já estava quase<br />

inativa. Por quê?<br />

Exato. Depois que gravamos, o disco demorou<br />

uns três anos para sair! Não estávamos em sintonia.<br />

Naquela época era difícil bancar sozinho<br />

o disco. Faltava também uma visão melhor de<br />

tudo que envolvia ser uma banda.<br />

Eu lembro de um show do Echoplex há muito<br />

tempo, você tocando muito pesado. Fiquei impressionado<br />

com aquilo!<br />

Era muita energia naquela época, éramos uns<br />

loucos tocando. Eu estourava minha mão, voava<br />

sangue na caixa e não parava de quebrar pratos<br />

e baquetas. Jovem, né?<br />

E quem te inspirava naquela época?<br />

O John Stanier (Helmet), o Zach Barocas (Jawbox),<br />

o Brendan Canty (Fugazi), entre muitos<br />

outros. O Flávio também, que hoje toca no Forgotten<br />

Boys. Na época vi ele tocar no Page 4,<br />

era muito diferente, bacana de ver. Ele tinha um<br />

estilo bem agressivo.<br />

O zach Barocas misturava técnica e agressividade<br />

de uma maneira bem peculiar.<br />

Ele tem um jeito mais técnico e super criativo<br />

que me chamava atenção. Fui atrás do que ele<br />

ouvia, ouvi os discos que ele tocava. Pra mim é<br />

um dos melhores bateristas de rock até hoje. Ele<br />

foi uma puta referência.<br />

Como foi a transição do Debate para o Diagonal?<br />

O Sérgio queria voltar a cantar em português<br />

– coisa que ele parou quando começou o Diagonal.<br />

Essa acho que era a principal motivação.<br />

Além de tocar mais e viajar.<br />

Foi na época do Debate que seu projeto solo<br />

tomou forma. Mas, antes do Porto, você começou<br />

a tocar com mais bandas, fazer turnês e a<br />

se apresentar como Richard Ribeiro, certo?<br />

Comecei a compor quando voltei de uma turnê<br />

que fiz na Polônia com o SP Underground. Tive<br />

contato com outros tipos de música e principalmente<br />

com outros tipos de músicos, a começar<br />

pelo Rob Mazurek.<br />

Começou a sair um pouco do rock, né?<br />

Foi uma coisa natural. Você busca outras coisas,<br />

eu fui tocar com o Maurício [Takara], com o [Guilherme]<br />

Granado, com o Mazurek e naturalmente<br />

quis outros ares. Assim como na vida que você<br />

muda, às vezes você não é o mesmo de dois anos<br />

atrás. O tempo foi passando, toquei com pessoas<br />

ótimas e nesse intervalo tive vontade de começar<br />

a compor e me desprender mais da bateria. Eu<br />

compunha em casa, sozinho, fazia melodias na<br />

guitarra e no metalofone sem a bateria. Tinha um<br />

porta- estúdio. Quando gravei umas dez músicas,<br />

chamei o Renato Ribeiro para tocar comigo.<br />

Vocês gravaram o disco aqui em São Paulo<br />

com o Devin Ocampo, do Medications. qual foi<br />

o papel dele?<br />

Ele foi engenheiro de som. Gravamos em um dia,<br />

eu já sabia como queria o disco e ele simplesmente<br />

gravou. Respeitou tudo que fizemos no<br />

estúdio, achou melhor assim. Depois, levou para<br />

os EUA para mixar na casa dele e remasterizar.<br />

Fala um pouco sobre a composição do disco.<br />

Como foi o processo para fazer aquelas músicas<br />

todas soarem como algo uniforme?<br />

Todas as ideias do disco aconteceram quando<br />

eu estava andando na rua ou pegando um<br />

ônibus, longe dos instrumentos. Aí passava a<br />

ideia pro porta-estúdio, sempre foi assim, construindo<br />

a música na minha cabeça para depois<br />

tocá-la. Algumas tiveram como base melodias<br />

de guitarras, outras, contos do Cortázar, outras<br />

partiram da bateria. Cada uma tem um ponto<br />

de partida, mas todas foram criadas longe do<br />

estúdio, até porque eu não tinha tempo nem<br />

dinheiro pra ficar lá, tocando sozinho. Acabei desenvolvendo<br />

esse processo, e é assim até hoje. 3<br />

2SAIBA MAIS<br />

myspace.com/richardribeiro<br />

87


+quem soma<br />

batman. Dum Dum. Skate. Fanzines.<br />

Garage Fuzz. Jaca. Adão<br />

Iturrusgarai. Trampo. Adesivo.<br />

Choque Cultural. Christian Strike. Porto<br />

Alegre. São Paulo. Punk. Hip-Hop. Fernando<br />

Ribeiro. Againe. Beautiful Losers. Mateus<br />

Grimm. HQ. Arte. Noz Art. Most. Galeria<br />

do Rock. Ed Templeton. Tuna Head.<br />

Transworld. wu Tang Clan. Sebadoh. Carlos<br />

Dias. Transfer. Fita Tape. Entrevistar Lucas<br />

V. F. Ribeiro, 30 anos, é se jogar numa<br />

viagem a subculturas dos anos 1990 e<br />

compreender como elas moldaram uma das<br />

personalidades mais interessantes da nova<br />

cena artística brasileira. Acompanhar a ainda<br />

incompleta trajetória de Lucas “Pexão”,<br />

como é conhecido por seus comparsas<br />

(“quando comecei a andar de skate, um<br />

cara começou a me chamar assim, por<br />

causa dos olhos caídos, de peixe morto.<br />

Eu fiquei brabo, daí fodeu. Mas alguns dos<br />

meus skatistas preferidos tinham apelidos<br />

como Piolho e Urina, então não pareceu<br />

. luCAS “PExãO” RIBEIRO . Por arthur dantas . fotos maurício capellari<br />

tão ruim”), é entender um pouco o próprio<br />

processo de formação do meio em que nosso<br />

entrevistado é um dos maiores protagonistas.<br />

Começando Pelo Fim<br />

Pode parecer estranho, mas o responsável<br />

pela recém-inaugurada galeria Fita Tape – ao<br />

lado de sua companheira, Ana Ferraz – nem<br />

sempre viu com bons olhos o trabalho de<br />

vender obras alheias. Houve duas influências<br />

fundamentais para esse processo: “O Christian<br />

Strike (que veio ao Brasil participar da mega<br />

exposição Transfer e é um dos responsáveis<br />

pela mítica expo Beautiful Losers) foi um cara<br />

importante para eu entender que pode ser<br />

legal se focar em vendas – o que parecia meio<br />

contraditório pra mim. Disse que tem gente<br />

que compra pra investimento mesmo, mas<br />

tem outros que abraçam a causa, seguem o<br />

trabalho dos artistas, discutem arte em um<br />

nível muito alto. Eu nunca pensei em ser um<br />

art dealer, um Damien Hirst – sempre pensei<br />

em viabilizar a carreira dos artistas que eu<br />

amo, pra arte deles não virar apenas um lance<br />

ocasional”. Nesse sentido, o trabalho de um<br />

dos donos da Choque Cultural em São Paulo<br />

sempre foi um norte: “Acho genial o Carlinhos<br />

[Dias, artista plástico e músico] poder viver<br />

de arte, por isso acho louvável o trabalho do<br />

Baixo Ribeiro”.<br />

As Origens<br />

Lucas não teve uma infância normal. Sua mãe,<br />

Dedé Ribeiro, é uma conhecida agitadora/<br />

produtora cultural de Porto Alegre. Seu pai,<br />

o falecido cantor Fernando Ribeiro, é um<br />

importante e cultuado compositor gaúcho.<br />

Fabio Zimbres foi seu padrasto. “Desde muito<br />

pequeno eu vivia rodeado de desenhistas<br />

legais por causa da minha mãe, como o Adão<br />

Iturrusgarai, o Jaca, depois o Fabio Zimbres”.<br />

Seu primeiro zine, Ameba Sorridente, dava-se<br />

ao luxo de ter colaboradores como Schiavon,<br />

Zimbres, Adão e Pedro Alice, por exemplo. E a<br />

separação de seus pais trouxe outro elemento<br />

definitivo para a formação do galerista: “Meus<br />

pais se separaram cedo e meu pai foi pra São<br />

Paulo. Até ele falecer, eu ia direto pra lá. Ele<br />

era dono do estúdio Vice Versa, que é enorme<br />

– hoje é o estúdio da Trama. Eu dava rolê<br />

em São Paulo com os motoboys do estúdio:<br />

eles me levavam na Galeria [do Rock] pra<br />

comprar disco de rap. Quando meu pai largou<br />

a música, começou uma relação forte com<br />

pintura”. Boa parte da produção de Fernando<br />

Ribeiro, inclusive, está na casa de Lucas.<br />

E No Meio do Caminho Havia um Skate<br />

“Depois veio o skate, no começo dos anos<br />

90, quando ele tava completamente morto.<br />

Sou total cria do skate do começo dos anos<br />

90 – todo mundo andava devagar, as roupas<br />

imensas, não tinha a menor chance de dar<br />

certo como esporte (risos). As trilhas de skate<br />

eram impecáveis também – o wu Tang Clan<br />

estava antes nas trilhas de vídeo do que em<br />

qualquer outro lugar. Tudo cabia nas trilhas<br />

dos vídeos, de rap a Sebadoh. E a arte...<br />

nossa! Sou totalmente influenciado pelo Ed<br />

Templeton, o pessoal até brincava que eu<br />

era fã demais dele. [Templeton] Tinha essa<br />

visão do skatista como um novo ser criativo, a<br />

ligação com as subculturas.” Foi nesse período<br />

que Lucas criou o Tuna Head, zine que lhe<br />

deu notoriedade, “junto com o Bocão, que foi<br />

trabalhar na Qix e já era metido com skate.<br />

O zine tinha muito [a função] de alimentar<br />

a comunidade local, que na época tava<br />

completamente morta”.<br />

Daí para a frente, o mal já estava feito. Pexão<br />

participou do site de notícias de skate bancado<br />

pela marca Qix, escreveu e escreve para<br />

diversas publicações ligadas ao meio, fundou<br />

a seminal galeria Adesivo (ainda sem saber<br />

vender obras direito e sendo vítima de cinco<br />

assaltos), organizou a Transfer, maior exposição<br />

de arte urbana do Brasil, no Santander Cultural<br />

em Porto Alegre, criou um estúdio de criação<br />

com sua companheira, o Noz Art, e abriu<br />

a galeria Fita Tape com uma expo coletiva<br />

classuda. Atualmente, é uma individual de Billy<br />

Argel que ocupa o espaço. No futuro? Trampo,<br />

Fabiano Lokinho e Mateus Grimm. Aliás, é<br />

Grimm que sintetiza a importância local de<br />

Lucas Pexão: “Dá pra dizer que existe em Porto<br />

Alegre uma cena de graffiti antes e depois da<br />

Adesivo. Ele aproximou muita coisa: skate, arte,<br />

quadrinhos, música. Pra mim, em especial, o<br />

cara é muito importante; mas também foi pra<br />

galera que acreditava e se encontrava desde<br />

o início. Ele tem a preocupação de valorizar o<br />

artista, nunca privilegiou algum em especial,<br />

trabalha lado a lado, impulsiona mesmo”. 3<br />

88 89<br />

2SAIBA MAIS<br />

fitatape.art.br<br />

Leia o bate-papo na íntegra em maissoma.com


Coisas que<br />

Gostamos<br />

de Guardar<br />

Por mentaloZZZ e ouriço<br />

A seleta desta edição tem o<br />

prazer de falar sobre alguns LPs<br />

cobiçados por boa parte dos<br />

colecionadores. Os álbuns da<br />

fase psicodélica do apresentador,<br />

cantor, publicitário e aviador<br />

ronnie von (que de quebra ainda<br />

batizou os Mutantes) viraram febre<br />

anos atrás, quando uma série de<br />

homenagens e tributos resgatou<br />

do esquecimento a fase doidona<br />

do Príncipe da Jovem guarda. Em<br />

um bate-papo descontraído – mas<br />

sem perder a linha jamais – em<br />

sua casa na capital paulista, ele<br />

revelou à <strong>+Soma</strong> as memórias<br />

que guarda daquela época, que<br />

No final de 1968, você já tinha feito<br />

sucesso e era conhecido como O Príncipe.<br />

Por que mudou tanto? Não teve medo de<br />

perder público?<br />

Eu era famoso mas sofria muito, estava<br />

bem isolado. Para minha família e meus<br />

amigos eu estava me perdendo na carreira<br />

artística; para o mercado musical, eu não<br />

era bossa nem jovem guarda, e muito menos<br />

tropicalista: eu era O Príncipe, o filhinho de<br />

papai que roubava espaço no mercado,<br />

um playboy que não era politicamente<br />

engajado e que nem música censurada pela<br />

ditadura tinha.<br />

Então você resolveu fazer discos mais<br />

psicodélicos para quebrar essa imagem?<br />

Não foi premeditado. Eu já tinha feito um<br />

disco com guitarras elétricas antes, com<br />

músicos argentinos da mesma turma dos<br />

Mutantes. Mas aí a gravadora com que eu<br />

tinha contrato, devido a um impasse durante<br />

a troca de presidente, ficou sem comando.<br />

Justamente nessa época eu tinha a obrigação<br />

vai do final de 1967 até o início de<br />

1970 e rendeu três LPs: o primeiro,<br />

sem título específico e com duas<br />

datas diferentes (na capa, 1968;<br />

no rótulo, 1969), seguido por<br />

A Misteriosa luta do reino de<br />

Parassempre Contra o Império de<br />

Nuncamais, de 1969, e Máquina<br />

Voadora, de 1970. Ronnie Von<br />

revela ainda detalhes sobre o dia<br />

em que, aproveitando que um<br />

certo trono estava vago, chamou<br />

seus aliados e realizou a música<br />

que emanava do seu coração.<br />

Para sorte do reino e alegria dos<br />

súditos, alguns príncipes têm seu<br />

dia de usurpador. 1<br />

contratual de entregar um disco, então<br />

chamei o maestro Damiano Cozzella para a<br />

direção e os arranjos e o Arnaldo Saccomani,<br />

entre outros, para ajudar com as letras.<br />

Fomos para o estúdio com liberdade total,<br />

sem a regência da presidência mercantilista.<br />

Ficamos livres para experimentar.<br />

quer dizer que vocês experimentaram<br />

90 91<br />

de tudo?<br />

Sim, inventamos, gastamos muito, quebramos<br />

espelhos, contratamos quarteto de cordas<br />

para a faixa dos espelhos quebrados – que<br />

é minha preferida – e até gravamos trotes e<br />

jingles para clientes imaginários. Colocamos<br />

tudo no disco, fiz o meu psicodelismo. Vejo<br />

hoje que esse disco de 1968 foi o único que<br />

fiz como realmente gostaria.<br />

E drogas?<br />

Não, eu não era inspirado em viagens de<br />

lSD. Já tinha visto alguns amigos terem<br />

experiências e achei que não servia para mim.<br />

Eu era mais poesia, sons e música mesmo.<br />

Como o mercado recebeu o disco?<br />

O disco não foi um sucesso de vendas e até<br />

foi quebrado publicamente. Não tocava<br />

no radio (só o Big Boy tocou uma vez na<br />

Rádio Mundial).<br />

A gravadora adorou?<br />

Com a volta do comando da gravadora, fui<br />

chamado de louco. Me acusaram de queimar<br />

dinheiro porque o disco não vendeu.<br />

Pediram para eu tirar o pé do acelerador,<br />

mas ainda foi possível lançar A Misteriosa<br />

Luta do Reino de Parassempre Contra<br />

o Império de Nuncamais e Máquina<br />

Voadora. Depois fui ficando mais<br />

comportado novamente.<br />

Você chegou a fazer shows com<br />

esse repertório?<br />

Poucos. Era muito difícil levar o clima do<br />

disco para os shows. As músicas tinham que<br />

ser adaptadas, os arranjos, refeitos.<br />

Não havia recurso para reproduzir ao vivo<br />

toda a loucura que criamos no estúdio. 3<br />

2mentalozzz e ouriço Sofrem de Síndrome do pânico e atuam na cenSura televiSiva.


João nasceu de uma intenção. Seus pais<br />

não chegaram a se conhecer, se amar, se<br />

tocar, que dirá fazer sexo. Ainda assim, em<br />

1979 brotou no ar a possibilidade de que os<br />

dois se cruzassem e dali nasceu João.<br />

Jairo, o pai de João, tocava escaleta na banda<br />

do colégio. Mariana, mãe de João, era baliza. Os<br />

dois viajariam juntos para um torneio de bandas<br />

marciais em Três Cachoeiras, mas Mariana teve<br />

cachumba e ficou em casa, sofrendo muito,<br />

lendo um pouco e descobrindo o tarô. Jairo,<br />

por sua vez, passou a viagem de ônibus inteira<br />

desenhando homens com capa e espada ao lado<br />

da guria que anos depois seria sua esposa e com<br />

quem teria três filhos. Nenhum deles era João.<br />

ilustração guilherme dable<br />

Mariana não teria filhos. Dedicaria<br />

parte de sua vida ao tarô e outra à<br />

mãe, doente crônica desde sempre<br />

e para sempre. Jairo, mesmo sem<br />

conhecer Mariana, vivia irritado<br />

com a excessiva dedicação dela<br />

à mãe e a certa altura declarou<br />

não ter condições de sustentar a<br />

relação. Então partiu, deixando<br />

Mariana, a mãe e a possibilidade<br />

de João nascer em suspenso.<br />

Mariana e Jairo não se conheceram,<br />

não se casaram, não trepararam, não se<br />

amaram, mas se divorciaram. João, ora,<br />

nasceu de uma possibilidade. Apareceu<br />

com oito anos de idade, nu, envolto em<br />

uma cortina de fumaça no campo do<br />

terreno baldio ao lado do colégio e foi<br />

adotado por uma freira. É considerado,<br />

até hoje, o primero filho dos chamados<br />

divórcios quânticos, as rupturas de<br />

meras possibilidades amorosas, onda<br />

endêmica nos anos 90 e que até hoje<br />

persiste sem explicação científica.<br />

Pergunto a João como<br />

ele se sente.<br />

“como qualquer Pessoa normal.”<br />

Pergunto de seus planos<br />

para a vida.<br />

“viver e construir meu caminho.”<br />

Peço que seja mais<br />

específico.<br />

“me tornar bom em escaleta<br />

e no tarô.”<br />

comento que eram as<br />

habilidades de seus pais<br />

quânticos.<br />

“coincidência.”<br />

João não é amargo.<br />

é ingênuo. Peço que<br />

toque uma canção<br />

na escaleta.<br />

“neil young? ou roberto carlos?”<br />

esse é João. o primeiro<br />

filho dos divórcios<br />

quânticos da primeira onda.<br />

diga adeus para nossa<br />

plateia, João.<br />

“fuen.”<br />

tire a escaleta da boca,<br />

João.<br />

seus pais não lhe<br />

ensinaram bons modos?<br />

2GuSTAVO MINI ESCREVE EM<br />

oesquema.com.br/conector<br />

92 93


+reviews<br />

1BONDINHO . SERGIO COHN E MIGuEl JOST (ORGS.)<br />

. Azougue Editorial . 2009<br />

Houve um tempo em que a música popular brasileira<br />

era mais ousada, criativa, pulsante e travava um diálogo<br />

face a face com o que acontecia em tempo real.<br />

Disso, ninguém razoavelmente informado duvida. Agora,<br />

que houvesse veículos de comunicação escrita que<br />

dessem conta de toda aquela cena e mimetizasse alguns<br />

procedimentos inovadores que a música oferecia,<br />

aí é outra história. Se a maioria silenciosa do cada vez<br />

menor bolo da indústria cultural pouco nos oferece de<br />

vibração e revelação em relação à morna cena músicocultural<br />

dominante na atualidade, o Bondinho, revista<br />

que em sua segunda vida durou boas 13 edições no<br />

ano de 1972, farejou o espírito de seu tempo e deu voz<br />

e profundidade ao que de melhor foi produzido na música da época. E não só isso: couberam<br />

ainda perfis e entrevistas com escritores, cineastas e poetas, por exemplo. Tudo naquele período,<br />

como queria a Tropicália, era divino, maravilhoso – apesar dos calabouços da ditadura<br />

vigente. Os artistas defendiam posições (curioso ver Tom Zé xingando o plágio, técnica tão<br />

querida pelo próprio na atualidade), falavam do mundo (Milton Nascimento falando do racismo<br />

ao qual era exposto mesmo numa grande cidade como o Rio de Janeiro é valiosíssimo),<br />

e, acima de tudo, falavam de suas produções, ambições e predileções estéticas. Além disso,<br />

polemizavam entre si. Caetano falava de Gil, que falava de Jards, que elogiava Hermeto, que<br />

desancava o rock progressivo, que tinha como entusiasta Rogério Duprat, que citava Mautner,<br />

que se empolgava com a fase de Gal Costa e com o Teatro Oficina... É indescritível ver a<br />

tenacidade e eletricidade daquele tempo, a arte brasileira tinindo trincando, como cantavam<br />

os Novos Baianos. Para quem, como eu, tem no DNA uma curiosidade atroz pela reflexão<br />

pruduzida pelos bons protagonistas da cultura brasileira, esse é o livro do ano, certamente.<br />

3POR ARTHUR DANTAS<br />

1JOSé ROBERTO BERTRAMI AND HIS MODERN SOuND .<br />

AVENTuRA . Far Out Recordings . 2009<br />

Co-fundador do trio Azymuth nos anos 1970, ao lado de Mamão e<br />

Alex Malheiros, José Roberto Bertrami reaparece com seu novo álbum<br />

solo. Em Aventura, Bertrami impressiona nossos ouvidos apresentando<br />

uma musicalidade que lembra décadas passadas, mas<br />

que, ao mesmo tempo, é totalmente atual, passeando por grooves<br />

diferentes a cada faixa. O disco começa com “Ecstatic”, um deep<br />

funk que lembra grupos como Soulive. Em “Brilliante”, Bertrami nos remete à época clássica<br />

do Azymuth, com climas tranquilos e alegres. A faixa título parece a ressurreição da Banda<br />

Black Rio, nos tempos de Maria Fumaça. E não para por aí. Tem jazz em “Maixa”, bossa em<br />

“Nos Tempos da Bossa”, influências claras da música latina em “Dança de Salão”, além da<br />

ótima “Eighties Times”, um jazz-funk matador. O pianista aventura-se por diversos timbres,<br />

do clássico Fender Rhodes, passando pelo órgão, até o piano acústico, mostrando-se bem à<br />

vontade em todos eles. Cada faixa apresenta uma atmosfera diferente. Um dos grandes lançamentos<br />

da música instrumental brasileira em 2009, Aventura é um dos favoritos ao Grammy<br />

Latino deste ano. 3POR DANIEL TAMENPI<br />

1uNA GIRA EN SuDAMERICA . FABIO<br />

MOzINE . Läjä Records . 2009<br />

Relatos de tour são quase um gênero literário.<br />

No punk, temos como um dos maiores<br />

exemplos get In The Van, de Henry Rollins,<br />

contando os anos de boemia podre, paranoia<br />

persecutória e violência verbal, musical<br />

e corporal por trás do Black Flag. O livro<br />

de Mozine – membro do fantástico Mukeka<br />

Di Rato – conta os percalços de uma turnê<br />

pela América do Sul com o Merda, seu<br />

trio de hardcore tosco (como se Mozine tocasse<br />

outra coisa na vida...). Com o talento<br />

que lhe é peculiar, o autor traça um bom (e<br />

divertido) retrato do que uma década de<br />

trabalho sério no underground constrói. Ou<br />

seja: quase nada! una gira mostra o perrengue<br />

nem tão brabo assim (quem viveu<br />

o punk nos últimos 15 anos sabe que as coisas<br />

já foram bem piores) do trio, metidos<br />

em um carro apertado, cheio de discos e<br />

materiais promocionais, fazendo shows no<br />

interior do continente, dormindo na casa da<br />

mãe de amigos, o “boicote” de punks bobos,<br />

as bebedeiras, as centenas de coxinhas<br />

frias consumidas em postos rotos na estrada<br />

e, toque autoral tratando-se de Mozine<br />

– um administrador de empresas do mundo<br />

bizarro, que trocou o escritório confortável<br />

pela ralação em um selo e a manutenção<br />

de bandas de rock podrão –,a neura com<br />

dinheiro e vendas. Como o próprio autor<br />

ironiza, “rock de comércio”. Bem-vindo à<br />

realidade do punk nativo. Como nos melhores<br />

relatos do gênero, é possível sentir-se<br />

como um quarto membro dessa zona toda.<br />

3POR ARTHUR DANTAS 1VOCê ENCONTRA ESTE E<br />

OuTROS lIVROS NA lOJA DA +SOMA<br />

1uMBIGO SEM FuNDO . DASH SHAw .<br />

Quadrinhos na Cia . 2009<br />

Nada de pontas amarradas, reviravoltas no<br />

roteiro ou diálogos cheios de sacadas. umbigo<br />

Sem Fundo, romance gráfico do quadrinista<br />

Dash Shaw, cativa e surpreende o leitor<br />

por simplesmente inverter a narrativa de<br />

ficção à qual nos permitimos acostumar nas<br />

HQs, nos filmes e nos livros, estruturada em<br />

torno de fins, efeitos e artifícios. Influenciada<br />

pelo ritmo dos mangás, a HQ de 720 páginas<br />

(que levou três anos para ser finalizada) flui<br />

rapidamente. Em diálogos mais importantes,<br />

às vezes as páginas são ocupadas por dois<br />

quadros apenas, e em outros momentos vemos<br />

uma pessoa trocando de roupa detalhadamente.<br />

Desenhando em branco e marrom,<br />

por vezes o autor indica textualmente cores<br />

e outros detalhes que considera importante<br />

nas ilustrações. Em um toque de surrealismo,<br />

Peter, o caçula da família, é desenhado como<br />

um sapo – reflexo de sua autoimagem. A história<br />

que se conta no livro é a do divórcio<br />

de Maggie e David Looney após 40 anos de<br />

casamento, que reúne seus filhos já adultos<br />

para um último fim de semana juntos, narrado<br />

com surpreendente naturalidade. Como<br />

na vida real, nada tem um propósito a ser<br />

explicado, nenhum grande mistério é resolvido,<br />

nenhuma situação serve como mote.<br />

A vida simplesmente acontece, com a maior<br />

banalidade possível. Assim mesmo, acompanhamos<br />

os personagens com compaixão,<br />

porque sabemos que seus defeitos ou suas<br />

virtudes não são medidos, apenas os fatos, e<br />

que o microcosmo em que vivem é o terreno<br />

da vida que todos nós levamos. 3POR AMAURI<br />

STAMBOROSKI JR.<br />

1SlAyER . wORlD PAINTED BlOOD . American<br />

Recordings . 2009<br />

Muitas bandas lutam durante toda a carreira para que sua<br />

música sobreviva a sua própria fama. O Slayer conseguiu<br />

essa proeza há muito tempo, com Reign in Blood (1986), álbum<br />

monumental que segue ditando o padrão para o que<br />

há de verdadeiramente agressivo no metal. Se a banda chegou<br />

a um nível muito difícil de ser superado, não há dúvidas<br />

quanto ao seu esforço por se manter fiel a sua missão de<br />

destruição. O segredo está em sua simplicidade brutal e na<br />

resistência em ceder a tendências passageiras, algo a que<br />

o Slayer tem dedicado uma atitude incansável e totalmente<br />

punk. Bateria barulhenta como uma britadeira, vocais grunhidos, guitarras massacrantes: bem ou mal,<br />

a esta altura você já sabe o que esperar deles. Isso também vale para World Painted Blood, segundo<br />

álbum desde o retorno do baterista Dave Lombardo e talvez, caso você acredite no baixista/vocalista<br />

Tom Araya, o último da banda. Essa última questão faz pouca diferença na prática, já que, caso o Slayer<br />

grave outro álbum, sabemos exatamente como ele será. O primeiro ponto, porém, é vital: Lombardo se<br />

encaixa tão perfeitamente na banda que sua simples presença já leva os guitarristas/compositores Jeff<br />

Hanneman e Kerry King a pegar mais pesado. Músicas como “Snuff” não demoram a cair com os dois<br />

pés em um hardcore ultra-rápido, ao passo que músicas relativamente amenas como “Beauty Through<br />

Order” são combinadas com a pancadaria ininterrupta de faixas como “Public Display of Dismemberment”.<br />

Boa parte do novo material remete a temas familiares à banda, como a guerra e o fascismo, o<br />

imaginário apocalíptico da faixa título ou, ainda, mais uma história de serial killer (“Psychopathy Red”).<br />

Esse é o tipo de coisa que aprendemos a esperar do Slayer, porque é o tipo de coisa que faz do Slayer<br />

o Slayer. Mais importante ainda, é o que impediu a banda de sucumbir diante das fraquezas que acometeram<br />

seus antigos companheiros de trash metal Metallica, Megadeth e Anthrax, bandas outrora<br />

formidáveis que hoje não passam de sombras do que já foram. World Painted Blood não se compara<br />

ao que o Slayer já produziu de melhor, mas, como bombas que erram o alvo por muito pouco, faixas<br />

explosivas como “Human Stain” e “Not Of This God” chegam bem perto disso. 3POR JOSHUA KLEIN<br />

1BANDA GENTIlEzA . BANDA GENTIlEzA . Independente . 2009<br />

Em linhas superficiais, pode-se situar o disco homônimo de estreia da<br />

Banda Gentileza como parte da onda criativa mais recente da chamada<br />

nova MPB. No entanto, seria uma afronta à sanidade reduzir a esse rótulo<br />

as 12 faixas e pouco mais de 40 minutos do álbum. Em “Preguiça”, por<br />

exemplo, o samba vem com força surpreendente, principalmente em<br />

se tratando de um sexteto paranaense. Parte da responsabilidade pelo<br />

feito pode ser atribuída ao produtor carioca Plínio Profeta, vencedor<br />

do Grammy Latino por seu trabalho em Falange Canibal, lançado por Lenine em 2002. O clima de<br />

festa à Los Hermanos dá as caras em “O Indecifrável Mistério de Jorge Tadeu”, em que os metais<br />

e a vontade de dançar dominam os refrões, que chegam ao fim citando um verso de “Garçom”, de<br />

Reginaldo Rossi. Na sequência, “Afinal de Contas” reafirma as influências da banda, explorando o<br />

clima das valsas vienenses, que também servem como base para a explosiva “Coración”. A risonha<br />

e jazzy “Sintonia”, como o nome sugere, tem os dois pés no dub. O indie-rock tem seu espaço<br />

em “Pseudo Eu”, música de letras autocríticas e melodia fácil que fica na cabeça por horas. Essa<br />

variedade de influências está na internet, de graça, no MySpace (/bandagentileza) e no Twitter (@<br />

bandagentileza) do grupo. Isso que é gentileza. 3POR ALEX CORREA<br />

94 95


+reviews<br />

1BlACK<br />

DRAwING<br />

CHAlKS . lIFE IS<br />

A BIG HOlIDAy<br />

FOR uS . Monstro<br />

Discos . 2009<br />

Cinco fatos sobre o novo álbum do Black Drawing<br />

Chalks: 1) Trata-se, em primeiro lugar e<br />

inegavelmente, de um disco de rock. Um belo<br />

disco de rock. Passando longe do experimentalismo<br />

ou de elementos “modernos” demais,<br />

Life is a Big Holiday For us caminha no sentido<br />

da objetividade. Guitarra, baixo, bateria<br />

e voz (ok, tem um tecladinho ou outro, mas<br />

nada excessivo). Ou seja, sem frescura. Rock<br />

duro, como dizem por aí. 2) Não é um disco<br />

revolucionário e nem tem essa pretensão. Levando<br />

em conta os vinte e poucos anos dos<br />

integrantes, a lista das possíveis pretensões é<br />

bem mais realizável: tocar alto e pesado, se<br />

divertir, beber cerveja e faturar groupies. Até<br />

onde sei, tudo de acordo com a cartilha do<br />

rock and roll. 3) LIABHFu oferece, em onze<br />

faixas, um variado cardápio de rock cantado<br />

em inglês. Em alguns casos, as diferentes influências<br />

são perceptíveis na mesma música,<br />

como em “Free From Desire”, cuja levada motörheadiana<br />

é interrompida por um momento<br />

à Franz Ferdinand. Já a porrada “The Legend”<br />

lembra Rocket From The Crypt do início ao<br />

fim. E as boas referências roqueiras seguem<br />

disco afora: Hendrix, Nebula, QOTSA... 4) A<br />

caixinha digipack traz uma arte incrível, super<br />

colorida, vintage, assinada pelo coletivo de<br />

designers Bicicleta Sem Freio. Se existe alguém<br />

que pode transferir o espírito da banda<br />

para um desenho são eles, e não é à toa: Douglas<br />

Castro (baterista) e Victor Rocha (guitarrista<br />

e vocalista) fazem parte do coletivo, o<br />

que garante a identidade visual caprichada da<br />

banda. 5) Eles são de Goiânia, apadrinhados<br />

por Fabrício Nobre (MQN), e esse é apenas<br />

seu segundo álbum. Tomara que o atual hype<br />

em torno da banda não seja fugaz (como já<br />

aconteceu com tantas outras), o que garantirá<br />

portas abertas, oportunidades e a devida<br />

atenção a um futuro que promete ser bem interessante.<br />

3POR MARCELO VIEGAS 1VOCê ENCON-<br />

TRA ESTE E OuTROS lIVROS NA lOJA DA +SOMA<br />

1JAy-z . THE BluEPRINT 3 . Roc Nation . 2009<br />

O lançamento do terceiro album da série The Blueprint, The<br />

Blueprint 3, concebido por Jay-Z e recém-saído do forno, foi<br />

cercado de muita expectativa no universo musical. Os oito<br />

anos que separam os lançamentos de The Blueprint, disco<br />

que deu início à saga, e este BP3 foram especialmente marcantes<br />

para a carreira do empresário-MC. Se no primeiro LP,<br />

possivelmente o mais importante da carreira do HOVA, havia<br />

muito a ser dito, criticado e inteligentemente observado,<br />

além uma série de inovações na produção, nos beats e timbres<br />

– como por exemplo o surgimento de um certo Kanye<br />

west na contenção da grande maioria das faixas –, o segundo<br />

e mais fraco dos três álbuns apresentou um Jay-Z estranhamente preguiçoso, escorado em um<br />

time fraco de convidados (não muito) especiais, que fatalmente encobriram boa parte de seu talento,<br />

além de um punhado de tentativas mal-sucedidas de crossover rap/pop. Além disso, um verdadeiro<br />

abismo comercial e até mesmo conceitual separa o CEO Jay-Z de 2009 do ex-traficante de língua<br />

afiada nascido no Brooklyn (NY) e com um ótimo disco no curriculum vitae (o espetacular debut Reasonable<br />

Doubt, de 96). Portanto, a sensação que se tem ao longo das (várias) primeiras audições do<br />

terceiro volume da série é a de que a metralhadora vocal do homem que nunca escreveu suas rimas (!)<br />

já esteve mais carregada de munição. A necessidade de parecer politicamente correto para com uma<br />

sociedade que o aceita tão bem após tantos anos no “jogo” contrasta de forma gritante com o discurso<br />

do rapper que sempre questionou tudo e todos – de MCs a traficantes, de ex-mulheres a grandes<br />

corporações. A aparente discrição se torna ácida e letal quando o tema são outros rappers e a situação<br />

do gênero na virada da década: “Eu voltei para eliminá-los, mas vocês mesmos parecem já ter feito isso<br />

por mim” (alguém precisava ter dito isso, Jay!). A produção de The Blueprint 3, entretanto, mostra que<br />

o Poderoso Chefão do rap sabe exatamente como conduzir as coisas. Faixas produzidas por Kanye<br />

west, Timbaland e No I.D. mantêm o nível lá em cima, enquanto a participação de um grupo reduzido<br />

de convidados (nada) especiais não chega a comprometer o resultado final, transformando o LP numa<br />

agradável mistura dos dois primeiros volumes da série. Por essas e outras, se você não gosta de Jay-Z,<br />

bom sujeito não deve ser. (Em tempo: não deixe de conferir o sample espetacular, e não creditado, do<br />

petardo “Ele e Ela”, de Marcos Valle, na faixa “Thank You”.). 3POR PEDRO PINHEL<br />

1BROADCAST AND THE FOCuS GROuP . INVESTIGATE wITCH<br />

CulTS OF THE RADIO AGE . warp Records . 2009<br />

O novo EP (48 minutos e 23 faixas – imagine o álbum) da dupla britânica<br />

de música retro-eletrônica Broadcast é uma parceria com o<br />

amigo, capista oficial do grupo e pioneiro da “assombrologia” (“hauntology”,<br />

em inglês, termo adotado pelos críticos Simon Reynolds e<br />

Mark Fisher) The Focus Group, também conhecido como Julian House.<br />

O disco é a convergência entre o pop eletrônico sessentista do<br />

Broadcast (que deve a sua existência a grupos como The United States of America) e as colagens<br />

climáticas do Focus Group, que ressuscita sons mortos (vozes, barulhos da natureza) para uma<br />

nova vida como espectros melódicos sob uma camada lo-fi e mal-sincronizada de efeitos. O resultado<br />

é a trilha sonora para uma bad trip de LSD passada dentro de um filme de terror japonês, ou<br />

para uma versão pagã e primaveril da série de videogames Silent Hill. Ao mesmo tempo, é o som<br />

de um passado imaginário, com melodias ensolaradas como em “The Be Colony”, porém assombrado<br />

mais por impressões e sentimentos do que por fantasmas reais. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.<br />

1BlITz THE AMBASSADOR . STEREOTyPE . Embassy<br />

MVMT . 2009<br />

Uma das grandes surpresas do hip-hop em 2009 atende<br />

pelo nome de Blitz The Ambassador. Nascido e criado<br />

em Gana, na África, embalado pelos ritmos do afro-beat<br />

e do highlife (música popular de Gana), o rapper tem<br />

em Fela Kuti e Hugh Masekela suas principais influências.<br />

No rap, sua inspiração está em nomes como Krs-<br />

One e Rakim. Em Stereotype, seu álbum de estreia, ele<br />

apresenta uma sonoridade que define como Afrotronic-<br />

Hop – que remete a The Roots, porém com um clima<br />

mais festivo e alegre. Acompanhado por sua banda, The<br />

Embassy Ensemble, que tem como carro-chefe um naipe de metais espetacular (com membros<br />

do genial Hypnotic Brass Ensemble), Blitz The Ambassador faz um dos sons mais criativos no<br />

hip-hop atual. Mas não é só o som que impressiona. Sua levada é agressiva e suas letras têm<br />

um discurso poético raro hoje em dia. Em meio a tantas bijuterias descartáveis lançadas no<br />

mercado fonográfico, Stereotype é um disco que vale ouro.. 3POR DANIEL TAMENPI<br />

1ANTI-POP CONSORTIuM . FluORESCENT BlACK .<br />

Big Dada Recordings . 2009<br />

Com um disco com o mesmo nome de uma graphic novel<br />

de ficção científica distópica que fala de genética,<br />

o Anti-Pop volta como grupo. Quando surgiram, eles<br />

eram só respostas sonoras ao que pareciam ver como<br />

caretice no hip-hop, trabalhando muito a estrutura das<br />

músicas, os timbres nas batidas e nas vozes, as interpretações<br />

das levadas e as rimas mais complexas. Era um<br />

troço agressivo, mas não tanto quanto esse disco. Ou<br />

talvez mais, porém de outra maneira. Não consegui pescar<br />

se foram as tensões internas da reunião após uma<br />

separação nunca muito bem explicada ou se foram as realizações dos projetos e carreiras solo<br />

desde o disco Arrhythmia, de 2002, que pesaram. A segunda hipótese parece fraca: Beans<br />

era sem dúvida menos abrasivo do que o próprio Anti-Pop, High Priest, mais experimental e<br />

barulhento, e mesmo assim muito diferente do que escutei aqui. Não sei muito do produtor<br />

E. Blaize, mas o disco é menos fraturado sonoramente que Tragic Epilogue, de 2000, e The<br />

Ends Against the Middle, de 2001, numa sequência lógica do álbum do ano seguinte. As ideias<br />

sonoras como intrusões e surpresas do início foram ficando mais concisas ao longo da discografia<br />

do grupo – é só comparar qualquer música do primeiro disco com “Ping Pong”. Tensões<br />

internas, talvez, mas soa meio pretensioso, no final das contas. Ninguém aqui é biógrafo dos<br />

caras. O que leva a outra explicação, talvez a mais simples de todas. Trata-se um disco mais<br />

dominado por M. Sayyid, o MC que eu ainda não tinha mencionado. Nas levadas e no timbre<br />

de sua voz, ele sempre foi o cara mais assemelhado ao rap mais dedo na cara que costumamos<br />

identificar como o de Nova York. Sim, como seus parceiros, o que ele sempre fez foi parecia<br />

partir de uma releitura – às vezes bem intelectualizada – do rap em geral para criar formas novas.<br />

O problema é que, perto dos malucos com quem ele cola, Sayyid até parece normal. Não<br />

sei se é uma hipótese válida. Mas acho que fala um pouco sobre o disco. 3POR ANDRÉ MALERONKA<br />

1VOCê ENCONTRA ESTE E OuTROS lIVROS NA lOJA DA +SOMA<br />

1BuIlT TO SPIll . THERE IS NO ENEMy .<br />

warner . 2009<br />

Esqueça o álbum anterior, You in Reverse,<br />

que prendia rapidamente a atenção<br />

pela músicas mais diretas e, diga-se de<br />

passagem, menos criativas. Aperte o play<br />

e prepare-se para ouvir um disco denso,<br />

composto por riffs de guitarra longos e<br />

etéreos combinados ao vocal anasalado<br />

e arrastado de Doug Martsch – a mente<br />

inventiva por trás da banda. There is no<br />

Enemy, oitavo álbum de estúdio do Built<br />

to Spill, demora para conquistar, mas<br />

quando se revela mostra a diversidade<br />

de texturas e camadas de cada canção<br />

com ecos de anos setenta. São os detalhes<br />

que passeiam por entre os solos<br />

de guitarra e o ritmo sólido que fazem<br />

este disco brilhar: o trompete na agridoce<br />

“Things Fall Apart” ou a trompa inesperada<br />

e melódica em “Life’s a Dream”<br />

mostram que não há fronteiras criativas,<br />

mesmo para uma banda que perdura há<br />

mais de 15 anos na estrada. Depois dos<br />

dois últimos discos, que se perdiam em<br />

lugares-comuns, riffs repetitivos e letras<br />

sem graça, Doug retoma o melhor do<br />

passado do Built to Spill, tão bem registrado<br />

nos épicos Perfect From Now On e<br />

Keep It Like a Secret. E, mesmo que ele<br />

diga que as letras não são autobiográficas,<br />

parece que agora tem algo a proferir:<br />

“Venha aqui e fique por um tempo/ Tudo<br />

o que eu sei é o que quero dizer”, na letra<br />

de “Done”, oitava canção de There is<br />

no Enemy. A intenção é clara e convence.<br />

3POR MARINA MANTOVANINI<br />

96 97


+quadrinhos<br />

STêVz 4FLICKR.COM/STEVZ<br />

98 99<br />

AlEx VIEIRA 4REVISTAPREGO.BLOGSPOT.COM


GABRIEl RENNER 4GABRIELRENNER.BLOGSPOT.COM<br />

santapinup.com.br<br />

100 101<br />

Foto: Gabriela D`Andrea l Arte: Renato Petillo<br />

She gives you the bes and t e wors f om al parts...


+endereÇos<br />

Alavanca .<br />

www.alavanca.art.br<br />

Atração Fonográfica .<br />

www.atracao.com.br<br />

Baratos Afins Discos .<br />

Av. São João . 439<br />

2º andar . Lojas 314/318<br />

55 11 3223 . 3629<br />

Circo Voador .<br />

Rua dos Arcos . s/nº . Lapa<br />

Rio de Janeiro . RJ<br />

55 21 2533 . 0354<br />

www.circovoador.com.br<br />

Choque Cultural .<br />

Rua João Moura . 997<br />

São Paulo . SP<br />

55 11 3061 . 4051<br />

www.choquecultural.com.br<br />

Converse .<br />

www.converseallstar.com.br<br />

Dischord Records .<br />

www.dischord.com<br />

Domino Records .<br />

www.dominorecordco.com<br />

Element/Nixon .<br />

Rua Oscar Freire . 909<br />

www.elementskateboards.com<br />

Elo Music .<br />

www.elomusic.com.br<br />

Estação Pinacoteca .<br />

Largo General Osório . 66<br />

São Paulo . SP<br />

55 11 3335 . 4990<br />

www.pinacoteca.org.br<br />

Executivo Bar .<br />

Rua Sete De Abril . 425<br />

São Paulo . SP<br />

55 11 3486 . 9451<br />

Ezekiel .<br />

www.ezekielbrasil.com<br />

Festival de Música de londrina .<br />

www.fml.com.br<br />

Fita Tape .<br />

Praça Garibaldi . 46<br />

Porto Alegre . RS<br />

55 51 3028 . 1217<br />

www.fitatape.art.br<br />

Funhouse .<br />

Rua Bela Cintra . 567<br />

São Paulo . SP<br />

55 11 3259 . 3793<br />

www.funhouse.com.br<br />

Galeria do Rock .<br />

Rua 24 de Maio . 116<br />

São Paulo . SP<br />

55 11 3223 . 8402<br />

www.galeriadorock.org.br<br />

Itaú Cultural .<br />

Av. Paulista, 149 . São Paulo . SP<br />

55 11 2168 . 1700<br />

www.itaucultural.org.br<br />

lost .<br />

www.lost.com.br<br />

Nike Sportswear .<br />

Praça dos Omaguás . 100<br />

Pinheiros . São Paulo . SP<br />

www.nikesportswear.com<br />

Pintar .<br />

Rua Cotoxó . 110<br />

São Paulo . SP<br />

www.pintar.com.br<br />

Santander Cultural .<br />

Rua Sete de Setembro . 1028<br />

Porto Alegre . RS<br />

55 51 3287 . 5500<br />

www.santandercultural.com.br<br />

<strong>+Soma</strong> .<br />

Rua Fidalga . 98<br />

Vila Madalena . São Paulo . SP<br />

www.maissoma.com<br />

Trama .<br />

Rua Rosa Gaeta Lazara . 93 .<br />

São Paulo . SP<br />

trama.uol.com.br<br />

Volcom .<br />

www.volcom.com<br />

C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K<br />

102 103


+agenda O9<br />

2. 14/11<br />

3. 21/11<br />

Novembro<br />

1. 07/11<br />

ElO DA CORRENTE<br />

HEITOR E BANDA GENTIlEzA<br />

ANElIS ASSuMPçãO<br />

4.<br />

PElIGRO APRESENTA...<br />

28/11<br />

Dezembro<br />

5.<br />

6.<br />

7.<br />

luCAS SANTANNA<br />

espaçoculturalcaféloja<br />

104 105<br />

19/12<br />

12/12<br />

PElIGRO APRESENTA...<br />

05/12<br />

ROCKERS CONTROl<br />

rua fidalga 98<br />

vila madalena são Paulo sP<br />

11 3031 7945


ZOOM AIR PAUL RODRIGUEZ III<br />

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