12.04.2013 Views

a questão da ética eudemônica - Antiguidade Clássica

a questão da ética eudemônica - Antiguidade Clássica

a questão da ética eudemônica - Antiguidade Clássica

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

XX SEMINÁRIO DE<br />

ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Praz er e Moral no Mundo A nt igo<br />

06 a 08 de outubro de 2008<br />

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

Reitor: Roberto de Souza Salles<br />

INSTITUTO DE LETRAS<br />

Diretora: Livia Maria de Freitas Reis<br />

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS<br />

Chefe: I<strong>da</strong> Maria Santos Ferreira Alves<br />

COMISSÃO ORGANIZADORA<br />

Ana Lúcia Silveira Cerqueira<br />

Edna Ribeiro de Paiva<br />

Eduardo Tuffani Monteiro<br />

Jandyra Gonçalves Figueiredo<br />

Katia Teonia Costa de Azevedo<br />

Maria Bernadete Carvalho <strong>da</strong> Rocha<br />

REALIZAÇÃO<br />

Departamento de Letras <strong>Clássica</strong>s e Vernáculas – UFF<br />

APOIO<br />

CEIA – UFF<br />

Instituto de Letras <strong>da</strong> UFF<br />

PROPP<br />

Revista Eletrônica Antigui<strong>da</strong>de <strong>Clássica</strong><br />

Secretaria Municipal de Educação de Niterói


SUMÁRIO<br />

→Apresentação................................................................................................................5<br />

→Programação................................................................................................................6<br />

→Conferências<br />

-Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a <strong>questão</strong> <strong>da</strong> <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong> -<br />

Ciro Flamarion Cardoso..................................................................................................13<br />

-Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio - Elaine Cristina Prado dos<br />

Santos..............................................................................................................................22<br />

→Mesas Redon<strong>da</strong>s<br />

-A atuação de Afrodite no ‘paidikòs éro–s’ – Glória Braga Onelley............................38<br />

-O deleite musical em Pítica 1 – Shirley Fátima Gomes de Almei<strong>da</strong> Peçanha...............44<br />

→Comunicações<br />

-A arte como instrumento moralizante <strong>da</strong> Hélade – Adriana Clementino de Medeiros..51<br />

-Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias - Alice <strong>da</strong> Silva Cunha....................59<br />

-A sátira como educação em Roma - Amós Coêlho <strong>da</strong> Silva..........................................65<br />

-A tríade em Mimnermo: amor – juventude – velhice – Bárbara Shênia Cartes Lopes<br />

Borges Jorge....................................................................................................................71<br />

-A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas. –<br />

Carlos Junior Gontijo Rosa e Marília Vieira Soares.......................................................75<br />

-A <strong>questão</strong> <strong>da</strong> morte no poema Latino De Rerum Natura – Carolina Barroso do<br />

Couto...............................................................................................................................84<br />

-Medéia – uma deusa humaniza<strong>da</strong> – Daniele Rodrigues Ramos Kazan.........................89<br />

-Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer – Dulcileide Virgínio do<br />

Nascimento....................................................................................................................100<br />

--As Lamentações de Ariadne nas Núpcias de Peleu e Tétis – Edna Ribeiro de Paiva.110<br />

-Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé – Elisa Costa Brandão de Carvalho..118<br />

-O palavrão em dicionários latinos escolares – Fábio Frohwein de Salles...................126<br />

-Eufemismos bíblicos relativos ao sexo e à moral – Francisco de Assis Florêncio.....132


-Considerações sobre o vocabulário acerca <strong>da</strong> mão-de-obra em Varrão – José Ernesto<br />

Moura Knust..................................................................................................................138<br />

-O uso do phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre a magia e a medicina -<br />

Josilene Campanati de Oliveira.....................................................................................146<br />

-Um vitupério a Cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca (ms.<br />

2998 BGUC) – Luís Fernando Campos D’Arcadia......................................................154<br />

-Copa (A taberneira), um convite ao prazer – Marco Antonio Abrantes de Barros<br />

Godoi.............................................................................................................................162<br />

-Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na peça<br />

Helena de Eurípides – Pedro <strong>da</strong> Silva Barbosa.............................................................171<br />

-A Visão como fonte de prazer em "Ceruus ad Fontem": Uma Análise Semiótica e<br />

estudo <strong>da</strong> progressão referencial na fábula de Fedro – Rachel Maria Campos Menezes<br />

de Moraes e Van<strong>da</strong> Maria Cardozo de Menezes (UFF)...............................................176<br />

-O delinear <strong>da</strong> loucura na tragédia Os Persas de Ésquilo – Ricardo de Souza Nogueira<br />

.......................................................................................................................................183<br />

-O fogo: a intervenção moralizante do Olimpo nos contos de fa<strong>da</strong> - Sonia Maria Branco<br />

de Freitas Maia..............................................................................................................196<br />

-Moral socrática e prazer nos discursos de Diotima de Mantinéia e Alcibíades, n’O<br />

Banquete de Platão Tatiana Maria Gandelman de Freitas.............................................203<br />

-Electra, Elektra - a permanência de um mito – Thomaz Pereira de Amorim Neto......210<br />

-O prólogo senequiano e a antecipação <strong>da</strong> catástrofe – Van<strong>da</strong> Santos .........................221<br />

-A elegia 1.3 de tibulo: um mosaico de epigramas – Ana Lúcia Silveira Cerqueira<br />

.......................................................................................................................................227<br />

→Caderno de Resumos...............................................................................................232


Apresentação<br />

ANAIS<br />

É com grande satisfação que apresentamos os Anais do XX Seminário de Estudos<br />

Clássicos, evento realizado nos dias 06, 07 e 08 de outubro de 2008, sediado no Instituto<br />

de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal Fluminense.<br />

O Seminário de Estudos Clássicos é um evento anual, que objetiva promover a<br />

interdisciplini<strong>da</strong>de e a divulgação de pesquisas nas áreas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de Greco-romana e<br />

oriental sempre com a colaboração de estudiosos e pesquisadores de diversas áreas<br />

volta<strong>da</strong>s para o Mundo Antigo. Ao longo dos três dias, com o tema – A socie<strong>da</strong>de na<br />

Antigui<strong>da</strong>de: Religião, desejo e poder, o seminário fomentou o debate, sob diferentes<br />

aspectos, tais como lingüístico, literário, mítico, histórico, geográfico, etc, questões como<br />

religião, moral, família, escravidão, classes sociais. Além <strong>da</strong>s conferências, mesasredon<strong>da</strong>s,<br />

debates de pesquisas e comunicações, foram oferecidos aos participantes dois<br />

mini-cursos com ênfase na temática do evento.<br />

Seguem, portanto, algumas <strong>da</strong>s comunicações e conferências apresenta<strong>da</strong>s no<br />

Seminário.<br />

Ana Lúcia Silveira Cerqueira<br />

Katia Teonia Costa de Azevedo


PROGRAMAÇÃO<br />

Segun<strong>da</strong>-feira, 06 de outubro de 2008<br />

14h00<br />

ABERTURA OFICIAL<br />

Local: Auditório Macunaíma, UFF, Campus Gragoatá, Bloco B, sala 405<br />

Apresentação do coral Audite Noua<br />

Adelheid Mason (Profª Regente - UFF)<br />

16h00<br />

Conferência I (sala 405B)<br />

Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio<br />

Elaine Cristina Prado dos Santos (Profª Drª – Universi<strong>da</strong>de Presbiteriana Mackenzie)<br />

18h00<br />

Minicurso I (sala 405B)<br />

Erotismo ou Religião ? Numismática, Iconografia e o Império Romano<br />

Claudio Umpierre Carlan (Prof. Dr. - UNIRIO)<br />

Minicurso II (sala 218C)<br />

Entre desejo e moral... múltiplas práticas do prazer e suas traduções em versos <strong>da</strong> Grécia<br />

Antiga<br />

Fernan<strong>da</strong> Lemos de Lima (Profª Drª - UERJ/FGV)<br />

Terça-feira, 07 de outubro de 2008<br />

8h00<br />

Minicurso III (sala 207C)<br />

O sistema flexional do verbo latino<br />

Edna Ribeiro Paiva (Profª Drª - UFF)<br />

Minicurso IV (sala 218C)<br />

Amor e festas no Egito Antigo<br />

Júlio Gralha (Prof. Doutorando - UERJ)<br />

6


10h00<br />

Sessões de comunicação I<br />

UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Sala 205B<br />

Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª- UFF)<br />

Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias<br />

Alice <strong>da</strong> Siva Cunha (Profª Drª - UFRJ)<br />

Aquemênides e Polifemo no contexto literário idealizado por Vergílio na Enei<strong>da</strong><br />

Carlos Eduardo Costa Scherer (Prof. Ms. – UFRJ)<br />

O prólogo senequiano e a antecipação <strong>da</strong> catástrofe<br />

Van<strong>da</strong> Santos Falseth (Profª Drª - UFRJ)<br />

Sala 207B<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: Leituras <strong>da</strong> tragédia grega<br />

Coordenação: Thomaz Pereira de Amorim Neto (UERJ/FAPERJ)<br />

Electra, Elektra – a permanência de um mito<br />

Thomaz Pereira de Amorim Neto (UERJ/FAPERJ)<br />

Medéia – uma deusa humaniza<strong>da</strong><br />

Daniele Rodrigues Ramos Kazan (Mestran<strong>da</strong> – UFF)<br />

Entre a fala e o silêncio: uma leitura dos discursos em Hipólito de Eurípides<br />

Pedro Ivo Zaccur Leal (Mestrando – UFF)<br />

Sala 214B<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: Moral e prazer <strong>da</strong> Grécia Antiga aos contos de fa<strong>da</strong>s<br />

Coordenação: Dulcileide Virginio do Nascimento (Profª Drª - UERJ)<br />

A arte como instrumento moralizante <strong>da</strong> Hélade<br />

Adriana Clementino de Medeiros (Profª – UCAM)<br />

Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer<br />

Dulcileide Virginio do Nascimento (Profª Drª – UERJ/FGV)<br />

O Fogo: a intervenção moralizante do Olimpo nos contos de fa<strong>da</strong><br />

Sonia Maria Branco de Freitas Maia (Profª – UCAM)<br />

Sala 216B<br />

Coordenação: Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª- UFF)<br />

O modelo <strong>da</strong> dor laocoontiana na Cleópatra de Guido Reni<br />

Evelyne Azevedo (Profª Mestran<strong>da</strong> – UERJ)<br />

A religio, a fides e o ius no Amphitruo de Plauto<br />

Nathália Esteves <strong>da</strong> Silva (Profª - UFF)<br />

A concepção do prazer e <strong>da</strong> moral em Satyricon<br />

Nilciléia <strong>da</strong> Silva Rosário (Graduan<strong>da</strong> – UFF)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 7


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Sala 401B<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: Desejar é poder?<br />

Coordenação: Amós Coêlho <strong>da</strong> Silva (Prof. Dr. - UERJ)<br />

A sátira como educação em Roma<br />

Amós Coêlho <strong>da</strong> Silva (Prof. Dr. - UERJ)<br />

Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé<br />

Elisa Costa Brandão de Carvalho (Profª Doutoran<strong>da</strong> - UERJ)<br />

Eufemismos bíblicos relativos ao sexo e à moral<br />

Francisco de Assis Florencio (Prof. Dr.- UERJ)<br />

Copa (A Taberneira), um convite ao prazer<br />

Marco Antonio Abrantes de Barros (Mestrando - UERJ)<br />

Sala 403B<br />

Coordenação: Thaíse Pereira Bastos de Almei<strong>da</strong> Silva (Profª - UFF)<br />

O palavrão em dicionários Latino-Portugueses escolares<br />

Fábio Frohwein de Salles Moniz (Doutorando – UFRJ)<br />

Prisciano de Cesaréia e Apolônio Díscolo: mos maiorum e tradição gramatical antiga<br />

Fábio <strong>da</strong> Silva Fortes (Doutorando – UNICAMP)<br />

Considerações sobre o vocabulário acerca <strong>da</strong> mão-de-obra na De Re Rustica de Varrão<br />

José Ernesto Moura Knust (Graduando – UFF)<br />

Sala 407C<br />

Coordenação: Pedro <strong>da</strong> Silva Barbosa (Prof. Mestrando - UFRJ)<br />

Um vitupério a Cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antonio <strong>da</strong> Fonseca (ms. 2998<br />

BGUC)<br />

Luís Fernando Campos D'Arcadia (Graduando - UNESP)<br />

A visão como fonte de prazer em Ceruus ad fontem: uma análise semiótica e estudo <strong>da</strong><br />

progressão referencial na fábula de Fedro<br />

Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (Graduan<strong>da</strong> - UFF)<br />

Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na peça Helena<br />

de Eurípides<br />

Pedro <strong>da</strong> Silva Barbosa (Prof. Mestrando - UFRJ)<br />

Sala 411C<br />

Coordenação: Maria Bernadete de Carvalho (Profª Drª - UFF)<br />

O uso de phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre magia e medicina<br />

Josilene Campanati de Oliveira (Graduan<strong>da</strong> – UERJ)<br />

Naturalismo ou Covencionalimo - a escolha socrática<br />

Luciano Ferreira de Souza (Mestrando – USP)<br />

Moral socrática e prazer nos discursos de Diotima de Mantinéia e Alcibíades, no Banquete<br />

de Platão<br />

Tatiana Maria Gandelman de Freitas (Mestran<strong>da</strong> UFRJ)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 8


11h30<br />

UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Mesa redon<strong>da</strong> I (sala 218C)<br />

Moral e Prazer na Literatura Grega<br />

Coordenação: Silvia Damasceno (Profª Drª - UFF/CEIA)<br />

A atuação de Afrodite no paidikòs érōs<br />

Glória Braga Onelley (Profª Drª - UFF/CEIA)<br />

O deleite musical em Pítica 1<br />

Shirley Fátima G. de A.Peçanha (Profª Drª - UFRJ)<br />

Intervenção: A aventura cômica entre a moral e o prazer<br />

Silvia Damasceno (Profª Drª - UFF/CEIA)<br />

O prazer: uma <strong>da</strong>s manifestações de Eros<br />

Tânia Martins Santos (Profª Drª - UFRJ)<br />

14h00<br />

Pesquisas em Debate I (sala 218C)<br />

Corpo e sexuali<strong>da</strong>de no sympósion e no kômos<br />

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Prof. Dr. – UFF/CEIA)<br />

Corpo e sexuali<strong>da</strong>de no ginásio grego<br />

Fábio de Souza Lessa (Prof. Dr. – UFRJ/LHIA)<br />

T<br />

Sexuali<strong>da</strong>de e erotismo entre quatro paredes: análise <strong>da</strong> decoração musiva de um cubiculum<br />

T<br />

T<br />

T<br />

<strong>da</strong> Domus Sollertiana<br />

Regina Maria <strong>da</strong> Cunha Bustamante (Profª Drª - UFRJ/LHIA)<br />

16h00<br />

Conferência II (sala 218C)<br />

Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a <strong>questão</strong> <strong>da</strong> <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong><br />

Ciro Flamarion Santana Cardoso (Prof. Titular - UFF/CEIA)<br />

18h00<br />

Minicurso I (sala 405B)<br />

Erotismo ou Religião ? Numismática, Iconografia e o Império Romano<br />

Claudio Umpierre Carlan (Prof. Dr. – UNIRIO/CEIA)<br />

Minicurso II (sala 218C)<br />

Entre desejo e moral... múltiplas práticas do prazer e suas traduções em versos <strong>da</strong> Grécia<br />

Antiga<br />

Fernan<strong>da</strong> Lemos de Lima (Profª Drª - UERJ/FGV)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 9


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Quarta-feira, 08 de outubro de 2008<br />

8h00<br />

Minicurso III (sala 207C)<br />

O sistema flexional do verbo latino<br />

Edna Ribeiro Paiva (Profª Drª - UFF)<br />

Minicurso IV (sala 218C)<br />

Amor e festas no Egito Antigo<br />

Júlio Gralha (Prof. Dr. – UERJ/NEA)<br />

10h00<br />

Sessões de comunicação II<br />

Sala 203C<br />

Coordenação: Glória Braga Onelley (Profª Drª - UFF)<br />

A areté do herói Odisseu<br />

Alexandre dos Santos Rosa (Prof. Mestrando - UFRJ)<br />

A tríade em Mimnermo: amor, juventude e velhice<br />

Bárbara Shênia Cartes Lopes Borges Jorge (Graduan<strong>da</strong> - UFF)<br />

Lascívia e impie<strong>da</strong>de no oikos de Odisseu: a infideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s servas e a punição de<br />

Telêmaco (XXII, 465-73)<br />

Marcelo Sussumu Takahashi (Mestrando - USP)<br />

Sala 205C<br />

Coordenação: Luis Eduardo Lobianco (Prof. Dr. CEIA/UFF)<br />

O erotismo e a sexuali<strong>da</strong>de dos egípcios no outro mundo<br />

Moacir Elias Santos (Doutorando - UFF)<br />

Prazer e sexuali<strong>da</strong>de no Papiro Médico de Kahun<br />

Liliane Cristina Coelho (Mestran<strong>da</strong> - UFF)<br />

Safo de Lesbos no teatro antigo<br />

José Roberto de Paiva Gomes (Prof.Ms - NEA/UERJ)<br />

Sala 207C<br />

Coordenação: Nathália Esteves <strong>da</strong> Silva (Profª - UFF)<br />

As representações dos heróis na tragédia Ájax de Sófocles<br />

Carmen Lucia Martins Sabino (Mestran<strong>da</strong> - UFRJ)<br />

A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas<br />

Carlos Junior Gontijo Rosa (Graduando - UNICAMP)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 10


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

O delinear <strong>da</strong> loucura na tragédia Os Persas de Ésquilo<br />

Ricardo de Souza Nogueira (Prof. Doutorando - UFRJ)<br />

Sala 210C<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: Reminiscências, no século I d.C., <strong>da</strong> poesia pastoril de<br />

Vergílio, nas Bucólicas de Calpurnius Siculus<br />

Coordenação: Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª - UFF)<br />

Calpurnius Siculus : um novo poeta bucólico<br />

Leonardo Ferreira (Graduando - UFF)<br />

Amor e/ou prazer? Uma análise do canto III <strong>da</strong>s Geórgicas de Vergílio<br />

Thaíse Pereira Bastos de Almei<strong>da</strong> Silva (Profª - UFF)<br />

A Bucolica X de Vergílio e a interação homem/natureza/prazer<br />

Thiago <strong>da</strong> Silva Pinheiro (Graduando - UFF)<br />

Sala 212C<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: Algumas doutrinas de Epicuro a Lucrécio<br />

Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF)<br />

A fonte lucreciana: a teoria atomista de Epicuro<br />

Nilciléia <strong>da</strong> Silva Rosário (Graduan<strong>da</strong> - UFF)<br />

A religião em Lucrécio<br />

Raphael de Siqueira David (Graduando - UFRJ)<br />

A <strong>questão</strong> <strong>da</strong> morte no poema latino De Rerum Natura<br />

Carolina Barroso Coutos (Graduan<strong>da</strong> - UFF)<br />

Sala 411C<br />

Sessão coordena<strong>da</strong>: As múltiplas facetas <strong>da</strong> poesia de Catulo<br />

Coordenação: Edna Paiva Ribeiro (Profª Drª- UFF)<br />

O Ciclo de Juvêncio<br />

Bruna Prudêncio <strong>da</strong> Silva (Especialização – UFF)<br />

As lamentações de Ariadne nas Núpcias de Peleu e Tétis<br />

Edna Ribeiro de Paiva (Profª Drª - UFF)<br />

A poesia erótica de Catulo<br />

Maria Lúcia Malheiros Cardoso (Mestran<strong>da</strong> - UFRJ)<br />

A expressão do amor nas poesias do Ciclo de Lésbia<br />

Maria Nazaré Achão Assunção (Especialização - UFF)<br />

A poesia satírica de Catulo<br />

Vera Lúcia Caetano <strong>da</strong> Silva (Graduan<strong>da</strong> - UFF)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 11


11h30<br />

UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Mesa redon<strong>da</strong> II (sala 218C)<br />

Poesia lírica e satírica em Roma<br />

Coordenação: Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF)<br />

As elegias ovidianas e sua recusa ao moralismo e à tradição romanos<br />

Ana Thereza Basílio Vieira (Profª Drª - UFRJ)<br />

A elegia: um mosaico de epigramas<br />

Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF)<br />

Sátiras de Horácio: Riso , Denúncia, Moral<br />

Arlete José Mota (Profª Drª - UFRJ)<br />

14h00<br />

Pesquisas em Debate II (sala 218C)<br />

O significado <strong>da</strong> pesquisa na área de estudos de língua e literatura latina<br />

Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª - UFF)<br />

A propagan<strong>da</strong> imperial romana à luz <strong>da</strong> iconografia numismática politeísta de Alexandria<br />

no século dos Antoninos<br />

Luis Eduardo Lobianco (Prof. Dr. - UFF/CEIA)<br />

Entre a história e a literatura: uma nova proposta para o lugar <strong>da</strong>s Metamorphoses de Ovídio<br />

no Século de Augusto<br />

Rolph de Viveiros Cabeceiras (Prof. Ms.UFF/CEIA)<br />

16h00<br />

Conferência III (sala 218C)<br />

Ócio e fruição do prazer – a herança antiga e as interdições cristãs<br />

Vânia Leite Fróes (Profª Titular - UFF)<br />

18h00<br />

Encerramento (sala 218C)<br />

Lançamento CADERNOS DO CEIA - N°2-2008<br />

Leituras Contemporâneas do Teatro Antigo<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 12


CONFERÊNCIAS<br />

Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a<br />

<strong>questão</strong> <strong>da</strong> <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong><br />

Ciro Flamarion Cardoso (CEIA/UFF)<br />

Introdução: pode uma <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong> estender-se, para além <strong>da</strong><br />

Antigui<strong>da</strong>de clássica, também ao mundo dos antigos egípcios?<br />

A noção de eudemonia – uma <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong> podendo definir-se como a busca do<br />

que seria uma “boa vi<strong>da</strong>”, ou uma “vi<strong>da</strong> adequa<strong>da</strong>” para os seres humanos – costuma ser<br />

discuti<strong>da</strong> como algo característico do mundo grego <strong>da</strong> pólis clássica e <strong>da</strong> Época Helenística,<br />

bem como no relativo à Antigui<strong>da</strong>de romana. Já no que diz respeito ao Egito faraônico, onde<br />

se supõe ter existido, nos textos sapienciais em que é possível estudá-la, uma <strong>ética</strong> prescritiva<br />

de base religiosa, é costume supor algo bem diferente. Entretanto, mediante um exame<br />

cui<strong>da</strong>doso dos conteúdos e <strong>da</strong>s condições de emissão dos textos conhecidos como<br />

ensinamentos e discursos (ou literatura pessimista), gêneros de escritos sapienciais existentes<br />

segundo os próprios egípcios desde o Reino Antigo, em pleno terceiro milênio a.C., e<br />

atestados com segurança desde o milênio seguinte, verificaremos que uma <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong><br />

foi a que se expôs nesses escritos, dirigi<strong>da</strong> em primeiro lugar à elite que governava o país,<br />

mais tarde a setores mais vastos <strong>da</strong> população. Obviamente, além de algumas semelhanças<br />

que, justamente, permitem falar-se de eudemonia, havia diferenças entre os casos egípcio e<br />

grego: tentaremos estabelecer, nesta palestra, em que as características básicas de ambas as<br />

socie<strong>da</strong>des se aproximavam ou se afastavam, no tocante ao tema de que tratamos.<br />

As concepções sobre a eudemonia na Grécia clássica<br />

O primeiro ponto a ser esclarecido é o <strong>da</strong> relação entre o Estado e os ci<strong>da</strong>dãos – ou<br />

seja, a minoria <strong>da</strong> população que, uma vez excluídos os jovens, as mulheres, os escravos, os<br />

estrangeiros residentes e em certos casos, por exemplo com base em critérios de proprie<strong>da</strong>de<br />

ou ren<strong>da</strong>, também os que poderíamos denominar “ci<strong>da</strong>dãos não ativos”, detinha a totali<strong>da</strong>de<br />

dos direitos políticos. Para os gregos <strong>da</strong> Época <strong>Clássica</strong>, ser ci<strong>da</strong>dão numa pólis não implicava<br />

só, nem principalmente, pagar impostos e poder votar e ser votado: significava também, e<br />

sobretudo, um envolvimento direto e ativo nos assuntos e funções tanto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> civil quanto<br />

<strong>da</strong> militar. Um ci<strong>da</strong>dão era normalmente um sol<strong>da</strong>do, podia vir a ser um juiz e devia ser


14<br />

membro regular de um corpo coletivo de governo, assembléia ou conselho. Tais obrigações<br />

cívicas eram cumpri<strong>da</strong>s em pessoa, não mediante a eleição de representantes (embora<br />

houvesse certo número de magistraturas eletivas). O ci<strong>da</strong>dão, mesmo se vivesse no campo,<br />

devia ser capaz de dirigir-se com freqüência ao núcleo urbano de sua pólis para, ali,<br />

pessoalmente falar, votar e eventualmente julgar. Dentro de uma tal concepção, um ci<strong>da</strong>dão<br />

cuja preocupação principal residisse em suas ativi<strong>da</strong>des profissionais pareceria inadequado,<br />

por mais que lutasse quando chamado à guerra e cumprisse suas diversas obrigações quando<br />

solicitado.<br />

Em graus diversos segundo os tipos de ci<strong>da</strong>des-Estado – bastando estabelecer o<br />

contraste entre Esparta e Atenas para que isso fique claro –, tal concepção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia exigia<br />

uma subordinação dos indivíduos e famílias à comuni<strong>da</strong>de (koinonía), definindo a relação<br />

entre o público e o privado de forma muito diferente <strong>da</strong> que ocorre hoje em dia. Seria<br />

inadequado, no entanto, falar de um “sacrifício” do indivíduo ou <strong>da</strong> família à coletivi<strong>da</strong>de, já<br />

que um ci<strong>da</strong>dão grego não veria a situação em termos de uma oposição. Nas concepções<br />

<strong>ética</strong>s vigentes, o homem bom e o bom ci<strong>da</strong>dão eram noções equivalentes; por conseguinte,<br />

“viver uma boa vi<strong>da</strong>” e “ser um bom ci<strong>da</strong>dão” eram coisas idênticas. Para Aristóteles, o<br />

Estado é uma associação de pessoas similares, estabeleci<strong>da</strong> para que possam atingir a melhor<br />

<strong>da</strong>s vi<strong>da</strong>s possíveis: uma definição que torna claro o que dissemos. O Estado é o fim mesmo<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, ou, pelo menos, uma parte predominante de tal finali<strong>da</strong>de. O indivíduo só<br />

pode realizar-se como parte integrante <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<br />

É partindo desses pressupostos que se torna possível examinar a <strong>ética</strong> grega clássica,<br />

que se caracterizava por um marcante fundo estético. Tanto o corpo quanto o espírito<br />

deveriam ser excelentes, esteticamente agradáveis. Do ponto de vista religioso, não existia a<br />

noção de pecado; e também inexistia a idéia de obrigação: a virtude moral era concebi<strong>da</strong>, não<br />

como uma obediência a alguma lei externa, um sacrifício do homem natural a um poder<br />

externo a si mesmo em nome do bem comum, mas sim, como conduzir às devi<strong>da</strong>s proporções,<br />

marca<strong>da</strong>s pela temperança, os elementos que compõem a natureza humana. O homem bom é<br />

o possuidor de um belo espírito. Segundo Platão (República, 444), “a virtude é uma espécie<br />

de saúde, beleza e bom hábito do espírito; e o vício vem a ser a doença, a deformi<strong>da</strong>de e a má<br />

disposição de tal espírito”. É tão natural buscar a virtude e evitar o vício quanto evitar a<br />

doença e buscar a saúde. Não se trata de uma luta entre princípios opostos: trata-se de<br />

diferenciar a ordem <strong>da</strong> confusão, no relativo a elementos que, em si mesmos, não são<br />

intrinsecamente bons nem ruins.


15<br />

Uma tal concepção de virtude tem como pressuposto a noção de “ponto mediano”,<br />

aquele ponto exato – variável de um indivíduo a outro – de equilíbrio entre extremos a serem<br />

evitados. “Na<strong>da</strong> em excesso” era uma <strong>da</strong>s inscrições que se achavam na facha<strong>da</strong> do templo de<br />

Apolo em Delfos. Aristóteles construiu, a partir desta idéia de ponto mediano, uma filosofia<br />

completa <strong>da</strong> <strong>ética</strong>. Em sua concepção, a virtude é o ponto mediano; o vício, o excesso situado<br />

em qualquer dos dois extremos. A coragem, por exemplo, uma virtude, é o ponto mediano<br />

entre a temeri<strong>da</strong>de e a covardia; outra virtude, a temperança, é o ponto mediano entre o<br />

descontrole e a insensibili<strong>da</strong>de; a generosi<strong>da</strong>de, uma terceira virtude, é o ponto mediano entre<br />

a extravagância e o egoísmo.<br />

Não são as paixões ou os desejos que, em si mesmos, devem ser vistos como maus:<br />

somente o são a sua desproporção, ou a indulgência descui<strong>da</strong><strong>da</strong> para com eles. Tomemos<br />

como exemplo o assunto dos prazeres dos sentidos. Para Aristóteles, não se trata de renunciar<br />

a eles de uma forma absoluta, independentemente <strong>da</strong>s considerações do tempo e do lugar. O<br />

que é desejável não é a renúncia mas, sim, a temperança:<br />

[o homem que age com temperança] assume uma posição mediana com<br />

respeito aos prazeres. Ele não se compraz naquelas coisas em que o homem<br />

licencioso busca o maior prazer, ele tende a não gostar delas; nem se compraz<br />

em to<strong>da</strong>s as coisas errôneas, nem procura o prazer excessivo em qualquer coisa<br />

que seja agradável, nem sofre por sua ausência, nem o deseja, a não ser<br />

modera<strong>da</strong>mente; nem o deseja em maior proporção do que é correto, nem no<br />

momento errado, e assim por diante. Mas, com um espírito moderado e correto,<br />

ele esperará obter to<strong>da</strong>s as coisas agradáveis que, ao mesmo tempo, conduzam à<br />

saúde ou a uma condição adequa<strong>da</strong> do corpo, desde que não sejam prejudiciais<br />

nesse sentido, nem conduzam a violar a conduta nobre ou a agir<br />

extravagantemente e além dos seus meios. Pois, a não ser que uma pessoa se<br />

limite, do modo indicado, ela estará se entregando a tais prazeres mais do que é<br />

correto, enquanto o homem que age com temperança segue como guia a razão<br />

(Ética, III, 14, 1119 e seguintes).<br />

Tomemos outro exemplo, aquele <strong>da</strong> ira. O cristianismo tem como injunção não<br />

ressentir uma injúria, voltar a outra face quando agredido. Aristóteles, de seu lado, se censura<br />

o homem excessivamente inflamado por suas paixões, entre elas a ira, também censura aquele<br />

que é insensível: é correto irar-se nas ocasiões adequa<strong>da</strong>s, contra as pessoas adequa<strong>da</strong>s, de<br />

uma maneira adequa<strong>da</strong> e durante um espaço de tempo adequado. Nisto, como em outras<br />

coisas, a definição do que é adequado depende do bom-senso humano, conducente à<br />

moderação.<br />

Em lugar de uma lista de regras absolutas, de uma divisão <strong>da</strong>s coisas e condutas em<br />

boas e más, o que aparece é um problema sutil e movediço, cuja solução depende <strong>da</strong>s


16<br />

circunstâncias, <strong>da</strong>s características de ca<strong>da</strong> indivíduo em ca<strong>da</strong> caso visto em si mesmo. O Bem<br />

é a proporção adequa<strong>da</strong>, a maneira e a ocasião corretas; o Mal é o contrário. Mas os elementos<br />

<strong>da</strong> natureza humana, em si, não são bons nem ruins: são unicamente a matéria-prima a partir<br />

<strong>da</strong> qual o Bem ou o Mal tomarão forma nos diferentes casos.<br />

Com um estilo diferente, as mesmas noções, eminentemente gregas, são a base <strong>da</strong><br />

<strong>ética</strong> de Platão, que costuma encarar a virtude como uma espécie de “ordem”:<br />

A virtude de ca<strong>da</strong> coisa, seja do corpo ou do espírito, do instrumento ou<br />

<strong>da</strong> criatura, quando lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> melhor maneira, não lhe vem por acaso, mas<br />

como resultado <strong>da</strong> ordem, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> arte com que é imparti<strong>da</strong> (Górgias,<br />

506, d).<br />

Na República, tal noção é trabalha<strong>da</strong> em detalhe. Distinguem-se no espírito três<br />

princípios ou poderes – a razão, a paixão e o desejo –, aparecendo a justiça como a<br />

manutenção, entre eles, <strong>da</strong> relação apropria<strong>da</strong>:<br />

O homem justo não permitirá aos diversos princípios que existem em seu<br />

interior fazerem qualquer trabalho que não seja o adequado, nem deixará que as<br />

diferentes classes de princípios em seu espírito interfiram ca<strong>da</strong> uma nas demais:<br />

ele tratará de pôr a sua casa em ordem. E, tendo ganho o domínio sobre si<br />

mesmo, regulará o seu próprio caráter de modo a estar em boas relações consigo<br />

mesmo, afinando em conjunto aqueles três princípios, como se fossem as três<br />

notas de um acorde perfeito (...); e, após ter unido tais coisas e reduzido os<br />

diversos elementos de sua natureza a uma uni<strong>da</strong>de real, ele, como um homem<br />

marcado pela temperança e devi<strong>da</strong>mente harmonizado, procederá a fazer o que<br />

precisar fazer (República, IV, 443).<br />

Sendo dessa ordem a concepção de virtude característica dos gregos, o motivo para<br />

aspirar a ela não lhes aparecia na forma do que chamaríamos um “sentido do dever”, já que<br />

“dever” enfatiza a auto-repressão. Os gregos enfatizavam o auto-desenvolvimento do espírito.<br />

Daí se infere que o ideal grego na<strong>da</strong> tinha a ver com o ascetismo. Também não valorizava a<br />

licenciosi<strong>da</strong>de. Já vimos que as palavras que melhor sintetizam o ideal dos gregos são<br />

“temperança”, “posição mediana”, “ordem” e “harmonia”. A auto-realização a que aspiravam<br />

não era anárquica, mas sim, uma evolução ordena<strong>da</strong> <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong>des naturais sob a condução<br />

de uma mente equilibra<strong>da</strong>. Isto pode ser ilustrado pelo tratamento do prazer na filosofia de<br />

Platão e de Aristóteles.<br />

O libertino tende a identificar o prazer com o bem, de tal modo que, a todo momento,<br />

perseguirá quaisquer prazeres que se apresentem, deixando de lado a reflexão que tenderia a<br />

interromper o fluxo contínuo <strong>da</strong>s sensações prazerosas postulado como a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Pelo contrário, o ideal dos gregos se opõe tanto ao ascetismo – já que o prazer é considerado


17<br />

um complemento necessário do bem – quanto a identificar o bem com o prazer: existe uma<br />

escala ordena<strong>da</strong> dos prazeres, sendo preciso rejeitar os prazeres inferiores e admitir os demais;<br />

não que, em si, eles constituam o bem, mas porque são o acompanhamento necessário de sua<br />

prática. Na República, Platão distingue entre prazeres necessários e desnecessários. Os<br />

primeiros são os que derivam <strong>da</strong> gratificação de desejos “de que não nos podemos livrar e<br />

cuja satisfação nos faz bem”, como por exemplo o apetite por um alimento sadio. Os demais<br />

são os prazeres derivados de desejos que podemos deixar de lado mediante o treinamento,<br />

cuja presença não nos faz bem e, às vezes, nos prejudica: por exemplo, o apetite por pratos<br />

delicados e luxuosos. Os prazeres necessários devem admitir-se; os demais, excluir-se do<br />

ideal de felici<strong>da</strong>de (República, VIII, 558). No Filebo, indo mais longe, o filósofo exclui <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> perfeita todos os prazeres, com exceção <strong>da</strong>queles que denominou “puros”, isto é, os que<br />

estivessem ligados à contemplação de formas, cores e sons, ou que acompanhassem a<br />

ativi<strong>da</strong>de intelectual. Mas, neste ponto, ele estava claramente ultrapassando o ideal grego.<br />

Aristóteles, de seu lado, estaria de acordo com aquela primeira distinção, entre prazeres<br />

necessários e desnecessários, embora só condenando os prazeres que causassem <strong>da</strong>no. Mesmo<br />

os prazeres desnecessários podem ser desejáveis em si mesmos, desde que não sejam<br />

<strong>da</strong>ninhos. Ain<strong>da</strong> assim, há prazeres que não devem ser perseguidos, bem como ocasiões e<br />

métodos de persegui-los que são impróprios e perversos. A razão deve invocar-se sempre para<br />

intervir e controlar; e o teste supremo do que é válido em matéria de prazeres, como em<br />

quaquer outra coisa, deve ser o juízo bem treinado do homem sensível e bom.<br />

Menos eleva<strong>da</strong> em seus critérios do que Platão e Aristóteles, provavelmente mais<br />

próxima do ideal grego, temos a definição, por Xenofonte, do que seria um “cavalheiro”, ao<br />

reproduzir para nós a autodefinição de seu personagem Iscômaco:<br />

Em primeiro lugar, eu adoro os deuses. Em segui<strong>da</strong>, trato, <strong>da</strong> melhor<br />

maneira possível, assistido pela oração, de obter a saúde e a força do corpo, boa<br />

reputação na ci<strong>da</strong>de, boa vontade entre meus amigos, uma conduta honrosa na<br />

batalha e um incremento honroso de minha fortuna.<br />

Intervindo então, Sócrates pergunta se de fato deseja a fortuna, com todos os<br />

problemas que acarreta. Responde-lhe Iscômaco:<br />

Sim, certamente, pois ela me permite honrar adequa<strong>da</strong>mente os deuses,<br />

aju<strong>da</strong>r os meus amigos quando o necessitem e contribuir para os recursos de<br />

minha ci<strong>da</strong>de. (Xenofonte, Simpósio)<br />

Temos aqui um ideal mais terra-a-terra, mais típico do cavalheiro ateniense: um belo<br />

corpo albergando um belo espírito, a aju<strong>da</strong> externa <strong>da</strong> fortuna e dos amigos, e a realização


18<br />

pessoal, nos limites do que é considerado honroso, nas ativi<strong>da</strong>des públicas <strong>da</strong> guerra e <strong>da</strong> paz.<br />

O próprio Iscômaco resume o modo como passa o seu dia, incluindo exercício físico,<br />

treinamento militar e ativi<strong>da</strong>des na direção de suas terras, sendo então aprovado por Sócrates.<br />

O caso do Egito faraônico: também aqui era possível uma <strong>ética</strong><br />

<strong>eudemônica</strong>, sendo as condições sociais e o imaginário tão<br />

diferentes <strong>da</strong>queles <strong>da</strong> Grécia clássica?<br />

Nem todos aceitam a hipótese de ter sido possível, para os antigos egípcios, uma <strong>ética</strong><br />

<strong>eudemônica</strong>. Eis aqui, por exemplo, o que tem a dizer a respeito Jean Leclant:<br />

Não poderíamos reduzir a literatura sapiencial egípcia a um aspecto<br />

puramente utilitário ou “eudemônico”. Com razão, parece-me, H. Gese reagiu<br />

contra uma tal tendência. Ele mostrou que os textos sapienciais egípcios têm um<br />

fun<strong>da</strong>mento essencialmente religioso, cujo alicerce repousa no princípio de Maat,<br />

a Ver<strong>da</strong>de-Justiça, esta espécie de lei do cosmo que rege a ordem inteira do<br />

1<br />

mundo egípcio, seja ela física, política, social ou moral.TPF FPT<br />

Não tenho dificul<strong>da</strong>de alguma em concor<strong>da</strong>r com o autor em que a noção de Maat<br />

informava centralmente os textos sapienciais egípcios. Entretanto, discordo de que, por tal<br />

razão, seja preciso negar um caráter eudemônico à <strong>ética</strong> que eles expressam. A meu ver, a<br />

religião egípcia, sobretudo mediante a noção de Maat – um conceito abstrato deificado como<br />

filha do deus solar Ra –, estabelecia o contexto e os limites no interior dos quais se pode<br />

constatar uma <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong> egípcia, analogamente a como a noção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia na pólis<br />

circunscrevia as possibili<strong>da</strong>des <strong>eudemônica</strong>s de numerosas <strong>ética</strong>s gregas clássicas. O fato de<br />

que uma <strong>ética</strong> tenha fun<strong>da</strong>mento religioso não é, em si, razão para que seja rigorosamente<br />

prescritiva, à maneira <strong>da</strong>s regras morais cristãs, e não, <strong>eudemônica</strong>. A moral cristã tomou a<br />

forma de um conjunto de prescrições autoritárias cuja finali<strong>da</strong>de é atingir uma “felici<strong>da</strong>de<br />

diferi<strong>da</strong>”, transporta<strong>da</strong> para outra vi<strong>da</strong>, não por ser religiosa, mas devido a certas<br />

características específicas na religião cristã, tais como a noção de pecado liga<strong>da</strong> à de uma<br />

humani<strong>da</strong>de decaí<strong>da</strong>, em contraste com a Divin<strong>da</strong>de, totalmente boa e justa – uma noção, a<br />

teodicéia, que nunca esteve no centro <strong>da</strong>s preocupações dos antigos egípcios. A religião cristã<br />

apresenta-se como uma revelação que se expressa num conjunto de livros sagrados dotados,<br />

segundo se afirma, de autori<strong>da</strong>de intrínseca, garanti<strong>da</strong> pela própria Divin<strong>da</strong>de; e conta com<br />

um corpo de pessoas treina<strong>da</strong>s às quais se confere autori<strong>da</strong>de para interpretar tais textos. Pelo<br />

contrário, no Egito faraônico, exatamente como na Grécia antiga, as respectivas religiões não<br />

1<br />

TP PT Jean Leclant. “Documents nouveauxs et points de vue récents sur les sagesses de l’Égypte ancienne”. In: Jean<br />

Leclant et alii. Les sagesses du Proche-Orient ancien. Paris: Presses Universitaires de France, 1963, pp. 12-13.


19<br />

eram revela<strong>da</strong>s, não se baseavam em escritos dotados de autori<strong>da</strong>de especial ou incontestável,<br />

seus templos não eram congregações ou “igrejas” chefia<strong>da</strong>s por um clero especificamente<br />

treinado durante anos: havia templos, mas não igrejas, servidos por um pessoal de<br />

funcionários do Estado (<strong>da</strong> monarquia divina no caso do Egito, <strong>da</strong> pólis no caso <strong>da</strong> Grécia)<br />

que não pode considerar-se adequa<strong>da</strong>mente um “clero”. Eis aí condições na<strong>da</strong> favoráveis ao<br />

surgimento de <strong>ética</strong>s religiosas autoritárias basea<strong>da</strong>s nas noções opostas de santi<strong>da</strong>de/pecado!<br />

Maat:<br />

É preciso, de início, tratar de entender o que, exatamente, significava a noção de<br />

Maat, literalmente “ver<strong>da</strong>de”, “justiça”, “aquilo que é correto”, era um<br />

conceito muito geral <strong>da</strong> “ordem” existente no mundo e nas relações sociais<br />

vigentes, comportando implicações morais diretas para ca<strong>da</strong> indivíduo. Ela<br />

poderia ser descrita como um contrato social obrigatório para to<strong>da</strong>s as partes,<br />

2<br />

que a ela aderiam na crença de que isso lhes seria benéfico.TPF FPT<br />

As “partes” de que fala a passagem acima compreendiam os homens, sem dúvi<strong>da</strong>, mas<br />

também o rei, os mortos, os deuses e o universo inteiro. A frase final mostra que o respeito a<br />

Maat era considerado como uma atitude que abria caminho para vantagens, benefícios: por<br />

esta razão, precisamente, é que a noção de Maat é perfeitamente compatível com uma <strong>ética</strong><br />

<strong>eudemônica</strong>, de que permite estabelecer os contornos. Sainte Fare Garnot lembrou em certa<br />

ocasião que o sentido primeiro de Maat é a “ordem” em si, o que é reto; outrossim, a palavra<br />

pode ser escrita com o signo <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de egípcia de extensão, o côvado, o que mostra, nela<br />

embuti<strong>da</strong>, a idéia de medi<strong>da</strong>; elemento que, por sua vez, conduz à moderação e a que se<br />

condenem os excessos. A ordem e o equilíbrio do mundo, do mundo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, seriam<br />

3<br />

unicamente extensões ou, mais exatamente, manifestações particulares do princípio geral.TPF FPT<br />

Maat era, sem dúvi<strong>da</strong>, um conceito conservador, destinado a preservar a ordem <strong>da</strong>s<br />

coisas e o ideal monárquico no antigo Egito. Daí que, quando os sábios ensinam a “dobrar a<br />

espinha” diante de um superior e a não o contrariar, os egiptólogos que considerem<br />

4<br />

“oportunistas” tais injunções estão a meu ver errados.TPF FPT O poder e a hierarquia, as<br />

desigual<strong>da</strong>des de status – inclusive no interior do pequeno grupo dominante – decorrem do rei<br />

e dos deuses; são, portanto, segundo aquele pensamento conservador, legítimos e é normal a<br />

expectativa de que sejam respeitados.<br />

2<br />

3<br />

TP PT Jaromír Málek. In the shadow of the pyramids. London: Verso, 1986, p. 88.<br />

TP PT J. Sainte Fare Garnot, intervenção no debate após a comunicação de A. Volten: Jean Leclant et alii, Op. cit., p.<br />

100.<br />

4<br />

TP PT Georges Posener. “Literature”. In: J. R. Harris (org.). The legacy of Egypt. Oxford: Clarendon Press, 1971, p.<br />

227.


20<br />

Pascal Vernus, confirmando as noções que acabamos de resumir, define assim a<br />

concepção <strong>ética</strong> tradicional dos antigos egípcios:<br />

1. O criador mantém-se retirado de sua criação, à qual concede alguma<br />

autonomia.<br />

2. Assim, sendo, a ordem social − um dos elementos <strong>da</strong> criação − possui<br />

princípios imanentes de auto-regulação que asseguram a retribuição <strong>da</strong>s ações<br />

humanas neste mundo ou no outro: o castigo para quem a transgride e a<br />

recompensa para quem a respeita.<br />

3. Abrigado, por assim dizer, por trás desta ordem que dele emana, o<br />

criador só em última instância age sobre o destino humano, seja entregando, seja<br />

recusando ao indivíduo a capaci<strong>da</strong>de de dela conhecer as leis, seja mediante<br />

intervenções diretas mas esporádicas e excepcionais.<br />

4. Por conseguinte, o êxito social pode ser considerado como a justa<br />

retribuição de quem respeita as leis <strong>da</strong> ordem estabeleci<strong>da</strong> e obedece à<br />

5<br />

instituição por meio <strong>da</strong> qual ela se manifesta.TPF FPT<br />

No interior desta concepção, a atuação correta segundo os princípios de Maat, isto é,<br />

<strong>da</strong> <strong>ética</strong> tradicional, transforma o egípcio – em especial quando membro dos grupos<br />

dominantes – em colaborador do rei, já que a este último cabia em última instância, como<br />

descendente em linha direta e sucessor do demiurgo criador, a preservação de Maat. Tal é a<br />

grande diferença em comparação com a <strong>ética</strong> grega <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia: segundo esta última, os<br />

ci<strong>da</strong>dãos de uma pólis eram, como comuni<strong>da</strong>de ou koinonía, co-responsáveis coletivamente<br />

pela boa marcha de sua ci<strong>da</strong>de, do que decorriam os diferentes elementos de sua<br />

responsabili<strong>da</strong>de moral. À parte os deuses, não existia instância alguma acima dessa<br />

comuni<strong>da</strong>de ci<strong>da</strong>dã. No Egito, que era uma monarquia considera<strong>da</strong> sagra<strong>da</strong>, o faraó, um deus<br />

encarnado que se sentava no trono, era o responsável primeiro pela ordem, tanto cósmica<br />

quanto social. Não havia a noção de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, mas os súditos – em especial os <strong>da</strong> pequena<br />

elite que governava o país, em teoria pessoas escolhi<strong>da</strong>s pelo rei –, num nível menor, deviam<br />

colaborar com o monarca na tarefa social e cósmica de assegurar a ordem do mundo. Eles o<br />

fariam aceitando três princípios básicos <strong>da</strong> conduta correta: (1) a noção de Maat, de que já<br />

tratamos; (2) a idéia de que homo proposuit, sed deus disponit; e (3) a afirmação e a vivência<br />

<strong>da</strong>s virtudes decorrentes <strong>da</strong> aceitação dos dois pontos precedentes: moderação, justiça,<br />

discrição, generosi<strong>da</strong>de, respeito pelos superiores (já que, como já vimos, a ordem social,<br />

sendo de criação divina, é legítima), tanto nas ativi<strong>da</strong>des públicas quanto nas ações priva<strong>da</strong>s.<br />

O nosso termo “pecado”, no sentido exato que lhe dá a teodicéia cristã, é de<br />

impossível tradução em egípcio antigo. Podemos achar muitos textos traduzidos do egípcio<br />

em que aparece a palavra “pecado”, mas trata-se em todos os casos de uma tradução errônea<br />

5<br />

TP PT Pascal<br />

Vernus. Affaires et scan<strong>da</strong>les sous les Ramsès. Paris: Pygmalion, 1993, p. 162.


21<br />

de termos egípcios. As palavras assim erroneamente traduzi<strong>da</strong>s, betá ou isefet, conduzem a<br />

um campo semântico bem diferente: crime, falta, transgressão, ofensa, erro, etc. Palavras<br />

etimologicamente próximas significam malfeitor, prejudicar, ferir, desobedecer, desafiar, ser<br />

6<br />

insolente, ser rebelde, transgredir.TPF FPT<br />

A ver<strong>da</strong>de é que também nosso termo “religião” se aplica mal a um conjunto pouco<br />

unificado de crenças e práticas como as do antigo Egito. Durante muito tempo, a identificação<br />

do mal à desordem que, mesmo sendo externa ao cosmo criado e organizado, ameaçava-o de<br />

fora, foi uma concepção central egípcia: concepção cósmica, que não deixava lugar a uma<br />

teodicéia que tornasse os seres humanos responsáveis pelo mal. Assim, as noções de uma<br />

humani<strong>da</strong>de decaí<strong>da</strong> e do “pecado” à maneira cristã nunca foram típicas do pensamento<br />

egípcio antigo no tocante a seus aspectos mais centrais.<br />

Se levarmos em conta tudo que foi visto até aqui, não é surpreendente encontrar, num<br />

dos mais antigos escritos sapienciais egípcios, um dos mais influentes e mais copiados ao<br />

longo dos séculos igualmente, uma injunção que vai claramente no sentido do Carpe diem:<br />

Segue teu desejo enquanto viveres! Não faças mais do que for ordenado.<br />

Não diminuas o tempo de seguir o desejo: aquilo que se opõe a este tempo é uma<br />

abominação para o espírito. Não desvies o tempo do dia mais do que o que for<br />

necessário para abastecer a casa. Uma vez adquiri<strong>da</strong> a riqueza, segue o desejo;<br />

pois, a riqueza de na<strong>da</strong> serve quando se é apático. (Os ensinamentos de<br />

Ptahhotep, máxima 11)<br />

Como se pode notar, temos aí uma injunção hedonista. Claro está que tal hedonismo<br />

precisa ser entendido em seu contexto e em seus limites, que são a noção de Maat e os<br />

costumes considerados convenientes pelos antigos egípcios.<br />

6<br />

TP PT Cf.<br />

R. O. Faulkner. A concise dictionary of Middle Egyptian. Oxford: Clarendon Press, 1976, pp. 85-86.


Resumo:<br />

Labor improbus et Orpheus nas Geórgicas de Vergílio<br />

Profa. Dra. Elaine Cristina Prado dos Santos<br />

Universi<strong>da</strong>de Presbiteriana Mackenzie<br />

O poeta Vergílio (Ia.C.), nas Geórgicas, ao cantar os diversos aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do<br />

campo como labor improbus, (Geo.I, 145-146), não por ser uma punição ou prova dos deuses,<br />

mas por ser um estimulante à luta obstina<strong>da</strong> do homem com a terra, convi<strong>da</strong>-nos a retornar à<br />

simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural, por meio <strong>da</strong> famosa apóstrofe dirigi<strong>da</strong> aos agricultores: O<br />

fortunatos nimium (Geo. II, 458). O objetivo desta conferência é apresentar a visão do labor,<br />

segundo o poeta latino, nas Geórgicas, bem como o IV canto, marcado pelo mito de Orfeu e<br />

pelo reino <strong>da</strong>s abelhas, que, com suas coletivas virtudes, omnibus una quies operum, labor<br />

omnibus unus (Geo.IV, 184), lembram o antigo modo italiano de vi<strong>da</strong> e um mundo social e<br />

político que o poeta levou em consideração.<br />

Vergílio, provavelmente, levou oito anos para escrever as Geórgicas, tendo começado<br />

em 37 a. C., e tendo terminado em 29 a.C. Pode-se dizer que a elaboração <strong>da</strong> obra foi lenta e<br />

teve lugar em um período particularmente repleto de eventos, convivendo, no poema, tópicos<br />

contrastantes, como no final do livro I, o horror pelo assassinato de César e a angústia <strong>da</strong>s<br />

guerras civis; e, no proêmio do livro III, a presença forte do espírito augustano.<br />

A idéia de escrever as Geórgicas, conforme Gentili (1977: 295), surgiu no momento<br />

<strong>da</strong>s devastações <strong>da</strong>s guerras civis e dos confiscos que tanto perturbaram a economia agrária <strong>da</strong><br />

Itália. Entretanto, o poema vergiliano não tem a aridez dos tratados de agricultura, pois o que<br />

domina, na obra, é uma visão do trabalho nos campos e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> plenamente em contato com a<br />

natureza. A exaltação do trabalho e <strong>da</strong> prece, In primis uenerare deos (Geo.I, 338), é um dos<br />

pilares filosóficos <strong>da</strong>s Geórgicas.<br />

As fontes utiliza<strong>da</strong>s por Vergílio são, sobretudo, gregas, porém há também as latinas.<br />

Entre as obras gregas, podem-se citar: os Trabalhos e os dias de Hesíodo, a Economia de<br />

Xenofonte, as Geórgicas de Nicandro de Colofon, os Fenômenos de Arato, o Hermes de<br />

Eratóstenes, como também se verifica uma influência de Aristóteles, de Demócrito e de<br />

Tucídides. Entre as obras latinas, citam-se: De Agricultura de Catão, Res rusticae de Varrão e<br />

De Rerum natura de Lucrécio. Os comentadores dizem que Vergílio consultou a enciclopédia<br />

agrícola do cartaginês Magão, obra famosa <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de, escrita em língua púnica, que<br />

depois foi traduzi<strong>da</strong> em grego e verti<strong>da</strong> para o latim por ordem do Senado.<br />

Segundo a tradição, Mecenas foi quem sugeriu o poema <strong>da</strong>s Geórgicas, cujo ideal<br />

responderia a um dos pontos do programa político instaurado por Augusto: o retorno à<br />

agricultura, pois Vergílio fala dos haud mollia iussa (Geo.III, 41), ou seja, <strong>da</strong>s ordens não<br />

fáceis de Mecenas, que foram interpreta<strong>da</strong>s por alguns como uma ordem expressa para que o<br />

poeta cumprisse o programa augustano. No entanto alguns críticos, como, Heyne, Genthe,<br />

Benoist julgaram esta explicação inverossímil. Segundo eles, o príncipe e seu ministro teriam<br />

sido muito ingênuos em acreditar que versos, mesmo belos, pudessem converter à agricultura<br />

uma socie<strong>da</strong>de que há muito tempo a tinha como enfado.<br />

Convém relatar o comentário feito por La Penna (1988: 71 - 72), ou seja, não era culpa<br />

nem erro pensar que houvesse alguma ver<strong>da</strong>de na afirmação de Vergílio sobre as solicitações<br />

22


de Mecenas para que o poeta tratasse <strong>da</strong> agricultura e que essas solicitações teriam se<br />

originado dos problemas <strong>da</strong> crise agrária e social na Itália, mas seria um erro pensar que a<br />

solicitação fosse sobre um poema didático que servisse de guia para os agricultores <strong>da</strong> Itália.<br />

Para Grimal (1992: 150), se houvesse duas Geórgicas, a primeira falaria <strong>da</strong>s plantas e<br />

<strong>da</strong>s árvores e a segun<strong>da</strong> tal qual a conhecemos, em quatro livros, seria uma sugestão de<br />

Mecenas, ou melhor, haud mollia iussa, para que Vergílio continuasse seu projeto,<br />

acrescentando a criação dos animais e o quarto canto com as abelhas, um exemplo de<br />

disciplina e de concórdia. Caso tenha <strong>da</strong>do Mecenas um conselho, isto é, uma sugestão, o<br />

poeta aceitou o convite, pois descobriu que amplificava seu poema com o II e IV cantos. Ao<br />

amplificar o poema, conseguiria conferir-lhe uma uni<strong>da</strong>de maior; permitindo, desta forma,<br />

uma gra<strong>da</strong>ção dos diferentes níveis hierarquizados de vi<strong>da</strong> em uma escala dos seres.<br />

Dos 2188 versos, nas Geórgicas, 700 são destinados à tarefa científica, enquanto os<br />

demais tratam dos argumentos, <strong>da</strong>s invocações, <strong>da</strong>s digressões, <strong>da</strong>s reflexões filosóficas, ou<br />

seja, Vergílio apresenta muitas digressões, com a preocupação de envolvê-las profun<strong>da</strong>mente<br />

na obra, a fim de que elas dêem uma expressão mais ampla e mais explícita dos motivos<br />

ideais.<br />

As Geórgicas representam, por excelência, o poema didático, e a arte vergiliana<br />

alcança perfeição. Pode-se observar uma rica arquitetura harmônica de esquematização <strong>da</strong><br />

obra, por meio dos cantos:<br />

LIVRO I : UCereaisU<br />

1 a 42: Proêmio.<br />

42 a 203: Trabalhos para o cultivo dos cereais.<br />

118 a 159: Digressão: a teodicéia do trabalho.<br />

204 a 350: Tempos dos trabalhos e Calendário.<br />

231 a 258: Digressão: a origem do Calendário.<br />

351 a 514: Prognósticos do tempo.<br />

424 a 514: Digressão: os prodígios seguintes ao assassinato de César.<br />

LIVRO II : UPlantasU<br />

1 a 8: Proêmio.<br />

9 a 258: Cultivo <strong>da</strong>s plantas em geral: varie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s plantas, dos trabalhos, dos terrenos.<br />

136 a 176: Digressão: os elogios à Itália.<br />

259 a 419: Cultivo <strong>da</strong>s Videiras.<br />

315 a 345: Digressão: os elogios à primavera.<br />

420 a 540: Cultivo de outras plantas de particular interesse: oliveira, macieira ...<br />

458 a 540: Digressão: os elogios à vi<strong>da</strong> agreste.<br />

LIVRO III: UAnimaisU<br />

1 a 48: Proêmio.<br />

49 a 283: Criação do Gado de Grande Porte.<br />

205 a 283: Digressão: o Amor.<br />

284 a 566: Criação do Gado de Pequeno Porte: cabras e ovelhas.<br />

470 a 566: Digressão: a peste no Nórico.<br />

LIVRO IV: UAbelhasU<br />

1 a 7: Proêmio<br />

23


8 a 280: Criação de Abelhas e sua Natureza.<br />

116 a 148: Digressão: o velho de Córico.<br />

281 a 558: Reprodução <strong>da</strong>s abelhas destruí<strong>da</strong>s pela peste.<br />

315 a 558: Digressão: o mito de Aristeu e de Orfeu.<br />

559 a 566: Final.<br />

Percebe-se que os dois primeiros livros apresentam três digressões: no livro I, a<br />

teodicéia do trabalho, a origem do calendário e os prodígios seguintes ao assassinato de César<br />

e, no livro II, os elogios à Itália, os elogios à primavera e os elogios à vi<strong>da</strong> agreste. Quanto aos<br />

dois últimos, apresentam uma estrutura de duas digressões: no livro III, o Amor e a peste no<br />

Nórico e no IV livro, o velho de Córico e o mito de Aristeu e de Orfeu. A extensão e o caráter<br />

dos proêmios unem claramente o livro I, versos 1 a 42, e o livro III, os versos 1 a 48.<br />

No proêmio do livro I, Vergílio invoca os deuses, faz referência aos deuses helênicos e<br />

a Otávio como a décima terceira divin<strong>da</strong>de. Os versos de 1 a 48 fazem o proêmio do livro III,<br />

onde Vergílio também honra divin<strong>da</strong>des com o propósito de indicar o escopo desse livro:<br />

tratar <strong>da</strong>s raças dos animais, <strong>da</strong>s artes de criação do gado. Os livros II e IV são iniciados por<br />

breves proêmios. As digressões que terminam os livros são as mais extensas e as mais<br />

significativas: no livro I, há os prodígios seguintes ao assassinato de César; no livro II, os<br />

elogios à vi<strong>da</strong> agreste; no livro III, a peste dos animais no Nórico e, no livro IV, o mito de<br />

Aristeu e de Orfeu.<br />

Lucrécio influenciou o pensamento de Vergílio e sua concepção de mundo, propondo<br />

uma linguagem, ao mesmo tempo didática e épica, pois Vergílio aplica a si mesmo uma <strong>da</strong>s<br />

mais orgulhosas e célebres declarações de Ênio, o Pai <strong>da</strong> epopéia romana:<br />

1<br />

“É necessárioTPF FPT tentar uma via pela qual eu também possa elevar-me<br />

2<br />

do chão e, vencedor, voar de boca em boca”.TPF FPT<br />

O poema vergiliano apresenta o pequeno camponês que cultiva a proprie<strong>da</strong>de com suas<br />

próprias mãos. Literariamente, entretanto, alcança não a classe dos pequenos lavradores, mas<br />

to<strong>da</strong> a elite culta, pois esta sim era capaz de ler a obra, compreendê-la e contribuir com uma<br />

provável renovação ideal e moral. Segundo Saint - Denis (1968: XIV), o elogio <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

campestre (Geo.II, 513ss) é um programa resumido de reparação econômica e moral, pois o<br />

campo era o refúgio <strong>da</strong>s virtudes tradicionais: frugali<strong>da</strong>de, pureza, pie<strong>da</strong>de. No entanto, a obra<br />

não tem um fim técnico e prático a ponto de abranger todos os tópicos <strong>da</strong> agricultura, uma vez<br />

que a poesia não reflete a reali<strong>da</strong>de crua e áspera, mas a interpreta de acordo com sua ver<strong>da</strong>de<br />

e não com a veraci<strong>da</strong>de do mundo real e concreto. Assim, o poeta dirá:<br />

“Eu não desejo abraçar to<strong>da</strong>s as coisas com os meus versos; não,<br />

3<br />

mesmo se eu tivesse cem línguas e cem bocas, uma voz de ferroTPF FPT”.<br />

1<br />

TP PT To<strong>da</strong>s as traduções do latim foram feitas por mim.<br />

2<br />

TP PT(Geo. III, 8-9) .....Temptan<strong>da</strong> uia est, qua me quoque possim<br />

TP<br />

3<br />

tollere humo uictorque uirum uolitare per ora.<br />

PT(Geo. II, 42-44) Non ego cuncta meis amplecti uersibus opto;<br />

non, mihi si linguae centum sint oraque centum,<br />

ferrea uox.<br />

24


No prólogo do I canto, Otávio é invocado como a décima terceira divin<strong>da</strong>de que um<br />

dia chegará a unir-se à série dos doze deuses. O poeta mostra um Otávio já divinizado ou<br />

quase para sê-lo: Tuque adeo, quem mox quae sint habitura deorum/ concilia (Geo.I, 24-25)<br />

“E tu,César, que em breve deves habitar as assembléias dos deuses”. No entanto, o canto I,<br />

que se inicia com um Otávio divinizado, termina com uma súplica a um Otávio que ain<strong>da</strong> não<br />

havia pacificado o mundo.<br />

Quanto à agricultura, esta representava o setor dominante <strong>da</strong> produção, ao longo <strong>da</strong><br />

história romana. No século II antes de Cristo, segundo Catão, em De agricultura, os homens<br />

do campo eram mais fortes e mais aptos para defender a pátria, porque estavam acostumados a<br />

suportar os rigores <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rústica. Na obra, o escritor pretende resumir sua própria<br />

experiência de bonus agricola bonusque colonus. É notável como Vergílio faz eco às palavras<br />

de Catão, ao dizer que os homens do campo são mais firmes e que podem defender a pátria,<br />

pois a força se concentra exatamente na terra.<br />

"Outrora os velhos Sabinos cultivaram esta vi<strong>da</strong>, assim cultivaram<br />

Remo e seu irmão; assim cresceu a brava Etrúria evidentemente e<br />

Roma se tornou a maravilha do mundo, e somente para si cercou com<br />

4<br />

um muro sete ci<strong>da</strong>delasTPF FPT”.<br />

Percebe-se que Vergílio faz eco tanto à obra de Catão quanto a Res rusticae de Varrão,<br />

quando diz ser a Itália a terra mais fecun<strong>da</strong> e melhor cultiva<strong>da</strong>. Varrão apresenta uma<br />

descrição <strong>da</strong> Itália como o país mais fértil e mais bem cultivado do mundo, graças a uma<br />

agricultura científica pratica<strong>da</strong> pelos nobres romanos. Ao enaltecer os campos, Vergílio<br />

proclama que a Itália é a terra, que a natureza fez mais fértil e mais bela do mundo, gloriosa<br />

por sua história.<br />

“Salve, grande mãe dos frutos, terra Satúrnia, grande mãe dos<br />

homensTPF<br />

5<br />

FPT”.<br />

Ao sau<strong>da</strong>r a magna parens, considera<strong>da</strong> terra Saturnia, o poeta revive a época <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de<br />

de ouro, quando Saturno reinava e os homens desconheciam as penas, as misérias, as velhices,<br />

todos os males, pois viviam alegres, sustentados pela abundância <strong>da</strong> terra. As Geórgicas<br />

confirmam o prestígio <strong>da</strong> Itália, segundo as reflexões de La Penna (1988: 74), como centro e<br />

guia do Império, como Saturnia tellus. Vergílio encerra o livro II com mais uma digressão: os<br />

elogios à vi<strong>da</strong> agreste, versos 458 a 540.<br />

TP<br />

TP<br />

TP<br />

4<br />

“Ó muito afortunados agricultores, se eles conhecessem os seus bens!<br />

Para eles, longe <strong>da</strong>s armas discor<strong>da</strong>ntes, a justíssima terra, dela<br />

6<br />

mesma derrama uma alimentação fácilTPF FPT”.<br />

PT(Geo. II, 532-535) Hanc olim ueteres uitam coluere Sabini,<br />

hanc Remus et frater; sic fortis Etruria creuit<br />

scilicet et rerum facta est pulcherrima Roma<br />

septemque una sibi muro circumdedit arces.<br />

PT(Geo. II, 173-174) Salue, magna parens frugum, Saturnia tellus,<br />

5<br />

6<br />

magna uirum:<br />

PT(Geo. II, 458-460) O fortunatos nimium, sua si bona norint,<br />

agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis,<br />

25


A Iustissima tellus dá frutos ao homem em troca do esforço que ele investe, uma vez<br />

que a terra se revela grandiosa e justa. Assim, Vergílio reconhece que a natureza é severa,<br />

porém justa, pois o campo é contraposto à ci<strong>da</strong>de de duas formas: a sede mais apta à<br />

Tranquillitas animi e o último reino <strong>da</strong> inocência e <strong>da</strong> justiça.<br />

Tanto Catão quanto Varrão escrevem, sob um ponto de vista utilitário, sem se<br />

preocuparem que a agricultura possa conter uma parcela de beleza. Tanto um quanto outro se<br />

dirigem, em seus tratados, ao proprietário opulento; Vergílio, porém, dirige-se ao agricultor<br />

que explorava ele próprio o seu domínio, mostrando que o trabalho rude dos campos é<br />

compensado pela natureza, pela felici<strong>da</strong>de tranqüila <strong>da</strong> família, pelo repouso do espírito.<br />

Enquanto Varrão, em Res rusticae, refere-se, brevemente, aos campesinos, qui segetes non<br />

tam latas habent (R.R.I, 29, 2), estes são exatamente os lavradores em quem pensa Vergílio ao<br />

escrever as Geórgicas. O poeta se dirige aos pequenos proprietários, tanto aos veteranos<br />

instalados recentemente em suas terras, quanto aos campesinos que sobreviveram às guerras<br />

civis. Fica explicitamente sintetizado o pensamento do poeta latino no famoso conselho:<br />

Lau<strong>da</strong>to ingentia rura: exiguum colito (Geo.II,412-413), isto é, “Louvem os domínios<br />

imensos, cultivem um pequeno”.<br />

Exemplifica-se, nas Geórgicas, um lavrador cui<strong>da</strong>ndo de sua própria proprie<strong>da</strong>de<br />

rústica: o ancião de Tarento que põe suas mãos na li<strong>da</strong> e leva à ci<strong>da</strong>de, em seu burrico, os<br />

produtos de seu trabalho: o senex Corycius, que tem orgulho por ter subjugado um solo<br />

ingrato; que se sente feliz por ter, à sua volta, a paisagem serena <strong>da</strong> Itália; contente por ser<br />

independente e ter alcançado a paz. Provavelmente, o poeta apresenta uma concepção de<br />

economia agrícola completamente primitiva, ou melhor, anterior a Varrão e a Catão.<br />

Pode-se fazer uma aproximação com conteúdo <strong>da</strong>s Geórgicas a uma frase de Cícero,<br />

ao fazer um elogio <strong>da</strong> agricultura, conforme Saint - Denis (1968: XX):<br />

“Não só as campinas, os prados, as vinhas e suas árvores são a<br />

alegria do campo, mas os jardins e os pomares e ain<strong>da</strong> os rebanhos<br />

7<br />

que pastam, os enxames de abelhas e a varie<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong>s as floresTPF FPT”.<br />

Embora para Cícero, as coisas do campo sejam fonte de alegria (res rusticae laetae<br />

sunt), e para Vergílio, sejam objeto de glória, marcado, graças à poesia, constata-se evidente<br />

analogia entre as palavras atribuí<strong>da</strong>s a Catão e o sentimento que anima as Geórgicas. Nessa<br />

definição de Cato Maior, já se encontram as quatro divisões <strong>da</strong> agricultura, segui<strong>da</strong>s na<br />

mesma ordem apresenta<strong>da</strong> por Vergílio: segetes et prata (Geo.I), uinea, arbusta, horti et<br />

pomaria (Geo. II), pecudum pastus (Geo. III ), apium examina et flores (Geo. IV). Evidenciase<br />

que Vergílio, nos cinco primeiros versos, anuncia a ordenação do plano de seu poema em<br />

quatro livros, apresentando o tema de ca<strong>da</strong> um deles: a terra, as árvores, os animais e as<br />

abelhas. Como se constata a seguir:<br />

“Agora vou cantar o que faz as colheitas férteis, com que astro<br />

convém arar a terra, Mecenas, e unir as videiras aos olmeiros; que<br />

fundit humo facilem uictum iustissima tellus.<br />

7<br />

TP PT(Cato Maior, XV, 54) nec uero segetibus solum et pratis et uineis et arbustis res rusticae laetae sunt, sed hortis<br />

etiam et pomariis , tum pecudum pastu, apium examinibus, florum omnium uarietate .<br />

26


cui<strong>da</strong>dos exigem os bois, que conduta (seguir) para se manter um<br />

8<br />

rebanho, que grande experiência para as parcas abelhasTPF FPT”.<br />

No canto I, Vergílio já apresenta uma visão do trabalho, continuando uma tradição que<br />

remontava aos tempos longínquos de Roma. A imagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rústica demonstra<strong>da</strong> por ele<br />

recai no labor improbus que vence as dificul<strong>da</strong>des impostas por Júpiter na natureza. Somente<br />

o trabalho é capaz de vencer todos os obstáculos, por ser um estimulante à luta obstina<strong>da</strong> com<br />

a terra: Labor omnia uicit improbus (Geo.I, 145-146).<br />

Na décima Bucólica, Galo exclama Omnia uincit amor; agora, nas Geórgicas, Vergílio<br />

irá responder: Labor omnia uicit, pois para o poeta, o trabalho é o enriquecimento contínuo <strong>da</strong><br />

alma humana. Dos versos 43 a 49 do canto I, o poeta apresenta, em um quadro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural, a<br />

primeira cena com o tema do trabalho, quando nasce a primavera, uere nouo (Geo. I, 43). O<br />

trabalho é intenso, pois o degelo começou, gelidus canis cum montibus umor liquitur. Essa<br />

lavoura, que foi descrita por Vergílio, apresenta um trabalho pesado: a charrua tinha de cravar<br />

profun<strong>da</strong>mente, aratro depresso (Geo.I, 45); os bois gemiam, pois aplicavam todo o seu<br />

esforço, taurus aratro ingemere (Geo. I, 45); e a relha, ao roçar com força na terra, tornava-se<br />

poli<strong>da</strong> e reluzente, et sulco adtritus splendescere uomer (Geo. I, 46).<br />

"Na nova primavera, quando a géli<strong>da</strong> umi<strong>da</strong>de se derrete pelas<br />

montanhas brancas e a gleba desagrega<strong>da</strong> se amolece com o Zéfiro, já<br />

para mim que o touro comece a gemer com o arado afun<strong>da</strong>do, e a<br />

9<br />

relha poli<strong>da</strong> pelo sulco comece a brilharTPF FPT".<br />

Nos versos 118 a 159 do livro I, o poeta, por meio de uma digressão, apresenta uma<br />

teodicéia do trabalho, ao proclamar que, antes do reinado de Júpiter, ante Iouem (Geo. I, 125)<br />

e durante o domínio de Saturno, os homens se contentavam com o que o sol e as chuvas lhes<br />

<strong>da</strong>vam, com o que a terra espontaneamente produzia (Geo.I, 125-127). Segundo Ruy Mayer<br />

(1948: 199), Vergílio ocupa-se <strong>da</strong> sorte do homem quando ruiu o império de Saturno, e Júpiter<br />

instituiu uma ordem nova. Ninguém, antes de Júpiter, desbravara um campo: ante Iouem nulli<br />

subigebant arua coloni (Geo. I, 125), agora a lei os mede cravando-lhes marcos, horrorizandoos:<br />

ne signare quidem aut partiri limite campum / fas erat (Geo. I, 126-127). A terra sem<br />

violência <strong>da</strong>va tudo por si, no império de Saturno, sem na<strong>da</strong> lhes pedir: in medium<br />

quaerebant; ipsaque tellus / omnia liberius, nullo poscente, ferebat (Geo.I, 127-128).<br />

Vergílio expressa a vi<strong>da</strong> do campo como labor improbus, uma luta áspera e obstina<strong>da</strong><br />

contra as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> natureza - labor omnia uicit improbus. O poeta <strong>da</strong>s Geórgicas<br />

acredita, como Hesíodo e Arato, em uma providência que governa a natureza e a história.<br />

TP<br />

TP<br />

8<br />

9<br />

PT(Geo. I, 1-5) Quid faciat laetas segetes, quo sidere terram<br />

uertere, Maecenas, ulmisque adiungere uitis<br />

conueniat, quae cura boum, qui cultus habendo<br />

sit pecori, apibus quanta experientia parcis,<br />

hinc canere incipiam.<br />

PT(Geo. I, 43-46) Vere nouo , gelidus canis cum montibus umor<br />

liquitur et Zephyro putris se glaeba resoluit ,<br />

depresso incipiat iam tum mihi taurus aratro<br />

ingemere, et sulco adtritus splendescere uomer.<br />

27


Segundo La Penna (1988: 77), Vergílio vai buscar, em Demócrito e em Epicuro, a teoria de<br />

uma história primitiva: o homem vivia antes na i<strong>da</strong>de áurea graças aos frutos espontâneos <strong>da</strong><br />

terra, sem fadiga; no entanto, nesse estágio as quali<strong>da</strong>des do homem são abafa<strong>da</strong>s. Assim,<br />

Vergílio mostra que Júpiter aguça-as semeando as dificul<strong>da</strong>des na natureza. O homem <strong>da</strong> era<br />

de Saturno, conforme La Penna (1988: 77), está submerso em um torpor, em uma espécie de<br />

pesado Veternus de tal forma que essa felici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de áurea não pode ser concebi<strong>da</strong> como<br />

um bem supremo, mas como um grave entorpecimento.<br />

“O próprio pai não quis que fosse fácil o caminho de cultivar, e por<br />

primeiro moveu os campos pela arte, aguçando os corações mortais<br />

pelos cui<strong>da</strong>dos, nem tolerou que seu reino se entorpecesse em pesado<br />

marasmoTPF<br />

10<br />

FPT”.<br />

O próprio Júpiter criou tantas dificul<strong>da</strong>des para a agricultura que o homem foi obrigado<br />

a trabalhar para prover-se dos bens necessários e sobreviver. Conforme Vergílio, no começo<br />

houve uma i<strong>da</strong>de de ouro, um período de inocência, porém o homem, sob o domínio de<br />

Júpiter, foi atirado a um mundo tão hostil que o único caminho foi o trabalho obstinado, capaz<br />

de vencer to<strong>da</strong>s as coisas: Labor omnia uicit improbus. Assim, o deus Júpiter, sacudindo as<br />

folhas, fez cair delas o mel e foi quem retirou dos homens o fogo: mellaque decussit follis<br />

ignemque remouit (Geo.I, 131). Os antigos supunham que o mel caísse do céu como um<br />

orvalho e ficasse preso às folhas <strong>da</strong>s árvores, donde as abelhas o recolhiam. Nesse passo,<br />

como relata Mayer (1948: 199), dá-se a entender que, durante o reinado de Saturno, o mel era<br />

tão abun<strong>da</strong>nte que podia ser colhido pelos homens. Segundo o mito grego, o fogo foi roubado<br />

por Prometeu; para Vergílio, nas Geórgicas, o fogo foi retirado - abstrusum, Geo.I, 135 - dos<br />

homens e escondido por Júpiter, para que o homem se esforçasse, por meio do trabalho, e<br />

redescobrisse, por sua conquista, o fogo.<br />

No primeiro livro, a visão do trabalho, assim diz La Penna (1988: 76), vai além <strong>da</strong><br />

Arcádia, por meio de Hesíodo, em os Trabalhos e os dias, em que se revela o valor do<br />

trabalho, pois ele é, de fato, uma necessi<strong>da</strong>de dura para o homem. Aquele que trabalha recebe<br />

sempre bênçãos maiores, pois o homem deve ganhar o pão com seu suor.<br />

O poema de Hesíodo tem como finali<strong>da</strong>de mostrar a necessi<strong>da</strong>de do trabalho e <strong>da</strong><br />

justiça; ensinar os trabalhos <strong>da</strong> terra, apontando as épocas em que é conveniente realizá-los. O<br />

trabalho, para Hesíodo, é penoso, to<strong>da</strong>via é o único caminho para fugir <strong>da</strong> miséria. Pode-se<br />

apreciar esse sentido, por meio <strong>da</strong> tradução feita por Mary de Camargo Neves Lafer, dos<br />

Trabalhos e os dias:<br />

TP<br />

10<br />

"Adquirir a miséria, mesmo que seja em abundância<br />

é fácil; plana é a rota e perto ela reside.<br />

Mas diante <strong>da</strong> excelência, suor puseram os deuses<br />

imortais, longa e íngreme é a via até ela" (v. 286 - 290).<br />

PT(Geo. I, 121-124) ........................................ Pater ipse colendi<br />

haud facilem esse uiam uoluit primusque per artem<br />

mouit agros, curis acuens mortalia cor<strong>da</strong>,<br />

nec torpere graui passus sua regna ueterno.<br />

28


"Mas tu, lembrando sempre do nosso conselho<br />

UtrabalhaU, ó Perses, divina progênie para que a fome<br />

te deteste e te queira a bem coroa<strong>da</strong> e veneran<strong>da</strong><br />

Deméter, enchendo-te de alimentos o celeiro" (v. 298-301).<br />

Hesíodo acredita no trabalho e na justiça; para ele, o trabalho tem um papel<br />

apaziguador e moralizador, capaz de <strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> um o suficiente, a felici<strong>da</strong>de. Em outros mitos<br />

como em Hesíodo, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de originária constitui a punição de uma culpa<br />

provoca<strong>da</strong> pelo homem; em Vergílio, o próprio Pai (Pater ipse) deseja eliminar o Torpor, que<br />

parece ser um mal (Geo.I, 124). Na ver<strong>da</strong>de, ele não quer punir uma culpa, pois instiga o<br />

homem a trabalhar para sobreviver, para ter suas próprias coisas. Para Hesíodo, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

i<strong>da</strong>de áurea é punição por culpa do homem. Os homens, nessa i<strong>da</strong>de, viviam como deuses,<br />

nem a velhice lhes pesava, todos os bens eram para eles, pois a terra <strong>da</strong>va o fruto abun<strong>da</strong>nte.<br />

"Primeiro de ouro a raça dos homens mortais<br />

criaram os imortais, que mantêm olímpicas mora<strong>da</strong>s.<br />

Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;<br />

como deuses viviam, tendo despreocupado coração,<br />

apartados, longe de penas e misérias; nem temível<br />

velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,<br />

alegravam-se em festins, os males todos afastados,<br />

morriam como por sono tomados; todos os bens eram<br />

para eles; espontânea a terra nutriz fruto<br />

trazia abun<strong>da</strong>nte e generoso e eles, contentes,<br />

tranquilos nutriam-se de seus pródigos bens" (v. 109-119).<br />

O trabalho, para Hesíodo, é a base para a justiça entre os homens; e tanto a defesa<br />

quanto a reiteração <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de do trabalho se fazem por motivos ligados à sobrevivência<br />

material. Zeus escondia o que era vital para os homens, porém quando o filho de Jápeto<br />

roubou-lhe o fogo, uma praga foi, a ele e a todos os homens, lança<strong>da</strong> por Zeus, <strong>da</strong>ndo aos<br />

homens a mulher como presente, ou melhor, como castigo.<br />

"......................................................................Fala<br />

o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou<br />

Pandora, porque todos os que têm olímpia mora<strong>da</strong><br />

deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão" (v. 79-82 ).<br />

Até então, os homens não precisavam trabalhar para viver, apenas viviam<br />

harmoniosamente com os deuses; com esse presente divino, porém, surgiu a necessi<strong>da</strong>de do<br />

trabalho. Pandora é, ao mesmo tempo, bem e causa <strong>da</strong> desgraça para os homens. É com o mito<br />

de Prometeu e Pandora que Hesíodo justifica a necessi<strong>da</strong>de do trabalho, segundo Lafer (1991:<br />

64), como uma <strong>da</strong>s contingências humanas, surgi<strong>da</strong> devido à resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> por Zeus a<br />

Prometeu, pois este o enganara. Ao esconder o fogo, o homem precisa trabalhar para subsistir.<br />

Assim, para Hesíodo, é preciso honrar os deuses:<br />

"Mas tu, disto afasta inteiramente teu ânimo insensato,<br />

29


se podes, oferece sacrifícios aos deuses imortais<br />

sacra e imacula<strong>da</strong>mente e queima pernis luzidios” (v. 335-337).<br />

Vergílio faz uma recomen<strong>da</strong>ção similar a de Hesíodo - In primis uenerare deos (Geo.I,<br />

338).<br />

Afirma-se, deste modo, que para Hesíodo, o trabalho é o caminho para o homem<br />

(v.381-382); para Vergílio, o homem, na era de Saturno, vivia sem fadiga em um estágio em<br />

que suas quali<strong>da</strong>des eram sufoca<strong>da</strong>s, não conseguindo demonstrá-las, por isso Júpiter tira o<br />

homem desse torpor, aguçando-o por meio de dificul<strong>da</strong>des na natureza.<br />

La Penna (1988: 76) lembra que, segundo a visão epicurista lucreciana, o homem vem<br />

ao mundo em meio de uma natureza hostil, não mol<strong>da</strong><strong>da</strong> segundo a providência divina. O<br />

homem assim luta sozinho, inventa as artes, organiza-se com seus semelhantes na socie<strong>da</strong>de.<br />

Vergílio não aceitou completamente a interpretação epicurista sobre o mundo, porém<br />

acreditava, como Hesíodo, em uma providência que governava a natureza e a história humana.<br />

Como Júpiter semeou as dificul<strong>da</strong>des na natureza, o homem foi obrigado a prover seus bens<br />

necessários, trabalhando. Conseqüentemente as artes nasceram e floresceram.<br />

“A fim de que a necessi<strong>da</strong>de, experimentando, produzisse pouco a<br />

11<br />

pouco as várias artesTPF<br />

FPT”.<br />

Desta forma, a imagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rústica apresenta<strong>da</strong> por Vergílio recai sobre seus<br />

trabalhos e suas dores. Por meio do trabalho, o homem é capaz de superar to<strong>da</strong>s as causas de<br />

dificul<strong>da</strong>des impostas pelos deuses e pelo destino. Vergílio representa a condição real <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de de uma forma análoga a de Lucrécio, pois o homem é atirado a um mundo hostil;<br />

to<strong>da</strong>via, caso ele descanse por um só momento, ele é vencido. No entanto, Vergílio não diz<br />

que o trabalho é uma punição ou uma prova dos deuses, mas orienta seus leitores que levem a<br />

vi<strong>da</strong> a sério, aceitem as misérias necessárias, esforcem-se por melhorar o que há à sua volta.<br />

“O trabalho obstinado vence to<strong>da</strong>s as coisas, e a necessi<strong>da</strong>de que<br />

12<br />

pressiona nas dificul<strong>da</strong>desTPF<br />

FPT”.<br />

Conforme o poeta, labor improbus vence to<strong>da</strong>s as coisas; <strong>da</strong> mesma forma, a<br />

necessi<strong>da</strong>de urgente, as coisas duras. Para Vergílio, tanto o trabalho – labor - quanto a<br />

necessi<strong>da</strong>de – egestas - são um estimulante à luta obstina<strong>da</strong> do homem com a natureza, com a<br />

terra. O poeta <strong>da</strong>s Geórgicas sabe que é possível conceber uma felici<strong>da</strong>de como a dos animais,<br />

ofereci<strong>da</strong> pela ordem do mundo, sem esforço de sua parte, pois houve no tempo <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de de<br />

ouro, sob o reinado de Saturno, um momento em que os agricultores não subjugavam os<br />

campos com a lavoura (Geo.I,125). Entretanto, veio Júpiter, com trabalhos indispensáveis, não<br />

permitindo que seu império adormecesse em denso torpor (Geo. I, 124); por isso deu ao<br />

espírito dos mortais muitas preocupações.<br />

No IV canto, Vergílio apresenta, em um quadro agrícola, a apicultura, a qual já<br />

figurava no livro III de Res rusticae de Varrão. Assim o duro trabalho dos campos é suavizado<br />

11<br />

TP<br />

12<br />

TP<br />

PT(Geo. I, 133) ut uarias usus meditando extunderet artis.<br />

PT (Geo.I, 145-146) .....................................labor omnia uicit<br />

improbus, et duris urgens in rebus egestas.( Geo . I , 145 - 146 )<br />

30


pelo reino <strong>da</strong>s abelhas, revelando que, ao poema do labor improbus, está subjacente o antigo<br />

sonho do Éden satúrnio. Vergílio inicia o quarto canto com uma invocação a Mecenas, o<br />

grande cultor <strong>da</strong>s Letras, com um propósito delineado, ou seja, tratar dos dons celestiais do<br />

aéreo mel (Geo . IV, 1 - 2).<br />

As abelhas dão exemplo de disciplina e de concórdia que pode servir de modelo aos<br />

contemporâneos do poeta, pois praticam to<strong>da</strong>s as virtudes, tais como: ardor no trabalho,<br />

heroísmo para defender seu rei e conhecem o valor <strong>da</strong> glória. Metade do IV livro é consagra<strong>da</strong><br />

às abelhas, a outra pertence à história de Aristeu e ao mito de Orfeu. Este relato ocupa, no<br />

canto IV <strong>da</strong>s Geórgicas, 241 versos dos 565 do canto inteiro, ou seja, cerca de 43 % .<br />

A abelha se torna, no IV livro, a personagem principal do trabalho que transforma a<br />

natureza. Pode-se vislumbrar sua socie<strong>da</strong>de como um modelo utópico <strong>da</strong>quela que Augusto<br />

almejava construir, pois a socie<strong>da</strong>de delas parece a Vergílio uma classe de ci<strong>da</strong>dãos perfeitos,<br />

que procura coincidir com a reali<strong>da</strong>de do regime augustano. Essa socie<strong>da</strong>de, apresenta<strong>da</strong> pelo<br />

poeta, é fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre princípios fun<strong>da</strong>mentais: a concórdia, o trabalho e o sacrifício.<br />

Princípios que deveriam ser prezados por um ver<strong>da</strong>deiro ci<strong>da</strong>dão romano.<br />

Filhas prediletas de Júpiter, as abelhas, provavelmente por motivos de arte e de vi<strong>da</strong>,<br />

despertam admiração: Admiran<strong>da</strong> tibi leuium spectacula rerum (Geo. IV, 3), pois suas<br />

grandezas, seus costumes, suas inclinações e suas lutas possuem o mais vivo interesse para a<br />

vi<strong>da</strong> interior e para a história do homem.<br />

Para os ideais do poeta, nesse estágio mais elevado e hierarquizado de vi<strong>da</strong>, as abelhas<br />

representam a perfeição de uma socie<strong>da</strong>de tão disciplina<strong>da</strong> que oferece um exemplo de<br />

monarquia que pode ter sido inspirado pelo deus Júpiter. É notável um perfeito senso de<br />

disciplina e serie<strong>da</strong>de do trabalho, pois ca<strong>da</strong> qual tem sua própria função:<br />

“O repouso dos trabalhos é o mesmo para to<strong>da</strong>s. O trabalho é o<br />

mesmo para to<strong>da</strong>s. De manhã se precipitam <strong>da</strong>s portas; não há, em<br />

parte alguma demora; novamente, quando o entardecer as concita a<br />

saírem, enfim, do pasto para os campos; então, retornam a casa e<br />

13<br />

restauram as forçasTPF<br />

FPT”.<br />

Os antigos tinham noções errôneas acerca <strong>da</strong>s abelhas, pensavam que elas nasciam<br />

espontaneamente ou, como narram Vergílio e Varrão, <strong>da</strong>s entranhas dos touros imolados em<br />

honra dos deuses. No poema vergiliano, elas servem ao rei e aos pequenos ci<strong>da</strong>dãos de tal<br />

forma que a socie<strong>da</strong>de romana é revela<strong>da</strong> pelo termo Quirites empregado pelo poeta (Geo. IV,<br />

200 - 201). Na Antigüi<strong>da</strong>de, as abelhas conheciam que havia, na colméia, um indivíduo único,<br />

maior que outros, a que chamavam rei, pois não conheciam a função <strong>da</strong> abelha rainha. O rei<br />

imperava sobre todos os seus alados súditos: Rege incolumi mens omnibus una est (Geo. IV,<br />

212) – “enquanto o rei está incólume, to<strong>da</strong>s têm uma só vontade”. Há exemplos de heroísmo e<br />

de sacrifício por seu rei, em torno do qual elas se aglomeram (Geo. IV, 216 - 218). Entretanto,<br />

segundo o poeta, podem existir a discórdia, a violência bélica, barulho e confusão, gerando<br />

tristeza que só pode ser aplaca<strong>da</strong> na descrição de duas varie<strong>da</strong>des de reis <strong>da</strong>s abelhas. Quando<br />

esses dois chefes são chamados ao combate, conforme o poeta, apenas um poderá reinar, tem<br />

TP<br />

13<br />

PT(Geo.IV, 184-187) Omnibus una quies operum , labor omnibus unus ;<br />

mane ruont portis; nusquam mora; rursus easdem<br />

uesper ubi e pastu tandem decedere campis<br />

admonuit, tum tecta petunt, tum corpora curant;<br />

31


de ser o melhor. Esse quadro <strong>da</strong> luta entre os dois enxames de abelhas, envolvendo dois reis<br />

rivais, simboliza a batalha trava<strong>da</strong> em Ácio, no I a.C., entre Otávio e António (Geo. IV, 88 -<br />

94).<br />

Não existe, no mundo <strong>da</strong>s abelhas, a força destruidora do Amor, to<strong>da</strong>via o mesmo não<br />

se pode dizer <strong>da</strong> Morte, as abelhas têm uma vi<strong>da</strong> breve, mas sua raça é imortal como a dos<br />

deuses. A peste pode destruir as colméias, mas as abelhas podem ser reproduzi<strong>da</strong>s por um<br />

processo que Aristeu aprendera, a Bugonia - at genus immortale manet (Geo. IV, 208), “mas a<br />

raça permanece imortal”, ou seja, um conceito de geração espontânea, pois elas podem nascer<br />

<strong>da</strong> carcaça de um animal imolado.<br />

O mel era, entre os antigos, o sustento celeste, a pura alimentação dos deuses. Desta<br />

forma, Vergílio o tratou de aéreo mel: aerii mellis caelestia dona (Geo. I, 1), pois segundo<br />

antiga tradição, o mel caía do céu com o orvalho sobre as flores e as plantas, e as abelhas o<br />

recolhiam <strong>da</strong>li (Arist., Hist. Anim . V , 22 , 4 ; Plínio, N.H., XI , 12 , 30 ; Verg. Buc. 4 , 30 ;<br />

Georg. I, 131), (apud Riccomagno, Leone. Georgiche, Libro Quarto, Firenze, Vallecchi<br />

Editore, 1953: 21).<br />

Afirma-se que a organização <strong>da</strong>s abelhas foi um modelo utópico, ou melhor, uma<br />

tendência para fazer coincidir a utopia com a reali<strong>da</strong>de do regime de Augusto. Verifica-se a<br />

intenção, segundo Gentili (1977: 296), de fazer do mundo <strong>da</strong>s abelhas uma alegoria de perfeita<br />

socie<strong>da</strong>de romana, por meio do termo com que Vergílio designava os filhotes paruos Quirites<br />

(Geo. IV, 200 - 202).<br />

A abelha, na Grécia, era considera<strong>da</strong> um animal sacerdotal de tal forma que as próprias<br />

sacerdotisas de Elêusis e de Éfeso se chamavam abelhas. Por parecer que morriam no inverno<br />

e ressurgiam na primavera, as abelhas se apresentam diversas vezes como símbolo de morte e<br />

de ressurreição (Deméter, Perséfone). Na ver<strong>da</strong>de, apenas desapareciam no inverno, pois não<br />

saíam de suas colméias. Os gregos representaram a abelha por Melissa, que, segundo Brandão<br />

(1991: 102), é um derivado de (méli), mel, abelha. Assim, o vocábulo designa igualmente<br />

certas sacerdotisas e, em sentido figurado, poeta.<br />

Por vezes, a abelha foi identifica<strong>da</strong> com Deméter na religião grega, em que podia<br />

simbolizar a alma desci<strong>da</strong> aos infernos; <strong>da</strong> mesma forma, pode simbolizar ain<strong>da</strong> a eloquência,<br />

a poesia e a inteligência. A vi<strong>da</strong>, a organização do trabalho, a vitória sobre o amor e sobre o<br />

destino, sua elevação moral, a realização dos ideais arcaicos, enfim, não pode ser humano,<br />

porém divino, segundo Vergílio, pois as abelhas têm uma parcela <strong>da</strong> divina inteligência, <strong>da</strong>s<br />

emanações celestes: esse apibus partem diuinae mentis (Geo. IV, 220).<br />

A ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s abelhas oferece um exemplo de monarquia inspirado pelo próprio Júpiter,<br />

pois o motivo, que anima esses pequenos animais, é a glória de gerar o mel: generandi gloria<br />

mellis! (Geo. IV, 205). Segundo Grimal (1992: 106), essa glória lembra o sentimento de<br />

dignitas, o motor <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política para Mecenas. Elas são virtuosas e disciplina<strong>da</strong>s, servindo<br />

de modelo aos contemporâneos de Vergílio.<br />

Elas são infatigáveis, pois trabalham constantemente, transformando a natureza (Geo.<br />

IV, 158-159) e (Geo.IV, 184-188), de tal forma que suas virtudes lembram os velhos costumes<br />

romanos, mores antiqui. Assim, as abelhas vergilianas, com suas coletivas virtudes, omnibus<br />

una quies operum, labor omnibus unos (Geo. IV, 184 ), seu patriotismo, abnegação e devoção<br />

a seu rei, provavelmente, se referem ao caráter do velho romano.<br />

O poeta ilustra a apicultura com o mito de Orfeu e Eurídice emoldurado pelo de<br />

Aristeu. Inseri<strong>da</strong> na história de Aristeu, está a tragédia de Orfeu, nos versos 453 a 527. Pelo<br />

mito, observa-se a desventura do amor, demonstrando a impotência do homem diante do<br />

destino. O apicultor Aristeu é apontado como a causa <strong>da</strong> morte <strong>da</strong> esposa de Orfeu (Geo. IV<br />

32


458-459), que, ao tentar violentá-la, foi pica<strong>da</strong>, em sua fuga, por uma serpente. E como<br />

castigo, Aristeu perdeu suas abelhas. O músico e cantor, Orfeu, desesperado, desceu aos<br />

Infernos para trazer a esposa de volta.<br />

O episódio <strong>da</strong> desci<strong>da</strong> de Orfeu ao mundo dos mortos revela, em um sentido clássico,<br />

uma reflexão sobre a morte e a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tradição multissecular, que atribuía à música e<br />

ao canto poderes mágicos que transcendiam a vontade dos próprios deuses. Orfeu, no epílio,<br />

não é o portador e o revelador de mistérios. Em sua história trágica (Geo. IV, 453 - 527), ele é<br />

o homem sem sorte e doente de amor. Reina, em sua tragédia, uma situação lírica, projetando<br />

o próprio inferno. Ao relatar sua história de amor e morte, ele luta em vão contra o destino.<br />

Para Orfeu, o amor é a razão essencial de sua vi<strong>da</strong> como a fideli<strong>da</strong>de à sua ama<strong>da</strong>, tornando-o<br />

um herói humano. A própria natureza ressoa um eco dominado por um canto triste e insistente:<br />

“Ele te cantava, doce esposa, sozinho consigo mesmo na praia, ele te<br />

cantava quando o dia estava se aproximando e quando estava<br />

partindoTPF<br />

14<br />

FPT”.<br />

As sau<strong>da</strong>des de Eurídice levaram o filho <strong>da</strong> Musa Calíope ao outro mundo. Fiando-se<br />

<strong>da</strong> sua lira, enveredou pela estra<strong>da</strong> sombria que conduz ao reino dos mortos. Com sua divina<br />

voz, encantou o mundo ctônico, pois a lira comoveu Caronte, que largou o barco e seguiu o<br />

cantor; Cérbero emudeceu suas três goelas abertas (Geo. IV, 471-484); os tormentos eternos<br />

ficaram, por um instante, imobilizados diante <strong>da</strong> maravilhosa voz de Orfeu (Geo. IV, 481-<br />

484). Com o poder do canto, maravilhou o mundo infernal, comovendo-o, a ro<strong>da</strong> de Ixião<br />

parou de girar, o rochedo de Sísifo deixou de rolar, Tântalo esqueceu a fome e a sede e as<br />

Danaides deixaram o seu eterno trabalho: encher os tonéis sem fundo (Geo. IV , 481 - 484 ).<br />

Comovidos com sua voz, os deuses, Plutão e Prosérpina, concor<strong>da</strong>ram em devolver-lhe<br />

a esposa, entretanto uma condição foi imposta: ele iria à frente e ela lhe acompanharia os<br />

passos. O herói consegue reaver sua Eurídice, porém ao olhar para trás, perde-a para todo o<br />

sempre, pois não cumprira a determinação dos deuses e o destino foi cruel para os amantes:<br />

“Eis que os cruéis destinos me chamam novamente para trás e o sono<br />

15<br />

fecha meus olhos indecisos”TPF<br />

FPT.<br />

Eurídice é leva<strong>da</strong>, rodea<strong>da</strong> por uma imensa noite, não pertencendo mais ao mundo de<br />

Orfeu : non tua (Geo. IV, 498). Assim ele a perde para todo o sempre, procurando-a, em vão,<br />

nas sombras, querendo dizer-lhe muitas coisas. Entretanto o barqueiro não permitiu que ele<br />

atravessasse o rio infernal. O cantor in<strong>da</strong>ga: Quo fletu Manis, quae numina uoce moueret?<br />

(Geo. IV, 505), “Com qual choro moveria os Manes? Com qual voz moveria os deuses?”<br />

Diante de sua condição imutável, enquanto homem, impotente para lutar contra a<br />

morte, abandona-se a um lamento musical e amoroso. Como o rouxinol Filomela lamenta-se à<br />

sombra de um choupo, queixando-se dos filhotes perdidos, que um duro lavrador retirou-os do<br />

ninho, Orfeu lamenta a mulher perdi<strong>da</strong>:<br />

TP<br />

TP<br />

14<br />

15<br />

PT(Geo. IV, 465 - 466) te, dulcis coniunx, te solo in litore secum<br />

te ueniente die, te decedente canebat.<br />

PT (Geo. IV, 495-496) ........................En iterum crudelia retro<br />

fata uocant conditque natantia lumina somnus.<br />

33


“Tal qual um rouxinol que, à sombra de um choupo, se queixa dos<br />

16<br />

filhos perdidosTPF<br />

FPT”.<br />

Ao perder seu amor, o canto de Orfeu se difunde com grande eco pelo mundo. Assim<br />

seu sofrimento é marcado por motivos <strong>da</strong> tragédia: o destino e o amor, de tal forma que an<strong>da</strong>rá<br />

à procura dos lugares mais solitários e mais frios, viverá como um selvagem, negará qualquer<br />

outro amor e gritará sempre seu canto de dor (Geo. IV, 507- 510). Inconsolável, passou a<br />

repelir to<strong>da</strong>s as mulheres <strong>da</strong> Trácia, as Mênades, que se sentiram despreza<strong>da</strong>s por tal<br />

fideli<strong>da</strong>de à esposa, mataram-no e esquartejaram-no e lançaram-lhe os restos e a cabeça no rio<br />

Hebro. Ao rolar a cabeça, sua boca proferiu ain<strong>da</strong> o nome de Eurídice (Geo. IV, 526-527) e as<br />

margens do rio repercutiram em forma de eco: Eurídice, Eurídice (Geo.IV, 525- 527).<br />

O canto, por sua milagrosa potência, conseguiu vencer, ao menos uma vez, a Morte.<br />

No entanto, em uma segun<strong>da</strong> vez, o poeta não consegue reaver a ama<strong>da</strong> Eurídice, pois o<br />

destino e a morte são implacáveis. Percebe-se, neste IV canto, a desventura do amor, a<br />

impotência humana contra o cruel destino. Vergílio exprime sua pie<strong>da</strong>de, a pie<strong>da</strong>de que os<br />

deuses não conseguem ter: ignoscen<strong>da</strong> quidem, scirent si ignoscere Manes (Geo.IV, 489).<br />

Orfeu demonstra a impotência do homem diante <strong>da</strong> inexorabili<strong>da</strong>de do Fatum. O canto tem<br />

poder mágico e miraculoso, que consegue vencer a própria morte, pois é sempre eficaz; no<br />

entanto, a per<strong>da</strong>, pela segun<strong>da</strong> vez <strong>da</strong> ama<strong>da</strong>, aconteceu não pela impotência do canto e sim<br />

pela dementia causa<strong>da</strong> pelo próprio amor: cum subita incautum dementia cepit amantem (Geo.<br />

IV, 488), “quando uma súbita demência apoderou-se do imprudente amante” (Geo. IV, 488).<br />

Nas Geórgicas, Orfeu e as abelhas estão ligados pela simbologia de sobrevivência após<br />

a morte. Os antigos pensavam que elas nasciam espontaneamente <strong>da</strong>s entranhas dos touros<br />

imolados em honra dos deuses (Geo. IV, 281-285) de tal forma que Vergílio declara genus<br />

immortale manet (Geo.IV, 208). Provavelmente Vergílio incluiu a apicultura em um quadro<br />

agrícola para concluir a escala<strong>da</strong> hierárquica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e para ter acesso a uma forma de poesia<br />

mitológica, no espírito do alexandrinismo: o relato de Aristeu e de Orfeu. A abelha é símbolo<br />

<strong>da</strong> ressurreição; o mel, <strong>da</strong> força vital e <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de. Melissa, para os gregos, era a<br />

representação de abelha que, em sentido figurado, significa poeta.<br />

No IV livro, com as abelhas alia<strong>da</strong>s a Orfeu, Vergílio exprime alusivamente a<br />

celebração <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia, que supera a própria morte, pois permanece viva para a<br />

eterni<strong>da</strong>de. Pela loucura <strong>da</strong> dementia causa<strong>da</strong> pelo amor, não há perdão para os amantes. E o<br />

herói morre por fideli<strong>da</strong>de à Eurídice (Geo. IV, 520-522). Por outro lado, Aristeu cumpre ritos<br />

expiatórios para acalmar as ninfas amigas de Eurídice, Orfeu e a própria Eurídice ... e o<br />

milagre acontece para o apicultor, pois<br />

“Formam-se imensas nuvens, e elas voam juntamente para o topo de<br />

17<br />

uma árvore e pendem dos flexíveis ramos como cachos de uvaTPF<br />

FPT”.<br />

Há o renascimento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, as virtuosas abelhas voltam para sempre a fim de que<br />

possam praticar sua coletivi<strong>da</strong>de virtuosa. O artista e seu amor morrem, no entanto a canção<br />

sobrevive ao próprio cantor.<br />

TP<br />

TP<br />

16<br />

17<br />

PT(Geo. IV, 511-512) Qualis populea maerens Philomela sub umbra<br />

amissos queritur fetus ,<br />

PT(Geo. IV, 557-558) immensasque trahi nubes iamque arbore summa<br />

confluere et lentis uuam demittere ramis .<br />

34


Ain<strong>da</strong> na morte, a voz de Orfeu proclama seu amor e sua canção enche o ar. Quando o<br />

poeta Vergílio narra como o pastor Aristeu perde suas abelhas e se lamenta com a sua mãe<br />

Cirene, um novo mundo artístico é apresentado: a fantasia. Tudo é dirigido para acentuar o<br />

fascínio do maravilhoso mundo mítico. Vergílio, ao final do IV livro <strong>da</strong>s Geórgicas, ao<br />

celebrar a imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia, descreve a morte de Orfeu provoca<strong>da</strong> pelas Bacantes,<br />

quando lhe jogam o corpo despe<strong>da</strong>çado no rio Hebro, sua cabeça rola inerte, porém sua voz,<br />

vin<strong>da</strong> de uma língua já fria, chama Eurídice: a própria natureza ressoa o nome <strong>da</strong> ninfa.<br />

“A própria voz e a fria língua, enquanto a alma fugia, chamava<br />

Eurídice! Ah! Triste Eurídice! As margens ecoavam Eurídice ao longo<br />

18<br />

de todo rioTPF<br />

FPT”.<br />

19<br />

Tanto Vinícius quanto CamusTPF<br />

FPT, em uma nova linguagem, reatualizam o mito nas<br />

condições históricas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira, mostrando a existência de mitos nos tempos<br />

modernos, que são transformados e humanizados. Em Orfeu <strong>da</strong> Conceição, os meninos<br />

cantam as músicas de Orfeu. O violão mesmo despe<strong>da</strong>çado retrata sua música límpi<strong>da</strong>, pois<br />

conforme Vinícius,<br />

Juntaram-se a mulher, a Morte e a Lua<br />

Para matar Orfeu, com tanta sorte<br />

Que mataram Orfeu, a alma <strong>da</strong> rua<br />

Orfeu, o generoso, Orfeu,o forte .<br />

Porém as três não sabem de uma coisa:<br />

Para matar Orfeu não basta a morte.<br />

Tudo morre que nasce e que viveu<br />

Só não morre no mundo a voz de Orfeu. ( Terceiro Ato )<br />

“Só não morre no mundo a voz de Orfeu”, a voz do poeta continuará clamando pela<br />

eterni<strong>da</strong>de e fará o Sol se levantar todos os dias com a música, com a poesia e com o amor.<br />

Como as abelhas renascem <strong>da</strong> carcaça de um boi morto, a poesia sobrevive à própria morte.<br />

Assim o mito de Orfeu tem to<strong>da</strong> uma significação simbólica: a celebração <strong>da</strong><br />

imortali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia. Orfeu é o próprio símbolo <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de. Como já foi dito, nesta<br />

conferência, a abelha é símbolo <strong>da</strong> ressurreição; o mel <strong>da</strong> força vital e <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de. Assim<br />

Orfeu, por meio do poder de seu canto, de sua eficácia, vence a própria morte. Se, em uma<br />

segun<strong>da</strong> vez, perde Eurídice para todo o sempre, é pela Dementia, pela paixão avassaladora<br />

que está dentro do ser humano. E como homem, está preso nas garras do Destino, pela<br />

impotência do homem diante <strong>da</strong> inexorabili<strong>da</strong>de do Fatum.<br />

Entretanto como as abelhas renascem, sua raça é imortal, genus immortale manet<br />

(Geo. IV, 208), elas renascem <strong>da</strong> própria morte. O poeta morre, mas o seu canto e a sua voz,<br />

TP<br />

TP<br />

18<br />

19<br />

PT(Geo. IV, 525-527) ............Eurydicen uox ipsa et frigi<strong>da</strong> lingua<br />

ah! miseram Eurydicen anima fugiente uocabat :<br />

Eurydicen toto referebant flumine ripae.<br />

PT A<br />

partir dos conceitos <strong>da</strong> paródia formulados por Hutcheon, pode-se comparar o mito de Orfeu, nas Geórgicas<br />

de Vergílio (I a.C.), com a peça Orfeu <strong>da</strong> Conceição (1956) de Vinícius de Moraes e com o filme Orfeu Negro<br />

(1958) de Marcel Camus.<br />

35


indestrutíveis, permanecem imortais. Orfeu não morre, sua alma preexiste, ele se liberta do<br />

cárcere do corpo, para alçar vôo rumo à eterni<strong>da</strong>de.<br />

O mito é uma história sagra<strong>da</strong> e, segundo Eliade (1991: 12), uma história ver<strong>da</strong>deira,<br />

porque se refere a reali<strong>da</strong>des. O mito ensina ao homem as histórias primordiais e tudo o que se<br />

relaciona com sua existência. Assim, ao conhecer os mitos, aprende-se o segredo <strong>da</strong> origem<br />

<strong>da</strong>s coisas. Como Orfeu, o homem procura sempre um meio para desven<strong>da</strong>r os segredos <strong>da</strong><br />

Morte e como atravessar a parede que separa os dois mundos: o dos mortos e o dos vivos.<br />

Orfeu deixa um caminho: o seu canto poético. O homem existe no Mundo, organiza-se em<br />

socie<strong>da</strong>de e é obrigado a trabalhar para viver e trabalha sob determina<strong>da</strong>s regras, no entanto<br />

esta existência não é infinita, ele é um ser mortal. To<strong>da</strong>via, o que realiza, o que executa<br />

permanece, fica imortalizado, como o canto de Orfeu, para a posteri<strong>da</strong>de, pois a humani<strong>da</strong>de<br />

continua sempre viva na figura do homem: genus immortale.<br />

Em suma, Vergílio ao cantar aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> agrícola: as sementes, as plantas, as<br />

árvores e até a criação de animais e por fim a criação de abelhas tão organiza<strong>da</strong> e disciplina<strong>da</strong>,<br />

demonstrou que a conquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> ataraxia existe graças ao trabalho atento, labor<br />

improbus omnia uicit, que não permite ao espírito humano adormecer em pesado torpor.<br />

Dentro dessa arquitetura magistral <strong>da</strong>s Geórgicas, o poeta nos convidou a retornar à<br />

simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural, expressa pela apóstrofe aos agricultores: O fortunatos nimium.<br />

Desenhou-se a esperança de um retorno à i<strong>da</strong>de de ouro, que só poderia ser realizado em<br />

contato com a vi<strong>da</strong> rústica.<br />

Afirma-se: o homem está constantemente à procura <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, do Éden perdido,<br />

porém está preso à inexorabili<strong>da</strong>de do Destino. Como uma abelha, o homem deve trabalhar<br />

organiza<strong>da</strong>mente e disciplina<strong>da</strong>mente, e com a doçura do mel, conquistar seu espaço, pois não<br />

vive em torpor: cria e embriaga-se de vi<strong>da</strong>. Como Orfeu, sua voz há de permanecer, de ficar e,<br />

como as abelhas, sua raça há de permanecer imortal: genus immortale . E como as crianças, no<br />

filme Orfeu Negro, de Camus, que cantam para o Sol se levantar, movido pelas notas<br />

musicais, Orfeu continua vivo.<br />

Afirma-se, portanto, que enquanto houver no mundo um homem, uma mulher que se<br />

amam, haverá sempre Orfeu e Eurídice que se amarão e farão o Sol se levantar todos os dias<br />

com sua música, com a poesia e com o amor que permanecem para a eterni<strong>da</strong>de.<br />

BIBLIOGRAFIA:<br />

BRANDÃO, J. de Souza. Mitologia grega. 4 ed. Petópolis: Vozes, 1991, v. 2.<br />

. Mitologia grega. 7 ed. Petópolis: Vozes, 1997, v. 3.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Coord. Sussekind, Trad.<br />

Vera <strong>da</strong> Costa e Silva et alii. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.<br />

ELIADE, Mircea. Mito e reali<strong>da</strong>de. Trad. Póla Civelli. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.<br />

U .U O<br />

sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. 5. ed. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2001.<br />

GENTILI, B.et alii. Storia della Letteratura Latina. Editori Laterza, 1977.<br />

GRIMAL, P. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. Tradução de Ivone Castilho<br />

Benedetti.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

36


HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:<br />

Biblioteca Pólen, Iluminuras, 1991.<br />

HUTCHEON, Lin<strong>da</strong>. Uma teoria <strong>da</strong> paródia. Ensinamento <strong>da</strong>s formas de arte do século XX.<br />

Lisboa: Edições 70, 1985.<br />

LUCRETIUS. De la nature. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Société d’édition<br />

Les Belles Lettres, 1971.<br />

MAYER, Ruy. As Geórgicas de Vergílio. Coleção "Terra e Homem ", Livraria Sá <strong>da</strong> Costa,<br />

1948.<br />

RICCOMAGNO, Leone. Georgiche, Libro Quarto, Firenze: Vallecchi Editore, 1953.<br />

VINÍCIUS DE MORAES. Teatro em versos. Org. Carlos Augusto Calil. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1995.<br />

VIRGILE. Georgiques. Texte établi et traduit par E. Saint – Denis. Paris: Société d’Édition,<br />

Les Belles Lettres, 1968.<br />

VIRGILIO. Georgiche. Introduzione di Antonio La Penna, traduzione di Luca Canali, note al<br />

testo di Riccardo Scarcia. Secon<strong>da</strong> edizione, Milano: Rizzoli Libri S.p.A., 1988.<br />

37


RESUMO<br />

MESAS REDONDAS<br />

A atuação de Afrodite no ‘paidikòs éros’<br />

GLÓRIA BRAGA ONELLEY<br />

Doutora em Língua e Literatura grega (UFRJ) - UFF<br />

Propõe-se o presente trabalho analisar fragmentos consagrados ao paidikòs<br />

éros e insertos no livro II dos Theognidea, buscando mostrar o horizonte de atuação<br />

<strong>da</strong> deusa do amor e <strong>da</strong> sedução, Afrodite, em virtude de ser ela a presidir ao amor do<br />

erastés pelo erômenos.<br />

Palavras-chave: Corpus Theognideum; elegia; Safo; Afrodite.<br />

Intitulado A atuação de Afrodite no ‘paidikòs éros’, o presente trabalho versa<br />

sobre a função de Afrodite, deusa do amor e <strong>da</strong> sedução, em fragmentos amorosopederásticos<br />

constantes do livro II dos Theognidea, coletânea de elegias atribuí<strong>da</strong>, não<br />

1<br />

exclusivamente, ao poeta Teógnis de MégaraTPF FPT, cuja plenitude literária, akmē, pode ser<br />

situa<strong>da</strong> na segun<strong>da</strong> metade do século VI a.C.TPF<br />

É essa coletânea de elegias composta de 1389 versos, distribuídos em um livro<br />

de 1230 versos, de temática e extensão bastante varia<strong>da</strong>s, muitos dos quais privilegiam<br />

como tema a vi<strong>da</strong> política <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, os conflitos de classe, as lutas civis, a amizade,<br />

entre outros tópoi <strong>da</strong> poesia grega arcaica, como a brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> juventude e a<br />

aproximação <strong>da</strong> morte, a fragili<strong>da</strong>de dos homens diante do poder dos deuses, a<br />

exortação a beber modera<strong>da</strong>mente, o carpe diem, só para citar alguns. O livro I contém,<br />

pois, em sua maioria, elegias de conteúdo político, social, moral e parenético. Esses<br />

1230 versos são seguidos de um conjunto menor de fragmentos de temática amorosa,<br />

sobretudo amoroso-pederásticos, conhecido como livro II TPF<br />

2<br />

FPT<br />

3<br />

FPT. Considerado<br />

autêntico<br />

pelos partidários <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coletânea e apócrifo pelos separatistas, entre os quais se<br />

inclui a maioria dos helenistas modernos, este apêndice erótico reúne, em tese,<br />

declarações amorosas a um jovem, em geral anônimo – designado pelo vocativo ô paî,<br />

‘ó jovem’ –, reflexões pessimistas, ameaças e reprovações do homem mais velho, o<br />

erastēs, ‘amante’, diante do comportamento leviano e inconstante do erómenos, ‘o<br />

amado’.<br />

4<br />

Inicia-se o referido livro de elegias amorosas com uma prece hímnica TPF FPT ao deus<br />

do amor, Éros, responsável por manifestações irracionais (maníai, ‘loucuras’) que se<br />

1<br />

TP PT Dos 1389 versos que compõem o Corpus Theognideum somente uma pequena parte é atribuí<strong>da</strong>, pela<br />

maioria dos helenistas modernos, ao poeta elegíaco Teógnis de Mégara. Posicionamentos vários e<br />

divergentes têm sido <strong>da</strong>dos a esta complexa <strong>questão</strong> <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong>de, quer pelos partidários <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de e<br />

autentici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coletânea, quer pela maioria <strong>da</strong> crítica moderna, defensora de ser o Corpus um acervo de<br />

composições po<strong>ética</strong>s procedente de varia<strong>da</strong>s mãos. Para a discussão <strong>da</strong> controverti<strong>da</strong> <strong>questão</strong> <strong>da</strong><br />

autentici<strong>da</strong>de, citam-se os estudos de Carrière e Van der Valk, indicados na bibliografia.<br />

2<br />

TP PT Três são as possíveis <strong>da</strong>tas acerca <strong>da</strong> época em que teria vivido o poeta Teógnis: a primeira, defendi<strong>da</strong><br />

pelo helenista inglês Martin West (1974: 68-70), situa a akmē do poeta na segun<strong>da</strong> metade do século<br />

VII a. C.; a segun<strong>da</strong> e a terceira <strong>da</strong>tam Teógnis dos séculos VI e V a.C., respectivamente, segundo a<br />

interpretação distinta <strong>da</strong><strong>da</strong> pelos estudiosos ao termo gegonōs <strong>da</strong> Su<strong>da</strong>, empregado ora na acepção de<br />

‘nascido’, ora na de ‘florescido’.<br />

3<br />

TP PT No manuscrito A, <strong>da</strong>tado do século X e o único a revelar a existência do livro de elegias amorosas, os<br />

versos 1231 – 1389 do Corpus Theognideum figuram com o título de Elegeíon B.<br />

4<br />

TP PT Três são os elementos estruturais de uma prece: a invocação propriamente dita, a narração de fatos<br />

passados de autoria <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de (anamnese) e a prece ou súplica. Dos versos 1231-1234 está ausente o<br />

último elemento, pois neles não está expresso um verbo apropriado, como ‘suplico’, ‘imploro’. Os<br />

38


apoderam do espírito humano, trazendo-lhe funestas conseqüências, inclusive a morte.<br />

Os dísticos 1231 – 1234 dos Theognidea, abaixo transcritos e traduzidos, resumem o<br />

que Eric Dodds (1966: 64) designou manía ‘loucura’ erótica:<br />

Cruel Eros, as Manias, tendo-se apoderado de ti, te amamentaram;<br />

por tua causa, pereceu a ci<strong>da</strong>de de Ílion,<br />

pereceu também o grande Teseu, filho de Egeu, e, ain<strong>da</strong>, o valoroso Ájax,<br />

filho de Oileu, por causa de teu orgulho insensato.<br />

Expressa-se nos referidos versos o amor como completa loucura, desvario e, por<br />

conseguinte, aniquilamento, já que devido ao éros – loucura, cujas raízes se perdem<br />

no passado mitológico <strong>da</strong> Grécia, heróis foram ao encontro <strong>da</strong> morte. Revela essa prece<br />

ao deus que, em virtude do amor desenfreado incitado por Éros, sucumbiram a ci<strong>da</strong>dela<br />

de Ílion, por causa do amor desmedido de Páris por Helena, o herói Teseu, pela tentativa<br />

de aju<strong>da</strong>r Pirítoo a raptar Perséfone – uma ameaça direta às fronteiras entre os vivos e os<br />

mortos – e também Ájax, ao que parece pela violação <strong>da</strong> sacerdotisa Cassandra, no<br />

templo de Palas Atena, em Tróia TPF<br />

5<br />

FPT. Tendo,<br />

39<br />

pois, inspirado os mortais a transgredir a<br />

ordem divina, Éros, é considerado skhlétie, ‘cruel’ (v. 1231), não somente pelo fato de<br />

causar sofrimento às suas vítimas, mas também por impeli-las a cometer atos cruéis e<br />

impiedosos semelhantes aos seus próprios. De fato, como bem observou Maximus Vetta<br />

(1972: 40), o ponto comum dos três exemplos míticos evocados é a asébeia,<br />

‘impie<strong>da</strong>de’, inspira<strong>da</strong> por Éros e depois puni<strong>da</strong> com a morte. Note-se, ain<strong>da</strong>, que a<br />

relação éros – loucura é assinala<strong>da</strong> pela imagem do aleitamento <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de pelas<br />

Maníai, causadoras <strong>da</strong>s catástrofes amorosas.<br />

É interessante lembrar que os paradigmas míticos destacados para acentuar o<br />

ânimo cruel de Éros se referem a amores por mulheres e não for efebos. Portanto, a<br />

invocação ao deus do Amor não deve constituir o prólogo do livro II dos Theognidea,<br />

como pretenderam os defensores <strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> coletânea, nem se referir, como<br />

conjecturou Dover (1994: 87) ‘tanto ao eros homossexual quanto ao heterossexual’, em<br />

virtude de o tom e o conteúdo <strong>da</strong> invocação e <strong>da</strong> súplica não se harmonizarem com a<br />

temática amorosa delinea<strong>da</strong> neste apêndice erótico.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, no contexto amoroso-pederástico do Corpus Theognideum, o<br />

paidikòs éros é atribuição exclusiva <strong>da</strong> deusa Afrodite, designa<strong>da</strong> por três outros<br />

nomes: Kyprogenēs, Kythéreia e Kýpris, respectivamente, Ciprogênia ou nasci<strong>da</strong> em<br />

6<br />

Chipre, Citeréia e Cípris TPF FPT.<br />

motivos convencionais são assinalados pela invocação ao deus Éros, acresci<strong>da</strong> de um qualificativo<br />

adequado à própria divin<strong>da</strong>de e ao contexto, e pela anamnese, ou seja, pela alusão a acontecimentos<br />

passados que ressaltam o lamentável destino de certos heróis, como os que combateram em Tróia, Teseu<br />

e Ájax.<br />

5<br />

TP PT Para<br />

6<br />

as versões míticas acerca <strong>da</strong> morte de Teseu e <strong>da</strong> de Ájax, ver Maximus Vetta (1972: 39-42).<br />

TP PT Para os nomes Ciprogênia e Citeréia apresenta-se em Teogonia (vv. 195-199) uma explicação<br />

etiológica:<br />

... Afrodite,<br />

[deusa nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> espuma, e Citeréia coroa<strong>da</strong> de flores]<br />

Chamam-na deuses e homens, porque na espuma<br />

foi cria<strong>da</strong>, mas Citeréia porque alcançou Citera.<br />

[e Ciprogênia, porque nasceu em Chipre, de on<strong>da</strong>s encrespa<strong>da</strong>s.]<br />

A importância do nome Kýpris, derivado de Kýpros, ‘Chipre’, consiste na ligação entre a deusa e<br />

o local de seu nascimento.


E é como divin<strong>da</strong>de regente do paidikòs éros que o erastēs ‘amante’, ao<br />

sofrer as inquietudes do amor, chama-a pelo nome para libertá-lo dos sofrimentos que<br />

acometem seu coração e são motivados pela presença de éros:<br />

40<br />

Ó Ciprogênia, afasta-me dos sofrimentos, dissipa as preocupações<br />

que devoram meu coração e fá-lo voltar de novo à alegria;<br />

faz cessar as funestas inquietudes, e concede-me, depois de ter satisfeito com<br />

alegre coração<br />

a pujança <strong>da</strong> juventude, as obras <strong>da</strong> temperança.<br />

(Theognidea, vv. 1323-1326)<br />

7<br />

Como se infere dos dísticos citados TPF FPT, ao solicitar a aju<strong>da</strong> divina, o amante o faz<br />

de modo idêntico à voz do fragmento <strong>da</strong> poetisa Safo, conhecido como ‘Hino a<br />

Afrodite’, no qual é também a deusa invoca<strong>da</strong> para pôr termo às ‘penosas inquietações’,<br />

khalépan ... merímnan (v.26), que subjugam o sujeito lírico, causando-lhe <strong>da</strong>nos na<br />

mente e no corpo, expressos por ásaisi, ‘angústias’ e oníaisi, ‘náuseas’ (v.3). Deste<br />

modo, a súplica inicial do ‘Hino a Afrodite’ – ‘não me domes com angústias e náuseas,<br />

/ ó veneran<strong>da</strong>, o coração’ (vv.3-4) – é reitera<strong>da</strong> pelo pedido veemente <strong>da</strong> suplicante que<br />

implora à deusa do amor a libertação <strong>da</strong> batalha amorosa, possível de ser venci<strong>da</strong><br />

somente com a aju<strong>da</strong> divina:<br />

Vem até mim também agora, e livra-me <strong>da</strong>s penosas<br />

inquietações, cumpre o que meu<br />

coração deseja, cumpre, e tu mesma<br />

sê na luta minha alia<strong>da</strong>.<br />

(Fragm. 1, vv. 25-28 In: GREEK LYRIC I)<br />

O poder invencível de Afrodite transparece também na linguagem eróticoamorosa<br />

formula<strong>da</strong> na prece final do Corpus Theognideum (vv. 1386-1389), na qual se<br />

confere à deusa uma atuação ardilosa e dominadora, assinala<strong>da</strong> não só pelo epíteto<br />

dolóploke TPF<br />

8<br />

FPT, ‘tecelã<br />

de astúcias, astuciosa’ (v.1386) – em cuja primeira parte, dolo-,<br />

está implícita a idéia de dolo, engano, astúcia e, na segun<strong>da</strong>, ploke-, deriva<strong>da</strong> de<br />

pléko, a de tecer e, metaforicamente, a de tramar –, mas também pela forma verbal<br />

<strong>da</strong>mnâis ‘submetes pela força’, ‘domas’, ‘dominas’ (v.1388), a qual indica, à<br />

9<br />

semelhança de Hesíodo (Teogonia, vv.120-122 TPF FPT), a violência com a qual o amor<br />

No chamado livro II dos Theognidea, um genuíno código de amor efébico, o nome Ciprogênia é<br />

mais empregado e ocorre nos versos 1304, 1308, 1323, 1332, 1382, 1383, 1385 e 1386. Citeréia é, depois<br />

de Ciprogênia, o mais usual, figurando nos versos 1339 e 1386. Quanto ao nome Cípris, há apenas uma<br />

ocorrência, no verso 1320.<br />

7<br />

TP PT É possível estabelecer um diálogo entre a elegia referi<strong>da</strong> (vv. 1323-1326) e os dísticos 1337-1340, cujo<br />

tema é também a libertação do amor por intercessão <strong>da</strong> deusa Afrodite/Citeréia:<br />

Não amo mais um jovem, expulsei os penosos sofrimentos,<br />

e, feliz, escapei aos terríveis tormentos,<br />

fui libertado do desejo por Citeréia, de formosa coroa;<br />

para ti, ó jovem, não há de minha parte reconhecimento algum.<br />

8<br />

TP PT Dolóploke,’tecelã de astúcias, astuciosa’, epíteto consagrado à deusa Afrodite, tem sua primeira<br />

ocorrência no fragmento 1 (v.2) <strong>da</strong> poetisa Safo, ‘Hino a Afrodite’ (In: GREEK LYRIC I).<br />

9<br />

Hesíodo (Teogonia, vv. 120-122), Eros aparece entre as mais antigas divin<strong>da</strong>des como uma força<br />

externa que submete deuses e homens:<br />

(...)<br />

e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,<br />

que amolece os membros e, no peito de todos os homens e de todos os<br />

TP PT Em


domina o ânimo. Assim, sendo a Ciprogênia aquela que urde enganos, logo ‘tecelã de<br />

astúcias’ triunfa a deusa sobre a prudência dos homens, envolvendo-os com seu amor<br />

arrebatador, o seu ‘dom’, o seu dôron (v.1387). É, pois, esse dom, concebido em outros<br />

versos do Corpus ora como ‘trabalhos difíceis de Cípris’ (v.1308), ora como ‘penosos<br />

sofrimentos’ (v.1384), que atormenta de paixão a mente do amante:<br />

Ó Ciprogênia, astuciosa deusa de Citera, que coisa magnífica<br />

Zeus, para te honrar, te deu para que possuísses este dom?<br />

Dominas o espírito prudente dos homens, e ninguém<br />

é tão forte e tão sábio que saiba evitar-te.<br />

(Teognidea, vv.1386-1389)<br />

É interessante ressaltar que o hexâmetro final <strong>da</strong> cita<strong>da</strong> elegia, ‘dominas o<br />

espírito prudente dos homens’ (v.1388), dialoga com um passo <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> em que a<br />

astuciosa Hera, desejando seduzir seu marido Zeus para afastá-lo <strong>da</strong> guerra entre aqueus<br />

e troianos, toma por empréstimo o cinto bor<strong>da</strong>do de Afrodite, no qual se encontram<br />

todos os seus poderes e encantos, enganadores do coração dos mais sensatos:<br />

Disse, e do peito tirou um cinto bor<strong>da</strong>do de varia<strong>da</strong>s cores;<br />

ali se lhe produzem todos os encantos,<br />

ali há amor, desejo e conversação<br />

enganadora, que arrebata a mente mesmo a dos mais sábios.<br />

(Ilía<strong>da</strong>, XIV, vv.214-217)<br />

Faz-se mister ressaltar que, se nos citados versos 1323-1326 e 1386-1389, a<br />

súplica é indireta, assumindo a forma de uma prece hímnica a Afrodite, em outras<br />

elegias amorosas a súplica é destina<strong>da</strong> à pessoa ama<strong>da</strong>, ao erómenos. Assim, na relação<br />

erótica masculina, os mais veementes apelos do amante, para convencer o jovem a<br />

entregar-se a seu amor, situam-se, às vezes, na esfera do efêmero, tendo em vista<br />

lembrar ao ente amado que a beleza física, simboliza<strong>da</strong> pelos dons de Afrodite, também<br />

é passageira. Logo, ao perder a flor <strong>da</strong> juventude, o jovem não mais será objeto de<br />

ostentação e de conquista, ao contrário, será ele a sofrer os penosos trabalhos impostos<br />

pela deusa do amor, já que, mais tarde, assumirá o papel de erastēs. Este tom de<br />

advertência constitui a tônica de três elegias compreendi<strong>da</strong>s entre os versos 1299-1304,<br />

1305-1310 e 1319-1322 do Corpus Theognideum, nos quais a juventude determina a<br />

fase de atuação amorosa do efebo, marca<strong>da</strong> pela beleza efêmera, atributo <strong>da</strong> esfera de<br />

Afrodite. Ei-los:<br />

Ó jovem, até quando me escaparás? Porque eu te desejo,<br />

te persigo; que me seja possível conseguir o fim<br />

de tua cólera; com teu coração libertino e altivo,<br />

foges, tendo o feitio cruel de um milhafre.<br />

Vai, espera e dá-me tua gratidão: não mais<br />

terás, por muito tempo, o dom <strong>da</strong> Afrodite, coroa<strong>da</strong> de violetas.<br />

(vv.1299-1304)<br />

41<br />

Tendo percebido em teu coração que a flor <strong>da</strong> encantadora juventude<br />

é mais rápi<strong>da</strong><br />

do que a corri<strong>da</strong> do estádio, depois de <strong>da</strong>r-te conta disso, livra-me<br />

do laço, e que jamais tu sejas violentado, ó mais forte dos jovens,<br />

domina a mente e a prudente vontade.<br />

deuses,


e tenhas de suportar os trabalhos difíceis de Cípris,<br />

como eu sofro agora a este ponto por ti. E tu evita essas coisas,<br />

e que a mal<strong>da</strong>de não te vença como vence um jovem ignorante.<br />

(vv. 1305-1310)<br />

42<br />

Ó jovem, já que a deusa Cípris te deu uma graça encantadora,<br />

e todos os jovens se preocupam com a tua beleza,<br />

escuta minhas palavras e guar<strong>da</strong>-as em consideração a mim, em teu<br />

coração,<br />

sabendo que o amor para o homem se torna penoso de suportar.<br />

(vv.1319-1322)<br />

Note-se que a brevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> juventude, lugar-comum nos poetas arcaicos, é<br />

emprega<strong>da</strong> nas duas primeiras elegias menciona<strong>da</strong>s como um argumento para<br />

sensibilizar e persuadir o adolescente a ceder às solicitações do amante, que o adverte a<br />

entregar-se aos prazeres de Cípris, enquanto possuir a beleza e o vigor <strong>da</strong> fugaz<br />

juventude. Recurso análogo é apresentado nos dísticos 1327-1334 em que o amante<br />

rejeitado lembra ao jovem que um dia, depois de passar à condição de erastēs, será ele<br />

a suplicar o carinho do ente amado, e será Afrodite quem irá impor-lhe a retaliação:<br />

Ó jovem, enquanto tiveres a face lisa, jamais deixarei de te elogiar,<br />

nem mesmo se fosse meu destino morrer.<br />

Para ti que te entregas, é ain<strong>da</strong> honroso, mas para mim que te amo<br />

não é vergonhoso<br />

suplicar. Mas te imploro, por nossos pais,<br />

tem pie<strong>da</strong>de de mim, ó jovem < >, <strong>da</strong>ndo-me gratidão se é que<br />

algum dia tu também<br />

terás, se desejares, o dom <strong>da</strong> Ciprogênia, coroa<strong>da</strong> de violetas,<br />

e irás para junto de um outro jovem; mas te permita a deusa<br />

receber em troca as mesmas palavras.<br />

É digna de nota a semelhança do dístico final <strong>da</strong> elegia com a penúltima estrofe<br />

do citado fragmento <strong>da</strong> poetisa Safo, no qual a deusa regente de éros, Afrodite, ciente<br />

de seu ilimitado e irresistível poder, lembra à suplicante a regra norteadora <strong>da</strong>s relações<br />

amorosas: o objeto amado, ao desdenhar o amante, também poderá apaixonar-se e não<br />

ser igualmente correspondido. Também em Safo, será Afrodite o instrumento de<br />

vingança:<br />

na ver<strong>da</strong>de, se ela foge, bem depressa (te) perseguirá,<br />

se não aceita os dons, ao contrário (te) <strong>da</strong>rá,<br />

se não ama, bem depressa (te) amará,<br />

mesmo contra a vontade.<br />

(Fragm. 1, vv.21-24. In: GREEK LYRIC I)<br />

À guisa de conclusão, pode dizer-se, com base na análise dos versos teognídeos,<br />

que embora Eros e Afrodite figurem no chamado livro II como divin<strong>da</strong>des inspiradoras<br />

do amor, é somente Afrodite quem preside aos amores pelos adolescentes.<br />

Efetivamente, é a deusa que concede ao amado a beleza efêmera, mas é também ela que<br />

inflama de paixão o coração do amante ou o liberta dos dissabores de éros.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

CARRIÈRE, Jean. Théognis de Mégare. Étude sur le recueil élégiaque attribué a ce<br />

poète. Paris : Bor<strong>da</strong>s, 1946.<br />

DODDS, E.R.. The Greeks and the irrational. 5P<br />

California Press, 1966.<br />

th<br />

P edition.<br />

Berkeley: University of<br />

DOVER, K. J. A. Homossexuali<strong>da</strong>de na Grécia Antiga. / Greek Homosexuality. /<br />

Tradução de Luís S. Krausz. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.<br />

GREEK LYRIC I. Sappho and Alceus. Edited and translated by David A. Campbell.<br />

Cambridge: Harvard University Press, The Loeb Classical Library, 1994.<br />

HÉSIODE. Théogonie – Les travaux et les jours – Le Bouclier. Texte établi et traduit<br />

par Paul Mazon. Paris : Les Belles Lettres, 1928.<br />

HOMÈRE. Iliade. Texte établi et traduit par Paul Mazon. 4 éd. Paris : Les Belles<br />

Lettres, 1957. 4v.<br />

IAMBI ET ELEGI GRAECI ANTE ALEXANDRUM CANTATI. Edidit M. L. West.<br />

nd<br />

2P<br />

P edition. London : Oxford University Press, 1989, v. I.<br />

LEWIS, John M. Eros and the polis in Theognis Book II. In: Theognis of Megara.<br />

Poetry and the polis. Baltimore and London: The Johns Hopkins Press, 1985.<br />

p. 197-222.<br />

PEREIRA, Maria Helena <strong>da</strong> Rocha. Amizade, amor e Eros na ‘Ilía<strong>da</strong>’. Humanitas.<br />

Revista de Estudos Clássicos <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Coimbra.<br />

v. XLV, p. 3-16. 1993.<br />

THEOGNIS. Elegiarum Liber Secundus. Edidit Maximus Vetta. Roma: Edizioni<br />

dell’Ateneo, 1980.<br />

VAN DER VALK, M.H.A.I.V. ‘Theógnis’. Humanitas 4-5, p. 68-140. 1955-1956.<br />

WEST, Martin L. Studies in greek elegy and iambus. New York: Walter de Gruyter,<br />

1974. p. 40-71.<br />

* To<strong>da</strong>s as traduções apresenta<strong>da</strong>s são de responsabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autora do artigo.<br />

43


RESUMO<br />

O DELEITE MUSICAL EM PÍTICA 1<br />

Shirley Fátima Gomes de Almei<strong>da</strong> Peçanha (Profa. Dra. UFRJ)<br />

Inicia-se a ode pindárica Pítica 1 com uma invocação à lira de ouro, apanágio comum<br />

de Apolo e <strong>da</strong>s Musas. No presente trabalho, pretende-se examinar o poder mágico exercido<br />

pela música e o prazer dela decorrente.<br />

Palavras-chave: poesia lírica coral, Pín<strong>da</strong>ro, epinício, música<br />

A ode Pítica 1 é um epinício, mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de de poesia lírica coral, que surgiu no início do<br />

século V a.C., destina<strong>da</strong> a celebrar principalmente as vitórias desportivas. Seu autor foi<br />

Pín<strong>da</strong>ro, poeta que viveu em fins do século VI a.C. e inícios do século V a.C., e conviveu, na<br />

quali<strong>da</strong>de de poeta profissional itinerante, com os chefes dos centros políticos e culturais<br />

mais importantes <strong>da</strong> Grécia de seu tempo e para eles compôs seus versos. Dedica<strong>da</strong> a Hierão<br />

do Etna, a ode Pítica 1 contém 100 versos comemorativos de sua vitória nos jogos Píticos,<br />

1<br />

em 470 a.C., e celebra a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de Etna pelo tirano, em 476 a.C.TP F FPT, período em que<br />

lutava pela expansão de seus domínios e pela consoli<strong>da</strong>ção de sua dinastia.<br />

2<br />

Sabe-se que de todos os prêmiosTPF FPT recebidos pelo atleta, o mais significativo era a<br />

celebração <strong>da</strong> ode triunfal, pois a consciência de sua condição mortal e de que, certamente,<br />

poderia ser esquecido ou vagamente lembrado pelos contemporâneos e vindouros instigou os<br />

homens a tentativas várias de perenizar sua existência. É nesse sentido que, desde tempos<br />

remotos, a voz do poeta se revela como meio eficaz para tornar público e memorável os<br />

1<br />

TP PT Em 476 a. C, Hierão apoderou-se <strong>da</strong>s colônias <strong>da</strong> Sicília oriental fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos eubeus, a saber, Naxos,<br />

Leôntinos e Catânia-, geograficamente próximas e caracteriza<strong>da</strong>s, devido à fertili<strong>da</strong>de do solo, como locais<br />

genuinamente agrícolas. Os habitantes de Naxos e <strong>da</strong> Catânia foram expulsos e conduzidos para Leôntinos,<br />

localiza<strong>da</strong> mais ao sul. Para repovoar as duas colônias desabita<strong>da</strong>s, Hierão mandou vir cinco mil homens do<br />

Peloponeso e cinco mil de Siracusa e renomeou a Catânia, denominando-a Etna. De acordo com G. Madolli, a<br />

modificação <strong>da</strong> estrutura cívica de Naxos e <strong>da</strong> Catânia, promovi<strong>da</strong> por Hierão, eliminaria o perigo de rebelião<br />

por parte dos dominados, e, ao mesmo tempo, motivaria a gratidão dos novos colonos dórios, facilitando, desse<br />

modo, o governo do tirano (apud VALET (1984, p. 310).<br />

2<br />

TP PT Os vencedores recebiam como prêmio uma coroa de ramos de folhagens de árvores consagra<strong>da</strong>s aos deuses<br />

em honra dos quais os jogos eram celebrados: oliveira ou azambujeiro nos Jogos Olímpicos, dedicados a Zeus;<br />

loureiro, nos Jogos Píticos, realizados em honra de Apolo; aipo, nos Jogos Nemeus, consagrados também em<br />

honra a Zeus, e pinheiro nos Jogos Ístmicos, oferecidos a Posêidon. Podiam receber também bandejas, trípodes,<br />

ânforas, entre outros objetos.<br />

44


grandes feitos dos homens/ heróis, como bem exemplifica o passo de Ilía<strong>da</strong>, XXII, vv. 304-5,<br />

em que Heitor certo do cumprimento de sua moira pelas mãos do impetuoso Aquiles, não se<br />

intimi<strong>da</strong> e luta até a morte, na esperança de ser exaltado pelos vindouros:<br />

Que, pelo menos, eu não venha a morrer sem luta e sem glória,<br />

mas, tendo feito algo grandioso, que eu seja conhecido pelos pósteros<br />

Do mesmo sentimento compartilham os atletas dos jogos pan-helênicos que, ao<br />

vencerem, queriam ter celebra<strong>da</strong> sua a0reth/, isto é, sua habili<strong>da</strong>de física, sua coragem e,<br />

sobretudo, tornar público que o esforço por eles empreendido nos jogos fora reconhecido pela<br />

divin<strong>da</strong>de homenagea<strong>da</strong> na competição, que o protegera e com ele compartilhava sua glória.<br />

Em Olímpica 11,vv.1-6, a comparação estabeleci<strong>da</strong> entre a vitória e os elementos <strong>da</strong><br />

natureza essenciais à sobrevivência dos homens reitera, também nos versos do poeta tebano,<br />

a função <strong>da</strong> arte po<strong>ética</strong> como meio seguro de inscrever-se na memória coletiva a a0reth/<br />

individual do atleta, propiciando-lhe o reconhecimento dos contemporâneos e vindouros:<br />

Às vezes, há para os homens grande necessi<strong>da</strong>de dos<br />

ventos; há também necessi<strong>da</strong>de de águas celestiais,<br />

filhas chuvosas <strong>da</strong> nuvem;<br />

mas, se alguém alcança a vitória, com esforço, melodiosos hinos<br />

5 são o princípio de elogios vindouros<br />

e fiel testemunho de grandes façanhas.<br />

Destarte, se a execução do epinício era a parte mais importante <strong>da</strong> festa, justifica-se a<br />

ode Pítica 1 ter sido inicia<strong>da</strong> com uma invocação não a uma divin<strong>da</strong>de, mas a um<br />

instrumento musical, a lira, <strong>da</strong> qual se evidenciam a importância para a perfeita elaboração e<br />

apresentação do poema e também seu poder mágico:<br />

Lira de ouro, atributo legítimo de Apolo<br />

e <strong>da</strong>s Musas, de tranças violáceas; ouve-te<br />

o passo dos coreutas, princípio <strong>da</strong> celebração,<br />

e os cantores obedecem a teus sinais,<br />

quando, vibrando, preparas os prelúdios<br />

dos proêmios que guiam os coros.<br />

5 Apagas, ain<strong>da</strong>, o raio agudo do fogo eterno. E dorme sobre o cetro de<br />

de Zeus a águia, rainha dos pássaros, deixando cair,<br />

dos dois lados, sua rápi<strong>da</strong> asa,<br />

e sobre sua cabeça recurva<br />

verteste uma nuvem sombria,<br />

doce clausura <strong>da</strong>s pálpebras; e ela, enquanto dorme,<br />

balança seu dorso ondulante, domina<strong>da</strong><br />

10 por tuas vibrações. E até mesmo o violento<br />

Ares, deixando de lado a ponta agu<strong>da</strong><br />

45


<strong>da</strong>s lanças, abran<strong>da</strong> o coração em sono profundo,<br />

e até as tuas flechas encantam a<br />

mente <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des, graças ao saber<br />

do filho de Letona e <strong>da</strong>s Musas de vestes preguea<strong>da</strong>s.<br />

Privilegia-se como tema desse epinício a harmonia, que guar<strong>da</strong> relação com o<br />

contexto histórico-social do vencedor, Hierão, cuja carreira político-militar se encontrava em<br />

plena a0kmh/, haja vista que o tirano conquistara a honra de tornar-se um kleino\j oi0kisth/j<br />

(Pit 1, v.31) “um ilustre fun<strong>da</strong>dor”, um dos títulos mais honrosos do mundo grego antigo,<br />

depois de já ter livrado a Grécia ocidental dos etruscos e, juntamente com seu irmão Gelão,<br />

3<br />

do domínio dos cartagineses, vitórias aludi<strong>da</strong>s nos versos 71-80TPF FPT <strong>da</strong><br />

to<strong>da</strong>s as coisas que Zeus não ama se inquietam, ao ouvir<br />

A voz <strong>da</strong>s Piérides, sobre a terra e sobre o mar invencível<br />

46<br />

ode em <strong>questão</strong>,<br />

comparáveis, segundo o poeta, ao triunfo dos atenienses em Salamina, em 480 a.C., e dos<br />

espartanos em Platéias, em 479. Esse paralelo traz à lembrança um momento histórico<br />

singular, marcado por um sentimento pan-helênico de luta pela liber<strong>da</strong>de e pelo<br />

4<br />

estabelecimento <strong>da</strong> paz e <strong>da</strong> harmonia em to<strong>da</strong> a Grécia.TPF FPT<br />

A respeito do desenvolvimento do tema, convém lembrar que na estrutura do epinício,<br />

as narrativas míticas ocupam o centro do poema, pois, assim como a epopéia e a tragédia<br />

retiram <strong>da</strong>s brumas míticas os grandes heróis do passado como fun<strong>da</strong>mento para sua<br />

composição, o canto agonal encontra no mito uma valiosa forma de expressão, para que, sob<br />

5<br />

a ótica dos pretéritos, melhor se compreen<strong>da</strong> o presente. Por essa razão, nos versos 15-28TPF FPT,<br />

4<br />

TP PT Como<br />

3<br />

TP PT Consente,<br />

suplico-te, filho de Cronos, que<br />

se contenham, em sua tranqüila mora<strong>da</strong>, o Fenício e o grito<br />

de guerra dos tirrenos, já que viram, diante de Cumas,<br />

a arrogância que fez gemer suas naus.<br />

Tais coisas eles sofreram, quando<br />

foram dominados pelo chefe dos siracusanos, que <strong>da</strong>s rápi<strong>da</strong>s naus lhes<br />

lançou a juventude ao mar,<br />

75 salvando a Grécia <strong>da</strong> pesa<strong>da</strong> escravidão. Receberei<br />

de Salamina, como salário, a gratidão<br />

dos atenienses e, em Esparta, (cantarei)a partir <strong>da</strong>s<br />

lutas junto ao Citéron - nas quais<br />

os medos de arcos recurvos sofreram -, depois de<br />

terminar , perto <strong>da</strong> margem abun<strong>da</strong>nte do Hímera,<br />

o hino aos filhos dos Deinomêni<strong>da</strong>s, que, por sua coragem,<br />

80 receberam, após terem os inimigos sucumbido.<br />

atesta Heródoto (VII, 166)), a luta empreendi<strong>da</strong> por Terão e Gelão contra os cartagineses aconteceu no<br />

mesmo dia em que, na batalha de Salamina, os gregos expulsaram os persas.<br />

5<br />

TP PT Mas


lançando mão do evento mítico, narrado por Hesíodo em Teogonia, vv.820-68, relativo à luta<br />

de Tifão contra Zeus, que, vencedor, instaurara em seu reino, assim como fizera Hierão, a<br />

definitiva harmonia, estabelece o poeta entre os fatos contemporâneos e o passado míticoheróico<br />

uma cumplici<strong>da</strong>de capaz de converter o vencedor homenageado, Hierão, em modelo<br />

para os outros homens, ratificando-se, desse modo, como tema do epinício, a harmonia<br />

simboliza<strong>da</strong> pela lira.<br />

Conservando a tradicional relação entre Apolo e as Musas, estabeleci<strong>da</strong> por Homero,<br />

em Ilía<strong>da</strong> I, vv.603-4, e reconheci<strong>da</strong> por Hesíodo, em Teogonia, vv.94-5, o poeta invoca a<br />

lira e enfatiza a aliança entre essas divin<strong>da</strong>des, celebrando o instrumento como apanágio<br />

comum a Apolo e às Musas. Além de ser portadora do epíteto xruse/a (v.1) “de ouro”, o mais<br />

precioso dos metais, no epinício em <strong>questão</strong>, a lira recebe em outras odes os qualificativos<br />

glukei~a (Neméia 4,v.44) “doce”, a0du/logoj (Olímpica 6, v.93) “de doce voz”, a9dumelh/j<br />

(Olímpica 7,v.12), “dulcíssona” e a9dueph/j (Olímpica 10,v.93), “de doce voz”, termos de<br />

radicais enfeixados no campo semântico <strong>da</strong> doçura, <strong>da</strong> suavi<strong>da</strong>de e do prazer, que se<br />

coadunam perfeitamente com a simbologia <strong>da</strong> lira apresenta<strong>da</strong> pela tradição literária como<br />

instrumento representativo <strong>da</strong> harmonia musical.<br />

Convém notar, ain<strong>da</strong>, que o adjetivo su/ndikon (v.2) “legítimo”, “comum”, é o termo<br />

que evidencia a complementarie<strong>da</strong>de entre as funções desempenha<strong>da</strong>s por Apolo e pelas<br />

Musas, bem assinala<strong>da</strong>s em Neméia 5, vv.22-5, na qual o poeta, evocando as bo<strong>da</strong>s de Peleu<br />

e Tétis, declara ser Apolo condutor do coro <strong>da</strong>s Musas:<br />

Prazerosamente, no Pélion, cantava também<br />

para eles o belíssimo coro <strong>da</strong>s Musas, e, no meio delas, Apolo,<br />

tocando sua lira de sete cor<strong>da</strong>s com o<br />

plectro de ouro,<br />

25 conduzia varia<strong>da</strong>s melodias;...<br />

A proeminência <strong>da</strong> lira em relação aos outros elementos do canto evidencia-se pelo<br />

emprego dos verbos a0kou/w (a0kou/ei,v.2) “ouvir”, e pei/qw (pei/qontai, v. 4) “obedecer”,<br />

relativos à subordinação <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça e do coro ao instrumento musical. Há uma níti<strong>da</strong> seqüência<br />

de movimentos decrescentes que envolvem o som produzido pela lira, isto é, o elemento<br />

musical, capaz de motivar primeiramente a evolução do passo dos coreutas (ba/sij, v.3) e,<br />

15 Inclusive aquele que jaz no Tártaro horrendo, o inimigo dos deuses,<br />

Tifão de cem cabeças.<br />

47


depois, o canto, <strong>da</strong>ndo a medi<strong>da</strong> exata <strong>da</strong> relevância <strong>da</strong> música para a composição dos<br />

epiníciosTPF<br />

6<br />

FPT<br />

Depois de ter-se destacado a relevância do instrumento musical na execução <strong>da</strong> ode<br />

triunfal, do verso 5 ao 14, descreve-se de forma enfática o poder mágico exercido pela<br />

vibração dos sons <strong>da</strong> lira sobre os elementos <strong>da</strong> natureza, os animais e os deuses.<br />

Em virtude de o poder do canto provocar uma reação no público, afirma Segal (1994,<br />

p.184-5) que “a representação oral envolve o público numa reação global, tanto física e<br />

emotiva como intelectual”. Diz, ain<strong>da</strong>, o estudioso “que a poesia recita<strong>da</strong> e/ou canta<strong>da</strong> nestas<br />

circunstâncias implica uma intensa relação pessoal entre o intérprete e o público”.<br />

Comprovam-no os versos 5-14, nos quais se reproduzem as imagens do fogo eterno de Zeus,<br />

que se apaga por efeito <strong>da</strong> vibração dos sons <strong>da</strong> lira (v.5), <strong>da</strong> águia - rainha <strong>da</strong>s aves e<br />

mensageira do Senhor do Olimpo –, que adormece embala<strong>da</strong> pela oscilação <strong>da</strong> música, e, por<br />

fim, a imagem de Ares – deus guerreiro, despojado de sua particular violência por estar<br />

dominado pelos fascinantes acordes musicais, bem marcados no poema pela forma nominal<br />

e0lelizome/na, v.4, (do verbo li/ggw “vibrar”), reforça<strong>da</strong> pelo substantivos r9ipai~si,v.10<br />

(<strong>da</strong>tivo plural de r9iph/ “lançamento” “arremesso”) e kh~la, v.12, (neutro plural de kh~lon<br />

“flecha”, “lança”) empregados metaforicamente, tendo em vista não se referirem a um tipo de<br />

armamento, mas a propagação dos acordes musicais.<br />

O poder mágico conferido à lira, passível de regular as reações e o comportamento, até<br />

mesmo, <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des, é enfatizado pela recorrência de termos que contextualizam uma<br />

seqüência de vocábulos que manifestam a sensação de prazer e deleite provocados pela<br />

música. São eles os verbos xala/w (xala//caij, v. 6) “relaxar” “aliviar” “enfraquecer”,<br />

donde deixar cair, kate/xw (katasxo/menoj, v.10) “dominar” no sentido de estar fascinado,<br />

i0ai/nw<br />

(i0ai/nei, v.11) “abran<strong>da</strong>r” “agra<strong>da</strong>r” “deleitar”. A acepção desses verbos ecoa<br />

gra<strong>da</strong>tivamente no uso do sintagma glefa/rwn a0du\ kla/iqron , v.8, “doce clausura <strong>da</strong>s<br />

pálpebras”, <strong>da</strong> forma nominal knw/sswn, v.8, (particípio do verbo knw/ssw, “dormir”) -<br />

6<br />

TP PT O comentário do poeta acerca dos elementos componentes do canto coral, nos primeiros versos <strong>da</strong> ode Pítica<br />

1 - em primeiro lugar, o som melodioso <strong>da</strong> lira e, em segui<strong>da</strong>, os passos ritmados dos coreutas, que <strong>da</strong>nçam e<br />

cantam o epinício -, traz à lembrança o mister de Pín<strong>da</strong>ro como compositor do texto e <strong>da</strong> melodia de suas odes e,<br />

muitas vezes, também, segundo a tradição, <strong>da</strong> música e <strong>da</strong> coreografia.<br />

48


elativos à reação <strong>da</strong> águia -, e no emprego do substantivo referente ao deus Ares kw/mati,<br />

v.12, (<strong>da</strong>tivo plural de kw~ma “sono profundo”, que evidenciam a relação entre o efeito dos<br />

acordes <strong>da</strong> lira e a sensação de entorpecimento produzido pelo sono.<br />

A celebração de Pín<strong>da</strong>ro à lira evoca o célebre episódio narrado nos versos 186 a 190<br />

do canto IX <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, no qual os emissários de Agamêmnon, na tentativa de convencer<br />

Aquiles a retornar aos combates, vão até ao acampamento dos mirmidões e, ao chegarem, se<br />

surpreendem com a imagem que se lhes apresenta, qual seja, Aquiles, alheio ao desespero dos<br />

aqueus frente às derrotas por eles sofri<strong>da</strong>s pelos troianos e totalmente envolvido em sua<br />

<strong>questão</strong> pessoal, tocando sua lira e cantando os kle/a a0ndrw~n (v. 189) “os feitos grandiosos<br />

dos homens”. A atmosfera de calma e deleite desfruta<strong>da</strong> pelo herói fica bem evidente nos<br />

termos empregados pelo poeta <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> para descrever a cena que indiciam um momento de<br />

harmonia e prazer vivenciados pelo herói Nessa passagem, além de o poeta afirmar que a lira<br />

de Aquiles era oriun<strong>da</strong> do espólio de uma ci<strong>da</strong>de por ele mesmo saquea<strong>da</strong>, do qual o herói<br />

separara o instrumento para si, atribui à lira os epítetos ligei/hi, v.186, “sonora”, kale/hi<br />

<strong>da</strong>i<strong>da</strong>le/hi, v.186,“bem trabalha<strong>da</strong>”, e a0rgu/reon zugo/n,v.187, “de cavalete de prata”,<br />

eluci<strong>da</strong>tivos <strong>da</strong> importância desse instrumento para o filho de Peleu, e emprega o verbo<br />

te/rpw (terpo/menon, v.186) “ alegrar”, encantar”, deleitar”, para descrever o estado anímico<br />

de Aquiles.<br />

Conclui-se, pois, que a atenção conferi<strong>da</strong> por Pín<strong>da</strong>ro à lira leva a pensar na existência<br />

de uma cultura que, desde tempos imemoriais, acreditava nos efeitos mágicos produzidos por<br />

esse instrumento, capaz de provocar os mais profundos deleites, como se nota <strong>da</strong> reação <strong>da</strong><br />

águia de Zeus e do deus Ares, menciona<strong>da</strong>s por Pín<strong>da</strong>ro, em Pítica 1, que se deixam dominar<br />

pelos acordes de um instrumento, a lira, apanágio de Apolo e <strong>da</strong>s Musas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

LEXICON TO PINDAR. Edited by William J. Slater. Berlin, Walter de Gruyter & CO,<br />

1969.<br />

HESIOD. Theogony. Edited with Prolegomena and Commentary by M. L. West. Oxford: At<br />

The Clarendon Press, 1966.<br />

- - - - - - . The Works and Days . Edited with Prolegomena and Commentary by M. L. West.<br />

Oxford: At The Clarendon Press, 1982.<br />

49


HOMÈRE. Iliade. Texte établi et traduit par Paul Mazon. 4 éd. Paris, Les Belles Lettres,<br />

1957. 4 v.<br />

PINDARI CARMINA CVM FRAGMENTIS PARS I EPINICIA. Edidit Hervicus Maehler.<br />

Bruno Snell. B.S.B.G. Teubner Verlagsgesellschaft, 1971.<br />

PÍNDARO. O<strong>da</strong>s y Fragmentos. Introduciones, traducción y notas de Alfonso Ortega.<br />

Madrid, Gredos, 1984.<br />

SEGAL, Charles. O ouvinte e o espectador. In: O Homem Grego / L’Uomo Greco/<br />

Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: editorial Presença, 1993. P.<br />

173-86.<br />

VALLET, Georges. Pin<strong>da</strong>re et la Sicile. In: Entretiens sur l’antiquité classique.<br />

Vandoeuvres - Genève, Fon<strong>da</strong>tion Hardt, 1984. Tome XXXI. p. 285 - 327.<br />

50


COMUNICAÇÕES<br />

A ARTE COMO INSTRUMENTO MORALIZANTE DA HÉLADE<br />

ADRIANA CLEMENTINO DE MEDEIROS<br />

Professora de História <strong>da</strong> Arte (UERJ) e Especialista em Arteterapia e Psicope<strong>da</strong>gogia (UCAM)<br />

Palavras-chave: arte helenística; est<strong>ética</strong>; moral.<br />

RESUMO<br />

O nú visto através <strong>da</strong> história, a partir de uma moral pe<strong>da</strong>gógica surgi<strong>da</strong> na civilização<br />

grega. A influência helênica na representação do corpo humano nas épocas posteriores. A<br />

intervenção religiosa no processo artístico, tornando o homem e mulher fontes de pecado e<br />

luxúria. O renascer <strong>da</strong> arte clássica após a opressão religiosa, com o ressurgimento do<br />

antropocentrismo no Renascimento. A comparação <strong>da</strong> ousadia artística grega e<br />

renascentista na representação do nu. A est<strong>ética</strong> grega na representação <strong>da</strong> beleza humana<br />

e sua importância na arte universal.<br />

Moral: s.f., conjunto de regras e conduta considera<strong>da</strong>s<br />

como váli<strong>da</strong>s, quer de modo absoluto para qualquer<br />

tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa<br />

determina<strong>da</strong>.<br />

(Dicionário Aurélio <strong>da</strong> Língua Portuguesa)<br />

Pensar no processo <strong>da</strong> construção est<strong>ética</strong> <strong>da</strong>s esculturas gregas, principalmente as do<br />

período helenístico, é vislumbrar a moral de um povo que consagra o prazer do belo através<br />

do físico perfeito, utilizando imagens de esculturas como instrumento quase pe<strong>da</strong>gógico<br />

para divulgar o ideal helênico <strong>da</strong> polis perfeita.<br />

A arte grega nos períodos clássico e helenístico assume uma característica mais livre<br />

esteticamente, mas ain<strong>da</strong> imbuí<strong>da</strong> de uma série de regras est<strong>ética</strong>s, mesmo quando o objeto<br />

final artístico era o nu.<br />

O tema “nu” já era utilizado desde a pré-história, com representações <strong>da</strong>s primeiras vênus<br />

paleolíticas que apresentavam corpos totalmente desnudos, e veio passando por<br />

“a<strong>da</strong>ptações de época” até chegar à civilização na qual este trabalho se baseia.<br />

As esculturas de nu na pré-história -- vincula<strong>da</strong>s a uma moral primitiva de sobrevivência<br />

básica -- associavam-se a um simbolismo pagão onde as imagens cumpriam uma função<br />

mágica. Essa característica artística de representação do nu com função religiosa se<br />

manteve presente em muitas civilizações antigas até chegar à Grécia, onde o sentido de<br />

moral, ain<strong>da</strong> que sem a conotação sexual, começa a ser desenvolvido com mais<br />

objetivi<strong>da</strong>de e clareza, referindo-se a uma arte que poderia assumir a função de transmitir<br />

conceitos e valores.<br />

51


Sabemos que a moral se desenvolve em diferentes épocas e socie<strong>da</strong>des como respostas às<br />

necessi<strong>da</strong>des de solucionar problemas que surgem <strong>da</strong>s relações entre os homens. Esse<br />

pensamento torna-se evidente na Grécia quando surgem os primeiros filósofos e grupos que<br />

introduzem novas formas de pensar que acabam por marcar a história do mundo ocidental.<br />

A partir <strong>da</strong>s in<strong>da</strong>gações filosóficas e <strong>da</strong> análise comportamental <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de Grega, surge<br />

o conceito de moral e neste caso estamos nos referindo a uma moral que envolve o fazer<br />

arte e o prazer estético. O fazer arte na Grécia significava seguir regras constituí<strong>da</strong>s a<br />

partir de um determinado padrão estético e funcional. Exemplo: a arte tinha como função<br />

ser usa<strong>da</strong> para ornamentar os templos dos deuses ou enfeitar vasos, ou até mesmo como<br />

objeto de contemplação e adoração – o prazer estético.<br />

Neste trabalho, entretanto, vamos nos concentrar na arte <strong>da</strong> estatuária, onde os escultores<br />

gregos – que, como deuses, criavam um mundo ideal, principalmente quando esculpiam a<br />

figura humana – revelaram-se produtores de uma arte que buscava uma perfeição divina<br />

que estaria escondi<strong>da</strong> no interior de ca<strong>da</strong> ser humano. Este processo teve início no período<br />

arcaico quando se criou o primeiro homem nu com formas geométricas e estáticas tentando<br />

assimilar a ver<strong>da</strong>deira essência dos deuses e dos homens; passando pelo período clássico<br />

através <strong>da</strong>s esculturas naturalistas de Fidias, que transmitiam respeito, digni<strong>da</strong>de e uma<br />

nova concepção de divino; e evoluindo até o período helenístico com liber<strong>da</strong>de de<br />

movimento e expressão.<br />

[...] o século V a.C. é uma <strong>da</strong>s épocas <strong>da</strong> história <strong>da</strong> arte em que se realizam as conquistas mais importantes e<br />

fecun<strong>da</strong>s no campo do naturalismo. Isso é ver<strong>da</strong>de não só no que se refere ao estilo clássico inicial <strong>da</strong>s<br />

esculturas de Olímpia e a arte de Míron; todo o século demonstra um contentamento em face <strong>da</strong> natureza que,<br />

com algumas breves pausas, irá continuar aumentando. (HAUSER, 1995:81)<br />

A grande maioria <strong>da</strong> estatuária grega é composta por obras com motivos religiosos,<br />

retratando cenas míticas, imagens votivas e ritualísticas, imagens que representavam ídolos<br />

que eram adorados pelo povo.<br />

Entre os gregos a religião tinha pouca relação com a moral <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, em face do<br />

caprichoso temperamento de seus deuses que nem sempre agiam de acordo com o sistema<br />

de normas considera<strong>da</strong>s justas ou obedeciam aos códigos morais, deixando-se levar por<br />

caprichos pessoais bem egocêntricos. Entretanto, esse comportamento – que violentava os<br />

padrões estabelecidos para a socie<strong>da</strong>de -- não estava presente na forma de retratar a figura<br />

dos deuses, vez que os artistas, imbuídos de um pensamento antropomórfico voltado para a<br />

perfeição física, criaram um ideal de representação est<strong>ética</strong> que minimizava o caráter<br />

humano e desvirtuoso dos deuses e exaltava virtudes quase sempre inexistentes.<br />

Essas representações antropomórficas dos deuses, quase sempre através de nus, eram<br />

determina<strong>da</strong>s por regras de conduta em que o corpo deveria atingir um ideal de beleza,<br />

harmonia e perfeição, e o artista representava essa concepção através <strong>da</strong> simetria e<br />

proporção <strong>da</strong> forma, onde a intenção de erotismo não se situava, <strong>da</strong>ndo lugar apenas à<br />

contemplação <strong>da</strong> idealização divina. Embora o estudo do corpo humano para os gregos<br />

fosse contido de um grande respeito às regras, os artistas recebiam certa liber<strong>da</strong>de de<br />

criação a fim de <strong>da</strong>r forma à imagem convincente <strong>da</strong> figura humana.<br />

52


Flavio Conti ratifica essa informação quando caracteriza a arte grega do período clássico e<br />

helênico com a máxima <strong>da</strong> afirmação <strong>da</strong> antiga filosofia grega: “O homem é a medi<strong>da</strong> de<br />

to<strong>da</strong>s as coisas; <strong>da</strong>s que são, enquanto são, <strong>da</strong>s que não são, enquanto são”.<br />

[...] uma estátua deveria ter um aspecto completamente humano, sem nenhum <strong>da</strong>queles pequenos e inevitáveis<br />

defeitos que todo ser humano possui; em suma sem qualquer desvio de norma. É necessário eliminar tudo o<br />

que for individual, acessório, acidental: elevar-se <strong>da</strong>s formas dos homens à forma <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. (CONTI,<br />

1978:34)<br />

A estátua tinha que ser cria<strong>da</strong> para ser contempla<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> sua beleza e perfeição, sem a<br />

provocação sexual em suas linhas sinuosas, mas exibindo certa sensuali<strong>da</strong>de que provocava<br />

o olhar para a beleza considera<strong>da</strong> como ideal. Entretanto, para seguir esse padrão de<br />

conduta est<strong>ética</strong> os gregos passaram a olhar para a figura humana de forma seletiva, pois as<br />

representações só podiam ser de homens nus com o corpo cheio de força e músculos,<br />

mulheres jovens com corpos cheios de graça e juventude e a mulher amadureci<strong>da</strong> com o<br />

corpo composto e grave -- as mulheres sempre vesti<strong>da</strong>s. Para alcançar tal objetivo, os<br />

artistas, no período clássico, usavam a roupagem <strong>da</strong>s mulheres carrega<strong>da</strong> de excessos de<br />

drapeados para marcar as principais divisões do corpo humano feminino.<br />

Inúmeras esculturas gregas eram utiliza<strong>da</strong>s com fins religiosos, representando deuses para<br />

os quais se ofereciam sacrifícios e que atraíam milhares de adoradores com esperanças e<br />

medos em seus corações. Essas imagens – originalmente em bronze -- foram quase to<strong>da</strong>s<br />

extintas e as poucas que “sobreviveram” até hoje são meras cópias em mármore feitas pelos<br />

romanos, sendo raras as originais em bronze. Essas estátuas, considera<strong>da</strong>s as mais famosas<br />

do mundo antigo, desapareceram por vários motivos, sendo um deles o surgimento do<br />

cristianismo que – impondo uma nova moral religiosa -- determinava a destruição de<br />

qualquer estatuária de deuses pagãos (em bronze ou mármore, não importava),<br />

principalmente as que representavam o nu.<br />

Nesse período <strong>da</strong> história grega, a maior parte <strong>da</strong>s esculturas era composta por nus,<br />

principalmente masculinos, vez que estes representavam to<strong>da</strong> a força e a grandiosi<strong>da</strong>de dos<br />

deuses gregos, com seu caráter e poder absoluto. As regras de criação <strong>da</strong>s esculturas,<br />

entretanto, vão se tornando ca<strong>da</strong> vez mais livres, como podemos observar mais tarde, no<br />

século IV a.C., nas primeiras representações escultóricas de Praxiteles (392-330) e seus<br />

contemporâneos, quando ele começa a estu<strong>da</strong>r o nu feminino e a usá-lo como tema central<br />

de sua arte. Um desses exemplos é a estátua de “Afrodite no banho de Cnido”, considerado<br />

um dos nus mais famosos e cujo projeto teria infringido as convenções que reservavam os<br />

nus somente aos temas masculinos.<br />

Praxiteles usou sua amante Eriné como modelo e nessa composição observamos a doçura e<br />

o caráter insinuante de uma deusa que, sobre linhas curvas e seios redondos e firmes, se<br />

mostra digna de contemplação divina. Segundo Gombrich, (1999:103), essa é a obra mais<br />

menciona<strong>da</strong> e conheci<strong>da</strong> no mundo, representando a jovem deusa do amor Afrodite livre <strong>da</strong><br />

rigidez clássica encaminhando-se para o banho. A deusa eleva-se de forma descontraí<strong>da</strong><br />

diante dos espectadores que contemplam sua imagem, sem ao menos sugerir qualquer<br />

vestígio de deslize que prejudique sua digni<strong>da</strong>de.<br />

53


A preocupação desse mestre era mostrar a figura do nu de forma bem clara, com to<strong>da</strong>s as<br />

articulações mais importantes dos corpos humanos plenos, cheios de vitali<strong>da</strong>de e energia. É<br />

o que podemos observar na evolução <strong>da</strong> perfeição <strong>da</strong> estatuária do período helênico, que<br />

era retrata<strong>da</strong> através de uma idealização de natureza perfeita, mais leve e plena de perfeição<br />

nos seus esquemas corporais idealizados.<br />

Neste período evolutivo <strong>da</strong> arte grega, a escultura nua começa a deixar de ser uma<br />

exclusivi<strong>da</strong>de dos corpos masculinos e começa a surgir maior interesse em retratar mais<br />

corpos femininos nus. Esses corpos passam a ser trabalhados livres <strong>da</strong> rigidez anterior e vão<br />

sendo cria<strong>da</strong>s imagens mais convincentes <strong>da</strong> figura humana, mostrando o corpo em amplos<br />

movimentos como se o escultor tivesse o total conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />

Esse pensamento de conduta moral, na forma de contemplação do corpo nu, desaparece na<br />

i<strong>da</strong>de média, onde to<strong>da</strong> nudez <strong>da</strong> arte passará a ser coberta, recebendo outra interpretação<br />

moral: a de pecado. Reaparecerá mil anos depois, no Renascimento, mas também com um<br />

sentido moral já alterado.<br />

Como foi visto até o momento, valores morais com conotação sexual estabelecendo “certo”<br />

ou “errado” não permeavam a arte <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de que, livre desses preceitos, permitia o<br />

desenvolvimento de obras basea<strong>da</strong>s mais na concepção est<strong>ética</strong> do que propriamente nos<br />

valores pré-concebidos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, facilitando assim uma aplicação de moral sem<br />

grandes cobranças e julgamentos.<br />

To<strong>da</strong> cultura e ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido<br />

e ao proibido, e à conduta correta, valido para todos os seus membros. Culturas e socie<strong>da</strong>des fortemente<br />

hierarquiza<strong>da</strong>s e com diferenças de castas podem ate mesmo possuir varias morais, ca<strong>da</strong> uma delas referi<strong>da</strong>s<br />

aos valores de uma casta ou de uma classe social. (CHAUÍ, 2002:339)<br />

A nudez na arte caracterizava-se de forma distinta para ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, desde o nu <strong>da</strong> arte<br />

grega -- que tinha uma concepção moral de imparciali<strong>da</strong>de com relação à sexuali<strong>da</strong>de --,<br />

passando pelo Império Romano, com quase os mesmos pensamentos, mas <strong>da</strong>ndo um tom<br />

ain<strong>da</strong> mais naturalista e menos idealista, e chegando na I<strong>da</strong>de Média, onde esses valores<br />

morais assumem uma concepção puramente sexual e pecaminosa.<br />

O cristianismo, religião oficializa<strong>da</strong> na I<strong>da</strong>de Média -- que adorava um único Deus e onde<br />

este só se relacionava com o indivíduo que cria nele --, deixava claro que a relação entre o<br />

homem e Deus só acontecia espiritualmente e não em paralelo com a socie<strong>da</strong>de. Ou seja,<br />

os valores morais não se definiam através <strong>da</strong>s regras cria<strong>da</strong>s pela socie<strong>da</strong>de e sim <strong>da</strong><br />

relação que o homem tem com Deus. Essa moral, essencialmente teocêntrica, que partia <strong>da</strong>s<br />

relações do homem com o seu criador, definia regras que esse homem deveria seguir para<br />

conduzi-lo a alcançar sua salvação. Essa nova ordem de pensamento (de uma moral liga<strong>da</strong><br />

ao espiritual) estabelecia que transgredir as leis divinas era o primeiro impulso para o<br />

pecado.<br />

Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a<br />

virtude e o vício, a felici<strong>da</strong>de e a infelici<strong>da</strong>de, a salvação e o castigo. Aos humanos cabe reconhecer a vontade<br />

e a lei de Deus, cumprindo-as obrigatoriamente, isto é, por atos de dever. Este é o único que torna morais um<br />

54


sentimento, uma intenção, uma conduta ou uma ação. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na<br />

moral: a idéia do dever. (CHAUÍ, 2002: 343)<br />

Este pensamento permeou por to<strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média atingindo de forma preconceituosa as artes<br />

e eliminando to<strong>da</strong> representação de nudez, principalmente <strong>da</strong>s figuras femininas. A única<br />

representação de nudez admiti<strong>da</strong> era a de Adão e Eva – ain<strong>da</strong> assim, nudez parcial --, pois<br />

tendo sido o corpo humano considerado fonte de pecado, essas duas figuras mitológicas<br />

cristãs deveriam tornar-se exemplos educativos a não serem seguidos.<br />

A arte com representações de nudez foi relega<strong>da</strong> ao esquecimento e à total extinção, vez<br />

que era considera<strong>da</strong> uma arte pagã. A moral cristã que estava sendo imposta estabelecia que<br />

a alma era o símbolo espiritual <strong>da</strong> virtude; o corpo deveria ser coberto para não provocar<br />

pensamentos e atos impuros e pecaminosos que culminariam em corromper a própria alma.<br />

Dessa forma, a exibição de corpos nus – em qualquer forma de arte – passou a ser<br />

considera<strong>da</strong> sacrilégio e ofensa a Deus.<br />

Esse ideal deturpado <strong>da</strong> arte, tendo a religião vigente na época como a responsável pela<br />

transformação do nu em pecado, levou os artistas <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média a ficarem exclusivamente<br />

a serviço de Deus (leia-se “Igreja”), ocupando-se em descaracterizar os corpos <strong>da</strong>s imagens<br />

e fugindo ca<strong>da</strong> vez mais do real humano, vestindo-os de longos trajes e colocando como<br />

ardendo no fogo do inferno aqueles que estivessem representados nus.<br />

Assim, diferentemente <strong>da</strong> Grécia, a nudez passou a ser considera<strong>da</strong> como pecado e sua<br />

exibição era intolerável e sujeitava a julgamentos violentos aqueles que ousassem quebrar<br />

as regras de conduta que a religião imprimia. Essa nova moral era ain<strong>da</strong> mais contundente<br />

quando se tratava do nu feminino, vez que a mulher, naquela socie<strong>da</strong>de medieval, era<br />

considera<strong>da</strong> como a provocadora de to<strong>da</strong>s as mazelas dos homens, tendo a capaci<strong>da</strong>de de<br />

despertar os desejos mais sórdidos do homem, levando-o a perder sua honradez e<br />

digni<strong>da</strong>de, fazendo-o desejar lascivamente o corpo feminino – que passa a ser considerado<br />

como imoral.<br />

Já no período conhecido como Renascimento, começa a haver uma mu<strong>da</strong>nça significativa<br />

na moral vigente, ocorrendo quase um retorno aos tempos gregos. O homem desse período<br />

descobriu que as civilizações considera<strong>da</strong>s pagãs, principalmente <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de clássica,<br />

representavam o estágio mais evoluído <strong>da</strong> história e buscou igualar-se a ela ou mesmo<br />

superá-la em seu esplendor.<br />

Esse comportamento teve suas bases arraiga<strong>da</strong>s nas várias mu<strong>da</strong>nças sociais e econômicas<br />

com a ascensão <strong>da</strong> burguesia -- moral burguesa -- e a extinção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de feu<strong>da</strong>l. O<br />

incentivo à produção <strong>da</strong> ciência e os movimentos reformistas na igreja, onde se separava a<br />

razão <strong>da</strong> fé, trouxe para aquele cenário histórico o antropocentrismo -- o homem como o<br />

centro de sua atenção -- em contraparti<strong>da</strong> ao teocentrismo medieval.<br />

Esse novo pensamento obviamente se refletiu nas artes, e os artistas do Renascimento<br />

passaram a representar o ideário clássico também como uma moral pe<strong>da</strong>gógica, conciliando<br />

a religiosi<strong>da</strong>de cristã com a arte através <strong>da</strong> representação de temas mitológicos grecoromanos<br />

e de nus. Esses temas passaram a não ser mais considerados objeto de desprezo –<br />

55


como foram na I<strong>da</strong>de Média --, e oportunizou o homem desse período a sair à procura de<br />

novos elementos que completariam seus conhecimentos. Esse homem vai buscar nas artes<br />

<strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de clássica, inspiração para suas novas criações, principalmente no que se<br />

refere ao nu.<br />

Marilena Chauí fala <strong>da</strong> série de mu<strong>da</strong>nças no pensamento <strong>da</strong> civilização renascentista,<br />

quando atrela tal alteração à necessi<strong>da</strong>de do homem buscar, paradoxalmente, novos<br />

conhecimentos na antigui<strong>da</strong>de.<br />

[...] a partir do Renascimento a filosofia moral distancia-se dos princípios teológicos e <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mentação<br />

religiosa <strong>da</strong> <strong>ética</strong>, a idéia do dever permanecerá como uma <strong>da</strong>s marcas principais <strong>da</strong> concepção <strong>ética</strong><br />

ocidental. (CHAUÍ, 2002:343)<br />

Entretanto, mesmo com a intenção de fazer renascer a cultura artística grega, uma<br />

diferença fun<strong>da</strong>mental separava-os <strong>da</strong> Hélade: a forma de “ver” o nu artístico. Enquanto os<br />

gregos apreciavam o nu como a “representação <strong>da</strong> perfeição física humana” – o prazer<br />

estético --, o homem renascentista apreciava o nu com a moral individualista, com ênfase<br />

no prazer visual, embora sua fruição como objeto real de prazer só passe a ser assumi<strong>da</strong><br />

séculos depois.<br />

Exemplo dessa diferença est<strong>ética</strong> é encontrado no trabalho de Michelangelo que, mesmo<br />

buscando na arte grega a base de seu trabalho, esculpiu seu “David” quebrando a<br />

semelhança com a estatuária helênica, ao <strong>da</strong>r-lhe um rosto com expressão psicológica.<br />

[...] o David de Michelangelo tem uma expressão desconheci<strong>da</strong> na escultura até então.<br />

Contém uma espécie de força interior que não aparece no humanismo idealizado dos<br />

gregos. [...] Possui um tipo de consciência que surge com o Renascimento em sua<br />

plenitude: a capaci<strong>da</strong>de de enfrentar desafios <strong>da</strong> existência. (PROENÇA, 1996:91)<br />

Outra dessemelhança entre as esculturas nuas gregas e renascentistas foi o enfoque no<br />

gênero: na Grécia as estátuas nuas eram predominantemente masculinas, enquanto que no<br />

período renascentista o nu feminino teve preferência na representação estatuária.<br />

E havia ain<strong>da</strong> uma significativa diferença na representação do nu feminino entre as duas<br />

socie<strong>da</strong>des: embora as imagens sempre mostrassem figuras mitológicas, na Grécia a mulher<br />

era sempre representa<strong>da</strong> como símbolo de graça e beleza associa<strong>da</strong> a um objeto de devoção<br />

e de prazer -- estético -- que não tange o sexual (ain<strong>da</strong> que com formas sensuais). No<br />

Renascimento, em seus primórdios, o enfoque era semelhante; mas posteriormente as<br />

mulheres passaram a ser representa<strong>da</strong>s com to<strong>da</strong> a sensuali<strong>da</strong>de, insinuação, provocação e<br />

disponibili<strong>da</strong>de que o homem desejava na mulher dessa época -- o que não se evidenciava<br />

no nu feminino <strong>da</strong> Hélade. Essas representações tornam-se mais evidentes no Alto<br />

Renascimento, quando surgiram obras de nus lascivos, de abandono e exuberantes.<br />

Como curiosi<strong>da</strong>de, podemos comparar dois grandes artistas de épocas distintas, que<br />

ousaram na representação do nu feminino: Praxíteles foi o primeiro escultor a criar uma<br />

imagem de divin<strong>da</strong>de (Afrodite) nua com o corpo relaxado, livre <strong>da</strong> rigidez emprega<strong>da</strong> nas<br />

56


esculturas de sua época, com suas formas arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>s, em uma natural e graciosa posição<br />

no instante em que sai <strong>da</strong> espuma do mar.<br />

Séculos depois, Ticiano interpretou em sua pintura passagens de narrativas mitológicas e<br />

criou, dentre inúmeras obras, a Vênus de Urbino, considera<strong>da</strong> a imagem de nu feminino do<br />

Renascimento mais lasciva <strong>da</strong> escola veneziana. A Vênus está recosta<strong>da</strong> em uma cama,<br />

com os olhos abertos, consciente do seu encanto, como se estivesse liberando o nu existente<br />

<strong>da</strong> figura mítica – criando a mulher real. Seu corpo revela o ideal <strong>da</strong> beleza e gostos<br />

eróticos do Renascimento pleno: formas arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>s e corpulentas, ombros largos, seios<br />

pequenos.<br />

Essa comparação faz desses dois artistas referenciais para est<strong>ética</strong> clássica: com<br />

originali<strong>da</strong>de e ousadia recriaram a nudez feminina na arte e inspiraram várias gerações de<br />

artistas.<br />

Souto Maior (1976:112) conclui que, mais do que qualquer outro povo, o grego venerou a<br />

beleza, atingindo um grau incomparável nas suas concepções artísticas. A est<strong>ética</strong> grega<br />

influenciou to<strong>da</strong> cultura ocidental e lançou sua semente de perfeição na arte de representar<br />

a forma humana, principalmente através do nu. Mesmo tendo sido abafa<strong>da</strong> na I<strong>da</strong>de Média,<br />

teve no Renascimento seu despertar embasa<strong>da</strong> numa moral pe<strong>da</strong>gógica que refletia a<br />

intenção <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época, ao consagrar na arte o prazer do belo, propagando esse<br />

ideal de polis perfeita por to<strong>da</strong>s as gerações futuras.<br />

57


BIBLIOGRAFIA<br />

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2002<br />

CONTI, Flavio. Como Reconhecer a Arte Grega. São Paulo: Martins Fontes, 1978<br />

COTRIM, Gilberto. Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2000<br />

GOMBRICH, E.H. A História <strong>da</strong> Arte. Rio de Janeiro: LTC, 1999<br />

HAUSER, Arnold. História Social <strong>da</strong> Arte e <strong>da</strong> Literatura. São Paulo: Martins Fontes,1995<br />

JANSON, H.W. e A.E. Iniciação à História <strong>da</strong> Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996<br />

PROENÇA, Graça. História <strong>da</strong> Arte. São Paulo: Ática, 1996<br />

SOUTO MAIOR, A. História Geral. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976<br />

58


Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias<br />

RESUMO<br />

Alice <strong>da</strong> Silva Cunha (UFRJ)<br />

O herói troiano chega a Cartago, depois de empreender uma longa e atribula<strong>da</strong><br />

viagem, face aos perigos por enfrentados no mar, vítima do ódio <strong>da</strong> cruel Juno. No<br />

segundo canto <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, atesta-se o relato de Enéias acerca <strong>da</strong> guerra de Tróia, atendendo<br />

ao pedido <strong>da</strong> rainha Dido. Centrar-se-á este trabalho na fala de Enéias, procurando-se<br />

ressaltar aspectos trágicos que emanam de sua linguagem.<br />

Palavras-chave: literatura latina, epopéia, tragici<strong>da</strong>de, Enei<strong>da</strong>.<br />

Na composição de sua epopéia, Virgílio retoma o mito, bastante difundido em Roma,<br />

segundo o qual, Enéias teria fun<strong>da</strong>do uma colônia troiana no Lácio, fator esse de extrema<br />

relevância, uma vez que simbolicamente prefiguraria o renascer <strong>da</strong> antiga Tróia. Assim<br />

sendo, Enéias, o herói troiano, filho de Vênus e Anquises, que, por sua origem, configura a<br />

união do divino e do humano, deixa como descendência uma raça admirável, cujo destino<br />

lhe reserva um glorioso futuro.<br />

Limita-se, no entanto, o presente estudo ao segundo canto <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, estância em que<br />

Enéias, a pedido <strong>da</strong> rainha de Cartago, Dido, faz o relato <strong>da</strong>s agruras por que passou na<br />

guerra de Tróia, juntamente com sua família e o seu povo. Cabe, aqui, considerar em que<br />

circunstâncias, o herói dá início a sua fala: o narrador onisciente, em poucos versos, limitase<br />

a introduzir o canto, em que Enéias assume o função de narrador principal.<br />

Assim, diante de uma atmosfera marca<strong>da</strong> pelo silêncio e pela atenção de todos, Enéias<br />

inicia o seu discurso com estas palavras:<br />

“ Infandum, regina, iubes renouare dolorem,<br />

Troianas ut opes et lamentabile regnum<br />

eruerint Danai, quaeque ipse miserrima uidi<br />

et quorum pars magna fui. Quis talia fando<br />

Myrmidonum Dolopumue aut duri miles Vlixi<br />

temperet a lacrimis? Et iam nox umi<strong>da</strong> caelo<br />

praecipitat suadentque cadentia sidera somnos.<br />

Sed si tantus amor casus cognoscere nostros<br />

et breuiter Troiae supremum audire laborem,<br />

quamquam animus meminisse horret luctuque refugit,<br />

incipiam. ” (II, 3-13)<br />

[ Levas-me, ó rainha, a renovar uma indescritível dor, ao relembrar como os Dánaos<br />

destruíram as riquezas de Tróia e o seu reino digno de lamento, acontecimentos muitíssimo<br />

tristes que eu próprio presenciei e dos quais fui parte importante. Quem dentre os<br />

59


mirmidões ou dólopes, ou que sol<strong>da</strong>do do cruel Ulisses, com o relato de tais fatos, poderia<br />

conter as lágrimas? E, logo, a noite úmi<strong>da</strong> desce do céu e os astros cadentes convi<strong>da</strong>m ao<br />

sono. Mas se é tão grande o teu desejo de conhecer os nossos infortúnios e ouvir, em<br />

poucas palavras, o derradeiro suplício de Tróia, embora o meu espírito se aterrorize ao<br />

lembrar tais fatos e sinta repugnância ao luto, eu começarei. ]<br />

Há que se ressaltar, nos versos acima, o caráter introdutório de que se reveste o início<br />

<strong>da</strong> fala de Enéias; trata-se, na ver<strong>da</strong>de, de um preâmbulo, em que o sujeito <strong>da</strong> enunciação<br />

deixa patentes as diretrizes por que se vai pautar o seu discurso. Portanto, ao narrar as<br />

agruras <strong>da</strong> guerra de Tróia, o narrador revela sua efetiva participação nesse acontecimento,<br />

o que demonstra o seu comprometimento com o narrado. Assumindo, pois, a perspectiva<br />

do vencido, Enéias apresenta a situação trágica vivencia<strong>da</strong> pelos troianos, após a derroca<strong>da</strong><br />

de Tróia. A sua elocução tem início com o adjetivo infandum , cuja forma resguar<strong>da</strong> o<br />

sentido de sua origem verbal (gerundivo de fari), vinculado a dolorem ( a dor que não se<br />

pode exprimir), ocupando o sintagma estrategicamente as extremi<strong>da</strong>des do primeiro verso,<br />

o que, de forma contrastante, ressalta o abismo existente entre os sentimentos por ele<br />

vivenciados e os limites que lhe são impostos pela linguagem. O discurso do eu enunciador<br />

reveste-se, ain<strong>da</strong>, de um certo teor lírico, uma vez que não se pauta por um distanciamento<br />

entre o sujeito e o objeto, fator que predispõe à recor<strong>da</strong>ção lírica, <strong>da</strong>í renouare dolorem;<br />

além do mais, a manifestação do eu no discurso (ipse uidi, pars magna fui) evidencia não<br />

apenas o seu papel como testemunha dos acontecimentos narrados, mas também a sua<br />

atuação nos mesmos, através de um discurso marcado por vocábulos de teor avaliativo –<br />

infandum dolorem, lamentabile regnum, quaeque miserrima – donde se infere o seu<br />

comprometimento com o narrado.<br />

Numa referência à narrativa dos fatos ocorridos na guerra de Tróia, o narrador faz uso<br />

<strong>da</strong> forma fando, deriva<strong>da</strong> do verbo fari (falar), contrapondo-a a infandum, atesta<strong>da</strong> no início<br />

de sua elocução, fator esse de relevância no contexto <strong>da</strong> epopéia como um todo, uma vez<br />

que, ao narrar os infortúnios que acometeram o povo troiano, Enéias defronta-se novamente<br />

com o seu doloroso passado, o que, de certo modo, evidencia não só a coragem do herói<br />

face ao passado, mas prenuncia a sua bravura para enfrentar os desafios que lhe reservam<br />

o futuro. A interrogativa retórica chama, de forma apelativa, a atenção dos ouvintes para<br />

as atroci<strong>da</strong>des ocorri<strong>da</strong>s em Tróia, e cujo relato não poderia, de forma alguma, conforme<br />

assinala o narrador, deixar insensível, nem mesmo, os próprios artífices <strong>da</strong> guerra.<br />

Os últimos versos, que constituem o que se poderia considerar um exórdio, <strong>da</strong>do o seu<br />

caráter introdutório, demonstram, de maneira bastante contundente, o sofrimento por que<br />

passará Enéias, ao relatar a que<strong>da</strong> de Tróia: animus meminisse horret luctuque refugit . O<br />

fato de relembrar a situação crítica, vivencia<strong>da</strong> na derroca<strong>da</strong> de Tróia, atinge, de tal modo,<br />

o eu enunciador, que, tomado de temor e tremor (horret), manifesta incondicional aversão<br />

ao sofrimento por ela desencadeado. Ora, esta atitude do herói acha-se em consonância<br />

com os parâmetros que norteiam a concepção do trágico. Assim sendo, desde o início de<br />

sua elocução, o narrador deixa transparecer índices que, ao longo de seu discurso,<br />

constituem pontos de articulação dos mais diversos níveis, dentre os quais pode-se também<br />

vislumbrar ressonâncias do trágico.<br />

Na seqüência do poema, a narração de Enéias aponta para algo bastante estranho que<br />

chama a atenção dos troianos: um imenso cavalo construído pelos gregos, com a arte <strong>da</strong><br />

divina Palas. Havia divergência entre os troianos em relação ao que se deveria fazer com o<br />

cavalo, enquanto alguns defendiam a sua entra<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong>s muralhas de Tróia, outros<br />

60


consideravam ser mais prudente precipitá-lo no mar. Em sua fala, Laocoonte faz veemente<br />

advertência aos troianos, exortando-os a não confiarem nos gregos.<br />

“... O miseri, quae tanta insania, ciues?<br />

creditis auectos hostis? aut ulla putatis<br />

dona carere dolis Danaum? sic notus Vlixes?<br />

Aut hoc inclusi ligno occultantur Achiui,<br />

aut haec in nostros fabricata est machina muros,<br />

inspectura domos uenturaque desuper urbi,<br />

aut aliquis latet error; equo ne credite, Teucri.<br />

Quidquid id est, timeo Danaos et dona ferentis.”<br />

(v. II, 42-9)<br />

[Ó infelizes ci<strong>da</strong>dãos! Que tamanha loucura é essa? Acreditais que os inimigos<br />

partiram? Ou julgais carecer de dolo qualquer presente dos Dânaos? É assim que conheceis<br />

Ulisses? Ou os aqueus estão escondidos neste madeiro, ou esta máquina foi construí<strong>da</strong><br />

contra nossas muralhas, para vigiar as nossas casas e sobrevir contra a ci<strong>da</strong>de, ou alguma<br />

armadilha está nela escondi<strong>da</strong>; não acrediteis, ó teucros, no cavalo. Seja o que for, eu temo<br />

os gregos, mesmo quando trazem presentes.]<br />

Em sua elocução, Laocoonte tenta, com veemência, advertir os teucros com relação<br />

aos perigos que correriam por confiarem no inimigo. A sua fala, impregna<strong>da</strong> de emoção,<br />

deixa, de imediato, patentea<strong>da</strong> a situação caótica vivencia<strong>da</strong>, diante de presente tão<br />

inusitado. A interrogativa, que dá início ao seu discurso, enfatiza a sua perplexi<strong>da</strong>de, face à<br />

atitude dos troianos, já por ele considerados miseri ciues, uma vez que reféns de tamanha<br />

insânia ( tanta insania). No processo argumentativo, atesta-se o emprego de interrogativas<br />

de caráter retórico, através <strong>da</strong>s quais se enfatiza a periculosi<strong>da</strong>de dos gregos, cujas<br />

artimanhas, pela própria experiência, já deveriam ser conheci<strong>da</strong>s dos teucros. Apesar do<br />

alerta de Laocoonte, apontando para os possíveis estratagemas que envolveriam a colossal<br />

construção do cavalo, <strong>da</strong> sua exortação à desconfiança com relação aos gregos, mesmo<br />

quando estes oferecem presentes, pois aliquis latet error, não encontra a sua advertência<br />

eco por parte dos troianos. A frustra<strong>da</strong> tentativa de Laocoonte de iluminar as mentes<br />

troianas com a luz <strong>da</strong> razão constitui, o que se pode considerar, um dos fatores<br />

desencadeadores do trágico no poema, a hamartia, ou seja, o erro. Ao permanecerem na<br />

cegueira, os troaianos cometeram um erro involuntário, que os leva a vivenciar a trágica<br />

que<strong>da</strong> de Tróia. A seguir, pode-se ain<strong>da</strong> considerar como falta, ou seja, erro, a<br />

interpretação relaciona<strong>da</strong> com o episódio trágico de Laocoonte, sacerdote de Netuno, o<br />

qual, no momento em que sacrificava um touro em honra <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, viu serem atacados<br />

os filhos por duas serpentes provenientes do mar, sucumbindo também ele próprio, ao<br />

tentar socorrê-los.<br />

“Tum uero tremefacta nouos per pectora cunctis<br />

insinuat pauor, et scelus expendisse merentem<br />

Laocoonta ferunt, sacrum qui cuspide robur<br />

laeserit et tergo sceleratam intorserit hastam.<br />

Ducendum ad sedes simulacrum oran<strong>da</strong>que diuae<br />

Numina conclamant.” (v., 228-233)<br />

[E, então, um novo pavor invade os já amedrontados corações de todos, e dizem que<br />

Laocoonte merecia ter expiado o crime; ele que feriu com a ponta <strong>da</strong> lança o carvalho<br />

sagrado, e contra os flancos lançou um <strong>da</strong>rdo criminoso. Clamam todos que o simulacro<br />

deve ser conduzido até o santuário e que se deve prestar culto à deusa].<br />

61


A cena trágica de Laocoonte deixa os troianos em estonteante pavor, sensação esta que<br />

os impede de racionalizar com equilíbrio a situação por eles vivencia<strong>da</strong>. Estes, ao<br />

relembrarem não apenas o discurso, mas também a fato de ter Laocoonte ferido o flanco de<br />

madeira do portentoso cavalo, por considerá-lo instrumento de alguma cila<strong>da</strong> dos gregos<br />

contra os teucros – o que na narrativa posteriormente se vai confirmar como ver<strong>da</strong>deiro -,<br />

foi tido erroneamente como crime, passível de mereci<strong>da</strong> expiação. Portanto, a decisão dos<br />

troianos fun<strong>da</strong>menta-se numa premissa falsa, toma<strong>da</strong> como ver<strong>da</strong>deira, fator este<br />

desencadeador do erro fatal: levar o cavalo para dentro <strong>da</strong>s muralhas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de – abrindo,<br />

assim, as portas ao inimigo que a aniquilará.<br />

Desde o início de sua narração, Enéias deixa patente o terror de que foram tomados os<br />

troianos que vivenciaram os nefastos dias <strong>da</strong> guerra de Tróia, e sente repulsa pelo terror<br />

(animus horret) que a expectativa de tal relato leva ao seu espírito, diante de tão<br />

calamitosos acontecimentos. Assim sendo, o discurso do herói troiano pauta-se por um teor<br />

eminentemente trágico, pois, ao suscitar o terror que vai desencadear a compaixão,<br />

configura-se, de certo modo, em consonância com os parâmetros vigentes na composição<br />

de obras trágicas. Pode-se, ain<strong>da</strong>, salientar, em um outro passo do poema, já aqui<br />

analisado, o espectro do terror resultante <strong>da</strong> seqüência narrativa que envolve o episódio de<br />

Laocoonte como um todo. Há que se ressaltar, além disso, que, em várias passagens do<br />

poema, o terror é suscitado pelas cenas de guerra marca<strong>da</strong>s por notória e extrema cruel<strong>da</strong>de.<br />

O relato <strong>da</strong> guerra tem, por assim dizer, o seu clímax na morte de Príamo, figura de<br />

maior relevo do reino, configurando, assim, de forma decisiva, a capitulação de Tróia<br />

diante do inimigo.<br />

“... Hoc dicens altaria ad ipsa trementem<br />

traxit et in multo lapsantem sanguine nati,<br />

implicuitque comam laeua, dextraque coruscum<br />

extulit ac lateri capulo tenus abdidit ensem.<br />

Haec finis Priami fatorum, hic exitus illum<br />

sorte tulit Troiam incensam et prolapsa uidentem<br />

Pergama,tot quon<strong>da</strong>m populis terrisque superbum<br />

Regnatorem Asiae. Iacet ingens litore truncus,<br />

Auolsumque umeris caput et sine nomine corpus.”<br />

(v. 550-558)<br />

[Dizendo tais palavras, arrastou o velho Príamo, que tremia, e escorregava na imensa<br />

quanti<strong>da</strong>de de sangue do filho, com a mão esquer<strong>da</strong> agarrou-lhe os cabelos e com a direita<br />

desembainhou a espa<strong>da</strong> refulgente e cravou-a no flanco até ao cabo. Tal foi o destino de<br />

Príamo - levou-o, então, a morte, por desgraça, a ver Tróia incendia<strong>da</strong> e Pérgamo destruí<strong>da</strong><br />

- ele que fora, outrora, soberbo dominador <strong>da</strong> Ásia, senhor de tantos povos e terras. Jaz na<br />

praia um enorme tronco, a cabeça separa<strong>da</strong> dos ombros, um corpo sem nome. ]<br />

Esta seqüência do poema relata os derradeiros instantes de vi<strong>da</strong> do velho Príamo, rei<br />

de Tróia, após a invasão de seu palácio, último reduto do poder, tomado pelos dânaos. Ao<br />

perceber que na<strong>da</strong> mais havia a fazer para impedir a derrota dos troianos na guerra, Príamo<br />

reveste-se <strong>da</strong> indumentária de guerra, e procura lançar-se à morte em meio aos inimigos,<br />

tentando, assim, morrer dignamente. Impede-o de cometer esse ato desesperado,<br />

a esposa, Hécuba que o convence a ficar junto <strong>da</strong> família, em companhia dos deuses<br />

Penates e a aguar<strong>da</strong>r a seqüência dos acontecimentos. Nota-se, na elocução de Enéias, ao<br />

longo de todo este relato a força do pathos, que se acentua gra<strong>da</strong>tivamente, quando, por<br />

exemplo, narra a dor de Príamo, ao presenciar a morte de Polites, seu filho, cruelmente<br />

62


assassinado por Pirro, não demonstrando este qualquer sinal de pie<strong>da</strong>de ou compaixão. A<br />

narrativa, num processo gradual ao nível <strong>da</strong> tragici<strong>da</strong>de, atinge o seu clímax, na violenta<br />

morte infringi<strong>da</strong> a Príamo por Neoptólemo.<br />

Assinale-se que, face às considerações feitas por Príamo em decorrência <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de<br />

dos atos de Neoptólemo, este reage com ironia, e, de imediato, executa friamente os seus<br />

intentos. Poucos são os versos relativos à narração <strong>da</strong> morte de Príamo, no entanto, a<br />

imagem que resulta de ação tão deplorável encontra eco na força do pathos que envolve a<br />

cena como um todo, além do terror suscitado diante de tamanha atroci<strong>da</strong>de. A cena, de forte<br />

impacto por sua tragici<strong>da</strong>de, assenta em dois pontos fun<strong>da</strong>mentais, por um lado a<br />

fragili<strong>da</strong>de de Príamo, por outro a cruel ação de Neoptólemo, expressa por verbos cujo<br />

valor semântico denotam ação violenta - traxit, implicuit, extulit, abdidit – que numa<br />

gra<strong>da</strong>ção ascendente atinge o clímax, no momento crucial <strong>da</strong> morte do rei, numa cena<br />

trágica, também marca<strong>da</strong> por forte apelo visual, em que se configura a catástrofe.<br />

Em outra passagem do poema, merece particular consideração o sentimento de terror<br />

despertado no eu enunciador, Enéias, face à trágica morte de Príamo. Após narrar a<br />

cruel<strong>da</strong>de de que fora vítima aquele a quem, outrora, dignificavam a glória e o poder,<br />

Enéias, estupefacto, diante de tamanho terror, não consegue experimentar qualquer reação.<br />

“At me tum primum saeuos circumstetit horror.<br />

Obstipuit; subiit cari genitoris imago,<br />

ut regem aequaeuom crudeli uolnere uidi<br />

uitam exhalantem; subiit deserta Creusa<br />

et direpta domus et parui casus Iuli.<br />

Respicio et quae sit me circum copia lustro.<br />

Deseruere omnes defessi, et corpora saltu<br />

ad terram misere aut ignibus aegra dedere.”<br />

(v. 559-566)<br />

[E, então, pela primeira vez, um cruel terror me paralizou. Fiquei atônito; veio-me à<br />

mente a imagem do meu querido pai, quando vi o rei, <strong>da</strong> mesma i<strong>da</strong>de, a expirar, com uma<br />

feri<strong>da</strong> mortal; veio-me à mente Creusa , abandona<strong>da</strong>, e a casa pilha<strong>da</strong> e o infortúnio do<br />

pequeno Iulo. Olho para trás e vejo a tropa que está ao meu redor. Cansados, todos me<br />

abandonaram, e, desgraça<strong>da</strong>mente, do alto lançaram à terra ou às chamas seus corpos<br />

esgotados.]<br />

Em sua elocução, o narrador deixa patente, de forma intensiva, através do adjetivo de<br />

teor avaliativo saeuos, referente a horror, a profun<strong>da</strong> comoção de que é acometido,<br />

causa<strong>da</strong> pelo impacto <strong>da</strong> violenta morte de Príamo. Diante de tão trágico acontecimento,<br />

Enéias, atônito, parece ter intuído que se cumpria o fatal destino de Tróia. Ao presenciar a<br />

morte iminente do rei, vem-lhe à lembrança a imagem de seu querido pai, e <strong>da</strong> família<br />

desintegra<strong>da</strong>, em decorrência dos efeitos <strong>da</strong> guerra; assim sendo, a vi<strong>da</strong> do rei, em seus<br />

instantes derradeiros, parece preconizar, no imaginário de Enéias, não apenas a morte dos<br />

súditos, mas qualquer outro tipo de infortúnio que leve à per<strong>da</strong> ou desagregação <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de como um todo. Os versos finais deste excerto manifestam o desespero dos<br />

troianos diante <strong>da</strong> trágica reali<strong>da</strong>de, que os leva a buscar a morte quer lançando-se para a<br />

terra, quer para as chamas, fator este desencadeador do desenlace, ou seja, <strong>da</strong> catástrofe,<br />

consoante a feição observa<strong>da</strong> na composição de obras nota<strong>da</strong>mente trágicas.<br />

O segundo canto <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do o teor de sua narrativa, pauta-se por uma linguagem<br />

cuja natureza pende para o trágico. Outra não poderia ser a sua vertente, pois o relato de<br />

63


Enéias acerca <strong>da</strong> guerra de Tróia, configura-se de acordo com a perspectiva do povo<br />

vencido, ao qual só resta o abandono do próprio solo natal. No âmbito <strong>da</strong> estrutura do<br />

poema como um todo, o segundo canto constitui o que se pode denominar um flash-back,<br />

uma vez que o poema épico começa in medias res, ou seja, no meio dos acontecimentos,<br />

assim sendo o primeiro canto <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> relata o início <strong>da</strong> viagem de Enéias e sua chega<strong>da</strong> a<br />

Cartago, não obedecendo, pois, à lineari<strong>da</strong>de do tempo. Ao herói troiano aguar<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong>,<br />

um longo e árduo percurso que se lhe impõe como desafio até a vitória decisiva, mas outro<br />

não é o caminho <strong>da</strong> heroici<strong>da</strong>de, pois, como o diz, de forma lapi<strong>da</strong>r, o poeta de<br />

1<br />

MensagemTPF FPT: “quem quer passar além do Bojador / tem que passar além <strong>da</strong> dor”.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ARISTÓTELES. Po<strong>ética</strong>. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 2003.<br />

STAIGER, E. Conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> po<strong>ética</strong>. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.<br />

VIRGILE. Enéide. Texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Bellesort. Paris:<br />

Les Belles-Lettres, 1948. Tome I.<br />

1<br />

TP PT PESSOA,<br />

Fernando. Mensagem. Lisboa: Ática, 1972. p. 70<br />

64


A SÁTIRA COMO EDUCAÇÃO EM ROMA<br />

Prof. Dr. Amós Coêlho <strong>da</strong> Silva<br />

Poetas que se destacaram pela sátira. Ecos satíricos em outros discursos poéticos.<br />

Juvenal, que não soube mentir, ocupou o seu tempo tentando a educar os romanos: Quid<br />

Romae faciam? Mentiri néscio. Que fazer em Roma? Não sei mentir.(I, 3, 41)<br />

A emergência urbana tornou o povo romano civilizado, mas insensato em suas<br />

preces suplicantes de desejos aos deuses: Juvenal, Sátiras, X.<br />

Palavras-chave: sátira; moralismo; humor; ironia.<br />

1 – INTRODUÇÃO<br />

O termo sátira, que não está ligado à divin<strong>da</strong>de grega Sátiro, provém do<br />

sintagma Satura lanx, que era a bandeja <strong>da</strong>s primícias, ofereci<strong>da</strong> à deusa Ceres que faz<br />

crescer a seara (MOISÉS, 1974: SÁTIRA). Ceres (BRANDÃO, 1993: 79-80) integra<br />

uma posição importantíssima no cenário religioso romano, devido à quali<strong>da</strong>de agrícola<br />

do povo latino, assimilou características de (IDEM, 1993: 271) Deméter: De-, variante<br />

de ‘Gē’, terra; ‘mēter’, mãe – Deméter é a terra cultiva<strong>da</strong>; Ceres personifica a Terra<br />

cultiva<strong>da</strong>. Essa divin<strong>da</strong>de, instituidora dos trabalhos agrícolas, ensinou ao povo, cuja<br />

característica mais importante então era ser um miles et agricola: Prima Ceres ferro<br />

mortalis uertere terram / Instituit, Ceres, como pioneira, instituiu que os mortais<br />

revolvessem a terra com o arado de ferro.<br />

Em reconhecimento à deusa <strong>da</strong> vegetação pela fartura <strong>da</strong>s sementeiras, em latim<br />

satio:<br />

P1Psătĭō, ās, āre, āvī, ātum, t.: saciar, fartar; satisfazer, saturar.<br />

P2Psătĭo, ōnis, f.: sementeira; campo semeado; plantação.<br />

Da mesma família, temos ain<strong>da</strong>: satis, adv.: bastante; sătŭra / sătĭra, ae, f.: prato<br />

de diversos frutos; etc. Em português, temos a continui<strong>da</strong>de latina como em satisfazer,<br />

satisfeito, saturar, etc. Da deusa, temos cereal (Ceres é um conexo com o v. crescere,<br />

'nascer, brotar; crescer, medrar') e derivações como cerealicultor, cerealicultura,<br />

cerealífero, cerealina, cerealista, cerealístico, cerealose, etc.<br />

Portanto, ofertava-se a Ceres em gratidão à satisfação ou ao estar saturado uma<br />

bandeja com os primeiros frutos colhidos. Mas em 364 a.C., Tito Lívio(séc. Ia.C.) nos<br />

relata que o Senado tinha importado <strong>da</strong> Etrúria os ludiones ou histriones, a fim de<br />

apaziguar o ânimo divino e arrefecer uma peste que assolava, então, o povo romano.<br />

Surpresos e deleitados com os movimentos de <strong>da</strong>nça e gracejos indecorosos, adotou-se<br />

a novi<strong>da</strong>de.<br />

A fescennina licentia, a permissivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de etrusca Fescênia, se consagrou<br />

através <strong>da</strong>s Confrarias dos Irmãos Arvais (de arua, os campos lavrados) e Sálios, cf.<br />

Varrão, De LL,V, 85: " Salii ab salitando", devido aos seus movimentos rápidos e<br />

vivos, eles saltitavam; <strong>da</strong>í o nome <strong>da</strong> Confraria: os Sálios (note-se que saltare, um<br />

iterativo intensivo antigo, foi superado por salire; salitare é um hápax de Varrão. Esse<br />

espírito galhofeiro, presente também em festas de cantos triunfais, se manifestou em<br />

momentos célebres, mesmo revirando às avessas compromissos e respeito hierárquico,<br />

como reverência a grandes generais como Júlio César:<br />

Gallias Caesar subegit, Nicomedes Caesarem.<br />

Ecce Caesar nunc triumphat qui subegit Gallias.<br />

Nicomedes non triumphat, qui subegit Caesarem.<br />

César subjugou as Gálias; Nicomedes,César.<br />

65


Eis César que agora triunfa porque submeteu as Gálias.<br />

Nicomedes, que submeteu César, não triunfa.<br />

A atitude grotesca e simplória do povo latino se depreende até na própria<br />

antroponímia. Seja na ordenação numérica dos filhos, seja num outro indicativo, por<br />

vezes, ridículo. Assim, her<strong>da</strong>mos Tércio, Otávio de Tertius (tertius, terceiro) e Octauius<br />

(octavus, oitavo); se a pessoa nascesse de manhã, do latim mane, chamar-se-ia Manius;<br />

se no mês de março, em português Márcio, do adjetivo Martius; ou, então, um aspecto<br />

caricatural do desenho <strong>da</strong> fava, lentilha grão-de-bico, defeito físico como,<br />

respectivamente, se apresenta a fisionomia de Fabius (relacionado com a forma <strong>da</strong><br />

fava), Lentulus (relacionado com a lentilha), Cicero (a forma do grão-de-bico), Naso<br />

(de nariz comprido).<br />

Esse sentimento rústico e coletivo consagrou o valor mágico dessa festivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s colheitas numa forma po<strong>ética</strong> com versos satúrnios.<br />

Apreciemos uma galeria de poetas que se inspiraram na festivi<strong>da</strong>de latina e<br />

construíram o estilo poético satírico:<br />

1 – Lucílio, Caius Lucilius, (180-102 a.C.) escreveu trinta livros de sátiras, dos<br />

quais nos restam em torno de seiscentos versosTPF<br />

1<br />

FPT, com<br />

prevalência em hexâmetros<br />

<strong>da</strong>tílicos, obra que projeta a permanência deste verso nos poetas de sátira: Horácio,<br />

Pérsio e Juvenal, bem como o estilo satírico na literatura: Dans le dernier tiers du<br />

deuxième siècle naît à Rome un genre littéraire: la satire. O temário <strong>da</strong>s poesias<br />

satíricas é formado de uma mistura, como a própria Satura Lanx, que era a reunião de<br />

primeiros frutos em honra <strong>da</strong> deusa Ceres.<br />

Sermones, porque, como Lucílio, a sua linguagem po<strong>ética</strong> tem o suporte do<br />

sermo familiaris, foi o título <strong>da</strong> obra horaciana, mas a História a consagrou como nome<br />

de Sátiras.<br />

A expressão de Juvenal (6, 165) Rara avis já estava em Horácio (Sát. 2, 2, 26) e<br />

em Pérsio (1, 46) – neste último, o escólio define-a como proverbial, conforme Renzo<br />

Tosi (1996: 323). A presente intertextuali<strong>da</strong>de confirma pela segun<strong>da</strong> vez (a primeira<br />

foi o emprego do hexâmetro <strong>da</strong>tílico, de acordo com o parágrafo acima) a preocupação<br />

em eleger do cotidiano um elemento menos fugaz, já que a natureza <strong>da</strong> sátira manifesta<br />

o fugidio ou volátil <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>: os erros e defeitos humanos. Sobre isso, Massaud Moisés<br />

observa que a sátira perde sentido e força à medi<strong>da</strong> que o tempo passa. Raramente uma<br />

obra satírica resiste ao desgaste dos anos: para tanto, é preciso que a causa do ataque<br />

satírico persista ao longo de to<strong>da</strong>s as transformações sociais, ou que a diatribe<br />

surpreen<strong>da</strong> uma falha inerente ao ser humano. (1974: 470)<br />

Os autores de sátira que ultrapassam os séculos souberam tirar do tema rotineiro<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>dos que não se confundiam com subjetivismo ou preferência meramente<br />

pessoal. Buscou elementos que resultaram em prejuízo coletivo que implica um certo<br />

comportamento individual.<br />

Assim, (2) Horácio (século I a.C.), Quintus Horatius Flaccus, trará a poesia<br />

como tema os defeitos humanos: a sua inconstância pelo fato de estar insatisfeito com a<br />

sua sorte e inveja a felici<strong>da</strong>de do próximo, as loucuras humanas como a prodigali<strong>da</strong>de, a<br />

avareza, a ambição insaciável, etc. Eis uma passagem de Horácio:<br />

Sordidus ac diues, populi contemnere uoces<br />

Sic solitus: " Populus me sibilat; at mihi plaudo<br />

Ipse domi, simul ac nummos contemplor in arca".<br />

Tantalus a labris sitiens fugientia captat<br />

1<br />

TP PT (HUMBERT:<br />

1932, 64): environ 600 vers.<br />

66


Flumina... Quid rides? mutato nomine de te<br />

Fabula narratur. (65-70)<br />

Rico, mas de sórdido, acostumou-se a desprezar os rumores do povo assim:<br />

"O povo me apupa; mas, quando comigo mesmo,<br />

Em casa, eu mesmo me aplaudo, enquanto contemplo as moe<strong>da</strong>s na arca".<br />

É Tântalo sedento que tenta beber a água que foge dos lábios.<br />

De que ris? Mu<strong>da</strong>do o nome, a narrativa fala de ti.<br />

Quantas vezes rimos de nós mesmos, quando não percebemos o nosso<br />

comportamento ridículo se realizando diante de nós mesmos, no dia-a-dia. Poeticamente<br />

rico é o discurso de Horácio. Tântalo é o símbolo do desejo incessante e incontido...<br />

sempre distanciado de concretizar a posse, o que é próprio <strong>da</strong> natureza humana. O vento<br />

tange para longe o cacho de uva quase alcançado. A água é insuficiente para saciar a<br />

sede, escoa entre os dedos ávidos.<br />

Desse modo, as loucuras humanas são disseca<strong>da</strong>s pelo bisturi epicurista de um<br />

poeta satírico exemplar. Imitations of Horace, de Alexander Pope (1688-1744), é uma<br />

dentre múltiplas indicações que o Mundo Ocidental dispõe do interesse que desperta a<br />

obra horaciana.<br />

3 - Julius Phaedrus, Fedro, nasceu na Trácia, veio para Roma como escravo e<br />

tornou-se liberto de Augusto, que o admirava. Sua obra, que introduz a fábula em latim,<br />

mas ele mesmo ressalta quem foi o criador: o grego Esopo. Sua obra só foi publica<strong>da</strong> na<br />

época de Tibério ou Calígula. Devido a suas referências de censuras sociais, sofreu<br />

processo e chegou a ser preso. Outros elos <strong>da</strong> corrente fabulista são La Fontaine na<br />

França; no Brasil: Monteiro Lobato, Millor Fernandes etc.<br />

Aulus Persius Flaccus, Pérsio (início do séc. I d.C.) integra o quadro uerae gloriae,<br />

de ver<strong>da</strong>deira glória, mesmo uno libro, com um único livro, como o afirma<br />

Quintiliano (X,1,94). O cunho moralista de sua sátira despertou estudos como o de C.<br />

Surnier, Le rôle des satires de Perse <strong>da</strong>ns la développment du néo-stoïcisme. Há uma<br />

frase de Pérsio que retrata alma humana de modo lapi<strong>da</strong>r: Vsque adeone / Scire tuum<br />

nihil est, nisi te scire hoc sciat alter? Até que ponto é teu algum saber, a não ser que teu<br />

saber, isso mesmo, o outro o saiba? (I, 26-7)<br />

4 - Marcus Valerius Martialis, Marcial, (40 a 104 d.C.) elegeu o epigrama como<br />

único caminho poético. Etimologicamente epigrama (de epí-, sobre e gramma, escrita,<br />

inscrição) são quaisquer inscrições em túmulos, monumentos e diversos objetos, em<br />

verso ou prosa; compõe também material de estudo de uma disciplina denomina<strong>da</strong><br />

epigrafia. Tornou-se, além disso, um poema curto de temas variados, ou seja, uma<br />

satura lanx. Em Marcial, encontramos o exemplo mais clássico de epigrama no Livro X,<br />

4, 8: Hoc lege quod possit vita “meus est”, Leia aquilo que a vi<strong>da</strong> possa dizer “é meu”.<br />

Nestes poetas mencionados temos um discurso satírico em peças literárias<br />

individualiza<strong>da</strong>s, mas na<strong>da</strong> impede a presença de uma passagem dispersa de sátira em<br />

obras caracteristicamente épicas, dramáticas ou líricas. Ou até em tratados, como neste<br />

passo horaciano: Cur nescire pudens praue quam discere malo?, Por que por puro<br />

pudor infun<strong>da</strong>do prefiro desconhecer a aprender? (Ars Poetica, 88, também nos versos<br />

416 - 8) A interrogação tem em si este tom questionador, irônico. Ironia em grego é<br />

pergunta, interrogação. Era este o bisturi de Sócrates diante dos sofistas: operar um<br />

parto de uma idéia com a interrogação, isto é, com a ironia.<br />

1.2 – Juvenal<br />

Decimus Iunius Iuuenalis (I d.C.), coetâneo de Marcial, segue o caminho aberto<br />

por Horácio sempre com hexâmetros <strong>da</strong>tílicos. São dezesseis poemas sob o título de<br />

67


Sátiras, afinal Quid Romae faciam? Mentiri nescio, Que hei de fazer em Roma? Não sei<br />

mentir... (I, 3, 41)<br />

Conselheiro, Juvenal tem muitos os versos que se tornaram proverbiais: Difficile<br />

est saturam non scribere, É difícil não escrever sátira (I, 30). Imbuído de justiça,<br />

adverte Dat ueniam coruis, uexat censura columbas, A censura é indulgente com os<br />

corvos e se encarniça contra as pombas (II, 63). Rara auis in terris, Ave rara no mundo<br />

(VI, 165); Panem et circenses, Pão e circo (X, 81) – as duas únicas coisas que<br />

interessavam ao povo romano de sua época (RÓNAI, 1980: 132) Mas Paulo Rónai<br />

estende isso a outras época quando cita José de Alencar: Cobiça e prazer, ‘panem et<br />

circenses’ – eis o que move as massas quando as desampara a crença de liber<strong>da</strong>de e <strong>da</strong><br />

digni<strong>da</strong>de popular. E também Camilo Castelo Branco: Fui a casa, e aquietei o motim<br />

intestinal, como os imperadores romanos aquietavam acanalha: ‘panem’, mas com<br />

manteiga, que os romanos não conheceram: o ‘et circenses’, traduzi-lho em café com<br />

leite.<br />

Isso mesmo as nossas autori<strong>da</strong>des deveriam ler, ao invés de projetos<br />

demagógicos: Maxima debetur puero reuerentia, Deve-se o máximo respeito às<br />

crianças (XIV, 45).<br />

Juvenal retrata a natureza humana como avarenta: Crescit amor nummi, quantum<br />

pecunia creuit, Cresce o amor ao dinheiro na mesma proporção em que cresceu o<br />

patrimônio (XIV, 139)<br />

Para Spalding (1958:114), desenvolveu para pôr a nu os vícios abomináveis que<br />

o cercavam; e teve êxito: de todos os satíricos romanos, é o mais completo e perfeito.<br />

2 – O ESTILO ESTÓICO DA SÁTIRA X<br />

Na X, Juvenal abor<strong>da</strong> a <strong>questão</strong> do desejo. O homem incomo<strong>da</strong> os deuses com<br />

seus votos desarrazoados, que, se escutados, se manifestam contra o próprio homem.<br />

Ele é cheio de desejos e, com isso, se prejudica, porque deseja a ele mesmo. Há lá, para<br />

um observador, muito para chorar, mas há também muito para rir: e Demócrito, no<br />

fundo, escolheu o partido certo (1-53).<br />

Deseja-se o poder: lembrem-se <strong>da</strong> que<strong>da</strong> de Sejano, <strong>da</strong> covardia do povo diante<br />

do favorito abatido, e será conveniente que Sejano se equivoque na sua manobra para<br />

obter o poder. Tibério o condena à morte. Mas, para o povo, que só quer pão e circo<br />

(81), aceitaria a condenação do próprio Tibério, se fosse este que tivesse sido<br />

condenado à morte.<br />

E os casos dos triúnviros Crasso (morreu em 53 a.C. numa armadilha quando<br />

tentava uma entrevista com o general dos partos, povo que deveria ser combatido por<br />

ele), Pompeu (apesar do seu prestígio, foi assassinado por ordem de Ptolomeu XII que<br />

queria agra<strong>da</strong>r a César) e César (foi assassinado por seu próprio filho Brutus, que<br />

acreditava que César era um déspota) (54-113)?<br />

Deseja-se eloqüência: foi ela que arruinou Demóstenes (384 – 322 a.C. - o mais<br />

célebre dos oradores atenienses combateu e venceu os projetos ambiciosos de Filipe<br />

quanto a dominar imediatamente a Grécia, mas teve de se suici<strong>da</strong>r porque criou<br />

inimigos que desejavam destruí-lo) e Cícero (século I a. C., defensor <strong>da</strong> República, mas<br />

projetou um inimigo cruel contra si mesmo: Marco Antônio que o assassinou<br />

cruelmente) (114-132).<br />

De que vale a glória militar, o destino de Aníbal nos ensina (o único general que<br />

conseguiu enfrentar a poderosa Roma; fugiu de sua pátria Cartago pela porta dos fundos<br />

para salvar-se <strong>da</strong> ira do povo); também o de Alexandre (apesar de to<strong>da</strong> a conquista<br />

68


militar, morreu jovem) e de Xerxes (rei <strong>da</strong> Pérsia, teve de fugir para a Ásia, porque foi<br />

derrotado em Salamina, mesmo tendo obtido outras vitórias) (133-187).<br />

Deseja-se longevi<strong>da</strong>de: é preciso não esquecer a hediondez psíquica do velho,<br />

suas decadências morais e intelectuais, suas dores, seus achaques... Por exemplo, Nestor<br />

(é apresentado por Homero como sendo o mais sábio e experiente dos gregos no cerco<br />

de Tróia) e Príamo (viu o seu reino, Tróia, incendiado pelos gregos) não teriam tido<br />

mais vantagem se morressem mais jovem (188-288)?<br />

Uma mãe imprevidente pede aos Céus beleza para seu filho ou sua filha. Se ela<br />

suspeitasse os perigos que ro<strong>da</strong>m a beleza: o efebo favorecido pela natureza será<br />

exposto aos caprichos de tiranos, ou à vingança de maridos. Que proveito tirou Hipólito<br />

(inspirou paixão incontrolável na sua madrasta Fedra, que, recusa<strong>da</strong> pelo belo rapaz, se<br />

vingou rasgando as roupas para simular um estupro diante do pai dele, Teseu. Este<br />

apelou para seu pai divino, Posídon, pois sentiu-se impotente para castigar o filho.<br />

Posídon fez sair do mar um monstro que assustou os cavalos de Hipólito que<br />

cavalgavam puxando a carruagem do filho de Teseu à beira-mar em Trezena. Como<br />

Hipólito [composto de: ‘híppos’, cavalo; ‘lýein’, desatar] se esfacelou contra os<br />

rochedos, Fedra se enforcou de remorso.) ou Belerofonte disso mesmo(289-345)?<br />

(Belerofonte que recebeu a purificação de um assassinato e a hospe<strong>da</strong>gem do rei Preto<br />

de Tirinto, inspirou a paixão <strong>da</strong> esposa real Antéia, conforme Homero, ou Estenebéia,<br />

como nos trágicos. Repudia<strong>da</strong> por Belerofonte, acusou-o de violentá-la. Preto transferiu<br />

para seu sogro que o castigo de Belerofonte, porque teve escrúpulos quanto à<br />

hospitali<strong>da</strong>de e à purificação realiza<strong>da</strong>. Tal castigo se constituiu no combate à Quimera,<br />

o que tranqüilizou Ióbates, o sogro de Preto. Mas com o cavalo Pégaso, conseguiu<br />

derrotar a Quimera. Outras missões perigosas lhe foram <strong>da</strong><strong>da</strong>s na tentativa de ele ser<br />

destruído. Ele retorna sempre vitorioso e se vingará de Estenebéia.)<br />

Vt tamen et poscas aliquid uoueasque sacellis<br />

Exta et candiduli diuina tomacula porci,<br />

Orandum est ut sit mens sana in corpore sano.<br />

Fortem posce animum mortis terrore carentem,<br />

Qui spatium uitae extremum inter munera ponat<br />

Naturae, qui ferre queat quoscumque labores,<br />

Nesciat irasci, cupiat nihil et potiores<br />

Herculis aerumnas cre<strong>da</strong>t saeuosque labores,<br />

Et uenere et cenis et pluma Sar<strong>da</strong>napalli.<br />

Monstro quod ipse tibi possis <strong>da</strong>re; semita certe<br />

Tranquillae per uirtutem patet unica uitae.<br />

Nullum numen habes, si sit prudentia. Nos te,<br />

Nos facimus, Fortuna, deam caeloque locamus.(354 - 66)<br />

Deve-se pedir que se tenha mente sã num corpo são,<br />

Embora, ao revés, tu peças algo mais e prometas nos templos<br />

As entranhas e as lingüiças divinas dos porcos brancos.<br />

Peça um ânimo forte isento do terror <strong>da</strong> morte,<br />

Como quem põe o extremo espaço <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> entre os dons <strong>da</strong> natureza,<br />

Como quem possa suportar alguns labores,<br />

Saiba não se irritar, na<strong>da</strong> deseje e antes<br />

Creia melhores as provações de Hércules e as penosas tarefas<br />

Do que tanto o prazer amoroso quanto banquetes, bem como as plumas de Sar<strong>da</strong>napalo.<br />

Eu mostro o que podes encontrar em ti mesmo: o caminho<br />

69


Único <strong>da</strong> tranqüili<strong>da</strong>de certamente abre-se pela virtude de vi<strong>da</strong>.<br />

Não tens nenhum poder, Fortuna, se houver prudência.<br />

Nós, apenas nós, te tornamos deusa, ó Fortuna, e te colocamos nos céus.<br />

Como se vê, temos conselho para que se domine o desejo, se enfrente os<br />

percalços <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e a aceitação de suas deficiências pessoais. Hércules era para a<br />

Antigüi<strong>da</strong>de <strong>Clássica</strong> o símbolo <strong>da</strong>quele que livraria o mundo do mal sem ficar<br />

esperando qualquer retorno que o compense pelos seus trabalhos. Portanto, uma ação de<br />

um ver<strong>da</strong>deiro filósofo do estoicismo.<br />

Referências bibliográficas:<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986. 3 v.<br />

- _______. Dicionário Mítico-etimológico <strong>da</strong> Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes,<br />

1992. Vols.I-II.<br />

- ______. Dicionário Mítico-etimológico <strong>da</strong> Mitologia e <strong>da</strong> Religião Romana.<br />

Petrópolis, Vozes, 1993.<br />

HUMBERT, Jules. Histoire Illustrée de la Littérature Latine: Précis Méthodique. Paris:<br />

Didier, 1932.<br />

JUVÈNAL. Satires. Texte établi et traduit par Pierre de Labriolle et François Villeneuve.<br />

Paris: Les Belles Lettres, 1950.<br />

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1974.<br />

MORISSET, R. & THÈVENOT, G. Histoires Litteraire. Principales Oeuvres. Morceaux<br />

Choisis. Paris: Magnard, s/d.<br />

RÓNAI, Paulo. Não perca o seu latim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.<br />

SPALDING, Tassilo Orpheu. Pequeno Dicionário de Literatura Latina. São Paulo:<br />

Cultrix, 1968.<br />

TOSI, Renzo. Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. Tradução de Ivone Castilho<br />

Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />

70


A tríade em Mimnermo: amor – juventude – velhice<br />

BÁRBARA SHÊNIA CARTES LOPES BORGES JORGE<br />

Graduan<strong>da</strong> – Univers<strong>da</strong>de Federal Fluminense<br />

A transitorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> juventude e o emergir <strong>da</strong> velhice são temas universais tratados por<br />

autores de diferentes épocas. Ain<strong>da</strong> que estes motivos estejam presentes em outros poetas <strong>da</strong> Grécia<br />

do período arcaico, foi nos fragmentos elegíacos de Mimnermo de Cólofon que esta temática<br />

encontrou sua maior forma de expressão.<br />

Mimnermo viveu na segun<strong>da</strong> metade do século VII a.C. A despeito de ser conhecido como<br />

Mimnermo de Cólofon, não se pode afirmar, com precisão, que o poeta seja procedente desta ci<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> região <strong>da</strong> Ásia Menor. Entretanto, por ter-lhe sido atribuí<strong>da</strong> uma coleção de poemas intitula<strong>da</strong><br />

Esmirnei<strong>da</strong>, <strong>da</strong> qual restaram poucos fragmentos, e por ter existido na ci<strong>da</strong>de de Esmirna, no<br />

período romano, conforme atestam <strong>da</strong>dos <strong>da</strong> epigrafia, um culto ou um clube chamado<br />

Mimnermeion (apud PESSANHA, p. 32), julga a maioria dos helenistas modernos que o poeta seja<br />

natural de Esmirna, ci<strong>da</strong>de que foi colônia de Cólofon.<br />

Mimnermo compôs elegias que versavam sobre o amor, as alegrias <strong>da</strong> juventude e as<br />

tribulações <strong>da</strong> velhice, sobre temas mitológicos e históricos. São atribuídos a ele, segundo a<br />

tradição, dois livros de elegias: Esmirnei<strong>da</strong> e Nanno. O primeiro tratava <strong>da</strong> história <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de de Esmirna e, ao que tudo indica, era de natureza narrativa. Quanto ao título do segundo<br />

livro, é designado, a julgar pelos versos do poeta elegíaco Hermesiânax, do século III a.C., pelo<br />

nome <strong>da</strong> flautista que acompanhava Mimnermo e pela qual ele era apaixonado: Nanno.<br />

Mivmnermo" de; to;n hJdu;n o} eu{reto pollo;n ajnatla;"<br />

h\con kai; malakou' pneu'ma to; pentamevtrou<br />

kaiveto me;n Nannou'", poliw'/ dæ ejpi; pollavki lwtw'/<br />

khmwqei;" kwvmou" ei\ce su;n !Examuvh/,<br />

Êhdhcqee dæ @Ermovbion to;n ajei; baru;n hjde; Fereklh'n 5<br />

1<br />

ejcqrovn, mishvsa" oi|æ ajnevpemyen e[ph. (fragm. 7, 35-40 Powell)TPF FPT<br />

Depois de ter sofrido muito, Mimnermo, que descobriu o doce<br />

som e o tom do suave pentâmetro, incendiou-se de amor<br />

por Nanno, e, muitas vezes amor<strong>da</strong>çado pelo brilhante loto,<br />

divertia-se com Examyes,<br />

mas odiava Hermóbio, sempre insuportável, e o odioso Férecles, 5<br />

já que (Mimnermo) detestava os versos que ele compusera.<br />

Contudo, os poemas inseridos no livro que parece evocar o nome <strong>da</strong> ama<strong>da</strong> do poeta estão<br />

longe de tratar de temática amorosa, como se pode inferir dos dísticos abaixo, cuja tônica é a<br />

laboriosa jorna<strong>da</strong> do Sol que, durante todo o dia, percorre o céu e, durante a noite, retorna ao<br />

oriente, em seu leito de ouro, sobre a superfície <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s:<br />

1<br />

TP PT Apud<br />

Iambi et Elegi Graeci (1992:83)<br />

!Hevlio" me;n ga;r povnon e[llacen h[mata pavnta<br />

ouj dev potæ a[mpausi" givgnetai oujdemiva<br />

i{pposivn te kai; aujtw/', ejpei; rJodo<strong>da</strong>vktulo" !Hwv"<br />

!Wkeano;n prolipou'sæ oujrano;n eijsanabh/':<br />

to;n me;n ga;r dia; ku'ma fevrei poluhvrato" eujnhv 5<br />

koiivlh @Hfaivstou cersi;n ejlhlamevnh<br />

crusou' timhvento", uJpovptero", a[kron ejfæ u{dwr<br />

eu{donqæ aJrpalevw" cwvrou ajfæ @Esperivdwn<br />

gai'an ej" Aijqiovpwn, i{na dh; qoo;n a{rma kai; i{ppoi<br />

eJsta'sæ, o[fræ !Hw;" hjrigevneia movlh/. 10<br />

#Enqæ ejpebhvseqæ eJw'n ojcevwn @Uperivono" uiJov". (fragm. 10 Adr.)<br />

Na ver<strong>da</strong>de, o Sol recebeu por sorte um trabalho durante todo o dia,<br />

jamais há descanso algum<br />

para ele e para seus cavalos, desde que a Aurora de dedos róseos,<br />

71


tendo deixado o Oceano, subiu ao céu;<br />

Na ver<strong>da</strong>de, através <strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s, o amável leito 5<br />

trabalhado, forjado pelas mãos de Hefesto<br />

em ouro precioso, alado, leva-o elevado sobre a água<br />

enquanto dorme profun<strong>da</strong>mente do país <strong>da</strong>s Hespérides<br />

até a terra dos Etíopes, onde um carro veloz e cavalos<br />

permanecem, até que a Aurora, filha <strong>da</strong> manhã, apareça. 10<br />

Então, o filho de Hiperião sobe em seu carro.<br />

É importante ressaltar que <strong>da</strong> produção remanescente de Mimnermo de Cólofon os seis<br />

primeiros fragmentos, insertos segundo a edição de Adrados no livro Nanno, exaltam a vi<strong>da</strong> e o<br />

amor e desprestigiam a velhice.<br />

Três deles contrapõem a juventude à velhice (fragmentos 1, 2 e 5), revestindo-se de um tom<br />

amoroso, ao passo que os outros três (fragmentos 3, 4 e 6) têm como tônica a velhice e suas<br />

conotações negativas. Entretanto, elegeu-se para o presente trabalho o fragmento 1 Adr., no qual se<br />

exalta a fase transitória <strong>da</strong> existência, a juventude, marca<strong>da</strong> por atributos <strong>da</strong> esfera <strong>da</strong> deusa<br />

Afrodite: o amor, o prazer e a beleza.<br />

Tiv" de; bivo", tiv de; terpnovn a[ter crush'" !Afrodivth"_<br />

teqnaivhn, o{te moi mhkevti tau'ta mevloi,<br />

kruptadivh filovth" kaiv meivlica dw'ra kai; eujnhv,<br />

oiJæ h{bh" a[nqea givgnetai aJrpaleva<br />

ajndravsin hjdev gunaixivn: ejpei; dæ ojdunhrovn ejpevlqh/ 5<br />

gh'ra", o{ tæ aijscro;n oJmw'" kai; kalo;n a[ndra tiqei',<br />

aijeiv min frevna" ajmfi; kakai; teivrousi mevrimnai,<br />

ouj dæ aujga;" prosorw'n tevrpetai hjelivou,<br />

ajllæ ejcqrov" me;n paisivn, ajtivmasto" de; gunaixivn:<br />

ou{tw" ajrgalevon gh'ra" e[qhke qeov". 10<br />

Que vi<strong>da</strong>, que prazer sem a doura<strong>da</strong> Afrodite?<br />

que eu morra quando essas coisas não mais me interessarem,<br />

um amor secreto, suaves dons e um leito,<br />

que vêm a ser as agradáveis flores <strong>da</strong> juventude<br />

para homens e mulheres; mas quando chega a dolorosa velhice, 5<br />

que torna feio igualmente o homem belo,<br />

sempre maus pensamentos consomem sua mente,<br />

e não se encanta olhando para a luz do sol,<br />

mas é odiado pelos filhos e desonrado pelas mulheres;<br />

assim dolorosa fez um deus a velhice. 10<br />

Como se pode depreender do citado fragmento, privilegia-se como tema a dicotomia<br />

juventude versus velhice, lugar-comum na poesia grega arcaica. Estabelecem-se, então, em relação<br />

antit<strong>ética</strong> os prazeres e as benesses <strong>da</strong> fase momentânea <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> – a juventude – e as agruras <strong>da</strong><br />

velhice.<br />

Inicia-se o fragmento com uma pergunta retórica: de fato, que alegrias podem existir sem<br />

Afrodite, deusa do amor, dos prazeres sexuais, <strong>da</strong> paixão avassaladora e <strong>da</strong> beleza? Deste modo,<br />

apresenta-se no verso inicial a concepção do sujeito lírico sobre a vi<strong>da</strong>, que consiste numa eterna<br />

busca de satisfação e prazer. Para corroborar essa concepção, evoca-se a deusa que simboliza a vi<strong>da</strong><br />

repleta de prazeres e encantos – Afrodite – cujos atributos, relacionados com a fase áurea <strong>da</strong><br />

existência, são os amáveis dons, que compreendem um amor secreto e um leito.<br />

Segundo Bowra (apud CAMPBELL, p. 224), há uma variação de ritmo entre os dísticos que<br />

versam sobre os prazeres <strong>da</strong> juventude – mais rápidos, assim como o é essa fase luminosa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

– e os que tratam <strong>da</strong>s desventuras <strong>da</strong> velhice – que são mais lentos, já que as frases vão se tornando<br />

mais curtas.<br />

72


Aos versos iniciais (1-5), que destacam o lado positivo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e relacionam com a<br />

juventude elementos que remetem ao amor, à beleza e ao vigor - como o leito, o amor secreto, a<br />

luminosi<strong>da</strong>de - opõem-se os versos que acentuam os aspectos negativos <strong>da</strong> velhice. Várias antítetes<br />

são constituí<strong>da</strong>s para enfatizar a dicotomia juventude x velhice: a vi<strong>da</strong> "bivo"" (v.1) contrapõe-se à<br />

morte, expressa pelo optativo desiderativo teqnaivhn, "que eu morra" (v.2); ao substantivo terpnovn,<br />

"prazer" (v.1), próprio <strong>da</strong> fase efêmera <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> (h{bh"), opõe-se o adjetivo ojdunhrovn, "dolorosa"<br />

(v.5), inerente à velhice (gh'ra"); aos meivlica dw'ra, "suaves dons" (v.3) contrapõem-se<br />

kakai;...mevrimnai, maus...pensamentos (v.7); à feiúra opõe-se a beleza e à luminosi<strong>da</strong>de, a<br />

escuridão.<br />

A relação entre as flores e a juventude é metafórica: com efeito, as flores são belas até que<br />

murchem e morram – o que ocorre rápido. E assim que isso acontece, tornam-se feias e são<br />

deixa<strong>da</strong>s de lado. Processo análogo ocorre com a juventude.<br />

Portanto, não podendo articular-se de modo algum com o princípio do prazer, é a velhice um<br />

fardo difícil de suportar, em virtude de provocar somente dores, que se manifestam em dois níveis:<br />

físico e psíquico. Físico, porque ela é responsável pela aparência feia e disforme do homem;<br />

psíquico, porque se caracteriza pela ausência de afeto e dos prazeres decorrentes do amor.<br />

Também no fragmento de número 3 Adr., os males oriundos <strong>da</strong> velhice refletem-se não<br />

somente no aspecto físico do homem, mas também em sua vi<strong>da</strong> psíquica, já que lhe acarreta a falta<br />

de afeto.<br />

To; pri;n ejw;n kavllisto", ejph;n parameivyetai w{rh,<br />

oujde; path;r paisi;n tivmio" ou[te fivlo".<br />

Quando passa a juventude, outrora muito belo,<br />

o pai não é honrado nem amado pelos filhos.<br />

Com base na análise do fragmento 1 Adr. pode afirmar-se que a vi<strong>da</strong> só tem sentido quando<br />

se pode gozar plenamente dos "suaves dons" de Afrodite.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CAMPBELL, David. The golden lyre. The themes of the Greek lyric poets. London: Gerald<br />

Duckworth & Co. Ltd, 1983.<br />

DICIONÁRIO OXFORD DE LITERATURA CLÁSSICA GREGA E LATINA. Compilado por Sir<br />

Paul Harvey. Traduzido por Mário <strong>da</strong> Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

FERREIRA, José Ribeiro. Amor e morte na cultura clássica. Coimbra: Ariadne, 2004.<br />

HISTÓRIA DE LA LITERATURA CLÁSICA I – LITERATURA GRIEGA. Editado por P.E.<br />

Easterling e B.M.W Knox. Madrid: Griedos, 1990.<br />

LÍRICOS GRIEGOS – ELEGIACOS Y YAMBÓGRAFOS ARCAICOS (SIGLOS VII-V A.C.). 3ª<br />

edicíon. Traduzido por Francisco R. Adradros. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones,<br />

1999, V.I.<br />

PEREIRA, Maria Helena <strong>da</strong> Rocha. O conceito de poesia na Grécia arcaica. Disponível em<br />

. Acesso 08 Abril 2008.<br />

73


PESSANHA, Nelly Maria. 'Mimnermo e os dons de Hebe e Afrodite'. Calíope – Presença<br />

<strong>Clássica</strong>. Rio de Janeiro: Departamento de Letras <strong>Clássica</strong>s – Facul<strong>da</strong>de de Letras/ UFRJ, 1993.<br />

Nº 9. p. 32-40.<br />

74


A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas.<br />

CARLOS JUNIOR GONTIJO ROSA<br />

Ator.<br />

MARÍLIA VIEIRA SOARES<br />

Professora Doutora do Departamento de Artes Corporais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Estadual de<br />

Campinas.<br />

Resumo<br />

Este estudo trata <strong>da</strong> personagem euripideana Taltíbio e sua função na tragédia As<br />

Troianas. Começamos abor<strong>da</strong>ndo uma leitura contemporânea <strong>da</strong> tragédia em teatro-<strong>da</strong>nça,<br />

na qual Taltíbio é visto como um personagem dramático. Depois, discutimos os aspectos<br />

subjetivos <strong>da</strong> personagem, contrapondo-a com diversos tipos de personagem. Este estudo<br />

caracteriza-se como uma tentativa compreender Taltíbio enquanto personagem, signo e<br />

indivíduo.<br />

Introdução<br />

Fomentado pelo Programa de Iniciação Científica através do Convênio PIBIC/SAE,<br />

cotas de 2007/2008, concedi<strong>da</strong> em 01 de agosto de 2007, o presente estudo traz como tema a<br />

personagem Taltíbio, em As Troianas, tragédia escrita por Eurípides e encena<strong>da</strong> em 415 a.C.,<br />

analisado sob aspectos teatrais, dramatúrgicos e literários. Tais aspectos se mostraram<br />

relevantes ao longo <strong>da</strong> pesquisa por percebermos que uma tragédia grega agrega essas e<br />

muitas outras características de áreas de conhecimento hoje distintas, mas que na Época<br />

<strong>Clássica</strong> caminhavam juntas.<br />

Inicialmente, pretendia-se analisar a personagem-foco deste estudo a partir <strong>da</strong><br />

composição coreográfica do Grupo de Pesquisa Ar Cênico, que transpõe a tragédia grega para<br />

uma linguagem contemporânea de <strong>da</strong>nça-teatro, a partir <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong> Técnica Energ<strong>ética</strong> e sob<br />

direção e orientação <strong>da</strong> Profa. Dra. Marília Vieira Soares. Durante nossos estudos, no entanto,<br />

percebemos que tanto a tragédia inspiradora quanto o espetáculo criado li<strong>da</strong>vam com temas<br />

bem mais abrangentes.<br />

Auxiliados pelas análises desenvolvi<strong>da</strong>s em sala de aula pelo Prof. Dr. Carlos Eduardo<br />

Ornelas Berriel, pudemos delimitar melhor a inquietação que nos provocava o material<br />

estu<strong>da</strong>do. A partir <strong>da</strong>í, desenvolvemos uma linha de pensamento sobre os aspectos subjetivos<br />

<strong>da</strong> personagem analisa<strong>da</strong>.<br />

Este estudo caracteriza-se, portanto, em uma tentativa de apreender a essência de<br />

Taltíbio sob variados aspectos, e compreendê-lo enquanto personagem, signo e indivíduo.<br />

O Espetáculo<br />

Estu<strong>da</strong>mos a estrutura <strong>da</strong>s coreografias compostas pelo Grupo de Pesquisa Ar Cênico<br />

para melhor contrapor os diversos pontos de vista e encontrar, assim, a orientação teórica do<br />

trabalho.<br />

Ao longo dos estudos, especialmente sobre os textos de GILMARTIN (1970) e<br />

DYSON e LEE (2001), percebemos a posição bem marca<strong>da</strong> em relação à personali<strong>da</strong>de<br />

bondosa de Taltíbio e sua tentativa de distanciamento entre sua pessoa e as ações que era<br />

1<br />

obrigado a executarTPF FPT. Em contraparti<strong>da</strong>, ambos os textos pretendem contradizer a leitura de<br />

D. J. CONACHER. Tivemos acesso ao seu texto, re-publicado na Oxford Readings in Greek<br />

Tragedy (2005), na qual Conacher descreve Taltíbio como “uma áspera e sinistra figura nas<br />

TP<br />

1<br />

PT “A voz dos sentimentos humanos na peça são encontra<strong>da</strong>s na personagem do arauto”. DYSON, 2000: 171.<br />

75


Troianas” (CONACHER, 2005: 338). Gilmartin e Dyson, no entanto, vêem em Taltíbio uma<br />

personagem solidária, que compreende os sentimentos alheios.<br />

O Grupo Ar Cênico, em seu espetáculo, faz uma leitura muito particular <strong>da</strong> situação<br />

deste personagem quando propõe uma nova estrutura para a tragédia, através <strong>da</strong>s lentes <strong>da</strong><br />

Técnica Energ<strong>ética</strong> e do Teatro-Dança. É sobre ela que falaremos.<br />

Embora muitos estudiosos sugiram Hécuba ou mesmo Tróia como fio condutor <strong>da</strong><br />

trama, concor<strong>da</strong>mos com WERNER (1999), quando diz que as personagens principais <strong>da</strong><br />

tragédia, como o próprio nome sugere, são as mulheres troianas. O mito central é “a<br />

apresentação de quatro personagens estreitamente ligados a Tróia” (WERNER, 1999: 14). Em<br />

torno do destino de ca<strong>da</strong> uma dessas mulheres agem os demais personagens, inclusive<br />

Taltíbio. Percebemos as diferentes formas como o arauto abor<strong>da</strong> ca<strong>da</strong> situação e ca<strong>da</strong><br />

personagem envolvido.<br />

Enquanto envolvidos no processo de montagem do espetáculo, conseguimos ver que<br />

as leituras dos intérpretes e <strong>da</strong> direção corroboram as de Gilmartin e Dyson. No entanto,<br />

elaboramos nossa reflexão partindo de uma análise branca, tentando compreender apenas o<br />

que a cena diz por si a quem assiste ao espetáculo, sem um conhecimento prévio do mito.<br />

Encontramos algumas cenas, especialmente no início do espetáculo, que se encaixam melhor<br />

com as leituras de Conacher.<br />

Por apresentarem pontos de vista muito díspares, podendo se dizer mesmo opostos,<br />

voltamos às nossas anotações de ensaios para encontrar o motivo de tão grande diferença.<br />

A linguagem escolhi<strong>da</strong> para composição do espetáculo não utiliza de recursos de<br />

expressão vocal. Todo o trabalho é embasado nas linguagens de gesto e de expressão corporal<br />

e facial. A opção do Grupo foi que os comentários de Taltíbio, assim como no texto original,<br />

fossem mais evidentes e individualizados na medi<strong>da</strong> em que a peça progride.<br />

Assim, nas primeiras cenas em que esse personagem aparece, chama<strong>da</strong>s pelo Grupo de<br />

“Entra<strong>da</strong> dos Guerreiros” e “Cassandra”, ele seria caracterizado como um guerreiro grego<br />

obediente às ordens de seus senhores. Essa leitura é similar à de Conacher quando diz que<br />

Taltíbio “é usado para representar a cruel<strong>da</strong>de impessoal dos Aqueus”(CONACHER, 2005:<br />

338). Logo em segui<strong>da</strong> à cena com Cassandra, foi inseri<strong>da</strong> uma cena que não havia na peça<br />

original: o “Treinamento de Taltíbio”. Neste solo, que simula um campo de treinamento<br />

grego, ocorre o primeiro redirecionamento energético <strong>da</strong> personagem.<br />

É sabido que o chakra utilizado para composição <strong>da</strong> personagem dos guerreiros no<br />

espetáculo – Menelau e Taltíbio – é o plexo solar ou chakra umbilical. Localizado no centro<br />

gravitacional do corpo, é responsável pelo equilíbrio e estabili<strong>da</strong>de. O bailarino que o<br />

potencializa tende a compor movimentos de sustentação e posições de risco, como grandes<br />

expansões e desequilíbrios estáveis. Sua escolha como caracterização do guerreiro se deu por<br />

suas características masculinas, de movimentos lineares, mecânicos e rígidos. To<strong>da</strong>s essas<br />

características podem ser percebi<strong>da</strong>s enquanto base para construção <strong>da</strong>s estruturas de<br />

movimentos <strong>da</strong> personagem. Mesmo com sua energia direciona<strong>da</strong> a outro chakra, o ponto de<br />

parti<strong>da</strong> é sempre o plexo solar.<br />

Como estávamos dizendo, seu primeiro redirecionamento, na cena do “Treinamento”,<br />

é para o chakra laríngeo em sentido centrípeto, “fonte <strong>da</strong> ira, do ressentimento, do irracional,<br />

<strong>da</strong> loucura” (SOARES, 2000, 59). Queremos com isso expressar o abalo e a consciência de<br />

Taltíbio para a atroci<strong>da</strong>de dos assuntos que serão abor<strong>da</strong>dos na seqüência <strong>da</strong> peça. “Taltíbio é<br />

o principal representante dos Gregos, e ele próprio não é um dos motores <strong>da</strong> conquista, mas<br />

apenas um servo cujo trabalho é cumprir ordens. Sua atitude compensa a brutali<strong>da</strong>de dos<br />

Gregos e nos mostra um ponto de vista diferente sobre o que está acontecendo” (DYSON,<br />

2000, 141): a diferença entre Taltíbio e seus coman<strong>da</strong>ntes é o que começa a transparecer nesta<br />

coreografia.<br />

76


Nas três primeiras cenas <strong>da</strong> personagem observamos, como já foi dito, uma orientação<br />

para a personagem cumpridora de ordens. Esta estrutura começa a se romper no final <strong>da</strong><br />

terceira cena.<br />

A próxima cena em que há a participação <strong>da</strong> personagem é “Andrômaca e Taltíbio”.<br />

Nesta cena, o arauto se fragiliza e se torna compreensivo. Ele deve levar o filho de<br />

Andrômaca para ser morto e, embora não deixe de cumprir suas ordens, tenta fazê-lo com o<br />

mínimo de prejuízo emocional para a mãe – se é que isso é possívelTPF<br />

2<br />

FPT. “A<br />

dor <strong>da</strong> despedi<strong>da</strong> é<br />

prolonga<strong>da</strong> e ao final Taltíbio tem que pegar a criança dos braços de sua mãe, e Andrômaca<br />

parte em cativeiro” (LUCAS, 1950: 212).<br />

É neste momento do espetáculo que sua energia balança entre o plexo solar –<br />

responsável pelo cumprimento <strong>da</strong> ordem – e o chakra cardíaco – que traz a nuance do horror<br />

em relação à ordem que tem que cumprir. Nesta cena, é explícita a consonância com a opinião<br />

expressa por Dyson em seu artigo, quando nos diz que Taltíbio tenta distanciar a sua pessoa<br />

<strong>da</strong>s ordens que tem que cumprir. “Ele quer que ela [Andrômaca] o distingua de seu ofício,<br />

como Cassandra não fez” (DYSON, 2000: 158). Esta vontade <strong>da</strong> personagem pode ser<br />

percebi<strong>da</strong> em seu próprio discurso, quando fala a Andrômaca:<br />

“Esposa, em tempos idos, de Heitor, o mais valente dos guerreiros, peço-te que não<br />

me odeies. Não é por minha vontade que te anuncio as comuns decisões de Dânaos<br />

e Pelópi<strong>da</strong>s.” (vs. 708-710).<br />

O chakra cardíaco é responsável pelos sentimentos amorosos sem cunho erótico (estes<br />

sendo de origem no chakra básico). No entanto, em sentido centrípeto, ou seja, opostos ao<br />

natural e saudável, este chakra gera sentimentos e gestos que expressam “o espírito trágico, a<br />

dor, a solidão, o pranto” (SOARES, 2000: 58).<br />

A cena de “Andrômaca e Taltíbio” é toma<strong>da</strong> pelo Grupo como o ápice dramático <strong>da</strong><br />

peça. A partir <strong>da</strong>qui “ele está evidentemente abatido pelas graves tarefas diante dele – ao<br />

contrário de sua primeira aparição, ele não vem com pressa, mas de má vontade – isso pode<br />

ser uma indicação de sua mente altera<strong>da</strong>” (DYSON, 2000: 156). Após a evidente vira<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

personagem, um novo solo que não era previsto no roteiro de Eurípides é inserido, o qual<br />

intitulamos o “Pesadelo de Taltíbio”.<br />

O solo conta com uma projeção no fundo <strong>da</strong> cena, onde aparece Taltíbio conduzindo<br />

Astianax até o alto de um penhasco e o arremessando de lá. Esta cena, na peça original, é<br />

apenas narra<strong>da</strong> a Hécuba por Taltíbio pelo sentido de obsceni<strong>da</strong>de que havia no teatro grego:<br />

mortes, entre outros, não poderiam aparecer em cena. Mas Taltíbio é omisso em sua narração,<br />

porque “se tivesse descrito a morte e enterro de Astianax (...), sem dúvi<strong>da</strong> o potencial para<br />

uma péssima descrição seria considerável; e se tivesse Andrômaca, e não Hécuba, quem fez<br />

os ritos, a peça poderia ter perdido a direta intervenção <strong>da</strong> compaixão do arauto”(Op. cit.:<br />

166).<br />

Enquanto essa cena é projeta<strong>da</strong>, no proscênio o ator <strong>da</strong>nça uma coreografia de chão,<br />

que representa o tormento pelos atos praticados. Esta coreografia foi inspira<strong>da</strong> no momento<br />

do texto original que Taltíbio expressa sua opinião pessoal acerca <strong>da</strong>s ordens que precisa<br />

cumprir:<br />

“Vamos, menino! Deixa ficar o braço terno de tua desventura<strong>da</strong> mãe, caminha para<br />

o alto <strong>da</strong>s muralhas que coroam a tua pátria, para o sítio onde o voto destinou que<br />

exalasses o teu espírito. (Para os guar<strong>da</strong>s). Agarrem nele. (Os guar<strong>da</strong>s apoderamse<br />

<strong>da</strong> criança). Ordens destas, devia proclamá-las alguém que não tivesse<br />

compaixão e que fosse mais insensível do que pertence à minha maneira de ser.”<br />

(vs. 782-789).<br />

2<br />

TP PT Como nos diz DYSON, 2000: 163: “Talthybius speaks with what cannot but be gentleness to the child, but once<br />

he has detached him from his mother he is firm in his command to his atten<strong>da</strong>nts to hold him”.<br />

77


Tivemos a intenção de demonstrar o que os vaticínios de Cassandra dão a entender no<br />

texto: “que os vencedores não sofreram menos que os vencidos” (EURÍPIDES, 2001: 16). É<br />

3<br />

um pesadelo eterno, que não o deixará em paz até após a morteTPF FPT.<br />

Depois desta cena, na<strong>da</strong> mais pode ser feito. Todos os fios de esperança a que os<br />

personagens se apegavam para tentar <strong>da</strong>r um mínimo de sentido à existência se esvaíram.<br />

Taltíbio volta com o bebê morto para que Hécuba o enterre. Sua entra<strong>da</strong> é feita já totalmente<br />

com a energia volta<strong>da</strong> para o cardíaco e “a pie<strong>da</strong>de do arauto grego com o príncipe troiano dá<br />

ao seu retorno com o corpo uma humani<strong>da</strong>de” (GILMARTIN, 1970: 214) repleta de<br />

compaixão na relação com aquelas mulheres.<br />

Primeiro o cadáver <strong>da</strong> criança, depois o escudo do pai-guerreiro, Taltíbio traz os<br />

elementos para que Hécuba faça os ritos fúnebres, tão importantes para a cultura helênica.<br />

Ambos são símbolos <strong>da</strong> derrota troiana: o cadáver <strong>da</strong>quele que poderia reerguer Tróia e o<br />

escudo do príncipe troiano que defendeu por tanto tempo a ci<strong>da</strong>de mura<strong>da</strong> e que agora<br />

também está morto. Esta não foi uma ordem dos Aqueus, mas uma atitude de “alguém que<br />

entende a importância do funeral para os enlutados e que oferece consolo; (...) a demonstração<br />

de ele próprio ser capaz de exercer alguma compaixão independente do cumprimento de suas<br />

ordens” (DYSON, 2001: 161). Hécuba se despede dos seus e é conduzi<strong>da</strong> com cui<strong>da</strong>do por<br />

Taltíbio para fora de cena. Durante esta cena, na qual Taltíbio não é senão suporte dramático<br />

4<br />

para a dor de HécubaTPF FPT, sua atitude denota uma tentativa de voltar ao início <strong>da</strong> peça, quando se<br />

mostra enérgico e obediente. Agora, no entanto, ele está fragilizado pelas atroci<strong>da</strong>des que<br />

cometeu e por mais que tenha tentado desvincular sua pessoa de suas ações, suas mãos já<br />

estão marca<strong>da</strong>s. Assim, Taltíbio termina a peça completamente transformado, porque “a<br />

compaixão de Taltíbio não é apenas uma <strong>questão</strong> de sentimentos, mas de início em um dos<br />

mais profundos e vigorosos símbolos <strong>da</strong> representação humana” (Op. cit.: 172).<br />

Muitos críticos dizem que As Troianas é uma tragédia onde falta a uni<strong>da</strong>de de ação e<br />

outros acreditam que Hécuba seja a personagem central <strong>da</strong> peça por permanecer o tempo todo<br />

em cena. Por que o Grupo optaria por retirar Hécuba em algumas cenas? E por que <strong>da</strong>r a<br />

Taltíbio, uma personagem ti<strong>da</strong> como menor por muitos teóricos, tanta importância?<br />

Acreditamos que tais dúvi<strong>da</strong>s não terão uma única e definitiva resposta se forem feitas<br />

a dois diferentes membros do Grupo. Temos nosso ponto de vista, que gostaríamos de<br />

compartilhar:<br />

Hécuba, embora seja uma personagem de grande força dramática, assim como as<br />

outras troianas não apresenta mu<strong>da</strong>nças significativas de pensamento ao longo <strong>da</strong> peça. Isso<br />

reforça a teoria <strong>da</strong> tragédia episódica. Então, “mesmo que Taltíbio não seja um herói e seus<br />

sentimentos não possam comparar-se aos de Hécuba dobra<strong>da</strong> sobre o neto morto” (Op. cit.:<br />

166), o Grupo ain<strong>da</strong> assim quis trazer o personagem de Taltíbio como um personagem<br />

dramático onde os espectadores se identificassem e encontrassem sentimentos nos quais se<br />

espelhar porque sua reação aos fatos “é a reação de alguém que não é um mero espectador do<br />

sofrimento <strong>da</strong>s troianas e tampouco alguém que pode ignorá-lo, as alguém que trata com as<br />

mulheres e inflige sobre elas ferimentos causados por outras pessoas” (Op. cit.: 155) - ele<br />

sofre com seus atos. “Nós tratamos Taltíbio como um personagem dramático completamente<br />

desenvolvido, ou seja, nós observamos sua linguagem como parte constituinte de um<br />

personagem dramático, o que significa ser reconhecível com um homem vivo” (Op. cit.: 142).<br />

Isso torna suas atitudes ao mesmo tempo evidentes e ambíguas, tema que trataremos à frente,<br />

quando propomos Taltíbio como um personagem dramático individualizado.<br />

3<br />

TP PT Como podemos perceber <strong>da</strong> observação que Dyson (2001: 159) faz dos textos de Barlow: “Talthybius starts<br />

with na outsider’s reactions yet finally gets drawn into the women’s tragedy”.<br />

4<br />

TP PT Como também observou Grube: “it is he who breaks into anapaests, and thus in a sense starts the lamentation<br />

which is taken up by Hecuba”, em GILMARTIN, 1970, p. 216.<br />

78


Terminando a reflexão até então construí<strong>da</strong>, pudemos compreender a personagem de<br />

Taltíbio, como nos fala Dyson, como uma personagem ingênua. Ele nos revela sua<br />

ingenui<strong>da</strong>de na cena com Cassandra, quando diz que podemos “ver que Taltíbio não é um<br />

autômato sem coração, mas (...) uma coisa, no entanto, que ele compartilha com seus<br />

coman<strong>da</strong>ntes é uma limita<strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> dimensão religiosa dos eventos” (Op. cit.: 167).<br />

Se transpusermos esta afirmação para outros momentos <strong>da</strong> peça e considerarmos que, quando<br />

ele lava o corpo de Astianax antes de levá-lo até a avó ou quando tenta se distanciar de suas<br />

ações com Andrômaca, por exemplo, ele está sendo ingênuo. Na<strong>da</strong> vai aliviar o sofrimento de<br />

uma avó ou de uma mãe que irão perder seu filho, mas ele, em sua simplici<strong>da</strong>de e boa<br />

vontade, tenta. O que podemos afirmar é que, enquanto uma personagem que busca a<br />

humani<strong>da</strong>de, “todos os seus consolos são baseados em valores humanos, ao passo que uma<br />

grande parte <strong>da</strong>s per<strong>da</strong>s relevantes fazem parte <strong>da</strong> esfera do sagrado” (Op. cit.: 168), ou seja,<br />

ele está tão impotente como as mulheres troianas não só pela sua posição de subordinado, mas<br />

porque lhe faltam recursos.<br />

Também pudemos perceber que nossa leitura, enquanto intérpretes <strong>da</strong> personagem,<br />

não concor<strong>da</strong> com Conacher e tampouco com Gilmartin ou Dyson e Lee. Estes teóricos,<br />

embora observem Taltíbio por pontos de vista opostos, apenas o observam como um<br />

personagem bidimensional, sem possibili<strong>da</strong>des de ser mais do que ele aparenta à primeira<br />

vista. Dizem que ele é o que é, seja bondoso ou áspero, e não se transforma ao longo <strong>da</strong> peça,<br />

ao passo que nós, juntamente com a direção, o vemos como um personagem dramático que, a<br />

partir dos acontecimentos ocorridos na peça, faz uma reflexão de si e se transforma, ou seja,<br />

ele possui uma curva dramática que faz com que sua visão de mundo seja diferente no início e<br />

no final do espetáculo. É essa curva dramática seu diferencial em relação às outras<br />

personagens <strong>da</strong> tragédia, como Hécuba ou Andrômaca, que só têm seus conflitos<br />

intensificados ao longo <strong>da</strong> ação e que nos comprova o potencial de Taltíbio para uma possível<br />

tentativa de individualização.<br />

A toma<strong>da</strong> de consciência sobre a individuali<strong>da</strong>de: uma possibili<strong>da</strong>de<br />

Acreditamos que “o drama é possível em qualquer tempo e pode ser invocado na<br />

po<strong>ética</strong> de qualquer época” (SZONDI, 2001: 24) e, portanto, que nossa personagem, enquanto<br />

esboço de um personagem dramático, apresenta características que o denunciam como<br />

indivíduo ou tentativa de indivíduo.<br />

Mesmo tendo ciência que o drama necessita de recursos completamente opostos aos <strong>da</strong><br />

tragédia clássica, especialmente a completa ausência de intervenções do eu-épico na obraTPF<br />

defendemos que a personagem possui traços dramáticos. Alguns aspectos que, ain<strong>da</strong> segundo<br />

Szondi, são exigências do gênero dramático, pode, ser observados em nossa personagem. Nos<br />

seus diálogos, Taltíbio, em vários momentos, tenta mostrar sua subjetivi<strong>da</strong>de ao outro e,<br />

embora não haja relação intersubjetiva entre as personagens, ele se mostra um caráter que<br />

possui esboço de subjetivi<strong>da</strong>de. Consideramos esta uma característica fun<strong>da</strong>mental para a<br />

posterior análise, visto que desenvolvemos estudo a partir de uma a<strong>da</strong>ptação em teatro-<strong>da</strong>nça<br />

<strong>da</strong> obra. Por suas características subjetivas, ou seja, de mais acessível comunicação com o<br />

público atual, Taltíbio ganhou maior destaque nessa montagem. Percebemos ain<strong>da</strong> na<br />

personagem uma uni<strong>da</strong>de de tempo não existente na obra como um todo. Tal uni<strong>da</strong>de confere<br />

à personagem uma possibili<strong>da</strong>de – utiliza<strong>da</strong> pelo Grupo de Pesquisa Ar Cênico – de linha<br />

dramática, “uma vez que to<strong>da</strong> cena possuiria sua pré-história e sua continuação (passado e<br />

futuro) fora <strong>da</strong> representação” (Op. cit.: 33).<br />

Buscamos, então, outro ponto de comparação dentre as tragédias gregas que chegaram<br />

até nós e este foi encontrado na personagem sofocleana Ismênia, de Antígona (441 a.C.).<br />

TP<br />

5<br />

PT Ver SZONDI, 2001: 29 ss.<br />

5<br />

FPT,<br />

79


Percebemos, em ambas as personagens, uma tentativa de reconhecimento de que seus atos não<br />

são compatíveis com a sua forma de pensar.<br />

“Ordens destas, devia proclamá-las alguém que não tivesse compaixão e que fosse<br />

mais insensível do que pertence à minha maneira de ser” (vs. 787-789).<br />

Entretanto, “o que se passa na interiori<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong> um, no que respeita às intenções<br />

mais recônditas, só é possível de aflorar completamente na consciência medievo-moderna,<br />

mas não no mundo greco-romano” (GAZOLLA, 2001: 67), ou seja, na cultura helenística o<br />

indivíduo é apenas reconhecível por seus atos, não sendo reconheci<strong>da</strong> sua “vontade”PF<br />

socie<strong>da</strong>de grega, ca<strong>da</strong> pessoa, dentro <strong>da</strong> sua condição – jovem, velho, mulher, escravo – deve<br />

exercer sua areté, que é a excelência moral, liga<strong>da</strong> à idéia de dever e à noção de Justiça. A<br />

areté faz com que as pessoas não se exce<strong>da</strong>m.<br />

A existência na Grécia Antiga é determina<strong>da</strong> pelas coletivi<strong>da</strong>des, principalmente pólis<br />

ou política, para os homens, e gênos ou família, para as mulheres. Ca<strong>da</strong> ato realizado por um<br />

grego deve levar em conta essas coletivi<strong>da</strong>des, que não consideram a individuali<strong>da</strong>de de ca<strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>dão. Na tragédia grega, os heróis trágicos são aqueles que tentam defender o coletivo de<br />

que fazem parte, exagerando (hybris) e levando suas ações às últimas conseqüências<br />

(hamartia).<br />

Na Grécia Antiga, a evolução do pensamento se mostrava temporalmente linear, e<br />

Eurípides, por se o mais novo dos grandes tragediógrafos e ter contato com os sofistas, traz<br />

uma visão mais aproxima<strong>da</strong> dos filósofos socráticos, corrente de pensamento que viria<br />

posteriormente à tragédia.<br />

Mas Eurípides já demonstra indícios do gênero dramático em suas obrasPF<br />

7<br />

FP. Como<br />

6<br />

FP. Na<br />

podemos perceber na fala de Taltíbio acima cita<strong>da</strong>, suas personagens tentam se mostrar<br />

diferentes <strong>da</strong>quilo que são obriga<strong>da</strong>s a fazer pela necessi<strong>da</strong>de de manutenção do coletivo.<br />

Contemporâneo de Eurípides, Sófocles, embora mais velho, também revela em suas<br />

tragédias que o pensamento grego caminha para uma tentativa de individualização. Cabe<br />

lembrar, antes de prosseguirmos, que o máximo de individualização que a socie<strong>da</strong>de grega<br />

alcança é a noção de alma, desenvolvi<strong>da</strong> por Platão em seus escritos posteriores à tragédia.<br />

Em Antígona, alguns críticos afirmam que “Ismênia não pode ser considera<strong>da</strong> como o<br />

que nós chamamos de caráter” (ROSENFELD, 2000: 206) enquanto que outros dão a ela<br />

grande importância dramática. Mesmo sendo uma personagem de importância, isso não torna<br />

o seu caráter forte. Aliás, esta característica se deve ao dual PF<br />

8<br />

FP constituído<br />

por Antígona e<br />

Ismênia. Enquanto a primeira age, mesmo que movi<strong>da</strong> pela hybris, para o bem de sua gênos, a<br />

outra se caracteriza pela inação e incerteza. Ismênia não se coloca contra sua família, embora<br />

também não fique a favor do Estado.<br />

A Ismênia de Sófocles se assemelha muito a algumas personagens de Eurípides, que<br />

“obedecem aos impulsos diversos <strong>da</strong> sua sensibili<strong>da</strong>de: não agem em função de um ideal<br />

claramente definido, mas sim movidos por medos e desejos. (...) Eurípides não mostra<br />

somente paixões, mas também os personagens, e estes personagens são, muitas vezes, na<strong>da</strong><br />

heróicos”(ROMILLY, 1998: 117).<br />

Retomando o pensamento-motriz deste trabalho, que é a análise <strong>da</strong> releitura em teatro<strong>da</strong>nça<br />

de As Troianas, percebemos uma semelhança <strong>da</strong> leitura que o Grupo de Pesquisa Ar<br />

6<br />

P P “A vontade não é um <strong>da</strong>do <strong>da</strong> natureza humana. É uma construção complexa que parece tão difícil, múltipla e<br />

inacaba<strong>da</strong> como a do eu, com a qual é em grande parte solidária. É preciso, pois, que evitemos projetar sobre o<br />

homem grego antigo nosso sistema atual de organização dos comportamentos voluntários, as estruturas de<br />

nossos processos de decisão, nossos modelos de comprometimento do eu com os atos”. VERNANT, 1999: 26.<br />

7<br />

P P Consideraremos como drama o gênero teatral surgido no final <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Média e que chega até os dias de hoje.<br />

Este gênero caracteriza-se, entre outros apectos, pela valorização <strong>da</strong>s características subjetivas dos seus<br />

personagens, quer principais, quer secundários.<br />

8<br />

P P Palavra <strong>da</strong> língua grega que “permite designar a afini<strong>da</strong>de íntima que une duas coisas individuais”<br />

ROSENFELD, 2000: 37, nota 28.<br />

80


Cênico descreve sobre a personagem de Taltíbio com ROUSE (1911) que, em uma bela<br />

passagem de seu texto, nos faz ver que, após a saí<strong>da</strong> de cena de Ismênia, não há mais relatos<br />

dessa personagem em qualquer resquício <strong>da</strong> Grécia <strong>Clássica</strong> que tenha chegado até nós. Ela, a<br />

partir <strong>da</strong>í, é uma sombra pairando. Todos os labdáci<strong>da</strong>s forma condenados a mortes horríveis,<br />

Ismênia foi entregue a uma existência sombria e tenebrosa, vagante. Assim também o Grupo,<br />

como pode ser observado no solo denominado “Pesadelo de Taltíbio”, pensa que Taltíbio não<br />

teve uma vi<strong>da</strong> tranqüila após a Guerra de Tróia.<br />

“É claro que, neste plano, seria preciso levar em conta uma evolução que,<br />

desde Ésquilo até Eurípides, tende a ‘psicologizar’ a tragédia, a sublinhar os<br />

sentimentos dos protagonistas. Em Ésquilo, pode escrever Mme. De Romilly, a<br />

ação trágica ‘compromete as forças superiores ao homem; e, diante dessas forças,<br />

os caracteres individuais se apagam, parecem secundários. Ao contrário, para<br />

Eurípides to<strong>da</strong> atenção se volta a esses caracteres individuais’” (VERNANT, 1999:<br />

9<br />

FP.<br />

42)PF<br />

Eurípides parece “converter delibera<strong>da</strong>mente as ações dos Gregos em decretos<br />

simplesmente impessoais” (KITTO, 1990: 49) e Taltíbio, embora tenha consciência de que as<br />

atitudes dos gregos não são “corretas”, não consegue desobedecer às suas ordens. Embora não<br />

concorde, não haveria lugar para ele na política se colocasse sua opinião individual acima do<br />

10<br />

coletivoPF<br />

FP. Mas, a partir do momento que lhe ocorre um pensamento dissociado do coletivo<br />

pólis, sua individuali<strong>da</strong>de aflora e ele já não mais se encaixa no coletivo. Assim também<br />

Ismênia, que tenta em todos os momentos <strong>da</strong> peça fazer emergir em si a individuali<strong>da</strong>de,<br />

ain<strong>da</strong> prematura, e acaba indo tão fundo dentro dela mesma, que enlouquece, perde-se. Essa<br />

necessi<strong>da</strong>de de afirmação do indivíduo denuncia que a estrutura <strong>da</strong> pólis está se dissolvendo,<br />

tal como é representado nas tragédias Hipólito e As Bacantes.<br />

Em Eurípides, “a apaixona<strong>da</strong> consciência subjetiva <strong>da</strong> inocência dos seus heróis<br />

manifesta-se em queixas amargas contra a escan<strong>da</strong>losa justiça do destino” (JAEGER, 1986:<br />

403). Taltíbio, em pequenos momentos de suas falas, já cita<strong>da</strong>s acima, manifesta indignação<br />

em executar as ordens dos Coman<strong>da</strong>ntes Gregos. Mas isso não o isenta <strong>da</strong>s conseqüências a<br />

sofrer pelos atos realizados. A tragédia “exige também o advento do indivíduo e do indivíduo<br />

apreendido na sua função de agente, a elaboração correlativa de noções de mérito e de<br />

culpabili<strong>da</strong>de pessoais, a aparição de uma responsabili<strong>da</strong>de subjetiva substituindo aquilo que<br />

se pôde chamar de delito objetivo, um começo de análise dos diversos níveis <strong>da</strong> intenção de<br />

um lado, <strong>da</strong> realização efetiva do outro” (VERNANT, 1999: 29). Só que o indivíduo ain<strong>da</strong> é<br />

uma realização prematura dentro <strong>da</strong>quela socie<strong>da</strong>de, e não teria lugar.<br />

“Separado de suas raízes familiares, cívicas, religiosas, o indivíduo na<strong>da</strong> mais é; não<br />

apenas se encontra sozinho, mas cessa de existir” (Op. cit.: 51). Loucura, solidão e angústia<br />

são alguns dos preços a serem pagos pelos personagens que tentam se libertar <strong>da</strong>s<br />

coletivi<strong>da</strong>des do povo grego e manifestar sua condição de indivíduo.<br />

“Advento <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de subjetiva, distinção entre o ato realizado de bom grado e<br />

o ato cometido de mau grado, consideração <strong>da</strong>s intenções pessoais do agente: inovações que<br />

os Trágicos não ignoraram” (VERNANT, 1999: 41). Mas não podemos nos esquecer que, na<br />

Grécia Antiga, “ser livre seria poder e querer seguir o que sua comuni<strong>da</strong>de estrutura quanto às<br />

ações” (GAZOLLA, 2001: 70). Todos os homens que se afastam deixam de ser ci<strong>da</strong>dãos<br />

gregos e, como Ismênia, tornam-se ci<strong>da</strong>dãos de si mesmos.<br />

Taltíbio ain<strong>da</strong> tem outro agravante, pois “nunca o autor [Eurípides] poderá ser<br />

explicado em bases Aristotélicas uma vez que estava a escrever uma tragédia não-<br />

9<br />

P P Citação de L’Évolution du pathétique d’Eschyle à Euripide. Paris, 1961: 27.<br />

10<br />

P<br />

P “A tragédia manifesta-nos a possibili<strong>da</strong>de de pensar o que é a ação humana sem a noção de vontade<br />

claramente exposta, sem a expressão de uma consciência de si capaz de captar suas próprias intenções e<br />

positivar suas ações a partir delas”. GAZOLLA, 2001: 69.<br />

81


Aristotélica” (KITTO, 1999: 117), ou seja, Eurípides já buscava novas formas, que não as<br />

convencionais tragédias, para promover a catarse em seu público.<br />

Não só em Ismênia e Taltíbio a toma<strong>da</strong> de consciência do indivíduo é prematura – e<br />

por isso aborta<strong>da</strong> -, mas o próprio pensamento sobre o individualismo ain<strong>da</strong> está apenas<br />

iminente nos pensadores gregos quando <strong>da</strong> representação <strong>da</strong>s peças. “Falta-lhes possuir esta<br />

força de realização, essa eficácia que é privilégio apenas <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de” (VERNANT, 1999:<br />

52). Afastados do seu coletivo, eles se afastam dos deuses e não agem de forma contundente<br />

no mundo em que vivem. Assim se tornam fa<strong>da</strong>dos à solidão, loucura e angústia aqueles que<br />

tentam colocar suas opiniões acima do bem coletivo.<br />

Já se sabe que a tragédia representaria o colapso do mundo grego clássico, marcado<br />

pelo declínio <strong>da</strong>s instituições e ascensão <strong>da</strong> filosofia, conjuntamente com a individualização e,<br />

por conseguinte, o ser universal. Essa idéia, no entanto, só será utiliza<strong>da</strong> de forma consciente<br />

e ver<strong>da</strong>deira pelos tragediógrafos gregos em As Bacantes, de Eurípides, e Édipo em Colono,<br />

de Sófocles, as últimas tragédias a serem escritas por eles. Até então, existiram apenas<br />

ensaios, melhores ou piores, de como li<strong>da</strong>r com esse novo conceito.<br />

“Pecando por despeito e por brutali<strong>da</strong>de<br />

ele tratou injustamente um benfeitor,<br />

encarcerando-o de maneira humilhante,<br />

cobrindo-o de ultrajes. Esta foi a causa<br />

<strong>da</strong> morte de Penteu pela mão de parentes,<br />

ao mesmo tempo justa e contra a natureza.”<br />

(EURÍPIDES, As Bacantes, vs. 1745-1750)<br />

Bibliografia<br />

ARISTÓTELES. Po<strong>ética</strong>. [trad. Jaime Bruna]. São Paulo: Cultrix, 1997.<br />

CONACHER, D J. The Trojan Women. In: SEGAL, E. Oxford readings in Greek Tragedy.<br />

Nova Iorque: Oxford University Press, 2005, p. 332-339.<br />

DYSON, M e LEE, K H. Talthybius in Euripides’ Troades. Greek, Roman and Byzantine<br />

Studies, Durham, v. 41, n. 2, p. 141-173, verão de 2000.<br />

EURÍPIDES. As Troianas. [trad. e introdução de Maria Helena <strong>da</strong> Rocha Pereira]. Lisboa:<br />

Edições 70, 2001.<br />

EURÍPIDES. Duas tragédias gregas: Hécuba e As Troianas. [trad. e introdução de Christian<br />

Werner]. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

a<br />

EURÍPIDES. As Bacantes. [trad. Mário <strong>da</strong> Gama Cury]. 5P P. edição. Rio de Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 2005.<br />

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo: Loyola,<br />

2001.<br />

GILMARTIN, K. Talthybius in the Trojan Women. American Journal of Philology,<br />

Blatimore, n. 91, p. 213-222, 1970.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. [trad. Artur M. Parreira]. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 1986.<br />

KITTO, Humphrey Davy F. A tragédia grega: estudo literário. [trad. José Manuel Coutinho e<br />

Castro]. Coimbra: Arménio Amado, 1990.<br />

LUCAS, D. W. The greek tragic poets. Londres: Cohen & West, 1950.<br />

ROMILLY, Jacqueline de. A tragédia grega. [trad. Ivo Martinazzo]. Brasília: Editora <strong>da</strong><br />

UnB, 1998.<br />

ROSENFELD, Kathrin H. Antígona – de Sófocles a Hölderlin: por uma filosofia “trágica”<br />

<strong>da</strong> literatura. Porto Alegre: L&PM, 2000.<br />

ROUSE, W. H. D. The two burials in Antigone. The Classical Review, v. 25, n. 2, p. 40-42,<br />

março de 1911.<br />

82


SOARES, Marília Vieira. Técnica Energ<strong>ética</strong>: fun<strong>da</strong>mentos corporais de expressão e<br />

movimento criativo. [Tese de Doutoramento]. Universi<strong>da</strong>de Estadual de Campinas.<br />

Campinas, 2000. Facul<strong>da</strong>de de Educação.<br />

SÓFOCLES. Antígona. São Paulo: Civilização Brasileira, 1970.<br />

SÓFOCLES. Ájax. [trad. Mário <strong>da</strong> Gama Cury]. São Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />

STEINER, George. A morte <strong>da</strong> tragédia. [trad. Isa Kopelman]. São Paulo: Perspectiva, 2006.<br />

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. [trad. Luiz Sérgio Repa]. São Paulo: Cosac &<br />

Naify, 2001.<br />

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1999.<br />

WERNER, Christian. Troianas, de Eurípides: estudo e tradução. [Dissertação de Mestrado].<br />

Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. São Paulo, 1999. Facul<strong>da</strong>de de Filosofia, Letras e Ciências<br />

Humanas.<br />

83


A <strong>questão</strong> <strong>da</strong> morte no poema Latino De Rerum Natura<br />

CAROLINA BARROSO DO COUTO<br />

Graduan<strong>da</strong> do Curso de Letras – UFF<br />

Resumo: O De Rerum Natura é o poema <strong>da</strong> razão, contra o medo. Esta obra livra o<br />

homem dos seus medos e permiti-lhe a ataraxia. O poeta insiste em provar que a morte<br />

não<br />

é temível, porque a alma é material e mortal.<br />

Lucrécio, autor do poema De Rerum Natura, é o primeiro a abor<strong>da</strong>r temas como<br />

o sofrimento <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de pela sua vi<strong>da</strong> não científica e pelo seu temor aos deuses.<br />

Tem por objetivo, a partir de fun<strong>da</strong>mentos epicuristas, garantir ao homem a sua paz de<br />

espírito a fim de libertá-lo do medo do fim e mostra-lhe o quanto<br />

a vi<strong>da</strong> deve ser<br />

aproveita<strong>da</strong>.<br />

Enfim a felici<strong>da</strong>de a qual tende a todos os seres vivos.<br />

Lucrécio inicia sua obra abor<strong>da</strong>ndo o princípio de to<strong>da</strong>s as coisas: os átomos, o<br />

vazio e o tempo. Os seres vivos se formam pelo clinamen, desvio que provoca o choque<br />

dos átomos produzindo um corpo sem religiosi<strong>da</strong>de ou predestinação, e tudo na<br />

natureza volta ao sono e à quietude, assim o homem não precisa temer a morte<br />

já que<br />

esta<br />

não destrói o corpo, ele apenas se dissolve e forma novas combinações:<br />

“E assim os movimentos destruidores não podem vencer<br />

perpetuamente nem sepultar eternamente a vi<strong>da</strong>, nem, por<br />

outro lado, os movimentos que criam e aumentam as coisas<br />

podem conservar perpetuamente as coisas cria<strong>da</strong>s”.<br />

(Lucrécio II 1973:140)<br />

O homem é um ser <strong>da</strong> terra que nasce, vive e morre igualmente a todos os seres<br />

existentes. E para alcançar a felici<strong>da</strong>de do ser é necessário conhecer a natureza e esta<br />

na<strong>da</strong> mais quer do homem um corpo sem dor e um espírito sem inquietação e sem<br />

medo, não a imortali<strong>da</strong>de. Ele é um ser <strong>da</strong> natureza e ele deve admitir com tranqüili<strong>da</strong>de<br />

o nascer e o morrer. Para a natureza há tempo todo a alternância de vi<strong>da</strong> ou morte e a<br />

teoria de Lucrécio é basea<strong>da</strong> na afirmação<br />

que na<strong>da</strong> vem do na<strong>da</strong> e na<strong>da</strong> se torna em<br />

na<strong>da</strong><br />

tudo é transformado, então:<br />

“Não é possível criar nem destruir a matéria “<br />

(Lucrécio I 1973:142)<br />

Para tratar <strong>da</strong> morte, Lucrécio direciona seu poema a características epicuristas<br />

como: tratar o medo instintivo à morte e à insensibili<strong>da</strong>de, afastar o medo do Aqueronte,<br />

pois não existem castigos infernais, combater as paixões mun<strong>da</strong>nas, as ambições e o<br />

desejo de prolongar os prazeres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, pois o epicurismo propaga o equilíbrio, até do<br />

prazer. O prazer é o princípio e o fim <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong> e o que desejamos quando não o<br />

temos, nos faz sofrer. O próprio Lucrécio distingue os desejos em naturais e vazios. Os<br />

naturais são essenciais para a vi<strong>da</strong> e os vazios são os gerados pela opinião na vi<strong>da</strong><br />

social. E estes são maléficos, pois criam os desejos aos prazeres desnecessários. O ser<br />

84


deve procurar<br />

contemplar e entender a natureza, levar um vi<strong>da</strong> simples e buscar a<br />

felici<strong>da</strong>de:<br />

“É, portanto necessário que venham dissipar este terror<br />

do espírito e esta escuridão,não os raios do Sol,<br />

nem os <strong>da</strong>rdos luminosos do dia,<br />

mas os fenômenos <strong>da</strong> Natureza e a sua explicação”<br />

85<br />

(Lucrécio III 1973:141)<br />

A morte não nos diz respeito já que quando vivos ela não está presente e quando<br />

está presente já não há vi<strong>da</strong>. A morte é ausência de dor,<br />

tristeza e sensações que possam<br />

perturbar<br />

o espírito e a alma. E o poenta ain<strong>da</strong> diz:<br />

“Na<strong>da</strong> na morte de ser temido por nós,<br />

pois não pode ser infeliz quem não existe e,<br />

depois que a morte imortal nos arrebata a vi<strong>da</strong><br />

mortal, estar morto é o mesmo que não haver nascido.”<br />

(Lucrécio III 1973:142)<br />

A morte é transformação. E pela morte participamos <strong>da</strong> renovação dos seres e<br />

<strong>da</strong>s coisas. Na<strong>da</strong> acaba, a energia de um corpo apenas diminui até esvanecer e se<br />

transforma em outro ser. Um corpo é constituído pela alma e pelo espírito e estes<br />

são<br />

partes vitais deste. São inseparáveis na vi<strong>da</strong> como inseparáveis na sua construção.<br />

O espírito localiza-se na região média do peito onde sobressaltam o pavor, o<br />

medo e as alegrias, sendo então a parte inteligível do corpo. A alma está dissemina<strong>da</strong><br />

por todo o corpo, obedece e move-se com a vontade do espírito, é a parte sensível e esta<br />

ligação provoca a somatização destes elementos. A alma cresce e se fortalece com o<br />

corpo e espírito e quando estes são abalados por um medo violento a alma por<br />

conseqüência sente o mesmo e se materializa em dores ou doenças. Pode ser abala<strong>da</strong> e<br />

cura<strong>da</strong> pela medicina ou destruí<strong>da</strong> aos poucos. Portanto a união destes deve ter não só<br />

uma<br />

origem comum como também um fim comum para alcançar a felici<strong>da</strong>de em vi<strong>da</strong>.<br />

“Este raciocínio demonstra que é corpórea a<br />

natureza do espírito e <strong>da</strong> alma: quando a vemos impelir<br />

os membros, arrebatar o corpo ao sono, demu<strong>da</strong>r o rosto,<br />

reger e dirigir todo o corpo, como na<strong>da</strong> disto se pode fazer<br />

sem contato e como não há contato sem corpo, não é<br />

ver<strong>da</strong>de que se tem de aceitar<br />

que o espírito e a alma são<br />

de natureza corpórea?”<br />

(Lucrécio III 1973:143)<br />

Um corpo nunca pode nascer e viver por si próprio ou perdurar após a morte. O<br />

espírito e a alma estão presentes a todo momento<br />

<strong>da</strong> mesma maneira que não há uma<br />

separação destes sem desastre e sem mal.<br />

É o espírito, mais do que a alma, que domina a própria vi<strong>da</strong>, na ver<strong>da</strong>de sem o<br />

pensamento e o ânimo não sobrevive o corpo e a alma. Pode-se assim dizer que o<br />

espírito<br />

nasce, cresce e envelhece juntamente com o corpo e a alma.<br />

“Assim como não é fácil arrancar o perfume aos grãos


do incenso sem que pereça a sua substância, assim<br />

também não é fácil extrair de todo o corpo a<br />

substância do espírito e <strong>da</strong> alma sem que tudo se<br />

dissolva, de tal modo se implicaram<br />

os seus<br />

princípios desde a primeira origem e aparecem<br />

dotados de uma vi<strong>da</strong> consorte.”<br />

O homem é sensível e com o tempo de vi<strong>da</strong> a alma e o espírito vão perdendo<br />

esta sensibili<strong>da</strong>de e assim se esvai. O corpo muitas vezes contrai doenças e também a<br />

alma e o espírito<br />

participam deste sofrimento com desgostos e dores cruéis e por<br />

conseqüência o espírito e a alma se desagregam sempre que neles penetram os contágios<br />

<strong>da</strong> doença.<br />

Portanto a alma é mortal<br />

e o corpo perecendo ela também perece. A alma, o<br />

espírito e o corpo têm causa conjuntas, então o prazer <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> só existe quando estão em<br />

conjunto estes três elementos.<br />

“Enfim, o poder vivo do corpo e do espírito só tem<br />

Vigor e desfruta <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> se é conjunto; sem o corpo<br />

não pode por si só a substância do espírito produzir<br />

movimentos vitais, nem por outro lado pode o corpo<br />

privado de alma subsistir e usar <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de.”<br />

Não há porque se preocupar com a morte, pois na<strong>da</strong> acaba. A energia diminui e<br />

se transforma em outra coisa. Desta morte é gerado outro ser e se a alma acabou não há<br />

como ter memória anterior, visto que interrompi<strong>da</strong> a memória significa a interrupção <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>. Esta alma desencadeará outra alma, então não há porque após <strong>da</strong> morte o tempo<br />

recolher a matéria e depois ser renova<strong>da</strong> em outro ser já que a este na<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma anterior<br />

lhe interessa. A eterni<strong>da</strong>de na<strong>da</strong> é para<br />

um ser morto, uma vez que ele não tem<br />

consciência<br />

de sua morte então não tem memória. A vi<strong>da</strong> é a memória e a morte é a<br />

transformação, como Lucrécio cita em:<br />

“Efetivamente, se a tal ponto se transformaram<br />

as facul<strong>da</strong>des do espírito que tenha desaparecido<br />

to<strong>da</strong> a retentiva <strong>da</strong>s coisas realiza<strong>da</strong>s, creio que<br />

se não an<strong>da</strong> muito afastado <strong>da</strong> morte: é por isso<br />

que é necessário confessar que morreu e a que<br />

existia antes e foi depois cria<strong>da</strong> a que depois<br />

existe.”<br />

86<br />

(Lucrécio III 1973:154)<br />

E como se pode mu<strong>da</strong>r de corpo após há morte? Não há. A alma, o espírito e o<br />

corpo se transformam juntamente, até porque os três em vi<strong>da</strong><br />

se desenvolvem juntas. O<br />

corpo<br />

é a mora<strong>da</strong> <strong>da</strong> alma, diz Platão, e desta maneira é impossível após a morte a alma<br />

encontrar outro corpo para habitar. Ela também se dissolve:<br />

“Mas como se vê que há no nosso corpo<br />

lugar determinado e disposto onde a alma<br />

(Lucrécio III 1973:147)<br />

(Lucrécio III 1973:152)


e o espírito podem crescer à parte, tanto mais<br />

devemos negar que possam gerar-se e<br />

perdurar fora do conjunto do corpo.”<br />

(Lucrécio III 1973:157)<br />

Lucrécio em De Rerum natura, ain<strong>da</strong>, expõe as aflições do homem que não está<br />

satisfeito com sua vi<strong>da</strong>, a morte como o pior dos males e sugere ou pelo<br />

menos aprova<br />

a morte voluntária:<br />

“Que tens tu, ó mortal, que te abandonar de tal<br />

modo a dores tão excessivas e amargas?<br />

Por que choras e te lamentas sobre a morte?<br />

Efetivamente, se a vi<strong>da</strong> anterior te foi agradável<br />

e se todos os prazeres não foram como acumulados<br />

num vaso furado e não correram e se perderam<br />

inutilmente, por que razão não hás de, tolo,<br />

retirar-te<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como um conviva farto e aceitar com<br />

equanimi<strong>da</strong>de um repouso seguro?”<br />

(Lucrécio III 1973:161)<br />

O epicurismo é uma filosofia que busca a vi<strong>da</strong> e não a morte, mas tem<br />

consciência que a morte é certa para todos, e não precisamos temê-la. O ser está vivo<br />

porque quer e pode morrer quando quiser, já que o ato de viver e morrer são livres. É<br />

um<br />

fato que alcança a todos. O homem geralmente não está satisfeito com sua vi<strong>da</strong>, mas<br />

também não aceit a a morte. Ele prefere viver na ilusão de dias melhores e sofrer por sua<br />

inveja, ambição ou medo e esquece que a morte é a ataraxia, ou seja, o fim do sofrer:<br />

“E então, porque tremer tanto em perigos e dúvi<strong>da</strong>s?<br />

Que enorme e maléfico desejo de viver nos subjulga?<br />

Há para os mortais um fim de vi<strong>da</strong> cer to e próximo:<br />

Ninguém pode evitar aparecer diante <strong>da</strong> morte.”<br />

Por fim, ao final do terceiro livro, Lucrécio abor<strong>da</strong> o desconhecimento do futuro<br />

e o que acontece na vi<strong>da</strong> é por um tempo determinado não por nós e sim pela Natureza.<br />

O homem foge o tempo todo de sua reali<strong>da</strong>de, sempre busca algo e quando alcança logo<br />

aparece outro desejo. E não é prolongando a vi<strong>da</strong> que<br />

se escapa <strong>da</strong> morte, pois morrer é<br />

um fato natural; e sim conhecer a Natureza, pois a origem de tudo vem <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de e é<br />

nela que os seres passam todo o tempo de sua vi<strong>da</strong> até a morte. Então não é necessário<br />

receá-la,<br />

já que a morte leva o homem ao descanso:<br />

“Também ficamos em dúvi<strong>da</strong> quanto à sorte<br />

que nos trará o futuro, que nos <strong>da</strong>rá o acaso<br />

quanto ao fim que se aproxima.”<br />

87<br />

(Lucrécio III 1973:164)<br />

ou<br />

(Lucrécio III 1973:164)


Em<br />

to<strong>da</strong> natureza uma ordem determina o ambiente e o lugar de ca<strong>da</strong> ser e há<br />

uma força determinante <strong>da</strong>s características <strong>da</strong>s espécies. Ca<strong>da</strong> ser nasce e morre no<br />

momento certo, concluindo<br />

assim que “ a morte, portanto,na<strong>da</strong> é para nós”. (Lucrécio<br />

III 1973:158)<br />

UBIBLIOGRAFIA<br />

NOVAK, Maria <strong>da</strong> Glória. Morte: princípio e fim no De Rerum Natura, <strong>Clássica</strong> -<br />

Revista<br />

Brasileira de Estudos Clássicos. Publicação Anual. São Paulo: <strong>Clássica</strong>,<br />

1994/1995.<br />

OS<br />

PENSADORES. Da Natureza. São Paulo: Editora Cultura, 1973.<br />

88


UAPRESENTAÇÃO<br />

Medéia – uma deusa humaniza<strong>da</strong><br />

DANIELE RODRIGUES RAMOS KAZAN<br />

Mestran<strong>da</strong> - UFF<br />

A Grécia Antiga, rica em produção de saberes dos mais variados tipos, continua<br />

sendo, até hoje, vista e revista por escritores e teóricos, que retomam suas temáticas e<br />

abor<strong>da</strong>gens, não só com relação a conhecimentos científico-filosóficos, mas também, no<br />

campo <strong>da</strong> ficção, apropriando-se de motes e personagens, modelos para reelaboração do<br />

pensamento humano.<br />

Uma de suas principais criações, no campo <strong>da</strong> ficção, foi o teatro, mais<br />

especificamente, a tragédiaTPD<br />

1<br />

DPT. É<br />

dentro desse limite que nossa investigação será feita. A<br />

peça analisa<strong>da</strong> será Medéia de Eurípedes, mas retomaremos o mito anterior e, também,<br />

a obra (posterior) de Apolônio de Rodes, Os argonautas. Nossa intenção é tentar<br />

resgatar o percurso do mito até chegar à formalização feita pelo tragediógrafo e o que a<br />

posteri<strong>da</strong>de, além <strong>da</strong> própria Grécia helenística, recebeu do mito original.<br />

A história de Medéia ficou mundialmente conheci<strong>da</strong> através <strong>da</strong> tragédia<br />

homônima de Eurípedes, encena<strong>da</strong> pela primeira vez em 431a.CTPD<br />

2<br />

DPT. A<br />

narrativa foi<br />

retoma<strong>da</strong> inúmeras vezes em diferentes épocas, to<strong>da</strong>s tendo como foco as principais<br />

características que o tragediógrafo atribuiu à personagem: uma mulher traí<strong>da</strong>,<br />

abandona<strong>da</strong>, inflama<strong>da</strong> pelo desejo de vingança, estranha à terra em que vive, que usa<br />

seus conhecimentos de farmakísTPD<br />

3<br />

DPT para<br />

acabar com seus inimigos e que mata seus<br />

próprios filhos num ato último de ira contra aquele que não honrou a palavra<br />

empenha<strong>da</strong>.<br />

Voltando um pouco às origens, seria mesmo assim a Medéia mítica em que<br />

Eurípedes se inspirou? De onde surgiu Medéia?<br />

Vejamos o que Olga Rinne (2005: 63) nos escreve sobre isso:<br />

Os mitógrafos posteriores [às socie<strong>da</strong>des matriarcais] tendiam à<br />

reprimir to<strong>da</strong> lembrança do passado “bárbaro”, o que não se relaciona apenas<br />

com a época dos sacrifícios humanos mas com todo o sistema <strong>da</strong> religião <strong>da</strong><br />

deusa, também na sua forma ulterior, diferencia<strong>da</strong> e altamente cultua<strong>da</strong> — e a<br />

desvirtuar a interpretação dos respectivos mitos.<br />

Nossa proposta, portanto, é reconstruir o trajeto percorrido pela história de<br />

Medéia, desde a socie<strong>da</strong>de matriarcal que a fun<strong>da</strong>mentou, até chegar aos palcos gregos<br />

através <strong>da</strong> encenação cria<strong>da</strong> por Eurípedes. No meio desse caminho, buscaremos,<br />

também, entender como e por que Medéia é essa figura singular entre as demais<br />

personagens femininas gregas, já que não pertence a nenhum grupo específico: não está<br />

entre as demais humanas, não é somente uma simples feiticeira inicia<strong>da</strong> por Hécate,<br />

nem mesmo faz parte do seleto grupo <strong>da</strong>s deusas olímpicas.<br />

USEGUINDO OS RASTROS DO MITO<br />

Antes de pensar a personagem em <strong>questão</strong>, é necessário remontar às socie<strong>da</strong>des<br />

primitivas, nas quais os mitos eram tidos como ver<strong>da</strong>des, como modos de se entender e<br />

organizar o mundo. Segundo Mircea Eliade (2007: 07), nas socie<strong>da</strong>des arcaicas, “(...)o<br />

mito designa (...) uma ‘história ver<strong>da</strong>deira’ e, ademais, extremamente preciosa por seu<br />

89


caráter sagrado, exemplar e significativo”. Particularmente sobre os mitos gregos,<br />

Antonio Medina Rodrigues afirma:<br />

90<br />

A rigor, os mitos gregos procedem de uma Grécia pré-helênica, vale<br />

dizer, <strong>da</strong> Grécia minóica e micênica, para não falar dos indo-europeus, que<br />

estiveram na Grécia bem antes, e que lá deixaram sua ideologia bélica,<br />

religiosa e trabalhista.<br />

RODRIGUES, 2000.<br />

Com o surgimento do teatro, alguns mitos se modificaram. Aqueles que antes<br />

eram deuses passaram a ser na<strong>da</strong> menos do que simples personagens e os rituais se<br />

transformaram em enredos. Especificamente sobre Medéia, Rodrigues (2000) nos<br />

informa que:<br />

O ressentimento de Medéia está ligado ao que ela fizera e ao que lhe<br />

fizeram em tempos memoriais, em algum recanto <strong>da</strong> Cólqui<strong>da</strong>. Isto nos<br />

obriga a li<strong>da</strong>r com o simbólico. Medéia é anterior ao panteão olímpicopatriarcal.<br />

Jasão, ao contrário, reza nos terreiros <strong>da</strong> Grécia masculina. Há uma<br />

anacronia na peça de Eurípides.<br />

Olga Rinne (2005: 37-8) compartilha de sua opinião:<br />

As muitas facetas <strong>da</strong> figura de Medéia constituem a ressonância<br />

literária de antigos cultos que, já na época <strong>da</strong> Grécia “clássica”, eram de um<br />

passado distante. (...) os mitos do passado se mesclaram com elementos de<br />

len<strong>da</strong>s e memórias históricas. (...)<br />

As confusões e contradições (...) provém, antes de tudo, do fato de que<br />

os narradores interpretavam mal as representações simbólicas não<br />

pertencentes ao sistema religioso <strong>da</strong> sua própria época, mas a um sistema<br />

anterior de referência religiosa, que era a veneração <strong>da</strong> Grande Deusa.<br />

Os mitos antigos, portanto, eram a base <strong>da</strong>s narrativas trágicas, mas intervenções<br />

de ordens diversas (sociais, culturais, literárias, entre outras) influenciaram as criações<br />

teatrais como um todo. Isso não significa dizer que as reelaborações dos mitos sejam<br />

inferiores aos originais, mas elas já não carregavam consigo todos os valores simbólicos<br />

essenciais que os mitos primordiais comportavam. A tragédia baseia-se no mito, pois<br />

precisa dele para construir seu enredo, mas são obras já enquadra<strong>da</strong>s esteticamente,<br />

produtos de uma única mente criativa (portanto, de um posicionamento político) e de<br />

um século que já conta com grandes filósofos racionalistas.<br />

É claro que houve, na Grécia, um liame muito forte entre literatura, arte<br />

figurativa e religião, mas, ao plasmar o material mitológico, os poetas e<br />

artistas gregos não obedeciam tão-somente a critérios religiosos, mas também<br />

(...) a ditames estéticos. (...) para reduzir um mitologema a uma obra-de-arte,<br />

digamos, a uma tragédia, o poeta terá que fazer alterações, por vezes<br />

violentas, a fim de que a ação resulte única (...).<br />

BRANDÃO, 1998: 26.<br />

O culto à Grande Deusa é, segundo ain<strong>da</strong> Olga Rinne, a base do mito de Medéia.<br />

Essa forma de religiosi<strong>da</strong>de origina-se no período Neolítico e perdura intensamente até<br />

a Creta minóica, mesmo na Creta minóico-micênica, apesar de já enfraqueci<strong>da</strong> pelas<br />

invasões indo-européias, que trouxeram seus deuses masculinos. O culto fun<strong>da</strong>menta-se<br />

4<br />

em uma socie<strong>da</strong>de matriarcal (matrilinear ou matrísticaTPD DPT) e surgiu com o


desenvolvimento <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des agricultoras. A terra era a provedora de tudo o que o<br />

ser humano necessitava para sua sobrevivência.<br />

91<br />

A natureza e, acima de tudo, a terra assemelhava-se a uma mãe<br />

doadora de bênçãos e alimentos, e a capaci<strong>da</strong>de de as mulheres produzirem<br />

vi<strong>da</strong>, tal como a terra, proporcionou ao aspecto feminino a primazia na ordem<br />

religiosa e social <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<br />

RINNE, 2005: 38<br />

A Grande Deusa era, então, a origem de tudo o que existe, a fonte de to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>,<br />

e, sendo assim, as divin<strong>da</strong>des eram femininas. Isso não significa dizer que não havia<br />

espaço para figuras masculinas no panteão dessas socie<strong>da</strong>des. O masculino aparecia,<br />

mas sempre em forma de filho, irmão ou marido <strong>da</strong> Deusa.<br />

A religião do neolítico — assim como a religião atual e as ideologias<br />

seculares — expressava a visão de mundo de seu tempo. (...) No neolítico, o<br />

chefe <strong>da</strong> família sagra<strong>da</strong> era uma mulher: a Grande Mãe, a Rainha dos Céus,<br />

ou a Deusa em seus variados aspectos e formas. Os membros masculinos<br />

deste panteão — seu esposo, irmão e/ou filho — também eram divinos.<br />

EISLER, 1989: 32.<br />

Várias simbologias permeavam essa forma de religiosi<strong>da</strong>de: a serpente, que<br />

5<br />

circundou a Deusa e a fecundou; a pomba, forma sob a qual põe o Ovo do MundoTPD DPT;<br />

entre outros. Dentro desse mundo repleto de metáforas miticamente representa<strong>da</strong>s, está<br />

Medéia.<br />

O caldeirão <strong>da</strong> transformação, símbolo de Medéia, tal como o Ovo do<br />

Mundo, é um recipiente que contém to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> (...). A imagem original<br />

desse milagroso recipiente é o útero. O segundo emblema de Medéia, o carro<br />

puxado pelas serpentes ala<strong>da</strong>s, é um símbolo <strong>da</strong> deusa do universo,<br />

representando a totali<strong>da</strong>de do cosmo. A serpente simboliza a fecundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

terra e <strong>da</strong> água; suas asas, o elemento ar e também o aspecto espiritual ou as<br />

forças do céu. Do ponto de vista do mito, na atuação conjunta <strong>da</strong>s duas<br />

dimensões <strong>da</strong> deusa teve origem a vi<strong>da</strong>.<br />

RINNE, 2005: 39.<br />

Tanto o caldeirão quanto o carro alado levado por serpentes são imagens que<br />

reaparecem nas várias versões posteriores do mito. Em Apolônio de Rodes, Os<br />

argonautas, vemos o episódio em que Medéia mata Éson (pai de Jasão, seu sogro,<br />

portanto) e o corta em pe<strong>da</strong>ços, jogando-o depois no caldeirão e fervendo-o com ervas,<br />

com a finali<strong>da</strong>de de, usando seus conhecimentos de farmakís, fazê-lo rejuvenescerTPD<br />

carro alado reaparece em Eurípedes, ao final <strong>da</strong> tragédia Medéia: é ele que a conduz em<br />

sua fuga depois de matar os filhos que teve com Jasão.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, os signos são os mesmos, mas sua carga simbólica, não. Tudo<br />

aquilo que, antes, representava aspectos positivos, relativos à vi<strong>da</strong>, num segundo<br />

momento, passa a trazer consigo cargas negativas, sombrias.<br />

É provável que, originalmente, Medéia fosse uma deusa pré-helênica<br />

<strong>da</strong> arte de curar e <strong>da</strong> sabedoria e que, com o tempo, tivesse sido minimiza<strong>da</strong>,<br />

obscureci<strong>da</strong> e personifica<strong>da</strong> até mergulhar no mundo <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s.<br />

RINNE, 2005: 11.<br />

Detenhamo-nos rapi<strong>da</strong>mente sobre os símbolos. A cobra é um animal<br />

largamente associado à Deusa, e o motivo é simples: se ela representa a terra e tudo o<br />

que dela provém, a cobra é o ser que faz a ligação entre o subterrâneo, o ctônico, e o que<br />

6<br />

DPT. O


7<br />

nos é visível por sobre a terraTPD DPT. Outro símbolo freqüentemente visto associado à Deusa<br />

são as asas (ou objetos alados): eles representam a subi<strong>da</strong> aos céus, a ligação com algo<br />

transcendente, que está sobre nós e que nos governa. Nós (a humani<strong>da</strong>de) estaríamos no<br />

8<br />

centro do mundoTPD DPT, no exato meio entre o mundo subterrâneo, ctônico (posteriormente,<br />

associado ao mundo dos mortos e considerado negativamente), e o mundo celeste.<br />

Unindo esses dois símbolos, Eisler (1989, 28) escreve ain<strong>da</strong>:<br />

92<br />

Encontramos serpentes e borboletas (símbolos <strong>da</strong> metamorfose), as<br />

quais em tempos históricos ain<strong>da</strong> são identifica<strong>da</strong>s com o poder de<br />

transformação <strong>da</strong> Deusa, como na impressão do selo de Zakro, na região leste<br />

de Creta, retratando a Deusa com as asas de uma borboleta com olhos. Até<br />

mesmo o posterior machado de dois gumes, de Creta, reminiscência <strong>da</strong>s<br />

enxa<strong>da</strong>s usa<strong>da</strong>s para limpar terrenos agrícolas, era uma estilização <strong>da</strong><br />

borboleta. Assim como a serpente, que mu<strong>da</strong> de pele e "renasce", ele fazia<br />

parte <strong>da</strong> epifania <strong>da</strong> Deusa, ain<strong>da</strong> outro símbolo de seus poderes de<br />

regeneração.<br />

Mais adiante (1989: 74-75), ao tratar de como a recém-chega<strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de<br />

9<br />

indo-européiaTPD DPT consegue sobrepor-se aos valores dessa socie<strong>da</strong>de, a autora retoma a<br />

idéia <strong>da</strong> serpente para concluir explicando que:<br />

É evidente que a serpente era um símbolo do poder <strong>da</strong> Deusa,<br />

símbolo por demais importante, sagrado e onipotente para ser ignorado. Se a<br />

mente primitiva devia ser remodela<strong>da</strong> de forma a adequar-se às exigências do<br />

novo sistema, a serpente teria de ser toma<strong>da</strong> como um dos emblemas <strong>da</strong>s<br />

novas classes dominantes, ou então derrota<strong>da</strong>, distorci<strong>da</strong> e desacredita<strong>da</strong>.<br />

Para modificar uma ideologia — um conjunto de símbolos — previamente<br />

conheci<strong>da</strong> e aceita, é necessário, portanto, a<strong>da</strong>ptá-la à nova. Ao tentar construir uma<br />

Medéia humaniza<strong>da</strong>, Eurípedes apropria-se de imagens pré-existentes, modificando seu<br />

conteúdo simbólico de modo a localizá-la na socie<strong>da</strong>de patriarcal de sua época. Colocase,<br />

dessa forma, como o último elo de um lento processo de humanização de Medéia.<br />

U(RE)DEFININDO MEDÉIA<br />

Retomando os dois exemplos <strong>da</strong>dos, em Apolônio, Medéia é uma feiticeira<br />

poderosa, ain<strong>da</strong> um tanto acima do nível humano, porém não mais figurando entre os<br />

10<br />

deuses. Em Eurípedes, sua representação é ain<strong>da</strong> mais humaniza<strong>da</strong>TPD<br />

DPT: Medéia na<strong>da</strong><br />

mais é do que uma mortal, uma mulher, uma bárbara assassina dos próprios filhos<br />

(embora ain<strong>da</strong> sábia e poderosa feiticeira).<br />

Afinal, Medéia é humana ou deusa? Ou era uma deusa que passou a ser humana?<br />

O que houve no meio do caminho entre o mito original e Eurípedes (e os escritores<br />

posteriores)?<br />

A figura ambivalente de Medéia é símbolo de um período de transição<br />

do matriarcado para o patriarcado. Da sua passagem, ou, mais exatamente, de<br />

seu rebaixamento de deusa <strong>da</strong> cura e <strong>da</strong> sabedoria para feiticeira poderosa,<br />

inteligente, pode-se deduzir como a feminili<strong>da</strong>de e, acima de tudo, a<br />

feminili<strong>da</strong>de dota<strong>da</strong> de poder foi desvaloriza<strong>da</strong> e vista como demoníaca na<br />

mesma proporção do crescimento do poder patriarcal. No patriarcado<br />

plenamente instaurado, Medéia era a “bárbara”, a estrangeira, “nenhuma <strong>da</strong>s


93<br />

nossas”, porque as características que compõe sua força — o orgulho, o<br />

espírito de resistência e o poder de decisão — só atuam ain<strong>da</strong> e, quando<br />

muito, no inconsciente <strong>da</strong> mulher que a socie<strong>da</strong>de patriarcal desejou e<br />

modelou.<br />

RINNE, 2005: 13.<br />

Esse período de “patriarcado plenamente instaurado” é já o de Eurípedes e<br />

Apolônio. Não seria condizente com a época, portanto, haver uma protagonista feminina<br />

com tamanho poder.<br />

Medéia é fruto dessa crise [passagem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de matriarcal para a<br />

patriarcal], em que a mulher se nomadiza, se seculariza, e passa de deusa, que<br />

era, para feiticeira, e de feiticeira para mulher preteri<strong>da</strong>, mais uma vez,<br />

portanto, em fuga. Este é um ponto.<br />

O outro ponto diz respeito à anacronia. Medéia não pode ser nem<br />

virgem, nem noiva, nem dona de casa, apesar de todo esforço. Ela é filha<br />

dessa crise, em que não faltaram banhos de sangue ou poluções. E estas<br />

coisas, por mais antigas, são dívi<strong>da</strong>s presentes, e assim definem o ser. A<br />

natureza reage, faz cobranças. Não só por causa de Medéia, mas pela inteira<br />

reversão do mundo.<br />

RODRIGUES, 2000.<br />

Especificamente sobre a tragédia euripidiana, há algumas versões sobre sua<br />

motivação ao criar uma Medéia tão “rebaixa<strong>da</strong>” (usando os termos <strong>da</strong> autora cita<strong>da</strong>).<br />

Uma primeira, talvez anedota histórica, seria um possível suborno dos coríntios a<br />

Eurípedes. Eles queriam que o assassinato dos filhos <strong>da</strong> poderosa farmakís fosse de<br />

responsabili<strong>da</strong>de dela: primeiro, porque eles queriam ser afastados do episódio, pois,<br />

originalmente, o mito contava a versão de que eles, insatisfeitos com o governoTPD<br />

feiticeira, mataram seus filhos como forma de vingança; segundo, porque queriam<br />

livrar-se de sua ligação com Medéia, já que havia, em Corinto, cultos pré-helênicos,<br />

tidos como bárbaros, consagrados a ela. “Em Corinto, onde o culto aos filhos de Medéia<br />

se manteve durante muito tempo, era evidentemente difícil destronar uma antiga deusa<br />

protetora e curadora.” (RINNE, 2005: 63), portanto utilizar-se do largo alcance social <strong>da</strong><br />

tragédia seria uma forma talvez mais garanti<strong>da</strong> de separar-se <strong>da</strong> imagem de Medéia.<br />

A segun<strong>da</strong> versão levaria em conta <strong>da</strong>dos históricos relativos ao século V a.C.<br />

Esse foi o século em que a Grécia esteve mais propensa a trocas culturais e à recepção<br />

de estrangeiros. É claro que essa abertura de portas não se deu de forma tão extensiva,<br />

pois a cultura grega deveria ser preserva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s “invasões bárbaras”. E é aqui que entra o<br />

tragediógrafo em <strong>questão</strong>. Numa tentativa de defender os valores gregos, a socie<strong>da</strong>de<br />

helênica, patriarcal, Eurípedes criou uma protagonista que encerrava em si atributos que<br />

deveriam ser temidos/rejeitados pela socie<strong>da</strong>de: era uma mulher sábia, estrangeira, com<br />

ânimo forte e decisão. A mulher não deveria adquirir conhecimentos, porque se tornaria<br />

perigosa, nem mesmo deveria manifestar-se contrária aos homens ou tomar decisões<br />

importantes. O estrangeiro não deveria ser tão bem aceito, pois sua cultura poderia<br />

contaminar a “superior” cultura grega.<br />

UQuando a Deusa passou a ser Deus – as invasões indo-européias<br />

Além dessas explicações mais diretas (mais liga<strong>da</strong>s à reali<strong>da</strong>de concreta de<br />

produção <strong>da</strong> narrativa), podemos usar ain<strong>da</strong> como justificativa uma modificação lenta,<br />

mas vigorosa, que ocorreu no culto à Grande Deusa ao longo dos tempos (bem anterior<br />

ao período helenístico).<br />

A mais antiga descoberta arqueológica de representação humana é a chama<strong>da</strong><br />

11<br />

DPT <strong>da</strong>


Vênus de Willendorf (imagens abaixo). Ele <strong>da</strong>ta de aproxima<strong>da</strong>mente 20.000 a.C. e<br />

provocou polêmica entre os estudiosos <strong>da</strong> pré-história (EISLER, 1989: 17).<br />

Alguns argumentavam ser ela somente uma expressão do erotismo masculino,<br />

tese refuta<strong>da</strong> por Eisler (e outros estudiosos do tema), pois demonstra uma linha<br />

interpretativa, existente até hoje, basea<strong>da</strong> na suposta essência patriarcal dos seres<br />

humanos. Nessa visão, segundo a autora (1989: 18),<br />

94<br />

prevalecem os preconceitos de antigos estudiosos que consideravam a arte<br />

paleolítica em termos do estereótipo convencional do ‘homem primitivo’ (...).<br />

Segundo uma <strong>da</strong>s suposições desses estudiosos, apenas o homem préhistórico<br />

foi o responsável pela arte paleolítica. Esta suposição tampouco se<br />

baseia em qualquer evidência factual. Ao contrário, foi o resultado de<br />

preconceitos de estudiosos, os quais na ver<strong>da</strong>de vão contra as descobertas (...)<br />

Outros estudiosos, porém, mais preocupados em analisar os artefatos<br />

encontrados e menos atentos aos preconceitos machistas, levaram em consideração não<br />

só a grande quanti<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s estatuetas femininas encontra<strong>da</strong>s, mas também a ausência de<br />

marcas significativas de socie<strong>da</strong>des fortemente patriarcais (ou dominadoras, como<br />

Eisler prefere denominar). Não há imagens idealizando o poder armado, a cruel<strong>da</strong>de e a<br />

força bruta; não há sepultamentos de chefes de grupos; também não foram encontrados<br />

depósitos de armas e recursos tecnológicos bélicos, nem mesmo fortificações militares.<br />

To<strong>da</strong> essa ausência indica que, possivelmente, essa era uma cultura pacífica e sem<br />

hierarquias fortemente perceptíveis.<br />

Além disso, as imagens femininas são encontra<strong>da</strong>s em várias representações:<br />

estatuetas, murais, figuras votivas, o que demonstra ser a mulher largamente cultua<strong>da</strong>.<br />

Ela representa, quase sempre, sua uni<strong>da</strong>de com a natureza: pode vir acompanha<strong>da</strong> de<br />

animais, plantas ou outro aspecto natural; pode mesmo vir representa<strong>da</strong> de forma<br />

híbri<strong>da</strong>, parte humana, parte animal.<br />

Seguiremos, como base de análise, essa segun<strong>da</strong> linha interpretativa,<br />

concor<strong>da</strong>ndo com a evidência <strong>da</strong>s muitas figuras femininas encontra<strong>da</strong>s. Tendo definido<br />

isso, voltemos à pré-história.<br />

Esse modelo de socie<strong>da</strong>de existiu durante os períodos paleolítico e neolítico,<br />

sobrevivendo ain<strong>da</strong> em Creta — último grupo social a adotar esse modelo matrilinear.<br />

Por ser esta a mais recente e sobre a qual há mais registrosTPD<br />

12<br />

DPT, é<br />

a partir dela que muito<br />

se sabe dessas antigas formas de convivência social. Tomando as palavras de Riane<br />

Eisler (1989: 37), vejamos rapi<strong>da</strong>mente como surgiu e o que foi a civilização cretense<br />

(ou, mais especificamente, a creto-minóica).


95<br />

A história <strong>da</strong> civilização de Creta começa por volta de 6.000 a.C., quando<br />

uma pequena colônia de imigrantes, provavelmente de Anatólia, chegou pela<br />

primeira vez ao litoral <strong>da</strong> ilha. Foram eles que trouxeram a Deusa, bem como<br />

uma tecnologia agrária que classifica estes primeiros colonizadores como<br />

neolíticos. Nos quatro mil anos seguintes houve progresso tecnológico lento e<br />

estável (...), bem como um comércio florescente e uma gradual evolução do<br />

estilo artístico (...). Em segui<strong>da</strong>, aproxima<strong>da</strong>mente 2.000 a.C., Creta entrou<br />

no que os arqueólogos denominam o período minóico médio ou palaciano<br />

antigo.<br />

Este período já estava bem dentro <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de de Bronze, período este em que o<br />

restante do mundo então civilizado <strong>da</strong> Deusa estava sendo gra<strong>da</strong>tivamente<br />

substituído pelos deuses guerreiros masculinos. Ela ain<strong>da</strong> era venera<strong>da</strong> (...).<br />

Mas agora não passava de uma dei<strong>da</strong>de secundária (...). Na ilha de Creta,<br />

onde a Deusa ain<strong>da</strong> era suprema, não havia sinais de guerra. (...) E mesmo<br />

quando, no séc. XV a.C., por fim a ilha caiu sob domínio aqueu — quando os<br />

arqueólogos não mais falaram de uma cultura minóica mas sim minóicamicênica<br />

—, a Deusa e o modo de pensar e viver por ela simbolizados ain<strong>da</strong><br />

pareciam sobreviver.<br />

No período de 4.300 a.C. a 4.200 a.C., aproxima<strong>da</strong>mente, o mundo antigo<br />

europeu sofreu sucessivas invasões dos povos indo-europeus, que, em três grandes<br />

levas, tomaram por completo essas civilizações e subjugaram-na à sua cultura patriarcal<br />

e marca<strong>da</strong>mente violenta e belicosa. Em princípio, eram apenas povos nômades em<br />

busca de pastos para seus rebanhos. Não se sabe ain<strong>da</strong> de que forma e precisamente em<br />

que período, mas esses povos aumentaram em quanti<strong>da</strong>de e belicosi<strong>da</strong>de, e “por volta<br />

de 5000 a.C., ou aproxima<strong>da</strong>mente há sete mil anos, começamos a encontrar evidências<br />

do que Mellaart denomina um padrão de ruptura <strong>da</strong>s antigas culturas neolíticas dos<br />

Bálcãs.”TPD<br />

13<br />

DPT<br />

UA Deusa Mãe no Olimpo<br />

Com to<strong>da</strong>s essas modificações dos rituais, a figura <strong>da</strong> Grande Deusa também se<br />

alterou, passando a dividir-se entre as deusas olímpicas (Hera, Atena, Afrodite,<br />

Deméter, entre outras), ca<strong>da</strong> uma representando uma função sua diferente. Ao seu lado,<br />

portanto, estariam os deuses masculinos, posto que a socie<strong>da</strong>de patriarcal que se<br />

instaurava passou a trazê-los ao primeiro plano do panteão grego. A Grande Deusa não<br />

desapareceu, mas foi tão diluí<strong>da</strong> e mascara<strong>da</strong> pelas idéias guerreiras e bélicas dos indoeuropeus<br />

que desfigurou-se completamente. Passou ao segundo plano e afastou-se<br />

profun<strong>da</strong>mente <strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong>de que a fun<strong>da</strong>mentou.<br />

Só para exemplificar como as divin<strong>da</strong>des femininas, no panteão olímpico, se<br />

afastaram de suas características primordiais e se revestiram <strong>da</strong>s características<br />

masculinas <strong>da</strong>s religiões indo-européias, citemos o caso de Atená. Ela é a deusa <strong>da</strong><br />

sabedoria, filha sem mãe de Zeus. Nasceu <strong>da</strong> cabeça deste, por isso sua ligação com a<br />

inteligência, a sabedoria, a razão: ela é a deusa que preside os julgamentos. Na<br />

14<br />

OréstiaTPD<br />

DPT, trilogia escrita por Ésquilo, ela é incumbi<strong>da</strong> de julgar o matricídio cometido<br />

por Orestes. Acaba por inocentá-lo, tendo como argumento principal a crença de que os<br />

filhos não têm qualquer ligação com a mãe, somente com o pai. Além disso,<br />

Clitemnestra havia assassinado seu esposo, Agamêmnon, o que deveria ser vingado.<br />

Com Atena, descendente direta <strong>da</strong> Deusa e dei<strong>da</strong>de protetora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Atenas, declarando-se favorável à supremacia masculina, a mu<strong>da</strong>nça para a<br />

dominação masculina deve ser aceita por todo ateniense, assim como a<br />

mu<strong>da</strong>nça do que antes era um sistema de proprie<strong>da</strong>de basicamente comunal<br />

ou dirigido pelo clã (no qual a linhagem era traça<strong>da</strong> através <strong>da</strong>s mulheres)<br />

para um sistema de proprie<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> dos bens e <strong>da</strong>s mulheres pelos<br />

homens.


96<br />

EISLER, 1989: 70.<br />

Segundo Olga Rinne, Medéia, Circe e Hécate representavam, juntas, a tríade <strong>da</strong><br />

deusa <strong>da</strong> Lua. Outros autores, porém, identificam o resquício do culto à Deusa Mãe com<br />

a tríade Deméter, sua filha Persérfone e Triptólemo, a criança divina. Para tanto,<br />

baseiam-se na similari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s figuras abaixo:<br />

A primeira imagem é uma estatueta de marfim de Micenas, <strong>da</strong>tando de,<br />

aproxima<strong>da</strong>mente, 1.500 a 1.400 a.C. Elas representam, segundo se acredita, duas<br />

divin<strong>da</strong>des protegendo a criança divina. A segun<strong>da</strong> imagem é uma representação <strong>da</strong><br />

15<br />

tríade eleusianaTPD<br />

DPT: Deméter, Perséfone e Triptólemo. Trata-se de um relevo de mármore<br />

do Santuário de Deméter e Koré em ElêusisTPD<br />

16<br />

DPT, <strong>da</strong>tando<br />

de 440 a 430 a.C.<br />

Uma tríade não exclui a outra, posto que resguar<strong>da</strong>m domínios diferentes. Mas,<br />

seja qual for a principal, o fato é que Medéia figurava entre a divin<strong>da</strong>de antes do<br />

surgimento do panteão olímpico. Como sabemos, Medéia é neta do deus-sol Hélios,<br />

filha de seu filho Eetes. Sua ligação com Creta (logo, com a civilização minóica,<br />

matrilinear) se dá a partir de Pasífae, filha também de Hélios, sua tia, portanto. Esta era<br />

uma poderosa feiticeira, esposa do rei Minos. Teve com ele quatro filhas e quatro filhos.<br />

Teve também relações com o Touro de Creta, do qual nasceu Astérios, o Minotauro.<br />

Há ain<strong>da</strong> uma relação mais direta de Medéia com a divin<strong>da</strong>de, relata<strong>da</strong> por Alain<br />

Moreau (1994: 101-113). Segundo esse autor, a Medéia mítica era uma deusa honra<strong>da</strong> e<br />

cultua<strong>da</strong> em Corinto e por to<strong>da</strong> a Grécia, havendo inclusive altares em sua honra. Uma<br />

<strong>da</strong>s versões de seu mito nos conta sobre os rituais de imortalização praticados por ela, o<br />

que é ratificado por Apolônio de Rodes no episódio de Éson (já relatado acima). Saber<br />

tais práticas a coloca no mesmo plano de Deméter, Thétis e Ísis, por exemplo, posto que<br />

essas deusas eram também detentoras de tais conhecimentos.<br />

UCONCLUINDO...<br />

Medéia, portanto, é uma <strong>da</strong>s facetas <strong>da</strong> Deusa que sofre as penas de pertencer a<br />

uma cultura invadi<strong>da</strong> e desfigura<strong>da</strong> por uma nova ideologia. Ela passa de um referencial<br />

à Grande Deusa para uma divin<strong>da</strong>de menor. Posteriormente, humaniza-se, mas<br />

mantendo-se, ain<strong>da</strong>, como neta de uma divin<strong>da</strong>de (agora masculina) e detentora de<br />

grandes poderes. Ao fim, Medéia é a bárbara que, apesar de seus poderes, está fora do<br />

contexto ideológico helênico e, por isso, só pode revelar sua ligação direta com os<br />

deuses em sua eterna fuga.


Nosso mapeamento do mito de Medéia serve como pano de fundo para as<br />

narrativas ficcionais — Medéia, de Eurípedes, Os Argonautas, Apolônio de Rodes, e<br />

suas reescrituras — que tratam <strong>da</strong> personagem. Apesar disso, revela, desde já, que o<br />

conteúdo mítico por trás <strong>da</strong> personagem de Eurípides e Apolônio significava, antes de<br />

mais na<strong>da</strong>, um problema a ser resolvido: como transformar a representativi<strong>da</strong>de de uma<br />

divin<strong>da</strong>de matriarcal em algo inteligível ao mundo helênico patriarcal?<br />

1<br />

TP PT Poderíamos,<br />

2<br />

TP PT Cf.<br />

3<br />

TP PT Aquela<br />

4<br />

também, falar <strong>da</strong> comédia, mas essa não teve o mesmo impacto <strong>da</strong> tragédia nas artes.<br />

Harvey, 1986: verbete “Medéia”.<br />

que tem conhecimentos de manipulação de ervas.<br />

TP PT Riane Eisler defende a idéia não de uma socie<strong>da</strong>de matriarcal, mas matrilinear. Isso implica dizer que<br />

as mulheres não se sobrepunham aos homens na hierarquia social, mas que, por serem semelhantes à<br />

Deusa Mãe, detinham a primazia sobre a linhagem. Socialmente, homens e mulheres estavam num<br />

mesmo nível, vivendo harmoniosamente e em cooperação. Marija Gimbutas utiliza o termo matrística,<br />

que carrega também a idéia de cooperação entre ambos os sexos, apesar <strong>da</strong> prevalência feminina na<br />

religiosi<strong>da</strong>de. Matrística exclui, portanto, a idéia de prevalência de um sexo sobre o outro, como os<br />

termos matriarcal e patriarcal costumam sugerir.<br />

5<br />

TP PT O Ovo do Mundo é o próprio mundo e tudo o que nele existe.<br />

6<br />

TP PT Na ver<strong>da</strong>de, sua intenção ao fazer isso era convencer as filhas do rei Pélias de que era possível remoçar<br />

seu pai. Depois de provar seu poder a elas, convenceu-as a matar o pai e cortá-lo em pe<strong>da</strong>ços para que<br />

pudesse pôr em prática seus conhecimentos. Somente tarde demais é que elas perceberam as reais<br />

intenções <strong>da</strong> feiticeira: matar o rei usurpador do trono de Iolco, que deveria estar nas mãos do seu amado<br />

Jasão.<br />

7<br />

TP PT EISLER, 1989: 29, 74.<br />

8<br />

TP PT ELIADE, 2008: 42.<br />

9<br />

TP PT As segui<strong>da</strong>s invasões dos indo-europeus, com sua ideologia patriarcal, e a conseqüente destruição do<br />

culto <strong>da</strong> Deusa Mãe serão tratados em parte separa<strong>da</strong> desse trabalho, <strong>da</strong><strong>da</strong> a importância desse fenômeno<br />

para a transformação do mito analisado (Medéia).<br />

10<br />

TP<br />

PT Em termos históricos, Apolônio de Rodes é posterior a Eurípedes. Porém, como Os argonautas relata o<br />

trecho <strong>da</strong> narrativa que é logo anterior ao narrado em Medéia, usaremos esta ordem para manter uma<br />

seqüência lógica <strong>da</strong> história.<br />

11<br />

TP<br />

PT Os coríntios veneravam o deus Hélio, e seus regentes pertenciam à estirpe solar. Medéia, por ser neta<br />

do Sol, era herdeira do trono.<br />

12<br />

TP<br />

PT A Creta minóica possuía já uma escrita, a Linear A. Esta, porém, ain<strong>da</strong> não foi decifra<strong>da</strong> pelos<br />

lingüistas, mas muito se sabe dessa civilização a partir de sua relação com os micênicos. A partir desse<br />

contato, encontraram-se textos escritos em Linear B, uma escrita atualmente já decifra<strong>da</strong>.<br />

13<br />

TP<br />

PT EISLER: 1989, 46.<br />

14<br />

TP<br />

PT A trilogia, assim organiza<strong>da</strong> posteriormente ao autor, compõe-se <strong>da</strong>s seguintes tragédias: Agamêmnon,<br />

Eumênides e Coéforas.<br />

15<br />

TP<br />

PT Elas eram as responsáveis por realizar os Mistérios de Elêusis e, por isso, eram encarrega<strong>da</strong>s de levar<br />

os jovens para fazer os ritos iniciáticos.<br />

16<br />

TP<br />

PT Segundo a legen<strong>da</strong> do Portal Graeca Antiqua (http://greciantiga.org), “A cena refere-se a uma cena<br />

ritual dos Mistérios de Elêusis. A deusa Deméter, que tem um longo cetro na mão esquer<strong>da</strong>, entrega uma<br />

espiga de trigo (hoje perdi<strong>da</strong>) ao jovem Triptólemo, filho de Keloos, rei de Elêusis; à direita, com uma<br />

tocha, sua filha Perséfone. Esse relevo era famoso na Antigüi<strong>da</strong>de e, na época romana, foram efetua<strong>da</strong>s<br />

diversas cópias.”<br />

97


UBIBLIOGRAFIA<br />

ALSINA, José. Teoria Literaria Griega. Madrid: Editorial Gredos, 1991.<br />

ARISTÓTELES. Po<strong>ética</strong>. Tradução de Eudoro de Souza. 2ª ed. São Paulo: Ars Po<strong>ética</strong>,<br />

1992.<br />

AVELINO DA SILVA, J.C. Concessões masculinas <strong>da</strong> Deusa Mãe minóica. In: Anais<br />

do 1º Encontro do GT Nacional de História <strong>da</strong>s Religiões e Religiosi<strong>da</strong>des –<br />

ANPUH. 2007.<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Helena, o eterno feminino. Petrópolis: Vozes, 1991.<br />

----------. Mitologia Grega. Vol. I, II, III. Petrópolis: Vozes, 1998-2008.<br />

----------. Teatro Grego: tragédia e comédia. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985.<br />

BURKERT, Walter. Religião Grega na época <strong>Clássica</strong> e arcaica. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção<br />

Calouste Gulbenkian, 1993.<br />

COSTA LIMA, Luiz. (Org.). A Literatura e o leitor. Textos de Est<strong>ética</strong> <strong>da</strong> Recepção.<br />

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979<br />

EAGLETON, Terry. Fenomenologia, Hermenêutica e Teoria <strong>da</strong> Recepção. In: Teoria<br />

<strong>da</strong> Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1990.<br />

EISLER, Riane. O cálice e a espa<strong>da</strong>. Direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago<br />

Editora, 1989. (versão digitaliza<strong>da</strong> extraí<strong>da</strong> de:<br />

HTUhttp://www.esnips.com/doc/a5908ef5-b871-4222-ab0dfc22618b4175/o_c%C3%A1lice_e_a_espa<strong>da</strong>UTH<br />

)<br />

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano – a essência <strong>da</strong>s religiões. Trad. Rogério<br />

Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2008.<br />

----------. História <strong>da</strong>s crenças e <strong>da</strong>s idéias religiosas. Tomo I – Da I<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Pedra aos<br />

Mistérios de Elêusis. Volume I – Das origens ao Ju<strong>da</strong>ísmo. Trad. Roberto Cortes<br />

de Lacer<strong>da</strong>. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.<br />

----------. Mito e reali<strong>da</strong>de. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007.<br />

EURÍPEDES. Medéia – Hipólito – As troianas. Tradução, apresentação e notas: Mário<br />

<strong>da</strong> Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.<br />

FARIA, Keila Maria de. A face negra de Medéia: uma imagem inverti<strong>da</strong>. In: Alétheia<br />

Revista de Antiga e Medieval. v. 1, p. 1-17, 2008.<br />

FUNARI, A. (Org.). Amor, desejo e poder na Antigüi<strong>da</strong>de. Relações de gênero e<br />

representações do feminino. Campinas: Unicamp, 2003.<br />

GIMBUTAS, Marija. European prehistory: Neolithic to the Iron Age. In: Biennial<br />

Review of Anthropology. Vol.3 (1963), 69-106.<br />

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura <strong>Clássica</strong> – Grega e Latina. Trad.<br />

Mário <strong>da</strong> Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986 (1937).<br />

KERÉNYI, Carl. Dioniso – Imagem arquetípica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> indestrutível. Trad. Ordep<br />

Trin<strong>da</strong>de Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.<br />

LESKY, Albin. A tragédia grega. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.<br />

----------. História <strong>da</strong> Literatura Grega. Lisboa: Ed. Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian,<br />

1995.<br />

LÓPES, A. & POCIÑA, A.(Org.). Medeas: versiones de um mito desde Grecia hasta<br />

hoy. Grana<strong>da</strong>: Universi<strong>da</strong>d de Grana<strong>da</strong>, 2002.<br />

MARVIN, Meyer & MIKECKI, Paul (Org.). Ancient Magic and Ritual Power. New<br />

York: Köln (EJ Brill), 1995.<br />

MOREAU, Alain. Le mythe de Jason et Médée – la va-nu-pied et la sorcière. Paris: Lês<br />

Belles Lettres, 1994.<br />

98


NASCIMENTO, Dulcileide Virgínio. A téchne mágica de Medéia no terceiro canto de<br />

Os Argonautas de Apolônio de Rodes. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ,<br />

2007.<br />

RACHET, Guy. Arqueologia <strong>da</strong> Grécia pré-histórica – Tróia, Micena, Cnossos. Trad.<br />

J. Barroso. São Paulo: Mundo Musical, 1975.<br />

RINNE, Olga. Medéia - O direito á ira e ao ciúme. Trad. Margit Martincic & Daniel<br />

Camarinha <strong>da</strong> Silva. São Paulo: Cultrix, 2005.<br />

RODRIGUES, Antonio Medina. Medéia. In: Centro de Pesquisa Teatral <strong>da</strong> SescSP. In:<br />

HTUhttp://www.sescsp.org.br/cpt/areas.cfm?cod=4&esp=15UTH. Acessado em<br />

12/05/2008, às 23h15.<br />

RODAS, Apolonio de. Argonáuticas. Madrid: Gredos, S.A., 1996.<br />

SEBA, Maria Marta Baião. Personagens femininas no teatro: perpetuação <strong>da</strong> ordem<br />

patriarcal. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 2006.<br />

SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais. Portugal: Publicações Europa-América, 2000.<br />

WRIGHT, Dudley. Os ritos e mistérios de Elêusis. Trad. Fernan<strong>da</strong> Monteiro dos<br />

Santos. São Paulo: Madras, 2004.<br />

99


Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer.<br />

Dulcileide Virginio do nascimento<br />

(Professora Adjunta de Língua e Literatura Grega <strong>da</strong> UERJ/ FGV)<br />

Resumo: O período helenístico é marcado pelo sincretismo religioso e pela propagação do<br />

que denominamos magia, enquanto téchne. Encontramos o relato sobre magia amorosa em<br />

muitas obras literárias, como, por exemplo, na poesia de Homero, de Apolônio de Rodes, e<br />

de Teócrito, bem como nos Papiros Mágicos Gregos. Tais relatos, entretanto, não<br />

funcionam como manuais de instrução nos dias atuais, pois necessitam de uma pessoa que<br />

tenha sido inicia<strong>da</strong>.<br />

Nesta comunicação, portanto, refletiremos sobre o poder dos phármaka como ingredientes<br />

mágicos para a propagação do prazer e para manutenção do relacionamento amoroso, e<br />

como Platão, representante do ideal moralizante helênico, nas Leis, analisa tais<br />

procedimentos.<br />

Palavras-chave: phármaka; magia; leis.<br />

Texto:<br />

Desde a mais remota Antigüi<strong>da</strong>de, sabe-se que as plantas são importantes fontes de<br />

alimentos e de remédios para os homens. Entre os gregos, podem-se encontrar observações<br />

referentes ao uso <strong>da</strong>s plantas desde Homero, sendo as primeiras referências “científicas”<br />

encontra<strong>da</strong>s no corpus hipocrático. Aristóteles também fez menção ao uso <strong>da</strong>s plantas,<br />

principalmente para compará-las aos animaisTPF<br />

1<br />

FPT, mas<br />

foi seu discípulo TeofrastoTPF<br />

2<br />

FPT quem<br />

escreveu os mais influentes tratados de botânica na Antigüi<strong>da</strong>de: As origens <strong>da</strong>s Plantas, em<br />

seis livros, e História <strong>da</strong>s Plantas, em nove livros. Pela observação dessas obras é possível<br />

verificar que havia, no século V a.C., um interesse acerca do tema relacionado aos tipos e<br />

usos <strong>da</strong>s plantas. Dois conceitos relacionados ao uso <strong>da</strong>s plantas, o phármakon e o de<br />

pharmakéia, interessam-nos sobremodo:<br />

Phármakon, palavra que significa ao mesmo tempo remédio ou veneno, ou seja, é uma<br />

substância que pode tanto ter uma ação favorável quanto desfavorável, dependendo <strong>da</strong>s<br />

circunstâncias e <strong>da</strong>s doses que forem utiliza<strong>da</strong>s, bem como para designar qualquer erva,<br />

substância química ou procedimento utilizado no emprego <strong>da</strong> medicina ou <strong>da</strong> magia.<br />

Pharmakéia era o nome atribuído à prática relaciona<strong>da</strong> à elaboração do phármakon, para<br />

diversos fins.<br />

A técnica para tornar-se um douto no uso <strong>da</strong>s plantas na Antigüi<strong>da</strong>de não é um<br />

privilégio dos médicos. Homero, na Ilía<strong>da</strong>, relata a intervenção desses doutos no tratamento<br />

dos feridos, como Pátroclo, no canto XI, 844-848, que, ao encontrar Euripilo ferido na coxa<br />

por uma seta, atende ao seu pedido, prestando-lhe auxílio por meio do uso de raízes:<br />

1<br />

TP PT Aristóteles, em sua História (ou investigação) dos animais, sugere a teoria mágica de simpatias ou antipatias<br />

no mundo animal decorrente <strong>da</strong> influência dos astros, ou seja, ele acreditava que os astros influenciavam na<br />

vi<strong>da</strong> sobre a terra.<br />

2<br />

TP PT Teofrasto, nascido em 372 a.C, enfoca, nessas obras, a reprodução dos vegetais e os fenômenos naturais que<br />

interferem nesse processo.<br />

100


Então, fê-lo deitar-se e, com uma faca, cortou a<br />

agu<strong>da</strong> flecha crava<strong>da</strong> na coxa e lavou o escuro sangue com água<br />

quente. Esfregou nas mãos uma raiz amarga que suprime a dor e<br />

colocou-a sobre a feri<strong>da</strong>, e as dores cessaram.<br />

Então a feri<strong>da</strong> secou e o sangue estancou.<br />

Homero não deixa claro em seu texto a origem desse conhecimento, mas afirma que<br />

3<br />

Pátroclo aprendeu a utilizar as ervas com Aquiles, que por sua vez aprendeu com QuironTPF FPT,<br />

como podemos verificar nos versos citados abaixo:<br />

Salva-me, leva-me para a negra nau,<br />

tira a flecha de minha coxa, lava o escuro sangue com água quente<br />

e espalha por cima favoráveis phármaka, bons, que segundo dizem<br />

ficaste conhecendo por intermédio de Aquiles, o qual adquiriu<br />

seus conhecimentos de Quiron, o mais virtuoso dos centauros.<br />

Os médicos Po<strong>da</strong>lirio e Macoaonte,creio que um está ferido nas ten<strong>da</strong>s,<br />

precisando ele próprio de um bom médico, e<br />

o outro enfrenta o colérico Ares na planície troiana.<br />

( Il. XI, 828-836)<br />

O autor <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> também já identifica a existência desse conhecimento, no canto XI,<br />

739-741, quando narra, na fala de Nestor, a batalha dos Pílios e Epeus, na qual o herói mata o<br />

lanceiro Moulio, marido de Agamede, “aquela que conhecia to<strong>da</strong>s as drogas que crescem na<br />

vasta terra”. Homero na<strong>da</strong> mais fala sobre essa mulher em seu relato.<br />

Contudo, é na Odisséia que encontramos várias citações sobre a prática do uso <strong>da</strong>s<br />

drogas ou ervas, algumas vincula<strong>da</strong>s, principalmente, aos freqüentes contatos com o Egito,<br />

como podemos observar no canto IV, 219-232, em que vemos Helena utilizar os<br />

conhecimentos que adquiriu com as mulheres egípcias ao misturar uma droga ao vinho para<br />

aliviar a cólera, a dor e a lembrança dos males que afligiam Telêmaco e os demais presentes,<br />

por causa <strong>da</strong> falta de notícias de Ulisses. A fabricação de poções mágicas ficou conheci<strong>da</strong> na<br />

Grécia por ser uma habili<strong>da</strong>de associa<strong>da</strong> ao âmbito feminino.<br />

O poeta não cita o nome <strong>da</strong> planta utiliza<strong>da</strong> por Helena, mas refere-se a ela com o<br />

termo comum phármakon e com o adjetivo nepenthés, calmante. A respeito disso, Diodoro<br />

<strong>da</strong> Sicília (2001: I, 97, 7), escrevendo sobre as relações entre Grécia e Egito, menciona que o<br />

conhecimento de Homero relacionado às plantas se deve a uma possível passagem do poeta<br />

pelo país do Nilo e sugere-nos que:<br />

... principalmente o remédio de Telêmaco elaborado por Helena em casa<br />

de Menelau o fez esquecer de todos os males. Parece ter examinado<br />

cui<strong>da</strong>dosamente o remédio “nepenthes”, que afirma ter Helena recebido<br />

em Tebas, no Egito, de Poli<strong>da</strong>mna, mulher de Tão; dizem, há muito, que<br />

somente entre as diospolitanas foi descoberto o remédio contra a<br />

cólera e a dor. Tebas e Dióspolis são as mesmas ci<strong>da</strong>des.<br />

3<br />

TP PT Quíron era o nome do centauro que habitava uma gruta do Monte Pélion, na Tessália. Cronos, seu pai,<br />

transmitiu-lhe conhecimentos de medicina, magia, arte de adivinhar o futuro, astronomia e música. Foi<br />

incumbido <strong>da</strong> educação de vários príncipes e heróis, entre os quais se destacam Aquiles, Jasão e Asclépio.<br />

101


Os versos 219-232 do canto IV <strong>da</strong> Odisséia, portanto, demonstram que o Egito, já em<br />

Homero, é nos apresentado como o país <strong>da</strong> magia e a pátria <strong>da</strong> medicina e, ain<strong>da</strong> segundo o<br />

poeta, um lugar rico em to<strong>da</strong> a sorte de drogas, “algumas benéficas outras funestas em seus<br />

efeitos” (v. 230). Essa crença foi amplia<strong>da</strong> no período helenístico, visto que, na Alexandria<br />

do Egito, encontramos um sincretismo associado às práticas mágicas, que enfocava,<br />

sobretudo, o controle <strong>da</strong> natureza por parte de um indivíduo que detinha conhecimento e<br />

técnica, neste caso, relacionado ao uso de plantas.<br />

Essa téchne que torna alguém capaz de conhecer e utilizar os efeitos terapêuticos <strong>da</strong>s<br />

plantas, manipulando-as, era utiliza<strong>da</strong> para diversos fins. Podemos comprovar o efeito<br />

funesto <strong>da</strong>s drogas, por exemplo, em Eurípides ( Medéia, 380-409) que, ao citar os diversos<br />

meios que poderiam ser utilizados por Medéia para eliminar os seus inimigos, diz ser o<br />

escolhido o uso de phármaka (com drogas matá-los). Esse tipo de sabedoria era possuído<br />

pelas mulheres é registrado por Eurípides, como uma habili<strong>da</strong>de passível de realizar muitos<br />

males.<br />

Ain<strong>da</strong> na Odisséia, nos versos 231 e 232 do canto IV, o poeta enfatiza o conhecimento<br />

dos homens egípcios, pois afirma que “todos os homens são médicos lá, distinguindo-se<br />

muito, pelo saber, dos demais, pois descendem <strong>da</strong> raça de PéoneTPF<br />

O poeta também relata que Menelau visitou o Egito em seu retorno de Tróia (Odisséia<br />

VI, 351 e segs.): “Sete anos andei peregrinando antes de regressar; em minhas viagens,<br />

visitei o Chipre, a Fenícia, o Egito, os Etíopes, os Sidônios e Erembos, e a Líbia...”.<br />

Heródoto parece ser <strong>da</strong> mesma opinião de Homero, e a explicita no livro II-84,<br />

afirmando que no Egito encontram-se médicos para todos os males.<br />

Percebemos que a magia, tanto grega quanto egípcia, freqüentemente, trafega em torno<br />

<strong>da</strong> medicina. Por vezes, ela irá curar certos males e empregará to<strong>da</strong> uma farmacotécnica.<br />

Mesmo que não possamos identificar to<strong>da</strong>s as razões e empregos de determinados<br />

tratamentos com a utilização <strong>da</strong>s plantas, podemos perceber que não se trata de medicina<br />

propriamente dita, mas de práticas terapêuticas que foram qualifica<strong>da</strong>s de mágicas e cuja<br />

eficácia dependia, muitas vezes, <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de sugestiva <strong>da</strong> feiticeira. Entretanto, segundo<br />

Graf (1994: 44), há uma delimitação para o campo de ação dessas duas práticas: para a<br />

magia, qualquer mal, inclusive a doença, é oriundo dos deuses, enquanto para a medicina,<br />

todos os males têm causas naturais, desvincula<strong>da</strong>s, portanto, do mundo divino.<br />

A relação entre magia e medicina evidenciou-se entre meados do século V a.C. e<br />

princípios do IV a.C. Nesse período, observou-se uma nova forma de li<strong>da</strong>r com as<br />

enfermi<strong>da</strong>des humanas, sendo a medicina trata<strong>da</strong> com uma técnica, ou rotina, em que se<br />

combinava experiência e reflexão. Tal técnica podia ser ensina<strong>da</strong>, como podemos observar na<br />

obra Sobre a medicina antiga, na qual Hipócrates pretendeu criar uma metodologia médica<br />

desassociando-a <strong>da</strong> filosofia e, ao mesmo tempo, pretendeu desenvolver a temática de que a<br />

enfermi<strong>da</strong>de tem causas exclusivamente naturaisTPF<br />

5<br />

FPT. Alsina<br />

4<br />

FPT.”<br />

(1982:58), em sua análise sobre a<br />

medicina grega, conclui que podemos chamar a medicina antiga de racional, mas não<br />

científica, no máximo pré-científica, pois ela serviu de ponte entre o que designamos magia e<br />

o que estabelecemos como processo científico.<br />

4<br />

TP PT Péone: divin<strong>da</strong>de conheci<strong>da</strong> como médico dos deuses ou divin<strong>da</strong>de que livra dos males e de tudo que pode<br />

afligir. Também ficou conhecido como epíteto de Apolo, mas algumas vezes é empregado como epíteto de<br />

outros deuses, como Zeus, Dioniso, Hélio e Asclépio.<br />

5<br />

TP PT Cf. ALSINA, 1982:54.<br />

102


Inicialmente, utilizavam-se procedimentos mágicos, acreditando que, por meio de um<br />

sortilégio, seria possível expulsar doenças ou espíritos malignos que provocavam a<br />

enfermi<strong>da</strong>de, e só depois deste procedimento se entrava com a parte terapêutica. Com a<br />

medicina, esses poderes vinculados à figura de um pharmakís vão sendo substituídos por<br />

meios naturais, ou seja, o enfermo elimina sua doença pela urina, pelo vômito, pelo suor, etc.<br />

Em resumo, com Hipócrates a medicina buscou desvincular-se dos traços mágicos e<br />

supersticiosos para ampliar seu campo de atuação, apoiando-se na observação e na<br />

experiência.<br />

6<br />

Podemos observar também a estreita ligação existente entre as práticas egípciasTPF FPT e a<br />

técnica <strong>da</strong>s herbolárias, mulheres que conheciam as plantas medicinais. O primeiro registro<br />

sobre o uso de plantas surge no Egito, por volta de 2.600 ou 2.100 a.C., com a descoberta do<br />

papiro de Ebers. Esse papiro apresenta uma listagem de 800 plantas, incluindo especiariasTPF<br />

Entretanto, há outros papiros egípcios em que encontramos descrições sintomatológicas<br />

acompanha<strong>da</strong>s de receitas e fórmulas mágicas. Os principais são o de Smith (descoberto em<br />

1862), o de Hearst (descoberto em 1899), o Chester-Beatty (dinastia XIX), o papiro médico<br />

de Berlin e o médico de Londres. Essa documentação oriental, associa<strong>da</strong> a alguns textos,<br />

como, por exemplo, os de Homero, comprovam-nos a existência de terapias mágicas<br />

utiliza<strong>da</strong>s para a cura, que por vezes são completamente naturais, sem a indicação de<br />

invocações ou ritos.<br />

Podemos observar este uso natural, ou seja, o poder <strong>da</strong>s ervas ou drogas, como prática<br />

reconheci<strong>da</strong> e respeita<strong>da</strong> na Grécia, em Homero – fato comprovado pela referência, no canto<br />

II <strong>da</strong> Odisséia, vv.325 a 330, ao possível uso <strong>da</strong>s drogas pelos pretendentes de Penélope,<br />

temerosos de que o jovem Telêmaco as utilizasse para os destruir:<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, Telêmaco pensa em nos matar.<br />

Tão forte é o seu desejo, que trará auxiliares <strong>da</strong> arenosa Pilo<br />

ou de Esparta, a não ser que planeje<br />

ir aos férteis campos de ÉfiraTPF<br />

8<br />

FPT, em<br />

busca<br />

de funestas drogas,<br />

que derramará na cratera, a fim de a todos nós matar.<br />

Ain<strong>da</strong> em Homero, na Odisséia, encontramos duas personagens, Calipso e Circe,<br />

conheci<strong>da</strong>s como pharmakídes.<br />

No canto XXIII, 321 <strong>da</strong> Odisséia, Ulisses, após retornar a Ítaca e retomar seu palácio,<br />

faz referência a uma quali<strong>da</strong>de dessa personagem ao contar a Penélope as aventuras de sua<br />

viagem, narrações anteriormente feitas no palácio de Alcino, e como as “astúcias e mil<br />

6<br />

TP PT Além disso, podemos também observar a similari<strong>da</strong>de existente entre as duas culturas nos diversos níveis <strong>da</strong><br />

magia, como por exemplo, na relação existente entre os encantamentos contidos nos PGM, papiros de magia<br />

grega, e os encantamentos egípcios, mesmo que reflitam um pensamento anterior ao grego. Cf. LUCK<br />

(1995:19).<br />

7<br />

TP PT Segundo A. ESCOHOTADO (1998:77), o estudo deste papiro é de suma importância para o estudo <strong>da</strong>s<br />

plantas na Antigüi<strong>da</strong>de; contém quarenta e seis diagnósticos e cerca de cinqüenta receitas mistura<strong>da</strong>s a uma<br />

infini<strong>da</strong>de de fórmulas mágicas e astrológicas. Como exemplo de cura, Escohotado cita a história, encontra<strong>da</strong><br />

no papiro de Ebers, <strong>da</strong> sacerdotisa Tefnut, que curou a enxaqueca do deus Rá empregando um chá de ervas,<br />

possivelmente a papaver somniferum. Entretanto, até a presente <strong>da</strong>ta, não existem evidências de que estas<br />

ervas cresciam naquela época no Nilo, o que o leva a crer que possivelmente a erva utiliza<strong>da</strong> teria sido a<br />

papaver rhoeas, a amapoula vermelha, que aparece nas representações murais e nos desenhos paleobotânicos.<br />

8<br />

TP PT O poeta Eumelo de Corinto diz que Eetes reinou em Éfira, antigo nome de Corinto, país que entregou a um<br />

irmão ao voltar para a Cólquid, fato que corrobora ser esta terra conhecedora <strong>da</strong> manipulação <strong>da</strong>s ervas.<br />

103<br />

7<br />

FPT.


artifícios de Circe” o auxiliaram. Assim como Ulisses, Circe também recebe de Homero o<br />

epíteto de polyméchanos ou seja, fértil em invenções.<br />

Medéia, portanto, ficou conheci<strong>da</strong> desde a Antigüi<strong>da</strong>de como xeína panphármakos,<br />

estrangeira hábil em to<strong>da</strong>s as drogas, a quem Pín<strong>da</strong>ro descreve preparando uma mistura<br />

mágica: “Ela mistura azeite com ervas capazes de (Jasão) protegê-lo contra as terríveis dores<br />

e lhe dá o ungüento” (IV Pítica, 221 e segs.).<br />

A téchne mágica de Circe é basea<strong>da</strong> no conhecimento em relação às plantas, como<br />

podemos comprovar nos versos de Homero:<br />

Ela mandou-os entrar, ofereceu-lhes cadeiras e tronos,<br />

e, em segui<strong>da</strong>, preparou uma mistura de mel fresco, queijo e farinha de<br />

ceva<strong>da</strong> com vinho de Pramno; acrescentando à bebi<strong>da</strong><br />

drogas funestas, a fim de que se esquecessem completamente <strong>da</strong> pátria.<br />

Tendo-lhes <strong>da</strong>do a mistura, e depois que todos beberam,<br />

com uma vara os tocou e prendeu-os nas pocilgas.<br />

(Odisséia X, 233-238)<br />

O conhecimento dos remédios vegetais, dos venenos e dos efeitos que os mesmos<br />

produzem, de acordo com a dose em que for utiliza<strong>da</strong>, já era muito desenvolvido, segundo<br />

Olga Rinne (1995:49), nas culturas matriarcais, “conforme revela claramente o fato de que o<br />

cólquido, o acônito, o salgueiro prateado e o zimbro eram relacionados com a tríade Hécate-<br />

Circe-Medéia. Essas plantas contêm substâncias antiinflamatórias, analgésicas e antitérmicas<br />

(colquicina, aconitina, ácido salicílico, óleos etéreos), que ain<strong>da</strong> hoje são utiliza<strong>da</strong>s em<br />

medicina”.<br />

Segundo Richard Gordon (2004:179), os cortadores de raízes, ou seja, aqueles que se<br />

especializavam na coleta, preparação e ven<strong>da</strong> de uma vasta gama de plantas medicinais e de<br />

outras espécies, tinham reconhecimento na Antigüi<strong>da</strong>de. Gordon ain<strong>da</strong> cita os relatos de<br />

Teofrasto (História <strong>da</strong>s Plantas, livro IX) e de Plínio, o velho (História Natural, livros<br />

XXIV-XXVII), que mencionam o conhecimento <strong>da</strong>s regras/técnicas utiliza<strong>da</strong>s por esses<br />

cortadores e acrescenta:<br />

Instruem que, ao cortar algumas raízes, a pessoa deve ficar na direção do<br />

vento – por exemplo, ao cortar tépsia [talvez Thapsia gargânica, cenoura<br />

mortal], entre outras – e ungir-se antes com óleo, pois o corpo incha<br />

se ficar no sentido contrário. Além disso, algumas raízes devem ser<br />

colhi<strong>da</strong>s à noite, outras, durante o dia, e algumas, antes de serem atingi<strong>da</strong>s<br />

pelo sol...<br />

Assim como as feiticeiras, os cortadores de raiz eram considerados capazes de agir<br />

tanto para o bem quanto para o mal, pois muitas raízes que eles colhiam e fórmulas que<br />

preparavam, eram reconheci<strong>da</strong>s como venenosas, mesmo que pudessem ser administra<strong>da</strong>s<br />

para a cura.<br />

Os textos citados neste capítulo nos indicam várias mulheres, como Helena, Agamede,<br />

Circe e Medéia, que detinham certo conhecimento e domínio de ervas. Entretanto,<br />

observamos que esta téchne não se refere somente às mulheres míticas, mas às ci<strong>da</strong>dãs<br />

atenienses ou estrangeiras que aprenderam a utilizar as plantas e ervas com fins<br />

9<br />

terapêuticosTPF FPT, acreditando serem mágicas as suas atribuições.<br />

9<br />

TP PTAs mulheres não utilizavam as ervas somente para fins terapêuticos (como, por exemplo, para conter<br />

problemas menstruais e secreções vaginais ou como calmantes e contraceptivos), mas também as utilizavam<br />

104


Podemos conferir a descrição desta prática ain<strong>da</strong> com os versos de Teócrito (310-250<br />

a.C.), que, em seu idílio de número II, Pharmakeutriai, apresenta um monólogo em que<br />

vemos uma mulher de nome Simaetha tentar reconquistar o ente amado, que a abandonou,<br />

por meios mágicos. Após consultar alguns profissionais, resolve, ela mesma, realizar um<br />

ritual mágico. Teócrito descreve esse ritual e cita os ingredientes utilizados: algumas pita<strong>da</strong>s<br />

de ceva<strong>da</strong>, folhas de louro, farelo de trigo, cera, líquidos (vinho, leite ou água) para libações,<br />

além de pata-de-potro (uma erva) e um lagarto em pó. Simaetha, que possuía um pe<strong>da</strong>ço do<br />

manto de seu amado, parte-o em tiras e o lança às chamas. Para completar o ritual, dirige<br />

vários encantamentos e conjurações à lua cheia, que está no céu, e a Hécate, nos confins<br />

subterrâneos <strong>da</strong> terra.<br />

O desenvolvimento <strong>da</strong>s crenças e práticas mágicas na Grécia oferece numerosos<br />

exemplos de tensões e interações entre os diversos níveis <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Com o surgimento<br />

<strong>da</strong> filosofia e <strong>da</strong> ciência, ou seja, a partir do séc. VI a.C., a magia passa a ser defini<strong>da</strong>,<br />

sobretudo no séc. V a.C., como uma prática “marginal” por possuir um caráter individual e<br />

não buscar a coesão social presente na religião cívica (Cf.VERNELL, 1991:178.), já do<br />

período helenístico em diante, entretanto, surge uma nova visão de magia, principalmente<br />

10<br />

no que se refere ao conceito de magia naturalTPF<br />

FPT. Este saber se estendeu ao campo <strong>da</strong><br />

para fins sexuais, neste caso, podendo trazer <strong>da</strong>nos à virili<strong>da</strong>de masculina, provocando a impotência e, se<br />

ingeri<strong>da</strong>s, até mesmo a morte. Cf. CÂNDIDO (2001:257-258).<br />

10<br />

TP<br />

PT O conceito de magia natural está vinculado ao conhecimento <strong>da</strong> coleta e <strong>da</strong> preparação de to<strong>da</strong>s as<br />

espécies de plantas, medicinais ou venenosas, bem como outros preparados que derivam de partes de animais.<br />

105


sexuali<strong>da</strong>de, visto que algumas plantas por conta de suas origens e formas foram rotula<strong>da</strong>s<br />

11<br />

de afrodisíacasTPF<br />

FPT e utiliza<strong>da</strong>s como instrumentos de sedução e propagação do prazer.<br />

Entretanto, a ciência moderna confirmou que muitos mitos que nortearam a crença no poder<br />

dessas plantas são ver<strong>da</strong>deiros, pois a boa disposição sexual é propicia<strong>da</strong> pelo efeito<br />

benéfico <strong>da</strong> planta sobre a circulação sangüínea e como fonte de energia.<br />

Um exemplo de planta utiliza<strong>da</strong> para esses fins é a orquídea, em latim Orchi<strong>da</strong>ceae<br />

(derivado do grego Orchis).<br />

O Termo Orchis, que significa testículos, foi usado pela primeira vez por Theofrasto<br />

(c. 372 - 287 a.C.), filósofo grego, discípulo de Aristóteles. Theofrasto comparou as raízes<br />

tuberosas de algumas orquídeas mediterrâneas com os testículos humanos. As suas raízes<br />

eram utiliza<strong>da</strong>s no preparo de poções mágicas: as frescas para promover o amor, as secas<br />

para provocar paixões.<br />

Também temos registros de que vários contraceptivos foram utilizados por volta de<br />

1600 a.C., pois durante o reinado de Minos de Knossos, em Creta, se utilizavam como<br />

preservativos bexigas natatórias de peixes. A mitologia grega nos apresenta a hstória do rei<br />

Minos, filho de Zeus e Europa, que ao se casar com Pasiphë teve, por conta <strong>da</strong> sua<br />

infideli<strong>da</strong>de, a sua semente, em grego sperma amaldiçoa<strong>da</strong>. Minos, a partir de então passou,<br />

a ejacular serpentes, escorpiões e lacraias. To<strong>da</strong>s as mulheres com que o monarca se<br />

relacionasse mais intimimamente morriam - com excepção de Pasiphë, imune ao seu<br />

próprio feitiço. Minos entretanto apaixonou-se por Procris e esta, para evitar que a<br />

consumação <strong>da</strong> paixão fosse fatal, inventou o primeiro preservativo feminino utilizando<br />

uma bexiga de cabra.<br />

Como contraceptivo os gregos também utilizaram uma planta selvagem a que<br />

chamaram silphion, proveniente de Celene, hoje Líbia, que ficou conhecido como o<br />

primeiro contraceptivo oral de que se há registo.<br />

12<br />

O silphionTPF<br />

FPT dos gregos corresponde ao laserpitium dos latinos, planta africana<br />

encontra<strong>da</strong> na peninsula Cyrenaica. Pesquisas modernas sugerem<br />

que o supposto silphion seria simplesmente a vulgar Thapsia garganica, uma planta<br />

medicinal, mas de quali<strong>da</strong>des diversas <strong>da</strong> antiga, a qual se deve julgar extincta.<br />

11<br />

TP<br />

PT Em virtude dessas semelhanças, o médico grego Dioscórides, que viveu no século 1 D.C. e estudou as<br />

proprie<strong>da</strong>des farmacológicas de aproxima<strong>da</strong>mente seiscentas plantas, considerou que as raízes <strong>da</strong>s orquídeas<br />

tinham virtudes afrodisíacas. Em sua obra "Das Coisas Médicas" ele dizia: "se a raiz maior for comi<strong>da</strong> pelos<br />

homens, ela os fará procriar crianças do sexo masculino, enquanto a menor, sendo ingeri<strong>da</strong> pelas mulheres, as<br />

fará conceber crianças do sexo feminino".<br />

12<br />

TP<br />

PT Na antiga Cirenia – região <strong>da</strong> Líbia – as moe<strong>da</strong>s <strong>da</strong>ta<strong>da</strong>s de 300 a.C. tinham a imagem <strong>da</strong> planta<br />

"Silphion". A estampa serve para demonstrar o quanto as socie<strong>da</strong>des do Mediterrâneo valorizavam o vegetal,<br />

principalmente por causa de suas supostas capaci<strong>da</strong>des terapêuticas. Hoje, quem procurar um pé de "Silphion"<br />

só vai encontrá-lo nas moe<strong>da</strong>s raras. A planta está extinta e seus poderes de cura são desconhecidos. In:<br />

HTUhttp://www.terra.com.br/istoe/comport/151311b.htmUTH<br />

HTPlinio, o velho, TH(s. I d.C.) descreve na sua THistoria natural as funções do Silphion e as possíveis causas do<br />

seu desaparecimento.T<br />

106


13<br />

Salientamos também a importância do papiro ginecológico de KahunTPF<br />

FPT, escrito há<br />

quase 4 000 anos, e que registra a descrição do que seria a primeira poção contraceptiva :<br />

«A mulher misturará mel com cinza <strong>da</strong> barrilheira e excremento de crocodilo, a que juntará<br />

substâncias resinosas, aplicando um dose do produto na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> vagina, penetrando um<br />

pouco nela”.<br />

Merece destaque também o fato de que a magia não era uma prática restrita a um<br />

determinado nível <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, mas como nos demonstram os textos literários, que<br />

descrevem alguns procedimentos mágicos, tratava-se de um uso que transpassava to<strong>da</strong> a<br />

socie<strong>da</strong>de grega, principalmente a do período helenístico, por ser fruto de um “conglomerado<br />

14<br />

sincréticoTPF<br />

FPT” formado pelos diversos povos que habitavam a Alexandria do Egito.<br />

Platão, em Leis XI, 932e-933b, já enumera os principais procedimentos mágicos, no<br />

séc. IV a.C., e a difícil tarefa de analisar essa téchne:<br />

Quanto aos malefícios que uns podem causar aos outros por meio de<br />

drogas já tratamos dos de conseqüências letais; mas ain<strong>da</strong> não falamos<br />

dos incômodos provocados intencionalmente e com premeditação por<br />

meio de bebi<strong>da</strong>s e alimentos ou com ungüentos. O difícil na presente<br />

exposição é que há no gênero humano duas espécies de envenenamento:<br />

uma é a que acabamos de nos referir, e que consiste em causar <strong>da</strong>no ao<br />

corpo pela ação natural de outros corpos; a outra, por meio de sortilégios<br />

encantamentos e o que se denomina ligadura , chega a persuadir aos que<br />

querem causar <strong>da</strong>nos a terceiros que o conseguirão com tal recurso, como<br />

também convence a estes últimos que ninguém lhes pode ocasionar tanto<br />

mal como as pessoas conhecedoras de artes mágicas. O que possa haver<br />

de ver<strong>da</strong>deiro em tudo isso não é fácil conhecer, nem depois de sabido,<br />

deixar aceitável para ninguém; <strong>da</strong><strong>da</strong> a desconfiança reinante nos espíritos<br />

a respeito de tais assuntos, não vale a pena procurar convencê-los,<br />

sempre que encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera, ou em<br />

encruzilha<strong>da</strong>s, ou talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados,<br />

de que não devem <strong>da</strong>r a menor importância a essas práticas, pois acerca<br />

de tudo isto ninguém têm opinião forma<strong>da</strong>.<br />

Platão questiona a eficácia dessas profissionais de magia cujas habili<strong>da</strong>des eram difíceis<br />

de se averiguar, analisar ou compreender, sendo a profissional julga<strong>da</strong> pela eficiência ou<br />

pelos <strong>da</strong>nos causados por sua prática. Acreditando também que a punição relaciona<strong>da</strong> a estas<br />

práticas e a seus praticantes esteja basea<strong>da</strong> no resultado advindo <strong>da</strong>s mesmas, que nem<br />

sempre acarretava em proveito àquele que solicitava um benefício mágico. Portanto, por<br />

temer a extensão do poder dessas práticas, os atenienses puniam seus praticantes, na maioria<br />

dos casos, mulheres estrangeiras, como uma forma de se precaverem.<br />

Entretanto, o conhecimento <strong>da</strong>s ervas, sejam elas afrodisíacas ou não, era utilizado<br />

pelas mulheres de diferentes níveis sociais, em forma de banhos e ungüentos e podiam<br />

causar problemas na virili<strong>da</strong>de masculina, quando se tratava de ungüentos contraceptivos que<br />

podiam fomentar a impotência masculina e algumas vezes até a morte.<br />

13<br />

TP<br />

PT O papiro Kahun é um texto que nos fala <strong>da</strong> ginecologia, que trata dos órgãos de reprodução, concepção,<br />

testes de gravidez, o parto e a concepção. In: http://www.natureduca.com/med_hist_herborist1.php.<br />

14<br />

TP<br />

PT Cf. Luck (1995: 21).<br />

107


Não havia, portanto, regras precisas para a busca pelo prazer, o que existia era um<br />

cui<strong>da</strong>do com a intensificação e domínio deste e, talvez, uma tentativa de identificar os<br />

homens a partir de sua conduta sexual.<br />

Traçar, portanto, um paralelo entre práticas sociais, magia e medicina faz parte de<br />

uma nova pesquisa que tentará delinear esse percurso através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> obra gynaikologia<br />

de Hipócrates. Nesta obra, o médico grego analisa a physis feminina e apresenta um glossário<br />

de phármaka terapêuticos que, ao final <strong>da</strong> tradução, talvez permita-nos entender o receio<br />

existente no uso de algumas drogas, receio que o poeta Ovídio consagrou em seus versos:<br />

Referências bibliográficas.<br />

Se alguém pensa que as ervas maléficas <strong>da</strong> Hemônia e as artes<br />

mágicas podem servir de alguma utili<strong>da</strong>de, o problema é dele. Esse<br />

caminho do malefício é proibido. Apolo oferece-nos, com sua<br />

inspiração sagra<strong>da</strong>, recursos inócuos. Sob minha orientação, as<br />

sombras não serão convoca<strong>da</strong>s a erguerem-se de seus túmulos; uma<br />

velha não romperá a terra com baixa feitiçaria; as plantações não<br />

serão transporta<strong>da</strong>s de um campo para outro. o disco de febo não<br />

empalidecerá subitamente [...] de que serviram, princesa de<br />

Cólqui<strong>da</strong>, as plantas do Fásis, quando desejavas permanecer na casa<br />

paterna? De que te valeram, Circe, as ervas de Perseide, quando o<br />

vento favorável levou os navios de Nérito? [...] Tu, pois que buscas<br />

para ti socorro em nossa arte, deixa de ter fé em sortilégios e<br />

magias. (OVÍDIO, Remédios para o amor).<br />

ALSINA, José. Teoria Literaria Griega. Madrid: Editorial Gredos, 1991.<br />

______. Los orígenes helênicos de la Medicina Occidental. Barcelona: Editorial<br />

Labor, S.A. 1982.<br />

CANDIDO, Maria Regina. A feitiçaria na Atenas clássica. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2004.<br />

______. Mulheres estrangeiras e a prática <strong>da</strong> magia na Atenas do IV século a.C. In:<br />

FUNARI, A. (Org.). Amor, desejo e poder na Antigüi<strong>da</strong>de. Relações de gênero e<br />

representações do feminino. Campinas: Unicamp, 2003.<br />

DIODORO DE SICILIA. Biblioteca Histórica. Livros I-III. Traducción de F. Parreu Alasà.<br />

Madrid: Gredos, 2001.<br />

ESCOHOTADO, A. Historia general de las drogas. Madrid: Editorial Espasa, Calpe, 1998.<br />

Vol. 1.<br />

EURIPEDE. Médée. Texte établi et traduit par Loius Méridier. Paris: Les Belles Lettres,<br />

108


1925. Tomo I.<br />

HERÔDOTOS. História. Intr. e Trad. de Mario <strong>da</strong> Gama Kury. Brasília: Ed.Universi<strong>da</strong>de de<br />

Brasília, 1988.<br />

HIPPOCRATE. De l’ ancienne médecine. Paris: Les Belles Lettres, 1990. Tome III.<br />

HIPOCRATES. Sore la Medicina Antigua. In: Científicos Griegos. Madrid, Aguilar Ed.,<br />

1970. Pp. 110-132.<br />

HOMÈRE. Iliade. Paris: Les Belles Lettres, 1956.<br />

______. The Odyssey. London: Loeb Classical Library ,1976.<br />

LUCK, Georg. Bruxos, bruxas e feiticeiros na literatura clássica. In: Bruxaria e Magia na<br />

Europa: Grécia antiga e Roma. São Paulo: Madras, 2004. Pp.103-156.<br />

______. Arcana Mundi: Magia y ciencias ocultas em el mundo griego y romano. Madrid:<br />

Gredos, 1995.<br />

OVÍDIO. Remédios para o amor. Tradução, introdução e notas de Antônio <strong>da</strong> Silveira<br />

Mendonça. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.<br />

PLATON. Les Lois. Texte établi et traduit par Auguste Diés. Paris: Les Belles Lettres,1956.<br />

TEOFRASTO. Historia de las Plantas y Causas de las Plantas. In: Científicos Griegos.<br />

Madrid, Aguilar Ed., 1970. pp. 667-676.<br />

VERSNELL, H. S. Some Refletions on the Relationship Magic-Religion. Numen. Leiden: E.<br />

J. Brill, 1991, vol.XXXVIII, fasc. 2.<br />

109


As Lamentações de Ariadne nas Núpcias de Peleu e Tétis<br />

EDNA RIBEIRO DE PAIVA<br />

Prof. Associado – Inst. Letras UFF<br />

A obra po<strong>ética</strong> de Catulo apresenta-se para nós com uma dicotomia: por um<br />

lado, sua obra lírica, com poemas curtos, em que nos parece vislumbrar com nitidez a<br />

personali<strong>da</strong>de do homem Catulo, quer revelando seus amores, sem se envergonhar <strong>da</strong><br />

submissão às suas paixões, quer mostrando seus ódios e desprezos. Esses poemas<br />

registram uma notável varie<strong>da</strong>de de sentimentos humanos, expressos com muita<br />

espontanei<strong>da</strong>de e arte magistral: alegria e tristeza, esperança e decepção, entusiasmo e<br />

desânimo, enfim, amor e ódio, tudo envolto em ternura e frescor juvenil, o que não pode<br />

deixar de cativar o leitor. Por essa parte de sua obra, de caráter mais pessoal, vemos o<br />

homem dominado pela paixão e pelos prazeres de uma vi<strong>da</strong> mun<strong>da</strong>na, tendo consciência<br />

de sua fraqueza e buscando uma forma de redenção. É por esses poemas que ele se<br />

notabilizou, não só na literatura latina, mas na literatura universal.<br />

O segundo aspecto de sua obra po<strong>ética</strong> não corresponde a uma evolução do<br />

gosto estético do poeta: são poemas contemporâneos aos outros, constituídos de<br />

numerosos versos, que tratam de assuntos mitológicos, imitados aos poetas<br />

1<br />

alexandrinos.TPF FPT Foi certamente um tributo pago por Catulo a um modismo de<br />

época: ele a<strong>da</strong>ptou seu estro ao gosto <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de romana que freqüentava. Essa é a<br />

parte de sua obra menos estu<strong>da</strong><strong>da</strong> e, por isso, menos conheci<strong>da</strong>.<br />

O alexandrinismo foi um movimento de reação ao classicismo no mundo<br />

helênico. Ele se desenvolveu de 323 a.C. (<strong>da</strong>ta <strong>da</strong> morte de Alexandre o Grande) até o<br />

fim do século I a.C. (época em que se completou o domínio do mundo mediterrâneo<br />

pelos romanos). Esse movimento teve por centro a ci<strong>da</strong>de de Alexandria, no Egito,<br />

onde o Museu e a Biblioteca dos Ptolomeus congregavam sábios e escritores de to<strong>da</strong>s as<br />

regiões.<br />

Isso não significa que os autores clássicos tivessem sido abandonados; eles<br />

continuaram a ser lidos e imitados, como veremos adiante. Os movimentos de<br />

renovação e oposição aos autores antigos sempre estiveram presentes nas literaturas de<br />

todos os povos.<br />

A introdução do alexandrinismo em Roma parece estar liga<strong>da</strong> à presença de<br />

Partênio de Nicéia, que foi levado a essa ci<strong>da</strong>de como servo e depois liberto do pai de<br />

Hélvio Cina, um dos componentes desse novo círculo literário, em 73 a.C., durante a<br />

terceira guerra mitridática, como Lívio Andronico, Terêncio e Políbio o foram,<br />

anteriormente. Aí permaneceu, escrevendo elegias, ministrando ensinamentos e<br />

tornando-se mentor de um círculo de jovens literatos que se introduziam na poesia<br />

alexandrina. Além de Catulo e Cina, podemos citar Licínio Calvo, Varrão Atacino,<br />

Quinto Cornifício, Valério Catão, Cornélio Nepos e Fúrio Bibáculo. Na poesia romana<br />

essa influência se manifesta em Catulo, Propércio e, em menor proporção, em Virgílio e<br />

Ovídio.<br />

As características principais <strong>da</strong> escola alexandrina são o rompimento com o<br />

passado literário romano, com o conseqüente desprezo pelo epos homérico,<br />

representado pelas obras de Lívio Andronico (tradutor <strong>da</strong> Odisséia de Homero), de<br />

Névio (autor <strong>da</strong> Guerra Púnica) e principalmente pelos Anais de Ênio, a preferência por<br />

composições curtas, ou por poemas mitológicos de pequena extensão para o gênero, em<br />

que são abor<strong>da</strong>dos os aspectos amorosos do mito, disfarçando aí o poeta seus próprios<br />

sentimentos, o artificialismo, uma exibição excessiva de erudição mitológica e<br />

1<br />

TP PT Os poemas 65, 66 e 68 são considerados por alguns estudiosos como contemporâneos de poemas<br />

dirigidos a Lésbia.<br />

110


geográfica, a busca constante <strong>da</strong> beleza e a elaboração cui<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>da</strong> forma. Mas, dentre<br />

os defeitos comuns aos poetas alexandrinos, surgem as quali<strong>da</strong>des inerentes a Catulo:<br />

frescor, transbor<strong>da</strong>mento emotivo e sinceri<strong>da</strong>de juvenil.<br />

Marcial. TP F<br />

Por esses poemas, Catulo recebeu o epíteto de doctus <strong>da</strong>do, por Tibulo, Ovídio e<br />

2<br />

FPT<br />

Também por esses poemas, Catulo e os demais poetas de seu círculo literário<br />

3<br />

4<br />

foram denominados neoteroi TPF FPT (juvenis) ou poetae noui TPF FPT (poetas modernos) e<br />

5<br />

6<br />

cantores Euphorionis TPF FPT por Cícero e outros que, como ele, desprezavam as nugae TPF FPT de<br />

Catulo, só reconhecendo por arte os antigos poetas como Ênio, com seus longos poemas<br />

7<br />

de tom grandiloqüente e assuntos “sérios”. TPF FPT Ênio (239 a.C. – 169 a.C.) escrevera os<br />

Annales (Anais), sua grande epopéia de assuntos nacionais, <strong>da</strong> qual nos restam 600<br />

versos. Isso na<strong>da</strong> mais era que o eterno choque <strong>da</strong>s gerações: tradicionalistas versus<br />

inovadores, que sempre se defrontaram, ao longo <strong>da</strong>s eras.<br />

Sendo um tradicionalista, um defensor dos costumes ancestrais <strong>da</strong> Vrbs, Cícero e<br />

os que como ele pensavam sentiam-se irritados com a irreverência desses jovens<br />

literatos para com Ênio e a expressão de tão sagrados sentimentos patrióticos. Viam<br />

com temor e desconfiança essa nova maneira de poetar e a expressão de sentimentos,<br />

sobretudo amorosos, antes desconhecidos na literatura latina. Parecia-lhes vergonhosa a<br />

confissão pública <strong>da</strong> submissão masculina às paixões, a falta de domínio sobre seus<br />

sentimentos, o que sempre foi considerado um atributo viril, propala<strong>da</strong>s por esses<br />

vanguardistas em busca de novi<strong>da</strong>des. No poema 49, verso 6, Catulo parece defenderse,<br />

de forma irônica, dos ataques de Cícero, que o chamava de pessimus omnium poeta,<br />

numa peça tão bem arquiteta<strong>da</strong> que muitos críticos julgaram que o poema seria um<br />

elogio e não, um ataque.<br />

Esses poetas queriam justamente romper com a tradição, abandonar os longos<br />

poemas patrióticos, revelar seu eu, evitar o ranço <strong>da</strong> língua arcaica, arriscar-se a novas<br />

formas, evitar exageros helenísticos e tornar mais leve e elegante a língua latina, por<br />

isso, perdido o valor pejorativo, a expressão poetae noui, tornou-se emblemática para<br />

esses introdutores em Roma de uma poesia helenística que já se praticava desde o<br />

século III a.C., no mundo mediterrâneo conquistado por Alexandre.<br />

Catulo esteve envolvido nesse movimento de renovação literária e interveio nas<br />

questôes literárias de seu tempo, convencido <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de um trabalho cui<strong>da</strong>doso<br />

quanto à língua e à métrica. Assim, perseguiu, ao seu modo irreverente, os maus<br />

poetas que abusavam de arcaísmos, produzindo obras pesa<strong>da</strong>s, como Volúsio, autor de<br />

uns Anais, à mo<strong>da</strong> de Ênio, a que ele chama de cacata carta, no verso 1 do poema 36.<br />

O poeta, estava tão impregnado dos valores helênicos que parece um grego<br />

escrevendo em latim. A semelhança entre as duas línguas facilitou-lhe evidentemente a<br />

tarefa, além do fato de que os romanos sempre sentiram a necessi<strong>da</strong>de de buscar um<br />

modelo grego para suas realizações latinas. A obra de Catulo, composta de 116<br />

poemas, foi a única que nos restou dos poetae noui; dos outros autores restaram apenas<br />

fragmentos.<br />

2<br />

TP PT Coloca-se aqui um problema, compreendendo alguns doctrina por “erudição, cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong> forma”, mas<br />

os antigos usavam o adjetivo doctus como sinônimo de peritus, como vemos em Horácio, Sátira, I, 10,<br />

19: doctus cantare (hábil em cantar).<br />

3<br />

TP PT Cícero, Cartas a Ático, 7,2,1.<br />

4<br />

TP PT Cícero, Orador, 6,1.<br />

5<br />

TP PT Cícero, Tusculanas, 3,45. Euforião de Cálcis era um poeta alexandrino inexpressivo, autor de elegias e<br />

epigramas, ao qual Catulo na<strong>da</strong> deve, em reali<strong>da</strong>de.<br />

6<br />

TP PT Nugae: “bagatelas” (poemas breves sobre assuntos corriqueiros do dia a dia.)<br />

7<br />

TP PT Os poemas ditos “sérios” estão ligados à velha grauitas romana, tão venera<strong>da</strong> pelos antigos.<br />

111


A poesia alexandrina, constituí<strong>da</strong> pelos carmina docta, maiora, longiora ou<br />

uigilata, parte em que menos se vislumbra o ver<strong>da</strong>deiro Catulo, suas paixões e seus<br />

ódios, considera<strong>da</strong> como “poesia de gabinete”, é burila<strong>da</strong>, erudita, fria, sem grandes<br />

derramamentos, mas deu-nos alguns bons poemas, como UÁtis U(descrição do delírio<br />

orgíaco dos seguidores de Cibele), UA Cabeleira de BereniceU (imitação de um poema<br />

perdido de Calímaco, em que o poeta imaginou a metamorfose dos cabelos <strong>da</strong> rainha do<br />

Egito em cometa) e as UNúpcias de Peleu e TétisU (o mais longo dos três), todos<br />

desenvolvendo temas mitológicos e imitados de autores gregos, como Calímaco de<br />

Cirene, já citado, e Filetas de Cós.<br />

A imitação era vista como uma homenagem que se fazia a bons autores, antigos<br />

ou contemporâneos, e não um plágio. Isso constituía um jogo entre o autor e o leitor,<br />

que se comprazia em descobrir no novo texto as alusões a matéria já trabalha<strong>da</strong><br />

anteriormente. Era preferível buscar um aspecto não abor<strong>da</strong>do numa obra e o<br />

desenvolver, o que constituía originali<strong>da</strong>de, a arriscar assunto novo, sem substância. No<br />

fragmento 612, Calímaco diz: “na<strong>da</strong> canto que não esteja documentado.”<br />

O poema 64, UNúpcias de Peleu e TétisU, que nos interessa agora, é composto de<br />

408 versos em hexâmetros <strong>da</strong>tílicos, embora 30 sejam espon<strong>da</strong>icos, o que deve<br />

corresponder a uma escolha consciente de Catulo, visto que tanto os poetas clássicos<br />

como os alexandrinos deles fizeram uso. Sua orientação geral é épica, como afirma<br />

Maril<strong>da</strong> Evangelista (SILVA, 1974:10), embora consiga sintetizar muitas <strong>da</strong>s<br />

características dos três gêneros (lírico, épico e dramático). As constantes intervenções<br />

de Catulo, para expressar suas idéias e sentimentos, impedem-no de manter uma atitude<br />

objetiva e distancia<strong>da</strong>, característica do estilo épico.<br />

O assunto do poema é a cerimônia de casamento do grego Peleu, um dos<br />

argonautas que, em busca do tosão de ouro, vê e se apaixona por uma ninfa marinha,<br />

Tétis, filha de Nereu e Dóris (versos 1 - 49).<br />

Após narrar o encontro dos dois, Catulo descreve, a partir do verso 52, a casa de<br />

Peleu e, a pretexto de explicar as figuras que adornam a colcha que cobre o leito<br />

nupcial, encaixa o episódio de Ariadne abandona<strong>da</strong> por Teseu e as desgraças que isso<br />

provocou (versos 50 - 264).<br />

Terminado o episódio, o poeta retoma a narrativa <strong>da</strong>s núpcias, onde se percebe a<br />

influência do folclore e <strong>da</strong> religião, e culmina com a revelaçao do futuro profético pelas<br />

Parcas, que asseguram a felici<strong>da</strong>de do casal e o nascimento de Aquiles, destinado a<br />

uma vi<strong>da</strong> gloriosa (versos 265 - 408).<br />

Este poema sofre influência tanto <strong>da</strong> poesia grega clássica, quanto <strong>da</strong> poesia<br />

alexandrina. Ele se adequa aos cânones alexandrinos, porque trata um assunto épico em<br />

um poema de bem pequena extensão para esse gênero literário. O mito, que foi tomado<br />

à poesia clássica grega, foi a<strong>da</strong>ptado ao fim que se propunha o poeta, visto que a versão<br />

original, mostrava a nerei<strong>da</strong> desinteressa<strong>da</strong> na união com um mortal e os deuses que a<br />

8<br />

disputavamTPF FPT não quiseram arriscar-se a ver cumpri<strong>da</strong> a profecia de que o filho por ela<br />

gerado seria maior que o pai. Diz-se também que Tétis matou todos os seu filhos, só se<br />

salvando Aquiles. Catulo ignorou os detalhes que não o interessavam, a tal ponto que<br />

desconsiderou o fato de que o episódio de Teseu e Ariadne era posterior ao de Peleu e<br />

Tétis, não podendo, desse modo, estar representado na colcha do seu leito nupcial.<br />

O episódio, conhecido como UAs Lamentações de Ariadne,U uma elegia dentro do<br />

epílio (pequena composição épica), serve de contraponto ao romance de Peleu e Tétis.<br />

Enquanto os deuses abençoaram as núpcias destes, Ariadne cometeu um crime contra<br />

8<br />

TP PT O<br />

mito nos diz que o próprio Júpiter era um dos pretendentes de Tétis.<br />

112


seu meio-irmaõ, fugiu de casa, renunciando à família, e seguiu Teseu, numa união não<br />

favoreci<strong>da</strong> pelos deuses, o que inevitavelmente levaria a um desfecho infeliz.<br />

Catulo, homem comprometido com a reali<strong>da</strong>de de sua época, defendia a moral, a<br />

pietas e a concordia. Vivendo nos últimos tempos <strong>da</strong> república, época marca<strong>da</strong> por<br />

grande instabili<strong>da</strong>de político-social e religiosa, ele pretendia criar um mundo de paz e<br />

tranqüili<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> que irreal e mitológico, onde a família, a obediência aos pais, aos<br />

deuses e aos valores familiares, vigentes em épocas anteriores, prevalecessem.<br />

Observamos que, num total de 408 versos, 193 pertencem ao núcleo central,<br />

enquanto 215 dizem respeito ao episódio nele encaixado, o que nos mostra a<br />

importância que Catulo lhe atribuiu.<br />

Vejamos um breve enredo, para a compreensão do tema: Ariadne era filha do rei<br />

de Creta, Minos, que encomen<strong>da</strong>ra a Dé<strong>da</strong>lo a construção de um labirinto onde<br />

encerrava o minotauro, metade homem, metade touro, filho de sua mulher, Pasífae, com<br />

um touro branco.<br />

Teseu, jovem ateniense, quer acabar com o monstro, que devora anualmente sete<br />

rapazes e sete moças, exigidos por Minos, para vingar a morte de seu filho, Androgeu,<br />

assassinado por Egeu, rei de Atenas e pai de Teseu.<br />

Ariadne, filha de Minos e Pasífae e, portanto, meio-irmã do Minotauro, se<br />

apaixona por Teseu e lhe fornece uma espa<strong>da</strong> para matar o monstro e um fio, para que<br />

ele possa fugir do labirinto, após a morte do Minotauro.<br />

Teseu lhe promete, em troca, casamento e chegam a fugir juntos, mas ele a<br />

abandona, adormeci<strong>da</strong>, numa ilha, TPF<br />

9<br />

FPT fugindo<br />

em sua nau.<br />

Ao despertar e vendo-se abandona<strong>da</strong>, Ariadne, desespera<strong>da</strong>, à beira-mar, profere<br />

suas pungentes lamentações e pede aju<strong>da</strong> aos deuses para sua vingança. Os deuses a<br />

concedem, na forma <strong>da</strong> morte de Egeu, pai de Teseu, que o esperava de regresso num<br />

rochedo, de onde veria os sinais combinados com ofilho, quando de sua parti<strong>da</strong> de<br />

Atenas. Não vendo os tais sinais, TPF<br />

10<br />

FPT julga<br />

que o filho morrera e atira-se do rochedo, o<br />

que provoca em Teseu sofrimento semelhante ao que causara a Ariadne.<br />

A história de Egeu, desenvolvimento do episódio de Ariadne, é o melhor<br />

exemplo do elemento dramático inserido no poema.<br />

O relato <strong>da</strong>s desventuras de Ariadne termina com o surgimento de Baco,<br />

acompanhado pelo cortejo <strong>da</strong>s Bacantes, buscando o deus consolá-la.<br />

Nas ULamentações de AriadneU, surpreendemo-nos reconhecendo no discurso <strong>da</strong><br />

personagem feminina uma identificação com as palavras de melancolia e decepção<br />

amorosa proferi<strong>da</strong>s por Dido, ao ser igualmente abandona<strong>da</strong> por Enéias, no 4º livro <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong> de Virgílio. Sugerem alguns autores, como Jean Bayet (BAYET, 1934:238)<br />

que Virgílio se inspirou em Catulo, ao compor seu quadro.<br />

Ambos os episódios são tão comoventes que Ovídio incluiu nas Heroides (As<br />

Heroínas), livro que contém uma correspondência versifica<strong>da</strong> entre quinze famosas<br />

heroinas mitológicas <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de e seus amados, a carta de Ariadne a Teseu e a de<br />

Dido a Enéias.<br />

Visto ser este um poema extenso, escolhi o início <strong>da</strong>s lamentações para nele<br />

examinar os recursos de que Catulo se utilizou para tornar mais pungente a fala de<br />

Ariadne.<br />

9<br />

10<br />

TP PT A<br />

TP<br />

PT Velas<br />

“Sicine me patriis auectam, perfide, ab aris,<br />

Perfide, deserto liquisti in litore, Theseu?<br />

Sicine discedens neglecto numine diuum<br />

ilha de Dios, depois Naxos, uma <strong>da</strong>s ilhas Cíclades, na Grécia.<br />

brancas hastea<strong>da</strong>s na sua nau, em vez <strong>da</strong>s velas negras com que partira.<br />

113


Inmemor a! deuota domum periuria portas? 135<br />

Nullane res potuit crudelis flectere mentis<br />

Consilium? tibi nulla fuit clementia praesto,<br />

Inmite ut nostri uellet miserescere pectus?<br />

At non haec quon<strong>da</strong>m blan<strong>da</strong> promissa dedisti<br />

Voce mihi, non haec misere sperare iubebas, 144<br />

Sed conubia laeta, sed optatos hymenaeos;<br />

Quae cuncta aerii discerpunt irrita uenti.<br />

Nunc iam nulla uiro iuranti femina cre<strong>da</strong>t,<br />

Nulla uiri speret sermones esse fidelis;<br />

Quis dum aliquid cupiens animus praegestit apisci, 145<br />

Nil metuunt iurare, nihil promittere parcunt;<br />

Sed simul ac cupi<strong>da</strong>e mentis satiata libido est,<br />

Dicta nihil metuere, nihil periuria curant.<br />

Certe ego te in medio uersantem turbine leti<br />

Eripui, et potius germanum amittere creui, 150<br />

Quam tibi fallaci supremo in tempore deessem;<br />

Pro quo dilaceran<strong>da</strong> feris <strong>da</strong>bor alitibusque<br />

Prae<strong>da</strong>, neque iniacta tumulabor mortua terra.<br />

Quaenam te genuit sola sub rupe leaena,<br />

Quod mare conceptum spumantibus expuit undis, 155<br />

Quae Syrtis, quae Scylla rapax, quae uasta Charybdis,<br />

Talia qui reddis pro dulci praemia uita?<br />

Si tibi non cordi fuerant conubia nostra,<br />

Saeua quod horrebas prisci praecepta parentis,<br />

At tamen in uestras potuist ducere sedes, 160<br />

Quae tibi iocundo famularer serua labore,<br />

Candi<strong>da</strong> permulcens liquidis uestigia lymphis<br />

Purpureaue tuum consternens ueste cubile.<br />

(versos 132 – 163)<br />

(“É assim, pérfido, que deixaste na praia deserta a mim, leva<strong>da</strong> embora<br />

<strong>da</strong> casa paterna, pérfido Teseu? Assim partindo, tendo negligenciado o<br />

poder dos deuses, esquecido, ah! levas teus perjúrios malditos para tua<br />

casa? Nenhuma circunstância pôde mu<strong>da</strong>r a resolução de teu espírito<br />

cruel? Não tiveste nenhuma clemência disponível para que teu duro<br />

coração pudesse se apie<strong>da</strong>r de mim? Mas não eram estas as promessas<br />

que outrora me fizeste com voz insinuante, não me exortavas, de modo<br />

comovente, a esperar estes acontecimentos, mas um casamento venturoso<br />

e a deseja<strong>da</strong> união, tudo coisas inúteis que os ventos que sopram<br />

dispersam. Então, a partir de agora, que nenhuma mulher creia no<br />

homem que jura, que nenhuma espere que as palavras de um homem<br />

sejam fiéis. Aquele, quando seu espírito cobiçoso deseja vivamente obter<br />

algo, na<strong>da</strong> receia jurar, na<strong>da</strong> poupa em prometer; mas, logo que foi<br />

saciado o desejo de sua alma ávi<strong>da</strong>, não teme suas palavras, não se<br />

preocupa com seus perjúrios. Na ver<strong>da</strong>de, salvei a ti, que mergulhavas<br />

em meio ao turbilhão <strong>da</strong> morte, e decidi de preferência perder o meu<br />

irmão do que faltar a ti, traidor, no momento supremo. Como<br />

recompensa disso, serei <strong>da</strong><strong>da</strong> como presa, para ser dilacera<strong>da</strong>, às feras e<br />

às aves e, morta, não serei sepulta<strong>da</strong> na terra. Que leoa te pariu sob um<br />

114


ochedo solitário, que mar te vomitou, concebido, de suas on<strong>da</strong>s<br />

11<br />

12<br />

13<br />

espumantes, que Sirte, TPF<br />

FPT que Cila TPF<br />

FPT devoradora, que vasta Caribde TPF<br />

FPT<br />

gerou a ti que me dás tal recompensa, em troca de tua doce vi<strong>da</strong>? Se o<br />

teu coração não aceitasse nossas núpcias, porque temias as ordens cruéis<br />

de teu severo pai, poderias, contudo, levar para tua casa aquela que,<br />

como escrava, te serviria com um trabalho alegre, acariciando teus pés<br />

em límpi<strong>da</strong> água ou cobrindo teu leito com uma coberta de púrpura.)<br />

Este é um monólogo rico em elementos afetivos e a linguagem reflete essa<br />

emoção. Seu tom é intimista, visto que se trata de um discurso em primeira pessoa.<br />

Nesta parte inicial, Ariadne lança imprecações contra Teseu. O amor, tema constante na<br />

poesia lírica, está presente no texto, embora o tom predominante seja a revolta,<br />

provoca<strong>da</strong> pela constatação <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> a esperança. Os sete primeiros versos<br />

encerram quatro interpelações que Ariadne, perplexa, faz ao amado ausente (versos 133,<br />

135, 137, 138). Tais interrogações não têm como objetivo uma resposta efetiva, tendo<br />

apenas por função revelar o estado de espírito de quem as formula, acentuando sua<br />

indignação. Nessas invectivas, o vocativo perfide (v. 132), repetido e ampliado em<br />

perfide Theseu (v.133), a atribuição dos adjetivos immemor, “sem memória” (v.135) e<br />

fallaci, “enganador” (v. 151) e as acusações que lhe são dirigi<strong>da</strong>s, através <strong>da</strong>s<br />

expressões crudelis mentis (v.136) e inmite pectus (v.138) servem para caracterizar a<br />

cruel<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ações de Teseu.<br />

Do mesmo modo, vocábulos como o substantivo clementia (v.137), o verbo<br />

miserescere (v.138) e o advérbio misere (v. 140) servem para ressaltar a situação de<br />

penúria extrema de Ariadne, que se deixou arrastar por uma paixão desmedi<strong>da</strong>.<br />

As anáforas que estarão presentes em todo o texto, aju<strong>da</strong>m a manter o clima<br />

lírico, intensificando, muitas vezes, a mensagem. Assim, vemos o advérbio sicine, que<br />

exprime o modo cruel como Teseu agiu, no v. 132 e 134; a conjunção sed, que dá idéia<br />

de oposição entre suas atitudes anteriores, quando buscava seduzi-la, e as atuais,<br />

repeti<strong>da</strong> no v. 141; o pronome indefinido feminino nulla, nos versos 143 e 144, que<br />

acentua que mulher alguma deve confiar em juras de homem; o advérbio nihil e sua<br />

forma contrata nil, repetido quatro vezes nos versos 146 e 148, reforçando a ousadia do<br />

homem que na<strong>da</strong> teme, quando deseja atingir seus objetivos; o pronome interrogativo na<br />

forma feminina quae, repetido três vezes nos versos 154 e 156, para exprimir todo o<br />

horror e repulsa que a descoberta <strong>da</strong> existência de semelhante monstro lhe causa, faz<br />

com que ela utilize contra ele palavras fortes. Evidencia-se aí a exibição de erudição<br />

mitológica: Syrtis, Scylla e Charybdis (v. 156), ao gosto <strong>da</strong> escola alexandrina. Embora<br />

os arcaísmos fossem evitados, encontramo-los vez ou outra, como a forma de particípio<br />

passado iniacta (v. 153) , correspondente à forma clássica com apofonia em sílaba<br />

interior fecha<strong>da</strong> iniecta e o substantivo neutro letum (v. 149) .<br />

O contraste entre suas desgraças atuais e o passado bem recente de alegrias é<br />

obtido com a invocação dos momentos felizes, com a referência às haec promissa<br />

(v.139), blan<strong>da</strong> uoce (v. 139/140), conubia laeta e optatos hymenaeos (v.141).<br />

No verso 145, através <strong>da</strong> expressão cupien animus, desenvolvi<strong>da</strong>, a seguir, em<br />

cupi<strong>da</strong>e mentis satiata libido est (v.147) aponta o desejo masculino, desprovido do<br />

sentimento amoroso, como a causa <strong>da</strong>s mentiras e traições dos homens. Sua enorme<br />

perturbação emocional foi capta<strong>da</strong> na linguagem, cuja sintaxe se enriquece<br />

11<br />

TP<br />

PT Syrtis maior e minor eram dois golfos de águas rasas <strong>da</strong> costa meridional africana, próximos a<br />

Cartago, considerados pelos antigos como perigosíssimos à navegação.<br />

12<br />

TP<br />

PT Scylla era um monstro marinho que habitava numa caverna, no estreito de Messina.<br />

13<br />

TP<br />

PT Caribdis, perigoso remoinho, em frente de Scylla.<br />

115


estilisticamente, pelo uso de uma silepse de número: através de uma afirmação que se<br />

aplicava a Teseu especificamente, estende-a a todo o sexo masculino: o pronome<br />

indefinido quis (v.145) é sujeito de metuunt e de parcunt (v.146), que se encontram no<br />

plural, concor<strong>da</strong>ndo com a idéia genérica de uiri, já expressa anteriormente no v.144.<br />

Essas explicações vêm justificar as afirmativas feitas anteriormente, nos versos 143 e<br />

144, de que nenhuma mulher deve confiar nas juras masculinas. Vemos aí o emprego<br />

do Subjuntivo optativo, forma consagra<strong>da</strong> para uso em fórmulas de desejo ou de injúria,<br />

nas formas verbais cre<strong>da</strong>t (v. 143) e speret (v. 144).<br />

O verso 141 foi imitado por Virgílio no livro IV <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>: per conubia nostra,<br />

per inceptos hymenaeos.<br />

O elemento religioso, freqüente em Catulo, está representado por patriis ab aris<br />

(v.132), neglecto numine diuum (v.134) e deuota periuria (v.135), visto serem as<br />

tradições morais e religiosas <strong>da</strong> antiga Roma, despreza<strong>da</strong>s ao tempo de Catulo, o<br />

elemento que o poeta deseja celebrar, através do encarte deste episódio.<br />

O verso 153 se explica pela crença de que, se o corpo permanecesse insepulto,<br />

não passaria pelo Estige, rio dos infernos, bastando par evitar isso, três punhados de<br />

terra.<br />

A suprema humilhação para a mulher apaixona<strong>da</strong> é a confissão de que prefere<br />

acompanhar o amante como escrava, executando a humilde tarefa de lavar-lhe os pés –<br />

mas presente – a ser abandona<strong>da</strong> como mulher, nunca mais o vendo (v. 160 – 163). E<br />

aqui volta a referência à colcha de púrpura, para lembrar que ain<strong>da</strong> está descrevendo a<br />

colcha do leito nupcial de Peleu e Tétis, com que iniciou este encarte (v. 163).<br />

Assim como, no início <strong>da</strong>s lamentações de Ariadne percebemos um tom<br />

predominante de queixume, de increduli<strong>da</strong>de e abatimento moral, no final de sua fala,<br />

perdi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> esperança, ela finalmente se entrega ao ódio e pede aos deuses vingança à<br />

altura de seu sofrimento para o amado infiel.<br />

Quare facta uirum multantes uindice poena,<br />

Eumenides, quibus anguino redimita capillo<br />

Frons expirantis praeportat pectoris iras,<br />

Huc huc aduentate, meas audite querelas, 195<br />

Quas ego uae! misera extremis proferre medullis<br />

Cogor inops, ardens, amenti caeca furore.<br />

Quae quoniam uerae nascuntur pectore ab imo,<br />

Vos nolite pati nostrum uanescere luctum,<br />

Sed quali solam Theseus me mente reliquit, 200<br />

Tali mente, deae, funestet seque suosque”.<br />

(versos 192 – 201)<br />

(Já que punis as más ações dos homens com um castigo vingador,<br />

Eumênides, cuja fronte, cingi<strong>da</strong> por uma cabeleira de serpentes, mostras<br />

as fúrias que exalam do vosso peito, vinde aqui, aqui, ouvi minhas<br />

lamentações que eu, ah! infeliz de mim, sou obriga<strong>da</strong> a arrancar do mais<br />

profundo do meu ser, eu, carente, apaixona<strong>da</strong>, cega por um furor<br />

desvairado. Visto que elas, legítimas, nascem do fundo do meu coração,<br />

não deixeis que a minha dor seja inútil, mas, ó deusas, que Teseu, pelo<br />

mesmo motivo por que me deixou sozinha, por ele torne desgraçado, não<br />

só a si, mas também aos seus.”)<br />

116


Do mesmo modo que o início de sua fala está carregado de elementos afetivos,<br />

também o fim de seu monólogo encerra esses recursos. A anáfora, que constitui um dos<br />

elementos responsáveis pelo patético, está presente na repetição do advérbio huc (v.<br />

195); os vocativos freqüentes na poesia lírica, estão representados por Eumenides<br />

(v.193) e deae (v. 201), constituindo, ao mesmo tempo, os elementos religiosos<br />

presentes no texto, invocados pela personagem. O emprego <strong>da</strong> interjeição uae (v. 196),<br />

que encerra uma carga emotiva, reforça<strong>da</strong> pelo uso do adjetivo misera, no mesmo verso,<br />

e pelo verbo cogor, no verso seguinte, empregado na primeira pessoa do plural <strong>da</strong> voz<br />

passiva, para acentuar sua posição de joguete, sem vonta<strong>da</strong> própria, vítima do destino.<br />

O texto encerra três imperativos; dois afirmativos: aduentate e audite (v.195),<br />

quando implora o auxílio <strong>da</strong>s deusas vingadoras dos crimes humanos; um negativo:<br />

nolite pati (v. 199), em que praticamente exige dos deuses que haja uma reparação ao<br />

seu sofrimento, para que não permaneça injustiça<strong>da</strong> e para que sua dor não se desvaneça<br />

– uanescere (v. 199).<br />

As Eumênides, invoca<strong>da</strong>s no verso 193, são as Fúrias ( Erínias dos gregos).<br />

Elas perseguiam e atormentavam os criminosos, enlouquecendo-os. Eram chama<strong>da</strong>s<br />

“benevolentes”, designação eufemística com que se tentava aplacar seu caráter. Ésquilo<br />

foi o primeiro a falar de sua cabeleira de serpentes e, na literatura latina, Ênio.<br />

A filosofia do “Olho por olho, dente por dente”está expressa na locução<br />

conjuntiva de valor comparativo quali...tali (v. 200 - 201), que cobra <strong>da</strong>s deusas um<br />

castigo justiceiro: que Teseu sofra com a mesma intensi<strong>da</strong>de que sofreu Ariadne por sua<br />

conduta irresponsável.<br />

O verbo funestet (v. 201), no último verso <strong>da</strong> fala de Ariadne, ligado ao adjetivo<br />

funestus, provenientes ambos do substantivo funus, foi uma escolha feliz do poeta, pois<br />

encerra em si uma carga de ameaça que paira como uma sombra maligna, capaz de<br />

atrair a morte, não só para o próprio Teseu, mas, o que é mais para ser temido, para<br />

todos aqueles a quem ama.<br />

Os versos 200 e 201 se referem ao adjetivo immemor, citado no verso 135 do<br />

início <strong>da</strong>s lamentações e se explicam pela len<strong>da</strong> que diz que Baco, apaixonado por<br />

Ariadne, fez Teseu perder a lembrança e abandoná-la. Para Ariadne, isso significava<br />

ingratidão e infideli<strong>da</strong>de.<br />

O que nos parece importante ressaltar, após a análise desses textos, é que a<br />

mesma paixão que vemos inspirar os poemas amorosos, sobretudo os dirigidos a Lésbia<br />

e a Juvêncio, se encontra retrata<strong>da</strong> neste poema de influência alexandrina, porque a<br />

paixão é uma característica inerente à personali<strong>da</strong>de do poeta, não havendo como<br />

descartá-la, seja em relação a amores próprios ou alheios, reais ou mitológicos..<br />

UBibliografiaU:<br />

BAYET, Jean. Littérature latine.Paris, Armand Colin, 1934.<br />

OLIVA NETO, João Angelo. O livro de Catulo. São Paulo, Ed. Da Universi<strong>da</strong>de de<br />

São Paulo, 1996.<br />

PARATORE, Ettore. História <strong>da</strong> literatura latina. Trad. De Manuel Losa, S.J.<br />

Lisboa, Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1987.<br />

SILVA, Maril<strong>da</strong> Evangelista dos Santos. A integração épico-lírica nas UNúpcias de<br />

Peleu e TétisU. Dissertação de Mestrado, UFRJ – Fac. de Letras, 1974.<br />

117


Elisa Costa Brandão de Carvalho<br />

Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé<br />

Profª. Mestre de Língua e Literatura Grega <strong>da</strong> UERJ<br />

Resumo: O romance grego Dáfnis e Cloé nos transporta para um cenário paradisíaco e<br />

erótico, onde a “natureza”, governa<strong>da</strong> por Eros, exerce o papel de preceptora na<br />

educação sexual dos amantes e protagonistas, Dáfnis e Cloé. Destarte, o presente<br />

trabalho pretende analisar como a educação sexual desses jovens é conduzi<strong>da</strong>, esta<br />

segue a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> “natureza” ou, se na ver<strong>da</strong>de, a moral e a opressão de uma cultura<br />

patriarcal estão subentendi<strong>da</strong>s.<br />

O romance intitulado Dáfnis e Cloé é, segundo a Su<strong>da</strong>, de autoria de Longo<br />

Sofista. Deste autor praticamente na<strong>da</strong> se sabe, sua pátria provavelmente era Lesbos, o<br />

que também é uma fonte duvidosa. Podemos situá-lo, de maneira cautelosa e<br />

aproxima<strong>da</strong>, segundo diversos historiadores, no intervalo entre o século II a. C. e<br />

metade do século V de nossa era.<br />

Dáfnis e Cloé é considerado um idílio bucólico em prosa, por isso o romance<br />

recebeu de início o título Pastorais. Primeiro pelo fato do ambiente ser rústico e<br />

campesino, no qual se desenrola to<strong>da</strong> a trama, o que evidencia a estreita relação com a<br />

lírica bucólica de Teócrito e até mesmo de Virgílio. E também pelo aspecto lento e<br />

florido, e principalmente, pelo tom poético que é <strong>da</strong>do à narrativa.<br />

Ao contrário dos outros romances gregos de aventuras, a obra de Longo se<br />

destaca pelo fato de possuir uma uni<strong>da</strong>de estrutural, onde a intriga amorosa se desenrola<br />

quase sempre no mesmo lugar. O romance é considerado “sedentário”, pois as ações se<br />

passam, geralmente, nos campos de Lesbos, nas vizinhanças <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Mitilene. Esse<br />

romance foi considerado uma pintura de sentimentos e costumes, o que lhe fora imposto<br />

pela própria natureza <strong>da</strong> obra: a vi<strong>da</strong> no campo é limita<strong>da</strong>, os pastores não podem se<br />

deslocar, já que são empregados e tomam conta <strong>da</strong>s terras de senhores que moram nas<br />

grandes ci<strong>da</strong>des.<br />

Além disso, a ação <strong>da</strong> natureza sobre os personagens é bastante acentua<strong>da</strong> pelo<br />

autor que, além <strong>da</strong> descrição física <strong>da</strong> paisagem, procura caracterizar ca<strong>da</strong> estação do<br />

ano como um cenário, que serve de pano de fundo para os sentimentos descritos na<br />

trama. Sua imaginação nos oferece cenas encantadoras, que nos convi<strong>da</strong>m ao sonho, ao<br />

devaneio, e apesar <strong>da</strong>s características de sofista, Longo consegue transmitir veraci<strong>da</strong>de à<br />

narrativa.<br />

1<br />

Seu tema é a descoberta progressiva do amor entre dois jovens, DáfnisTPF FPT o jovem<br />

2<br />

cabreiro e CloéTPF FPT a doce pastorinha, apresentados como criaturas belas e puras de corpo<br />

e alma, inseridos em um ambiente de natureza exótica e paradisíaca, gerando uma<br />

1<br />

TP PT Dáfnis é o nome dos padroeiro dos cabreiros sicilianos, pastor lendário, ele era célebre por uma história<br />

de amor, e a devoção popular o divinizava. Ao <strong>da</strong>r esse nome a seu herói, Longo se liga visivelmente à<br />

tradição bucólica de Teócrito e Virgílio.<br />

2<br />

TP PT Cloé significa a Verdejante; é um dos nomes sagrados <strong>da</strong> deusa Deméter, padroeira dos campos.<br />

118


atmosfera de sensuali<strong>da</strong>de e erotismo sem, no entanto, ferir os conceitos éticos e morais<br />

<strong>da</strong> época, preservando a casti<strong>da</strong>de dos amantes, ou pelo menos <strong>da</strong> moça até o<br />

matrimônio.<br />

O estilo de Longo é fluente, revelando grande capaci<strong>da</strong>de de percepção nas<br />

descrições minuciosas que valorizam os sentimentos e as emoções <strong>da</strong>s personagens,<br />

essa característica é uma influência <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Sofística - movimento literário do<br />

século II d. C., no qual floresceram várias posturas exóticas. A ativi<strong>da</strong>de central<br />

consistia na declamação retórica de um tema fictício, imaginário, onde a criativi<strong>da</strong>de, a<br />

beleza est<strong>ética</strong> do discurso e a preocupação com os detalhes eram as principais<br />

características. É por isso que Longo também é conhecido por Longo Sofista.<br />

A narrativa viva e descritiva mostra-nos a intenção do autor de transmitir ao<br />

leitor a reali<strong>da</strong>de dos fatos, ou seja, o ele descreve a ação de maneira que o leitor<br />

visualize a atmosfera de vi<strong>da</strong> livre e natural em que os personagens se movimentam.<br />

E para entrar nesse clima pastoril de ar puro, beleza natural e de amor segue a<br />

tradução do prólogo, onde há uma síntese dos fatos que serão narrados ao longo do<br />

romance. Uma forma de prender a atenção do leitor e, conseqüentemente, despertar nele<br />

o prazer pela leitura do romance, já que ele poderá, através do ato de ler, visualizar to<strong>da</strong><br />

aquela imagem ou cena ali descrita.<br />

“Em Lesbos, estando a caçar no bosque <strong>da</strong>s Ninfas, vi um espetáculo, o<br />

mais belo dos que já vi. Uma pintura, uma história de amor. E de fato, o bosque era<br />

belo, abun<strong>da</strong>nte em árvores e flores. Uma única fonte nutria tudo, tanto flores quanto<br />

árvores, porém esta pintura é ain<strong>da</strong> mais encantadora, pois reúne além de uma arte<br />

prodigiosa uma aventura amorosa. De maneira que, muitas pessoas, mesmo as<br />

estrangeiras, vinham por causa <strong>da</strong> fama, por um lado suplicantes às Ninfas, por<br />

outro, contempladores <strong>da</strong>quela imagem. Nela havia mulheres <strong>da</strong>ndo a luz, outras<br />

arrumando as fral<strong>da</strong>s, criancinhas abandona<strong>da</strong>s, rebanhos de cabras e ovelhas se<br />

alimentando, pastores conduzindo seus rebanhos, jovens se unindo, ataque de piratas,<br />

invasão de inimigos. Vi muitas outras coisas, to<strong>da</strong>s relativas ao amor, ficando tão<br />

admirado que um desejo de transcrever aquela pintura me dominou. Procurei um<br />

intérprete para a imagem e elaborei quatro livros, uma oferen<strong>da</strong> a Eros, às Ninfas e a<br />

Pã, mas também um objeto encantador para todos os homens, este curará o doente,<br />

reconfortará o aflito, fará recor<strong>da</strong>r o amante, ensinará o que não ama. Pois,<br />

absolutamente ninguém escapou ou escapará ao amor, enquanto houver beleza e<br />

olhos que as vejam. Que o deus conce<strong>da</strong> a nós sensatos narrar os amores dos<br />

outros.” ( Dáfnis e Cloé - Prólogo)<br />

Destarte, vale a pena ressaltar a opinião do professor Cyro Flamarion Cardoso,<br />

em seu artigo, onde ele faz um comentário sobre a obra de Longo Dáfnis e Cloé,<br />

dizendo ser um dos melhores romances antigos, pois transpira uma simpatia pela vi<strong>da</strong><br />

simples oferecendo belas imagens naturais e, principalmente, por tratar-se de uma<br />

espécie de “pen<strong>da</strong>nt” (exprime uma simultanei<strong>da</strong>de, um termo que designa o espaço de<br />

tempo onde a ação é passa<strong>da</strong>) em prosa dos idílios poéticos de Teócrito, já que existe o<br />

equilíbrio entre a descrição dos sentimentos humanos e a <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong>des pastoris no seio<br />

<strong>da</strong> natureza. E ele destaca o parágrafo 12 do livro III que narra a seguinte passagem:<br />

119


Agora era o começo <strong>da</strong> primavera, a neve derretendo, a terra se<br />

descobrindo e a relva cobrindo-se de flores. Assim, os outros pastores<br />

levavam seus rebanhos para o pasto e antes dos outros, Dáfnis e Cloé, que<br />

serviam o maior dos pastoresTPF<br />

3<br />

FPT. Imediatamente<br />

estavam correndo em direção<br />

à gruta <strong>da</strong>s Ninfas, de lá em direção a Pã e ao pinheiro, em segui<strong>da</strong> em<br />

direção ao carvalho, sob o qual estando sentados pastoreavam os rebanhos e<br />

beijavam um ao outro ternamente. Procuravam também as flores com desejo<br />

de coroar os deuses. Neste momento o Zéfiro que nutre e o sol que aquece<br />

faziam-nas brotar. Entretanto foi encontrado violetas e narcisos e<br />

pimpinelas, como também os primeiros frutos <strong>da</strong> primavera. Cloé e Dáfnis<br />

tomavam o leite novo <strong>da</strong>s cabras e de algumas ovelhas, e derramaram este<br />

em libação e coroaram as estátuas. Ofereceram também os primeiros sons<br />

<strong>da</strong> siringe, do mesmo modo provocando os rouxinóis para a música. Eles<br />

ressoavam docemente nos bosques e pouco a pouco correspondiam a Ítis,<br />

como se eles estivessem se lembrando dos cantos depois de um grande<br />

silêncio. (Livro III – 12)<br />

E faz o seguinte comentário:<br />

“Nele se sente com vivaci<strong>da</strong>de a magia do renascer <strong>da</strong> terra na<br />

primavera: a neve que se vai, deixando reaparecer o solo por ela antes<br />

coberto, o verde <strong>da</strong> erva nova que se estende, a saí<strong>da</strong> dos animais dos<br />

estábulos para as pastagens. Neste ambiente encantador, como em outras<br />

partes do romance, Dáfnis e Cloé homenageiam com flores típicas do início<br />

<strong>da</strong> primavera e com libações do leite de suas cabras e ovelhas, Pã e as<br />

Ninfas, numa gruta e sob árvores consagra<strong>da</strong>s.<br />

Não deixam também de trocar inúmeros beijos. “E, detalhe encantador,<br />

oferecem ain<strong>da</strong> a primícia de suas flautas, que despertam a resposta dos<br />

rouxinóis, como se esses reaprendessem velhas canções.”<br />

No conjunto, Longo pretende que os sentimentos espontâneos e desprovidos de<br />

malícia, levem as pessoas à descoberta tanto físicas quanto psicológicas, sem que seus<br />

atos, por mais chocantes que sejam, possam ser considerados prejudiciais à moral <strong>da</strong><br />

época.<br />

Valendo-se, então dessa simbiose homem x natureza, Longo cria uma obra<br />

prima, uma pintura, como ele diz no prólogo, acima citado, rechea<strong>da</strong> de aventuras,<br />

sensuali<strong>da</strong>de e erotismo. Esta pintura encantadora é dedica<strong>da</strong> ao Amor e a todos aqueles<br />

que já foram ou serão tocados por ele e acreditam no seu poder.<br />

Faz-se necessário observar a maneira como Longo se utiliza de todos os recursos<br />

literários e naturais que tem a seu dispor (uma característica <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Sofística).<br />

Literários pelo seu estilo sutil e variado de escrever, combinando prosa e poesia, ritmo e<br />

musicali<strong>da</strong>de, linguagem simples e retórica. Naturais, pois a natureza não representa<br />

apenas o cenário do seu romance, mas o fio condutor, o agente catalisador que<br />

influencia, estimula e transforma as ações e os sentimentos dos personagens principais,<br />

3<br />

TP PT Referência<br />

ao deus do amor Eros.<br />

120


Dáfnis e Cloé. O maior exemplo disso está na forma como o autor marca o tempo, que<br />

não é o cronológico (ano, mês ou dia <strong>da</strong> semana), mas o ciclo <strong>da</strong>s estações do ano<br />

(primavera, verão, outono e inverno), que terá um papel fun<strong>da</strong>mental no<br />

desenvolvimento físico, psicológico e sexual <strong>da</strong>s personagens principais.<br />

Para melhor retratar e visualizar esta obra de arte serão citados alguns trechos do<br />

romance.<br />

Era começo <strong>da</strong> primavera e to<strong>da</strong>s as flores desabrochavam nos<br />

bosques, nos prados e nas montanhas. Agora era o zunido <strong>da</strong>s abelhas, o<br />

canto dos pássaros canoros, o saltitar dos rebanhos recém-nascidos. Os<br />

carneiros brincavam nas montanhas, zumbiam nos prados as abelhas, os<br />

pássaros alegravam com seus cantos o pequeno bosque. 2- Tão formidável<br />

estação tudo envolvia, os tenros e jovens imitadores <strong>da</strong>s coisas ouvi<strong>da</strong>s e<br />

vistas surgiam: ao ouvir o cantar dos pássaros, cantavam, ao ver os<br />

carneiros saltando, saltavam ligeiramente, ao imitar as abelhas colhiam<br />

flores, algumas deixavam cair no colo, outras entrelaçando pequenas coroas<br />

4<br />

levavam às NinfaTPF FPTs. (Livro I – 9)<br />

A estação do ano inflamou-os. Era agora fim <strong>da</strong> primavera e<br />

começo do verão, e tudo estava em pleno vigor: as árvores estavam com<br />

frutos, as planícies estavam férteis... Alguém poderia imaginar também que<br />

os rios cantavam ao fluírem tranquilamente, os ventos tocavam siringeTPF<br />

soprarem os pinheiros, era como se as maçãs se deixassem cair ao chão<br />

pesa<strong>da</strong>s de amor, e o sol, enamorado pela beleza, quisesse despir to<strong>da</strong>s as<br />

coisas. (Livro I – 23)<br />

Observa-se nesses trechos que a natureza não aparece como um mero cenário,<br />

mas como uma natureza idealiza<strong>da</strong>, dócil, onde há paz, beleza e harmonia. A natureza é,<br />

na ver<strong>da</strong>de, um dos personagens, senão o principal, já que ela tem a função de<br />

desencadear to<strong>da</strong> a trama erótica do romance.<br />

Desta maneira, Longo vai esculpindo a sua obra, criando um cenário onde existe<br />

uma constante aproximação entre as ações <strong>da</strong>s personagens com a natureza. Este<br />

cenário não é estático, ele mu<strong>da</strong> constantemente, pois é a natureza se transformando.<br />

Isso significa que, à medi<strong>da</strong> que as estações do ano vão se sucedendo, os cenários vão se<br />

modificando para <strong>da</strong>r mais agili<strong>da</strong>de e realismo aquele ambiente campesino.<br />

Esse fato é muito interessante, pois a ação nunca se esgota, ela flui de maneira<br />

natural, apoia<strong>da</strong> nas constantes mutações <strong>da</strong> natureza, mas sem se distanciar do objetivo<br />

principal <strong>da</strong> trama, a união de Dáfnis e Cloé. Quanto a esse aspecto é interessante<br />

ressaltar a opinião de Alain Billault, que diz:<br />

TP PT Ninfas<br />

TP<br />

4<br />

“Suas ações manifestam-se de acordo com o ambiente que os cerca.<br />

Eles vão, um de ca<strong>da</strong> vez, tomar lugar no quadro pintado por Longo e<br />

podemos ver a imagem <strong>da</strong> aproximação permanente <strong>da</strong> ação <strong>da</strong> natureza,<br />

dentro <strong>da</strong> narrativa. Pois ela não está presente somente nessas grandes<br />

eram chama<strong>da</strong>s Dríades, ninfas <strong>da</strong>s árvores.<br />

PT Siringe é a flauta de Pã.<br />

121<br />

5<br />

5<br />

FPT ao


imagens que se manifestarão, no momento do luxuoso levantar <strong>da</strong>s cortinas,<br />

como o cenário de peripécias destinados a desaparecer em segui<strong>da</strong>.<br />

Encontramos a natureza em todos os momentos <strong>da</strong> intriga. A natureza<br />

fornece uma segun<strong>da</strong> trama à intriga que não é dramática, mas existencial.”<br />

Longo cria um ambiente, amplo, denso e bastante variado, entrelaçado pela<br />

diversi<strong>da</strong>de de elementos fornecidos pela natureza que vão influenciar e modificar o<br />

comportamento dos personagens, Dáfnis e Cloé e, conseqüentemente, intensificar o elo<br />

amoroso entre eles. Mais uma vez faz-se necessário citar o que diz Alain Billault:<br />

“Em to<strong>da</strong>s estas passagens tão ricas em verbos e em nomes de ação,<br />

aparece uma natureza brilhante e vibrante de uma energia que não pode<br />

mais que afetar o comportamento dos personagens. Ela não é um cenário<br />

onde eles evoluem, mas uma reali<strong>da</strong>de cuja vi<strong>da</strong> intensa os cerca e os toca.<br />

Eles têm a experiência, estimulante ou rude, de sua presença, e não somente<br />

quando mu<strong>da</strong> a estação.”<br />

Assim, Alain Billault reforça o fato de que é a natureza que conduz to<strong>da</strong><br />

a trama, interferindo, modificando, gerando situações, enfim, ela é a essência<br />

de todo o romance.<br />

Mas, apesar de to<strong>da</strong> essa beleza, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> simples do campo, do tom<br />

poético e singelo de Longo, percebe-se que a sensuali<strong>da</strong>de e o erotismo estão<br />

presentes e a natureza é a fonte que nutre to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des para tornar<br />

reali<strong>da</strong>de o amor entre Dáfnis e Cloé. E trecho abaixo exemplifica bem isso.<br />

Dáfnis tendo ido em companhia de Cloé até a gruta <strong>da</strong>s Ninfas, deu<br />

para Cloé vigiar sua túnica curta, seu alforje, e ele, estando de pé na fonte,<br />

lavava os cabelos e o corpo. 2- Sua cabeleira era farta, seu corpo era<br />

queimado de sol.(...) Aos olhos de Cloé, Dáfnis parecia belo e, ela julgava o<br />

banho a causa <strong>da</strong> beleza.(...) 3- Naquele momento então – o sol estava se<br />

pondo – conduziam o rebanho para casa, Cloé só desejava ver novamente<br />

Dáfnis tomando banho.(Livro I – 13)<br />

Verifica-se nesse trecho uma presença marcante de erotismo e sensuali<strong>da</strong>de,<br />

como Afirma R. L. Hunter “o banho é um motivo muito comum na poesia antiga... e Longo seguiu<br />

essa tradição primitiva através do banho de Dáfnis. O banho é na ver<strong>da</strong>de um motivo óbvio em um<br />

contexto erótico.”<br />

De fato, todo o romance transbor<strong>da</strong> erotismo, não só pela natureza exuberante<br />

que é o “motor” <strong>da</strong> trama, mas pelo próprio fato de contar a história de um rapaz e uma<br />

moça que se apaixonam e juntos vão descobrindo o amor. Entretanto, existe algo que<br />

numa primeira leitura pode passar despercebido, tal a beleza <strong>da</strong> narrativa, que é a atitude<br />

de Cloé na cena que Dáfnis toma banho. Ela, uma moça, virgem, do campo, desperta o<br />

desejo de ver novamente Dáfnis tomar banho. E isso causará uma mu<strong>da</strong>nça nas suas<br />

atitudes como se observa no trecho abaixo:<br />

122


Ela, então, o convenceu a banhar-se mais uma vez e olhou-o<br />

banhando-se e tocou-o, em segui<strong>da</strong> elogiou-o pela beleza de seu corpo e o<br />

elogio era um princípio de amo. Portanto, não sabia o que sentia, ela que era<br />

moça nova cria<strong>da</strong> no campo nunca ouvira outra pessoa falar o nome amor.<br />

Uma angústia dominava sua alma, ela não era mais dona de seus olhos e<br />

freqüentemente pronunciava Dáfnis. Descui<strong>da</strong>va <strong>da</strong> alimentação, não dormia<br />

durante a noite, não se importava com o rebanho. Em um momento ria, em<br />

outro chorava. Dormia, mas logo levantava. Seu rosto estava pálido.(...)<br />

(Livro I – 4)<br />

J. R. Morgan e Richard Stoneman, fazem, no livro intitulado Greek Fiction: The<br />

Greek Novel in Context, um interessante comentário sobre o impacto causado pelo<br />

banho de Dáfnis e as sensações causa<strong>da</strong>s em Cloé.<br />

“Era um dia de primavera, em que Dáfnis tem 15 anos e Cloé 13 anos, ele<br />

caiu numa armadilha para lobos, e teve que tomar banho. Cloé fica<br />

estupefata pela visão e pelo toque de seu corpo nu, e sofre uma angústia que<br />

ela não pode compreender, mas que o leitor conhece como o “mal do amor”.<br />

Isso não é amor romântico, mas o despertar do instinto sexual, e como<br />

convém a uma filha <strong>da</strong> natureza, Cloé não conhece o motivo para se sentir<br />

envergonha<strong>da</strong> ou inibi<strong>da</strong>; com efeito, nesse ponto ela tende a tomar<br />

iniciativas inocentemente, engendrando situações onde ela pode ver Dáfnis<br />

nu novamente.”<br />

Agora estou doente, mas qual o mal, desconheço, sinto dor e não<br />

tenho feri<strong>da</strong>. Estou sofrendo, mas não perdi nenhuma de minhas ovelhas. Eu<br />

queimo e estou senta<strong>da</strong> na sombra profun<strong>da</strong>.(...) Essa coisa que aflige meu<br />

coração é mais agu<strong>da</strong> do que to<strong>da</strong>s as outras. Dáfnis é belo como também<br />

são belas as flores.(...) Ah! Se eu fosse a siringe dele, para que ele me<br />

soprasse. Ah! Se eu fosse uma cabra para que ele me pastoreasse. Ó maldita<br />

água, foi apenas a Dáfnis que destes a beleza... (Livro I – 14)<br />

Apesar de to<strong>da</strong> a sua pureza virginal e sua educação convencional, é nela<br />

que o desejo, o sentimento erótico, desperta primeiro. Dáfnis também vai passar pela<br />

mesma experiência ao ver Cloé se banhando, aliás, tudo o que acontece com um<br />

acontecerá com o outro, porém, há um fato que acontece com Dáfnis e não acontece<br />

com Cloé, que é a iniciação no ato sexual.<br />

Isso prova que Longo, mesmo querendo narrar de maneira sensata e fiel a<br />

cena que ele viu, esbarra na tradição moral <strong>da</strong> época, onde a moça deve ser preserva<strong>da</strong>,<br />

a sua educação não permite tal transgressão, mesmo que seu corpo transpire<br />

sensuali<strong>da</strong>de e seus desejos estejam a flor <strong>da</strong> pele.<br />

Ou, ao contrário, pode-se dizer que ele tenha recheado a sua narrativa de<br />

erotismo, justamente para criticar a educação moralista e machista <strong>da</strong> época. Pois a<br />

mulher tem desejos como o homem, aliás a sensuali<strong>da</strong>de é mais intensa na mulher.<br />

123


Na ver<strong>da</strong>de, o que torna o romance Dáfnis e Cloé uma ver<strong>da</strong>deira obra de<br />

arte, é essa suspeita facili<strong>da</strong>de de mostrar cenas libertinas com aparência de<br />

ingenui<strong>da</strong>de. É o frescor <strong>da</strong> juventude junto com a liber<strong>da</strong>de natural do campo que<br />

proporciona uma aura de encantamento e leveza, mas sem deixar o erotismo de lado,<br />

pois sem ele não haveria uma história de amor.<br />

Assim, a concepção do Amor que esse romance e, os outros romances<br />

gregos que chegaram aos nossos dias, exprimem é digna de atenção. O amor<br />

cavalheiresco <strong>da</strong> época medieval, teve como modelo os atribulados amantes, postos à<br />

prova até a exaustão, representados pelos personagens dos romances do Período<br />

Helenístico. E a idéia constante de que só o casamento permite a continui<strong>da</strong>de e a<br />

consagração do amor entre um homem e uma mulher, mostra-nos, claramente os<br />

costumes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de grega no plano ético e moral.<br />

E para concluir este trabalho cito o trecho onde o velho pastor Filetas explica<br />

a Dáfnis e a Cloé quem é Eros:<br />

6<br />

6<br />

“FiletasTPF FPT disse: É um deus, ó crianças, Eros é jovem, belo e alado. Por causa<br />

disso gosta <strong>da</strong> juventude, busca a beleza e encoraja as almas. Nem Zeus é assim<br />

tão poderoso. Ele reina sobre o universo, reina sobre os astros e reina sobre os<br />

deuses. Nem vocês têm tanto poder sobre suas cabras e suas ovelhas. To<strong>da</strong>s as<br />

flores são obras de Eros, essas plantas aqui são suas criações. Graças a ele os<br />

rios correm e os ventos sopram. (...) Contra Eros não há remédio, nem que se<br />

beba, nem que se coma, nem em se cantando um hino, senão um beijo, um abraço<br />

e se deitando juntos com os corpos nus.).(Livro II – 7)<br />

TP PT É um velho pastor que também sofreu pó amor. O nome Filetas vem do verbo philéo, que em grego<br />

significa amar, ser amigo e companheiro.<br />

124


Bibliografia:<br />

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e Est<strong>ética</strong>: A Teoria do romance. Tradução: Aurora<br />

Bernardini et alii, São Paulo: Editora UNESP, 1993.<br />

CARDOSO, Cyro Flamarion. Utopias Helenístico-Romanas. Rio de Janeiro, p. 16-17, 1993.<br />

CARVALHO, Elisa C. Brandão. O Romance Pastorais – Dáfnis e Cloé: a Influência <strong>da</strong>s Estações do<br />

Ano no Significado <strong>da</strong> Obra. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.<br />

FUSILLO, Massimo. Naissanceu du Roman. Tradução: Marielle Abrioux, Paris: Éditions du Seuil,1991.<br />

HUNTER, R. L. A Study of Daphnis & Chloe. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.<br />

LONGUS. Pastorales (Daphnis et Chloé). Texto e tradução : Jean-René Vieilleford. Paris : Les Belles<br />

Lettres, 1987.<br />

LONGO. Dáfnis e Cloé. Tradução: Denise Bottmann, Campinas: Pontes Editora, 1990.<br />

MORGAN, J. R.; STONEMAN, Richard (org). Greek Fiction: The Greek Novel in Context. Londres:<br />

Routledge, 1994.<br />

PERRY, Ben Edwin. The Ancient Romances: A Literary Historical Account of Their Origins,<br />

Los Angeles: University of California Press, 1967.<br />

WINKLER, John J. The Constraints of Desire: The Anthropology of Sex and Gender in Ancient<br />

Greece. Londres: Routledge, 1990.<br />

125


O PALAVRÃO EM DICIONÁRIOS LATINOS ESCOLARES<br />

FÁBIO FROHWEIN DE SALLES MONIZ<br />

Doutorando UFRJ/ Bolsista CNPq<br />

Qualquer adolescente com o mínimo de curiosi<strong>da</strong>de lexicográfica já procurou num<br />

dicionário de português verbetes como “mer<strong>da</strong>”, “foder” e “cu”. Se consultou um bom<br />

dicionário, saciou a curiosi<strong>da</strong>de a ponto de perceber que mesmo as palavras denomina<strong>da</strong>s<br />

vulgarmente “palavrões”, ou mais tecnicamente tabuísmos, não só estão num instrumento<br />

sério para melhor conhecimento do vernáculo, bem como têm origem em línguas clássicas.<br />

No caso específico <strong>da</strong>s três menciona<strong>da</strong>s, a etimologia remete ao latim. A que menos se<br />

transformou foi “mer<strong>da</strong>”, ao passo que “foder” e “cu” advêm respectivamente do latim<br />

popular “futere”, forma apocopa<strong>da</strong> de “futuere” (manter relações sexuais com uma<br />

mulher); e “cu”, de “culus” (ânus).<br />

Uma busca de igual natureza em dicionários de latim traria ao consulente bem<br />

menos informações. Muito embora um sem número de palavrões do português tenha étimo<br />

latino, os dicionários latino-portugueses escolares não se prestam tanto a esse tipo de<br />

pesquisa quanto os de língua portuguesa. Houaiss assevera que “futuere” é a forma clássica<br />

do verbo, mas em Francisco Torrinha, por exemplo, a palavra não se registra. Por outro<br />

lado, o dicionarista incluíu “culus” e “mer<strong>da</strong>”. Em outras palavras, há uma espécie de<br />

filtragem dos tabuísmos. Uns constam dos dicionários escolares em detrimento a outros,<br />

que ficaram relegados a dicionários mais acadêmicos. Este trabalho visa a tecer algumas<br />

considerações acerca <strong>da</strong> ausência de tabuísmos em dicionários latino-portugueses escolares.<br />

Se por um lado, a filtragem de tabuísmos apenas frustraria um adolescente curioso,<br />

por outro prejudica em muito a leitura e compreensão de textos clássicos. Como perceber,<br />

por exemplo, o tom agressivo de um Catulo ferido em seus brios, tendo descoberto ser mais<br />

uma estrela na constelação de amantes de Lésbia? Ou ain<strong>da</strong> as inventivas de Marcial a seus<br />

contemporâneos? Desde a latini<strong>da</strong>de clássica, e até antes, a linguagem chula é emprega<strong>da</strong><br />

com objetivos estilísticos. Em outras palavras, os palavrões em textos literários nunca são<br />

gratuitos. Muito pelo contrário, consistem num recurso sofisticado. Substituir, suprimir ou<br />

traduzi-los atenua<strong>da</strong>mente no mínimo reduz o impacto retórico tencionado pelos<br />

enunciadores.<br />

É mister se esclarecer que a filtragem de palavras/expressões latinas considera<strong>da</strong>s<br />

obscenas pelo mundo moderno ocorre num contexto específico. Não fosse assim, perder-seia<br />

inexoravelmente a chave para a compreensão de determinados textos, o que não ocorreu<br />

de todo. A tradução dos carmina de Catulo por João Ângelo de Oliva Neto (CATULO,<br />

1996) é uma prova inconteste de que, por mais que tenha havido e ain<strong>da</strong> haja censuras<br />

bibliográficas, mantém-se o fio tênue de uma tradição impressa em que a linguagem dita<br />

obscena dos clássicos resiste aos pudores. No entanto, observa-se na transmissão <strong>da</strong> cultura<br />

clássica uma espécie de esquizotomização em edições de obras literárias, dicionários,<br />

glossários e tesauros. O Horácio <strong>da</strong>s odes líricas e cívicas, o Vergílio <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> e o Catulo<br />

enamorado por Lésbia não se misturam, por exemplo, aos Horácio, Vergílio e Catulo<br />

homoeróticos em edições in usum scholarum, muito embora os eruditos os conheçam.<br />

Em termos de técnica de censura, a filtragem vocabular em dicionários latinos é<br />

análoga aos expurgos <strong>da</strong>s edições de clássicos in usum scholarum. Sirva de exemplo a<br />

antologia em dois volumes de poemas de Catulo, Tibúrcio e Propércio, Valerii Catulli albii<br />

Tibulli et Sexti Aurelii Properti Opera (Paris, 1685), organiza<strong>da</strong> por Philipus Silvius e<br />

destina<strong>da</strong> à educação do delfim, o futuro rei de França. Embora não se revele o caráter<br />

126


expurgado dos textos na página de rosto, conforme a praxe <strong>da</strong> época, foram reunidos<br />

expurgos <strong>da</strong>s obras po<strong>ética</strong>s de Catulo, Tibúrcio e Propércio numa subseção intitula<strong>da</strong><br />

Expurgata a partir <strong>da</strong> metade do segundo volume. Escusa dizer que o delfim não tem<br />

acesso direto ao livro, senão através do tutor, do lector. Os Expurgata ficam, portanto,<br />

invisíveis ao scholar. Assim, examina<strong>da</strong> a edição em sua discursivi<strong>da</strong>de, identificam-se<br />

dois enunciatários bem delineados. Na carta de abertura dos volumes, o tipógrafo interpela<br />

o delfim por meio do vocativo DELPHINE. Porém, o acusativo de destino LECTOREM no<br />

título <strong>da</strong> nota dos expurgata assinala que o enunciatário já não é mais o jovem em<br />

formação. Trata-se do lector, já formado e conhecedor dos clássicos, <strong>da</strong>í ter capaci<strong>da</strong>de de<br />

discernir se a edição é boa ou não do ponto de vista filológico. Se o editor omite poemas<br />

parcial ou integralmente ao delfim, ao lector são ofereci<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as informações para<br />

compreensão do texto, com requinte de detalhes de que as mais recentes edições de<br />

clássicos e até dicionários carecem:<br />

2 – Irrumator. ] A ruma, hoc est a mamma, dicitur irrumare, per quan<strong>da</strong>m similitudinem; est<br />

enim irrumare virilia ad libidinem in os praebere, qui vero recipit, fellare dicitur; unde et<br />

1<br />

fellator et irrumator, fellatrix et irrumatrix.TPF FPT (CATVLLVS, 1685: 766)<br />

Em outras palavras, determinados poemas clássicos ou trechos não devem ser<br />

expurgados em absoluto, mas apenas em contexto de formação dos jovens. O conceito de<br />

obsceno deve ser aí relativizado: é obsceno para o jovem, não para o erudito. A ausência <strong>da</strong><br />

indicação ab obscoenitate expurgatus na página de rosto <strong>da</strong> edição de Silvius afasta-se do<br />

modus operandi dos editores <strong>da</strong> época, que informavam previamente o conteúdo e<br />

características técnicas do livro, como notas, ilustrações, tradução e, inclusive, o expurgo,<br />

conforme se verifica em demais edições. Analisando de outra forma, o leitor diante do<br />

rótulo in usum delphini ou expressões equivalentes (ad/in usum scholarum, ad/in usum<br />

adolescentium) já deveria subentender que os carmina ali editados foram ab obscoenitate<br />

expurgata, o que revela a canonização do enlace conceitual entre ensino e expurgo. Uma<br />

edição ad/in usum, portanto, serve apenas ao escolar. Não contemplaria as necessi<strong>da</strong>des<br />

técnicas do erudito que se dedica a estudos mais profundos acerca dos clássicos.<br />

Na tradição moderna dos recursos de lexicografia latina, verifica-se distinção<br />

equivalente entre o dicionário para o escolar e para o erudito/acadêmico. Na própria<br />

a<br />

paratextuali<strong>da</strong>de, nota-se o direcionamento a um enunciatário específico. No prefácio à 1P<br />

P<br />

edição do Dicionário Latino-Português, Francisco Torrinha explica que foi “incumbido de<br />

elaborar um Dicionário Latino-Português e outro Português-Latino, destinados<br />

especialmente ao ensino de latim nos estabelecimentos de ensino secundário (…).”<br />

(TORRINHA, 1945: VII) Em situação diametralmente oposta, está o Thesaurus Eroticus<br />

Linguae Latinae, de Karl Rambach, cujo enunciatário é o leitor erudito: “Hoc opus non<br />

leve, Uerudite lectorU, ausus sum inchoare, et UperitioribusU trado ab illis emen<strong>da</strong>ndum et<br />

2<br />

perficiendum.”TPF FPT (RAMBACH, 1833: V) Em posição intermediária, fica, por exemplo, o<br />

Dicionário de Latim-Português <strong>da</strong> editora Porto, sem qualquer referência paratextual ao<br />

enunciatário e mesmo ao enunciador, quiçá por uma estratégia de mercado, isto é, para não<br />

1<br />

TP PT Por alguma semelhança, define-se “irrumare” a partir de teta, isto é, mama; de fato “irrumare” é<br />

oferecer com lascívia as genitais à boca, a despeito de quem [as] aceita chama-se “fellare”; donde<br />

não só “fellator” bem como “irrumator”, “fellatrix” e “irrumatrix”. (SALLES MONIZ, 2007: 57)<br />

2<br />

TP PT Ousei elaborar esta obra não menos importante, Uerudito leitorU, e ofereço aos Umais peritosU para<br />

ser emen<strong>da</strong><strong>da</strong> e aperfeiçoa<strong>da</strong> por eles. (Tradução e grifos nossos)<br />

127


estringir comercialmente o dicionário a um público determinado, atingindo os escolares e<br />

universitários. Âmbito semelhante é o do dicionário de Nelson Barbosa, Luiz Muraro e<br />

Eliseu Paiva, planejado para um público misto:<br />

Aos alunos que têm à frente um exame vestibular de Latim;<br />

àqueles que pretendem obter um treinamento eficiente na tradução dos clássicos e<br />

dos livros <strong>da</strong> Bíblia;<br />

a quantos, enfim, encontram nobre entretenimento no contato com a inteligência, a<br />

imaginação e a sensibili<strong>da</strong>de dos autores latinos,<br />

ESTÁ DESTINADO ESTE DICIONÁRIO. (BARBOSA ET ALII, [1967]: III)<br />

Os dicionários de Torrinha, Barbosa e <strong>da</strong> editora Porto dispensam apresentações.<br />

Encontram-se facilmente em livrarias, bibliotecas e sebos do Rio de Janeiro. O Thesaurus<br />

Eroticus Linguae Latinae, porém, merece atenção especial, <strong>da</strong><strong>da</strong> a rari<strong>da</strong>de: nenhuma<br />

biblioteca pública brasileira dispõe de exemplar. O único no Brasil integrava a coleção<br />

particular do Prof. Ernesto Faria e atualmente pertence a Dulce Faria, sua filha e Chefe <strong>da</strong><br />

Divisão de Cartografia <strong>da</strong> Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Não obstante a rari<strong>da</strong>de<br />

do Thesaurus, é possível consultar a obra através de uma edição digitaliza<strong>da</strong>TPF<br />

3<br />

FPT que<br />

o<br />

books.google.com disponibiliza gratuitamente em formato PDF.<br />

O Thesaurus consiste num glossário de cerca de 2.000 palavras e expressões<br />

alusivas à sexuali<strong>da</strong>de dos romanos. Ao longo de 312 páginas, Karl Rambach colecionou<br />

tabuísmos presentes em autores <strong>da</strong> latini<strong>da</strong>de antiga como Plauto, Horácio, Marcial,<br />

Ovídio, Cícero, explicando e ilustrando com passagens extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s obras. Desde a página<br />

de rosto, o objetivo do Thesaurus fica em evidência: “Ad intelligentiam Poetarum et<br />

Ethologorum tam antiquae quam integrae infimaeque latinitatis”TPF<br />

4<br />

FPT (RAMBACH,<br />

1833: I)<br />

Longe de servir à mera curiosi<strong>da</strong>de acerca dos hábitos sexuais latinos, o Thesaurus destinase,<br />

antes de mais na<strong>da</strong>, a auxiliar na compreensão dos textos clássicos. Na introdução,<br />

Rambach justifica pormenoriza<strong>da</strong>mente seu propósito com o Thesaurus:<br />

3<br />

4<br />

Dicendo aut scribendo de rebus eroticis, eadem nuditate verborum ab initio<br />

utebantur Romani; sed cum sensim spurcata evaderet, dissoni medici et jurisperiti, more<br />

technicorum, singularem sibi sermonem instituerunt; optimates vero literatique, urbanitatis<br />

causa necnon pueritiae reveren<strong>da</strong>e, metaphoricam linguam sibi finxere, plebe retinente<br />

primam illam impolitam, quam Martialis appellat latine loqui. Hac fuse usi sunt Lucilius,<br />

Catullus, Martialis, parciusque Naso, Horatius, Tibullus, Propertius et aliqui scriptores<br />

etiam pudicissimi. Secun<strong>da</strong> lingua in libris, tum de jure tum de medicina, quaeren<strong>da</strong> est;<br />

tertia inprimis conflixere Plautus, Persius, Juvenalis, Petronius, Seneca, imo Tertullianus et<br />

ipse Civitatis Dei auctor sanctissimus, vitia omnes vario quamquam modo objurgantes.<br />

Nemo sane doctus nescit hujusque praesertim tertiae linguae scientiam quam<br />

maxime necessariam esse studiosis satyricorum et ethicorum, et eo difficiliorem intellectu<br />

nobis in diem fieri, quo longius abest ab origine sua, fere omnino obsolefactis moribus,<br />

5<br />

quos vel expressim vel metaphorice referebat.TPF FPT (RAMBACH, 1833: V)<br />

TP PT<br />

Link para a edição<br />

TP PT Para o entendimento dos Poetas e Comediantes tanto antigos quanto de total ou pouca<br />

latini<strong>da</strong>de. (tradução nossa)<br />

5<br />

TP PT Ao falar ou escrever sobre assuntos eróticos, os romanos desde o início empregavam a mesma<br />

espontanei<strong>da</strong>de de palavras; mas como pouco a pouco se tornasse obscena, os médicos e<br />

jurisconsultos desagra<strong>da</strong>dos construíram para si uma língua própria, com base nos usos técnicos;<br />

e de fato, por causa <strong>da</strong> urbani<strong>da</strong>de e ain<strong>da</strong> do respeito aos jovens, os nobres literatos modelaram<br />

para si uma língua metafórica a partir <strong>da</strong>quela língua original e rude <strong>da</strong> plebe tradicional, que<br />

128


Como se vê, Rambach reconhece que houve uma espécie de modelagem <strong>da</strong> língua<br />

latina pelos homens de cultura (medici, jurisperiti, litterati). Não se trata aqui <strong>da</strong> censura<br />

dos religiosos, como a <strong>da</strong> edição de Philipus Silvius in usum delphini, uma censura<br />

asc<strong>ética</strong>, mas de uma destilação lingüística decorrente <strong>da</strong> urbani<strong>da</strong>de e cientificismo<br />

renascentista, que buscou nas línguas clássicas a matéria-prima para a linguagem técnicocientífica.<br />

Daí Rambach sublinhar que o segundo latim, o latim modelado, encontra-se “in<br />

libris, tum de jure tum de medicina” (RAMBACH, 1833: V). Em contraparti<strong>da</strong>, a língua<br />

vigorosa <strong>da</strong> plebe ecoa nos autores que se propunham a criticar os vícios comportamentais,<br />

a exemplo de Plauto, cujas comédias abun<strong>da</strong>m exemplares de escravos, cozinheiros,<br />

prostitutas, parasitas, mercenários e demais tipos do populacho.<br />

Obviamente a filtragem vocabular não impede a leitura dos clássicos, que devem ser<br />

estu<strong>da</strong>dos para o domínio <strong>da</strong> língua do humanismo renascentista. A história <strong>da</strong> pornografia<br />

no ocidente mantém laços estreitos com a euforia <strong>da</strong> Renascença com os clássicos grecolatinos:<br />

Johannes Molanus, crítico do século XVI e censor oficial de Felipe II dos Países Baixos,<br />

descreveu algumas <strong>da</strong>s imagens perturbadoras que circulavam no período: “Pãs diminutos,<br />

garotas nuas, sátiros embriagados e ereções expostas em ilustrações”. Os humanistas, como<br />

os rapazes do século XVIII diagnosticados como vítimas de onanismo, aze<strong>da</strong>ram seu sêmen<br />

por causa <strong>da</strong> masturbação muito freqüente estimula<strong>da</strong> pelos clássicos. (FINDLEN, 1999:<br />

53)<br />

Mas Rambach, já no início do século XIX, percebeu que havia obras em especial cujo<br />

entendimento ficava ca<strong>da</strong> vez mais dificultado aos leitores desprovidos do conhecimento<br />

dos tabuísmos latinos, a saber, os poemas satíricos, cômicos e demais em que se objetiva<br />

combater os vícios comportamentais. O purismo religioso dos sacerdotes e o cientificismo<br />

dos eruditos “hermetizaram” paulatinamente para os escolares textos que tocam em<br />

questões obscenas no mundo moderno. Consciente do processo de modelagem do latim,<br />

Rambach teme se perderem os signifcados de palavras/expressões dos poetas satíricos e<br />

moralistas, e como isso parte do legado literário <strong>da</strong> latini<strong>da</strong>de, e empreende, portanto,<br />

construir Thesaurus para devolver aos leitores a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> leitura.<br />

Por outro lado, o glossário destina-se aos eruditos. Ain<strong>da</strong> que o autor logre êxito,<br />

muito provavelmente os benefícios de sua “opus non leve” (RAMBACH, 1833: VI) não se<br />

estende às classes escolares. Em outras palavras, continua aberto o fosso entre os jovens<br />

leitores e o sentido <strong>da</strong>s palavras e expressões que se quer restaurar. Diante de certas<br />

passagens dos clássicos, o leitor moderno que só disponha de dicionários latinos escolares<br />

perceberá que existem ver<strong>da</strong>deiros buracos negros nas obras latinas. Haja vista os versos<br />

11-14, do carme XXIX de Catulo:<br />

Marcial considera “o falar latino”. Desta fizeram muito uso Lucílio, Catulo, Marcial, Naso em parte,<br />

Horácio, Tibulo, Propércio e ain<strong>da</strong> alguns escritores muito virtuosos. A segun<strong>da</strong> língua deve ser<br />

busca<strong>da</strong> nos livros tanto de medicina quanto de direito; Com a terceira sobretudo Plauto, Pérsio,<br />

Juvenal, Petrônio, Sêneca, até Tertuliano e mesmo o santíssimo autor d’A Ci<strong>da</strong>de de Deus<br />

combateram os vícios, embora todos o fizessem de maneira peculiar.// Nenhum erudito certamente<br />

ignora que o conhecimento sobretudo desta terceira língua é por demais necessário aos estudos<br />

dos satíricos e moralistas, e que a ca<strong>da</strong> dia torna-se para nós mais difícil de ser compreendi<strong>da</strong>,<br />

pelo fato de estar muito afasta<strong>da</strong> de sua origem, com os hábitos quase completamente em desuso,<br />

aos quais aludia explícita ou metaforicamente. (tradução nossa)<br />

129


Eone nomine, imperator unice,<br />

fuisti in ultima occidentis insula,<br />

ut ista uostra diffututa Mentula<br />

ducenties comesset aut trecenties?<br />

(CATULO, 1996: 86)<br />

O passo perde completamente o vigor de linguagem, e até pode ficar intraduzível, se<br />

a consulta se limitar a um dicionário escolar. “Mentula” e “diffututa” (v.13),<br />

respectivamente núcleo e modificador do sintagma nominal que exerce a função de sujeito<br />

do verbo “comesset” (v.14) não se acham em qualquer dicionário.<br />

TORRINHA BARBOSA ED. PORTO GAFFIOT<br />

mentula --------- --------- --------- mentŭla, ae, f., membre viril: CATUL. 20,<br />

18; MART. 6, 23, 2; [d’où] -latus, a, um<br />

diffututa --------- diffututus, a,<br />

um, adj. –<br />

esgotado<br />

diffututus, a,<br />

um {dis, futuo}<br />

adj. esgotado<br />

pelos excessos<br />

PRIAP. 36, 11.<br />

diffututus, a, um (dis, futuo), épuisé par<br />

les excès: CATUL. 29, 13.<br />

Quanto mais acadêmico, o dicionário latino oferece mais informações acerca dos<br />

tabuísmos. Como se disse anteriormente, há uma espécie de gra<strong>da</strong>ção que se forma entre os<br />

dicionários mais e menos escolares no que diz respeito ao vocabulário obsceno. Não que<br />

estejam ausentes de todo nos dicionários escolares palavras relativas à genitália e ao<br />

metabolismo:<br />

TORRINHA BARBOSA<br />

anus 1. anus, i, m. 1. Anel. 2. o ânus. anus, i, m. – orifício do reto; parte<br />

a<br />

(Obs. – Muito raro na 1P<br />

P acepção, posterior<br />

que passou a ser atribuí<strong>da</strong> aos despeja.<br />

demin. anulus, anellus).<br />

por onde o ventre<br />

penis penis, is, m. 1. Pénis. 2. Cau<strong>da</strong>; penis, is, m. – cau<strong>da</strong>; pincel;<br />

pincel (de pintar).<br />

membro viril.<br />

verpa verpa, ae, f. O pénis. -----------------------------------------mingo<br />

mingo, minxi ou mixi, minctum ou mingo, is, nxi, ictum, ere – urinar.<br />

mictum, 3, tr. Urinar.<br />

caco caco, avi, atum, 1, tr. e i. Defecar; -----------------------------------------lançar<br />

os excrementos pelo ânus.<br />

urina urina, ae, f. Urina. urina, ae, f. – urina<br />

excrementum 1. excrementum, i [excerno], n. 1. excrementum, i, n. – excreção,<br />

Excreção; secreção. 2. secreção; excremento; estrume<br />

mer<strong>da</strong><br />

Excremento; dejecção, dejectos. 3.<br />

Bagaço <strong>da</strong>s uvas. 4. Limpadura.<br />

mer<strong>da</strong>, ae, f. Excremento. mer<strong>da</strong>, ae, f. – excremento, mer<strong>da</strong>.<br />

À guisa de conclusão, podem ser, portanto, apontados dois fenômenos a respeito dos<br />

tabuísmos em dicionários latino-portugueses escolares. O primeiro é a ausência de palavras<br />

alusivas a comportamentos sexuais considerados desviados, não só do ponto de vista <strong>da</strong><br />

orientação sexual, isto é, palavras liga<strong>da</strong>s ao homoerotismo, a exemplo de paedico,<br />

paedicator (sodomizar, sodomista); ou ain<strong>da</strong> a hábitos sexuais não necessariamente<br />

130


homoeróticos, mas que igualmente subvertem a função reprodutora do sexo, como o sexo<br />

oral, a exemplo de irrumo, fello e derivados (irrumator, irrumatrix, fellator e fellatrix).<br />

Registra-se ain<strong>da</strong> a omissão de palavras liga<strong>da</strong>s à genitália femina (cunnus, landica), e<br />

masculina, como mentula, que apresenta caráter celebrador e foge ao tom sério <strong>da</strong> ciência<br />

ou dos bons costumes: o sentido denotativo de mentula é “mastro de embarcação”,<br />

empregando-se o sentido figurado para o pênis de tamanho avantajado.<br />

O segundo fenômeno é o <strong>da</strong> tradução atenua<strong>da</strong> dos tabuísmos, seja tão-somente por<br />

meio <strong>da</strong> exclusão <strong>da</strong>s acepções obscenas, como é o caso de gladius (espa<strong>da</strong>) e vomer<br />

(arado), que de maneira análoga a mentula, celebram o pênis: ambas as palavras designam<br />

objetos pontiagudos e associados à idéia <strong>da</strong> energia física masculina, portanto eficazes na<br />

expressão <strong>da</strong> virili<strong>da</strong>de; ou ain<strong>da</strong> na tradução apenas do significado mas sem um<br />

equivalente lexical em termos de expressivi<strong>da</strong>de: verpa, de acordo com o Thesaurus,<br />

remete ao “instrumenti quo camini verruntur.” (RAMBACH, 1833: 306). A tradução<br />

proposta por Torrinha (pênis), não transplanta para a língua portuguesa a expressivi<strong>da</strong>de do<br />

termo latino. Em Gaffiot, o sentido aproxima-se mais do original (membre viril), assim<br />

como no dicionário <strong>da</strong> Editora Porto (membro viril), mas de qualquer forma trata-se de uma<br />

tradução de significado sem que se ofereça ao consulente um vocábulo em língua<br />

portuguesa com a mesma força. A tradução de Oliva Neto (CATULO, 1996: 86) para<br />

verpa, no verso 12 do carme 28 de Catulo, foi portanto mais ajusta<strong>da</strong>: Mas pelo visto vós<br />

tivestes sorte igual, pois estais fartos de um UpauU na<strong>da</strong> menor. (Sed, quantum video, pari<br />

fuistis/ casu; nam nihilo minore UuerpaU/ farti estis.)<br />

REFERÊNCIAS<br />

BARBOSA, Nelson et alii. Dicionário de latim. São Paulo: Escolas Profissionais<br />

Salesianas, [1967].<br />

CATULO, [Caio Valério]. O livro de Catulo. São Paulo: Edusp, 1996.<br />

CATVLLVS, C. V., PROPERTVS, S. & TIBVLLVS, A.. C. Valerii Catulli albii Tibulli et<br />

Sexti Aurelii Properti Opera. Paris: Tipografia do Rei Leonardo Frederico e do Clero<br />

Francês, 1685.<br />

FINDLEN, Paula. Humanismo, política e pornografia no Renascimento Italiano. In:<br />

HUNT, Lynn. A invenção <strong>da</strong> pornografia. São Paulo: Hedra, 1999.<br />

RAMBACH, Karl. Thesaurus Eroticus Linguae Latinae. Stuttgartiae: Apud Paulum Neff<br />

1833.<br />

SALLES MONIZ, Fábio Frohwein de. Expurgar para ensinar: a censura <strong>da</strong> bibliografia<br />

destina<strong>da</strong> à educação do delfim. Anais <strong>da</strong> Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fun<strong>da</strong>ção<br />

Biblioteca Nacional, 2007. pp.49-57<br />

TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 3.ed. Porto: Marãnus, 1945.<br />

131


RESUMO<br />

EUFEMISMOS BÍBLICOS RELATIVOS AO SEXO E À MORAL<br />

Prof. Dr. Francisco de Assis Florêncio.<br />

O nosso trabalho tem por objetivo trabalhar os eufemismos bíblicos relativos ao<br />

sexo e à moral. Para tanto, partimos do texto <strong>da</strong> Vulgata, texto este que grandemente<br />

influenciou e continua a influenciar as versões portuguesas. A título de cotejo, além do<br />

texto latino, fizemos uso de duas versões portuguesas: Almei<strong>da</strong> Revista e Atualiza<strong>da</strong> e a<br />

Almei<strong>da</strong> Revista e Corrigi<strong>da</strong>.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Vulgata, eufemismos bíblicos, Latim.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Muitos são os eufemismos bíblicos para falar de sexo e moral. Por ser um livro<br />

sagrado para os cristãos e, no que se refere ao Velho Testamento, também sagrado para<br />

os judeus, a Bíblia foi escrita e continua a ser traduzi<strong>da</strong> com muito zelo e cui<strong>da</strong>do.<br />

Assim sendo, palavras e expressões que poderiam causar escân<strong>da</strong>lo e arrepio nos<br />

crentes são trata<strong>da</strong>s de maneira cautelosa e, muitas vezes, ameniza<strong>da</strong>s. Para isso,<br />

recorre-se a uma figura de linguagem denomina<strong>da</strong> eufemismo, do grego εὐφημισμός,<br />

em que eu significa “bom”, “agradável”, presente também em elogio e evangelho e de<br />

pheme, “falar”, portanto “falar coisas boas, agradáveis”, como no exemplo “Entregar a<br />

alma a Deus”, ou seja, “morrer”. A Bíblia emprega de maneira significativa esta figura e<br />

é, por isso, que nos interessamos em abor<strong>da</strong>r esse assunto. O nosso ponto de parti<strong>da</strong> foi<br />

a Vulgata, versão bastante literal, tanto em relação ao texto hebraico quanto ao grego.<br />

Ao procurarmos eufemismos relativos ao sexo e à moral nesta versão, ficamos surpresos<br />

ao percebermos que ela, diferentemente do que se poderia esperar, é menos eufêmica<br />

que as versões portuguesas por nós consulta<strong>da</strong>s. As versões que serão utiliza<strong>da</strong>s como<br />

fonte de cotejo com a Vulgata são a Almei<strong>da</strong> Revista e Atualiza<strong>da</strong> (ARA) e a Almei<strong>da</strong><br />

Revista e Corrigi<strong>da</strong>. Vale, por fim, ressaltar que o texto bíblico nos legou pelo menos<br />

dois vocábulos que dizem respeito à moral e a práticas sexuais: onanismo e sodomia. O<br />

primeiro, deriva do nome próprio Onã e significa “masturbação masculina”. A sua<br />

origem se dá no fato de que Onã, to<strong>da</strong>s as vezes que possuía sua mulher, viúva de seu<br />

irmão, estava prestes a chegar ao clímax, ejaculava fora dela, sendo considera<strong>da</strong>, tal<br />

prática, um tipo de masturbação. O segundo, sodomia, definido pelo Aurélio como<br />

132


“cópula anal, principalmente com mulher”, surgiu graças ao comportamento imoral e<br />

devasso dos habitantes de Sodoma e Gomorra.<br />

ANÁLISE DAS PALAVRAS E EXPRESSÕES<br />

A primeira palavra a ser analisa<strong>da</strong> é VĀS, VĀSIS, que, literalmente, significa<br />

“vaso”, “recipiente”. No latim clássico, porém, ele, assemelhado a uma ânfora, fazia<br />

lembrar a genitália do homem, pois as duas asas <strong>da</strong> ânfora eram semelhantes ao escroto<br />

e o seu centro, a um pênis. É a partir deste significado que comentaremos a passagem de<br />

I Samul 21:5.<br />

Vulg: ... et fuerunt vasa puerorum sancta. Porro via haec polluta est, sed et ipsa hodie<br />

sanctificabitur in vasis.<br />

ARA: Respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, como sempre, quando saio à<br />

campanha, foram-nos ve<strong>da</strong><strong>da</strong>s as mulheres, e os corpos dos homens não estão imundos.<br />

Se tal se dá em viagem comum, quanto mais serão puros hoje!<br />

ARC: E respondeu Davi ao sacerdote e lhe disse: Sim, em boa fé, as mulheres se nos<br />

ve<strong>da</strong>ram desde ontem; e, anteontem, quando eu saí, o corpo dos jovens também era<br />

santo; e em alguma maneira é pão comum, quanto mais que hoje se santificará outro no<br />

corpo!<br />

Vemos, então, que para a palavra latina vas, vasis, genitália masculina, as duas<br />

primeiras versões fogem de uma tradução literal e, para não explicitar esta parte do<br />

corpo, recorrem à metonímia e o todo substitui a parte.<br />

A segun<strong>da</strong> palavra a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> ain<strong>da</strong> se encontra em voga em nossos dias com<br />

forte apelo sexual: LUMBUS, I. No Brasil, em particular na linguagem chula, os<br />

homens costumam dizer, em referência a uma mulher com as cadeiras largas: “Que<br />

lombo!” No latim clássico já era comum o emprego deste vocábulo para designar a<br />

genitália, só que, diferentemente do que se faz no Brasil, ele apontava geralmente para a<br />

genitália masculina. No latim cristão, os “lombos” designam a fonte de procriação<br />

masculina, sendo, por isso, sinônimo de genitália. Esta interpretação já era encontra<strong>da</strong><br />

em são Jerônimo, em sua Epistola XXII, Ad Eustochium, filiam Paulae, onde ele assim<br />

se pronuncia a respeito dos lombos: “Honeste viri mulierisque genitalia immutatis sunt<br />

appelata nominibus. Omnis igitur adversos viros diaboli virtus in lumbis est;...” Esta<br />

passagem não só corrobora a idéia de lombo como genitália masculina, mas também o<br />

133


apresenta como a parte do corpo escolhi<strong>da</strong> pelo Diabo para atacar o homem, segundo o<br />

conceito popular e não bíblico de que “a carne é fraca”.<br />

Hebreus 7:10 é a primeira passagem a testificar o que até aqui foi dito:<br />

Vulg: adhuc enim in lumbis patris erat quando obviavit ei Melchisedech.<br />

ARC: Porque ain<strong>da</strong> ele estava nos lombos de seu pai, quando Melquisedeque lhe saiu ao<br />

encontro.<br />

ARA: Porque aquele ain<strong>da</strong> não tinha sido gerado por seu pai, quando Melquisedeque<br />

saiu ao encontro deste.<br />

A segun<strong>da</strong> passagem é Jó 40:16:<br />

Vulg: Virtus eius in lumbis et potestas eius in umbilico.”<br />

ARA: Sua força está nos seus lombos, e o seu poder, nos músculos do seu ventre.<br />

ARC: Eis que a sua força está nos seus lombos, e o seu poder, nos músculos do seu<br />

ventre.<br />

A terceira análise não diz respeito a uma palavra e sim a uma expressão: POST<br />

CARNEM ALTERAM (após outra carne). A expressão aparece apenas em Ju<strong>da</strong>s 1:7 e<br />

é emprega<strong>da</strong> para criticar o comportamento devasso dos habitantes de Sodoma e<br />

Gomorra. O contexto a que Ju<strong>da</strong>s faz referência é Gênesis 19, onde os habitantes <strong>da</strong>s<br />

duas ci<strong>da</strong>des querem manter relações sexuais com dois homens, na ver<strong>da</strong>de anjos, que<br />

se encontravam na casa de Ló. A expressão em epígrafe é usa<strong>da</strong> pelo autor sacro para<br />

designar o tipo de relação sexual que poderia ocorrer, ou seja, a união entre seres<br />

humanos e seres divinos. Comparemos agora as versões:<br />

Vulg: sicut Sodoma et Gomorra et finitimae civitates simili modo exfornicatae et<br />

abeuntes post carnem alteram factae sunt exemplum ignis aeterni poenam sustinentes<br />

ARA: como Sodoma, e Gomorra, e as ci<strong>da</strong>des circunvizinhas, que, havendo-se<br />

entregado à prostituição como aqueles, seguindo após outra carne, são postas para<br />

exemplo do fogo eterno, sofrendo punição.<br />

ARC: assim como Sodoma, e Gomorra, e as ci<strong>da</strong>des circunvizinhas, que, havendo-se<br />

corrompido como aqueles e ido após outra carne, foram postas por exemplo sofrendo a<br />

pena do fogo eterno.<br />

Embora as duas versões sigam literalmente o texto <strong>da</strong> Vulgata, algumas versões<br />

modernas, como a Nova Versão Internacional (NVI), substituem a expressão em estudo<br />

por “relações anti-naturais”.<br />

Por fim aparece um verbo: COGNOSCĚRE. É o mais conhecido no contexto<br />

bíblico para designar relação sexual. Pode ser empregado, porém, tanto para se referir a<br />

134


elações sexuais considera<strong>da</strong>s lícitas, a saber, aquela dentro do casamento entre a<br />

mulher e o marido, quanto àquelas considera<strong>da</strong>s ilícitas ou anormais para os padrões<br />

bíblicos. No primeiro caso temos a passagem que se refere à Maria e José, conforme a<br />

narrativa de Mateus 1:25:<br />

Vulg: et non cognoscebat eam, donec peperit filium, et vocavit nomen eius Iesum.<br />

ARA: Contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o<br />

nome de Jesus.<br />

ARC: e não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe o nome de<br />

JESUS.<br />

Neste contexto, que é polêmico, pois trata <strong>da</strong> virgin<strong>da</strong>de de Maria, é quase<br />

impossível empregar outro verbo para fazer referência ao que aconteceu ou poderia ter<br />

acontecido: um matrimônio sem mácula.<br />

Se voltarmos, porém, ao episódio de Sodoma e Gomorra (Gn 19:5), veremos<br />

que, embora o verbo ali empregado seja o mesmo, o seu significado não equivale à<br />

passagem de Mateus por se tratar de um tipo de relação considera<strong>da</strong> ilícita e anormal,<br />

segundo os parâmetros bíblicos, <strong>da</strong>í a tradução na ARA de “abusemos”:<br />

Vulg: Ubi sunt viri qui introierunt ad te nocte? Educ illos huc, ut cognoscamus eos.<br />

ARA: e chamaram por Ló e lhe disseram: Onde estão os homens que, à noitinha,<br />

entraram em tua casa? Traze-os fora a nós para que abusemos deles.<br />

ARC: E chamaram Ló e disseram-lhe: Onde estão os varões que a ti vieram nesta noite?<br />

Traze-os fora a nós, para que os conheçamos.<br />

O substantivo UMBILICUS, I também se encontra na mesma epístola que<br />

citamos para falar de lombos: Epistola XXII, Ad Eustochium, filiam Paulae. São<br />

Jerônimo, ao falar <strong>da</strong> genitália masculina, recorre a lumbus, e ao falar <strong>da</strong> feminina, a<br />

umbilicus, acrescentando que é exatamente por esta parte do corpo que o Diabo procura<br />

atacar a mulher: “...omnis in umbilico contra feminas fortitudo.” Além <strong>da</strong> passagem já<br />

cita<strong>da</strong>, Jó 40:16, há uma outra, Cantares de Salomão 7:2, que, <strong>da</strong>do o erotismo do livro,<br />

parece se referir à vagina.<br />

Vulg: umbilicus tuus crater tornatilis, numquam indigens poculis.<br />

ARA: O teu umbigo é taça redon<strong>da</strong>, a que não falta bebi<strong>da</strong>;...<br />

ARC: O teu umbigo, como uma taça redon<strong>da</strong>, a que não falta bebi<strong>da</strong>;...<br />

Se não houvesse a possibili<strong>da</strong>de de que aquilo que nós dissemos sobre<br />

“umbigo”, nesta passagem, ser ver<strong>da</strong>de, não haveria a preocupação de se fazer, na “LA<br />

SAGRADA ESCRITURA”, o seguinte comentário sobre o vocábulo em destaque:<br />

135


“Como en el resto de la descripción, se trata de um elemento externo de belleza y, por lo<br />

mismo, no puede pensarse en un eufemismo que se refiriese a los misteriosos secretos<br />

de la ‘vulva’”.<br />

Até hoje, com certeza, o ser humano tem certo pudor em falar e expor as suas<br />

necessi<strong>da</strong>des fisiológicas, não poderia ser diferente, é claro, no Velho Testamento. Mais<br />

uma vez destacamos não uma palavra e sim uma expressão: PURGARE VENTREM.<br />

Vulg: et venit ad caulas quoque ovium quae se offerebant vianti eratque ibi spelunca<br />

quam ingressus est Saul ut purgaret ventrem.<br />

ARA: Chegou a uns currais de ovelhas no caminho, onde havia uma caverna; entrou<br />

nela Saul, a aliviar o ventre.<br />

ARC: E chegou a uns currais de ovelhas no caminho, onde estava uma caverna; e entrou<br />

nela Saul, a cobrir seus pés;<br />

Fica claro, com as passagens acima, que a ARC, versão mais conservadora, é<br />

mais puden<strong>da</strong> que a ARA, <strong>da</strong>í o uso do eufemismo “a cobrir os pés”. A ARA, ao<br />

contrário, deixando de lado a vergonha de apresentar um rei fazendo suas necessi<strong>da</strong>des,<br />

segue literalmente o texto <strong>da</strong> Vulgata, valorizando, assim, a versão latina.<br />

A última palavra a ser analisa<strong>da</strong> é UBER, -ĚRIS. A sua análise é sui generis,<br />

pois, embora seja uma palavra corrente na Bíblia, o significado que a ela atribuiremos<br />

só ocorre em Cantares 1:1. Vamos às versões:<br />

Vulg: osculetur me osculo oris sui; quia meliora sunt ubera tua vino.<br />

ARA: Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho.<br />

ARC: Beije-me ele com os beijos <strong>da</strong> sua boca; porque melhor é o seu amor do que o<br />

vinho.<br />

Percebemos que “ubera”, na Vulgata, é substituí<strong>da</strong> nas outras duas versões por<br />

“amor”. A razão dessa diferença não se baseia em questões morais ou eufêmicas, mas<br />

sim na vocalização do texto hebraico. Sabe-se que o texto hebraico nos seus primórdios<br />

não possuía vogais e que, mais tarde, os massoretas produziram um texto com<br />

vocalização que ficou conhecido como Texto Massorético. É aí que reside a raiz de to<strong>da</strong><br />

confusão, pois, em hebraico, tanto a palavra “amor” quanto a palavra “mamilo” ou<br />

“seio” tem as mesmas consoantes: RR ד <strong>da</strong>leth no início e no final. Deste modo, temos:<br />

dôd (amor) e <strong>da</strong>d (mamilo, seio). Sendo as letras consonantais as mesmas, deduz-se que<br />

no tempo de Jerônimo (séc. IV e V), que segue a Septuaginta (μαστοι), a forma <strong>da</strong>d<br />

prevalecia sobre dôd, o que, provavelmente, foi alterado com o advento do texto<br />

massorético (séc. VII).<br />

136


Concluímos, enfim, este artigo na certeza que muito contribuímos para a<br />

eluci<strong>da</strong>ção de algumas dúvi<strong>da</strong>s que até então pairavam sobre as cabeças <strong>da</strong>queles que se<br />

debruçam no estudo do texto sacro. Acreditamos, também, que demonstramos, de<br />

maneira simples, mas convincente, quão importante ain<strong>da</strong> é a Vulgata para os estudos<br />

bíblicos.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

A BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagra<strong>da</strong>. Traduzi<strong>da</strong> por João Ferreira de<br />

Almei<strong>da</strong>. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Socie<strong>da</strong>de Bíblica do Brasil, 1993.<br />

A BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia Sagra<strong>da</strong>. Traduzi<strong>da</strong> por João Ferreira de<br />

Almei<strong>da</strong>. 2. ed. rev. corr. São Paulo: Socie<strong>da</strong>de Bíblica do Brasil, 1993.<br />

ADANS, J. N. The Latin Sexual Vocabulary. Maryland: The Johns Hopkins University<br />

Press, 1990.<br />

BIBLIA SACRA iuxta Vulgatam Clementinam. Ed. Prepara<strong>da</strong> por COLUNGA, Alberto<br />

O. P., Et TURRADO, Laurentio. 10. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,<br />

1999.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holan<strong>da</strong>. Miniaurélio Século XXI. Coordenação de<br />

edição, Margari<strong>da</strong> dos Anjos et alii. 5ª ed. Ver. Amplia<strong>da</strong>. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 2001.<br />

FOLCH GOMES, Cirilo. Antologia dos Santos Padres: Páginas Seletas dos Antigos<br />

Escritores Eclesiástcos. 4. ed. Coleção Patrologia 1. São Paulo: Paulinas.<br />

LA SAGRADA ESCRITURA: Antiguo Testamento IV, texto y comentario de Los<br />

Salmos y los Libros salomónicos. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,<br />

MCMLXIX.<br />

Novo Testamento trilingüe: grego, português e inglês. Editor Luiz Alberto Teixeira<br />

Sayão. São Paulo: Vi<strong>da</strong> Nova, 1998.<br />

SEPTUAGINTA.Id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes edidit Alfred<br />

Rahlfs. Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 2003.<br />

137


Considerações sobre o vocabulário acerca <strong>da</strong> mão-de-obra em Varrão<br />

JOSÉ ERNESTO MOURA KNUST<br />

CEIA/UFF<br />

Resumo:<br />

O historiador francês J-C. Dumont afirma, sobre os tratados dos<br />

“agrônomos latinos”, que: (a) o vocabulário referente ao trabalho agrícola permite a<br />

inferência de que o estatuto jurídico dos trabalhadores era irrelevante para tais<br />

escritores; e (b) as uillae descritas por tais escritores não podem ser caracteriza<strong>da</strong>s<br />

como escravistas. Pretenderemos mostrar que uma análise acura<strong>da</strong> do vocabulário de<br />

Varrão nos faz chegar a conclusões diametralmente opostos a estas.<br />

***<br />

Jean-Christian Dumont publicou em 1999 um importante artigo para os<br />

estudos sobre os assim chamados “agrônomos latinos”. Neste, o historiador francês<br />

afirmava que o vocabulário dos tratados de Catão, Varrão e Columella, ao se<br />

referirem aos homens empenhados no trabalho agrícola, pode nos informar ou o<br />

estatuto jurídico destes ou a sua função e/ou especialização (ou ain<strong>da</strong> uma falta<br />

1<br />

desta)TPF FPT. Os termos que indicariam o estatuto jurídico seriam os seguintes:<br />

compeditus, conseruus e conservuuas, familia, familiaris, mancipium,<br />

mulier, puer, redemptor, seruus, seruulus, uincti.<br />

Porém, na maioria dos casos, os agentes <strong>da</strong> agricultura seriam designados<br />

por termos gerais que designam sua função ou especialização e não nos informam<br />

na<strong>da</strong> sobre seu estatuto jurídico:<br />

actor, arator, armentarius, artifex, asinarius, auiarius, aucupes, bubulcos,<br />

caprarius, capulator, colonus, curator, custos, columbraius, epistata, faber, factor,<br />

fartor, fullo, gallinarius, homo, legulus, magister (pecoris), mediastinus, medicus,<br />

messor, occator, operarius, opilio, pastor, piscator, praefectus, procurator, politor,<br />

salictarius, sator, sartor, subulcus, textor, uenatoruilicus, uilica, uindemiator, uinitor.<br />

Desta forma, Dumont acredita que os termos que se referem aos<br />

trabalhadores indicam majoritariamente sua função ou especialização, e pouco dizem<br />

sobre seu estatuto jurídico. Segundo o estudioso francês, para os agrônomos latinos<br />

não importaria tanto se quem faz o trabalho é livre ou escravo, importaria apenas que<br />

o trabalho fosse feitoTPF<br />

2<br />

FPT.<br />

Nosso intuito neste texto será o de verificar esta hipótese de leitura<br />

levanta<strong>da</strong> por Dumont a partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> presença dos trabalhadores na De Re<br />

Rustica de Varrão. Iniciaremos por uma análise detalha<strong>da</strong> dos capítulos do tratado<br />

cujo tema é especificamente os trabalhadores (décimos sétimo e oitavo do primeiro<br />

livro e décimo do segundo livro). Depois passaremos rapi<strong>da</strong>mente pelas presenças dos<br />

trabalhadores em outros setores <strong>da</strong> obra. Por fim, discutiremos as conclusões a que<br />

Dumont chega a partir de sua hipótese comparando-as com as conclusões a que nós<br />

chegaremos a partir de nossa análise.<br />

1<br />

2<br />

TP PT Jean-Christian<br />

TP PT Ibidem,<br />

Dumont, “La villa esclavagiste?”, Topoi 9, fascicule 1, 1999, p.114.<br />

p.114-120.<br />

138


Ao começarmos a ler, por exemplo, o capítulo 10 do livro segundo, o que<br />

trata sobre os trabalhadores no pastoreio, somos compelidos a concor<strong>da</strong>r plenamente<br />

com a tese de Dumont. O capítulo é enunciado como dedicado aos pastores, sendo<br />

então usado para definir a temática de todo um capítulo um termo que denota função,<br />

e não estatuto jurídico. No início do capítulo (2.10.1), os trabalhadores são enunciados<br />

por qualificações (superiores, pueros, firmiores, etc.) e logo depois (2.10.2) surge o<br />

primeiro termo definindo uma função específica, magister pecoris (chefe dos<br />

pastores). Quando se enumeram características necessárias a este chefe (2.10.3),<br />

Varrão diz quais características estes homens (homines) devem ter, não apontando em<br />

seu vocabulário qualquer preocupação com o estatuto jurídico deles.<br />

Porém, as coisas começam a mu<strong>da</strong>r com a continuação <strong>da</strong> leitura.<br />

Terminado o setor onde se expõe as características dos chefes, Varrão afirma que nem<br />

todos os povos (natio) são aptos para o trabalho como pastores, e fala de povos <strong>da</strong><br />

península ibérica (Batulus e Turdulus)TPF<br />

3<br />

FPT como<br />

incapacitados e dos gauleses (Galli)<br />

como admiravelmente a<strong>da</strong>ptados. Não há qualquer menção ao estatuto jurídico desses<br />

estrangeiros, mas podemos debitar essa “migração” de trabalhadores rurais <strong>da</strong> Gália<br />

para a uilla varroniana na conta do tráfico escravista e não de qualquer tipo de<br />

corrente migratória de pessoas livres.<br />

Varrão passa então a enumerar as seis formas de se adquirir um título de<br />

proprie<strong>da</strong>de legítima e fala <strong>da</strong> compra desses pastores (horum emptione, na qual o<br />

pronome horum claramente se refere aos pastores, tema em apreciação no momento).<br />

Não se usa um termo que denote o caráter servil, como mancipia ou seruus, mas se<br />

fala na compra dos pastores, o que em si já nos mostra uma identificação dos pastores<br />

como mão-de-obra escrava.<br />

Porém, se faz necessária uma matização: essa apreciação dos pastores<br />

está dentro de um esquema geral de apresentações do livro II sobre os diversos<br />

animais que fazem parte do pastoreio (no qual os pastores estão incluídos). Ca<strong>da</strong><br />

capítulo trata de um animal e é dividido em nove temas fixos e as formas de compra<br />

dos animais são um desses temas. Desta forma, a presença de uma explicação sobre as<br />

formas de compra dos pastores não pode ser superestima<strong>da</strong>, pois faz parte de um<br />

esquema geral. Por outro lado, também não deve ser ignora<strong>da</strong>. Em nenhum momento<br />

Varrão usa termos que denotam o estatuto jurídico de seus pastores, fala-se sempre<br />

em pastores, nas características desses pastores, nas funções desses pastores. Porém,<br />

em alguns momentos ele nos dá pistas de que os vê como escravos: fala em compras<br />

destes pastores e em pastores estrangeiros. De qualquer forma há uma ambigüi<strong>da</strong>de<br />

latente no livro segundo.<br />

Acreditamos, contudo, que Varrão é mais claro quanto a esta identificação<br />

dos trabalhadores como mão-de-obra escrava no livro primeiro. Comecemos pelo<br />

capítulo 18, que pretende tratar do número necessário de trabalhadores. O capítulo<br />

começa com a exposição <strong>da</strong> famosa prescrição de Catão sobre a quanti<strong>da</strong>de e tipos de<br />

trabalhadores necessários para um olival de duzentas e quarenta jeiras e para um<br />

vinhedo de cem jeirasTPF<br />

4<br />

FPT. A<br />

passagem utiliza diversos termos que denotam funções,<br />

como administrador (uilicus), mulher do administrador (uilica), vaqueiros (bubulcos),<br />

tratador de burro (asinarum), porqueiro (subulcus) e trabalhadores (operarios).<br />

Porém, fala nessas funções descrevendo a familia necessária, descrevendo os tipos de<br />

funções exerci<strong>da</strong>s por mancipiae.<br />

3<br />

TP PT Cf. nota de Harrison Boyd Ash, ao texto de Varrão em: Cato on agriculture; Varro, on agriculture.<br />

Loeb Classical Library, Harvard University Press, 1935, p.406, nota 1.<br />

4<br />

TP PT Catão, De Agri Cultura, capítulos X e XI.<br />

139


Mancipia era a forma legal de aquisição de título de posse mais comum<br />

nas práticas comerciais romanas, e com o passar do tempo o termo passou a ser<br />

utilizado para designar os escravos. Já o termo latino familia indica todo o grupo de<br />

pessoas submeti<strong>da</strong>s ao pater familias, sendo escravos ou livres, porém, o uso comum<br />

5<br />

quase sempre designava a escravaria de um senhorTPF FPT – o próprio Jean-Christian<br />

Dumont identifica o termo familia como um dos termos que denotam estatuto jurídico<br />

6<br />

dos trabalhadoresTPF FPT. Desta forma, podemos dizer que ambos os termos, mancipium e<br />

familia, denotam o estatuto jurídico dos trabalhadores e, portanto, nesta passagem, a<br />

função aparece subordina<strong>da</strong> ao estatuto jurídico, e um estatuto jurídico servil.<br />

Após essa exposição <strong>da</strong> prescrição catoniana, Varrão passa para a<br />

exposição <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções dos Sasernas sobre a quanti<strong>da</strong>de de homens (homines)<br />

necessários para o trabalho. O termo é genérico, não faz referência nem ao estatuto<br />

jurídico nem à função ou especialização. O capítulo continua com a crítica a estes<br />

dois modelos: Varrão afirma que Catão não explica como manter a proporcionali<strong>da</strong>de<br />

do número de escravos (mancipia) e que o método descrito por Saserna por ser<br />

aplicável à Gália não o é para qualquer outro lugar, sendo que o número de dias<br />

necessários para um trabalhador (operario) se ocupar de uma jeira pode variar<br />

segundo as condições de ca<strong>da</strong> região. O termo operario é o mais complicado de<br />

classificar na tipologia de Dumont, pois pode indicar uma falta de especialização, que<br />

ao mesmo tempo se torna uma “função” – aqueles cinco trabalhadores apontados por<br />

Catão para o cultivo de um olival de duzentas e quarenta jeiras ou os dez para o<br />

cultivo de um vinhedo de cem jeiras –, mas também pode ser considerado um termo<br />

genérico, usado como sinônimo de homines; e é neste último caso que nos parece que<br />

ele é utilizado, por não haver nenhuma menção a ativi<strong>da</strong>des específicas e pelo o termo<br />

estar inserido na tentativa de construção de um padrão geral para a contabilização <strong>da</strong><br />

mão-de-obra. Por fim, Varrão finaliza o capítulo fazendo novo uso do termo<br />

mancipia.<br />

Desta forma, observamos que neste capítulo 18, Varrão usa termos<br />

denotadores de função apenas subordinando-os a uma categoria defini<strong>da</strong> por um<br />

termo que, por sua vez, denota estatuto jurídico: mancipia. Excetuando estes termos<br />

subordinados ao grupo definido por mancipia, identificamos nove ocorrências de<br />

termos que se referem aos trabalhadores no capítulo 18, sendo mancipia utilizado<br />

cinco vezes, familia duas, operario e homine uma ca<strong>da</strong>. O último termo é genérico,<br />

na<strong>da</strong> nos diz sobre o estatuto jurídico, função ou especialização; o penúltimo, como<br />

vimos, é extremamente polissêmico, mas de qualquer forma, é provavelmente<br />

também outro termo genérico; porém, as duas primeiras nos dizem muito sobre o<br />

estatuto jurídico: se referem a escravos.<br />

Ain<strong>da</strong> à procura dos termos que se refiram aos trabalhadores e do que eles<br />

podem nos dizer sobre a presença dos escravos no tratado, passemos, agora, para o<br />

capítulo 17 do livro primeiro. O capítulo é iniciado com a enunciação do que vai se<br />

tratar na próxima seção do livro (entre os capítulos 17 e 22): aquilo que é necessário<br />

ao cultivo, os instrumentos. Varrão aponta duas possíveis divisões deste ponto: uns o<br />

5<br />

TP PT Richard Saller, “Slavery and the Roman Family” in: Moses Finley (ed.), Classical Slavery. London<br />

and Portland: Frank Cass, 1987, p.84.<br />

6<br />

TP PT Dumont, op.cit. p.114. Para uma discussão um pouco mais extensa sobre o termo família dentro de<br />

um contexto similar, ver Saïd El Bouzidi, “Le vocabulaire de la main-d’oeuvre dépen<strong>da</strong>nte <strong>da</strong>ns le De<br />

Agricultura: pluralité et ambiguïté. Dialogues d’histoire ancienne, 1999, v.25, n.1 – Especialmente a<br />

seção 2, “Le lexique de la familia et ses ambiguïtés”.<br />

140


dividem nos homens (homines) e no que os auxilia, enquanto outros os dividem em<br />

três partes<br />

os instrumentos 'vocais', 'semivocais' e 'mudos': nos vocais, incluem-se<br />

os escravos [serui]; nos semivocais, os bois; nos mudos, as carretas.<br />

(1.17.1)<br />

É interessante notar que Varrão explica as divisões a partir de exemplos,<br />

isto é, não é possível afirmar que para ele todos os instrumentos vocais são escravos<br />

por que tirar esta conclusão desta passagem seria o mesmo que afirmar que para ele os<br />

bois são todos os instrumentos semi-vocais ou que as carretas são os únicos<br />

instrumentos mudos. To<strong>da</strong>via, a escolha destes três exemplos para explicar a divisão é<br />

muito reveladora – mostram quais são os elementos que de certa forma aparecem<br />

como mais significativos em ca<strong>da</strong> categoria, e entre os trabalhadores são os escravos<br />

os escolhidos.<br />

Fica claro o que dissemos sobre a impossibili<strong>da</strong>de de identificar todos os<br />

trabalhadores como escravos na linha seguinte do capítulo, quando Varrão fala que a<br />

terra é cultiva<strong>da</strong> por homens escravizados, livres ou ambos (…hominibus seruis aut<br />

liberis aut utrisque). Nesta passagem, pela única vez em to<strong>da</strong> a obra, aparece uma<br />

oposição clara entre mão-de-obra escrava e livre. Os homens livres são identificados<br />

com os camponeses que cultivam sua própria terra com seus filhos e com aqueles<br />

assalariados (mercenarii) contratados para trabalhos “maiores”. Há ain<strong>da</strong>, diz Varrão,<br />

aqueles que seus antepassados chamaram oberarii (devedores insolventes), ain<strong>da</strong><br />

muito numerosos na Ásia, Ilíria e Egito, sem especificar se os enquadra entre os<br />

homens escravizados, entre os homens livres, ou como um caso a parte.<br />

Varrão afirma que sobre isso tudo, isto é, sobre o trabalho de homens<br />

livres e escravos, tem o seguinte a dizer: utilize-se o trabalho de assalariados<br />

(mercenarii) no lugar dos escravos (serui) em locais insalubres e naqueles trabalhos<br />

maiores, como guar<strong>da</strong>r os frutos <strong>da</strong> vindima e a ceifa. Analisar essa passagem como<br />

indício do uso <strong>da</strong> mão-de-obra livre pelos proprietários italianos é ao mesmo tempo<br />

uma necessi<strong>da</strong>de e um erro. A passagem é clara, Varrão prescreve a utilização <strong>da</strong><br />

mão-de-obra assalaria<strong>da</strong> em determina<strong>da</strong>s situações. Mas é justamente este ponto que<br />

pode fazer tal análise cometer falácias: Varrão prescreve a utilização dos assalariados<br />

em algumas situações, o que nos permite inferir que em sua uilla ideal o trabalho é<br />

associado a priori com o trabalho escravo, sendo essas prescrições de utilização <strong>da</strong><br />

mão-de-obra assalaria<strong>da</strong> exceções que confirmam a regra.<br />

Varrão cita, então, a prescrição de Cássio, tradutor do tratado do<br />

cartaginês Magão para o latim, de como devem ser esses trabalhadores (operarios –<br />

nesse contexto, obviamente em um sentido genérico): fortes para agüentar a labuta,<br />

com mais de vinte e dois anos e experientes na agricultura – o que se pode descrobrir<br />

perguntando o que costumavam fazer para seu antigo senhor (dominos). Vemos aí a<br />

utilização de um termo provavelmente genérico, operario, mas logo depois se faz<br />

referência a antigos senhores destes trabalhadores, o que demonstra um aspecto<br />

subordinado, dependente, senão servil, destes.<br />

Nos trechos seguintes Varrão se refere aos trabalhadores com os seguintes<br />

termos: mancipia, uma vez, operarios, duas vezes e aos chefes dos trabalhadores<br />

como praefectus por três vezes. Praefectus é sem sombra de dúvi<strong>da</strong> um termo que<br />

denota função, operarii, como já vimos, é de classificação dúbia, mas acreditamos<br />

que também aparecem de maneira genérica nessas passagens, enquanto mancipia<br />

denota o estatuto jurídico servil.<br />

141


Desta forma, podemos afirmar que também no capítulo 17 dominam os<br />

termos que denotam o estatuto jurídico, aparecendo oito vezes: mancipia uma vez,<br />

oberarii uma vez, seruus três vezes, liberis uma vez e mercenarii três vezes, sendo<br />

que se deve considerar apenas duas, pois uma <strong>da</strong>s aparições de mercenarii relacionase<br />

diretamente a aparição única de liberis. Os termos neutros aparecem quatro vezes:<br />

homine uma vez e operarios três. Já os termos que se referem a funções aparecem nas<br />

três ocorrências de praefectus. Porém, esse quantitativismo precisa ser matizado: as<br />

ocorrências de preafectus nos dizem muito mais sobre a preocupação central de<br />

Varrão quanto aos chefes do que com nossa preocupação neste texto, a presença dos<br />

escravos no tratado; por sua vez, a ocorrência dos termos que denotam o estatuto<br />

jurídico se concentram no início do capítulo, por uma preocupação naquele setor de<br />

identificar os tipos de mão de obra.<br />

Em alguns momentos do primeiro livro, os trabalhadores surgem em<br />

outros capítulos que não os dois dedicados a eles. Ao falar <strong>da</strong>s construções <strong>da</strong> uilla,<br />

no capítulo 13, Varrão diz que se deve ter o cui<strong>da</strong>do de providenciar um local para<br />

que os escravos (familia) descansem quando estão cansados do trabalho.<br />

Já no capítulo 16, Varrão tece considerações sobre a relação <strong>da</strong> uilla com<br />

a vizinhança. Ele afirma que para proprie<strong>da</strong>des que ficam próximas a povoados e<br />

ci<strong>da</strong>des, seus proprietários preferem manter contratos anuais com médicos (medicos),<br />

pisoeiros (fullones) e artesãos (fabers), pois a morte de um só artesão pode levar uma<br />

proprie<strong>da</strong>de à falência. Vemos aqui uma nova defesa do trabalho temporário em<br />

algumas ativi<strong>da</strong>des como proteção contra mortes de escravos que causariam prejuízo<br />

ao senhor. Para Varrão, porém, há uma exceção: nas grandes proprie<strong>da</strong>des (lati fundi)<br />

os ricos utilizam os seus escravos (domesticae) para essas funções. Já quando as<br />

proprie<strong>da</strong>des se encontram distantes de povoados e ci<strong>da</strong>des, os proprietários preferem<br />

ter esses trabalhadores na sede, para que seus escravos (familia) não precisem perder<br />

dias de trabalho perambulando como se fosse feriado. Esta passagem, apesar de usar<br />

diversos termos denotadores de função, tem uma preocupação implícita sobre o<br />

estatuto jurídico dos trabalhadores.<br />

Por fim, em um dos capítulos (18) sobre os instrumentos semivocálicos,<br />

Varrão faz menção aos animais <strong>da</strong>dos como pecúlio para os escravos (mancipia).<br />

Acreditamos vislumbrar, a partir desta análise, uma associação no<br />

vocabulário de Varrão entre trabalhadores e escravos. Por exemplo, como vimos<br />

acima, os escravos foram os escolhidos para exemplificar os instrumentos vocais, e o<br />

trabalho dos assalariados era apontado como necessário para certas circunstâncias,<br />

não mais que isso. Ou ain<strong>da</strong> mais, ao citar Catão na discussão do número necessário<br />

de trabalhadores, Varrão afirma que este prescreve, respectivamente para um olival de<br />

duzentas e quarenta jeiras e um vinhedo de cem jeiras, treze ou quinze escravos<br />

(mancipia), enquanto na ver<strong>da</strong>de, Catão fala em treze ou quinze homens (homines)TPF<br />

A partir do que foi aqui exposto, acreditamos que, para o tratado<br />

varroniano, a afirmação de Dumont acerca <strong>da</strong> predominância <strong>da</strong> função sobre o<br />

estatuto jurídico não é váli<strong>da</strong>. A mão-de-obra aparece majoritariamente associa<strong>da</strong> a<br />

termos que denotam um estatuto jurídico servil. Varrão se preocupa com o trabalho a<br />

ser feito, e o imagina sendo feito por escravos.<br />

Isso coloca a mão-de-obra escrava como central na forma como Varrão vê<br />

o trabalho agrícola e pastoril. Essa centrali<strong>da</strong>de se relaciona com a importância real do<br />

7<br />

TP PT Fábio Joly, “Terra e trabalho na Itália do alto império.” In: Gilvan Ventura <strong>da</strong> Silva & Norma Musco<br />

Mendes. Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad, Vitória: EDUFES, 2006, p.72<br />

142<br />

7<br />

FPT.


trabalho escravo no quadro geral <strong>da</strong> mão-de-obra agrícola e pastoril como também<br />

com a importância <strong>da</strong> escravidão na cultura <strong>da</strong>s classes dominantes italianas no final<br />

<strong>da</strong> República romana. Ou seja, não podemos simplesmente relacionar a centrali<strong>da</strong>de<br />

do trabalho escravo no tratado de Varrão com a predominância econômica do trabalho<br />

escravo nos campos italianos do século I a.C., pois<br />

A ótica patriarcal, que rege a descrição <strong>da</strong> uilla pelos agrônomos latinos,<br />

conduz a uma maior ênfase na escravidão, não como única forma de<br />

exploração do trabalho, mas como aquela relação de dependência que<br />

mais reforça a posição senhorial do proprietário. Mas, como vimos, isso<br />

não implicava o total acobertamento de outras relações de trabalho no<br />

campo.TPF<br />

8<br />

FPT<br />

Essa interpretação ganha força ao pensarmos que a identificação entre<br />

mão-de-obra e escravidão é mais forte no livro I do que no livro II. Isto porque o<br />

primeiro livro é claramente mais próximo de uma valorização do mos maiorum do<br />

9<br />

que o segundoTPF FPT.<br />

Se a ênfase na mão-de-obra escrava também se relaciona com aspectos<br />

culturais e ideológicos, como podemos situar, então, o trabalho escravo dentro do<br />

quadro geral <strong>da</strong> mão-de-obra <strong>da</strong> uilla ideal varroniana?<br />

10<br />

René MartinTPF<br />

FPT identifica três tipos de mão-de-obra livre no tratado (as<br />

quais já apontamos acima):<br />

1. Os camponeses que trabalham suas terras com seus filhos;<br />

2. Os trabalhadores assalariados (mercenarii);<br />

3. Os devedores insolventes (oberarii)<br />

Como a proprie<strong>da</strong>de camponesa não é o assunto de Varrão, e sim as<br />

uillae, e o mesmo afirma que os oberarii são comuns na Ásia, Ilíria e Egito, não na<br />

Itália, resta-nos <strong>da</strong>r atenção aos trabalhadores assalariados. São estes que, ao lado dos<br />

escravos, trabalham as terras <strong>da</strong> uilla varroniana. Como é a relação entre os dois tipos<br />

de mão-de-obra? Martin afirma que podemos inferir do tratado de Varrão que a mãode-obra<br />

fixa <strong>da</strong> uilla era escrava, sendo a mão-de-obra livre apenas complementar.<br />

Essa interpretação já foi aponta<strong>da</strong> há poucas páginas por nós. Além disso, Martin<br />

destaca passagens na De Re Rustica de Columella (3.21) e nas cartas de Plínio, o<br />

Jovem, (IX, 20, 2) que indicam tentativas de diminuir a necessi<strong>da</strong>de dessa mão-deobra<br />

assalaria<strong>da</strong> complementar: respectivamente, plantando diferentes espécies de<br />

vinha para que as épocas de colheita não coincidissem, e usando a escravaria<br />

doméstica (familia urbana) na uilla durante a época <strong>da</strong> colheitaTPF<br />

Martin conclui, com isso, que podemos considerar a uilla um modo de<br />

exploração essencialmente escravista. O curioso deste ponto é que Dumont, a partir <strong>da</strong><br />

mesma tese de os escravos consistirem a mão-de-obra fixa <strong>da</strong> uilla e os assalariados<br />

uma mão-de-obra sazonal, nega o caráter escravista <strong>da</strong>s uillae, já que esta mão-de-<br />

12<br />

obra sazonal deveria ser muito mais numerosa do que os escravosTPF<br />

FPT. O que se cria<br />

8<br />

TP PT ibidem,<br />

9<br />

TP PT René<br />

10<br />

p.76-77.<br />

Martin. Recherches sur les agronomes latins…, op.cit., p.220-222.<br />

TP<br />

PT Idem, “Familia Rustica: les esclaves chez les agronomes latins”. In: Actes du Colloque 1972 sur<br />

l’esclavage. Annales littéraires de l’Université de Besançon, Paris: Les Belles Lettres, 1974, p.268.<br />

11<br />

TP<br />

PT Ibidem, p.269.<br />

12<br />

TP<br />

PT Jean-Christian Dumont, op. cit. p.125,<br />

143<br />

11<br />

FPT.


aqui é uma discussão sobre o que caracteriza um modo de exploração <strong>da</strong> terra como<br />

escravista: a porcentagem de escravos entre todos os trabalhadores usados em todo o<br />

processo ou a centrali<strong>da</strong>de dos escravos no processo produtivo, já que mesmo sendo<br />

mais numerosos que os escravos, os livres não estavam presentes em todo o processo,<br />

enquanto os escravos estavam.<br />

Podemos clarear esta discussão apelando para elementos elencados por<br />

um debate extremamente similar: sobre como caracterizar uma socie<strong>da</strong>de escravista.<br />

Comecemos o contato pela <strong>questão</strong> do significado <strong>da</strong> supremacia numérica dos livres<br />

sobre os escravos na força de trabalho total <strong>da</strong> uilla: Finley retirou a <strong>questão</strong> numérica<br />

do centro <strong>da</strong> discussão, argumentando que<br />

determinar o lugar dos escravos em uma socie<strong>da</strong>de não é uma <strong>questão</strong> de<br />

<strong>da</strong>dos numéricos – <strong>da</strong><strong>da</strong> uma quanti<strong>da</strong>de razoavelmente grande –, mas de<br />

13<br />

sua localização.TPF<br />

FPT<br />

Desta forma, a simples e provável predominância numérica dos<br />

trabalhadores assalariados não nega, necessariamente, o caráter escravista <strong>da</strong> uilla,<br />

como quer Dumont. Precisamos ir mais longe, precisamos pensar a “localização”<br />

destas formas de trabalho. Mas nós já fizemos isso, há poucos parágrafos: os escravos<br />

compõem a força de trabalho permanente <strong>da</strong> uilla, enquanto os assalariados são uma<br />

mão-de-obra temporária, ocasional. Afirmando isto, continuamos, de forma<br />

14<br />

extremamente semelhante, refazendo o argumento de FinleyTPF<br />

FPT. Poderíamos <strong>da</strong>r o<br />

próximo passo ain<strong>da</strong> dentro do argumento do historiador estadunidense e afirmar que<br />

Os escravos predominavam, e quase monopolizavam, a produção em larga<br />

escala no campo e na ci<strong>da</strong>de. Como conseqüência, os escravos proviam a<br />

maior parte <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> imediata obti<strong>da</strong> com o direito de proprie<strong>da</strong>de pelas<br />

15<br />

elites econômicas, sociais e políticas…TPF<br />

FPT<br />

Porém, seria imprudente afirmar que os escravos proviam a “maior parte<br />

<strong>da</strong> ren<strong>da</strong> imediata obti<strong>da</strong> com o direito de proprie<strong>da</strong>de” do proprietário <strong>da</strong> uilla<br />

descrita por Varrão. Uma afirmação deste tipo – ou mesmo sua negação – só poderia<br />

ser embasa<strong>da</strong> por uma pesquisa que ultrapassasse os limites <strong>da</strong> análise do tratado<br />

varroniano, o que não é nossa intenção aqui. De qualquer forma, podemos afirmar que<br />

os rendimentos <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> terra estavam essencialmente ligados à escravidão,<br />

devido ao caráter permanente <strong>da</strong> mão-de-obra escrava. De um ponto de vista<br />

econômico, portanto, a uilla era de certa maneira escravista, para dizer o mínimo.<br />

Porém, as considerações econômicas não encerram todos os pontos de<br />

contato entre os dois debates – sobre o caráter <strong>da</strong> exploração <strong>da</strong> terra e sobre o caráter<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de escravista.<br />

Fábio Joly fez uma importante defesa <strong>da</strong> ampliação do conceito de<br />

socie<strong>da</strong>de escravista, centrado excessivamente na <strong>questão</strong> econômica na formulação<br />

clássica de Finley. A ampliação do conceito, para Joly, deveria atingir o campo<br />

cultural:<br />

13<br />

TP<br />

PT Moses<br />

14<br />

Finley, Escravidão antiga e ideologia moderna, Rio de Janeiro: Graal, 1991, p. 83.<br />

TP<br />

PT Poucos parágrafos depois do trecho que citamos acima, Finley afirma: “Em todos os<br />

estabelecimentos gregos ou romanos maiores que uma uni<strong>da</strong>de familiar, seja na ci<strong>da</strong>de ou no campo, a<br />

força de trabalho permanente era composta por escravos…”, ibidem. p.84.<br />

15<br />

TP<br />

PT ibidem, p.84<br />

144


À definição corrente de socie<strong>da</strong>de escravista que enfatiza seu papel<br />

econômico na manutenção de uma elite dominante, acrescentaríamos,<br />

portanto, o fato <strong>da</strong> ubiqüi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> escravidão no campo cultural, o que<br />

tornava possível a existência de um consenso social sobre a necessi<strong>da</strong>de<br />

16<br />

<strong>da</strong> instituição para a constituição <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.TPF<br />

FPT<br />

Pensando o cultural dentro dos termos propostos por Joly (“sistema de<br />

17<br />

significações envolvido em to<strong>da</strong>s as formas de ativi<strong>da</strong>de social”TPF<br />

FPT), podemos afirmar<br />

com to<strong>da</strong> a convicção que a uilla varroniana, do ponto de vista cultural, é escravista,<br />

pois, como vimos, a escravidão está no centro <strong>da</strong>s formas de concepção do trabalho<br />

agrícola e pastoril.<br />

Acreditamos, desta forma, poder afirmar que as hipóteses de Dumont<br />

sobre a caracterização <strong>da</strong>s uillae descritas pelos “agrônomos latinos” – isto é, a<br />

dominância <strong>da</strong> preocupação com as funções dos trabalhadores em detrimento <strong>da</strong><br />

preocupação com seus estatutos jurídicos e o caráter não-escravista <strong>da</strong> uilla – não são<br />

váli<strong>da</strong>s para a De Re Rustica de Marcos Terêncio Varrão. Este tratado, ao tocar na<br />

<strong>questão</strong> <strong>da</strong> mão-de-obra, tem na escravidão um elemento central, e a uilla descrita por<br />

ele pode ser caracteriza<strong>da</strong> como escravista.<br />

16<br />

TP<br />

PT Fábio Joly. A escravidão na Roma antiga: política, economia e cultura. São Paulo: Alame<strong>da</strong>, 2005,<br />

p.29.<br />

17<br />

TP<br />

PT Ibidem, p.29<br />

145


O uso do phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre a<br />

magia e a medicina<br />

Josilene Campanati de Oliveira – Graduan<strong>da</strong> <strong>da</strong> UERJ e pesquisadora PIBIC.<br />

Resumo: Esta comunicação descreverá a parte inicial de uma pesquisa que busca<br />

compreender como, na Grécia Antiga, a utilização dos phármaka passou do campo<br />

puramente mágico e sobrenatural para o técnico-médico. Para tanto abor<strong>da</strong>remos as práticas<br />

mágicas utiliza<strong>da</strong>s por Medéia, principal representante <strong>da</strong> magia na literatura grega e<br />

percorreremos o caminho <strong>da</strong> magia na antigui<strong>da</strong>de clássica, a fim de que possamos delinear<br />

os conceitos que rotularam o que era magia, diferenciando-a de medicina.<br />

Introdução<br />

Nessa comunicação serão apresentados alguns resultados de uma pesquisa que se iniciou<br />

este ano, sob a coordenação <strong>da</strong> Profª Drª – UERJ/FGV – Dulcileide Virgínio do Nascimento,<br />

em torno do uso <strong>da</strong>s plantas na magia e na medicina na Grécia Antiga.<br />

O texto aqui exposto trata-se do uso do phármaka, partindo de sua utilização por Medéia,<br />

em segui<strong>da</strong> sendo vinculado então a medicina através <strong>da</strong> prática de Hipócrates. Entretanto,<br />

esse tema não será aqui examinado com minúcia, pois os estudos se encontram em fase<br />

inicial, no momento é recolhi<strong>da</strong> a bibliografia e a tradução de um texto chamado<br />

Gnaicologia, em acordo com uma pesquisa que está muito vincula<strong>da</strong> à mulher. Esse livro é<br />

muito importante porque possui em seu final um glossário com várias plantas que já naquela<br />

época eram utiliza<strong>da</strong>s para a mulher, e porque tais informações não são acessíveis em língua<br />

portuguesa, visto que não temos tradução <strong>da</strong> obra. Podendo observar também como foco<br />

desse encontro é “Prazer e Moral”, como as leis e como a moral ateniense tratava as pessoas<br />

que utilizavam essas drogas fora <strong>da</strong> medicina e <strong>da</strong> religião, ou seja, na magia.<br />

1. Medéia, a Polyphármakos<br />

Medéia foi aponta<strong>da</strong> como aquela que conhecia muitas drogas: poly – muitos /<br />

phármakos – drogas. Em to<strong>da</strong> a Literatura Grega vemos a figura de Medéia vincula<strong>da</strong> à<br />

magia, como por exemplo: na peça As Pelíades (contamos apenas com o nome) e na peça<br />

Medeia, de Eurípides. A primeira resgata o conto narrado nas Pelíades onde Pélias é morto<br />

pelas filhas, depois que estas forma persuadi<strong>da</strong>s por Medéia.<br />

146


Roman copy from a fifth-century BCE Athens altar<br />

Berlin, Pergamon Museum. C<br />

“...através <strong>da</strong>s mãos de suas próprias filhas.<br />

Estas foram persuadi<strong>da</strong>s a acreditar que<br />

esquartejando o corpo de seu pai, o rei Pélias,<br />

Em meio as ervas e encantamentos, conseguiriam<br />

A proeza de rejuvenescer o velho rei;<br />

o resultado foi a destruição de todo palácio<br />

(Eurípides, Medéia, v.485).”<br />

Nessa imagem vemos o caldeirão que é um elemento comum na magia e Medéia<br />

ensinando as filhas a rejuvenescer o pai velho, mas o já conhecido ímpeto de Medéia deixa<br />

claro que suas orientações não corresponderiam ao ver<strong>da</strong>deiro procedimento, mesmo que<br />

utilizassem a fórmula e as ervas certas, a magia não seria realiza<strong>da</strong>.<br />

2. A Mandrágora e a Orquídea<br />

Desde a Odisséia há registros do uso de drogas. Muitos papiros fazem menção a elas na<br />

medicina aplica<strong>da</strong> na antigui<strong>da</strong>de, sendo os mesmos a representação dos primeiros indícios<br />

dessa relação de plantas que eram utiliza<strong>da</strong>s, tanto para a medicina, quanto para a magia. O<br />

papiro mais importante é citado por A. Escohotado (1998:77), há ain<strong>da</strong>, o papiro de Ebers<br />

147


(Egito,2600 ou 2100 a.C.). Os principais são o de Smith (descoberto em 1899), o de Chester<br />

Beatty (dinastia XIX), o papiro médico de Berlin e o médico de Londres.<br />

“Segundo A. Escohotado (1998:77), o estudo deste papiro é de suma importância para o<br />

estudo <strong>da</strong>s plantas na Antigui<strong>da</strong>de; contém quarenta e seis diagnósticos e cerca de cinqüenta<br />

receitas mistura<strong>da</strong>s a uma infini<strong>da</strong>de de fórmulas mágicas e astrológicas.”<br />

Como exemplo de planta utiliza<strong>da</strong> nesse período citamos a mandrágora. Ela está<br />

presente, de uma certa maneira, em to<strong>da</strong> a literatura, desde a antigui<strong>da</strong>de com Medéia até o<br />

texto bíblico do velho testamento:<br />

As bagas <strong>da</strong> mandrágora, <strong>da</strong> grossura de uma noz, de cor branca ou avermelha<strong>da</strong> , no<br />

antigo Egito eram símbolo do amor em virtude de suas quali<strong>da</strong>des afrodisíacas. Também<br />

ficou conheci<strong>da</strong> na Grécia como a planta de Circe graças à crença em seus poderes<br />

mágicos. Plínio cita-a de acordo com os comentários de Teofrasto : “Os que colhem a<br />

mandrágora têm o cui<strong>da</strong>do de não receber vento pela frente. Eles escrevem três círculos em<br />

torno dela, com uma espa<strong>da</strong>, depois tiram <strong>da</strong> terra, voltando as costas para o sol poente...A<br />

raiz dessa planta, tritura<strong>da</strong> com o óleo de rosas e vinho, cura as inflamações e as dores dos<br />

olhos” (Hist. Nat. 25, 94, em LANS 6, 164). Na medicina antiga, as suas folhas fervi<strong>da</strong>s com<br />

leite eram aplica<strong>da</strong>s sobre as feri<strong>da</strong>s; a raiz fresca se usava como purgante; mistura<strong>da</strong> ao<br />

álcool, administrava-se oralmente para estimular o sono ou como anestesia em caso de<br />

dores reumáticas, ataques convulsivos e melancolia. No tempo de Plínio , era emprega<strong>da</strong><br />

como anestésico, oferecia-se um pe<strong>da</strong>ço ao paciente para que pudesse comê-la antes de<br />

realizar uma cirurgia. Platão cita o preparo <strong>da</strong> mandrágora como fármaco entorpecente ao<br />

descrever um motim: “algumas vezes”, quando marinheiros disputam pela influência, tendo<br />

em vista o favor do dono do navio, “se não eles que o convencem, mas sim outros, matamnos,<br />

a esses, ou atiram-nos bor<strong>da</strong> a fora;reduzem à impotência o ver<strong>da</strong>deiro dono <strong>da</strong><br />

mandrágora, à embriaguez ou a qualquer outro meio” ( A República,488c). Dizia-se que a<br />

colheita <strong>da</strong> mandrágora exigia providências profiláticas, pois a planta não devia ser toca<strong>da</strong>.<br />

A raiz era arranca<strong>da</strong> em noite de luar, com uma cor<strong>da</strong> ata<strong>da</strong> a um cachorro preto, após um<br />

ritual e orações. Segundo a crença, se colhi<strong>da</strong> sem precauções, a mandrágora soltava um<br />

grito terrível, capaz de matar ou enlouquecer quem o ouvisse. Se obti<strong>da</strong> à maneira ritual,<br />

contudo, a raiz possuía poderes mágicos e servia para tornar fecun<strong>da</strong>s as mulheres estéreis.<br />

Também é cita<strong>da</strong> nos textos bíblicos: Gênesis 30:14-15, Raquel, esposa de Jacó, negocia a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de usufruir os direitos conjugais de seu marido por uma noite com sua irmã<br />

Lia, em troca de alguns frutos de mandrágoras. Dessa relação conturba<strong>da</strong> nasceu Isaque.<br />

Também, numa cena de romântico erotismo do Cântico dos Cânticos, a ama<strong>da</strong> afirma<br />

reciproci<strong>da</strong>de de seu amor levando seu amante para pernoitar no campo onde as<br />

mandrágoras exalam seu perfume” (7:14). Nos tempos de Cristo, a compri<strong>da</strong> raiz castanha<br />

<strong>da</strong> mandrágora era usa<strong>da</strong> como anestésico nas operações.<br />

A mandrágora é interessante porque lembra tanto a Prometheica, a partir <strong>da</strong> descrição<br />

dos Argonautas, quanto a Moly, <strong>da</strong> Odisséia (a que Hermes deu a Odisseu para que não<br />

sofresse os efeitos <strong>da</strong> magia de Circe). Medéia dá a Jasão, em Os Argonautas, para que este<br />

pudesse se livrar dos touros e dos gigantes. Temos nela a simbologia de duas outras plantas<br />

que na antigui<strong>da</strong>de vão ser usa<strong>da</strong>s durante to<strong>da</strong> a literatura com várias funções, dentre elas, a<br />

de proteção, ou seja, na Moly foi um antídoto para proteger Odisseu <strong>da</strong> magia de Circe; em<br />

148


Os Argonautas, também, como proteção mágica e para <strong>da</strong>r força, e por fim, na Bíblia como<br />

cura para a infertili<strong>da</strong>de, no exemplo de Raquel que pede a sua irmã que lhe desse as<br />

mandrágoras para que pudesse adquirir filhos. Como se a planta fosse uma espécie de<br />

estimulante sexual: “ Vem deitar comigo junto as mandrágoras”.<br />

Acredita-se que as raízes tuberosas <strong>da</strong>s orquídeas (semelhantes a testículos<br />

humanos) no preparo de poções mágicas: as frescas para promover o amor, as secas para<br />

provocar paixões.<br />

Os herbalistas do século XVII chamavam-nas de Satírias, em referência ao deus Sátyros, <strong>da</strong><br />

mitologia grega, habitante <strong>da</strong>s florestas, que, segundo os pagãos, tinha chifres curtos e pés e<br />

pernas de bode. Na língua portuguesa, a palavra sátiro também é sinônimo de devasso,<br />

libidinoso. De acordo com a len<strong>da</strong>, Orchis, filho de um sátiro com uma nínfa, foi<br />

assassinado pelas Bacantes, sacerdotisas de Baco, deus do vinho. Graças às preces de seu<br />

pai, Orchis teria sido transformado em uma flor, que agora leva o seu nome: orquídea.<br />

Desde a I<strong>da</strong>de Média, as orquídeas são populares por suas supostas proprie<strong>da</strong>des<br />

afrodisíacas. Preparados especiais utilizando as raízes tuberosas e folhas carnosas de<br />

algumas espécies foram ti<strong>da</strong>s como estimulantes sexuais e até mesmo capazes de auxiliar na<br />

produção de bebês do sexo masculino. Tornaram-se assim, sinônimo de fertili<strong>da</strong>de e<br />

virili<strong>da</strong>de.<br />

A orquídea também é um bom exemplo de planta que estimulava o prazer na<br />

antigui<strong>da</strong>de. Segundo Maria Regina Candido:“ O conhecimento <strong>da</strong>s ervas atendia tanto as<br />

mulheres casa<strong>da</strong>s quantos às prostitutas (hetairas) que necessitavam saber que o efeito de<br />

folhas <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s mentas era muito útil para os problemas menstruais; as dores de varizes<br />

149


eram ameniza<strong>da</strong>s com fricção de folhas de hera; a cebola selvagem e o alho triturados com<br />

óleos e vinho, tornavam-se eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal; a erva<br />

artemísia atuava sobre o ovário e plantas como a belladona podiam ser usa<strong>da</strong>s como<br />

calmante, mas que em porções concentra<strong>da</strong>s tornavam-se abortivas; já as ervas <strong>da</strong> família do<br />

ópium eram eficazes como analgésicos para as mulheres em trabalho de parto. Um episódio<br />

desta natureza pode ser observado na citação <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> (XIV,198) quando uma mulher<br />

solicita à deusa Afrodite que a encante com o desejo e o feitiço do amor para que ela possa<br />

usar deste ardil com seu amado. Acreditamos que esta mulher tenha sido aconselha<strong>da</strong> a usar<br />

as folhas de orquídeas tritura<strong>da</strong>s com o vinho, um eficaz medicamento contra a impotência<br />

masculina- o termo orchis significa testículo em grego – e, no caso <strong>da</strong>s porções / kukeon e<br />

filtros mágicos, ao serem ingeridos pelo ser amado, podiam ter como resultado a sua morte.<br />

To<strong>da</strong>s as plantas de uma maneira geral, nascem do sangue, pois este é um elemento<br />

muito importante na magia, a exemplo de sua concepção, a Prometheica nasceu do sangue de<br />

Prometeu, Jacinto nasceu do sangue de Jacinto, e como acabamos de ver a orquídea que<br />

nasceu do sangue de Orqueu. As plantas sempre são símbolos de eterni<strong>da</strong>de e memória,<br />

como se fossem uma espécie de compensação à morte.<br />

4. Pátroco e Aquiles<br />

Saindo um pouco <strong>da</strong> magia, entramos na parte médica. Como primeiro exemplo de algo a<br />

ser apreendido, temos o relato de Aquiles e Pátroco :<br />

Salva-me, leva-me para a negra nau,<br />

Tira a flecha de minha coxa, lava o escuro sangue com água quente<br />

E espalha por cima favoráveis phármaka, bons, que segundo dizem<br />

Ficaste conhecendo por intermédio de Aquiles, o qual adquiriu<br />

Seus conhecimentos de Quiron, o mais virtuoso dos centauros.<br />

Os médicos Po<strong>da</strong>lirio e Macoaonte, creio que um está ferido nas ten<strong>da</strong>s,<br />

Precisando ele próprio de um bom médico, e<br />

O outro enfrenta o colérico Ares na planície troiana.<br />

(Ilía<strong>da</strong>, XI, 828-836)<br />

A partir desse trecho <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, considera<strong>da</strong> um marco <strong>da</strong> literatura grega, encontramos os<br />

phármaka não sendo mais utilizados para a magia como a mandrágora e a orquídea, no<br />

exemplo de Apolônio, onde eram utilizados para fins outros que não sejam curativos e<br />

terapêuticos. Nessa epopéia os phármaka vão ser utilizados para curar. Homero salienta, nos<br />

versos citados, que Pátroco está usando os ensinamentos que aprendeu de Aquiles e este os<br />

que adquiriu com seu mestre Quíron, ambos não são médicos, porém possuem<br />

conhecimentos medicinais.<br />

150


Nesse quadro os dois estão armados e Pátroclo, quebrando o paradigma de alguns filmes, que<br />

o mostra sendo mais novo do que Aquiles é pintado com barba, símbolo <strong>da</strong> maturi<strong>da</strong>de. Fica<br />

claro também que Aquiles está cui<strong>da</strong>ndo de um ferimento de Pátroco.<br />

5. JURAMENTO DE HIPÓCRATES<br />

“Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento,<br />

nunca para causar <strong>da</strong>no ou mal a alguém. A ninguém <strong>da</strong>rei por comprazer, nem remédio<br />

mortal nem um conselho que induza a per<strong>da</strong>. Do mesmo modo não <strong>da</strong>rei a nenhuma mulher<br />

uma substância abortiva. Conservarei imacula<strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> e minha arte.”<br />

O termo phármaka significa uma droga que pode tanto curar quanto matar. No trecho:<br />

“...nunca causar <strong>da</strong>no ou mal a alguém”, Hipócrates está dizendo que um médico, mesmo<br />

tendo o conhecimento desta droga, só pode utilizá-la com o intuito de curar e nunca para<br />

matar, ao contrário <strong>da</strong> magia que permite ambas as práticas. Segundo Hipócrates, a<br />

responsabili<strong>da</strong>de não está apenas em não ter essa postura em interromper uma vi<strong>da</strong>, mas<br />

151


também em não ensinar a maneira de fazer isso: “. Do mesmo modo não <strong>da</strong>rei a nenhuma<br />

mulher uma substância abortiva.”<br />

Em nossa pesquisa procuramos ver como se estabelecia a relação dessa mulher , que de<br />

uma certa maneira tinha um tratamento diferenciado na Grécia por conta de sua cultura.<br />

Sabemos perfeitamente pelos textos que lemos que o INFANTICÍDIO existia na Grécia,<br />

parece redun<strong>da</strong>nte o fato de não fornecer uma droga abortiva, mas ao mesmo tempo, praticar<br />

a morte <strong>da</strong><strong>da</strong> voluntariamente a uma criança.<br />

A responsabili<strong>da</strong>de, nesse caso, não é mais do médico, Hipócrates reconhece que existem<br />

essas substâncias que ele se nega a utilizar, porque compete a ele como médico não fornecêla<br />

a alguém. Da mesma forma que o homem que tinha problema com a sua virili<strong>da</strong>de, como<br />

no exemplo de Egeu que procura Medéia para ajudá-lo, como também a mandrágora e a<br />

orquídea utiliza<strong>da</strong>s dentro dessa morali<strong>da</strong>de grega com o intuito de causar prazer, temos por<br />

outro lado a medicina que contrapõe a tudo isso na afirmação:<br />

“Conservarei imacula<strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> e minha arte.”<br />

6. LEIS DE PLATÃO<br />

Na época de Platão já havia todo esse problema para se tratar dessa relação <strong>da</strong>s plantas<br />

com a magia, ele diz que é difícil convencer uma pessoa, não sendo ela vítima dessa prática,<br />

quando ela a encontra na porta de sua casa e passa a sofrer com alguma doença, a partir de<br />

então imediatamente ela procura um feiticeiro para que lhe faça um antídoto. Na ver<strong>da</strong>de,<br />

Platão afirma que situações como essa, podem ser questiona<strong>da</strong>s apenas quando a pessoa não<br />

sofria com nenhuma enfermi<strong>da</strong>de e vem a morrer de repente, então se acredita que ela foi<br />

vítima de encantamento. Se for comprovado que alguém utilizou magia, esta recebe a pena<br />

capital e é condena<strong>da</strong> a morte. Podemos citar dois exemplos citados por Maria Regina<br />

Candido, que são a hetaira Frinea de Thespis e a sacerdotisa de Teoris de Lemos, duas<br />

mulheres estrangeiras que foram acusa<strong>da</strong>s de produzir phármaka que forma condena<strong>da</strong>s a<br />

morte por conta disso, pois existia to<strong>da</strong> uma lei que protegia a ci<strong>da</strong>de quanto a esse uso, se eu tenho<br />

a medicina e a religião por que vou usar a magia?<br />

Quanto aos malefícios que uns podem causar aos outros por meio de<br />

drogas já tratamos dos de conseqüências letais;mas ain<strong>da</strong> não falamos<br />

dos incômodos provocados intencionalmente e com premeditação por<br />

meio de bebi<strong>da</strong>s e alimentos ou com ungüentos. O difícil na presente<br />

exposição é que há no gênero humano duas espécies de envenenamento:<br />

uma é a que acabamos de nos referir, e que consiste em causar <strong>da</strong>no ao<br />

corpo pela ação natural de outros corpos ; a outra, por meio de<br />

sortilégios, encantamentos e o que se denomina ligadura, chega a<br />

persuadir aos que querem causar <strong>da</strong>nos a terceiros que o conseguirão<br />

com tal recurso, como também convence a estes últimos que ninguém lhes<br />

pode ocasionar tanto mal como as pessoas conhecedoras de artes<br />

mágicas. O que possa haver de ver<strong>da</strong>deiro em tudo isso não é fácil<br />

conhecer, nem depois de sabido, deixar aceitável para ninguém; <strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

desconfiança reinante nos espíritos a respeito de tais assuntos, não vale a<br />

pena procurar conhecê-los, sempre que encontrarem na porta de casa<br />

152


onequinhos de cera, ou em encruzilha<strong>da</strong>s, ou talvez mesmo sobre a<br />

sepultura de seus antepassados, de que não devem <strong>da</strong>r a menor<br />

importância a essas práticas, pois acerca de tudo isto ninguém tem<br />

opinião forma<strong>da</strong>.<br />

Platão, em Leis XI, 932e – 933b<br />

Por se tratar de uma pesquisa em fase inicial, apresentamos essas informações com o<br />

objetivo de compartilhar um tema muito interessante e que estabelece um link, não só com a<br />

área de humanas, mas também com a área <strong>da</strong> medicina. Nossa proposta, portanto, foi trazer<br />

alguns questionamentos quanto ao desuso de algumas práticas que funcionavam na<br />

antigui<strong>da</strong>de. No decorrer de nossa pesquisa vamos fazer a coletânea e todo o resultado será<br />

divulgado no site “Farol de Alexandria”, coordenado pela professora Fernan<strong>da</strong> Lemos de<br />

Lima.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

WILSON, A. Ribeiro Jr.. Citações e referências a documentos eletrônicos. Online:<br />

disponível na Internet via http: / / HTUwww.greciantiga.org.br/mat/hipócratesUTH de cós. Arquivo<br />

consultado em 15 de setembro de 2008.<br />

HIPÓCRATES. UAforismosU: científicos griegos – Tomo I<br />

PLATÃO. UA RepúblicaU. Texto integral. São Paulo:Editora Martin Claret,2004.<br />

CANDIDO, Maria Regina. UO Saber Mágico de MedéiaU - The Magical Knowledge of Medea.<br />

Revista Mirabilia I.<br />

NASCIMENTO, Dulcileide Virgínio do. UA Téchne Mágica de Medéia no Canto Terceiro de<br />

Os Argonautas de Apolônio de Rodes.URio de Janeiro: UFRJ,2007.<br />

153


Um vitupério a Cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca<br />

(ms. 2998 BGUC)<br />

Luís Fernando Campos D’Arcadia<br />

Graduação em Letras, UNESP, Facul<strong>da</strong>de de Ciência e Letras de Assis<br />

Antônio <strong>da</strong> Fonseca Soares (1631 - 1682) é natural <strong>da</strong> Vidigueira, em<br />

Portugal. É , entretanto, mais conhecido e estu<strong>da</strong>do como Frei Antonio <strong>da</strong>s Chagas,<br />

pregador português autor de Sermões Genuínos publicados em 1690, e <strong>da</strong>s Cartas<br />

Espirituais (1ª parte, publica<strong>da</strong> em 1684; 2ª parte em 1687) (cf. MORAES, 2007).<br />

Os registros biográficos foram compilados por M. Rodrigues Lapa, no<br />

prefácio à sua edição <strong>da</strong>s Cartas Espituais (1957). Eles indicam uma vi<strong>da</strong> cheia de<br />

aventuras, alternando-se períodos de pie<strong>da</strong>de religiosa e desregramento de costumes; na<br />

juventude inicia uma carreira militar bem sucedi<strong>da</strong>, nas guerras de Restauração<br />

portuguesa, e nesse período, destemperado, chega a cometer um assassinato. Passa<br />

então um breve período no Brasil, de onde retorna e, devido a amizades importantes,<br />

inocenta-se do crime. Em 1661, consegue a patente de Capitão do terço de Setúbal;<br />

insiste, depois, em entrar para a Ordem de São Francisco e toma o hábito de Frei, com o<br />

nome religioso de Antônio <strong>da</strong>s Chagas.<br />

A poesia de Fonseca, no corpus de poemas que estu<strong>da</strong>mos, o manuscrito<br />

2998 <strong>da</strong> Biblioteca Geral de Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, é de expressão lírica, em grande<br />

parte erótica. Provavelmente composta durante a carreira militar, possui um estilo<br />

galante e engenhoso característico <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de do século XVII; para compreendê-la é<br />

necessário, também, observar que surge de uma prática de escrita autoriza<strong>da</strong> pelas<br />

disciplinas de Po<strong>ética</strong> e Retórica, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s em prescrições que remontam à<br />

Antigüi<strong>da</strong>de Greco-Romana <strong>da</strong> qual se destacam como norma Aristóteles e Horácio.<br />

Já que se falou de uma dívi<strong>da</strong> aos gregos e romanos, pode-se acentuá-la no<br />

contexto do romance de Fonseca que analisaremos durante este trabalho, o romance 11,<br />

Amor por esta vos juroTPF<br />

1<br />

FPT. Aqui,<br />

a mitologia greco-latina tem função importante, já que<br />

se trata de um vitupério ao Amor, alegorização do sentimento, a qual se remete à figura<br />

do deus, cujo nome latino é Cupido, grego Eros. A alegoria é a principal forma,<br />

conforme Hansen (2006: 37), do uso <strong>da</strong> figura de deuses pagãos no contexto retórico,<br />

no sentido em que há a “concretização de abstrações, tornando-as mais ‘fáceis’” por<br />

meio <strong>da</strong> “personificação de facul<strong>da</strong>des humanas ou de princípios morais e metafísicos”.<br />

A mitologia, nas literaturas produzi<strong>da</strong>s após o século XVI, está presente como, nas<br />

palavras de Guinzburg, (2001: 123) “um código cultural e estilisticamente elevado”,<br />

sendo que era utiliza<strong>da</strong> pelos artistas como “um repertório já pronto de temas e formas,<br />

imediatamente decifráveis” por uma “clientela” determina<strong>da</strong>: a elite cortesã. É a partir<br />

dessa função alegórica que se deve compreender a presença do Amor vituperado na<br />

obra Fonseca. O deus do amor é pintado como um tipo vicioso, um intemperado,<br />

compulsivamente tecendo ardis à persona po<strong>ética</strong>.<br />

A eficácia do vitupério ao Amor é então construí<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> utilização de<br />

tópicas do gênero demonstrativo, como as <strong>da</strong> origem e i<strong>da</strong>de. Nesse poema também se<br />

pode ler uma elocução orna<strong>da</strong> ao estilo conceptista, adequa<strong>da</strong>, entretanto, ao decoro <strong>da</strong><br />

forma poemática do romance, a qual, segundo Chociay (1993: 95), tem a origem na<br />

poesia popular; não obstante orna<strong>da</strong> e agu<strong>da</strong>, os romances de Fonseca possuem uma<br />

1<br />

TP PT Esse romance é parte do corpus transcrito no âmbito dos trabalhos do projeto temático financiado pela<br />

FAPESP intitulado Estudos Filológicos: Textos literários e históricos em língua portuguesa nos séculos<br />

XVII e XVIII. Inicialmente na forma de uma edição diplomático-interpretativa, teve uma atualização<br />

ortográfica para os fins dessa comunicação.<br />

154


musicali<strong>da</strong>de galante, o que se reflete no uso de versos redondilhos e do uso <strong>da</strong> rima<br />

toante, de tema vocálico constante.<br />

Empreenderemos aqui uma leitura do referido romance, procurando<br />

esclarecer os aspectos retóricos que constroem uma leitura seiscentista de uma figura <strong>da</strong><br />

Antigui<strong>da</strong>de.<br />

Fonseca inicia o romance com um desafio ao ‘Amor’, que aliás lembra a<br />

origem popular <strong>da</strong> forma poemática, onde são frequentes os ‘duelos’ improvisados.<br />

Propõe-se o vitupério que se desenvolverá ao longo do poema:<br />

Amor por esta vos juro,<br />

e por outras tantas mil,<br />

que eu saiba zombar de vós<br />

Como vós zombais de mim<br />

Após o desafio do começo, o Amor é acusado de “embusteiro”. Esse epíteto,<br />

aliás, está presente na caracterização greco-latina <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des liga<strong>da</strong>s ao amor,<br />

nota<strong>da</strong>mente Afrodite (RAGUSA, 2005: 162); a autora lembra que a tradição remonta<br />

ao livro III <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, onde a deusa do amor retira Páris de um duelo para que ele se<br />

encontre com Helena, lançando mão, para isso, do disfarce e <strong>da</strong> dissimulação. Safo,<br />

afirmando a tradição do epíteto na tradição <strong>da</strong> lírica, caracteriza Afrodite como ‘tecelã<br />

de ardis’ (RAGUSA, id., ibid.). Amor, sendo divin<strong>da</strong>de/alegoria do mesmo campo de<br />

ação, está sujeito à mesma acusação que a deusa sua mãeTPF<br />

2<br />

FPT; essa<br />

genealogia é explora<strong>da</strong><br />

por Fonseca, como comentamos abaixo.<br />

Após a descrição do embuste, o eu-lírico apresenta-se como ‘sol<strong>da</strong>do’, talvez<br />

uma referência autobiográfica, mas que, ain<strong>da</strong>, usado retoricamente, serve como<br />

introdução à metáfora do amor como guerra, e à caracterização do eu-lírico conforme a<br />

prudência do homem de corte do século XVII. Hansen (1989: 172), ao comentar a<br />

caracterização <strong>da</strong> persona po<strong>ética</strong> na sátira barroca, escreve que “(...) a persona se<br />

constrói, (...) como uma convenção semiótica que ordena e distribui convenções (...)”,<br />

de modo que “(...) no poema associa-se o conceito cultural de ver<strong>da</strong>de (o direito, a <strong>ética</strong><br />

e a religião) com o ponto de vista único, estabelecido como válido, <strong>da</strong> persona que<br />

partilha nessa ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s classes positivas – branco, fi<strong>da</strong>lgo, católico, honesto, livre,<br />

masculino (...)”. Esses são os paradigmas a partir dos quais a persona constrói sua<br />

personagem, o ‘sol<strong>da</strong>do velho’, fi<strong>da</strong>lgo e honesto, cuja virtude é desvirtua<strong>da</strong> pelo vício<br />

do Amor. Leiamos o trecho:<br />

2<br />

Com repetidos enganos<br />

me trouxeste até aqui<br />

preso nas duras masmorras<br />

de vosso embuste sutil<br />

Como bisonho as bandeiras<br />

de vossas bandeiras segui<br />

o pago que vim a ter<br />

é este estado a quem vim<br />

Depois de sol<strong>da</strong>do velho<br />

quando aposentar me quis<br />

os prêmios que em vós achais<br />

agravos são que sentis<br />

Muito me enganei convosco,<br />

TP PT Para a genealogia incerta do deus Eros conferir MAZEL, (1988: 179) que indica a filiação de Afrodite<br />

como uma <strong>da</strong>s existentes na tradição.<br />

155


Mas que crês Reis adverti<br />

Onde an<strong>da</strong>r-se ao agradecer<br />

nas Espal<strong>da</strong>s do servir<br />

Vós sois Rei! Cá para trás<br />

vós sois Deus! por sonhos sim<br />

que os Reis nunca são ingratos<br />

nem Deus costuma mentir<br />

Desse nome de Monarca<br />

bem vos podeis despedir<br />

não vos tenhais por real<br />

que não valeis hum ceitil<br />

Real embusteiro sois,<br />

um traidor de almas vil<br />

estafeta <strong>da</strong>s desgraças,<br />

<strong>da</strong>s más novas boletim.<br />

A metáfora amor-guerra é desenvolvi<strong>da</strong> como uma caracterização de Cupido<br />

como Rei, que submete o eu-lírico às suas “bandeiras”. Ela contribui na construção do<br />

vitupério pois o caráter de Cupido, que é desqualificado como nobre, seguindo o topos<br />

segundo o qual a nobreza de sangue deve seguir-se à nobreza de alma (CURTIUS,<br />

1996: 237). O Amor não é rei, mas sim um ‘estafeta’, ‘boletim’, funções, no exército<br />

português do século XVII, não reserva<strong>da</strong>s a nobres.<br />

A origem do Amor é em segui<strong>da</strong> invoca<strong>da</strong>. Tanto o caráter do Amor como<br />

deus quanto como rei é refutado pela genealogia descrita por Fonseca:<br />

Filho de Marte, e <strong>da</strong> Vênus<br />

vossa prosápia aplaudis,<br />

mui prezadinho de ter<br />

pai guerreiro, e mãe gentil<br />

Vê dela quem Vênus foi,<br />

e quem foi Marte adverti<br />

ela uma puta safa<strong>da</strong><br />

Ele hum pobre Espa<strong>da</strong>chim<br />

Entre uns cornos vos geraram<br />

e quando mais presumis<br />

tendes por princípio um corno<br />

de vossa fama clarim<br />

Esse embate guerra-amor encontra eco na apresentação <strong>da</strong> origem do Amor,<br />

filho do adultério que uniu os deuses Marte e Vênus, que possui uma célebre descrição<br />

no livro IV <strong>da</strong>s Metamorfoses de Ovídio. Nesse resgate <strong>da</strong> tópica <strong>da</strong> origem, o insulto<br />

‘corno’ é especialmente grave se considerarmos a socie<strong>da</strong>de cristã e cortesã do século<br />

XVII, sendo que mescla aspectos como “(...) o amor contra naturam, incontinência fora<br />

do casamento, a limpeza de sangue, a confusão <strong>da</strong>s descendências (...)” (HANSEN,<br />

1989: 341); ‘corno’ é triplamente ofensivo, articulando ain<strong>da</strong> a mulher como ‘puta’ e o<br />

filho como ‘bastardo’. Note-se, neste trecho, o destaque que Fonseca dá ao ‘corno’, pois<br />

ain<strong>da</strong> constrói uma metáfora, comparando o chifre a um clarim, objeto ligado<br />

semanticamente ao universo <strong>da</strong> nobreza, mas tendo aqui seu valor invertido para os fins<br />

de vitupério. A duali<strong>da</strong>de visual do ‘corno’, é muito cara à literatura seiscentista, a qual<br />

é centra<strong>da</strong> na noção do ‘conceito’, assim definido por Adma Muhana:<br />

O conceito, este nó de palavra e imagem, é a própria idéia tal como<br />

expressa<strong>da</strong> por Cícero, numa conciliação aristotélico-platônica. É idéia<br />

156


que, na mente, imita a forma (eidos) <strong>da</strong>s coisas – sua essência e seu<br />

desenho. Aqui [no tratado de Almei<strong>da</strong>] – e em todo o Seicentos – o<br />

conceito é a imagem <strong>da</strong>s coisas, seu retrato genérico na alma, em<br />

relação ao qual as palavras são como imagens dessas imagens – porque<br />

as palavras são símbolos dos conceitos na alma, como recor<strong>da</strong>m todos<br />

os leitores do De Interpretatione (I, 16a3), e são imitações, como<br />

autoriza a Retórica (III, 1, 1404a21). É nesse sentido que o conceito<br />

aparece como uma idéia-imagem, composta de forma e matéria, não<br />

uma abstração. (2002: 52)<br />

Após censurar, lançando mão de vários recursos engenhosos, o Amor pela<br />

sua origem, a persona po<strong>ética</strong> constrói seu próprio caráter ‘envergonhado’ diante do<br />

próprio vício. Aqui parece fazer uma referência clara ao modelo de ‘caráter<br />

envergonhado’ fixado pela retórica, recuperando especialmente a Arte Retórica de<br />

Aristóteles, o qual escreve que “o pudor está nos olhos” ([19--]: 113).<br />

Tão envergonhado estou<br />

depois que os olhos abri,<br />

que antes ser cego tomara<br />

do que tanta injuria vir<br />

[Oh quem numca em sej puzera<br />

vossa tirana ser uis]<br />

não por ser Livre, por ser<br />

mais advertido isto sim<br />

Mal hajam meus olhos próprios<br />

portas por donde meti<br />

<strong>da</strong>s portas adentro d’alma<br />

meu veneno, e vosso ardil<br />

Mal haja meu sentimento,<br />

pois com tão pouco [deslis]<br />

a vosso império prostrado<br />

tantas vezes me rendi<br />

Consoante com o aspecto visual do vício, segue-se uma descrição <strong>da</strong> razão<br />

do erro, ornando o discurso com uma descrição de uma mulher, por meio <strong>da</strong> evidentia,<br />

defini<strong>da</strong> por Hansen como “descrição minuciosa e viva de um objeto pela enumeração<br />

de suas partes sensíveis, reais ou inventa<strong>da</strong>s pela fantasia po<strong>ética</strong>.” (1989: 264),<br />

procedimento muito comum na literatura dos seiscentos. É notável ain<strong>da</strong>, nessa<br />

descrição, o uso <strong>da</strong>s metáforas cristaliza<strong>da</strong>s (‘jasmins’, ‘zafir’, ‘marfim’, ‘cravo’),<br />

evidenciando a natureza lúdica e convencional <strong>da</strong> literatura cortesã seiscentistas. Tratase<br />

de um exercício de linguagem centrado na metáfora, o qual acontece, segundo<br />

Hansen, “por três espécies de signos e de relações: por simples convenção; por certa<br />

conexão de inclusão ou sinédoque entre a coisa significante e a significa<strong>da</strong>; e por<br />

3<br />

semelhançaTPF FPT entre elas.” (1989: 236 e ss.) Esses tipos de metáforas características do<br />

conceptismo engenhoso são constantemente retomado por Fonseca em nosso corpus.<br />

Metáforas tais quais os olhos como astros, e partes <strong>da</strong> mulher como flores, são<br />

freqüentes, evidenciando um processo metonímico do objeto pelos seus predicados (o<br />

cravo pela cor avermelha<strong>da</strong>, o marfim pela cor branca, etc.). Examinemos o trecho <strong>da</strong><br />

descrição:<br />

3<br />

TP PT Essa relação de semelhança é, como escreve o mesmo autor (p. 237), é “aristotelicamente determina<strong>da</strong>”<br />

operando através <strong>da</strong> aproximação de conceitos de acordo com analogias entre as categorias de predicação<br />

próprias ao sistema filosófico do Estagirita.<br />

157


Desculpa teve meu erro<br />

Gozando em sorte feliz<br />

um só cravo em dois beiçinhos<br />

em duas faces dois jasmins.<br />

Desculpa tive é ver<strong>da</strong>de<br />

em dois olhos, que o zafir<br />

desce globo em astros vence<br />

em seu mais alto zenite<br />

Desculpa tive em duas mãos<br />

pois delas pude advertir<br />

que formara a natureza<br />

dois brinquinhos de marfim<br />

Em dois pés tão pequeninos,<br />

[que a se poderem uuir]<br />

não pudera um só firmar<br />

os de outra Dama gentil.<br />

Em duas graças que foram<br />

de meu gosto perrexil<br />

que me souberam prender<br />

bem como a vontade abrir<br />

Considerando a racionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> corte, inerente ao período de Fonseca, e a<br />

prática do procedimento metafórico, Hansen (1989: 235) define a noção de conceptismo<br />

engenhoso, no qual a metáfora é “opera<strong>da</strong> à maneira de um pensamento revestido como<br />

imagem antes <strong>da</strong> expressão” e se torna “convenção artificiosa” que “perde o mundo”. A<br />

metáfora barroca com apelo visual, marca<strong>da</strong>mente pictórica, é chama<strong>da</strong>, em termos <strong>da</strong><br />

época, de “definição ilustra<strong>da</strong>”. Essa noção remete ao De oratore de Cícero, no qual o<br />

orador latino (aliás, como também fez Quintiliano) destaca o sentido <strong>da</strong> visão como a<br />

melhor fonte para a criação de metáforas para mover os afetos do espectador:<br />

4<br />

Mas mesmo quando há grande número de termos próprios, não<br />

emprestados, as pessoas geralmente se agra<strong>da</strong>m mais com metáforas<br />

bem escolhi<strong>da</strong>s. Imagino que isso acontece porque é marca do gênio a<br />

expressões relativamente óbvias, fáceis, emprestá-las de assuntos pouco<br />

próximos; or porque o ouvinte é levado a uma cadeia de reflexões a<br />

qual o leva mais longe do que ele iria normalmente, mesmo sem sair do<br />

caminho: isso é extremamente agradável: ou isso se deve à expressão<br />

apresentar simultaneamente o objeto e sua imagem inteira; ou porque<br />

to<strong>da</strong>s as metáforas, pelo menos aquelas melhor escolhi<strong>da</strong>s, aplicam-se<br />

sobre os sentidos, especialmente a visão, que, de todos os sentidos, é o<br />

mais excelente. (...) as metáfors toma<strong>da</strong>s do sentido <strong>da</strong> visão são muito<br />

mais impressionantes, porque colocam no olhar <strong>da</strong> imaginação objetos<br />

que, de outro modo, seriam impossíveis de compreender ou ver (...).<br />

Todo objeto do qual a semelhança pode ser extraí<strong>da</strong>, pois ela pode ser<br />

extraí<strong>da</strong> de todo objeto, se aplicado metaforicamente, uma palavra<br />

4<br />

toma<strong>da</strong> dele pode ilustrar o discurso.TPF FPT (p. 274, grifos e tradução<br />

nossos)<br />

TP PT But even when there is the greatest copiousness of proper, unborrowed expressions, people are<br />

generally best pleased with well-chosen metaphors. I imagine that this happens from its being a kind of a<br />

mark of genius to slight obvious, easy expressions, and to borrow them from far-fetched subjects; or<br />

because the hearer is drawn into a train of reflection, which carries him further than he should otherwise<br />

go, and yet not out of his way: this is extremely agreable: or it is owing to the expression presenting, at<br />

the same time, the object and the whole image; or because all metaphors, at least such of them as are best<br />

158


Está clara nesse trecho a predileção de Cícero pelo uso do procedimento<br />

metafórico, e, além disso, pelo uso de metáforas que priviligiem o sentido <strong>da</strong> visão e<br />

‘ilustrem o discurso’; a importância de metáforas pictóricas ain<strong>da</strong> está liga<strong>da</strong> às funções<br />

de deleitar e mover o leitor. Somando-se a isso, no caso do romance 11, trata-se de uma<br />

prova usa<strong>da</strong> por Fonseca, como amplificatio, que concorre para inocentá-lo de um erro.<br />

No trecho seguinte, vê-se completo o binômio, invertido, devido à<br />

vituperação, denominado por Curtius de sapientia et fortitudo (1996: 236) participante<br />

do repertório retórico de caracterização <strong>da</strong> nobreza. Após caracterizar as armas de<br />

Cupido como baixas (‘estafeta’, filho de um ‘pobre espa<strong>da</strong>chim’), Fonseca inverte as<br />

‘letras’, sendo o ‘Latim’ citado como participante <strong>da</strong> dissimulação:<br />

Tudo isto são travessuras<br />

de vossa i<strong>da</strong>de pueril<br />

que ain<strong>da</strong> que Rapaz vos pintem<br />

já sabeis mui bem Latim<br />

São mal<strong>da</strong>des de um traidor,<br />

ambições de um Lascarim,<br />

ofensas de um desleal<br />

tiranias de um caçis<br />

Cui<strong>da</strong>is que as almas prendeis,<br />

mas até nisto mentis<br />

que a beleza é o alcaide,<br />

e vós o seu beleguimTPF<br />

Pois vos conheço embusteiro<br />

bem vos podeis despedir,<br />

que possam vossos afagos<br />

mais que os golpes que senti<br />

Aqui o ‘Latim’ tem ain<strong>da</strong> outra função. A dissimulação de Cupido é também<br />

representa<strong>da</strong> no âmbito de outra tópica, a <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de. Segundo Fonseca, a juventude com a<br />

qual cupido é ordinariamente pintado serve de disfarce a seu caráter vicioso, que só é<br />

verossímil à experiência de um velho.<br />

A tópica <strong>da</strong> nação é usa<strong>da</strong> para caracterizar o Amor, pois ele é comparado a<br />

vários tipos como “Lascarim” (marinheiro de baixa extração, usualmente <strong>da</strong>s colônias<br />

do império), “caçis” (sacerdote cristão ‘oriental’, referindo-se ao cisma <strong>da</strong> Igreja<br />

Ortodoxa). Essa caracterização de estirpe baixa ain<strong>da</strong> acontece com ‘beleguim’, que no<br />

sistema político português de então era o nome <strong>da</strong> função subordina<strong>da</strong> ao alcaide.<br />

Fonseca arremata o romance com uma exortação para que o deus vá embora,<br />

resumindo o caráter pintado anteriormente; primeiramente como vilão, ‘egoísta’.<br />

Não quero na<strong>da</strong> convosco<br />

Que como vilão Ruim<br />

vosso interesse buscais<br />

chosen, are applied to the senses, especially the seeing, which of all senses is the most exquisite. (...) The<br />

metaphors taken from the sense of seeing are much more striking, because they place in the eye of<br />

imagination objects which otherwise it is impossible for us to see or comprehend. (...) Every object from<br />

which a likeness can be raised, as it may from all objects, if metaphorically applied, one word taken from<br />

it illustrates a discourse. (p. 274, grifo nosso)<br />

5<br />

TP PT Nesse<br />

trecho do manuscrito há uma quadra risca<strong>da</strong> pelo copista, a qual eliminamos por ser claramente<br />

lapso de atenção; transcrevemo-la aqui: Pois uos conheço em busteiro/ bem vos podeis despedir,/ que<br />

como vilaõ roem/ vosso interesse buscais.<br />

159<br />

5<br />

FPT


e em o alcançando fugis<br />

An<strong>da</strong>i menino Nestor,<br />

an<strong>da</strong>is eterno malsim<br />

que nas partes que os tentais<br />

bem mostrais a quem sair;<br />

Buscais por lá quem vos creia<br />

que um filho <strong>da</strong> puta vil<br />

não pode ter boas manhas,<br />

nem quem o segue bom fim<br />

Em segui<strong>da</strong>, com o epíteto de “menino Nestor”, constrói um conceito<br />

paradoxal, fantástico, de um tipo vicioso embusteiro. Nele são identificados o menino e<br />

Nestor, personagem homérica paradigma <strong>da</strong> experiência <strong>da</strong> velhice. Reitera na última<br />

estrofe, a origem ignóbil com o chulo “filho <strong>da</strong> puta”.<br />

Paul Veyne, em sua obra A elegia erótica romana, escreve que a mitologia,<br />

na obra do romano Propércio era “uma ciência diverti<strong>da</strong>, um jogo de pe<strong>da</strong>ntismo entre<br />

iniciados, e este jogo os divertia muito” (p. 180). Ao analisarmos a po<strong>ética</strong> cortesã<br />

seiscentista de Fonseca, observamos que o uso poético <strong>da</strong> mitologia, pelo menos no<br />

âmbito <strong>da</strong> poesia de caráter erótico, não mudou muito; o Amor menino que engana um<br />

sol<strong>da</strong>do velho e experiente, erudito orador e poeta, não deixa de exalar uma leve autoironia,<br />

no contexto de um jogo que envolve referências mitológicas que remetem à<br />

Antigui<strong>da</strong>de e metáforas cristaliza<strong>da</strong>s conheci<strong>da</strong>s no ambiente de leitores <strong>da</strong> corte.<br />

Esperamos ter demonstrado a importância do que permaneceu de vivo <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de,<br />

no que diz respeito à alegorização do sentimento do amor, para a compreensão <strong>da</strong><br />

escrita orna<strong>da</strong> seiscentista de Antonio <strong>da</strong> Fonseca Soares.<br />

Bibliografia:<br />

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Po<strong>ética</strong>. Tradução de Antonio Pinto de<br />

Carvalho. São Paulo: Ediouro, [19-].<br />

CHAGAS, Frei Antonio <strong>da</strong>s Chagas. Cartas Espirituais. Selecção, prefácio e notas<br />

pelo prof. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Livraria Sá <strong>da</strong> Costa, 1957.<br />

CHOCIAY, Rogério. Os Metros do Boca teoria do verso em Gregório de Matos. São<br />

Paulo: Unesp, 1993.<br />

CICERO, M. T. De Oratore or his three dialogues upon the character and<br />

qualifications of an orator. Traduzido para o inglês por William Guthrie. Boston: R. P.<br />

& C. Williams, 1822.<br />

CURTIUS, Ernst Robert. Literatura européia e i<strong>da</strong>de média latina. Tradução Teodoro<br />

Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1996.<br />

HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1989.<br />

_______ . Alegoria. São Paulo, SP: Hedra; Campinas, SP: Editora Unicamp, 2006.<br />

MAZEL, Jacques. As metamorfoses de Eros: o amor na Grécia antiga. Tradução de<br />

Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.<br />

MORAES, Carlos Eduardo Mendes. Fonseca, Chagas ou Ribeiro <strong>da</strong> Costa?. Revista<br />

Philologus, v. 39, p. 7, 2007<br />

MUHANA, Adma. Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia. Traduções latinas de João<br />

Ângelo Oliveira Neto. São Paulo: Edusp/ FAPESP, 2002.<br />

160


RAGUSA, Juliana. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica<br />

de Safo. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2005.<br />

VEYNE, Paul. A elegia erótica romana. Tradução Milton Meira do Nascimento e<br />

Maria <strong>da</strong>s Graças de Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.<br />

161


Resumo:<br />

Copa (A taberneira), um convite ao prazer<br />

Me. Marco Antonio Abrantes de Barros Godoi<br />

Universi<strong>da</strong>de do Estado do Rio de Janeiro<br />

Análise estrutural <strong>da</strong> composição pseudovirgiliana Copa (A Taberneira), poesia<br />

que exalta os prazeres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o luxo em contraste com a tradicional visão de<br />

frugali<strong>da</strong>de romana. Elementos orientais presentes no texto demonstram uma influência<br />

não só espiritual, mas também material vin<strong>da</strong> do Oriente e <strong>da</strong> Grécia.<br />

Introdução:<br />

Neste artigo analisaremos a poesia pseuduvirgiliana Copa (A Taberneira) tendo<br />

em vista que se trata de um texto literário que reflete uma nova reali<strong>da</strong>de na cultura<br />

romana, propomos um estudo <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> poesia e também dos pontos culturais que<br />

se manifestam no discurso aí presente. Como se compreende que a literatura é uma<br />

manifestação est<strong>ética</strong> formal e que reflete os elementos culturais de um povo, podemos<br />

apontar nesta manifestação pseudovirgiliana não só o influxo de uma espirituali<strong>da</strong>de<br />

oriental, mas também um influxo de riquezas vin<strong>da</strong>s do Oriente e <strong>da</strong> Grécia que<br />

transformarão a cultura romana. Tanto a Grécia quantos os Reinos Helenísticos do<br />

Oriente, quando conquistados pelos romanos, contribuirão para uma nova visão de<br />

mundo na cultura romana, levando o choque cultural entre o mos maiorum e o “mos<br />

novus”.<br />

Primeiramente apresentaremos a poesia em latim e a sua tradução, em segui<strong>da</strong><br />

faremos a análise de sua estrutura relacionando-a aos elementos discursivos presentes<br />

em seus versos, por fim consideraremos os objetivos do autor, ou melhor, do narrador<br />

<strong>da</strong> poesia.<br />

162


Copa<br />

Copa Surisca, caput Graeca redimita mitella, (1)<br />

Crispum sub crotalo docta movere latus,<br />

Ébria fumosa saltat lasciva taberna,<br />

Ad cubitum raucos excutiens calamos:<br />

“Quid iuvat aestivo defessum pulvere abesse? (5)<br />

Quam potius bibulo decubuisse toro?<br />

Sunt topia et kalybae, cyathi, rosa, tíbia, chor<strong>da</strong>e,<br />

Et triclina umbrisis frigi<strong>da</strong> harundinibus.<br />

En et Maenalio quae garrit dulce sub antro<br />

Rustica pastoris fistula in ore sonat. (10)<br />

Est et vappa, cado nuper defusa picato,<br />

Et strepitans rauco murmure rivus aquae.<br />

Sunt et cum croceo violae de flore corollae<br />

Sertaque purpúrea lutea mixta rosa<br />

Et quae virgíneo libata Achelois ab amne (15)<br />

Lilia vimineis attulit in calathis.<br />

Sunt et caseoli, quos incea fiscina siccat,<br />

Sunt autumnali cerea pruna die<br />

Castaneaeque nuces et suave rubentia mala,<br />

Est hic mun<strong>da</strong> Ceres, est Amor, est Bromius. (20)<br />

163


Sunt et mora cruenta et lentis uva racemis,<br />

Et pendet iunco caeruleus cucumis.<br />

Et tuguri custos, armantus falce saligna,<br />

Sed non et vasto est inguine terribilis.<br />

Huc, Calybita, veni: lasus iam su<strong>da</strong>t asellus; (25)<br />

Parce illi: Vestae delicium est asinus.<br />

Nunc cantu crebro rumpunt arbusta cica<strong>da</strong>e,<br />

Nunc varia in geli<strong>da</strong> sede lacerta latet:<br />

Si sapis, aestivo recubans nunc prolve vitro,<br />

Seu vis crystalli ferre novos calices. (30)<br />

Hic age pampinea fessus requiesce sub umbra,<br />

Et gravidum róseo necte caput strophio,<br />

Formosum tenerae decerpens ora puellae.<br />

A pereat, cui sunt prisca supercilia!<br />

Quid cineri ingrato servas bene olentia serta? (35)<br />

Anne coronato vis lapide ista tegi?<br />

Pone merum et talos. Pereat, qui crastina curat!”<br />

Mors autem velles ‘vivite’, ait, ‘venio’”. (38)<br />

Tradução:<br />

A Taberneira<br />

A taberneira Surisca, tendo a cabeça orna<strong>da</strong> com uma faixa de se<strong>da</strong> grega, (1)<br />

164


Move habilmente, sob as castanheiras egípcias seu corpo flexível,<br />

Ébria, <strong>da</strong>nça lasciva na taberna fumosa,<br />

Agitando as ruidosas flautas no cotovelo:<br />

“Que coisa deleita um cansado ao afastar-se do trabalho estival? (5)<br />

Melhor do que ter-se deitado, ébrio, em um leito?<br />

Existem os jardins, os caramanchãos, as taças, a rosa, a flauta, as cor<strong>da</strong>s,<br />

E eis esta que canta no Menálio sob a doce caverna,<br />

A rústica flauta que soa na boca do pastor.<br />

Também existe a zurrapa, recentemente derrama<strong>da</strong> no barril com pez, (10)<br />

O regato ressoante com seu murmúrio rouco <strong>da</strong> água.<br />

E existem as pequenas coroas de flor de violeta com açafrão,<br />

E a grinal<strong>da</strong> alaranja<strong>da</strong> mistura<strong>da</strong> com rosas purpúreas,<br />

E os lírios oferecidos pelo rio Aquelou a uma virgem que<br />

Os levou em cesto de vime. (15)<br />

Também existem os queijos que a cesta de junco seca,<br />

Existem as ameixas doces <strong>da</strong> estação de outono.<br />

As nozes e as castanhas, também as maçãs avermelha<strong>da</strong>s suavemente,<br />

Aqui também está a elegante Ceres, o Amor, e Dionisio Bromio.<br />

Existem também as amoras vermelhas e a uva de cachos flexíveis, (20)<br />

E o azulado pepino que pende em sua haste.<br />

Existe também o guardião <strong>da</strong> choupana, armado com uma foice de salgueiro,<br />

Mas não é terrível o seu imenso membro.<br />

165


Vem para cá, sacerdote de Cibele: o pequeno asno já, fatigado, sua;<br />

Poupa a ele : o pequeno asno é a delícia de Vesta. (25)<br />

Agora as cigarras rompem os bosques com um canto cerrado,<br />

Agora o lagarto de várias cores oculta-se em sua géli<strong>da</strong> mora<strong>da</strong>:<br />

Se te apetece, deitado agora, bebe bem em seu copo de vidro estival,<br />

E se queres, traga novos cálices de cristal.<br />

Vem para cá, fatigado repousa sob a sombra <strong>da</strong> videira, (30)<br />

E ata a cabeça pesa<strong>da</strong> com uma fita rósea.<br />

Colhe beijos formosos de uma delica<strong>da</strong> mulher.<br />

Pereça aquele que tem os velhos supercílios!<br />

Por que guar<strong>da</strong>s bem a cheirosa grinal<strong>da</strong>, para a cinza ingrata?<br />

Por ventura queres ser coberto com esta em sua lápide enfeita<strong>da</strong>? (35)<br />

Põe o vinho puro e os <strong>da</strong>dos. Pereça aquele que se preocupa com o amanhã!<br />

A morte, aproximando-se <strong>da</strong> orelha, diz: ‘vivei, pois eu venho’”.<br />

To<strong>da</strong> manifestação literária encerra em seu discurso elementos subjetivos e<br />

objetivos que refletem não só o aspecto estético de época segundo a escola do poeta,<br />

mas também reflete <strong>da</strong>dos culturais exteriores ao texto, como nesta poesia em que<br />

encontramos <strong>da</strong>dos que revelam uma nova perspectiva para o mos romanus, devido à<br />

conquista do Oriente e <strong>da</strong> Grécia. Uma nova vertente espiritual e material implicarão em<br />

um novo estilo de vi<strong>da</strong> que entra em choque com a tradicional concepção romana de<br />

frugali<strong>da</strong>de e austeri<strong>da</strong>de. Novas idéias, novas religiões e novos recursos, advindos <strong>da</strong>s<br />

166


conquistas, penetrarão em Roma, como o epicurismo, filosofia que propõe um estilo de<br />

vi<strong>da</strong> que se pode dizer anti-romano: uma vi<strong>da</strong> volta<strong>da</strong> para o prazer e a amizade.<br />

A riqueza material que o oriente traz para Roma também traz novo conforto para<br />

o homem comum romano. Além <strong>da</strong> abundância de recursos exóticos, há a abundância<br />

de mão-de-obra escrava, que tira uma grande parcela <strong>da</strong> população do trabalho, gerando<br />

um tempo ocioso que deve ser ocupado com algum tipo de ativi<strong>da</strong>de, muitas vezes este<br />

tempo ocioso é dedicado aos prazeres advindos <strong>da</strong> nova reali<strong>da</strong>de material e espiritual<br />

do Oriente.<br />

Em Copa, poesia pseudovirgiliana, ocorre diversos elementos que indicam uma<br />

nova corrente filosófica que propõe um novo estilo de vi<strong>da</strong>. Nela encontramos uma<br />

taberneira de nome Surisca (provavelmente de Sisisca, isto é, Síria) que se estabeleceu<br />

em Roma ou na Itália como comerciante ou emprega<strong>da</strong> de taberna. Esta taberneira<br />

convi<strong>da</strong> um transeunte a entrar e se deliciar com uma varie<strong>da</strong>de de prazeres.<br />

Analisando a estrutura <strong>da</strong> composição, podemos dividi-la em três partes: a<br />

primeira é constituí<strong>da</strong> dos seis primeiros versos. Introduzem o tema, com a figura <strong>da</strong><br />

taberneira chamando o transeunte a entrar na taberna. Ela, em estado de embriaguês, é<br />

caracteriza<strong>da</strong> pelas roupas orientais (caput graeca redimita mitella, vv.1). Desde já<br />

estão presentes a música, a <strong>da</strong>nça e a sedução de um corpo feminino que <strong>da</strong>nça<br />

lascivamente. Isto a caracteriza socialmente como uma mulher fora dos padrões <strong>da</strong><br />

mulher tradicional romana.<br />

A segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> poesia se estende do verso 7 ao verso 34. Esta parte pode ser<br />

subdividi<strong>da</strong> em duas sub-partes: a primeira sub-parte é constituí<strong>da</strong> dos versos 7 ao 24.<br />

Neles estão enumerados vários “ingredientes” de prazeres que podem ser<br />

proporcionados ao transeunte. Temos o prazer auditivo com a rústica flauta do pastor<br />

que toca no Menálio, aludindo a um ambiente bucólico, o prazer sonoro <strong>da</strong> própria<br />

natureza que é o som rouco do regato. Temos o prazer degustativo que é variadíssimo, a<br />

vappa (vinho de má quali<strong>da</strong>de), os queijos, as ameixas doces, as nozes, as maçãs, as<br />

amoras, a uva e o pepino. Temos o prazer visual e olfativo através dos jardins, do<br />

frescor dos caramanchões, <strong>da</strong> grinal<strong>da</strong> purpúrea que enfeita a cabeça do cliente para a<br />

festa, os lírios que não são de qualquer lugar, mas do rio Aquelou. Todos estes prazeres<br />

oferecidos pela taberneira aguçam os sentidos; é a sinestesia, isto é, a junção de<br />

167


múltiplos prazeres que tocam todos os sentidos do cliente. Não poderiam faltar os<br />

deuses para abençoar o transeunte: a deusa Ceres, isto é , a deusa <strong>da</strong> terra ara<strong>da</strong> que<br />

produz to<strong>da</strong> esta abundância de recursos; o deus do Amor , Eros, que traz o desejo de<br />

vi<strong>da</strong> plena, e também o deus Baco, deus <strong>da</strong> transição do dia do trabalho para o dia do<br />

ócio, para o excesso, o vinho e a ebrie<strong>da</strong>de. Não faltou também Príapo, deus campesino<br />

que protege os jardins e também livrando do mau olhado.<br />

Na segun<strong>da</strong> sub-parte, que vai do verso 25 ao 34, há um convite direto à<br />

participação do transeunte, que é um sacerdote de Cibele (Calybita), tipo de sacerdote<br />

de uma deusa oriental que penetra em Roma desde o século III a.C., ao final <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong><br />

Guerra Púnica, um “peregrinador de tabernas”. Nesta segun<strong>da</strong> parte também<br />

encontramos o luxo manifestado pelo material que compõe a mesa do cliente: um cálice<br />

de cristal ou de vidro, indiciando um certo luxo. O cálice de vidro provavelmente deve<br />

ser importado do Egito, material raro e caro na época. E, nesta “festa do prazer”, não<br />

pode faltar a presença de uma companheira para o comensal, proporcionando um prazer<br />

mais completo e pleno de uma companhia que agra<strong>da</strong> a todos os sentidos. Por fim,<br />

ressaltamos o último verso desta parte “Pereça aquele que tem os velhos supercílios!”<br />

(VV34), em que há explicitação do choque entre o mos maiorum e o mos novus. Os<br />

velhos supercílios representam a velha ordem e moral romana, que aqui é contesta<strong>da</strong>.<br />

A última parte <strong>da</strong> poesia é constituí<strong>da</strong> dos versos 35 ao 38; neles temos a síntese<br />

total <strong>da</strong> razão de viver ( conforme a proposta <strong>da</strong> taberneira): a morte eminente. A partir<br />

<strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de uma futura não-existência se propõe uma existência plena enquanto<br />

vivo. A ironia presente nos versos 35 e 36 se tornam um argumento forte a favor <strong>da</strong><br />

taberneira, quando ela pergunta ao sacerdote se ele quer guar<strong>da</strong>r a grinal<strong>da</strong> <strong>da</strong> festa para<br />

o túmulo.<br />

Conclusão:<br />

A poesia pseudovirgiliana apresenta-nos um <strong>da</strong>do <strong>da</strong> cultura romana, como já foi<br />

dito, temos um choque entre a velha moral romana que se constrói, segundo Jean-Noël<br />

Robert, entre um homem que é, ao mesmo tempo, camponês e sol<strong>da</strong>do: “trabalho<br />

obstinado, frugali<strong>da</strong>de e austeri<strong>da</strong>de constituíam as três principais regras de vi<strong>da</strong> desses<br />

homens (Robert, 1995). Nesta poesia temos, em oposição à frugali<strong>da</strong>de, a fartura de<br />

168


prazeres, a sinestesia plena; em oposição à austeri<strong>da</strong>de, temos o excesso, o luxo com os<br />

elementos orientais e o ócio proporcionado como um momento de lazer.<br />

A poesia se constrói com um discurso que se opõe à velha tradição de<br />

austeri<strong>da</strong>de romana. Uma nova romani<strong>da</strong>de está se construindo a partir do contacto com<br />

as civilizações conquista<strong>da</strong>s, pois os elementos gregos e orientais são trazidos no fluxo<br />

<strong>da</strong> conquista romana. Os benefícios materiais <strong>da</strong> conquista do Oriente não só trouxeram<br />

para Roma novas idéias , mas também novos recursos. Jean-Noël Robert nos afirma ao<br />

constatar que:<br />

“A busca dos prazeres constitui a preocupação principal dos romanos do final <strong>da</strong> República e do<br />

Império. Eles rejeitam a pressão <strong>da</strong> moral e <strong>da</strong> política cujas elucubrações lhes parecem<br />

artificiais e entravadoras para a satisfação dos desejos naturais do homem. A filosofia popular já<br />

proclamava: a vi<strong>da</strong> é curta, é preciso aproveitá-la” (Robert, 1995)<br />

Percebemos então que são o luxo provindo do oriente, a filosofia epicurista, a<br />

mesa farta, os prazeres do corpo e de um novo espírito sofisticado de um homem que<br />

não é mais um camponês-sol<strong>da</strong>do, mas um residente de uma grande metrópole<br />

consumidora como Roma que estão presentes na discursivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> poesia Copa.<br />

169


Bibliografia:<br />

DE CLIMENT,Mariano Bassols. Sintaxis latina. 10 ed. Madrid: Consejo<br />

Superior de Investigaciones Cientificas, 1992.<br />

FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4ª.ed. Rio de Janeiro:<br />

Mec, s.d.<br />

FERREIRA, Antônio Gomes. Dicionário de latim-português. Porto: Porto<br />

Editora, 1996.<br />

GRIMAL, Pierre. Dicionáiro <strong>da</strong> Mitologia Grega e Romana. 2ª.ed. Lin<strong>da</strong> a<br />

Velha: DIFEL, s.d.<br />

MOISÉS, Massaud. A análise literária. 15ª.ed. São Paulo: Cultrix, s.d.<br />

ROBERT, Jean-Noël. Os prazeres em Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />

VIRGIL. The minors poems. London: The Loeb Classical Library, 1986.<br />

170


Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na peça<br />

Helena de Eurípides.<br />

Pedro <strong>da</strong> Silva Barbosa<br />

Mestrando / UFRJ<br />

Resumo: Pretendemos nesse trabalho analisar os elementos comunicativos presentes na<br />

a0na/gnwsij de Helena e Menelau na peça Helena de Eurípides. Tendo como foco a<br />

possibili<strong>da</strong>de de um reconhecimento por meio de sinais anunciado pela protagonista,<br />

analisamos o diálogo desses dois personagens, buscando perceber em que medi<strong>da</strong> os<br />

recursos não verbais realmente se realizam e se tornam relevantes para a concretização<br />

<strong>da</strong> cena.<br />

Possivelmente representa<strong>da</strong> em 412 a.C., a peça Helena surge num momento<br />

bastante delicado <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos atenienses. Ain<strong>da</strong> sob o efeito <strong>da</strong> derrota na Sicília, que<br />

consumiu uma parte considerável dos recursos dos atenienses, <strong>da</strong> ocupação <strong>da</strong> Decelia e<br />

do abandono dos membros <strong>da</strong> Simaquia de Delos, a ci<strong>da</strong>de de Atenas passava por um<br />

período muito complicado.<br />

Tendo buscado sua temática na literatura épica, obra que está mergulha<strong>da</strong> num<br />

cenário de guerra, a peça de Eurípides chega numa hora oportuna. Segundo a versão<br />

épica, Helena, rainha espartana, teria traído o esposo e fugido para Tróia com o príncipe<br />

Páris, fato que na obra de Homero é apresentado como motivo para a famosa guerra.<br />

No entanto, Eurípides, em sua peça, apresenta outra versão para o mito. Segundo<br />

esse mito, quando as três deusas (Hera, Atena e Afrodite) disputavam a beleza, Páris,<br />

sob a promessa feita por Afrodite de lhe entregar Helena, a mais bela mulher, entregou a<br />

maçã doura<strong>da</strong> à deusa Afrodite.<br />

Pelos desígnios <strong>da</strong> esposa de Zeus, que desejava vingar-se de Páris, o deus<br />

Hermes levou Helena para o Egito e enviou para Ílion um ei)/dwlon. Dessa forma,<br />

Eurípides faz dos dez anos de guerra contra a ci<strong>da</strong>de de Ílion um equívoco. E restaura a<br />

imagem de Helena, que em Homero é símbolo de infideli<strong>da</strong>de.<br />

Ao apresentar esse mito aos espectadores do teatro, Eurípides desenvolve sua<br />

trama demonstrando que tudo não passara de um engano e que a causadora <strong>da</strong> guerra de<br />

Tróia era, não a Helena, mas sim, um fantasma feito de éter, à semelhança <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira<br />

rainha espartana. O autor desenvolve sua peça buscando ocasião para um encontro entre<br />

a personagem Helena e Menelau, a fim de que esse também tome ciência do fato e<br />

perceba que a mulher que ele tem em seu poder não passa de um fantasma.<br />

A cena de reconhecimento inicia-se no verso 528 e surpreende o espectador que<br />

aguar<strong>da</strong>va um determinado modelo de reconhecimento anunciado anteriormente por<br />

Helena nos versos 290-291, pois segundo a protagonista esse reconhecimento seria feito<br />

171


por meio de uma linguagem não verbal, sinais (cu/mbola): “Se o meu marido vivesse,<br />

1<br />

nos reconheceríamos por determinados sinais, apenas para nós evidentes.”TPF FPT<br />

No entanto, quando chega enfim a hora do encontro de Helena e Menelau, não<br />

ocorre o esperado reconhecimento por meio de sinais, mas sim um estranhamento por<br />

parte <strong>da</strong> personagem Helena frente ao marido, que estava em andrajos, após ter sofrido<br />

um naufrágio. Fugindo e se refugiando no túmulo de Proteu, por interpretar mal os<br />

sinais de náufrago presentes na figura de Menelau e confundi-lo com um ladrão,<br />

Helena, depois de relutar resolve <strong>da</strong>r ouvidos às perguntas que o estranho lhe faz. Em<br />

segui<strong>da</strong>, após o simples fato de o náufrago lhe dizer que é Menelau (verso 565), Helena<br />

abandona o medo e crê nas palavras do marido, como se pode observar no verso 566:<br />

“Oh! Tão tarde vens aos braços <strong>da</strong> tua mulher.”<br />

Nessa ocasião a situação se inverte, pois diferentemente de Helena, que mesmo<br />

tendo relutado, acredita estar diante do marido, causa espanto a Menelau ouvir a mulher<br />

dizer que é sua esposa. A partir <strong>da</strong>í, é Helena que precisará convencer a Menelau de que<br />

ela é sua esposa. O problema é o ei)/dwlon que Menelau escondeu numa gruta, sob os<br />

cui<strong>da</strong>dos de um servo, e que ele julga ser sua ver<strong>da</strong>deira mulher. Helena tenta<br />

convencê-lo de que sua presença é o maior indício de que ela é ver<strong>da</strong>deiramente a<br />

rainha espartana. No entanto, o personagem não se deixa convencer pela aparência, e a<br />

protagonista tem de usar seu poder de argumentação para conquistar seu objetivo.<br />

Considerando que a estrutura do diálogo não deixa de apresentar os ecos <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong>de, podemos destacar alguns marcadores importantes na argumentação<br />

desenvolvi<strong>da</strong> pela protagonista. No verso 578, por exemplo, Helena é veemente:<br />

“Observa. O que ain<strong>da</strong> é preciso? Quem é mais hábil do que tu?”. O verso é iniciado<br />

com o verbo ske/yai (imperativo aoristo do verbo depoente ske/ptomai) que significa:<br />

observar, examinar. Com o emprego desse imperativo numa oração independente,<br />

Helena está tentando convencer o marido. Temos aqui o “tom de conversa” próprio de<br />

uma argumentação.<br />

Ain<strong>da</strong> nesse verso, a personagem emprega duas orações em forma de<br />

interrogações: “O que ain<strong>da</strong> é preciso? Quem é mais hábil do que tu?”. Seguramente,<br />

Helena não faz essas perguntas por ter dúvi<strong>da</strong>s ou por precisar de alguma resposta, pois<br />

a resposta ela já tem. A rainha espartana deseja apenas fazer com que o marido acredite<br />

naquilo que para ela é evidente: tudo não passa de uma trama dos deuses.<br />

Não obtendo êxito, mesmo se utilizando de tantos artifícios, a personagem não<br />

desiste. Torna a fazer uma pergunta no verso 580: “Quem te informará melhor do que os<br />

teus próprios olhos?”. Mais uma vez Helena lança mão de um artifício para persuadir<br />

Menelau. O vocábulo empregado no início desse verso é o pronome interrogativo ti/j,<br />

seguido pela partícula pospositiva ou}n. Embora o pronome interrogativo sugira uma<br />

1<br />

TP PT (Silva, 2005: 248) lembra que posteriormente esse tipo de reconhecimento por<br />

meio de sinais foi citado por Aristóteles (Po. 1454b 16), como o mais usado pelos<br />

poetas por falta de engenho.<br />

172


pergunta, o que não deixa de ser, o emprego <strong>da</strong> partícula confere às palavras de Helena<br />

um tom conclusivo. A rainha espartana não quer fazer propriamente uma pergunta, mas<br />

uma afirmação, pois fica evidente que o emprego <strong>da</strong> partícula confere a essa pergunta o<br />

valor equivalente ao de uma afirmação. Com isso Helena quer mostrar a Menelau que<br />

nenhuma evidência é maior do que a que ele tem diante dos olhos.<br />

Diante <strong>da</strong> insistência <strong>da</strong> mulher, Menelau, cansado de ser molestado, resolve <strong>da</strong>r<br />

um basta na conversa. Na intenção de transparecer que não está mais desejoso de<br />

continuar o diálogo, usa no verso 589 um recurso semelhante ao outrora utilizado por<br />

Helena: emprega no início do verso a palavra “me/qej”, o imperativo aoristo do verbo<br />

meqi/hmi, expressando uma ordem: “Deixa-me. Cheguei aqui com muitos infortúnios”.<br />

Mediante a demonstração por parte de Helena no verso 590 de que ain<strong>da</strong> tentaria<br />

insistir na conversa: “Pois vais abandonar-me e levar o vazio para o leito?”, Menelau<br />

decide responder enfaticamente, pondo, desta forma, fim ao discurso: “Adeus e saúde<br />

para ti, tão semelhante à Helena que és”. Nesse verso o personagem emprega a palavra<br />

xai~re, imperativo do verbo xai/rw, que nesse caso tem o valor de uma sau<strong>da</strong>ção:<br />

adeus. Posposta a esse verbo está a partícula ge, emprega<strong>da</strong> com sentido enfático.<br />

Fazendo isso, Menelau finaliza de forma incisiva o diálogo.<br />

Não conseguindo convencer Menelau de que é sua esposa, a rainha espartana<br />

começa a lamentar a sua incapaci<strong>da</strong>de de, mesmo tendo o marido diante de si, não ter<br />

sido suficientemente persuasiva. Com o fracasso de Helena, a cena de reconhecimento<br />

não se concretiza.<br />

No entanto, uma coisa certamente causa intriga a qualquer um que se disponha a<br />

apreciar essa peça, depois de um esforço vão para persuadir o marido, por que Helena<br />

não utiliza os recursos não verbais antes mencionados por ela nos versos 290-291? Por<br />

que os tão eficazes cu/mbola acabam não se realizando?<br />

A esse propósito Silva (2005:248-250) acrescenta que o autor <strong>da</strong> peça,<br />

conhecedor dos modelos de reconhecimento, resolve anunciar, porém não realizar o<br />

reconhecimento por meio de sinais, para não ser classificado como um poeta sem<br />

habili<strong>da</strong>de. Pois como já foi mencionado anteriormente, esse tipo de reconhecimento era<br />

comumente utilizado por poetas que não possuíam destreza.<br />

O reconhecimento só se realiza posteriormente, com a chega<strong>da</strong> de um servo de<br />

Menelau. O homem viera informar que a mulher que ele guar<strong>da</strong>va na gruta havia<br />

desaparecido no meio do ar. Diante desse fato, a veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s palavras de Helena se<br />

torna incontestável e Menelau não pode mais deixar de <strong>da</strong>r crédito às afirmações de sua<br />

mulher.<br />

Dessa forma, Eurípides, além de mostrar grande habili<strong>da</strong>de como tragediógrafo,<br />

também deixa evidente que é conhecedor de técnicas teatrais e dos modelos mais<br />

elaborados de a0na/gnwsij, valendo-se de uma cena de reconhecimento de grande<br />

eficácia para os espectadores <strong>da</strong> época.<br />

Conclusão<br />

173


Com a análise de alguns excertos do diálogo de Helena e Menelau, pudemos<br />

observar que Eurípides usa, em sua obra, uma estratégia muito bem articula<strong>da</strong> para<br />

enquadrar sua obra nos mais nobres modelos teatrais.<br />

Os recursos não verbais, anunciados, porém não realizados, são um meio de o<br />

tragediógrafo desenvolver a sua peça. As várias tentativas de Helena para convencer<br />

Menelau objetivavam causar no público uma intriga sobre a não utilização dos<br />

mencionados sinais.<br />

Com essa intriga, Eurípides ganha margem para a realização de uma cena de<br />

reconhecimento muito mais articula<strong>da</strong> do que a que se realiza por meio de sinais,<br />

conseguindo assim provar diante de expectadores atentos seu grande valor.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ARISTOTE. La poétique. Trad. Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot. Paris:<br />

Seuil, 1980.<br />

DENNISTON, J. D. Greek Particles. 2 ed. Londres: Oxford University Press, 1954.<br />

EURÍPIDES. Helena. Trad. José Ribeiro Ferreira. Coimbra: FESTEA – Tema<br />

Clássico, 2005.<br />

____________. Helena. ed. J. Diggle, Euripidis fabulae, Vol. 3. Oxford: Clarendon<br />

Press, 1994.<br />

FÉREZ, Juan Antonio López. Retórica y tragédia em Eurípides. Atas do III Simpósio<br />

Internacional Investigações Semióticas III, Madrid, p. 57-71, 1988.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia, a formação do homem grego. Trad. Arthur M.<br />

Parreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />

KITTO, H.D.F. A tragédia grega. Trad. Coutinho e Castro. 3. ed. Coimbra: A.<br />

Amado, 1961. 2 v.<br />

LESKY, Albin. História <strong>da</strong> literatura grega. Trad. Manuel Losa. Lisboa:<br />

Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1995.<br />

____________. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza<br />

e Alberto Guzik. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1996 (Coleção Debates, 32).<br />

MARCUSCHI, L. Análise <strong>da</strong> conversação. São Paulo: Ática, 1986.<br />

MOSSÉ, Claude. La mujer em La Grécia <strong>Clássica</strong>. Trad. Celia María Sánchez.<br />

3. Ed. Madrid: Nerea, 1990.<br />

174


ONG, W. J. Orali<strong>da</strong>de y escrita: Tecnologia de la palavra. Trad. Angélica<br />

Scherp. 2 ed. Santafé de Bogotá, Fondo de Cultura econômica, 1996, 190 p.<br />

ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia Grega. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Ed.<br />

<strong>da</strong> Unb, 1998.<br />

SILVA, Maria de Fátima Souza e. Ensaios sobre Eurípides. Lisboa: Cotovia,<br />

2005.<br />

TEIXEIRA, A. L. O Hípias Maior de Platão: uma abor<strong>da</strong>gem conversacional.<br />

Tese de doutorado. UFRJ/Facul<strong>da</strong>de de Letras. 2001/1º semestre.<br />

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges B.<br />

<strong>da</strong> Fonseca. São Paulo: Difel, 2004.<br />

175


A Visão como fonte de prazer em "Ceruus ad Fontem":<br />

Uma Análise Semiótica e estudo <strong>da</strong> progressão referencial na fábula de Fedro<br />

Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (UFF/FAPERJ)<br />

Van<strong>da</strong> Maria Cardozo de Menezes (UFF)<br />

1. Introdução<br />

Neste trabalho que faz parte de nossa pesquisa de Iniciação Científica apoia<strong>da</strong> pela<br />

FAPERJ e orienta<strong>da</strong> pela profa. Dra. Van<strong>da</strong> Cardozo de Menezes, faz-se a análise<br />

semiótica <strong>da</strong> fábula "Ceruus ad Fontem", de Fedro. Além disso, analisa-se a progressão<br />

referencial nesta mesma fábula.<br />

Para a análise Semiótica, apoiamo-nos na teoria desenvolvi<strong>da</strong> por Greimas e descrita por<br />

Diana Luz Pessoa de Barros em "Introdução à Lingüística" (2005). Para o estudo<br />

<strong>da</strong> progressão referencial, utiliza-se o arcabouço teórico <strong>da</strong> lingüística textual, em<br />

particular os conceitos<br />

de tópico e de progressão referencial desenvolvidos por Luiz Antônio Marcuschi e Ingedore<br />

Koch no artigo "Progressão Referencial na Produção discursiva" (1998)e por Ingedore<br />

Koch & Van<strong>da</strong> Elias na obra "Ler e Compreender os sentidos do texto" (2006).<br />

No que diz respeito à tradução do texto latino o trabalho foi co-orientado pela professora<br />

mestran<strong>da</strong> Katia Teonia Costa de Azevedo.<br />

2. Semiótica<br />

Compete à semiótica explicar os sentidos do texto. Esta ciência tem, portanto o texto, e não<br />

a palavra ou a frase como seu objeto. Assim, a semiótica procura explicar<br />

o sentido do texto e os mecanismos ou procedimentos construtores do seu sentido.<br />

Segundo Diana Luz Pessoa de Barros (2005, p.188), "um texto se organiza e produz<br />

sentidos como um objeto de significação e também se constrói na relação com os demais<br />

objetos culturais. [...]" Ele está inserido em uma socie<strong>da</strong>de, em um <strong>da</strong>do momento histórico<br />

e é determinado por formações ideológicas específicas.<br />

O percurso gerativo de sentido vai do mais simples ao mais complexo e do mais abstrato ao<br />

mais concreto.<br />

Existem três etapas ou níveis de discurso: fun<strong>da</strong>mental, narrativo e<br />

discursivo.<br />

a) Fun<strong>da</strong>mental: É a primeira etapa do percurso (mais simples e abstrata). Neste nível a<br />

significação se apresenta como uma oposição semântica. Segundo Lucia Teixeira,<br />

"Para a transformação dos micro-universos semânticos em axiologias, usa-se a categoria<br />

tímica articula<strong>da</strong> nos termos euforia (positivo) e disforia (negativo)."<br />

b) Narrativo: Organiza-se a narrativa do ponto de vista de um sujeito. Neste nível,<br />

ocorrem, além disso, os programas de manipulação, ação, performance e sansão.<br />

176


Manipulação: O sujeito operador (destinador) propõe ao sujeito de estados sobre o qual<br />

este age (destinatário) um acordo com o objetivo de transformar a competência<br />

deste destinatário, levando-o a se transformar em operador de transformação que lhe<br />

interessa. Em outras palavras, o destinador quer que o destinatário faça alguma<br />

coisa e, para tanto, precisa persuadi-lo.<br />

Existem, segundo Barros, quatro tipos de manipulação:<br />

a. Por sedução:<br />

b. Por tentação;<br />

c. Por Intimi<strong>da</strong>ção;<br />

d. Por provocação.<br />

Para tentar ou intimi<strong>da</strong>r são oferecidos pelo destinador valores que ele julga desejados ou<br />

temidos pelo destinatário. Para seduzir e provocar, por outro lado, são<br />

realça<strong>da</strong>s características positivas ou negativas do destinatário ou de sua competência.<br />

Nestes casos, o destinatário fará o que lhe é proposto, para manter ou evitar<br />

a imagem que o destinador faz dele.<br />

Performance: Este programa pode ser definido como a transformações pelas quais passam<br />

os sujeitos no decorrer do perrcurso narrativo. São expressas por mu<strong>da</strong>nças<br />

de estado de conjunção em estado de disjunção. Tais mu<strong>da</strong>nças de estados ocorrem<br />

simultaneamente entre os sujeitos, pois quando um determinado sujeito entra em estado<br />

de conjunção com determinado objeto, outro sujeito entra em estado de disjunção com este<br />

mesmo objeto. Além disso, o objeto de valor é um valor descritivo final,<br />

ou seja, valor último visado pelo sujeito <strong>da</strong> narrativa.<br />

Competência: O programa de competência pressupõe as condições do destinatário de saber,<br />

poder, querer e dever fazer o que o destinador lhe impõe. Por isso, constitui<br />

uma ativi<strong>da</strong>de mo<strong>da</strong>l. Neste programa também ocorre a transformação de um estado de<br />

disjunção em um estaddo de conjunção . Neste programa, porém, ao contrário <strong>da</strong><br />

performance,<br />

o sujeito transformador e realizado por um ator diferente do sujeito de estado e o objeto é<br />

um valor mo<strong>da</strong>l, ou seja, um valor necessário para o sujeito obter na<br />

performance o valor descritivo último que deseja.<br />

e) Sansão: Neste percurso o destinador <strong>da</strong>rá ao destinatário o reconhecimento e retribuição<br />

pelo cumprimento do acordo estabelecido ou a punição pelo não cumprimento<br />

deste acordo. Assim, a sansão é positiva quando o processo de manipulação for bem<br />

sucedido e negativa quando o destinatário não cumprir sua parte no contrato<br />

com o destinador.<br />

c) Discursivo: É o terceiro nível (mais complexo e concreto), em que a organização<br />

narrativa se tornará discurso, através dos procedimentos de temporalização, espacialização,<br />

actorialização, tematização e figurativização.<br />

3. Progressão Referencial<br />

177


A progressão referencial, segundo Koch e Marcuschi, se dá com base numa complexa<br />

relação entre linguagem mundo e pensamento. Esta relação se estabelece no discurso.<br />

Assim, os referentes não são tomados como enti<strong>da</strong>des estáveis, mas como objetos de<br />

discurso.<br />

O léxico não é, por isso, auto-suficiente. Quando um item lexical aparece mais de uma vez<br />

em um texto, não tem o mesmo significado, não sendo, por isso, cossignificativo.<br />

Segundo Ingedore Koch&Van<strong>da</strong> Elias em "Ler e Compreender os Sentidos do Texto", na<br />

construção dos referentes textuais estão envolvi<strong>da</strong>s estratégias de referenciação.<br />

São exemplos de tais estratégias a introdução (ou construção), a retoma<strong>da</strong> (ou manutenção)<br />

e a desfocalização.<br />

Introdução: "Um "objeto" até então não mencionado é introduzido no texto, de modo que a<br />

expressão lingüística que o representa, é posta em foco, ficando este "objeto"<br />

saliente no modelo textual. (Koch &Elias, 2006, p. 125)<br />

Retoma<strong>da</strong> (Manutenção): "Um "objeto" já presente no texto é reativado por meio de uma<br />

forma referencial, de modo que o objeto-de-discurso permaneça em foco." (Op.<br />

Cit. p. 126)<br />

Desfocalização: "Quando um novo objeto-de-discurso é introduzido, passando a ocupar a<br />

posição focal. O objeto retirado de foco, contudo, permanece em estado de ativação<br />

parcial (stand by), ou seja, continua disponível para utilização imediata sempre que<br />

necessário. A referenciação, segundo Mon<strong>da</strong><strong>da</strong> e Dubois, 1995, é um processo<br />

realizado negocia<strong>da</strong>mente no discurso e resulta na construção de referentes de modo que a<br />

expressão referência passa a ter um uso diverso do que se atribui na literatura<br />

em geral.<br />

O processo de progressão referencial no discurso se dá por meio de uma varia<strong>da</strong> gama de<br />

estratégias de designação de referentes que providenciam a "evolução <strong>da</strong> referência"<br />

no próprio texto. Algumas destas estratégias são mais comuns em textos escritos por se<br />

tratarem de questões estilísticas.<br />

Algumas <strong>da</strong>s estratégias de progressão referencial são as seguintes:<br />

* Transformações opera<strong>da</strong>s ou marca<strong>da</strong>s pela anáfora<br />

Apothéloz&Beguelin (P. 347), lembram que a anáfora, tradicionalmente, era considera<strong>da</strong><br />

como uma operação simples de designação referencial em que se dá uma retoma<strong>da</strong>.<br />

Nesse conjunto a anáfora, contudo, opera transformações no objeto de discurso designado.<br />

As modificações opera<strong>da</strong>s pela ativi<strong>da</strong>de anafórica são possíveis de ocorrer de três<br />

maneiras:<br />

Recategorização lexical explícita: produz uma predicação de atributos sobre o objeto. Em<br />

certos casos é uma operação de designação que retoma um conjunto de fatos.<br />

178


Recategorização lexical implícita: É feita através de um pronome anafórico que remete a<br />

um referente e o retoma denominando-o, mas modificando algum aspecto.<br />

Modificação <strong>da</strong> extensão do objeto ou de seu estatuto lógico: As transformações são<br />

opera<strong>da</strong>s nem sempre implicando uma recategorização lexical, mas de outro tipo,<br />

isto é, formal. Esta operação é muito comum na língua fala<strong>da</strong>.<br />

Vale a pena notar também, como estratégia de progressão referencial a utilização de<br />

anáforas indiretas.<br />

Segundo Marcuschi, 2005, P. 52) "[...] [a anáfora indireta] é geralmente constituí<strong>da</strong> por<br />

expressões nominais indefini<strong>da</strong>s e pronomes interpretados referencialmente<br />

sem que lhes correspon<strong>da</strong> um antecedente (ou sub-seqüente) explícito no texto."<br />

* Anafóricos que não levam em conta os atributos anteriores de um objeto: Este conjunto<br />

de estratégias é formado por anáforas que não levam em conta os atributos<br />

predicados anteriormente de um objeto-de-discurso e o retomam no estado inicial. Não se<br />

trata de recategorização. É comum na escrita e na fala e trata-se <strong>da</strong> anáfora<br />

no sentido estrito do termo<br />

* Anafóricos que reúnem os atributos explicitamente predicados: Neste conjunto de<br />

estratégias os anafóricos operam ao longo e acarretam recategorizações, homologando<br />

num único item lexical uma série de elementos que o objeto foi recebendo ao longo do<br />

discurso. (Apothéloz & Reichler-Béguelin, 1995, p. 262)<br />

4. Fábula e tradução<br />

Cervus ad Fontem<br />

Lau<strong>da</strong>tis utiliora quae contempseris , saepe inveniri testis haec<br />

narratio est . Ad fontem cervus , cum bibisset , restitit , et in<br />

liquore vidit effigiem suam . Ibi dum ramosa mirans lau<strong>da</strong>t cornua<br />

crurumque nimiam tenuitatem vituperat , venantum subito vocibus<br />

conterritus , per campum fugere coepit , et cursu levi canes elusit .<br />

Silva tum excepit ferum ; in qua retentis impeditus cornibus lacerari<br />

coepit morsibus saevis canum . Tum moriens edidisse vocem hanc dicitur :<br />

' O me infelicem , qui nunc demum intellego , utilia mihi quam fuerint<br />

quae despexeram , et , quae lau<strong>da</strong>ram , quantum luctus habuerint '.<br />

O Cervo junto à fonte<br />

Esta narração é testemunha de que muitas vezes são acha<strong>da</strong>s mais úteis<br />

aquelas coisas que desprezáreis do que aquelas que louváis.<br />

Junto a uma fonte um cervo, depois de beber, permaneceu, e viu na água sua<br />

imagem.<br />

Lá, mirando-se, enquanto louva os chifres e critica a<br />

179


excessiva delicadeza de [suas] pernas, aterrorizado de súbito pelas vozes dos caçadores,<br />

começou a fugir pelo campo, e<br />

numa ágil corri<strong>da</strong> despistou os cães.<br />

A mata, então, encobriu o animal furioso ; nesta enre<strong>da</strong>do,<br />

foram retidos os chifres, [e] começou a ser dilacerado pelas cruéis<br />

mordi<strong>da</strong>s dos cães.<br />

Então, morrendo, disse esta expressão:<br />

Ó infeliz de mim, o que só agora entendo, foram úteis para mim o<br />

Que desprezara e o que louvara quanto sofrimento causaram.<br />

5. Análise Semiótica e Estudo <strong>da</strong> progressão Referencial<br />

No nível fun<strong>da</strong>mental, tomando-se o cervo como sujeito (destinatário) manipulado, notase,<br />

no primeiro momento, a oposição prazer, distração (pela própria imagem)<br />

versus medo, atenção, reali<strong>da</strong>de (pois o cervo não contava com a aproximação dos<br />

caçadores e dos cães).<br />

Em um segundo momento, há, ain<strong>da</strong> a nível fun<strong>da</strong>mental, a oposição liber<strong>da</strong>de (do cervo)<br />

versus dominação (quando o cervo é capturado e mordido pelos cães).<br />

A respeito <strong>da</strong>s categorias tímicas e dos conceitos de euforia e disforia, vale notar que a<br />

distração é eufórica (positiva) e o medo é disfórico (negativo).<br />

No segundo momento, a dominação é eufórica (positiviza<strong>da</strong> no texto) e a e a liber<strong>da</strong>de, por<br />

sua vez, disfórica (vista como algo negativo).<br />

Em nível narrativo, o processo de manipulação na fábula pode ser explicado <strong>da</strong> seguinte<br />

maneira:<br />

O cervo é manipulado, por sedução, pela própria imagem refleti<strong>da</strong> na água . O fascínio<br />

pelo reflexo de seus chifres e o desprezo pela excessiva delicadeza de suas<br />

pernas fazem com que ele se distraia e não perceba de imediato a aproximação dos cães e<br />

dos caçadores.<br />

A visão, por isso, é uma importante fonte de prazer nesta fábula já que é através dela que o<br />

cervo tem consciência de seu reflexo e <strong>da</strong> beleza de seus chifres. Este<br />

fala, além disso, mal <strong>da</strong> delicadeza de suas pernas.<br />

Pode-se dizer ain<strong>da</strong>, que o cervo fica enfeitiçado, encantado pela beleza dos chifres através<br />

do reflexo na água.<br />

Também ocorre, a nível narrativo, a mu<strong>da</strong>nça de estados dos sujeitos. No primeiro<br />

momento, o cervo encontra-se em estado de conjunção com o objeto-valor liber<strong>da</strong>de<br />

e em estado de disjunção com o objeto-valor dominação (pelos caçadores e pelos cães).<br />

No segundo momento do texto, depois de capturado pelos cães, o cervo entra em estado de<br />

conjunção com a dominação (pelos cães) e em estado de disjunção com a liber<strong>da</strong>de.<br />

A liber<strong>da</strong>de, por sua vez, é disfórica (vista como algo negativo).<br />

180


Em nível discursivo, ocorre a espacialização (debreagem ou desembreagem de espaço)<br />

(floresta, representa<strong>da</strong>, figurativamente por arbustos e fonte) e a transformação<br />

dos sujeitos em atores do discurso.<br />

Ocorre, além disso, a debreagem ou desembreagem de pessoa (debreagem enunciativa - uso<br />

<strong>da</strong> primeira pessoa:<br />

"me" - de mim; "intelego" - entendo;) e a debreagem enunciva<br />

- uso de 3ª pessoa "restitit" - permaneceu; "coepit" - começou.<br />

A análise semiótica e a progressão referencial se complementam, já que fazem com que o<br />

texto tenha sentido explicando-o.<br />

A respeito <strong>da</strong>s estratégias de referenciação nesta fábula, vale a pena notar a introdução dos<br />

referentes "cervo - ceruus" e "fonte - fontem" - (feita no próprio<br />

título e na primeira linha do texto. Posteriormente são introduzidos outros referentes<br />

caçadores "venantum" e cães - canes".<br />

É importante notar que "canes - cães" é um exemplo de anáfora indireta, já que não possui<br />

antecedente textual e o leitor precisa ativar seu conhecimento de mundo<br />

para entender esta passagem do texto.<br />

Nesta fábula, ocorre a recategorização do cervo: cervo que olha a sua imagem refleti<strong>da</strong> na<br />

água, tem pernas delica<strong>da</strong>s e belos chifres. Logo após é recategorizado<br />

como "aterrorizado pelas vozes dos caçadores. É TAMBÉM RECATEGORIZADO durante<br />

a fuga COMO o animal furioso. Este hiperônimo "animal" também contribui para a<br />

progressão<br />

referencial.<br />

Vale a pena lembrar, aqui, o conceito de hiperonímia.<br />

Segundo Lygia Trouche, "[...] [A] hiperonímia indica a relação estabeleci<strong>da</strong> entre um<br />

vocábulo de sentido mais genérico e outro de sentido mais específico."<br />

No segundo momento, porém, depois de capturado e mordido pelos cães, o cervo é descrito<br />

como um animal moribundo "com a voz morrendo".<br />

A palavra "cornua - chifres" se refere aos chifres do cervo, sendo por isso um exemplo de<br />

anáfora indireta. O leitor precisa através de seu conhecimento de mundo,<br />

saber que cervo é um animal que possui chifres.<br />

6. Conclusão<br />

A semiótica estu<strong>da</strong>, como vimos, os sentidos do texto e os mecanismos e<br />

procedimentos que produzem seu sentido. Há, por isso, três etapas ou<br />

níveis do discurso: fun<strong>da</strong>mental, narrativo e discursivo.<br />

A referenciação, por sua vez, estu<strong>da</strong> o texto em sua forma física na qual<br />

pronomes e termos estabelecem referentes textuais.<br />

181


Nota-se que as duas teorias são, em conjunto, aplicáveis ao texto visando a melhor<br />

compreensão de seu sentido.<br />

7. Referências Bibliográficas<br />

1. Barros, Diana Luz Pessoa de.<br />

2. Koch, Ingedore & Marcuschi, Luiz Antônio. Processos de Referenciação na produção<br />

discursiva. Revista DELTa, vol 14 Special Issue. São Paulo:1998<br />

3. Koch, Ingedore Vilaça & Elias, Van<strong>da</strong> Maria. Ler e Compreender os Sentidos do Texto.<br />

São Paulo: Contexto, 2006, 2ª ed. cap. 6.<br />

4. Marcuschi, Luiz Antônio. A Anáfora Indireta: O Barco Textual e suas Âncoras. In:<br />

Koch, Ingedore Vilaça et all. Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto,<br />

2005.<br />

5. Phaedrus. PHAEDRI AVGVSTUI LIBERTI FABVLARVM AESOPIARVM LIBER<br />

PRIMVUS<br />

The Latin library [http://www.thelatinlibrary.com] consulta em 05/09/2008<br />

6. Teixeira, Lucia. A Semiótica no Espelho. In: Cadernos de Letras <strong>da</strong> UFF, vol. 12<br />

Niterói: p. 33-49, 1996<br />

7. Trouche, Lygia Maria Gonçalves. A Coesão Lexical nas Re<strong>da</strong>ções de Vestibular.<br />

[http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno13-02.html], 2004 consulta em:<br />

05/10/2008<br />

182


O delinear <strong>da</strong> loucura na tragédia Os Persas de Ésquilo<br />

RICARDO DE SOUZA NOGUEIRA<br />

Prof. Doutorando – FL / UFRJ<br />

O mundo presente numa tragédia de Ésquilo apresenta características bem<br />

defini<strong>da</strong>s para apresentar as oposições trágicas que se formam no bojo de seu discurso.<br />

Trata-se <strong>da</strong> construção de um lugar sempre permeado pelo divino, mas desorganizado,<br />

caótico, que, contudo, aspira a uma ordem, na maior parte <strong>da</strong>s vezes determina<strong>da</strong> por<br />

esse próprio divino, ou seja, pelos deuses que agem por trás dos acontecimentos em<br />

cena. A helenista Jacqueline de Romilly faz o seguinte retrato generalizante do mundo<br />

que se desenvolve nas peças do poeta trágico (ROMILLY, 1998: 50):<br />

Os deuses encontram-se em to<strong>da</strong> parte no mundo de Ésquilo. E a justiça divina,<br />

igualmente, está em to<strong>da</strong> parte.<br />

Isso não significa que se trate de um mundo em ordem. É muito mais um mundo<br />

que aspira à ordem, mas que se move no mistério e no medo. É um mundo onde reina a<br />

violência. Mata-se e morre-se, brutos devoram-se uns aos outros. É um mundo onde se<br />

é perseguido, pisoteado, onde se grita de medo.<br />

Por sua vez, o helenista Alain Moreau amplia o campo de atuação desse<br />

elemento de violência, percebendo que, além do caos que se apresenta no mundo<br />

exterior, há também um caos interior, que se chama loucura (MOREAU, 1985: 237):<br />

Como a arrebentação <strong>da</strong> violência faz nascer o Caos no mundo exterior, o<br />

universo interior, quando é invadido, por sua vez, pelas forças <strong>da</strong> violência, se<br />

desorganiza e se degra<strong>da</strong> em Caos. O Caos no espírito humano se chama loucura.<br />

Ao mencionar a loucura como um caos interior que surge após a invasão do<br />

espírito por elementos estranhos ao homem, Moreau deixa evidente que a loucura na<br />

obra de Ésquilo se define exatamente pelo movimento de forças que a estabelecem<br />

nessa interiori<strong>da</strong>de que se denomina mente. Uma vez no interior do indivíduo, por ter<br />

sido causa<strong>da</strong> por forças <strong>da</strong> violência, a loucura irá estabelecer o caos inerente ao tipo de<br />

insani<strong>da</strong>de que se mostra em evidência no contexto literário de certa tragédia, o que faz<br />

com que esse elemento seja determinado, muitas vezes, por nomes de demônios que<br />

representam uma maneira de agir erroneamente do personagem. Portando-se assim, a<br />

loucura, em Ésquilo, mostra-se inseparável do mundo sobrenatural que domina suas<br />

tragédias.<br />

Longe de ser somente um distúrbio patológico <strong>da</strong> psique humana, a loucura, em<br />

Ésquilo, sempre aparece associa<strong>da</strong> ao divino, tendo um agente externo como seu<br />

causador, no caso, uma divin<strong>da</strong>de maléfica. Esse ponto de vista opõe-se completamente<br />

à visão <strong>da</strong> loucura finca<strong>da</strong> em bases científicas, que se apresenta, por exemplo, em O<br />

Problema XXX, 1 de pseudo-Aristóteles. Nesse pequeno texto do século IV a.C., a<br />

loucura é apresenta<strong>da</strong> como um distúrbio causado pela própria mistura (kra~~siv) que<br />

compõe o indivíduo: o louco seria aquele que possuísse, em sua mistura, um excesso de<br />

bile negra (me/laina xolh/) no organismo, e tal pressuposto serve igualmente para<br />

1<br />

designar o homem notável por naturezaTPF FPT. A loucura não se mostra aqui estabeleci<strong>da</strong> por<br />

um divino externo, mas por um tipo de mistura que já se encontra dentro do indivíduo.<br />

1<br />

TP PT PIGEAU, Jackie. Apresentação. In: ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema<br />

XXX, 1. Rio de Janeiro: Lacer<strong>da</strong> Editores, 1998. p. 48. Na passagem em <strong>questão</strong>, Pigeau discorre acerca<br />

do delírio genial do poeta.<br />

183


Deve-se enfatizar que, nas tragédias de Ésquilo sobreviventes, a loucura nunca se<br />

mostra de modo positivo, pois isso iria contra a tensão que forma o discurso trágico.<br />

Mesmo no caso <strong>da</strong> personagem Cassandra, no Agamêmnon, que possui um delírio que<br />

se fun<strong>da</strong> na arte divinatória de prever o futuro, esse dom se mostra um castigo criador<br />

de uma oposição trágica: por mais que Cassandra tivesse visões aterradoras e<br />

importantes, ninguém <strong>da</strong>ria crédito a seus delírios TPF<br />

A loucura finca<strong>da</strong> com bases fisiológicas e patológicas se fun<strong>da</strong>menta assim de<br />

uma maneira completamente oposta à cita<strong>da</strong> por Moreau a respeito do mundo<br />

esquiliano, mostrando o quanto é importante estabelecer um conceito de loucura que<br />

sirva unicamente para ser empregado nas tragédias de Ésquilo, do autor trágico que<br />

viveu no século V a.C. e que participou de batalhas memoráveisTPF<br />

2<br />

FPT.<br />

3<br />

FPT que<br />

fizeram-no<br />

retratar em suas tragédias uma forte crença nos poderes divinos e nos valores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

ateniense. Deve-se ressaltar ain<strong>da</strong> que, no tempo de suas primeiras tragédias, Atenas<br />

havia conquistado uma democracia nova, que precisava ser defendi<strong>da</strong> a todo custo para<br />

que continuasse a prevalecer sua grandeza e seu caráter de modelo perante às outras<br />

ci<strong>da</strong>des gregas. A loucura, em Ésquilo, além de aparecer rodea<strong>da</strong> pelo divino, se insere<br />

nesse mundo de valores, como um elemento de oposição a uma moral tanto divina<br />

quanto cívica. Nessa relação de enfrentamento irão aparecer os excessos que constituem<br />

o crime.<br />

Moreau prossegue a delinear seu entendimento <strong>da</strong> loucura, lançando uma série<br />

de afirmações categóricas que visam a deixar claro a construção que Ésquilo faz dessa<br />

violência que aflige a mente humana e se projeta em forma de crime para o mundo<br />

exterior (MOREAU, 1985: 237):<br />

Todo grande crime está associado, na obra de Ésquilo, à loucura. (...) todo<br />

culpado, todo criminoso, é um ser cujo espírito se abandona ao irracional e à<br />

desordem. Mas se a loucura está associa<strong>da</strong> ao crime, ela está também ao castigo.<br />

A primeira afirmativa dessa passagem apresenta a loucura como inseparável de<br />

um grande crime, o que torna necessário encontrar numa peça o crime ao qual certo<br />

personagem está ligado, possibilitando tomá-lo como louco por concretizar tal ato. Por<br />

fim, é necessário que esse crime, estabelecido por um individuo tomado por forças<br />

violentas que colocaram sua mente em desordem, também se associe ao castigo.<br />

Desenha-se assim um retrato de um típico personagem <strong>da</strong> tragédia grega: o rei que, por<br />

seus excessos, cai em desgraça, possibilitando assim o surgimento do trágico. Ao<br />

somar-se a possessão que produz o louco a esse castigo, se pode inferir que, nas<br />

tragédias de Ésquilo, o divino, ao mesmo tempo que estabelece a loucura num<br />

indivíduo, se opõe ao excesso de sua ação, que se mostra ao mesmo tempo humana e<br />

divina. Essa via tortuosa para o personagem faz com que o enredo trágico caminhe e se<br />

2<br />

TP PT O fato de ninguém acreditar nas profecias de Cassandra já se encontra no mito, mesmo que de forma<br />

um tanto amena; cf. Grimmal, Dicionário <strong>da</strong> mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,<br />

2000, p. 77. Contudo, Ésquilo, no Agamêmnon, faz dessa característica um elemento de crescente valor<br />

trágico. Aquela que sabe não recebe ouvidos, o que faz com que o reconhecimento de Agamêmnon só<br />

venha no momento <strong>da</strong> morte de ambos.<br />

3<br />

TP PT Ésquilo participou <strong>da</strong> Batalha de Maratona, em 490 a.C, e <strong>da</strong> Batalha de Salamina, em 480 a.C; a<br />

tragédia Os Persas baseia-se nesse último confronto, o que a faz ser a única, dentre as tragédias gregas<br />

sobreviventes, a ter seu enredo baseado num fato histórico. Essas duas vitórias gregas, praticamente<br />

milagrosas, só poderiam trazer em seu bojo, uma forte crença no divino. Lesky discorre extensamente<br />

sobre essa característica inerente à tragédia esquiliana; cf. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva,<br />

1996, p. 95 e ss.<br />

184


encha de sentido. O divino, em dois momentos, pode atormentar o herói trágico<br />

esquiliano: no momento em que o enlouquece e no momento em que o castiga.<br />

Após to<strong>da</strong>s essas considerações fica assim estabelecido um conceito de loucura<br />

que poderá ser empregado na tragédia Os Persas, que será examina<strong>da</strong> na seqüência<br />

desse trabalho: entende-se, então, a loucura, na tragédia esquiliana, como um caos<br />

mental, causado por forças externas sobrenaturais que se estabelecem num indivíduo,<br />

fazendo com que ele, uma vez estando insensato, aja de modo a cometer ou intentar<br />

crimes que, futuramente, irão lhe gerar um castigo, também lançado pelo divino.<br />

Podendo ser considerado o protagonista <strong>da</strong> tragédia Os Persas, mais por causa<br />

<strong>da</strong> sua importância no desenvolvimento do enredo do que pela sua participação<br />

propriamente dita como personagem atuante, que se dá apenas no êxodo <strong>da</strong> peça, o<br />

personagem Xerxes, filho de Dario e AtossaTPF<br />

4<br />

FPT, é<br />

a figura para qual a ação de todos os<br />

personagens afluem e figura por onde se torna possível encontrar uma manifestação <strong>da</strong><br />

loucura nessa tragédia. Por ser o grande rei persa, ele apresenta as características<br />

principais do herói que, por seu excesso, u3briv, cai em desgraça. Tal excesso, nessa<br />

peça, toma a forma de certas atitudes que, de certa forma, são defini<strong>da</strong>s em palavras que<br />

permitem fazer com que se veja o rei como um homem insano.<br />

Para se entender a loucura que perpassa pela figura de Xerxes, é necessário, em<br />

primeiro lugar, de acordo com a definição de loucura já proposta, levantar o excesso (ou<br />

excessos) inerente ao rei, ou seja, o crime praticado por Xerxes, uma vez que é a partir<br />

dos seus atos manifestos que se desenha a figura do louco.<br />

No Párodo <strong>da</strong> tragédia, o coro, composto por nobres anciãos persas, já começa,<br />

de forma ain<strong>da</strong> implícita, a fazer menção a um fato que mais tarde será devi<strong>da</strong>mente<br />

5<br />

enfocado como sendo o crime principal presente na peça (vv. 65 – 72)TPF FPT:<br />

4<br />

pepe/raken me\n o9 perse/ptoliv h1dh<br />

basi/leiov strato\v ei0v a0n-<br />

ti/poron gei/tona xw/ran,<br />

linode/smw| sxedi/a| porq-<br />

mo\n a0mei/yav<br />

0Aqamanti/dov 3Ellav,<br />

polu/gomfon o3disma<br />

zugo\n a0mfibalw\n au0xe/ni po/ntou.<br />

O exército real destruidor de vilas já<br />

penetra no país<br />

vizinho, situado na costa oposta,<br />

após ter suplantado, com uma ponte ata<strong>da</strong><br />

por cor<strong>da</strong>s, a passagem<br />

<strong>da</strong> filha de Áthamas, Hélle,<br />

lançando o jugo <strong>da</strong> construção<br />

sóli<strong>da</strong> sobre o estreito do mar.<br />

TP PT O nome Atossa não é citado na tragédia Os Persas, nem se sabe se Ésquilo o conhecia, o que faz com<br />

que Hall, na sua tradução e edição crítica prefira utilizar apenas a designação basi/leia. AESCHYLUS.<br />

Persians. Warminster: Aris & Phillips Ltd. 1997.<br />

5<br />

TP PT Edith Hall em comentário de sua tradução (HALL, 1997: 106) divide o Párodo em três partes: uma que<br />

situa o momento dos acontecimentos (vv. 1 – 64), outra, mais subjetiva, que apresenta um certo<br />

pessimismo <strong>da</strong> parte do coro quanto ao destino do exército persa (vv. 65 – 139) e ain<strong>da</strong> outra que se volta<br />

novamente para os problemas presentes (vv. 140 – 154). As duas primeiras passagens seleciona<strong>da</strong>s nesse<br />

trabalho estão inseri<strong>da</strong>s no que a helenista chama de segun<strong>da</strong> parte. A primeira citação se encontra<br />

exatamente no início dessa parte.<br />

185


O modo como o exército transpõe o mar, indo de um continente a outro constitui<br />

o excesso, ou seja, o crime executado que irá gerar o castigo divino. Já se estabelece<br />

nesse momento uma oposição trágica muito relevante em Os Persas: a que se forma<br />

entre Xerxes e os poderes divinos. Curiosamente, nem Xerxes e nem uma divin<strong>da</strong>de, no<br />

caso o deus do mar Poseidon, são citados ain<strong>da</strong> nessa passagem, embora os elementos<br />

que vão possibilitar tal oposição já estejam todos lançados. O coro faz menção ao<br />

momento em que os persas atravessam o Helesponto por uma ponte construí<strong>da</strong> para esse<br />

propósito, atitude que se afigura como se, ao mar, fosse lançado um zugo/n, jugo.<br />

O ato de escravizar o mar se coloca entre a ação de duas divin<strong>da</strong>des. Antes há o<br />

divino que acomete a mente do homem, fazendo com que ele, uma vez louco, incorra no<br />

erro criminoso e, depois, há o divino que castiga o crime. Logo depois do coro se referir<br />

a tal crime, ele expõe a primeira passagem <strong>da</strong> peça em que se pode notar uma menção a<br />

uma loucura divina (vv. 93 – 100):<br />

dolo/mhtin d 0 a0pa/tan qeou~<br />

ti/v a0nh/r qnato\v a0lu/zei;<br />

ti/v o9 kraipnw~| podi \ ph/dhma<br />

to/d 0 eu0petw~v a0na/|sswn;<br />

filo/frwn ga\r parasai/nei<br />

broto\n ei0v a1rkuav 1Ata,<br />

to/qen ou0k e1stin u3perqe/n<br />

nin a1naton e0calu/cai.<br />

Do traiçoeiro artifício de um deus,<br />

que indivíduo mortal poderá escapar?<br />

Quem, com o pé em prontidão, se lançará<br />

bem a este salto?<br />

Com efeito, a amistosa Áte engana o mortal<br />

com carícias, levando-o para suas redes;<br />

depois disso, não há como ele escapar<br />

impune dos que estão acima.<br />

Mais uma vez, Xerxes não é citado, contudo, conforme a tragédia se descortina,<br />

é impossível não associá-lo ao a1nhr, homem, mencionado na passagem. O coro canta a<br />

desgraça do mortal que se deixa levar pela a1th, termo grego complexo que denota tanto<br />

a força causadora de males quanto o mal em si, já consumado TPF<br />

6<br />

FPT. A<br />

polissemia, que<br />

permite tomar a a1th, nessa passagem, como uma força divina agitante e maléfica, dá<br />

margem, no discurso de Ésquilo, a duas imagens que representam o caos mental do<br />

homem dominado por tal divin<strong>da</strong>de; fala-se aqui <strong>da</strong> caçadora (ou pescadora) e <strong>da</strong><br />

cadela.<br />

A associação <strong>da</strong> a1th com a figura <strong>da</strong> caçadora aparece desde o início <strong>da</strong> citação,<br />

pela utilização do termo a0pa/th, artifício, ardil, que no texto indica a artimanha pela<br />

qual o caçador intenta prender astuciosamente a sua presa. Logo a seguir, dá-se uma<br />

citação sobre a improvável possibili<strong>da</strong>de de uma tentativa de se livrar dessa armadilha,<br />

com o pé em prontidão, kraipnw|~~ podi/ .<br />

Percebe-se a imagem <strong>da</strong> cadela na utilização que Ésquilo faz do adjetivo<br />

filo/frwn (v. 97), amistosa, termo que longe de ter no texto significação positiva,<br />

indica o caráter traiçoeiro <strong>da</strong> a1th, que, nesse contexto, afigura-se como a cadela que<br />

6<br />

TP PT MOREAU, Alain. Eschyle, la violence et le chaos. Paris: Les Belles Lettres, 1985, p. 154. Moreau<br />

utiliza, em primeiro lugar, determinações como extravio, cegueira, erro e, depois, mal, catástrofe, ruína<br />

para indicar, respectivamente, tanto sentido ativo <strong>da</strong> a1th quanto o sentido de ação finaliza<strong>da</strong>.<br />

186


acaricia e festeja o homem para depois mordê-lo. Trata-se de uma perfeita imagem <strong>da</strong><br />

sedução de um homem diante de um feito que não lhe é possível fazer. A sedução pelo<br />

poder tanto almejado por Xerxes, com seus desejos de expansão territorial pela Grécia,<br />

se encaixa perfeitamente nessa imagem, já que Xerxes só recebeu desgraças em troca de<br />

suas aspirações. Contudo, ao utilizar depois o termo a1rkuv, rede, instrumento que diz<br />

respeito à armadilha a qual o caçador se vale para capturar sua presa, Ésquilo retoma a<br />

imagem <strong>da</strong> caçadora. No texto, há, então, um misto de duas imagens, que retratam o<br />

duplo sentido <strong>da</strong> a1th: a cadela, que seduz e desnorteia e a caçadora que prende o<br />

indivíduo em sua armadilha. Note-se ain<strong>da</strong> que, enquanto o termo qeo/v, citado no início<br />

<strong>da</strong> passagem, indica a divin<strong>da</strong>de que desnorteia, evidenciando a associação de Xerxes<br />

com uma loucura divina causadora do excesso criminoso, o uso, no final <strong>da</strong> citação, do<br />

advérbio u3perqen, de cima, faz referência, no contexto, às divin<strong>da</strong>des do céu, que têm<br />

por finali<strong>da</strong>de castigar o homem que cometeu tal excesso. O âmbito <strong>da</strong> loucura, do<br />

excesso, do crime, em associação ao castigo se delineia perfeitamente aqui, mostrandose<br />

plenamente envolto pelo divino que, em dois momentos, age contra o homem,<br />

primeiramente, desnorteando-o e, depois, castigando-o.<br />

A confirmação de que determinados atos se constituem crime só é devi<strong>da</strong>mente<br />

apresenta<strong>da</strong> no decorrer do Terceiro Episódio, quando o Fantasma de Dario, que fora<br />

invocado pelos persas, com sua autori<strong>da</strong>de do além, julga certas atitudes como insanas<br />

e, por isso mesmo, criminosas. Agora, as citações a Xerxes passam a ser freqüentes. A<br />

menção ao ain<strong>da</strong> possível crime sai <strong>da</strong> boca de Atossa, após Dario questioná-la sobre a<br />

empreita<strong>da</strong> persa. Este diálogo entre Dario e Atossa (vv. 717 – 726) se mostra repleto de<br />

termos que dizem respeito a loucura:<br />

DAREIOS. ti/v d 0 e0mw~~n 0kei=se e pai/dwn e0strathla/tei; fra/son.<br />

ATOSSA. qou/riov Ce/rchv, kenw/sav pa~~san h0pei/rou pla/ka.<br />

DAREIOS. pezo\v h2 nau/thv de\ pei=ran th/nd 0 e0mw/ranen ta/lav;<br />

ATOSSA. a0mfo/tera: diplou~~n me/twpon h]n duoi ~~n strateuma/toin.<br />

DAREIOS. pw~~v de \ kai\ strato\v toso/sde pezo\v h1nusen pera~~n;<br />

ATOSSA. mhxanai=v e1zeucen 3Ellhv porqmo/n, w3st 0 e1xein po/ron.<br />

DAREIOS. kai\ to/d 0 e0ce/pracen, w3ste Bo/sporon klh|~~sai me/gan;<br />

ATOSSA. w[d 0 e1xei: gnw/mhv de/ pou/ tiv <strong>da</strong>imo/nwn cunh/yato.<br />

DAREIOS. feu~~, me/gav tiv h]lqe <strong>da</strong>i/mwn, w[ste mh\ fronei=n kalw~~v.<br />

ATOSSA. w9v i0dei=n te/lov pa/restin oi[on h1nusen kako/n.<br />

DARIO – E quem dentre meus filhos que aí estão era o chefe <strong>da</strong> arma<strong>da</strong>? Conta.<br />

ATOSSA – O impetuoso Xerxes, que esvaziou to<strong>da</strong> a superfície <strong>da</strong> Ásia.<br />

DARIO – A pé ou como navegante, o infortunado se mostrou louco nesta empresa?<br />

ATOSSA – Das duas maneiras; havia uma frente dupla para seus dois exércitos.<br />

DARIO – Mas como a arma<strong>da</strong> a pé, que era tão numerosa, conseguiu atravessar?<br />

ATOSSA – Por meios engenhosos, colocou um jugo no estreito de Hele, para ter a<br />

passagem.<br />

DARIO – E realizou isto, de modo a fechar o grande Bósforo?<br />

ATOSSA – Foi assim; de algum modo, uma dentre as divin<strong>da</strong>des se atracou ao seu<br />

espírito.<br />

DARIO – Pheû, uma grande divin<strong>da</strong>de chegou-lhe, para que não raciocinasse bem.<br />

ATOSSA – É possível ver o resultado de tão grande mal que ele causou.<br />

De início, o que se mostra em jogo nessa passagem é como Xerxes e seu<br />

exército conseguiram chegar a Atenas, uma ação que já é toma<strong>da</strong> como insana por<br />

Dario, independentemente <strong>da</strong> sorte dos persas na batalha. Desconhecendo ain<strong>da</strong> como o<br />

seu filho chegou à Grécia ocidental e calcado apenas no fato dele ter chegado a ela e<br />

perdido seu exército, Dario faz menção ao ato de Xerxes utilizando o verbo mwrai/nw,<br />

187


estar louco, agir loucamente, termo este que enfatiza to<strong>da</strong> a sua surpresa diante de uma<br />

atitude que ele considera fora do comum e que dá a Xerxes a primeira determinação que<br />

o coloca no âmbito <strong>da</strong> loucura. A passagem já remete também a um castigo, uma vez<br />

que o rei é citado como ta/lav, infortunado, um indivíduo que caiu em desgraça por<br />

causa de sua louca atitude. O rei Dario é construído por Ésquilo como um personagem<br />

atônito diante <strong>da</strong>s ações de seu filho, o que pode ser inferido pela série de perguntas<br />

que, a ca<strong>da</strong> resposta de Atossa, demonstra um crescente nível de perplexi<strong>da</strong>de.<br />

Quando Dario pergunta como se deu a passagem do Helesponto pelo exército<br />

em terra, a resposta <strong>da</strong> rainha já antecipa o veredicto que o fantasma pronunciará mais<br />

adiante. O crime já se revela (v. 722): Xerxes, de modo astucioso, colocou um jugo<br />

sobre o mar para que pudesse fazer tal travessia, ação estabeleci<strong>da</strong> no texto pelo uso do<br />

verbo zeu/gnumi, atrelar, sujeitar, e pelo substantivo mhxanh/, que, além de significar<br />

máquina, invenção, instrumento, possui, na ampliação de seu campo semântico, o<br />

sentido de fraude, expediente ardiloso. Tramar contra o mar divinizado trata-se de uma<br />

ação insana.<br />

A ênfase à loucura é coloca<strong>da</strong> no texto, de modo que ambos os personagens a<br />

citam na sua feição divina, chegando a conclusões bem próximas, mas com sutis<br />

variações. Primeiramente, Ésquilo constrói a conclusão de Atossa (v. 724) utilizando o<br />

verbo suna/ptw, unir, para fazer menção ao <strong>da</strong>i/mwn, divin<strong>da</strong>de TPF<br />

7<br />

FPT, que<br />

se encontra<br />

ligado ao espírito, ao intelecto, de Xerxes, expresso aqui pelo termo gnw/mh, que se<br />

prende ao campo semântico <strong>da</strong> razão humana. Na conclusão de Dario (v. 725), um<br />

ver<strong>da</strong>deiro lamento que mostra concordância com as palavras <strong>da</strong> rainha, há a repetição<br />

do termo <strong>da</strong>i/mwn, mas agora com a utilização do verbo e1rxomai ,ir, chegar, que indica<br />

movimento para um lugar; no caso, o próprio Xerxes é esse lugar, mais precisamente, a<br />

sua mente, o seu espírito representado pelo termo gnw/mh citado anteriormente, que fica<br />

comprometido quanto à razão, como se pode inferir pelo uso <strong>da</strong> expressão mh\ fronei=n<br />

kalw~~v , não raciocinar bem, que é a conseqüência <strong>da</strong> ação do <strong>da</strong>i/mwn. A palavra<br />

gnw/mh e a ação fronei~~n kalw~~v estão no âmbito <strong>da</strong> razão humana, sendo exatamente<br />

os elementos prejudicados em Xerxes pela presença e ação <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de. Por meio dos<br />

verbos usados por ca<strong>da</strong> personagem, desenha-se a loucura. Os verbos e1rxomai e<br />

suna/ptw representam ações que retratam bem a força que vai em direção a um<br />

indivíduo e nele se estabelece, deixando-o louco. Tão forte se mostra a simbiose entre<br />

homem e a divin<strong>da</strong>de que lhe turva a mente que não é possível saber, na última fala <strong>da</strong><br />

passagem seleciona<strong>da</strong>, se a rainha está se referindo a Xerxes ou à divin<strong>da</strong>de, quando<br />

menciona o kako/n, mal, causado pelo(a) mesmo(a).<br />

Evidencia-se para Dario que seu filho, nesse excesso, incorreu em impie<strong>da</strong>de<br />

contra certa divin<strong>da</strong>de. O monólogo de Dario presente no mesmo episódio é muito claro<br />

quanto a isso (vv. 739 – 751):<br />

7<br />

feu~~, taxei =a/ g 0 h]lqe xrhsmw~~n pra~~civ, 0v e de\ pai~~d 0 e0mo\n<br />

Zeu\v a0pe/skhyen teleuth\n qesfa/twn: e0gw\ de\ pou<br />

dia\ makrou~~ xro/nou ta/d 0 hu1xoun e0kteleuth/sein qeou/v:<br />

a0ll 0 o3tan speu/dh| tiv au0to/v, xw0 qeo\v suna/ptetai.<br />

nu=n kakw~~n 1oike e phgh\ pa~~sin hu 9rh~~sqai fi/loiv.<br />

pai=v d 0 e0mo\v ta/d 0 ou0 kateidw\v h1nusen ne/w| qra/sei:<br />

TP PT O termo <strong>da</strong>i/mwn, que, com o advento do Cristianismo, aparece, no Novo Testamento, designando uma<br />

divin<strong>da</strong>de maléfica, ou seja, o demônio, não possui em si mesmo nenhum sentido pejorativo na Grécia<br />

antiga. O termo serve para designar qualquer divin<strong>da</strong>de, que, ao ser nomea<strong>da</strong>, aí sim irá possuir um<br />

sentido maléfico ou benéfico. O caráter maléfico que, às vezes, o acompanha depende unicamente <strong>da</strong><br />

divin<strong>da</strong>de que lhe é associa<strong>da</strong>. Como será exposto mais adiante, o termo pode designar a a1th, cita<strong>da</strong> pelo<br />

coro no verso 98.<br />

188


o3stiv 9Ellh/sponton i9ro\n dou~~lon w4v desmw/masin<br />

h1lpise sxh/sein r9e/onta, Bo/sporon r9o/on qeou~~:<br />

kai\ po/ron meterru/qmize, kai\ pe/<strong>da</strong>iv sfurhla/toiv<br />

peribalw\n pollh\n ke/leuqon h1nusen pollw~~| stratw~~|,<br />

qnhto\v w2n qew~~n te pa/ntwn w1|et 0, ou0k eu0bouli/a|,<br />

kai\ Poseidw~~ nov krath/sein. pw~~v ta/d 0 ou0 no/sov frenw~~n<br />

ei]xe pai=d 0 e0mo/n;<br />

Pheû, sim, chegou rápi<strong>da</strong> a realização dos oráculos, e, para o meu filho,<br />

Zeus lançou a concretização dos desígnios divinos; mas eu, de algum modo,<br />

tinha o pressentimento de que os deuses as concretizariam só após um certo<br />

tempo;<br />

mas, quando o próprio indivíduo se esforça, o deus se une a ele.<br />

Agora, uma fonte de males parece que se evidencia para todos os amigos.<br />

E meu filho, que não observou isso, a estabeleceu com sua jovem audácia:<br />

ele que pretendeu prender como um escravo, por meio de cadeias,<br />

o Helesponto sagrado que corre livremente, o Bósforo, corrente de um deus;<br />

tanto modificou seu curso, quanto, ao lançar sóli<strong>da</strong>s ligaduras em torno dele,<br />

conseguiu um grande caminho para seu grande exército,<br />

e, apesar de ser mortal, pensava, não com bom conselho, ser soberano<br />

a todos os deuses e a Poseidon. Não foi, então, uma doença <strong>da</strong> mente<br />

que se apossava de meu filho?<br />

O agir insano presente na figura de Xerxes adquire nessa passagem to<strong>da</strong> a sua<br />

importância no âmbito <strong>da</strong> loucura e <strong>da</strong>s ações que causaram a perdição dos persas em<br />

Salamina. Dentro <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de do discurso construído para Dario, mais uma vez é<br />

possível notar a ação humana em união à ação divina. Dario estava a par, por causa <strong>da</strong><br />

informação dos oráculos, de que um dia males iriam se abater sobre o Império Pérsa, e,<br />

já de posse <strong>da</strong>s informações <strong>da</strong><strong>da</strong>s pela rainha, percebe que seu filho Xerxes foi o<br />

instrumento que possibilitou tais desgraças. Numa oração adversativa (v.742) que opõe<br />

a possibili<strong>da</strong>de de uma não tão recente concretização desses males aos males<br />

propriamente ditos, a ação de Xerxes aparece, como de praxe, auxilia<strong>da</strong> (num sentido<br />

figurado pejorativo, na ver<strong>da</strong>de, contrário à idéia de aju<strong>da</strong>) pela divin<strong>da</strong>de. Novamente,<br />

é o verbo suna/ptw que está sendo utilizado para retratar a união do deus ao espírito<br />

humano cuja invasão faz com que o homem cometa males, criando assim sua própria<br />

desgraça. Na oração temporal presente no mesmo verso, estabelece-se uma relação entre<br />

um esforço humano para a perdição e a conseqüente ação <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de que o auxilia a<br />

isso. Seria interessante se perguntar, portanto, se não há um excesso humano que se<br />

apresenta anterior à própria ação divina, uma predisposição ao crime que faria então<br />

com que a divin<strong>da</strong>de possuísse o homem para que o fizesse colocar em prática os seus<br />

intentos de poder. Pelo menos, nessa parte <strong>da</strong> tragédia, o texto permite essa inferência,<br />

mostrando que não se mostra gratuita a intervenção de uma divin<strong>da</strong>de na mente de<br />

determinado indivíduo.<br />

Mas o fato é que, em união, ambos, homem e divin<strong>da</strong>de, são causadores dos<br />

males, que são citados (v. 743). A expressão kakw~~n phgh/, fonte de males, é enfática<br />

graças ao artifício <strong>da</strong> metáfora. O valor paradoxal que a palavra phgh/, fonte, adquire na<br />

sua associação com o termo kakw~~n, de males, para construção de todo um enunciado<br />

metafórico, só é possível no interior do discurso trágico esquiliano. A expressão de<br />

idéias inerentes ao terror próprio de uma tragédia grega possibilita um discurso em que<br />

um termo inofensivo e, em outros contextos, até benfazejo, como fonte, expresse um<br />

mal. Não se trata de uma fonte de água ou, mesmo num valor figurado, de uma fonte de<br />

vi<strong>da</strong>, mas de uma fonte que é a expressão <strong>da</strong>s desgraças que se abateram sobre os<br />

persas.<br />

189


A partir desses males cuja culpa recai sobre Xerxes, começa a utilização de<br />

termos pejorativos que visam a retratar o rei como um homem que não está de posse de<br />

sensatez. Primeiramente, o Fantasma de Dario o toma por alguém imaturo, ao se referir<br />

a ele como possuidor de uma jovem audácia (v. 744). O substantivo qra/sov, audácia,<br />

ânimo, já pertence ao campo semântico do excesso, mas, ao ser determinado pelo<br />

adjetivo neo/v, jovem, aumenta em muito o caráter de irresponsabili<strong>da</strong>de que Dario<br />

concede a seu filho. Na seqüência de sua fala, o fantasma cita, definitivamente, o crime<br />

ao qual se liga a figura de Xerxes: a já menciona<strong>da</strong> transposição do Helesponto por uma<br />

ponte ata<strong>da</strong> por cor<strong>da</strong>s. Na comparação com o termo dou~~lov, escravo, se finca o<br />

excesso no texto: Xerxes considerou o Estreito de Bósforo, a corrente de um deus (r9o/ov<br />

qeou~~), como um força que estava subordina<strong>da</strong> aos seus desejos de poder. Na oposição<br />

entre deus e homem, estabelece-se o excesso, o crime, cometido por Xerxes, tão bem<br />

retratado nos versos 749 e 750, qnhto\v w2n qew~~n te pa/ntwn w1|et(o) kai\ Poseidw~~nov<br />

krathsein, sendo mortal, pensava ser soberano a todos os deuses e a Poseidon. O<br />

verbo oi1w, pensar, que diz respeito a uma operação intelectual, expõe um pensamento<br />

que está fora dos padrões que definem uma boa conduta. Ninguém pode se considerar<br />

superior a uma divin<strong>da</strong>de e muito menos lhe medir forças. Ao esquecer-se de sua<br />

condição de mero mortal, Xerxes possibilita que se associe a ele determinações que<br />

estão no âmbito <strong>da</strong> loucura. Há uma negação a um tipo de pensamento sensato, marcado<br />

pelo termo eu0bouli/a|, bom conselho, e, por fim, na associação mais importante,<br />

presente na interrogação entre os versos 750 e 751, Ésquilo, por meio do personagem<br />

Dario, lança mão do termo no/sov frenw~~n, doença <strong>da</strong> mente, para indicar o estado<br />

mental ao qual Xerxes se encontrava ao ter a prepotência de transpor o mar. O<br />

protagonista, finalmente, é, então, citado como um homem que apresenta um distúrbio<br />

<strong>da</strong> mente que o faz agir de maneira errônea.<br />

Na passagem seguinte, o Fantasma de Dario faz menção a um novo crime, com<br />

o seu conseqüente castigo. Embora o crime e o castigo sejam um tanto diferentes dos<br />

que tinham um foco apenas no indivíduo Xerxes, Ésquilo produz seu discurso nos<br />

mesmos moldes citados anteriormente, a saber, com uma construção de uma loucura<br />

liga<strong>da</strong> ao divino, que é causadora de rastros de destruição para os homens que são<br />

dominados por ela (vv. 809-822):<br />

oi4 gh~~n molo/ntev 9Ella/d 0 ou0 qew~~n bre/th<br />

h|0dou~~nto sula~~n ou 0de\ pimpra/nai new/v:<br />

bwmoi\ d 0 a1istoi, <strong>da</strong>imo/nwn q 0 i0dru/mata<br />

pro/rriza fu/rdhn e0cane/straptai ba/qrwn.<br />

toiga\r kakw~~v dra/santev ou 0k e0la/ssona<br />

pa/sxousi, ta\ de\ me/llousi, kou0de/pw kakw~~n<br />

krhni\v a0pe/sbhk 0, a0ll 0 e1t 0 e0kpidu/etai.<br />

to/sov ga\r e1stai pe/lanov ai9matosfagh\v<br />

pro\v gh~~| Plataiw~~n Dwri/dov lo/gxhv 3po: u<br />

qi~~nev nekrw~~ n de\ kai\ tritospo/rw| gonh|~~<br />

a1fwna shmanou~~sin o1mmasin brotw~~ n<br />

w9v ou0x u9pe/rfeu qnhto\n o1nta xrh\ fronei~~n.<br />

u3briv ga\r e0canqou~~s e0ka/rpwsen 0 sta/xun<br />

a1thv, o3qen pa/gklauton e0cama~~| qe/rov.<br />

Eles que, após terem chegado à terra <strong>da</strong> Grécia, não temeram<br />

pilhar as imagens dos deuses e nem incendiar templos;<br />

e altares desapareceram, e estátuas <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des<br />

foram tira<strong>da</strong>s de cima dos pedestais, pela raiz, confusamente.<br />

Por isso, ao agirem mal, sofrem não pouco,<br />

e coisas estão previstas, pois ain<strong>da</strong> não se extinguiu<br />

190


a fonte de males, pelo contrário, ain<strong>da</strong> está brotando.<br />

Com efeito, muito numerosa será a mistura que devora o sangue,<br />

próximo à terra de Platéia, sob a lança dórica;<br />

E também montes de mortos, aos olhos dos homens, irão revelar,<br />

sem falar, aos engendrados até a terceira geração,<br />

que não convêm, sendo mortal, ter pensamentos soberbos.<br />

Com efeito, o excesso, florescendo, produziu a espiga<br />

<strong>da</strong> perdição, porque ceifa uma completa colheita de lamentos.<br />

Dario está falando, na ver<strong>da</strong>de, de sol<strong>da</strong>dos persas que não participaram <strong>da</strong><br />

Batalha de Salamina, mas que invadiram Atenas, juntamente com o restante do exército,<br />

cometendo grandes atroci<strong>da</strong>des numa ci<strong>da</strong>de evacua<strong>da</strong>. Esses persas, que permaneceram<br />

na região <strong>da</strong> Beócia, irão também sofrer pelos excessos cometidos. Na construção de<br />

seu texto, Ésquilo consegue, metodicamente, fazer com que se sobressaia uma divisão<br />

bem evidente dos elementos que se encontram no âmbito <strong>da</strong> loucura. Há,<br />

primeiramente, uma exposição dos crimes (vv. 809-812), e, depois, delineia-se o castigo<br />

divino (vv. 813-823), rodeado por frases morais de grande efeito dramático.<br />

De início (vv. 809 e 810), os verbos sula/w, pilhar, e pi/mprhmi, incendiar,<br />

direcionados, respectivamente, para objetos sagrados como qew~~n bre/th, imagens dos<br />

deuses, e new/v, templos, dão o grau de gravi<strong>da</strong>de dos atos cometidos contra os deuses.<br />

Os persas são categoricamente acusados de impie<strong>da</strong>de contra as divin<strong>da</strong>des. De forma<br />

crescente, nos versos seguintes (vv. 811 e 812), prosseguem os atos de profanação:<br />

bwmoi\ a1istoi, altares desapareceram, e <strong>da</strong>imo/nwn i0dru/mata e0cane/straptai<br />

ba/qrwn, estátuas foram tira<strong>da</strong>s de cima dos pedestais.<br />

Tais ações só poderiam gerar sofrimento para aqueles que as cometeram. É<br />

interessante o jogo entre duas palavras cognatas: uma má conduta, ação esta enfatiza<strong>da</strong><br />

pelo advérbio kakw/v (v. 813), só poderia gerar uma fonte de males, krhni/v kakw~~n (vv.<br />

814 e 815) contínua. Mais uma vez se estabelece um enunciado metafórico que tem sua<br />

expressivi<strong>da</strong>de assegura<strong>da</strong> pelo paradoxo, pois o termo krhni/vTPF<br />

8<br />

FPT, que<br />

indica, no seu<br />

sentido denotativo, simplesmente uma fonte pequena, permite, quando associado a<br />

substantivos abstratos, a criação de imagens varia<strong>da</strong>s. Na passagem em <strong>questão</strong>,<br />

estabelece-se uma imagem de terror, uma vez que tal termo se encontra determinado<br />

pelo adjetivo substantivado kako/v, frequentemente utilizado por Ésquilo. Forma-se<br />

assim uma expressão que indica metaforicamente o turbilhão de desgraças que recai<br />

sobre os homens. Na oração adversativa que se segue, o verbo e0kpidu/omai, brotar,<br />

enfatiza de que se trata de uma fonte cujas desgraças ain<strong>da</strong> se encontram no seu início.<br />

O castigo é enfim citado (vv. 816 e 817): na associação <strong>da</strong> palavra pe//lanov, que<br />

9<br />

indica qualquer tipo de mistura prepara<strong>da</strong> para um sacrifícioTPF FPT, com o adjetivo<br />

ai9matosfagh\v, que devora o sangue TPF<br />

10<br />

FPT, Ésquilo<br />

recria a imagem de um sangrento<br />

sacrifício para designar a derrota que os persas remanescentes iriam sofrer na Batalha de<br />

Platéia. A imagem de mortos amontoados, assim como o ensinamento proveniente dessa<br />

terrível imagem (vv. 818 - 820) ficará, para sempre, na memória dos homens. O<br />

desenho <strong>da</strong> loucura fica claro na presença de uma espécie de conselho que traz o verbo<br />

frwne/w, pensar, ter pensamentos, numa negação, associado ao advérbio u9pe/rfeu,<br />

8<br />

TP PT Na edição de Edith Hall (p. 86), prefere-se o termo krhpi/v (alicerce, fun<strong>da</strong>mento) no lugar de krh/niv.<br />

Forma-se assim, entre os versos 814 e 815 uma imagem também interessante: kakw~~n krhpi/v, alicerce de<br />

males.<br />

9<br />

TP PT O Greek-English Lexicon de Liddell & Scott traz o seguinte verbete sucinto acerca do termo pe/lanov:<br />

qualquer mistura meio líqui<strong>da</strong> de consistência varia<strong>da</strong>; uma massa mistura<strong>da</strong> aplica<strong>da</strong> a óleo, mel,<br />

espuma, sangue coagulado. 2- de uma mistura ofereci<strong>da</strong> aos deuses, de comi<strong>da</strong>, mel e óleo, despeja<strong>da</strong>.<br />

10<br />

TP<br />

PT Na edição de Edith Hall, encontra-se também a forma ai9matostagh/v, gotejante de sangue.<br />

191


além, demasia<strong>da</strong>mente. O ensinamento que mais uma vez se sobressai é uma oposição<br />

ao excesso: alguém que é qnhto\v, mortal, não pode tentar superar os deuses. Na<br />

medi<strong>da</strong> em que essa tentativa de ir além se constitui um sair de si, ela se aproxima do<br />

conceito de loucura. O excesso do louco gera o crime, que, por sua vez, gera o castigo.<br />

Fica claro que a passagem seleciona<strong>da</strong> se constrói inteira sob a égide do excesso,<br />

ou seja, do ato criminoso. Na última frase (vv. 821 e 822), o importante termo grego<br />

que designa o excesso é enfim citado: trata-se <strong>da</strong> u3briv, cuja ação aparece num<br />

enunciado metafórico notável. Ésquilo cria, em torno de tal termo, todo um discurso<br />

repleto de elementos provenientes <strong>da</strong> natureza, elementos esses que são comumente<br />

citados como inofensivos e até benéficos ao homem. Ao fazer isso, o tragediógrafo<br />

novamente constrói o paradoxo possibilitado por sua linguagem trágica.<br />

O valor paradoxal já se encontra no emprego do próprio verbo, que, como a<br />

maioria <strong>da</strong>s palavras <strong>da</strong> frase, pertence ao campo semântico <strong>da</strong> natureza: trata-se de um<br />

excesso que floresce, ação esta representa<strong>da</strong> pelo verbo e0canqe/w. Nesse florescer, a<br />

u3briv produz (outro verbo próprio do âmbito <strong>da</strong> natureza, karpo/w, produzir, <strong>da</strong>r<br />

frutos) um grão metafórico, niti<strong>da</strong>mente paradoxal, a sta/xuv a1thv, a espiga <strong>da</strong><br />

perdição. O paradoxo surge no termo sta/xuv, espiga, quando a ele é associado o termo<br />

a1th, aqui traduzido por perdição TPF<br />

11<br />

FPT .<br />

Com sua grande quanti<strong>da</strong>de de termos extraídos<br />

do campo semântico <strong>da</strong> natureza, forma-se em to<strong>da</strong> essa passagem uma <strong>da</strong>s imagens<br />

mais ricas <strong>da</strong> tragédia: todo um enunciado metafórico que, em sua função figura<strong>da</strong>,<br />

representa o agir do herói trágico, entre os pólos do crime e do castigo.<br />

Por fim, fica, respectivamente, a afirmação de Dario e seu conselho para Atossa,<br />

com o segundo, afigurando-se como um ver<strong>da</strong>deiro dito gnômico que se forma em torno<br />

do personagem Xerxes. As duas frases, em seu caráter sucinto e direto, servem para<br />

finalizar esse trabalho (vv. 827 – 831):<br />

Zeu/v toi kolasth\v tw~n u9perko/mpwn a1gan<br />

fronhma/twn e1pestin, eu1qunov baru/v.<br />

pro\v tau~~t 0 e0kei=non, swfronei=n kexrhme/non,<br />

pinu/sket 0 eu0lo/goisi nouqeth/masin,<br />

lh~~cai qeoblabou~~nq 0 u9perko/mpw| qra/sei.<br />

Certamente, Zeus é o castigador dos pensamentos<br />

muito soberbos, juiz severo.<br />

Por isso, uma vez que precisa de sensatez,<br />

inspira-o com conselhos bem ditos,<br />

para que ele deixe de ofender os deuses com sua soberba imprudência.<br />

A justiça divina, na figura de Zeus, o maior dos deuses é evoca<strong>da</strong> para opor a<br />

ordem, a boa medi<strong>da</strong>, a sensatez (caráter esse expresso pelo verbo swfronei=n, ser<br />

prudente, sensato) às ações de Xerxes. O adjetivo u9perko/mpov, soberbo, aparece duas<br />

vezes nessa passagem: primeiramente determinando o termo fro/nhma (v. 828),<br />

pensamento, e, depois, o termo qra/sov (v. 831), imprudência. Tudo isso enfatiza um<br />

agir de forma excessiva, o agir de Xerxes por meio <strong>da</strong> u3briv; algo que se coloca como<br />

uma ação que está fora <strong>da</strong> condição humana, o que remete tal discurso à loucura. Nessa<br />

curta passagem, estabelece-se uma síntese <strong>da</strong> loucura, na presença do excesso que gera<br />

o castigo. Elementos indissociáveis dentro <strong>da</strong> tragédia esquiliana.<br />

11<br />

TP<br />

PT Diferentemente do que ocorre no párodo (cf. nota 4), a palavra a1th aqui, de acordo com o sentido<br />

expresso no texto de Ésquilo, parece mais indicar o substantivo do que a divin<strong>da</strong>de propriamente dita.<br />

Contudo, tanto a força <strong>da</strong> divin<strong>da</strong>de, com seu poder de seduzir e arruinar o homem, quanto o significado<br />

do substantivo se equivalem, estando ligados e muito próximos.<br />

192


BIBLIOGRAFIA:<br />

AESCHYLUS. Suppliant Maidens, Persians, Prometheus, Seven against Thebes. Greek<br />

text with an English translation by Herbert Weir Smyth. Massachusetts: Loeb Classical<br />

Library, 2001.<br />

________ Persians. Greek text with an Introduction, Translation and Commentary<br />

by Edith Hall. Warminster: Aris & Phillips LTDA, 1997.<br />

ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, 1; tradução do<br />

grego, apresentação e notas Jackie Pigeau; tradução para o português de Alexei Bueno.<br />

Rio de Janeiro: Lacer<strong>da</strong> Editores, 1998.<br />

BAILLY, A. Dictionnaire Grec – Français. Ed. rev. et aum. par L. Sechan et P.<br />

Chantraine. Paris: Hachette, 1983.<br />

DUMORTIER, Jean. Les images <strong>da</strong>ns la poésie d’ Eschyle. Paris: Société d’ Édition<br />

Les Belles Lettres, 1975.<br />

ESCHYLE. Théâtre: Les Suppliantes, Les Perses, Les Sept contre Thèbes, Prométhée<br />

Enchainé, L’ Agamemnon, Les Choéphores, Les Euménides. Traduction nouvelle avec<br />

texte, avant-propos, notices et notes par Émile Chambry. Paris: Librairie Garnier Frères,<br />

1946.<br />

ÉSQUILO. Persas. Trad. do grego por Manuel de Oliveira Pulquério. Coimbra: Centro<br />

de Estudos Clássicos e Humanísticos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, 1992.<br />

FIALHO, Maria do Céu. Os Persas de Ésquilo na Atenas do seu tempo. In: Máthesis<br />

13. 2004.<br />

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega: ensaio sobre<br />

aspectos do trágico. São Paulo: Edições Loyola, 2001.<br />

GRIMAL, Pierre. Dicionário <strong>da</strong> Mitologia Grega e Romana. Trad. Do francês por<br />

Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.<br />

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura <strong>Clássica</strong>. Trad. do inglês por Mário<br />

<strong>da</strong> Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.<br />

HORTA. G. N. B. P. Os Gregos e seu Idioma. Rio de Janeiro: J. Di Giorgio, 1978. 2 v.<br />

KITTO, H. D. F. A Tragédia Grega. Trad. do inglês e prefácio de José Manuel<br />

Coutinho e Castro. Coimbra: Armênio Amado, 1972. 2 v.<br />

LESKY, Albin. A Tragédia Grega. Trad. do alemão por J. Guinsburg, Geraldo Gerson<br />

de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />

LIDDELL & SCOTT. Greek – English Lexicon. Great Britain: University Press,<br />

Oxford, 1935.<br />

193


MAFFRE, Jean-Jacques. O Século de Péricles – Introdução à Civilização Grega. Trad.<br />

do francês por Maria do Carmo Pires. Men Martins: Europa-América, 1993.<br />

MALHADAS, Daisi. O Mito em Cena. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.<br />

MICHELINI, Ann N. Tradition and Dramatic Form in the Persians of Aeschylus. Brill<br />

Academic Publishers. Cincinati Classical Studies, 1997.<br />

MOREAU, Alain. Eschyle, la Violence et le Chaos. Paris: Société d’ Édition Les Belles<br />

Lettres, 1985.<br />

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo. Trad. do francês por Emanuel<br />

Godinho. Lisboa: Edições 70, 1984.<br />

_____ Atenas – A História de uma democracia. Trad. do francês por João Batista<br />

<strong>da</strong> Costa. Brasília: UnB, 1997.<br />

_____ Dicionário <strong>da</strong> Civilização Grega. Trad. do francês por Carlos Ramalhete.<br />

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.<br />

NOGUEIRA, Ricardo de Souza. Etéocles, o Chefe Ideal. Dissertação de Mestrado<br />

defendi<strong>da</strong> em 29 de julho de 2002. Facul<strong>da</strong>de de Letras, UFRJ.<br />

RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva. Trad. do francês de Dion Davi Machado. São Paulo:<br />

Edições Loyola, 2000.<br />

ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Trad. do francês por Ivo Martinazzo.<br />

Brasília: UnB, 1998.<br />

ROSENMEYER, Thomas G. The art of Aeschylus. Los Angeles: University of<br />

California Press, 1982.<br />

SANTIAGO, Rosa-Araceli. Griegos y bárbaros: arqueologia de uma alteri<strong>da</strong>d.<br />

Trabayo realizado em el marco del Proyecto de Investigación financiado por la<br />

DGICYT PS 94-0118. Faventia 20/2, 1998.<br />

SEARLE, John R. Expressão e Significado: estudos <strong>da</strong> teoria dos atos <strong>da</strong> fala. Trad. do<br />

inglês por Ana Cecília G. A. de Camargo & Ana Luiza Marcondes Garcia. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2002.<br />

SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. Trad. do<br />

alemão por Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2001.<br />

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o Trágico. Trad. do alemão de Pedro Süssekind. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.<br />

VERNANT, Jean Pierre & NAQUET, Pierre Vi<strong>da</strong>l. Mito e Tragedia na Grécia Antiga.<br />

Trad. do francês por diversos tradutores. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />

194


195


O FOGO: a intervenção moralizante do Olimpo nos contos<br />

de fa<strong>da</strong><br />

Sonia Maria Branco de Freitas Maia (Especialista em Arteterapia<br />

Junguiana pela UCAM)<br />

Palavras-chave: mitologia; Prometeu; Contos de Fa<strong>da</strong>; Vasalisa; Baba Yaga;<br />

fogo<br />

Resumo: Prometeu criou o homem e deu a ele o fogo, sinal de sabedoria, de<br />

vi<strong>da</strong>, de transformação e de morte. Concomitantemente, no conto Vasalisa a<br />

existência <strong>da</strong> menina está diretamente liga<strong>da</strong> aos olhos de fogo <strong>da</strong> caveira que<br />

pertence à Baba Yaga, senhora do fogo que dá a vi<strong>da</strong> e a destruição. Nesta<br />

comunicação verificaremos as ligações míticas e ocultas entre o fogo de<br />

Prometeu e o fogo de Baba Yaga, distinguindo a ação prazerosa do fogo de<br />

Prometeu <strong>da</strong> ação moralizante de Baba Yaga.<br />

Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier (1982) “Assim como o<br />

Sol, pelos seus raios, o fogo simboliza por suas chamas a ação fecun<strong>da</strong>nte,<br />

purificadora e iluminadora...”<br />

Mircea Eliade observa que o fogo obtido por meio <strong>da</strong> fricção é<br />

considerado como resultado (a progenitura) de uma união sexual..<br />

G. Durand observa que a sexualização do fogo esta claramente<br />

sublinha<strong>da</strong> em numerosas len<strong>da</strong>s, que situam o lugar natural do fogo na cau<strong>da</strong><br />

de um animal (DURS, 360-361).<br />

Nessa perspectiva, o fogo, na quali<strong>da</strong>de de elemento que queima e<br />

consome, é também símbolo <strong>da</strong> purificação e de regenerescência. Reencontrase,<br />

pois, o aspecto positivo <strong>da</strong> destruição: nova inversão do símbolo(...) Mas o<br />

fogo distingue-se (..)porquanto ele simboliza a purificação pela compreensão,<br />

até a mais espiritual de suas formas, pela luz e pela ver<strong>da</strong>de (...) (DIES, 37-38)<br />

Tudo começa na Cosmogonia, a origem dos homens, do Cosmos, do<br />

Universo e com ela, os Deuses, O Deus Masculino Único, punidor e impiedoso;<br />

com ela, surgem Deuses de várias espécies, com sentimentos e emoções<br />

típicas de humanos. Para algumas religiões, oriun<strong>da</strong>s do próprio criador; para<br />

outras, cedi<strong>da</strong>s por outra enti<strong>da</strong>de divina para que eles pudessem se sentir<br />

pródigos filhos <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des.<br />

Ira, ódio, paixão, amor, fúria, carinho, imorali<strong>da</strong>de, lasciva, e aí se vai....<br />

numa torrente enorme de múltiplas emoções que hora os igualam aos homens,<br />

hora iguala os homens aos seus Deuses.<br />

Em geral, todos, todos eles necessitam do fogo, e a importância deste<br />

fogo toma formas e simbolismos maiores e menores de acordo com a crença<br />

de ca<strong>da</strong> ser humano.<br />

Mas, embora apareçam em várias citações religiosas, também esta<br />

presente em vários contos de fa<strong>da</strong>, de len<strong>da</strong>s de vários povos e de histórias.<br />

Neste trabalho faremos uma analogia entre a moral e o prazer do Fogo.<br />

O Fogo que queima a paixão de um semi-deus, e o fogo que transforma<br />

moralmente a vi<strong>da</strong> de uma menina só: Prometeu e Vasalisa.<br />

A intuição é o tesouro <strong>da</strong> psique <strong>da</strong> mulher, segundo Éster (1992, p99).<br />

O antigo conto russo de “Vasalisa” é a história praticamente intacta <strong>da</strong> iniciação<br />

de uma menina, para se tornar a guardião do fogo criativo e para ter uma<br />

compreensão íntima dos ciclos de vi<strong>da</strong>-morte-vi<strong>da</strong> de to<strong>da</strong> natureza – assim é<br />

a mulher inicia<strong>da</strong> (Éster, 1992, p100)<br />

196


A história de Vasalisa é conta<strong>da</strong> na Rússia, na Romênia, na Iugoslávia,<br />

na Polônia, e em todos os países bálticos.<br />

Ela fala, então <strong>da</strong> menina Vasalisa, que no leito de morte <strong>da</strong> mãe,<br />

recebe como herança uma bonequinha de pano, <strong>da</strong> qual nunca deveria se<br />

afastar.<br />

Segundo a mãe, caso Vasalisa necessite de aju<strong>da</strong>, ou se perder,<br />

bastaria perguntar à boneca o que fazer e a boneca a aju<strong>da</strong>ria. A mãe ain<strong>da</strong><br />

chamava a atenção para que nunca contasse a ninguém sobre ela. Como em<br />

todo conto de fa<strong>da</strong>, o pai de Vasalisa se casa com uma mulher e duas filhas,<br />

que diante do pai tratavam Vasalisa com carinho mas por suas costas a<br />

obrigavam as mais cruéis tarefas. Também como em todo conto de fa<strong>da</strong>, o pai<br />

desaparece em algum momento <strong>da</strong> narrativa e não aparece mais, fazendo com<br />

que a heroína sofra as mais duras provas , por inveja <strong>da</strong>s irmãs e <strong>da</strong> ma<strong>da</strong>stra<br />

que eram egoístas e mais feias que a menina.<br />

Um certo dia a ma<strong>da</strong>stra e suas filhas combinaram de deixar o fogo se<br />

apagar e, então, man<strong>da</strong>ram Vasalisa entrar na floresta para ir pedir fogo para a<br />

a lareira, à Baba Yaga, a bruxa. E, quando ela chega à Baba Yaga a feiticeira, a<br />

velha irá comê-la.<br />

O argumento usado pelas três era o fato de que Vasalisa era a única em<br />

condições de sair floresta adentro para encontrar Baba Yaga e conseguir dela<br />

uma brasa para acender o fogo <strong>da</strong> lareira novamente.<br />

A menina aceita o desafio e vai ao encontro de seu destino de sua fa<strong>da</strong>.<br />

Durante o caminhar Vasalisa encontrou com vários personagens estranhos,<br />

bizarros e cheios de simbolismo. Mas ao chegar à casa de Yaga a cerca feita<br />

de caveiras e ossos ao redor <strong>da</strong> choupana começou a refulgir com um fogo<br />

interno de tal forma que a clareira ali na floresta ficou ilumina<strong>da</strong> com uma luz<br />

espectral.<br />

Ain<strong>da</strong> mais estranha era a casa de Baba Yaga<br />

A bruxa pergunta: O que quer aqui?<br />

Vovó, vim apanhar fogo. Esta frio em minha casa... o meu pessoal vai<br />

morrer... preciso de fogo.<br />

Ah, sssei, Conheço você e seu pessoal. Bem criança inútil, você deixou<br />

o fogo se apagar. O que é muita imprudência. Além do mais o que a fez pensar<br />

que eu lhe <strong>da</strong>ria a chama?<br />

Porque estou pedindo.<br />

E esta era, então, a resposta certa para Baba Yaga.<br />

Baba em russo, quer dizer mãe. É a mãe má, a que nos limita, a que nos<br />

mostra como o mundo não é seguro, mas que nos acolhe e nos faz aprender a<br />

seguir a vi<strong>da</strong>, mesmo que não em sua presença. Para Vasalisa, Yaga era Baba.<br />

Por responder certo, teve que cumprir uma série de tarefas que representam<br />

as tarefas <strong>da</strong> psique feminina. Elas se concentram na aprendizagem dos<br />

hábitos <strong>da</strong> velha mãe, é uma forma de reinstalar a intuição na psique feminina.<br />

A iniciação de Vasalisa se inicia quando ela deixa morrer o que há de<br />

morrer, isso significa receber e deixar vir novos valores e atitudes para se<br />

tornar uma nova pessoa, uma mulher, para tornar-se a mãe-boa <strong>da</strong> infância<br />

<strong>da</strong>s crianças.<br />

A ma<strong>da</strong>stra e suas filhas representam os elementos perversos <strong>da</strong><br />

psique. Trata-se dos elementos sombrios, que negamos e desejamos que<br />

permaneçam no fundo <strong>da</strong> nossa consciência. No entanto, o material <strong>da</strong> sombra<br />

também é útil, pois quando ele irrompe e nós o identificamos tornamo-nos mais<br />

197


sábias e mais fortes.<br />

Na história, a família <strong>da</strong> ma<strong>da</strong>stra suga a força psíquica de Vasalisa, de<br />

tal forma, que o fogo se extingue. Ela, como nós, precisamos de uma luz de<br />

orientação que diferencie o que é bom e o que não é.,<br />

Segundo Estés (1992, 115) A luz se extingue. É uma forma dolorosa de<br />

vi<strong>da</strong> latente. Inversamente, com toque de perversi<strong>da</strong>de, quando o fogo se<br />

apaga, isso aju<strong>da</strong> Vasalisa a despertar <strong>da</strong> sua submissão à família <strong>da</strong><br />

ma<strong>da</strong>stra.<br />

Baba Yaga é assustadora por possuir ela mesma o poder <strong>da</strong> aniquilação<br />

e o poder <strong>da</strong> força <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Uma <strong>da</strong>s faces mais notáveis de Yaga esta no fato de que embora ela<br />

seja ameaçadora, ela é justa!<br />

Miticamente, para cozinhar para a Yaga, acende-se o fogo. A mulher<br />

precisa arder, arder de paixão, arder com palavras, com idéias, com desejos.<br />

Isso vai contra to<strong>da</strong> a moral.<br />

O fogo exige atenção porque é fácil de se apagar. Sem fogo nossas<br />

grandes idéias, nossos pensamentos originais, nossos anseios e desejos<br />

continuam crus.<br />

Yaga sente repulsa pela mãe-boa faleci<strong>da</strong> de Vasalisa e entrega à ela a<br />

luz. - uma caveira incandescente numa vara.<br />

A caveira com a luz incandescente é um símbolo de adoração dos<br />

ancestrais.<br />

Portanto, quando Yaga entrega uma caveira acesa, ela esta lhe <strong>da</strong>ndo<br />

um ícone de velha, uma “ancestral sábia” que deverá carregar pelo resto <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>.<br />

Vasalisa volta para casa com a caveira incandescente na vara. uma vez<br />

de volta, a caveira observa a ma<strong>da</strong>stra e suas filhas, queimando-as até reduzílas<br />

a cinzas, pois ela possui os olhos incandescentes que lhes dá uma visão<br />

aguça<strong>da</strong> para reconhecer a sombra negativa <strong>da</strong> nossa própria psique.<br />

Reformular as sombras negativas <strong>da</strong> própria psique com o fogo-<strong>da</strong>megera<br />

e que reduz a sombra em cinzas.<br />

A caveira é mais que a representação <strong>da</strong> intuição. Ela dispõe do poder<br />

discriminatório exclusivo, fazendo com que agora, Vasalisa leve a chama do<br />

conhecimento.<br />

Essa luz <strong>da</strong> caveira não perdoa, ela vê o que vê. Ela denuncia a inveja<br />

oculta como gordura fria por trás de um sorriso de carinho.<br />

A moral é deixar morrer. É o tema final <strong>da</strong> história. Vasalisa não chora<br />

histericamente esperando por um salvador. Não. Ela sabe, o que deve morrer,<br />

deve morrer. Podemos nos enganar por diversos motivos, mas sabemos, pela<br />

luz <strong>da</strong> caveira incandescente nos sabemos.<br />

A moral responde à pergunta: “O que devo fazer?. É o conjunto dos<br />

meus deveres, em outras palavras, dos imperativos que reconheço<br />

como legítimos – mesmo que, às vezes , como todo o mundo, eu os<br />

viole. É a lei que imponho a mim mesmo, ou que deveria me impor,<br />

independentemente do olhar do outro e de qualquer sanção ou<br />

recompensa.<br />

O que devo fazer? E não: “O que os outros devem fazer? É o que<br />

distingue a moral do moralismo (Aranha e Martins apud Comte-<br />

Sponville)<br />

No caso do conto de Vasalisa, a moral destruidora dos olhos<br />

incandescentes <strong>da</strong> caveira faz com que ela possa eliminar as sombras que a<br />

assustam para tornar-se a mulher mãe-boa num futuro próximo, mas , ao<br />

198


mesmo tempo, a guardiã eterna do fogo destruidor e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

A caveira sabe, a caveira julga: destruir ou consolar: Yaga é<br />

assustadora, mas é justa!.<br />

“A generosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> moral planetária supõe a garantia <strong>da</strong><br />

plurali<strong>da</strong>de dos estilos de vi<strong>da</strong>, a aceitação <strong>da</strong>s diferenças, sem<br />

sucumbir à tentação de dominar o outro, o que ocorre sempre<br />

que a diferença é vista como sinal de inferiori<strong>da</strong>de e de<br />

desigual<strong>da</strong>de.(Martins e Aranha, 1992, p2320.)”<br />

O fogo <strong>da</strong>s paixões é visto em Prometeu, o pai zeloso que cria seus<br />

filhos do barro e de suas próprias lágrimas. Incessantemente trabalha com<br />

paixão e arte aquela massa informe, até que ela tome a forma e as feições<br />

semelhantes à de um deus.<br />

Deslumbrado com sua criação, Prometeu decide esculpir uma multidão<br />

de estátuas. E, por noites e dias inteiros, debruça-se sobre o barro e dá-lhe<br />

formas sob modelos divinos.<br />

Quando termina, percebe que lhe falta algo mais, falta-lhes a vi<strong>da</strong>.<br />

Ele insufla, então, nas estátuas, caracteres de animais: a coragem do<br />

leão.,, a fideli<strong>da</strong>de do cavalo, a força do touro, a esperteza <strong>da</strong> raposa, a avidez<br />

do lobo.<br />

E as criaturas de barro começam a se movimentar. Mas, ain<strong>da</strong> falta -lhes<br />

a faísca do espírito divino, que as tornará capazes de ousar.<br />

Atena, deusa <strong>da</strong> sabedoria, decide aju<strong>da</strong>r Prometeu. Pega uma taça<br />

cheia de néctar divino, desce ao mundo e entrega-a a todos aqueles seres,<br />

para que sorvam algumas gotas.<br />

De repente, de ca<strong>da</strong> um, surge uma luz nova e bela. Agora são homens.<br />

Têm alma.<br />

A paixão do pai que cria e ensina suas crias é mais forte do que o medo<br />

de Zeus. Na ver<strong>da</strong>de, Prometeu não é um deus, é um Titã, o que faz dele um<br />

semi-comprometeu significa o despertar <strong>da</strong> consciência, o princípio <strong>da</strong><br />

intelectualização.<br />

Foi cria<strong>da</strong> uma peça em sua homenagem, mas a <strong>da</strong>ta precisa de sua<br />

representação gira em torno do ano 472 ª C. - Prometheus Pyrkaeus<br />

(Prometeu que Queima com o Fogo), mas a ver<strong>da</strong>de é que o tema é uma<br />

trilogia: Prometeu Acorrentado, Prometeu Libertado e Prometeu Portador do<br />

Fogo. Não há versões integrais <strong>da</strong>s duas últimas peças, apenas fragmentos<br />

que não contribuem para sua <strong>da</strong>tação ou mesmo enredo completo.<br />

O Senso comum levar-nos-ia a pensar que ao crime de Prometeu se<br />

seguiria o castigo e a este a libertação. Teríamos, então, em primeiro lugar, o<br />

Prometheus Pyrphoros (Prometeu Portador do Fogo) – que contaria a dádiva<br />

do fogo aos homens – em segui<strong>da</strong> o Prometeu Acorrentado e, por fim, o<br />

Prometeu Libertado – que marcaria o termo <strong>da</strong>s penas do Titã.<br />

Existem alguns argumentos que fariam nos crer que a ordem <strong>da</strong>s peças<br />

seria a seguinte: Prometeu Acorrentado, Prometeu Libertado e Prometeu<br />

Portador do Fogo., estes argumentos seriam:<br />

por um lado, , no Prometeu Acorrentado, os acontecimentos anteriores<br />

são relatados com tal pormenor que somos levados a pensar que esta é<br />

a primeira peça <strong>da</strong> trilogia;<br />

por outro lado, sabemos que os aitia (que estabeleciam a relação entre a<br />

história narra<strong>da</strong> e um culto) eram de agrado de Ésquilo, como pode-se<br />

ver na Oresteia. É lícito, por isso, pensar que o Prometeu Portador do<br />

199


Fogo constituiria a última parte <strong>da</strong> trilogia, cujo tema seria o <strong>da</strong><br />

instituição do culto de Prometeu, em Atenas, terminando a peça,<br />

provavelmente, com um cortejo de archotes.<br />

O Certo é que Prometeu incorreu em pecado ao pretender salvar a<br />

Humani<strong>da</strong>de contra a vontade de Zeus, a quem roubou o fogo e a esperança<br />

para os <strong>da</strong>r aos mortais, também Zeus excede seu poder ao castigar com<br />

severi<strong>da</strong>de o Titã.<br />

Ésquilo, ao servir-se do mito de Prometeu quis mostrar que até Deuses<br />

devem ser moderados no uso de seus poderes. Prometeu, ao <strong>da</strong>r o fogo aos<br />

homens, foi além <strong>da</strong>quilo que era justo, pois roubou um privilégio de Hefestos.<br />

De um lado, um Titã rebelde e obstinado. De outro, um Deus inflexível e<br />

injusto.<br />

Prometeu é o último rebelde que ensinará à Zeus que a paz só se<br />

alcança através <strong>da</strong> justiça e <strong>da</strong> persuasão. Só quando Zeus modera sua ira e<br />

perdoa Prometeu é que se estabelece um governo pacífico entre homens e<br />

Deuses.<br />

Conta a Len<strong>da</strong> grega que a primeira geração mítica (As Divin<strong>da</strong>des<br />

Primordiais) criou a raça dos Titãs Estes na pessoa de Cronos, o deus-tempo,<br />

destronaram seus antecessores, castrando Urano, princípio masculino de to<strong>da</strong>s<br />

as coisas.<br />

Depois, Zeus, filho de Cronos, sucede ao pai, e elimina to<strong>da</strong> a estirpe<br />

antiga, numa guerra sangrenta que os coloca no poder.<br />

Pela lógica <strong>da</strong> História, a raça que sucederia aos olímpicos, em termos<br />

de tempo, deveria também, combatê-los e destroná-los. Mas esta raça são os<br />

homens, e a luta se trava até hoje, sem haver vencedores.<br />

Existe uma duali<strong>da</strong>de nesta guerra sem fim: o homem é falível, o<br />

provisório, aquele que erra, sofre. O deus, o perene, seria o modelo segundo o<br />

homem quer se igualar em busca <strong>da</strong> perfeição. O mito de Prometeu é a síntese<br />

desta luta entre o homem e a divin<strong>da</strong>de.<br />

O mito contém três etapas: a criação do ser consciente e o roubo do<br />

fogo; a segun<strong>da</strong>, a sedução a sedução do homem pela mulher: Pandora. A<br />

terceira narra a punição de Prometeu, ao ensinar o fogo aos homens, ele<br />

liberta-os <strong>da</strong> dependência divina definitivamente.<br />

O fogo não é apenas instrumento de transformação de substâncias, de<br />

cocção de alimentos. O fogo representa a espiritualização (luz), a sublimação<br />

(calor, mas também é destruidor.<br />

Zeus, então, man<strong>da</strong> Pandora, a mulher, a tentação, o símbolo dos<br />

desejos terrenos. Ela entrega a caixa que contém os germes <strong>da</strong> miséria<br />

humana, após seduzir a criatura de Prometeu. Ao recebê-la o homem conhece<br />

o livre arbítrio.<br />

Puni<strong>da</strong> a humani<strong>da</strong>de, Zeus pune Prometeu e man<strong>da</strong> acorrentá-lo no<br />

monte Cáucaso, onde diariamente uma águia estraçalha o fígado do Titã; à<br />

noite o órgão recompõem-se e assim, durante trinta séculos Prometeu sofre<br />

seu tormento.<br />

É o preço que se paga por haver tentado transformar o mundo.<br />

Finalmente, Hércules o liberta. O fogo deixa de ser um poder destrutivo<br />

e se constitui purificador.<br />

Curiosamente estes aspectos estão presentes nas duas histórias. Em<br />

Vasalisa, os olhos observadores <strong>da</strong> caveira vão queimando por dentro a<br />

ma<strong>da</strong>stra e suas duas filhas, que se apresentam invejosas, cruéis, ego´pistas e<br />

200


orgulhosas, destruindo-as a partir de seu interior, mas igualmente purificando<br />

Vasalisa que já pode se tornar mulher e viver livre,ente liberta também pelo<br />

fogo. A moral do fogo destrói para reconstruir.<br />

Em Prometeu, o que era para se tornar sabedoria, o Fogo, passa por<br />

transformações igualmente como em Vasalisa. Ensina aos homens como<br />

cozinhar, transformar plantas em remédios, iluminar a noite, mas destrói a fé<br />

temerosa dos rituais divinos. Aqui, a ação prazerosa de um semi-deus em<br />

ousar criar uma criatura semelhante, inclusive em liber<strong>da</strong>de de escolha, aos<br />

Deuses, faz do fogo o elemento do prazer. O prazer de superar aqueles que os<br />

venceram no passado.<br />

Porque a paixão, segundo Alberoni (apud Aranha e Martins, 2005, pg<br />

245-246), sociólogo italiano, é uma revelação, uma fulguração que transforma<br />

to<strong>da</strong> a nossa vi<strong>da</strong>, a ponto de nos tirar a tranqüili<strong>da</strong>de, na qual os laços afetivos<br />

se encontram consoli<strong>da</strong>dos, e nos atira num redemoinho que transfigura a<br />

quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> v i<strong>da</strong> e <strong>da</strong> experiência, levando-nos a alterar radical e<br />

profun<strong>da</strong>mente as relações com os outros e a postura diante do mundo.<br />

A paixão é um impulso vital<br />

a moral é uma dúvi<strong>da</strong> que paira sobre a certeza do bem.<br />

201


BIBLIOGRAFIA<br />

ARANHA, Maria Lúcia de Arru<strong>da</strong> & MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de<br />

Filosofia. Editora Moderna. 3ª edição revisa<strong>da</strong>. São Paulo. 2005<br />

CHEVALIER, J & GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos. 18ª edição. José<br />

Olimpio Editora. RJ. 1982.<br />

Coleção MITOLOGIA. Editora Victor Civita. Nº 17. SP. 1973<br />

ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. Editora Martin Claret. Coleção a Obra-<br />

Prima de ca<strong>da</strong> Autor.São Paulo 2007.<br />

ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que Correm com Lobos. Coleção Arco do<br />

Tempo. Editora Rocco. RJ. 1994<br />

JUNG, C. G. O Homem e seus Símbolos. Editora Nova Fronteira. 21ª<br />

impressão. RJ. 1977<br />

202


Moral socrática e prazer nos discursos de<br />

Diotima de Mantinéia e Alcibíades, n’O Banquete de Platão<br />

TATIANA MARIA GANDELMAN DE FREITAS<br />

Mestran<strong>da</strong> em Ciência <strong>da</strong> Literatura pela UFRJ (PPGL-UFRJ)<br />

Bolsista do CNPq<br />

A teoria <strong>da</strong>s idéias, como ficou conheci<strong>da</strong> a doutrina cria<strong>da</strong> por Platão para falar de um<br />

mundo para além do sensível, afirma a existência de um objeto imutável, perene e perfeito,<br />

que só pode ser percebido diretamente pelo espírito, pertencente a um mundo supra-sensível.<br />

Para ele, as idéias não são psíquicas, mas possuem uma existência em si, exteriores ao sujeito<br />

e ao mundo <strong>da</strong> matéria. Na<strong>da</strong> é mais real e mais importante ao espírito que o belo ideal e o<br />

bem absoluto. Tais essências são modelos que transcendem aos sentidos e só conseguimos<br />

enxergar com o olhar <strong>da</strong> alma.<br />

Em um de seus mais belos diálogos, O Banquete, Platão nos revela o que é o amor<br />

ideal, aquele pertencente ao mundo metafísico, como uma categoria “em si”, que só pode ser<br />

alcança<strong>da</strong> após uma longa ascese através <strong>da</strong> dial<strong>ética</strong>. Em outras palavras, somente o filósofo<br />

poderia chegar mais próximo de sua essência. Através <strong>da</strong> ironia socrática, que se esconde por<br />

trás de uma ilusória modéstia, Platão nos mostra, com absoluta convicção, a falta de<br />

comprometimento com a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de nos demais discursos que compõem a obra.<br />

Como é sabido, os enunciados proferidos n’O Banquete se passam na casa do<br />

tragediógrafo Agatão, logo após sua primeira vitória num concurso de poesia trágica. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, é Apolodoro quem narra a realização do Banquete a um conhecido seu, anos depois<br />

de decorrido.TPF<br />

1<br />

FPT Di<strong>da</strong>ticamente,<br />

o Banquete pode ser dividido em cinco partes: a introdução,<br />

quando se decide o tema a ser elogiado, proposto por Fedro; a primeira parte, composta pelos<br />

discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão; a segun<strong>da</strong> parte, que consiste<br />

no discurso de Sócrates, através <strong>da</strong> sacerdotisa Diotima de Mantinéia; a terceira parte que<br />

consta do discurso de Alcibíades; seguido, na quinta e última parte, de uma pequena<br />

conclusão. Privilegiaremos os discursos de Sócrates e de Alcibíades, como forças antagônicas<br />

que representam a moral e o prazer sensível na Grécia Antiga.<br />

Iniciaremos a análise pela fala de Alcibíades. Quando, totalmente embriagado, ele<br />

chega à casa de Agatão, todos os presentes já haviam feito seu panegírico sobre o amor.<br />

Platão, nesse momento, parece assumir certo tom dramático ao inserir na obra um Alcibíades<br />

totalmente desprovido de sophrosýne (temperança). O personagem chega para desestabilizar o<br />

ambiente, como se fosse membro de um séquito de Dioniso. Batendo a porta violentamente,<br />

invade o átrio à procura de Agatão, que o convi<strong>da</strong> a entrar e tomar parte nas discussões.<br />

Não muito depois ouve-se a voz de Alcibíades no pátio, bastante embriaga<strong>da</strong>, e a<br />

gritar alto, perguntando onde estava Agatão, pedindo que o levassem para junto de<br />

Agatão. Levam-no então até os convivas a flautista, que o tomou sobre si, e alguns<br />

outros acompanhantes, e ele se detém à porta, cingido de uma espécie de coroa<br />

tufa<strong>da</strong> de hera e violetas, coberta a cabeça de fitas em profusão (...). (212d1 a 212<br />

e3).<br />

Desprovido do métron, a justa medi<strong>da</strong> que os gregos tanto louvavam, transgride a<br />

harmonia apolínea que reinava até então no recinto onde se passava o simpósio. Surpreso ao<br />

se <strong>da</strong>r conta, momentos depois, <strong>da</strong> presença de Sócrates, pois não esperava encontrá-lo ali,<br />

1<br />

TP PT A narração é possível, muito tempo depois, graças à importância <strong>da</strong> memória na cultura grega, pois Apolodoro<br />

ain<strong>da</strong> era uma criança quando todos os convivas se reuniram na casa de Agatão para discursar sobre o amor.<br />

203


Alcibíades não mede as palavras, referindo-se a ele demonstrando intensa paixão, atitude<br />

vigorosamente condenável pelo filósofo, que teme as reações desmedi<strong>da</strong>s de Alcibíades e<br />

pede proteção a Agatão:<br />

(...) Agatão, vê se defendes! Que o amor deste homem se me tornou um não<br />

pequeno problema. Desde aquele tempo, com efeito, em que o amei, não mais me é<br />

permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, senão este<br />

homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinárias, insulta-me e mal retém<br />

suas mãos de violência. Vê então se também agora não vai ele fazer alguma coisa, e<br />

reconcilia-nos; pois eu de sua fúria e de sua paixão amoroso muito me arreceio<br />

(213c12 a 213d10).<br />

Bêbado, Alcibíades demonstra desequilíbrio e evidencia sentimentos de amor e ódio<br />

em relação a Sócrates. Diante de todos os convivas, não hesita em narrar to<strong>da</strong>s as suas<br />

investi<strong>da</strong>s para conquistá-lo, <strong>da</strong>s mais sutis às mais incisivas, to<strong>da</strong>s em vão. Alternando<br />

momentos de explosão e de elogios, desde o início de sua fala, Alcibíades não nega ser<br />

Sócrates o homem que vence todos em argumentos e em comedimento. Mesmo quando bebe<br />

em demasia, diz ele, o filósofo jamais se embriaga; pelo contrário, é ele que inebria a todos<br />

com seus diálogos filosóficos. Após pedir a Agatão uma grande taça de vinho e bebê-lo,<br />

Alcibíades convi<strong>da</strong> Sócrates a lhe fazer companhia na bebi<strong>da</strong>, e ao mesmo tempo em que o<br />

filósofo bebe, diz: “para Sócrates, senhores, meu ardil não é na<strong>da</strong>: quanto se lhe man<strong>da</strong>r, tanto<br />

ele beberá, sem que por isso jamais se embriague”. (214a6-9)<br />

Conclamado por Erixímaco a falar sobre o amor, Alcibíades reconhece a importância<br />

de estar em plena razão para se fazer um discurso, alegando estar embriagado, portanto, em<br />

desvantagem com relação aos outros. Mas mesmo assim não recusa o pedido do médico.<br />

Aceita fazer seu encômio, e decide fazê-lo em homenagem a Sócrates, incentivado pelo<br />

próprio filósofo. “Eu nenhum outro mais louvaria em tua presença” (214d10-11), diz<br />

Alcibíades a Sócrates, assegurando dizer somente o que é ver<strong>da</strong>deiro. “A ver<strong>da</strong>de eu direi. Vê<br />

se aceitas!” (214e8). Ao que Sócrates replica: “Mas sem dúvi<strong>da</strong>!, respondeu-lhe, a ver<strong>da</strong>de<br />

sim, eu aceito, e mesmo peço que a digas.” (214e9-11).<br />

Desde o início de sua fala, demonstra certa hostili<strong>da</strong>de por Sócrates, origina<strong>da</strong> na dor<br />

<strong>da</strong> rejeição. Alcibíades compara-o aos silenos, ou sátiros, divin<strong>da</strong>des do campo que<br />

acompanhavam cortejos dionisíacos, metade humanos, metade animas (geralmente bois ou<br />

bodes), fazendo alusão à evidente privação dos encantos físicos do filósofo. “Que na ver<strong>da</strong>de,<br />

em teu aspecto pelo menos és semelhante a esses dois seres, ó Sócrates, nem mesmo tu sem<br />

dúvi<strong>da</strong> poderia contestar (...).” (215b7-10). O sátiro, mesmo destituído de beleza, encanta os<br />

humanos com instrumentos: “Este, pelo menos, era através dos instrumentos que, com o<br />

poder de sua boca, encantava os homens como ain<strong>da</strong> agora o que toca as suas melodias.”<br />

(215c2-5). Sócrates, to<strong>da</strong>via, não precisa de qualquer artifício para exercer grande fascínio e<br />

sedução: “Tu porém dele diferes apenas nesse pequeno ponto, que sem instrumentos, com<br />

simples palavras, fazes o mesmo”. (215c12 a 215d1).<br />

O poder do discurso socrático é descrito por Alcibíades como um entorpecente que o<br />

encanta e magnetiza:<br />

(...) quando algum outro ouvimos mesmo que seja um perfeito orador, a falar de<br />

outros assuntos, absolutamente por assim dizer ninguém se interessa; quando porém<br />

é a ti que alguém ouve, ou palavras tuas referi<strong>da</strong>s por outro, ain<strong>da</strong> que seja<br />

inteiramente vulgar o que está falando, mulher, homem ou adolescente, ficamos<br />

aturdidos e somos empolgados. Eu pelo menos, senhores, se não fosse de todo<br />

parecer que estou embriagado, eu vos contaria, sob juramento, o que é que eu sofri<br />

sob o efeito dos discursos deste homem, e sofro ain<strong>da</strong> agora.” (215d1 a 215e1, grifo<br />

nosso).<br />

204


Ain<strong>da</strong> sob efeito <strong>da</strong>s palavras do filósofo, prossegue Alcibíades:<br />

Quando, com efeito, eu os escuto, muito mais do que aos coribantes em seus<br />

transportes bate-me o coração, e lágrimas escorrem sob o efeito de seus discursos,<br />

enquanto que outros muitíssimos eu vejo experimentar o mesmo sentimento;ao ouvir<br />

Péricles porém, e outros bons oradores, eu achava que falavam bem sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

mas na<strong>da</strong> de semelhante eu sentia. (215e1-10).<br />

Novamente, compara Sócrates aos silenos, mas desta vez para falar do ágalma, ou<br />

seja, de seu poder de sedução e de sua sabedoria, fazendo referência às estátuas dos silenos<br />

que, quando abertas ao meio, guar<strong>da</strong>m estatuetas de deuses em seu interior. Diz Alcibíades:<br />

“(...) por fora ele se reveste, como o sileno esculpido; mas lá dentro, uma vez aberto, de<br />

quanta sabedoria imaginais, companheiros de bebi<strong>da</strong>, estar ele cheio?” (216d10-13).<br />

Numa atitude paradoxal, ain<strong>da</strong> que revelando todo o seu sofrimento, Alcibíades não<br />

deixa de permear de elogios seu discurso de ataque. Historicamente, ele é retratado como um<br />

homem dotado de beleza e um político com capaci<strong>da</strong>de oratória espetaculares. Mas o que é a<br />

beleza física diante <strong>da</strong> beleza <strong>da</strong> alma, e o que é um notável orador diante <strong>da</strong> extraordinária<br />

capaci<strong>da</strong>de intelectual de Sócrates? Mesmo sendo belo fisicamente e Sócrates, feio, coube a<br />

Alcibíades tentar seduzi-lo inúmeras vezes, assumindo o papel de erastés, o amante, durante<br />

suas investi<strong>da</strong>s fracassa<strong>da</strong>s. É Alcibíades, como tantos outros, que se deixa seduzir pelos<br />

sokratikoí lógoi, os discursos de Sócrates. O filósofo, feio, porém sábio, numa inversão,<br />

estranhamente desempenha a função de eroménos, o amado.<br />

Diante desse cenário, Alcibíades não se conforma com as negativas de Sócrates a um<br />

homem belo e inteligente, acusando-o de desprezar não só ele, como todos os outros.<br />

Sócrates, na posição de objeto desejado, mostra-se forte e determinado; enquanto Alcibíades<br />

se coloca na posição do fraco. Mas, diante de tantas tentações, como poderia Sócrates resistir<br />

e não sucumbir aos desejos terrenos? A resposta está no seu encontro iniciático com Diotima,<br />

a sacerdotisa de MantinéiaTPF<br />

2<br />

FPT, relatado<br />

anos depois pelo protagonista do Banquete.<br />

É importante notarmos, que, no início de seu elogio ao amor, Sócrates desqualifica<br />

todos os discursos feitos anteriormente, alegando não serem ver<strong>da</strong>deiros. A estratégia<br />

platônica consiste em instituir uma ver<strong>da</strong>de absoluta, e a partir dela dizer o que é o amor, e<br />

não apenas uma <strong>da</strong>s visões do que possa sê-lo, como fizeram todos os convivas até então.<br />

Platão, através de seu representante maior, não dá chance sequer de ter o seu elogio<br />

comparado aos dos demais, colocando-o, com a sua ironia tão peculiar, acima de todos os<br />

outros. Sócrates diz claramente que tudo o que foi dito pelos outros é digno de riso: “(...) a<br />

ver<strong>da</strong>de sim, se vos apraz, quero dizer à minha maneira, e não em competição com os vossos<br />

discursos, para não me prestar ao riso.” (199b2-4).<br />

A recusa do corpóreo e a busca <strong>da</strong> sabedoria que se coloca acima de qualquer<br />

elemento sensível são leva<strong>da</strong>s às últimas conseqüências n’O Banquete. A condição imediata<br />

de se alcançar o que está para além do plano do humano, aproximando-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de em sua<br />

forma una tão almeja<strong>da</strong>, nos dá forte indício do realce, na referi<strong>da</strong> obra, de um modelo de<br />

privação de tudo o que se passa pelo corpo. Michel Foucault, na obra História <strong>da</strong> Sexuali<strong>da</strong>de<br />

II, analisa as relações entre a privação dos prazeres do corpo e o acesso a Ver<strong>da</strong>de, referindose<br />

a Sócrates como um personagem<br />

2<br />

do qual todos queriam se aproximar, do qual todos se enamoravam, de cuja<br />

sabedoria todos buscavam se apropriar – sabedoria essa que se manifestava e se<br />

TP PT Como não há nenhuma outra referência a Diotima de Mantinéia encontra<strong>da</strong> em fontes <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong>de, há<br />

grande probabili<strong>da</strong>de de ser um personagem inventado por Platão para <strong>da</strong>r voz à mulher que inicia Sócrates no<br />

Amor. Quanto à escolha do nome <strong>da</strong> sacerdotisa, Léon Robin cogita a possibili<strong>da</strong>de de existir relação direta entre<br />

o nome de Diotima e de Díon, siracusano amado de Platão.<br />

205


experimentava, justamente, pelo fato de que ele próprio era capaz de não tocar na<br />

beleza provocadora de Alcibíades.(FOUCAULT, 1990:23).<br />

Se para Platão, através de Sócrates, a moral se identifica com o conhecimento<br />

ver<strong>da</strong>deiro, ou seja, com o conhecimento filosófico, alcançado pelo uso <strong>da</strong> razão, logo, chegar<br />

ao “em si” do amor platônico significa chegar ao conhecimento. Pois, segundo a moral<br />

socrática, só é possível ao homem realizar o Bem pela racionali<strong>da</strong>de, porque o Mal é fruto <strong>da</strong><br />

ignorância. Somente praticando a virtude, através <strong>da</strong> filosofia, o homem pode alcançar a<br />

felici<strong>da</strong>de. E, tornando-se virtuoso, o homem busca o conhecimento ver<strong>da</strong>deiro e se aproxima<br />

do mundo dos conceitos, podendo, assim, usufruir de uma forma feliz de vi<strong>da</strong>.<br />

A iniciação de Sócrates é feita por Ditoima de Mantinéia, dota<strong>da</strong> de poderes<br />

sacerdotais, que utilizará a maiêutica, o método socrático-platônico por excelência, para<br />

introduzi-lo na arte do amor e fazê-lo ascender à sua essência. Diotima faz Sócrates ponderar<br />

sobre Eros como algo que jamais poderia ser um deus. Pois, diz ela, se os deuses são belos e<br />

bons, não precisam buscar beleza e bon<strong>da</strong>de, mas se Eros caracteriza uma busca incessante de<br />

beleza e bon<strong>da</strong>de, como pode ele ser um deus? Eros é, portanto, um <strong>da</strong>ímon, uma espécie de<br />

gênio, um equilíbrio de duas forças intermediárias entre deuses e seres humanos.<br />

Eros, de certa maneira desdivinizado por Platão, é filho de Penía e Poros. De sua mãe,<br />

Penía, (Pobreza, Carência), herdou um impulso para a busca, incitado sempre a procurar a<br />

beleza e a bon<strong>da</strong>de, jamais de todo satisfeito; de seu pai Poros, (Riqueza, Recurso), Eros<br />

recebeu como legado fluidez, engenho, talento, coragem, decisão e energia. É companheiro e<br />

servo de Afrodite porque foi concebido no natalício <strong>da</strong> deusa, e por isso também, como ela,<br />

amante <strong>da</strong> beleza e, portanto, <strong>da</strong> sabedoria. Está, tal como os filósofos, entre a sabedoria e a<br />

ignorância. Explica Diotima a Sócrates o que é o amor:<br />

Com efeito, uma <strong>da</strong>s coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de<br />

modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o<br />

ignorante. E a causa de sua condição, é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e<br />

rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. (204b4 a 204c1).<br />

O objetivo de Sócrates é tão somente chegar ao mundo supra-sensível. Ele resiste<br />

diante <strong>da</strong> beleza de Alcibíades e de to<strong>da</strong>s as outras existências corpóreas porque quer<br />

transcender ao plano do inteligível pela ascese de sua alma em direção ao Belo puro e<br />

universal. O belo corporal jamais coincidirá com a beleza em si mesma, não passa de uma<br />

imagem que reflete o belo ideal, cuja alma humana deve almejar conhecer e amar. Por isso, o<br />

amor ao belo físico é somente uma etapa para se chegar ao projeto platônico de alcançar a<br />

beleza última.Mas como proceder corretamente nos caminhos do amor? É a própria Diotima<br />

que ensina Sócrates a ascender ao belo em si:<br />

Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou<br />

por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista <strong>da</strong>quele<br />

belo, subir sempre, como que se servindo de degraus, de um só para dois e de dois<br />

para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios<br />

para as belas ciências até que <strong>da</strong>s ciências acabe naquela ciência, que de na<strong>da</strong> mais é<br />

senão <strong>da</strong>quele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo.(211c1).<br />

E a beleza ideal parece estar longe de Alcibíades, fisicamente harmonioso, mas<br />

afastado <strong>da</strong> sua essência. Por isso, Sócrates resiste. Entretanto, simboliza, ele próprio, o amorfilósofo:<br />

pobre em atributos físicos, mas rico em virtudes, sempre buscando o mundo para<br />

além <strong>da</strong>s aparências. Se por um lado as formas do plano sensível diferem-se <strong>da</strong>s que estão no<br />

nível do inteligível, por outro, torna-se necessário estabelecer uma relação entre as duas. N’O<br />

206


Banquete, Platão nos mostra que todos os seres no mundo corpóreo que trazem algo de belo<br />

ligam-se ao belo em si, ponto de culminância <strong>da</strong> ascese em direção ao amor platônico.<br />

3<br />

Tal descrição é denomina<strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> participação (métheksis)TPF FPT e determina que, em<br />

maior ou menor grau, ca<strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de presente no mundo material guar<strong>da</strong> uma<br />

semelhança com a esfera do supra-sensível, isto é, ca<strong>da</strong> ser participa de alguma maneira do<br />

mundo ideal platônico. Somente através de uma ascese chega-se mais próximo do “em si” <strong>da</strong>s<br />

idéias configura<strong>da</strong>s por Platão. E é justamente por meio <strong>da</strong> dial<strong>ética</strong> ascendente que Sócrates<br />

pretende chegar ao ver<strong>da</strong>deiro amor.<br />

Os diversos personagens que compõem O Banquete funcionam como comparação para<br />

mostrar quem está autorizado a falar sobre o tema. Platão deprecia o senso-comum mostrando<br />

que as dóxai, meras opiniões, podem ser desqualifica<strong>da</strong>s, em oposição ao mundo <strong>da</strong> epistéme,<br />

fun<strong>da</strong>do em um conhecimento científico, lugar em que se encontra a Ver<strong>da</strong>de absoluta.<br />

Como conseqüência, estabelece-se, com isso, uma seleção desses homens: todos<br />

podem opinar sobre o amor, mas somente o filósofo, tido por Platão como o ser superior<br />

privilegiado que contemplou o mundo <strong>da</strong>s idéias, sabe o que ele é de fato. A partir <strong>da</strong>í, através<br />

<strong>da</strong> intervenção de Sócrates, faz-nos ver que o amor existe em sua idéia única e em si.<br />

Recorremos mais uma vez ao francês Michel Foucault, que nos chama a atenção para<br />

a abor<strong>da</strong>gem socrático-platônica sobre o amor, coloca<strong>da</strong> em termos diferentes dos propostos<br />

até então na obra em <strong>questão</strong>:<br />

Não se tratará mais, para saber o que é o ver<strong>da</strong>deiro amor, de responder à <strong>questão</strong>:<br />

quem convém amar e em que condições o amor pode ser honroso tanto para o<br />

amado como para o amante? Ou, pelo menos, to<strong>da</strong>s essas questões se encontrarão<br />

subordina<strong>da</strong>s a uma outra, primeira e fun<strong>da</strong>mental: o que é o amor em seu ser<br />

mesmo? (FOUCAULT, 1990:204)<br />

Além disso, podemos afirmar que a doutrina do amor em Platão é uma teoria do<br />

conhecimento, de caráter ético e político. Proveniente de uma família aristocrática e vincula<strong>da</strong><br />

ao poder ateniense, era natural que Platão se sentisse estritamente ligado aos assuntos <strong>da</strong><br />

pólis. Mas a democracia, que possibilitava a todos os ci<strong>da</strong>dãos a igual<strong>da</strong>de de fala diante <strong>da</strong><br />

ágora, a praça pública, não o agra<strong>da</strong>va. Lembremo-nos que os sofistas, eternos desafetos de<br />

Platão, gozavam de enorme prestígio na Atenas de então, em contraposição aos filósofos,<br />

constantemente ridicularizados.<br />

Portanto, quando Platão coloca Sócrates, o representante mais ilustre <strong>da</strong> filosofia,<br />

como o modelo de homem para alcançar o amor ideal, belo, ver<strong>da</strong>deiro, único e imutável,<br />

também nos diz, de forma sub-reptícia, que a classe do filósofo é a mais habilita<strong>da</strong> para<br />

governar a ci<strong>da</strong>de. Na Carta VII, Platão muito nos esclarece sobre seu sistema de pensamento,<br />

baseado em um modelo epistêmico profun<strong>da</strong>mente concreto. Ele sentencia que os males<br />

somente deixarão de existir para os homens quando a raça pura e autêntica dos filósofos<br />

chegar ao poder, ou quando os governantes, por uma vontade divina, praticarem a ver<strong>da</strong>deira<br />

filosofia.<br />

Acostumado a representar em seus diálogos Sócrates como “o mais sábio e o mais<br />

4<br />

justo dos homens”TPF FPT, para desqualificar a fala dos seus oponentes, no Banquete não foi<br />

diferente. No diálogo, comediógrafo, médico e outros participantes do festim fazem uma<br />

exposição, mas o ver<strong>da</strong>deiro pretendente para dizer o que é o amor, é, obviamente, o filósofo<br />

Sócrates. Porque o modelo transcendente está para além dos corpos belos, o objeto do desejo<br />

está fora do mundo sensível. O que vemos no corpo são imagens, mas jamais a ver<strong>da</strong>de.<br />

3<br />

TP PT Platão faz uma rápi<strong>da</strong> referência à teoria <strong>da</strong> participação em O Banquete. Maiores desdobramentos sobre a<br />

métheksis são encontrados nos diálogos Parmênides, Fédon e Sofista.<br />

4<br />

TP PT Como já é sabido, Sócrates não deixou nenhum escrito para a posteri<strong>da</strong>de; portanto, qualquer referência feita a<br />

ele<br />

207


Profun<strong>da</strong>mente incomo<strong>da</strong>do com o corpo e os sentidos que nos enganam produzindo<br />

falsas opiniões, o Banquete Não há, no Banquete, uma <strong>ética</strong> de como se conduzir no amor,<br />

para ser livre nele. Não há espaço para o ci<strong>da</strong>dão que saiba conduzir suas relações amorosas<br />

como amante. O que existe em Platão é uma ver<strong>da</strong>de imposta que ensina o que é o amor.<br />

Sócrates resiste a Alcibíades (e resistiria a qualquer um) para desqualificar os prazeres<br />

sensíveis, e não para fazer bom uso deles, porque acredita que exista algo extracorpóreo mais<br />

grandioso para a alma. Aquele que não sabe o que é o ver<strong>da</strong>deiro amor se entrega aos falsos<br />

prazeres do sensível, como Alcibíades, que desconhece o ver<strong>da</strong>deiro desejo e a satisfação<br />

maior, que é a satisfação <strong>da</strong> alma. Há um desejo não pelas percepções sensíveis, mas sim<br />

pelas ideali<strong>da</strong>des abstratas. Há, enfim, um objeto de desejo transcendente, e esse seria o<br />

ver<strong>da</strong>deiro amor. A causa <strong>da</strong> dial<strong>ética</strong> ascendente apresenta<strong>da</strong> na obra é a primazia <strong>da</strong> razão<br />

que transforma o ímpeto do erotismo na exaltação do conhecimento.<br />

O personagem Sócrates serviu, mais uma vez, para colocar uma <strong>questão</strong> que fala de<br />

uma essência, nesse caso, a essência de Eros, o Amor. Para contrastar com a atmosfera<br />

espiritual cria<strong>da</strong> por Platão n’O Banquete, durante a fala de Diotima, voltemos a Alcibíades,<br />

acusado de colocar à frente de tudo o prazer carnal. Sua postura dionisíaca, além de<br />

desordenar o ambiente, serve também como o grande contraponto à fala de Sócrates. Platão<br />

coloca frente a frente o homem espiritual e o homem preso às sensações carnais e nos mostra<br />

que o Belo espiritual de Sócrates é superior ao belo formoso de Alcibíades. Na reali<strong>da</strong>de, a<br />

chega<strong>da</strong> de Alcibíades nos momentos finais do Banquete serve tão somente para reforçar tudo<br />

o que Sócrates acabara de dizer. Platão destaca a fala nervosa, descontrola<strong>da</strong> e emociona<strong>da</strong> de<br />

Alcibíades com o intuito de revigorar as virtudes do personagem-filósofo como homem<br />

calmo, temperante, abnegado e resistente às intempéries.<br />

Como bem ilustra Alcibíades ao exaltar Sócrates, assim como o prazer, a dor física era<br />

igualmente atenua<strong>da</strong>. Diz ele, referindo-se a uma expedição à Potidéia, na Calcídica, <strong>da</strong> qual<br />

ambos participarem::<br />

Também quanto à resistência ao inverno – terríveis são os invernos ali – entre outras<br />

façanhas extraordinárias que fazia, uma vez, durante uma gea<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mais terríveis,<br />

quando todos ou evitavam sair ou, se alguém saía, era envolto em quanta roupagem<br />

estranha, e amarrados os pés em feltros e peles de carneiro, este homem, em tais<br />

circunstâncias, saía com um manto do mesmo tipo que antes costumava trazer, e<br />

descalço sobre o gelo marchava mais à vontade que os outros calçados, enquanto<br />

que os sol<strong>da</strong>dos o olhavam de soslaio, como se o suspeitassem de estar troçando<br />

deles. (220a10 e 220b12).<br />

Mesmo dominado pelas emoções, Alcibíades em nenhum momento nega a força do<br />

lógos socrático como o discurso que constrói um árduo caminho em direção ao conhecimento<br />

ver<strong>da</strong>deiro. Na<strong>da</strong> melhor que um homem <strong>da</strong> hýbris, do excesso, <strong>da</strong> impetuosi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong><br />

desmedi<strong>da</strong> como se mostrou ser Alcibíades, para fazer realçar o que seja um amor ver<strong>da</strong>deiro,<br />

ideal, platonicamente socrático, em contraste com a tentação dos prazeres físicos.<br />

208


Bibliografia:<br />

BAILLY, Anatole. Le grand Bailly. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 2000.<br />

FOUCAULT, Michel. História <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal,<br />

1990.<br />

PLATÃO. Banquete; ou, do Amor. Tradução, introdução e notas de J. Cavalcante de Souza.<br />

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.<br />

---. Cartas. Tradução de Conceição Gomes <strong>da</strong> Silva e Maria Adozin<strong>da</strong> Melo. Lisboa:<br />

Estampa, 1989<br />

ROBIN, Léon. La théorie platonicienne de l´amour. Nouvelle Édition, Paris: Alcan, 1933.<br />

209


Electra, Elektra - a permanência de um mito<br />

THOMAZ PEREIRA DE AMORIM NETO<br />

Doutor em Literatura Compara<strong>da</strong> – Pós-doutorando UERJ/FAPERJ<br />

O estudo de Carlin<strong>da</strong> Nuñez sobre Electra revela a permanência do modelo de<br />

heroína trágica que defende a valoração divina contra as leis dos homens. Essa permanência<br />

atravessa os séculos e, segundo o estudo de Nuñez, desemboca em pleno Brasil em peças de<br />

Paulo Pontes e Nelson Rodrigues. O presente trabalho mu<strong>da</strong> um pouco o foco de atuação do<br />

modelo. Costuma-se relacionar, em Literatura Compara<strong>da</strong>, objetos que possuem<br />

aproximações temáticas e de status, mas pretendemos analisar aqui as tragédias com um<br />

objeto tipicamente inserido na cultura contemporânea: as histórias em quadrinhos.<br />

Ora defendi<strong>da</strong>s por MacLuhan, ora ataca<strong>da</strong>s por Adorno, Umberto Eco e outros; as<br />

histórias em quadrinhos são um objeto polêmico e espinhoso, mas, recentemente, apresentam<br />

revisitações que possibilitam novos ramos de estudo. Um deles é a presença de arquétipos<br />

literários e a mescla desses temas na produção de um determinado autor. Este é o foco <strong>da</strong><br />

presente análise, muito substanciado pelas observações feitas por Nuñez e por Meletínski<br />

sobre a situação arquetípica de personagens <strong>da</strong> Grécia Antiga.<br />

O mito em diferentes lugares – Teatro e quadrinhos<br />

O teatro <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de se encarrega em trabalhar o conteúdo mítico de diferentes<br />

formas. No caso de Electra e seu mythos, os três grandes tragediógrafos conceberam trabalhos<br />

em que as alterações em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens aponta para um personagem diferente. Em<br />

ca<strong>da</strong> um deles, Electra é um personagem que é perpassa<strong>da</strong> por aspectos filosóficos, religiosos<br />

e políticos de seu tempo.<br />

Por outro lado, Miller concebe um personagem que se mantém próxima aos três<br />

tragediógrafos, mantendo também certa autonomia deles. Ela não perde seu conteúdo mítico<br />

de origem e ain<strong>da</strong> sofre o acréscimo de problemas contemporâneos, atualizando o personagem<br />

e respeitando seu arquétipo. Com as três obras produzi<strong>da</strong>s por Frank Miller acerca do tema de<br />

Electra, o autor trabalha com as facetas trágicas do personagem, indo além, pois, ao<br />

reconfigurar o personagem por meio de uma mesclagem de mitos, Miller acaba gerando um<br />

novo conteúdo mítico relacionado à contemporanei<strong>da</strong>de. Ao propor essa mistura, Miller não<br />

trabalha propriamente com o mythos (existente na Ilía<strong>da</strong>), mas com o mito trágicoTPD<br />

1<br />

DPT criado<br />

pelo imaginário teatral.<br />

Em to<strong>da</strong>s as abor<strong>da</strong>gens <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de, Electra tem como inimiga sua própria mãe<br />

que se encarrega <strong>da</strong> morte de Agamêmnon No caso de Frank Miller, a figura <strong>da</strong> mãe desvia-se<br />

de um personagem específico (tanto Demolidor como Elektra não conheceram suas mãesTPD<br />

para tornar-se algo mais abstrato. A figura materna que a eles se liga é instaura<strong>da</strong> em uma<br />

nova estrutura, apresenta<strong>da</strong> numa imagem extremamente importante para a cultura ocidental:<br />

a justiça.<br />

Miller vê a justiça como o nutriente regulador <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dos homens, sendo<br />

responsável pelo bem-estar <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Assim, o autor transfere a presença de<br />

Clitemnestra para o imaginário <strong>da</strong>s leis, local onde a justiça é regula<strong>da</strong>, tornando essa<br />

presença um espectro, uma imagem que permanece em to<strong>da</strong> a história de Elektra elabora<strong>da</strong><br />

por Miller. Assim, o autor trabalha numa nova instância — sem a presença <strong>da</strong> mãe com<br />

personagem, Elektra terá de manter-se como símbolo de reação contra algo diferente do<br />

assassinato pelo poder.<br />

A Elektra contemporânea li<strong>da</strong> com um novo crime igualmente impraticável (como o<br />

matricídio): a completa liber<strong>da</strong>de de desejos, estando acima <strong>da</strong>s normas sociais e <strong>da</strong>s leis.<br />

Numa socie<strong>da</strong>de composta de várias instâncias legislativas, a liber<strong>da</strong>de plena se transforma<br />

210<br />

2<br />

DPT)


num delito contra a ordem estabeleci<strong>da</strong>. Somado a esse fato, Elektra rompe com o<br />

ordenamento jurídico, do qual se havia aproximado, devido à paixão de seu pai pelas leis<br />

internacionais (nessa versão <strong>da</strong> personagem, o pai de Elektra é um embaixador).<br />

As Electras na ro<strong>da</strong><br />

Os arquétipos míticos são um dos elementos formadores dos personagens de<br />

quadrinhos de super-heróis. Vejamos, nesse momento, como os motivos que formam o mito<br />

de Electra foram reelaborados na formação <strong>da</strong> Elektra de Frank Miller. Além disso, veremos,<br />

em ca<strong>da</strong> caso, como Frank Miller se supera, em sua abor<strong>da</strong>gem. Já comentamos que a<br />

ausência de uma Clitemnestra (transfigura<strong>da</strong> numa abstração) é um claro índice de mu<strong>da</strong>nça,<br />

mas a análise pontual dos modelos também serve como substância para nossa hipótese de<br />

trabalho: uma nova forma de mito é verifica<strong>da</strong> nos quadrinhos de super-heróis.<br />

Nossa análise não será linear, nossa intenção é mostrar como os elementos trágicos<br />

aparecem na abor<strong>da</strong>gem de Miller, espalhados nas diversas histórias que ele escreveu e<br />

desenhou sobre Elektra. Assim, não nos preocuparemos com a continui<strong>da</strong>de dos quadrinhos,<br />

mas com a elaboração de um mito contemporâneo.<br />

a) UMiller e Ésquilo: a estrutura onírica<br />

Se podemos afirmar que haja uma alegoria que defina a primeira peça <strong>da</strong> trilogia de<br />

Ésquilo acerca do mito de Orestes e Electra, somos obrigados a nos referir ao sonho de<br />

Clitemnestra. Segundo Carlin<strong>da</strong> Nuñez:<br />

211<br />

O ideal grego de visibili<strong>da</strong>de como que dispõe o mundo sob duas formas de<br />

percepção: de um lado, a reali<strong>da</strong>de impermanente, transitória, evolutiva e<br />

mortal, referi<strong>da</strong> pela vigília; de outro, a reali<strong>da</strong>de referi<strong>da</strong> pelo sonho,<br />

povoa<strong>da</strong> de deuses e amigos (ou inimigos) distantes, mas sempre imortais,<br />

reportando o não-tempo e a utopia.<br />

NUÑEZ: 2000, 47.<br />

Ao se identificar com a serpente do sonho de sua mãe, Orestes adota a identi<strong>da</strong>de do<br />

matrici<strong>da</strong>, que, no início <strong>da</strong> peça, não passa de um local onde a utópica justiça se encontra.<br />

3<br />

Assim, em Ésquilo, Orestes age em função de seu próprio renascimentoTPD DPT. Nas “Coéforas”, a<br />

única peça em que Electra aparece <strong>da</strong> trilogia, o foco narrativo é o assassinato <strong>da</strong> mãe pelas<br />

mãos do filho. Orestes, na peça, é o ver<strong>da</strong>deiro herói trágico, aquele que desempenha a ação<br />

que será o estopim <strong>da</strong>s outras duas peças.<br />

Electra, to<strong>da</strong>via, ao reconhecer seu irmão, define Orestes como “doce visão, que<br />

4<br />

conténs quatro partes de minha ternura”.TPD DPT Ela estabelece, assim, o eixo de seu amor fraternal<br />

na figura do irmão em quatro outras partes, em que pode-se ver a própria fragmentação<br />

afetiva <strong>da</strong> personagem: ela mesma, Agamêmnon, Clitemnestra (que, segundo a peça, nunca<br />

5<br />

demonstrara tal sentimento pelos filhos) e Ifigênia (a irmã sacrifica<strong>da</strong> pelo pai).TPD DPT<br />

Na obra de Frank Miller, o sonho não decorre de Clitemnestra, pois ela não existe<br />

como um personagem, mas como uma aspiração de dois outros — Matt Murdock e Elektra<br />

Natchios. Na ver<strong>da</strong>de, o sonho do Demolidor li<strong>da</strong> diretamente com o personagem Elektra.<br />

Certas metáforas do original têm de se perder, para que haja a ascensão de um novo aspecto<br />

do sonho funesto. Segundo Ésquilo, Orestes é aquele que se identifica diretamente com o<br />

sonho de sua mãe, a serpente que Clitemnestra vê nascendo dela mesma como a representação<br />

de sua morte. Por uma pequena alteração, o sonho serve para a mesma descrição em Elektra<br />

Vive.<br />

Vejamos, agora, o sonho de Murdock, envolvendo Elektra. Este sonho (Elektra Vive,<br />

17) se refere ao ritual de transformação de um ninja em Kirigi, o assassino supremo,


mostrando claramente que Elektra se encontra no ápice de uma hierarquia familiar. Da mesma<br />

forma que, em Ésquilo, a <strong>questão</strong> familiar é o pano de fundo para que ocorra to<strong>da</strong> a ação<br />

dramática, aqui vemos o patriarcado, na imagem do sonho que é abun<strong>da</strong>ntemente composta<br />

por homens, como formador desse conglomerado de assassinos orientais. Os rituais, portanto,<br />

que cercam esta organização de ninjas, são reminiscências de ritos de passagem vistos em<br />

6<br />

várias narrativas clássicas.TPD DPT No caso de Elektra, o rito de passagem que é representado pelo<br />

sonho coloca-a numa situação diversa <strong>da</strong> Clitemnestra esquiliana, pois o sonho matriarcal <strong>da</strong><br />

heroína dos quadrinhos se refere à nutriz de uma família. Elektra, na elaboração de Miller, é,<br />

ao mesmo tempo, meio e nutriz: a ninja se torna meio para que o Tentáculo (The Hand)TPD<br />

possa tornar-se absoluto no domínio dos clãs de ninjas. Esse ritual, contudo, também<br />

pressupõe que a personagem se transforme em nutriz com sua imagem de força, adquirindo,<br />

assim, novos afiliados para a organização. Elektra se apresenta ao lado de Clitemnestra, nesse<br />

caso. Ca<strong>da</strong> uma, na instância que lhe concerne, é representativa: a primeira do clã (Elektra) e<br />

a segun<strong>da</strong> <strong>da</strong> família (Clitemnestra, com relação a Agamêmnon).<br />

Aqui, apresentam-se duas problemáticas muito próprias do mundo grego. A <strong>questão</strong><br />

familiar ou do clã refere-se, nos clássicos, a uma noção conheci<strong>da</strong> como thémis e a relação<br />

entre as famílias, díke. Portanto,<br />

212<br />

A noção de thémis tem seu complemento na de díke. A primeira indica a<br />

justiça que se exerce no interior do grupo familiar; a outra, a que rege a<br />

relação entre as famílias.<br />

BENVENISTE: 1995, 109<br />

Thémis é a palavra que designa a lei do clã, oriun<strong>da</strong> do plano divino. Díke é a lei de<br />

compensação que foi gera<strong>da</strong> pelo convívio dos homens. A forma <strong>da</strong> serpente que aparece no<br />

ritual, em Elektra Vive, refere-se diretamente aos dois eixos, unindo-os. Porém é importante<br />

ressaltar que tratamos aqui do último capítulo <strong>da</strong> saga de Elektra. Assim, o que inicia a peça<br />

de Ésquilo, torna-se o final <strong>da</strong> trama para Miller. Para que haja equilíbrio no clã, Elektra deve<br />

se tornar o assassino supremo que ela mesma matouTPD<br />

8<br />

DPT, restaurando,<br />

pois, a harmonia do clã.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, vemos que, em Ésquilo, o feito abor<strong>da</strong>do por Miller sofre uma<br />

pluralização de sentidos. Agamêmnon matou Ifigênia, sua filha, incorrendo em um crime no<br />

âmbito familiar. Clitemnestra vinga a filha, ou seja, o clã familiar dos Atri<strong>da</strong>s, mas mata o rei<br />

de Micenas (díke). Orestes vinga o pai, Micenas e família unem-se; porém ele mata a própria<br />

mãe, incorrendo em crime familiar novamente (thémis e díke em paradoxo contínuo). Ocorre<br />

que Orestes fora designado por um deus para executar o matricídio e, por esse motivo, é salvo<br />

pela defesa de Apolo e pela interferência de Atená.<br />

Mais uma vez devemos ressaltar que a figura <strong>da</strong> mãe é inexistente na obra de Miller,<br />

trata-se apenas de uma abstração devido ao legalismo dos dois personagens. Tanto para<br />

Elektra, quanto para Demolidor (Orestes), a presença <strong>da</strong> mãe é transferi<strong>da</strong> para o ideário de<br />

justiça. Elektra rompe com este, mas Murdock não. Eles não conhecem suas progenitoras.TPD<br />

No caso do Demolidor, seu pai é morto por criminosos (renegados <strong>da</strong> justiça, podemos dizer).<br />

Este fato torna-se o estopim para que o personagem assuma sua luta contra os malfeitores. A<br />

favor <strong>da</strong>s leis humanas, Matt Murdock atua como uma espécie de vigilante, aju<strong>da</strong>ndo a polícia<br />

e a preservação <strong>da</strong>s leis. Vigilantismo, no mundo contemporâneo, porém, é um crime.<br />

Demolidor aproxima-se, assim, do arquétipo de Orestes, pois está numa situação em que as<br />

leis estão em relação paradoxal com suas ações. Orestes, vingador familiar e mantenedor do<br />

poder dos Atri<strong>da</strong>s; Demolidor, advogado e vigilante. Entretanto, Matt Murdock, visto por<br />

Miller (devemos lembrar que os personagens de quadrinhos são constantemente abor<strong>da</strong>dos<br />

por outras equipes criativas) é um personagem movido pela crença na Justiça. Diferente do<br />

Orestes que se vale <strong>da</strong> honra familiar e <strong>da</strong> honra dos reis, a preocupação do Demolidor é a<br />

Justiça e é, de certa forma, relacionar-se novamente com a mãe.<br />

7<br />

9<br />

DPT<br />

DPT


Ao contrário do texto trágico de Ésquilo, o pai de Matt Murdock, estopim para sua<br />

decisão ao vigilantismo, morre pelas mãos de criminosos. Entretanto, conforme dissemos, a<br />

figura de Clitemnestra aparece travesti<strong>da</strong> sob a forma <strong>da</strong> Justiça, que preexiste à personagem.<br />

Por sua vez, Jack Murdock, pai do herói, foi assassinado devido à negação de um sacrifício —<br />

a derrota em uma luta de boxe. Sua vitória significou a morte. Agamêmnon moderno, ele não<br />

pode ser morto pela própria esposa, mas pode sofrer nas mãos <strong>da</strong>queles que têm relação<br />

contrária à própria imagem <strong>da</strong> Justiça. Nota-se, porém, que Jack Murdock, <strong>da</strong> mesma forma<br />

que o estopim <strong>da</strong> morte de Agamêmnon, age por orgulho, mas Miller transfere o problema,<br />

pois o orgulho de Jack é relacionado ao seu filho, não mais ao status de conquistador. É<br />

necessário que Jack se sacrifique para que Matt possa seguir em sua trajetória como herói.<br />

Trata-se de um dos motivos arquetípicos mais antigos, a morte do velho herói para o início <strong>da</strong><br />

trajetória do mais jovem. Ao colocar-se sob o signo do orgulho, Jack “Daredevil” Murdock<br />

encerra sua representativi<strong>da</strong>de na vi<strong>da</strong> de seu filho, inoculando a semente <strong>da</strong> bravura<br />

necessária para reagir às contradições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong>de.<br />

Vejamos, nesse momento, como se deu a morte de Jack Murdock (Demolidor, o<br />

homem sem medo, # 1, 33). Da mesma forma que Orestes, Matt vinga a morte de seu pai. No<br />

seu caso, aparentemente a vingança não apresentaria problemas no que tange à <strong>questão</strong> <strong>da</strong><br />

thémis/díke. Ao realizar sua vingança, porém, o futuro Demolidor, sem querer, mata uma<br />

10<br />

mulher em meio à luta com o assassino de seu paiTPD<br />

DPT. Mesmo não sendo culpado direto pela<br />

morte <strong>da</strong> mulher, StickTPD<br />

11<br />

DPT, seu<br />

213<br />

velho mestre, o abandona. Matt vê em seu pai um exemplo de<br />

realização heróica, mas sua morte torna-se necessária à narrativa para que o filho possa<br />

substituir e elevar-se frente ao progenitor.<br />

Estranhamente, a saí<strong>da</strong> de Stick — mestre de Matt —, nesse momento, funciona<br />

como uma espécie de deus ex machinaTPD<br />

12<br />

DPT para<br />

o jovem Murdock: ele reencontra o eixo de<br />

equilíbrio, <strong>da</strong> mesma forma que Orestes quando se encontra com Apolo, no inicio <strong>da</strong>s<br />

“Coéforas”. Ambos são auxiliados pela presença/ausência de uma personagem que os protege,<br />

mesmo não podendo fazê-lo de maneira direta. Assim, enquanto Orestes foge <strong>da</strong>s Fúrias rumo<br />

ao julgamento, Matt Murdock abraça a advocacia como profissão, aproximando-se, uma vez<br />

mais, à imagem <strong>da</strong> Justiça.<br />

O primeiro encontro entre Matt e Elektra se dá de maneira dinâmica, num breve<br />

diálogo. Notemos como a montagem <strong>da</strong> página e os recursos imagéticos que são utilizados<br />

por John Romita Jr, o desenhista <strong>da</strong> história, concedem maior dinâmica até o sexto plano.<br />

Depois desse momento, a cena pára e o diálogo entre os dois personagens ganha relevo aos<br />

olhos do leitor. Além disso, é notável a utilização <strong>da</strong>s onomatopéias como índice de<br />

movimento, aqui a frea<strong>da</strong> do carro não é o <strong>da</strong>do importante, pois o veículo encontra-se em<br />

meio à neve, mas a quebra <strong>da</strong> proteção <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> e, portanto, a quebra de um limite acentuase<br />

pela simples utilização <strong>da</strong> onomatopéia, gerando uma analogia com o próprio<br />

comportamento de Elektra: a revolta contra as imposições sociais.<br />

No diálogo (Demolidor, o homem sem medo, # 2, 65/6), encontra-se uma <strong>da</strong>s chaves mais<br />

importantes de nossa abor<strong>da</strong>gem acerca dessa série de histórias. Aqui, pode-se ver como a<br />

aproximação entre Orestes e Matt Murdock é mais clara do que até então. O limite,<br />

representado pelo penhasco, quando contrastado com a fala de Elektra, torna-se uma metáfora<br />

visual que desempenha o papel dos limites em que a justiça se encontra contemporaneamente.<br />

Enquanto Elektra é ungi<strong>da</strong> pelo livre arbítrio e capaci<strong>da</strong>de de desejo ilimitados, Matt coloca<br />

sua vi<strong>da</strong> em função <strong>da</strong> manutenção <strong>da</strong>s leis, neste momento somente como advogado e,<br />

posteriormente, como vigilante. Não podemos esquecer que, neste momento <strong>da</strong> narrativa, a<br />

futura ninja segue um caminho similar no âmbito <strong>da</strong> diplomacia e <strong>da</strong>s leis internacionais.<br />

Porém, para ela, Matt bebe do leite amargo de sua mãe, já que a Justiça aparece como se fosse<br />

a grande nutriz de to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de.


Concentremo-nos, nesse momento, na personagem Elektra. Parece que há uma<br />

espécie de citação do material clássico, na própria apresentação <strong>da</strong> personagem — ela se<br />

chama Elektra Natchios (sobrenome grego tradicional) e, além disso, seu pai é o Embaixador<br />

<strong>da</strong> Grécia nos Estados Unidos <strong>da</strong> América. Por duas vezes, Frank Miller conecta o leitor ao<br />

ideário do mundo grego, através de pequenas referências. Devemos, to<strong>da</strong>via, perceber<br />

também que o cargo de embaixador é uma profissão que traz pompa e status. Assim, o<br />

correlato rei de Micenas/Embaixador <strong>da</strong> Grécia não é de todo tão forçoso, trata-se, na<br />

ver<strong>da</strong>de, de uma a<strong>da</strong>ptação à contemporanei<strong>da</strong>de.TPD<br />

Em Ésquilo, Electra é uma princesa que não foi destituí<strong>da</strong> de sua herança, mas passa<br />

a ser ignora<strong>da</strong> por seus pares. O isolamento a oprime de tal forma, que seu único desejo é a<br />

vingança. Seu irmão é, pois, o meio para que ela consiga restaurar o status antigo de nobreza.<br />

A Elektra de Miller, por um aspecto, assume um papel análogo a esse. Ela recebe as mesmas<br />

regalias de uma princesa, pois é filha de um homem público. Filha devota<strong>da</strong>, Elektra assume o<br />

papel de uma jovem ingênua até o momento <strong>da</strong> morte paterna, uma vi<strong>da</strong> isola<strong>da</strong> onde o único<br />

refúgio são os estudos e a figura paterna. Com a morte de seu pai, Elektra decide abandonar<br />

os estudos: “Eu não posso continuar estu<strong>da</strong>ndo as leis se não acredito mais nelas! (...) O<br />

mundo que antes a gente queria mu<strong>da</strong>r se tornou algo que eu odeio e desprezo!”TPD<br />

13<br />

DPT<br />

14<br />

DPT A<br />

214<br />

imagem<br />

representativa <strong>da</strong> mãe torna-se, agora, um incômodo às aspirações <strong>da</strong> personagem. Ela precisa<br />

estabelecer um novo rumo para conseguir suportar sua nova condição.<br />

Mesmo assim, percebe-se claramente que ain<strong>da</strong> há uma relação de<br />

complementari<strong>da</strong>de entre Elektra e Matt Murdock. Ela confere o acabamento necessário ao<br />

futuro advogado, mesmo com o afastamento dos dois. A Electra de Ésquilo é o elemento<br />

complementar de Orestes nas Coéforas. É ela quem realiza os ritos que vali<strong>da</strong>m a ação do<br />

15<br />

irmão vingador.TPD<br />

DPT Analogicamente, a escolha de Elektra funciona como um dos meios para<br />

que Matt se torne advogado e vigilante. Aparentemente, o herói se afasta <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong><br />

mãe/Justiça ao se tornar um vigilante, mas, como o Orestes esquiliano, ele realmente deseja<br />

uma aproximação com a mãe e, por isso, seu desvio é essencialmente uma forma de ádito à<br />

Justiça. Como vimos, Matt reconhece no ordenamento jurídico, a nutriz e, por isso, seus atos<br />

como vigilante não podem envolver novos crimes. Assim, as duas opções de Matt se<br />

equilibram.<br />

É claro que o principal foco em Ésquilo é a <strong>questão</strong> familiar, o que não poderia<br />

aparecer de maneira clara em Frank Miller, pois, em última instância, a relação entre<br />

Demolidor e Elektra não é desse tipo. Entretanto, a <strong>questão</strong> continua presente devido às<br />

similitudes nas histórias de ambos. A sutil diferença se encontra na morte de seus pais:<br />

enquanto Jack Murdock é morto por criminosos, o Embaixador <strong>da</strong> Grécia é morto pela própria<br />

polícia de Nova York. Afrontar as leis torna-se um meio para que Elektra se afirme, enquanto<br />

que, para Matt, as leis são o catalisador necessário de suas ações.<br />

b) UMiller e Sófocles: o desafio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

A Electra de Sófocles, ao contrário do que é visto em Ésquilo, é uma escrava,<br />

despreza<strong>da</strong> ao extremo. Esta princesa coloca-se como um personagem que não consegue<br />

suportar a posição na qual se encontra no início <strong>da</strong> trama que a levará ao mesmo caminho<br />

mítico.<br />

(...) como se fosse uma estrangeira despreza<strong>da</strong>, sou trata<strong>da</strong> de serva do<br />

palácio, uso esta vestimenta inconveniente e tenho que assediar mesas que<br />

na<strong>da</strong> têm para mim.<br />

SÓFOCLES: 1975, 9<br />

Em outro ponto <strong>da</strong> narrativa de Elektra, Frank Miller mostra como foram os anos de<br />

treinamento <strong>da</strong> personagem nas mãos de Stick. Nossa heroína acredita, neste momento, estar


cerca<strong>da</strong> por pessoas que a amam. Porém, um <strong>da</strong>do a diferencia claramente <strong>da</strong> Electra de<br />

Sófocles: aqui, a ninja sente inveja <strong>da</strong>queles que são diferentes (ou melhores, se preferir) que<br />

ela reconhece como bem feitores mesmo tratando-a como escrava (Elektra Assassina, 13).<br />

Há um desvio claro aqui: a figura paterna é transferi<strong>da</strong> para Stick, o líder <strong>da</strong> ordem<br />

ninja dos Sete. Mesmo rejeitando esse amor, o velho mestre sabe que Elektra nutre esse<br />

sentimento por ele. A pequena aprendiz encontra-se, pois, numa relação diferente <strong>da</strong>quela<br />

proposta por Sófocles: o amor paterno foi transferido para outro homem, para que a situação<br />

de ser uma mera serva seja suportável para ela. Ao expulsá-la e ao tratá-la como uma mera<br />

escrava, Stick transforma-se no estopim de uma nova mu<strong>da</strong>nça do personagem.<br />

Elektra, aqui, revolta-se tão somente contra a justiça do clã. Ao se unir,<br />

posteriormente, ao Tentáculo, o personagem busca independência. Porém, ela logo percebe<br />

que a estrutura hierárquica <strong>da</strong> organização ninja baseia-se numa figura nutriz conheci<strong>da</strong> como<br />

“Besta”. Trata-se de uma enti<strong>da</strong>de diabólica volta<strong>da</strong> ao assassínio. Não obstante, essa figura<br />

estabelece uma relação maternal com a ninja, provocando uma cena de alimentação por<br />

16<br />

DPT.<br />

amamentaçãoTPD<br />

Sófocles, em sua Electra, traz uma nova personagem à ação dramática — Crisótemis.<br />

Ela é o personagem que, na peça, mais dialoga com Electra, sendo o símbolo de acomo<strong>da</strong>ção<br />

17<br />

perante a situação em que as duas se encontramTPD<br />

DPT. No caso de Miller, temos a figura de<br />

18<br />

Casti<strong>da</strong>de McBryde, uma agente <strong>da</strong> S.H.I.E.L.D.TPD<br />

DPT que serve, em Elektra Assassina, de<br />

contraponto dialógico para a ninja. McBryde acredita nos relatórios e nas ordens que lhe são<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos superiores, está absolutamente aclimata<strong>da</strong> com as questões que lhe são <strong>da</strong><strong>da</strong>s, tal<br />

qual Crisótemis em sua situação de ex-princesa escrava. Ao contrário de Crisótemis, a atuação<br />

de McBryde é somente volta<strong>da</strong> aos seus atos que, vistos pelos olhos de Elektra, são colocados<br />

numa estrutura de diálogo com as próprias atitudes <strong>da</strong> ninja.<br />

Na tragédia de Sófocles, Clitemnestra representa a interdição: Electra deseja ser<br />

esposa, mãe. Porém, reduzi<strong>da</strong> ao status de escrava, a antiga princesa não pode desejar realizar<br />

esses sonhos. Devemos lembrar que, na versão quadriniza<strong>da</strong>, Elektra, por renunciar o<br />

caminho <strong>da</strong> nutriz Justiça, afastou-se de seu amor, impossibilitando seus desejos mais<br />

íntimos.<br />

19<br />

A Electra de Sófocles, em reali<strong>da</strong>de, é o espelho distorcido de Clitemnestra.TPD<br />

DPT É ela<br />

quem traça os planos que possibilitam que Orestes possa cumprir o seu caminho mítico, <strong>da</strong><br />

mesma forma que sua mãe planejara a morte do rei de Micenas. A Elektra apresenta<strong>da</strong> em<br />

Elektra Assassina segue o mesmo caminho, pois trata-se de uma personagem que se revolta<br />

contra a nutriz (nesse caso, a Besta), utilizando os mesmos métodos que aprendera com ela.<br />

Assim, para ambas, o estatuto <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de só é conseguido pela aceitação dos procedimentos<br />

de suas respectivas fontes maternas.<br />

Ain<strong>da</strong> na versão grega, Electra é priva<strong>da</strong> de marido e família, conforme já dissemos.<br />

Ela é castra<strong>da</strong> pelos ditames de sua própria mãe (reduzi<strong>da</strong> à escrava e serviçal do palácio onde<br />

era uma <strong>da</strong>s figuras mais importantes). Electra, para se afirmar novamente como uma nobre,<br />

necessita de uma figura masculina. Essa é exatamente a função de Orestes nessa peça. Em<br />

Miller, ao contrário, Elektra não necessita de figuras masculinas para realizar seus feitos. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, o Tentáculo atua como um mantenedor <strong>da</strong> ordem <strong>da</strong> mãe (Besta) — como as Erínias,<br />

em “Eumênides”, a perseguir Orestes. A organização auxilia os intentos <strong>da</strong> Besta, castrando<br />

ca<strong>da</strong> vez mais a ninja de suas pulsões femininas. To<strong>da</strong>via, há uma personagem ain<strong>da</strong> não<br />

comenta<strong>da</strong> até o momento que representa exatamente esse retorno ao lado feminino de nossa<br />

heroína: Demolidor.<br />

Há um elemento no contexto imagético de Elektra que pode causar espanto aos<br />

leitores de quadrinhos que é representativo <strong>da</strong> feminili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> personagem, por se tratar de<br />

20<br />

um presente <strong>da</strong>do por Matt MurdockTPD<br />

DPT: a ban<strong>da</strong>na vermelha que Elektra usa é exatamente<br />

esse símbolo. Presente <strong>da</strong>do por ele na época em que os dois tiveram um envolvimento<br />

215


amoroso, a ban<strong>da</strong>na é o único símbolo de feminili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> restante na personagem. Ao<br />

retirá-la, o que ocorre inúmeras vezes na narrativa de Miller, Elektra assume o lado mais cruel<br />

de seu ser. Em alguns casos, porém, a utilização <strong>da</strong> ban<strong>da</strong>na, como uma arma, denota<br />

exatamente o oposto: plenitude do feminino. Como na defloração, a supressão de um tecido<br />

— o mais feminino de todos — representa a aquisição de um lado que a ninja sempre tenta<br />

esconder: a própria feminili<strong>da</strong>de (Elektra Saga, #02, 38).<br />

Nessa cena, podemos perceber que o recurso final usado pela ninja para matar o<br />

21<br />

principal assassino do Tentáculo, Kirigi, é o enforcamento, claro índice de feminili<strong>da</strong>de.TPD<br />

DPT O<br />

enforcamento, por si só, já representaria sua feminili<strong>da</strong>deTPD<br />

22<br />

DPT, mas<br />

216<br />

o realce de ser pela ban<strong>da</strong>na,<br />

o presente <strong>da</strong>do com amor, reconstitui o único resquício e último elemento de ligação com o<br />

macho (Demolidor/Orestes). Apesar de viril, a Elektra de Frank Miller apresenta nuances<br />

femininas, herança deixa<strong>da</strong> por Sófocles em sua concepção de Electra.<br />

Assim, a virili<strong>da</strong>de transmiti<strong>da</strong> por Sófocles — afinal, quem coman<strong>da</strong> as ações é<br />

Electra — é capta<strong>da</strong> por Miller, mas ambos ain<strong>da</strong> demonstram que a personagem é perpassa<strong>da</strong><br />

por traços de feminili<strong>da</strong>de.<br />

c) UMiller e Eurípides: histeria e ação<br />

A Electra de Eurípides é, talvez, o personagem que está mais envolvido num clima<br />

de desespero e penitência. Desespero por conta de sua situação de isolamento do palácio real<br />

e penitência devido à própria carência que a aflige.<br />

Ó Noite escura, nutriz dos astros de ouro; sob teu manto de sombra eu vou,<br />

com este cântaro à cabeça, em busca <strong>da</strong> fonte... Não que me veja reduzi<strong>da</strong> a<br />

tão grande miséria, mas para mostrar aos deuses o crime de Egisto, e<br />

espalhar, pelo espaço a fora, minha lamentações por meu pai. Expulsou-me<br />

Tín<strong>da</strong>ris de seu lar, para agra<strong>da</strong>r ao marido; e desde que deu um filho a<br />

Egisto, considera-nos, a Orestes e a mim, como estranhos em sua casa...<br />

EURÍPIDES: s.d., 30.<br />

A Electra de Eurípides é um personagem solitário, perdeu as esperanças de<br />

reencontrar seu irmão e, enfim, realizar sua vingança. Trata-se de um personagem que “só<br />

23<br />

consegue pensar na própria desgraça, porque regi<strong>da</strong> por um narcisismo em negativo”.TPD<br />

DPT<br />

Em Elektra Vive, o problema <strong>da</strong> solidão <strong>da</strong> personagem também é apresentado. O<br />

narrador <strong>da</strong> trama é Matt Murdock, o que torna a narrativa mais interessante, pois nos<br />

encontramos no ponto de vista <strong>da</strong>quele que ain<strong>da</strong> não consegue aceitar a separação com a<br />

24<br />

ninja. No primeiro encontro dos doisTPD<br />

DPT, essa situação se esclarece ao leitor. Elektra, agora, é<br />

um personagem completamente independente. É ela quem decide não mais se relacionar com<br />

Murdock e isso fica claro na cena em que ela o envenena. Contudo, o vigilante não percebe o<br />

que isso significa e continua a persegui-la até o final <strong>da</strong> trama (Elektra Vive, 37).<br />

A Electra euridipiana não consegue amar. Por isso, torna sua vi<strong>da</strong> um martírio<br />

melancólico, ressaltando a <strong>questão</strong> de sua infelici<strong>da</strong>de. Essa sensação decorre pelo fato de<br />

Orestes estar desaparecido, pelo ultraje a seu pai, pelo seu casamento arranjado, pelas<br />

injustiças cometi<strong>da</strong>s por Egisto e Clitemnestra e por sua inveja relaciona<strong>da</strong> ao amor de sua<br />

mãe ao novo marido.<br />

Voltemos ao início <strong>da</strong> peça para uma pequena análise. Há um elemento cênico que<br />

traz uma simbologia em relação à qual devemos tecer alguns comentários. Referimo-nos ao<br />

jarro d’água que deverá ser preenchido. Simbolicamente, o jarro retrata a própria feminili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> personagem, pois seu companheiro não a “preencheu”. Isso implica dizer que Electra<br />

casou, mas não consumou o casamento. Assim, a personagem se encontra em busca do falo<br />

25<br />

sonegado por ela e pelos outros.TPD<br />

DPT


Em Elektra Assassina, a narrativa se estrutura sob dois pontos de vista.<br />

Primeiramente, é o olhar de Elektra que narra as cenas, estando ela ain<strong>da</strong> num manicômio.<br />

26<br />

Espécie de devaneio, ela narra to<strong>da</strong> sua trajetória até chegar àquele pontoTPD<br />

DPT. Nessa narrativa,<br />

Miller cria um novo personagem que irá de encontro ao lavrador euridipiano — John Garrett,<br />

uma espécie de amante para a ninja. Unido à ninja por uma espécie de vínculo mental, Garrett<br />

acredita estar apaixonado por ela.<br />

Elektra foge do hospício e traça uma estratégia para matar a Besta, anteriormente<br />

cita<strong>da</strong>. Não se pode afirmar seguramente se as ações em Elektra Assassina realmente<br />

ocorreram, pois o clima criado na narrativa é bastante impreciso. Os narradores, Elektra e<br />

Garrett, sofrem de alguns problemas psicológicos: a ninja estava interna<strong>da</strong>, e Garrett é um<br />

psicopata conhecido. Ou seja, a tensão narrativa é leva<strong>da</strong> ao nível <strong>da</strong> descrença. Tudo,<br />

incluindo as imagens utiliza<strong>da</strong>s, leva a crer que a reali<strong>da</strong>de está extramente distorci<strong>da</strong> na visão<br />

<strong>da</strong>s duas personagens.<br />

Violência e histeria são <strong>da</strong>dos absolutamente comuns em Elektra Assassina. O<br />

discurso dos narradores coloca-os num paradoxo elementar: o mal pode trazer o bem? Esta<br />

pergunta é respondi<strong>da</strong> no último capítulo, mas também de maneira duvidosa pela personagem<br />

Ken Wind. Ele é o potencial Egisto nessa narrativa, pois deseja tornar-se Presidente dos<br />

Estados Unidos <strong>da</strong> América e se interpõe a Elektra todo o tempo. Com as eleições quase<br />

ganhas, Elektra descobre o ver<strong>da</strong>deiro objetivo de Wind — instaurar o caos, com a Terceira<br />

Guerra Mundial. Trata-se, em reali<strong>da</strong>de, de um plano <strong>da</strong> Besta, pois Wind, em sua campanha<br />

27<br />

presidencial, foi inoculado pelo leite <strong>da</strong> mesma, tornando-se seu escravoTPD<br />

DPT.<br />

Em Eurípides, temos o distanciamento completo <strong>da</strong> <strong>questão</strong> divina. Electra aqui<br />

deseja somente retornar ao direito de realizar seus ímpetos como princesa e mulher. Em<br />

Elektra Assassina, Miller tece uma Elektra que não deseja mais realizar-se no plano do amor<br />

romântico, pode-se perceber que esta história não apresenta a participação de Demolidor, ele é<br />

somente uma amarga lembrança, tal qual o pálido Orestes de Eurípides. Diferente do<br />

tragediógrafo, o autor de quadrinhos explora apenas uma nuance <strong>da</strong> personagem arquetípica<br />

(a ação solitária) para desabar o relacionamento maternal entre Electra e Orestes, colocando<br />

em seu lugar uma feri<strong>da</strong> narcísica que a personagem passa a usar os outros em prol de seu<br />

objetivo. Miller, assim, desmistifica esse amor com dois simples golpes: a separação brutal<br />

em Elektra Vive e a criação de uma paixão em Elektra Assassina.<br />

Tampando o nanquim<br />

Frank Miller, em sua criação, promoveu por duas vezes a morte de Elektra —<br />

Elektra Saga, # 4, 48 e Elektra Vive, 78/9 —, seguindo um sentido básico dos temas<br />

arquetípicos. Segundo Meletínski, as tragédias gregas geram uma nova forma modelar de<br />

personagens. É exatamente este tipo de arquétipo que, costumeiramente, encontramos nos<br />

quadrinhos. O arquétipo do mito trágico se relaciona a uma complicação <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de, na<br />

sua relação com o social, gerando uma colisão interna e, ao mesmo tempo, destaca a atuação<br />

de forças que independem dessa colisão (deuses e outros), servindo de contraponto à<br />

caracterização épica, por exemplo. Isso gera os motivos arquetípicos que são, na ver<strong>da</strong>de,<br />

apropriações de determinados elementos que constituem o roteiro actancial de determina<strong>da</strong>s<br />

personagens <strong>da</strong> história <strong>da</strong> literaturaTPD<br />

28<br />

DPT.<br />

Segundo tal formulação, Electra é uma personagem que persegue a liber<strong>da</strong>de que lhe<br />

foi tira<strong>da</strong>. A Elektra de Frank Miller possui a mesma ambição. Contudo a personagem<br />

contemporânea possui máculas maiores que as gregas, pois, ao ir contra a mãe/Justiça, ela se<br />

torna a assassina que as heróinas trágicas não conseguiram ser. Ain<strong>da</strong> assim, ao final de sua<br />

trajetória, a ninja é purifica<strong>da</strong> pelo Demolidor, tornando-se, enfim, capaz de fazer parte dos<br />

Sete.TPD<br />

29<br />

DPT<br />

217


Esse ritual de ressurreição contempla, na reali<strong>da</strong>de, a função emotiva na qual a saga<br />

se encontra. Por se tratar <strong>da</strong> problemática do amor à ordem e do amor à liber<strong>da</strong>de, Elektra<br />

busca a própria destruição, pois torna-se elemento dela mesma. Nesse caso, Matt Murdock é<br />

aquele que resgata-a à situação inicial de humani<strong>da</strong>de. Do mesmo modo que o Orestes<br />

esquiliano, Demolidor serve de retorno para a personagem, purificando-a para que uma vez<br />

mais ela possa ter a chance de sentir, ou seja, viver.<br />

To<strong>da</strong>via essa liber<strong>da</strong>de não é plenamente senti<strong>da</strong> pela personagem, pois seu amor,<br />

em última instância, não a inclui a ela mesma. Electra é capaz de amar o outro, mas desligouse<br />

de si mesma. Espécie de valor de muleta, Elektra somente consegue se afirmar, tal qual<br />

suas versões trágicas, pela relação com o outro. Assim, podemos chegar à conclusão de que a<br />

personagem não se ama, mas sacrifica-se me prol de algo que nunca conseguirá.<br />

Assim, Frank Miller leva seu personagem a um novo patamar: Elektra não é somente<br />

o símbolo <strong>da</strong> revolta contra o que lhe foi tirado, mas torna-se um referencial <strong>da</strong> revolta em si.<br />

Como vimos, em ca<strong>da</strong> comparação, Miller leva o constituinte de base às últimas<br />

conseqüências — sua Elektra alia-se ao caos (Tentáculo) para atingir seus objetivos;<br />

posteriormente, alia-se ao maior criminoso de Nova York para exercer sua liber<strong>da</strong>de; e, ain<strong>da</strong>,<br />

ataca seu amante (Demolidor) como uma espécie de contraponto ao que ele representa.<br />

Mesmo redimi<strong>da</strong>, essa personagem tem de se isolar para a preservação <strong>da</strong> ordem estabeleci<strong>da</strong>.<br />

A Elektra de Miller, pois, torna-se um novo mito. Seu referencial relaciona-se com a<br />

liber<strong>da</strong>de a qualquer custo, transferindo-se, finalmente, para um novo patamar. Ao utilizar os<br />

modelos gregos, o autor redimensiona-os e recria-os. Ao recriá-los, na problemática dos<br />

quadrinhos e do mundo contemporâneo, Miller estabelece um novo mito de Electra. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, o autor cria o mito de Elektra.<br />

1<br />

TP PT Há uma diferença conceitual entre o mito clássico (épico) — mythos — e o mito trágico. Para Jean-Pierre<br />

Vernant, as problemáticas focaliza<strong>da</strong>s pelos tragediógrafos são temas próprios dos chamados homens trágicos<br />

(pertencentes ao final do século V a.C.). Os helenistas só focalizam esses temas trágicos de maneira incidental e,<br />

mesmo assim, sua abor<strong>da</strong>gem se dá de maneira explicativa e, portanto, superficial (VERNANT: 1999, 7).<br />

Mythos é a designação clássica que retrata o pensamento anterior ao tempo trágico. A separação se faz por causa<br />

de seu caráter ficcional de representação: o mythos é, de certa forma, uma ver<strong>da</strong>de sobre a humani<strong>da</strong>de; o mito<br />

trágico irrompe, por seu lado, em uma definição para o homem trágico.<br />

2<br />

TP PT Na ver<strong>da</strong>de, Matt Murdock (Demolidor) acaba por conhecer sua mãe posteriormente às histórias abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s por<br />

esta análise. Ele somente se defronta com a figura materna real em A que<strong>da</strong> de Murdock.<br />

3<br />

TP PT NUÑEZ: 2000, 48.<br />

4<br />

TP PT ÉSQUILO: s.d., 54.<br />

5<br />

TP PT NUÑEZ: 2000, 87/8.<br />

6<br />

7<br />

TP PT MELETÍNSKI: 1998, 62.<br />

TP PT Tentáculo é uma organização de ninjas que é devota<strong>da</strong> ao culto do assassinato e <strong>da</strong> dominação pelo medo.<br />

Apesar de a tradução óbvia de The Hand ser “a mão”, adotou-se o nome “Tentáculo” por abrir um campo<br />

semântico maior que a tradução direta poderia gerar. Assim, as referências que faremos serão não somente sobe<br />

o nome traduzido, mas também a sua referente em inglês. (Enciclopédia Marvel, vol. 1: 108-10)<br />

8<br />

TP PT Elektra Saga, #2, 38.<br />

9<br />

TP PT Na ver<strong>da</strong>de, Matt acaba por conhecer sua mãe posteriormente ao corpus estu<strong>da</strong>do aqui. Descobre-se que ela é<br />

uma freira que abandonou o filho ain<strong>da</strong> bebê (Demolidor Especial 1 – A Que<strong>da</strong> de Murdock).<br />

10<br />

TP<br />

PT Demolidor, o homem sem medo, # 2, 46.<br />

11<br />

TP<br />

PT Logo após o acidente com lixo radiativo, Matt Murdock passa a ser treinado por Stick, o líder dos Escolhidos<br />

— organização ninja rival do Tentáculo. Como o garoto desenvolveu todos os outros sentidos, menos a visão que<br />

perdera no acidente, precisava de orientação para adequar-se novamente no mundo dos homens. Assim, Stick<br />

tem, num primeiro momento, o papel de mestre de Murdock (Demolidor, o homem sem medo, # 1, 20-9).<br />

12<br />

TP<br />

PT MELETÍNSKI: 2000, 62.<br />

13<br />

TP<br />

PT DUMÉZIL: 1992, 1.<br />

14<br />

TP<br />

PT Elektra Saga, # 1, 10.<br />

15<br />

TP<br />

PT NUÑEZ: 2000, 94-5.<br />

16<br />

TP<br />

PT Elektra Assassina, 21/2.<br />

17<br />

TP<br />

PT NUÑEZ: 2000, 99/100.<br />

218


18<br />

TP<br />

PT Superintendência Humana de Inteligência, Espionagem, Logística e Dissuasão – órgão de espionagem<br />

internacional que apresenta sua base num porta-aviões aéreo, podendo locomover-se em todo o território<br />

internacional. Coman<strong>da</strong>do por Nick Fury, o órgão apresenta-se como a primeira força de inteligência liga<strong>da</strong> à<br />

ONU e ao governo norte-americano (Enciclopédia Marvel, vol. 1, 113).<br />

19<br />

TP<br />

PT NUÑEZ: 2000, 102.<br />

20<br />

TP<br />

PT<br />

Elektra Saga, # 1, 10.<br />

21<br />

TP<br />

PT NUÑEZ: 2000, 81/2.<br />

22<br />

TP<br />

PT<br />

sg. Idem, 144-6.<br />

23<br />

TP<br />

PT idem, 131.<br />

24<br />

TP<br />

PT Elektra Vive, 33-7.<br />

25<br />

TP<br />

PT NUÑEZ: 2000, 132.<br />

26<br />

TP<br />

PT<br />

Elektra Assassina, 3-34.<br />

27<br />

TP<br />

PT idem, 165.<br />

28<br />

TP<br />

PT<br />

MELETÍNSKI: 1998, 86-91.<br />

29<br />

TP<br />

PT Elektra Saga, # 6, 43.<br />

Bibliografia<br />

BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza. Rio de<br />

Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.<br />

BENVENISTE, Émile. “Thémis” e “Díkê”. In: O vocabulário <strong>da</strong>s instituições indoeuropéias.<br />

Tradução de Denise Rottmann. São Paulo: Ed. <strong>da</strong> Unicamp, 1995.<br />

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo:<br />

Perspectiva, 2000.<br />

ÉSQUILO. Oréstia. Tradução de Ir. Maria de Eucaristia. Rio de Janeiro: USU, 1975.<br />

EURÍPIDES. Electra, Alceste, Hipólito. Tradução de J.B. Mello e Souza. Rio de Janeiro:<br />

Ediouro, s.d.<br />

JOBIM, José Luís(org.). Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.<br />

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Leila. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense,<br />

1997.<br />

NUÑEZ, Carlin<strong>da</strong> Pate. Electra ou uma constelação de sentidos. Goiânia: Ed. <strong>da</strong> UDG,<br />

2000.<br />

STAIGER, Emil. Conceitos Fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> Po<strong>ética</strong>. Tradução de Celeste Aí<strong>da</strong> Galeão. Rio<br />

de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.<br />

SÓFOCLES. Electra. Tradução de Ir. Maria de Eucaristia. Rio de Janeiro: USU, 1975.<br />

VERNANT, Jean-Pierre. ”A organização do espaço” In: Mito e pensamento entre os gregos:<br />

estudos de psicologia histórica. Tradução de Haiganuch Sarian. São Paulo: Difusão<br />

Européia do Livro, Ed. <strong>da</strong> USP, 1973.<br />

-----------. “Razões do mito”. In: Mito e socie<strong>da</strong>de na Grécia Antiga. Tradução de Myriam<br />

Campello. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.<br />

219


-----------. “Tensões e Ambigüi<strong>da</strong>des na Tragédia Grega”. In: Mito e tragédia na Grécia<br />

Antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />

Gibigrafia<br />

MILLER, Frank; ROMITA JR, John. Demolidor, o homem sem medo. São Paulo: Abril,<br />

1994.<br />

----------. Elektra Saga. Números 1,2,3,4,5,6. São Paulo: Abril, 1989.<br />

----------; SIENKIEWICZ, Bill. Elektra Assassina. São Paulo: Abril, 1989.<br />

----------; VARLEY, Lynn. Elektra Vive. São Paulo: Abril, 1990.<br />

220


O prólogo senequiano e a antecipação <strong>da</strong> catástrofe<br />

Van<strong>da</strong> Santos Falseth (Profª Drª - UFRJ)<br />

Resumo: Sêneca, o filósofo, foi a figura mais significativa <strong>da</strong>s letras latinas <strong>da</strong> dinastia claudiana.<br />

Em sua vasta produção literária encontram-se nove tragédias inspira<strong>da</strong>s nos modelos gregos,<br />

sobretudo, em Eurípides. Os longos monólogos presentes nas tragédias, vistos pelos críticos<br />

modernos como impedimento para a representação, revelam, no entanto, a originali<strong>da</strong>de do autor,<br />

como se pode observar no prólogo <strong>da</strong> peça Medéia.<br />

Palavras-chave: tragédia, Sêneca, Medéia, prólogo<br />

Sêneca viveu do ano 4 a.C? ao ano 65d.C e foi testemunha de uma época conturba<strong>da</strong>, marca<strong>da</strong><br />

pela violência e tirania dos imperadores Tibério, Calígula, Cláudio e Nero, sendo deste último seu<br />

educador.<br />

As tragédias de Sêneca, muitas vezes, são considera<strong>da</strong>s como veículos de sua filosofia, mas tal<br />

afirmação é imprecisa e se ressente de um entendimento mais amplo do que a tragédia representa.<br />

Esta se preservou ao longo dos tempos, porque a duração <strong>da</strong>s “ações trágicas” se passa na alma dos<br />

personagens, sendo, pois, essencial o sofrimento, a dor, inerentes ao homem desde os tempos<br />

imemoriais.<br />

Sêneca, mal compreendido na sua época, ao ser comparado com o modelo grego, foi, porém, na<br />

I<strong>da</strong>de Média e, sobretudo no Renascimento, não só lido, como também imitado.<br />

Contra ele colocam-se, ain<strong>da</strong>, os longos monólogos, que prejudicariam ou impediriam a<br />

encenação. To<strong>da</strong>via, estes podem representar uma tentativa de autoconhecimento dos personagens.<br />

A exemplo do que ocorre com as tragédias euripidianas, nas quais nosso autor se inspirou, as peças<br />

do dramaturgo latino concentram-se nas paixões humanas, como a mesquinhez, o egoísmo, o ódio,<br />

para não falar de outras.<br />

No drama, a vi<strong>da</strong> é representa<strong>da</strong> nos seus momentos de exaltação e de crise, as relações<br />

humanas são antagônicas e, certamente, Sêneca tinha isso em mente ao escrever sua obra trágica.<br />

Para corroborar tal idéia, escolhemos a tragédia Medéia, em que dois sentimentos,<br />

aparentemente tão distantes e antagônicos, mas ao mesmo tempo tão próximos e semelhantes,<br />

evidenciam-se – o amor e o ódio – que têm em comum a irracionali<strong>da</strong>de.<br />

A presente comunicação visa a fazer uma breve análise do prólogo <strong>da</strong> tragédia Medéia, que se<br />

apresenta sob a forma de um monólogo de cinqüenta e cinco versos.<br />

221


Antes de começar a análise, faz-se necessário tecer alguns comentários acerca <strong>da</strong> tragédia<br />

Medéia e do mito que a envolve. O mito de Medéia está preso a dois outros: a len<strong>da</strong> do Velocino de<br />

Ouro e a famosa expedição dos Argonautas. É o Velocino de Ouro que vai <strong>da</strong>r origem ao segundo<br />

mito. Jasão era o descendente legítimo do trono de Iolco tomado de seu pai pelo tio, Pélias. A<br />

condição imposta pelo tio para a devolução do poder foi a conquista do Velocino de Ouro guar<strong>da</strong>do<br />

por um dragão no bosque sagrado de Ares, na Cólqui<strong>da</strong>. Acompanhado de seus marinheiros,<br />

dirigiu-se, então, no navio Argó até a Cólqui<strong>da</strong>. Lá, o rei Aietes prontificou-se a devolver o<br />

Velocino de Ouro, mas impôs tarefas que nenhum mortal poderia executar. Jasão teve a aju<strong>da</strong> de<br />

Medéia, filha de Aietes, perita feiticeira, a quem prometeu casamento e, assim, obteve uma<br />

completa vitória. Face à recusa do rei de cumprir a promessa feita, Medéia fugiu com Jasão levando<br />

o Velocino de Ouro. Na fuga, Medéia esquartejou o próprio irmão que os perseguia. Partiram para<br />

Iolco e, como o tio Pélias se recusasse a devolver o trono a Jasão, Medéia eliminou o rei. Foram<br />

banidos de Iolco e se exilaram em Corinto, onde viveram felizes por algum tempo, até que Jasão<br />

resolveu casar-se com Creúsa, filha de Creonte, rei de Corinto. É neste ponto que se inicia a<br />

tragédia de Eurípides e a de Sêneca.<br />

A peça tem início com um monólogo de Medéia, toma<strong>da</strong> de ira, por ter sido abandona<strong>da</strong> pelo<br />

marido, Jasão. Neste, Medéia já antecipa seu desejo de vingança contra a nova esposa do cônjuge,<br />

Creúsa, e contra o pai desta, Creonte.<br />

A tragédia, como manifestação literária já amadureci<strong>da</strong>, apresentava uma estrutura defini<strong>da</strong>.<br />

Dividia-se em partes canta<strong>da</strong>s, recita<strong>da</strong>s e dialoga<strong>da</strong>s. Começava por um prólogo, em que o autor<br />

apresentava a idéia geral de sua peça, os seus fun<strong>da</strong>mentos ou até mesmo uma justificativa para a<br />

posterior reviravolta na vi<strong>da</strong> do personagem. Essa apresentação era feita através de um monólogo<br />

ou de um diálogo.<br />

1<br />

Em Medea, o prólogo se estende do verso 1 ao 55. Como afirma Pierre GrimalTPF FPT, o prólogo, nas<br />

tragédias de Sêneca, não serve para expor a intriga, mas para delinear, por antecipação, as grandes<br />

linhas <strong>da</strong> situação moral – independentemente dos acontecimentos que marcarão o seu<br />

desenvolvimento. O prólogo senequiano, diferentemente do prólogo grego, que tem a finali<strong>da</strong>de de<br />

mostrar as linhas mestras <strong>da</strong> intriga, segundo ain<strong>da</strong> o mesmo autor, demonstra, pois, grande<br />

originali<strong>da</strong>de.<br />

Na tragédia analisa<strong>da</strong>, o prólogo é composto por um monólogo de Medéia, em que, logo no<br />

início, há referências mitológicas, to<strong>da</strong>s liga<strong>da</strong>s às len<strong>da</strong>s impulsionadoras <strong>da</strong>s ações trágicas, como<br />

a do Velocino de Ouro, <strong>da</strong> Expedição dos Argonautas e a <strong>da</strong> própria Medeia. A primeira invocação<br />

é dirigi<strong>da</strong> à divin<strong>da</strong>de protetora do casamento, <strong>da</strong>s mulheres e dos partos, Lucina, um dos epítetos<br />

de Juno, que deixa transparecer a extensão do sofrimento <strong>da</strong> protagonista. Há dentre outras<br />

TP<br />

1<br />

PT (Pierre Grimal, 1973. Les tragédies de Sénèque. In: Les tragédies de Sénèque et le Théatre de la Renaissance. p.7)<br />

222


imprecações, Minerva, a que aconselhou Argos a construir o navio Argó, que conduziria Jasão à<br />

Cólqui<strong>da</strong>; Tífis, o primeiro-piloto do navio Argó; Hécate, a deusa que podia presidir à magia e aos<br />

feitiços.<br />

Na peça grega , não há referências mitológicas no prólogo. O mesmo é recitado pela ama, que<br />

mostra Medéia como uma mulher terrível, que ora se lamenta, ora fica em silêncio. Participa<br />

também do prólogo grego o Preceptor, que traz as crianças e anuncia o banimento de Medéia e dos<br />

filhos, o que faz aumentar a tensão. A Ama prevê que algum mal acontecerá às crianças, após os<br />

gritos de Medéia.<br />

Já se percebe no prólogo <strong>da</strong> tragédia latina, a marca <strong>da</strong> imutabili<strong>da</strong>de do caráter do personagem,<br />

delineado por um desejo de vingança exacerbado, no passo em que Medéia invoca as Erínias,<br />

divin<strong>da</strong>des do mundo infernal:<br />

Nunc, nunc adeste, sceleris ultrices deae<br />

crinen solutis squali<strong>da</strong>e serpentibus,<br />

atram cruentis manibus amplexae facem,<br />

adeste, thalamis horri<strong>da</strong>e quon<strong>da</strong>m méis<br />

quales stetistis: coniugi letum nouae<br />

letumque socero et regiae stirpi <strong>da</strong>te,<br />

mihi peius aliud, quod precer sponso, malum:<br />

uiuat, per urbes erret ignotas egens<br />

exul, pauens, inuisus, incerti laris;<br />

(vv.13-20)<br />

“Agora, agora assisti-me, ó deusas, vingadoras do crime, desalinha<strong>da</strong>s quanto aos cabelos, com<br />

serpentes desprendi<strong>da</strong>s, envolvendo nas mãos sanguinolentas a tocha fúnebre; assisti-me, horren<strong>da</strong>s<br />

tais quais, outrora, permanecestes em meu leito nupcial: <strong>da</strong>i a morte a nova esposa e a morte ao<br />

sogro e a to<strong>da</strong> a raça real. Dai a mim um outro mal pior, que eu possa pedir para meu esposo: que<br />

ele viva, erre pelas ci<strong>da</strong>des desconheci<strong>da</strong>s, pobre, desterrado, assustado, indesejado, de lar incerto;”<br />

2<br />

Para Pierre GrimalTPF FPT, o prólogo na tragédia de Sêneca não tem por finali<strong>da</strong>de informar ao<br />

espectador ou ao leitor o desenvolvimento <strong>da</strong> intriga, mas tornar sensível o caráter imanente <strong>da</strong><br />

catástrofe. Há nas palavras de Medéia um ver<strong>da</strong>deiro valor profético:<br />

... .....Iam parta ultio est:<br />

2<br />

TP PT Grimal,<br />

peperi ...<br />

(vv.25-26)<br />

“Já minha vingança foi gera<strong>da</strong>; dei à luz.”<br />

P. (1973), p.8<br />

223


Despreza<strong>da</strong> pelo marido, a princesa-feiticeira se vingará dele assassinando os próprios filhos.<br />

Quando lhe for negado o pedido para levar as crianças consigo para o exílio, e com a constatação <strong>da</strong><br />

importância <strong>da</strong>s crianças para o pai, Medéia descobrirá o ponto vulnerável do marido e, então, sem<br />

esperanças, encontrará o instrumento de sua vingança para atingir Jasão. Após uma breve indecisão<br />

entre a mãe e a mulher ultraja<strong>da</strong>, resolverá pôr termo à sua vingança matando os próprios filhos.<br />

Acentuando, ain<strong>da</strong>, a antecipação <strong>da</strong> catástrofe, ela se refere ao que vai acontecer no êxodo, com<br />

o fogo destruindo Corinto e a sua fuga, atravessando o céu num carro encantado:<br />

Da, <strong>da</strong> per auras curribus patriis uehi,<br />

committe habenas, genitor, et flagrantibus<br />

ignifera loris tribue moderari iuga:<br />

gemino Corinthos litore oppnens moras<br />

cremata flammis, Maria commitat duo.<br />

(vv.32-36)<br />

“Concede-me, concede-me ser transporta<strong>da</strong> pelas nuvens no carro paterno, confia-me as tuas<br />

3<br />

rédeas, ó pai; concede-me guiar com teus chicotes flamejantes os jugos de fogo: que CorintoTPF FPT, que<br />

opõe obstáculos com seu duplo litoral, queima<strong>da</strong> pelas chamas, junte os dois mares. ”<br />

Refere-se aos crimes passados, na época em que era uma uirgo, como medíocres, opondo-lhes<br />

os futuros que deveriam ser mais terríveis, por já ser mãe:<br />

haec uirgo feci; grauior exsurgat dolor:<br />

maiora iam me scelera post partus decent<br />

(vv.49-50)<br />

“Eu, virgem, fiz estas coisas; que minha dor levante-se mais terrível: agora, me são permitidos,<br />

depois do parto, crimes maiores.”<br />

Medéia ao fazer menção às faltas cometi<strong>da</strong>s no passado, recorre a palavras que concentram uma<br />

carga semântica marca<strong>da</strong>mente trágica: uulnera e caedem (v.47), funus (v.48) scelera (v.50), ira e<br />

furore (v.52). Respectivamente, feri<strong>da</strong>s, morte, funeral, crimes, ira, furor.<br />

Como que preparando o leitor para as desgraças futuras, Sêneca emprega, nos versos 45 e 46,<br />

vários adjetivos para qualificar os males – mala como: effera (cruéis), ignota (desconhecidos),<br />

horri<strong>da</strong> (horríveis), tremen<strong>da</strong> (espantosos).<br />

3<br />

TP PT O<br />

................................ Effera, ignota, horri<strong>da</strong><br />

tremen<strong>da</strong> caelo pariter ac terris mala<br />

mens intus agitat; uulnera et caedem et uagum<br />

funus per artus ; - leuia memoraui nimis<br />

Istmo de Corinto separa o Mar Egeu e o Jônico<br />

224


(vv.45-48)<br />

“Meu cérebro agita em seu interior males cruéis, desconhecidos, horríveis, espantosos, ao<br />

mesmo tempo para o mar e para a terra; feri<strong>da</strong>s, morte, funeral vago (sem exéquias) com os<br />

membros do corpo separados; lembro os muito brandos.”<br />

Interessante ressaltar como Sêneca entra na alma feminina, reproduzindo, com exatidão, o<br />

sentimento <strong>da</strong> mulher despreza<strong>da</strong>, traí<strong>da</strong>, com o desejo de ver o marido procurá-la e encontrá-la<br />

com um outro homem:<br />

me coniugem optet, limen alienum expetat<br />

iam notus hospes...<br />

(vv. 22-23)<br />

“que ele me deseje como esposa, que já um hóspede conhecido procure a porta alheia...”<br />

A Medéia de Sêneca já se apresenta, no prólogo, como uma mulher extremamente vingativa: ela<br />

atraiçoou o pai e matou o irmão, forjou um fim horrível para Pélias. Ao ser traí<strong>da</strong> e despreza<strong>da</strong> por<br />

Jasão, pensa, primeiramente, em vingança, não a de matar Jasão, mas alguma coisa que o faça cair<br />

arruinado, sua noiva, seus filhos, to<strong>da</strong> a sua casa, enfim.<br />

Per uiscera ipsa quaere supplicio uiam,<br />

si uiuis, anime, si quid antiqui tibi<br />

remanet uigoris;<br />

(vv.40-42)<br />

“Através <strong>da</strong>s próprias vísceras, procura o caminho para a vingança, se vives, ó minha alma, se<br />

algo do antigo vigor permanece para ti; ”<br />

A protagonista <strong>da</strong> peça latina é um personagem altamente trágico, uma mulher que, além de<br />

traí<strong>da</strong> é humilha<strong>da</strong>, feri<strong>da</strong> em seu amor próprio, vítima de um homem ambicioso. Extrema<strong>da</strong> em<br />

seus sentimentos, ela afirma nos versos 51 e 52:<br />

Accingere ira teque in exitium para<br />

furore toto.<br />

“Arma-te com a ira e prepara-te para o morticínio com todo o furor. ”<br />

Nos versos finais, Medéia demonstra estar consciente de que sua união com Jasão estava<br />

determina<strong>da</strong> a acabar <strong>da</strong> mesma forma como começou, ou seja, com o crime. Diz ela:<br />

quae scelere parta est, scelere linquen<strong>da</strong> est domus. (v.55)<br />

“ O lar que foi obtido pelo crime, pelo crime deve ser deixado.”<br />

225


O breve estudo do prólogo <strong>da</strong> peça Medéia nos leva a pensar que a mesma representa uma<br />

evolução no tratamento <strong>da</strong> tragédia, não sendo, pois, menos importante ou interessante do que a<br />

Medéia grega.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CARDOSO, Zélia de Almei<strong>da</strong>. Estudos sobre as tragédias de Sêneca. S. Paulo: Alame<strong>da</strong>, 2005.<br />

GRIMAL, Pierre. Dicionário <strong>da</strong> mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. Rio de Janeiro:<br />

Bertrand Brasil, 1997.<br />

_____________ . Les tragédies de Sénèque. In: Les tragédies de Sénèque et le Théatre de la<br />

Renaissance. Paris, CNRS, 1973.<br />

LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. de J. Guinsburg et alii. S. Paulo: Perspectiva, 1990.<br />

SÉNÈQUE. Tragédies. Texte établi et traduit par Léon Hermann. Paris: Les Belles Lettres, 1982.<br />

2v.<br />

226


A ELEGIA 1.3 DE TIBULO: UM MOSAICO DE EPIGRAMAS.<br />

Ana Lúcia Silveira Cerqueira<br />

(Professora Doutora de Língua e Literatura Latina - UFF)<br />

RESUMO: Na elaboração <strong>da</strong> elegia I.3, Tibulo usa de temáticas bem conheci<strong>da</strong>s dos poetas<br />

augustanos, como o propemptikon, o poder do deus Amor, a devoção a Isis, o culto aos Lares<br />

familiares, o epitáfio e a idealização amorosa. Mas há dois temas tratados de maneira nova e<br />

que retomam temas bem conhecidos <strong>da</strong> tradição literária. Um deles diz respeito ao mito<br />

hesiódico <strong>da</strong>s cinco raças. O outro, retoma os Campos Elísios, virgilianos, bem como o<br />

Tártaro, onde aparecem as figuras de Tisífone, Ixion, Tício e as Danaides. Este trabalho visa<br />

sublinhar a originali<strong>da</strong>de desta elegia quanto à sua composição .<br />

PALAVRAS-CHAVE: elegia, morte, Tibulo, mito.<br />

O equilíbrio <strong>da</strong> estrutura po<strong>ética</strong> do jovem poeta Tibulo é indiscutível. O caráter<br />

multiforme de suas fontes e a combinação inteligente e sensível dos vários temas revelam o<br />

trabalho incansável <strong>da</strong> composição em mosaico.<br />

A elegia 1.3 servirá de exemplo para a nossa afirmativa.<br />

O poeta parte com a expedição de Messala para a Cilícia, mas adoece, com perigo de<br />

morte ficando sozinho na Feácia, hoje Corfu. Esse é o prólogo <strong>da</strong> elegia, que pode ser<br />

dividi<strong>da</strong> em seis movimentos:<br />

O primeiro movimento (v. 1-22), poderia ter como título: A viagem de mau augúrio. O<br />

poeta inicia a elegia invocando Messala para que não se esqueça dele, retido pela enfermi<strong>da</strong>de<br />

e impossibilitado de seguir o general pelas águas do mar Egeu. Como o herói grego Ulisses,<br />

retido por uma tempestade em um país estrangeiro e ameaçado de não chegar a sua ÍtacaTPF<br />

está o poeta também isolado de seu amor e do seu campo. O motivo do propemptikon (canto<br />

de sau<strong>da</strong>ção para quem parte), visível nos versos 1-2, é encontrado em outros poetas <strong>da</strong> época<br />

de Augusto (Hor., Epod I; Prop. I.8). No isolamento <strong>da</strong> ilha, o poeta suplica à Morte para que<br />

se afaste dele. O poeta lastima não ter nestas longínquas plagas as homenagens póstumas nem<br />

<strong>da</strong> mãe, nem <strong>da</strong> irmã, nem de Délia, que tanto se preocupara com a parti<strong>da</strong> do poeta. Tibulo<br />

2<br />

deixara na pátria uma fiel e preocupa<strong>da</strong> Délia, como Ulisses deixara PenélopeTPF FPT. Délia<br />

1<br />

TP PT Cf. Homero. Odisséia. (1955, p.183.) Cf também a tradução de Jaime Bruna Odisséia, p. 79). “(...) Sou um<br />

forasteiro que, após muitas provações, chegou aqui, dum outro país longínquo; por isso não conheço nenhum dos<br />

homens que habitam esta ci<strong>da</strong>de e esta terra” (fala de Ulisses à Atena metamorfosea<strong>da</strong> em adolescente).<br />

2<br />

TP PT Como assinala Paolo Fedeli (1980, p.407), tanto Propércio(I, 17, v. 11-12; 19-24), como Tibulo, tratam <strong>da</strong><br />

<strong>questão</strong> <strong>da</strong> morte longe <strong>da</strong> pátria, como Ulisses na Od.5,299-312. Os poetas latinos descrevem a morte que<br />

teriam tido em Roma, se morressem na sua pátria,e o comportamento <strong>da</strong>s pessoas queri<strong>da</strong>s.(Cíntia em<br />

Propércio;a mãe,a irmã e Delia em Tibulo.),retomando esta <strong>questão</strong> expressa pelo Ulisses homérico ,que se<br />

lamenta de não ter morrido em Tróia e recebido a sepultura pela mão dos companheiros.<br />

1<br />

FPT,<br />

227


etribuíra o amor do poeta, e a prova de tal retribuição foram as inúmeras consultas feitas às<br />

sortes para saber se o amado voltaria ou não:<br />

Ibitis Aegaes sine me, Messala, per un<strong>da</strong>s<br />

o utinam memores ipse cohorsque mei !<br />

Me tenet ignotis aegrum Phaeacia terris.<br />

Abstineas aui<strong>da</strong>s, Mors, modo, nigra, manus;<br />

abstineas, Mors atra, precor: Non hic mihi mater<br />

quae legat in maestros ossa perusta sinus,<br />

non soror, Assyrios cineri quae de<strong>da</strong>t odores<br />

et fleat effusis ante sepulcra comis.<br />

Delia non usquam, quae, me cum mitteret urbe,<br />

dicitur ante omnes consuluisse deos;<br />

(v. 1-10)<br />

(“Ireis sem mim, ó Messala, pelas águas egéias”)<br />

ah, oxalá tu e teu séquito vos lembreis de mim!<br />

Retém-me doente a Feácia de terras desconheci<strong>da</strong>s.<br />

Apenas afastes, ó negra Morte, tuas cobiçosas mãos;<br />

Afaste-as, sombria Morte, eu suplico: não está aqui minha mãe<br />

para recolher nas tristes pregas <strong>da</strong> toga meus ossos incinerados,<br />

nem minha irmã, para ofertar perfumes às cinzas<br />

e chorar diante do túmulo com seus cabelos soltos,<br />

em parte alguma está Délia, que, quando me deixou partir<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, conta-se, consultou antes os deuses todos;”)<br />

A domina quer ter certeza <strong>da</strong> não per<strong>da</strong> do seu apaixonado que se encontra in uinculis.<br />

A consulta às sacras sortes (tabuinhas com respostas generaliza<strong>da</strong>s e aleatórias para atender a<br />

perguntas formula<strong>da</strong>s) aparecem também menciona<strong>da</strong>s em Propércio, pois Cíntia, como<br />

Délia, usará desta prática: II.32, 3: Nam quid petis Praenesti dubias o Cynthia, sortis ,...?<br />

(“Por que procuras, ó Cíntia, as incertas sortes de Preneste?”).<br />

O medo <strong>da</strong> parti<strong>da</strong> é narrado pelo poeta através <strong>da</strong> busca de bons presságios, leitura de<br />

vôo <strong>da</strong>s aves, e outras superstições.<br />

Doente, ele compreende que não deveria ter empreendido uma viagem contra a<br />

vontade de Amor. A referência à mãe, à irmã e à Délia (v. 5-10) é uma <strong>da</strong>s poucas indicações<br />

<strong>da</strong> família do poeta. Ovídio (Am. III.9, 51 e segs.) ao escrever sobre os funerais de Tibulo,<br />

retoma estes versos.TPF<br />

3<br />

FPT Todo<br />

esse início <strong>da</strong> elegia objetiva mostrar o poder do deus Amor, que<br />

fornecera omina dira v.17 (“auspícios funestos”) ao poeta; como mensagens de sua proibição<br />

(prohibente deo, v. 22) à sua saí<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de (emittere urbe, v. 9), também mal aceita por<br />

Délia.<br />

A devoção de Délia a Ísis é a temática básica do segundo movimento <strong>da</strong> elegia (v.23-<br />

24). Ironicamente, o poeta questiona o poder <strong>da</strong> deusa Ísis, venera<strong>da</strong> por Délia. Ele mesmo<br />

preferirá cultuar os Penates de seus pais e o antigo deus Lar. É inegável a influência egípcia<br />

em Tibulo. Nesta elegia vemos Délia como devota <strong>da</strong> deusa Ísis. O nome Délia tem como<br />

uma <strong>da</strong>s explicações etimológicas para sua significação: “a que provém <strong>da</strong> ilha de Delos”. Ísis<br />

era venera<strong>da</strong> nessa ilha e seu filho Horus era identificado com Apolo. Há portanto uma certa<br />

coerência neste retrato tibuliano de Délia a venerar Ísis. O culto de Ísis em Roma <strong>da</strong>ta do<br />

início do séc. I a.C. Devido á sua proibição pelo Senado, são as mulheres suas maiores<br />

3<br />

TP PT TCf. a tradução de Antonio Feliciano de Castilho (Edições Cultura, S.P., 1945, p.399), a propósito desta alusão:<br />

“Aqui, ao menos tiveste/Mãe que teus olhos gelados/Cerrasse quando morreste./ E dos maternos cui<strong>da</strong>dos/Os<br />

últimos dons houviste/Tua irmã, piedosa e terna/Parte igual na dor tomou;/E sobre a pira fraterna/Onde as<br />

tranças arrancou/Te deu despedi<strong>da</strong> eterna”.T<br />

228


4<br />

adeptas, sobretudo a <strong>da</strong>s classes subalternas.TPF FPT Assim, provavelmente Délia era uma mulher de<br />

secun<strong>da</strong> classis, uma liberta. O poeta nos mostra Délia participando <strong>da</strong>s cerimônias à deusa,<br />

sublinhando sua atuação nos ritos de purificação: Délia carrega os sistros na mão, agitandoos;<br />

guar<strong>da</strong> a pureza tanto na limpeza do corpo, quanto na abstinência sexual; faz suas preces<br />

vesti<strong>da</strong> de linho, e louva a deusa duas vezes por dia, trazendo os cabelos soltos.<br />

Como assinala Catherine Salles (1982:257-58) o culto a Ísis é o favorito <strong>da</strong>s<br />

prostitutas:<br />

As cercanias do templo de Ísis atraem também os que buscam as<br />

moças bonitas, pois eles sabem que elas marcam encontros no santuário<br />

situado perto do Campo de Marte. A divin<strong>da</strong>de egípcia, com efeito, desde o<br />

fim <strong>da</strong> República, substituiu a Vênus Ericina na devoção <strong>da</strong>s cortesãs.<br />

Deusa sofredora e piedosa, ela é objeto de um culto intenso; e,<br />

paradoxalmente, a exigência <strong>da</strong> pureza, as penitências impostas aos<br />

devotos, os períodos de casti<strong>da</strong>de obrigatória, fazem dela a religião favorita<br />

<strong>da</strong>s prostitutas. E essas mulheres, cuja vi<strong>da</strong> não é senão uma sórdi<strong>da</strong><br />

baixeza, encontram conforto na promessa de felici<strong>da</strong>de no além, conti<strong>da</strong> na<br />

religião isíaca. As más línguas de Roma batizaram Ísis de alcoviteira.<br />

A afirmativa do texto: “Mas a mim me seja possível cultuar os Penates de meus<br />

pais/Oferecer ao antigo Lar seus incensos de todo o mês” (v. 33, 34), abre espaço para a<br />

contraposição do culto do romano tradicionalista em relação ao culto de deuses estrangeiros,<br />

cujos adeptos pertenciam, em regra geral, às classes sociais inferioriza<strong>da</strong>s como os escravos e<br />

libertos. Assim o poeta cultuará os Penates de seus pais e o deus Lar. O culto dos Lares<br />

familiares pelo poeta é atestado em outros passos (I.1, 20; 10, 15-25; II.1, 60; 4, 54), com<br />

ofertas de coroas (I.10,22), flores (II.1, 59-60), e mel (I.10, 24).<br />

5<br />

O terceiro movimento (v. 35-48) descreve a I<strong>da</strong>de de OuroTPF FPT: como os homens viviam<br />

bem no reino de Saturno, isto é, na I<strong>da</strong>de de Ouro,emque o solo era fértil, e não havia<br />

castigos, nem medos, nem exércitos, nem ódios, nem guerras.<br />

Os romanos identificaram Saturno com Cronos, Deus <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de de OuroTPF<br />

6<br />

FPT, de<br />

acordo<br />

com a classificação hesiódica <strong>da</strong>s cinco i<strong>da</strong>des: I<strong>da</strong>de de Ouro (felici<strong>da</strong>de com dike “justiça”,<br />

v. 109-126), I<strong>da</strong>de de Prata (menos felici<strong>da</strong>de com hybris “desmedi<strong>da</strong>”, v.127-142), I<strong>da</strong>de de<br />

Bronze (maiores desgraças com maior hybris “desmedi<strong>da</strong>” , v.143-155), I<strong>da</strong>de dos Heróis<br />

(mais felici<strong>da</strong>de com mais dike “justiça”), I<strong>da</strong>de de Ferro (males e bens com injustiça;<br />

possibili<strong>da</strong>de de justiça; tendência ao reino total <strong>da</strong> hybris “desmedi<strong>da</strong>”, v.174-201).<br />

Segundo Hesíodo, os Imortais criaram uma doura<strong>da</strong> estirpe de homens mortais,<br />

quando Cronos reinava. Esses homens viviam como deuses, livres de preocupações, sem<br />

fadiga nem misérias. Não havia velhice e morriam estes homens como se tivessem<br />

adormecidos num sono profundo. A terra nesta I<strong>da</strong>de era sempre fértil e produzia<br />

espontaneamente formosos e abun<strong>da</strong>ntes frutos. Ricos de rebanhos, os homens desta I<strong>da</strong>de<br />

honravam os deuses do Olimpo.<br />

4<br />

TP PT TP<br />

TP PT O<br />

PTCf. Hor. Serm. I.2, 47: Tutior at quanto merx est in classe secun<strong>da</strong> ,libertinarum dico.<br />

5<br />

motivo é comum nos poetas <strong>da</strong> época de Augusto. Cf Virg., Buc. IV, 32 e segs; Georg I. 130 e segs; Hor.,<br />

Ep.16, 59 e segs; Carm. I.3, 21 e segs; Ovídio Am.III.8, 43-89; Met.I.94 e segs.<br />

6<br />

TP PT A primitiva relação Cronos-Saturno com a I<strong>da</strong>de de Ouro persistirá por muito tempo, na literatura, com<br />

designações tais como: η κρóνον βασιλει (Platão, Polit. 276 A), o exemplo citado (Saturno rege) por Tibulo e<br />

Saturnia regna (Virg. En., 4,6).<br />

229


Tibulo reduz as i<strong>da</strong>des hesiódicas a duas: a de Ouro (v. 38-45), em que reina Saturno<br />

(Saturno rege), e as demais, em que reina Júpiter (sub domino Ioue). O mito <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de de Ouro<br />

também é encontrado em Tibulo (I. 10, 7-10; II.1, 37-66). A presença de Saturno na poesia<br />

tibuliana está sempre vincula<strong>da</strong> à uma “reali<strong>da</strong>de” mítica do campo, plena de paz e<br />

prosperi<strong>da</strong>de. Esta força que alimenta o solo e os seres vivos simboliza<strong>da</strong> por Saturno, é<br />

também explica<strong>da</strong> pela ligação Gaia-Cronos, ou seja Terra Mãe-Saturno.<br />

Antes, num tempo primordial houve a I<strong>da</strong>de de Ouro, que o poeta caracteriza por<br />

“bene uiuebant”, sublinhando seu ódio pelas armas a partir de quem as fabrica, o faber (v. 47-<br />

48). Como afirma o poeta: Como se vivia bem no reinado de Saturno pois a terra não tinha<br />

ain<strong>da</strong> estra<strong>da</strong>s, os barcos ain<strong>da</strong> não tinham singrado os mares, o navegador ain<strong>da</strong> não<br />

procurava riquezas e as casas não tinham portas; não havia exércitos, nem ódios, nem guerras,<br />

nem armas.<br />

A lembrança <strong>da</strong> guerra faz o poeta voltar-se para a dura reali<strong>da</strong>de do presente: está em<br />

perigo de vi<strong>da</strong>. A conexão guerra-reali<strong>da</strong>de, marca<strong>da</strong> pela introdução do advérbio nunc, gera<br />

um novo movimento no texto poético, um novo tempo, uma nova I<strong>da</strong>de, onde o poeta<br />

descreve a i<strong>da</strong>de de Júpiter feita de “carnificina e chagas sempre”, o agora do poeta, que só<br />

tem dois pedidos a fazer: que sendo possível seja ele poupado, ou se os Fados determinarem,<br />

que uma lápide lhe seja ergui<strong>da</strong> com o seguinte epitáfio:<br />

HIC IACET IMMITI CONSUMPTVS MORTE TIBVLLVS,<br />

MESSALAM TERRA DVM SEQVITVRQVE MARI.<br />

(“AQUI JAZ TIBULO, CONSUMIDO POR MORTE CRUEL ENQUANTO SEGUIA MESSALA<br />

POR TERRA E POR MAR.”) (v.55-56).<br />

O epitáfio é um dos τóποι mais característicos <strong>da</strong> elegia (Prop. II.13, 35-36, II.7, 85;<br />

Ovid. Trist. 3, 3, 73; Am. 2, 6, 61). Resta a resignação para o enfermo de que ao morrer,<br />

7<br />

Vênus o conduzirá aos Campos ElíseosTPF FPT, − o paraíso idealizado, já que ele “foi sempre dócil<br />

para o terno amor”. A descrição dos Campos Elíseos e do Tártaro ocupa o quinto movimento<br />

(v. 59-82). Os pii uates na concepção tibuliana encontram-se nos Campos Elíseos. Tal motivo<br />

reaparecerá em Virgílio (En., v. 662). Em segui<strong>da</strong>, como contraposição, vem descrito o<br />

Tártaro, com as terríveis figuras <strong>da</strong> fúria Tisífone e de Cérbero, onde os já consagrados<br />

criminosos míticos reaparecem:<br />

7<br />

TP PT Cf.<br />

Illic Iunonem temptare Ixionis ausi<br />

uersantur celeri noxia membra rota;<br />

porrectusque nouem Títyos per iugera terrae<br />

adsiduas atro uiscere pascit aues;<br />

Tantalus est illic, et circum stagna: sed acrem<br />

iam poturi deserit un<strong>da</strong> sitim;<br />

et Danai proles, Veneris quod numina Iaesit,<br />

in caua Lethaeas dolia portat aquas.<br />

(v. 73-80)<br />

(“Ali o corpo ímpio de Íxion, que ousou tocar em Juno,<br />

gira sobre uma rápi<strong>da</strong> ro<strong>da</strong>;<br />

e estendido sobre nove jeiras de Terra, Tício<br />

alimenta, com suas negras estranhas, aves sempre presentes;<br />

Tântalo está ali, e à sua volta um lago: porém, assim<br />

que está para beber, a água foge de sua sede ardente;<br />

e as filhas de Dânao, porque lesaram a divin<strong>da</strong>de de Vênus,<br />

levam as águas do Leto para os tonéis sem fundo.”)<br />

a descrição do ,Ηλúσιον πéδιον em Homero, Odisséia, IV, 563<br />

230


Tibulo não segue, aqui, exatamente o modelo homérico onde as figuras míticas que habitam o<br />

Tártaro são: Orion, Tício, Tântalo, Sísifo e Héracles. Enquanto os amantes devem ocupar os Campos<br />

Elísios, os que não amaram e se dedicam às campanhas militares ou a outros assuntos deverão ter<br />

como moradia post-mortem, o Tártaro (v. 67-82).<br />

Finalmente estamos diante do sexto movimento (v. 83-94): o poeta imagina o seu retomo e o<br />

encontro com sua Délia idealiza<strong>da</strong>, casta e com uma guardiã ao lado.TPF<br />

8<br />

FPT É<br />

com a imagem de Délia com<br />

seus longos cabelos desarranjados e os pés descalços a correr para o amado, que o poeta<br />

encerra esta elegia. Aliás os v. 83-92, que tratam <strong>da</strong> descrição de Délia, oferecem um exemplo<br />

do que chamaremos de gênero retrato, motivo favorito <strong>da</strong> literatura clássica, presente também<br />

em Propércio como em I.3, 41.<br />

A propósito do retrato idealizado de Délia nesta elegia, o estudo de Pierre Grimal<br />

(1960:273-301) sob o título de Tibulle et Hésiode, permite sua melhor compreensão. Segundo<br />

Grimal (p.285-86), é possível questionar Tibulo a partir <strong>da</strong> sua consciente procura na<br />

conciliação de duas exigências que estão nele mesmo: a moral hesiódica e a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

mulher ama<strong>da</strong>. E, embora este poeta tivesse sofrido grande influência hesiódica, conhecedor,<br />

portanto de suas idéias sobre o perigo <strong>da</strong>s mulheres (Trab., 373-74), idealizou uma Délia<br />

como anti-meretrix, guardiã de um lar, que tem como cenário o campo. Assim, a musa<br />

tibuliana nasce do desejo <strong>da</strong> conciliação do inconciliável: o hesiódico e o amoroso.<br />

Como vimos na elaboração <strong>da</strong> elegia I.3, Tibulo usa de temas bem conhecidos dos<br />

poetas augustanos como o propemptikon, o poder do deus Amor, a devoção a Ísis, o culto aos<br />

Lares familiares, o epitáfio e a idealização amorosa. Mas,nessa composição em mosaico, o<br />

tema do mito hesiódico <strong>da</strong>s cinco raças e a concepção homérica do Tártaro sublinham uma<br />

retoma<strong>da</strong> dos mesmos por Tibulo de forma nova e original.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

FEDELI, Paolo. Sesto Propercio, Il primo libro delle elegie. Firenze, Leo S. Olschki editore, 1980.<br />

GRIMAL, Pierre. Tibulo et Hésiode. Entretients sur l'antiquité classique. Genève VII; 283 segs.,<br />

1960.<br />

HOMERO. Odisséia. Trad. de Jaime Bruna, SP, Cultrix, s/d.<br />

HOMERO. Odisséia. Trad. de Victor Bérard. Paris, Les Bellés Lettres 1955<br />

HORACE, Oeuvres. Intr. e notas de Plessis e Lejay, Paris. Hachette, s/d.<br />

MAZON, Paul. Théogonie. Les Travaux et les jours. Le Bouclier. Paris, Les Belles Lettres, 1972.<br />

PONCHONT, Max. Tibule et les auteurs du Corpus Tibullianum. Paris, Les Belles Lettres, 1989.<br />

PROPERZIO, Elegie. Trad. de Luca Canali. Milão, Rizoli, 1987.<br />

SALLES, Catherine. Nos Submundos <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong>de. Trad. de Carlos Nelson Coutinho, São Paulo,<br />

Brasiliense, 1982.<br />

VIRGILE. Éneide. Trad. de André Belessort. Paris. Belles Lettres, 1956.<br />

8<br />

TP PT Embora possa ser uma lena, provavelmente esta velha é a mãe de Délia, Essa é a opinião de muitos críticos<br />

que se valem <strong>da</strong> comparação com a elegia I.6, 59-60. Outros estudiosos porém afirmam que ela não é<br />

necessariamente, a mãe de Délia, menciona<strong>da</strong> na I.6, 57, mas a lena <strong>da</strong> I.5, 48.<br />

231


CADERNO DE RESUMOS<br />

A arte como instrumento moralizante <strong>da</strong> Hélade<br />

Adriana Clementino de Medeiros (Profª - UCAM)<br />

O processo de construção est<strong>ética</strong> <strong>da</strong>s esculturas gregas, principalmente as do período<br />

helenístico, eterniza um ideal que prima pela moral e que consagra o prazer do físico. Nesta<br />

comunicação, portanto, demonstraremos, através de imagens, como a evolução est<strong>ética</strong> <strong>da</strong><br />

arte, como instrumento didático, corrobora o ideal helênico <strong>da</strong> polis perfeita.<br />

Corpo e sexuali<strong>da</strong>de no sympósion e no kômos<br />

Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (Prof.Dr. – UFF/CEIA)<br />

Neste trabalho analisaremos as imagens, tanto na cerâmica coríntia quanto na ática, de<br />

banquete e de kômos. Explicitaremos os signos representados pelos pintores que nos aju<strong>da</strong>m<br />

a identificar a transformação do corpo em corpo grotesco. A festa é um fenômeno<br />

interessante para o pesquisador investigar o contato dialógico, ou seja, a troca, o embate<br />

entre o Eu e o Outro. No momento festivo as noções de higiene e de exposição do corpo<br />

podem ser temporariamente subverti<strong>da</strong>s.<br />

A areté do herói Odisseu<br />

Alexandre Rosa dos Santos (Prof. Mestrando – UFRJ)<br />

A excelência dos heróis gregos nos Poemas Homéricos manifesta-se quase invariavelmente<br />

no campo de batalha, nas lutas memoráveis. Entretanto, percebe-se na figura de Odisseu que<br />

alia<strong>da</strong> à força <strong>da</strong> ação estava a capaci<strong>da</strong>de de pensar e articular-se por meio de palavras. O<br />

objetivo desse trabalho é analisar alguns aspectos <strong>da</strong> areté de Odisseu, para delinear o perfil<br />

desse herói.<br />

Ressonâncias do trágico na elocução de Enéias<br />

Alice <strong>da</strong> Silva Cunha (Profª Drª - UFRJ)<br />

O herói troiano chega a Cartago, depois de empreender uma longa e atribula<strong>da</strong> viagem, face<br />

aos perigos por ele enfrentados no mar, vítima do ódio <strong>da</strong> cruel Juno. No segundo canto <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong>, atesta-se o relato de Enéias acerca <strong>da</strong> guerra de Tróia, atendendo ao pedido <strong>da</strong> rainha<br />

Dido. Centrar-se-á este trabalho na fala de Enéias, procurando-se ressaltar aspectos trágicos<br />

que emanam de sua linguagem po<strong>ética</strong>.<br />

232


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

A sátira como educação em Roma<br />

Amós Coêlho <strong>da</strong> Silva (Prof. Dr - UERJ)<br />

Poetas que se destacaram pela sátira. Ecos satíricos em outros discursos poéticos. Juvenal,<br />

que não soube mentir, ocupou o seu tempo tentando a educar os romanos: Quid Romae<br />

faciam? Mentiri néscio. Que fazer em Roma? Não sei mentir.(I, 3, 41). A emergência urbana tornou<br />

o povo romano civilizado, mas insensato em suas preces suplicantes de desejos aos deuses:<br />

Juvenal, Sátiras, X.<br />

A elegia: um mosaico de epigramas<br />

Ana Lúcia Silveira Cerqueira (Profª Drª - UFF)<br />

A incorporação do epigrama grego à elegia como recurso de expressão po<strong>ética</strong> é uma <strong>da</strong>s<br />

características <strong>da</strong> poesia latina. Neste trabalho, destacaremos que a influência dos epigramas<br />

amorosos e/ou eróticos foram retomados pelos elegíacos latinos, sem muitas modificações,<br />

o mesmo não aconteceu com os epigramas de tema funerário.<br />

As elegias ovidianas e sua recusa ao moralismo e à tradição romanos<br />

Ana Thereza Basilio Vieira (Profª Drª- UFRJ)<br />

Públio Ovídio Nasão foi um brilhante e talentoso poeta lírico <strong>da</strong> época de Augusto, refinado<br />

e por vezes irônico, elegante e irreverente. Foi na grande ci<strong>da</strong>de que sucederam os grandes<br />

banquetes, as longas esperas pela ama<strong>da</strong>, as trocas de bilhetes e de olhares e enumerou os<br />

diferentes tipos de belezas femininas. Mostraremos, neste trabalho, alguns aspectos <strong>da</strong> poesia<br />

ovidiana, declara<strong>da</strong>mente contrária aos cânones <strong>da</strong> tradição moralista<br />

Sátiras de Horácio: riso , denúncia, moral<br />

Arlete José Mota (Profª Drª - UFRJ)<br />

As sátiras de Horácio , e, em especial, as de número I, 5, I,7, I,8 e I,9, chama<strong>da</strong>s “sátiras<br />

narrativas”, exemplificam o talento do poeta ao inserir elementos denunciadores de um ideal<br />

político e caracterizadores de um modo especial de compreender a filosofia em textos<br />

marcados pela utilização de mecanismos do riso. Questionam-se os aspectos moralizantes<br />

dos poemas, mas inegavelmente é percebido um olhar - pelo menos divertido- em direção<br />

aos vícios e vicissitudes de seus contemporâneos. Partindo destas reflexões, o presente<br />

trabalho objetiva selecionar dos textos citados elementos relacionados ao riso enquanto<br />

mecanismo de denúncia social e abor<strong>da</strong>gem moralizadora.<br />

A tríade em Mimnermo: amor, juventude e velhice<br />

Bárbara Shênia Cartes Lopes Borges Jorge (Graduando – UFF)<br />

A produção po<strong>ética</strong> de Mimnermo, poeta elegíaco do período arcaico <strong>da</strong> Grécia, sobreviveu<br />

parcialmente e chegou até nós, embora fragmenta<strong>da</strong>, através <strong>da</strong> tradição indireta. Na<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 233


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

presente apresentação, serão analisados literária e estilisticamente os fragmentos de temática<br />

amorosa que centram seu tema na fugaci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> juventude, expressa na antonímia juventude<br />

versus velhice.<br />

O ciclo de Juvêncio<br />

Bruna Prudêncio <strong>da</strong> Silva (Especialização – UFF)<br />

Dentre as poesias eróticas de Catulo, encontram-se também aquelas em que ele se atém em<br />

cantar o corpo de um rapazinho denominado, em alguns poemas, de Juvêncio. Essas poesias<br />

ficaram conheci<strong>da</strong>s como o "Ciclo de Juvêncio" e representam a manifestação homoerótica<br />

do poeta. Neste trabalho apresentaremos um estudo <strong>da</strong>s técnicas utiliza<strong>da</strong>s pelo poeta, bem<br />

como o significado desses poemas no conjunto <strong>da</strong>s poesias eróticas de Catulo.<br />

Aquemênides e Polifemo no contexto literário idealizado por Vergílio na Enei<strong>da</strong><br />

Carlos Eduardo Costa Scherer (Prof. M. – UFRJ)<br />

Pouco antes de chegar a Cartago, os troianos aportam na região habita<strong>da</strong> pelos ciclopes.<br />

Nesse lugar, encontram Aquemênides, que lá ficara abandonado quando <strong>da</strong> fuga apressa<strong>da</strong><br />

de Ulisses e seus companheiros, e Polifemo, o mais temível dos ciclopes, a quem os gregos<br />

haviam cegado. Esta comunicação busca destacar recursos poético-estilísticos empregados<br />

por Vergílio para retratar essas duas personagens, presentes no episódio final do canto III <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong>.<br />

A personagem secundária em Eurípides: um estudo sobre Taltíbio, em As Troianas<br />

Carlos Junior Gontijo Rosa (Profª Drª - UNICAMP)<br />

Este estudo trata <strong>da</strong> personagem euripideana Taltíbio e sua função na tragédia As Troianas.<br />

Começamos abor<strong>da</strong>ndo uma leitura contemporânea <strong>da</strong> tragédia em teatro-<strong>da</strong>nça, na qual<br />

Taltíbio é visto como um personagem dramático. Depois, discutimos os aspectos subjetivos<br />

<strong>da</strong> personagem, contrapondo-a com diversos tipos de personagem. Este estudo caracterizase<br />

como uma tentativa compreender Taltíbio enquanto personagem, signo e<br />

indivíduo.<br />

As representações dos heróis na tragédia Ájax de Sófocles<br />

Carmen Lucia Martins Sabino (Mestran<strong>da</strong> – UFRJ)<br />

Sobre a estrutura <strong>da</strong>s tragédias de Sófocles, Jacqueline de Romilly aponta que esta é<br />

inteiramente construí<strong>da</strong> por contrastes sucessivos e a honra aparece em primeiro lugar entre<br />

as razões de viver, além disso, apresentava, por meio <strong>da</strong> linguagem diretamente acessível <strong>da</strong><br />

emoção, uma reflexão sobre o homem e transmuta a epopéia em algo novo, pois no lugar <strong>da</strong><br />

narrativa, os espetáculos revelavam aos olhos, o que tornava tudo mais real e próximo.<br />

Buscamos nesta comunicação analisar as representações dos heróis Ájax, Agamêmnon e<br />

Odisseu na tragédia Ájax de Sófocles, traçando uma comparação entre os atributos dispostos<br />

pelo poeta aos três heróis, suas aproximações e afastamentos.<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 234


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

A <strong>questão</strong> <strong>da</strong> morte no poema De Rerum Natura<br />

Carolina Barroso do Couto (Graduan<strong>da</strong> – UFF)<br />

O De Rerum Natura é o poema <strong>da</strong> razão, contra o medo. Esta obra permite livrar o homem<br />

dos seus temores e permitir-lhe a ataraxia. O poeta insiste em provar que a morte não é<br />

temível porque ela é material e mortal.<br />

Uma comparação de concepções egípcias e gregas: a <strong>questão</strong> <strong>da</strong> <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong><br />

Ciro Flamarion Cardoso (Prof. Titular - UFF)<br />

A noção de eudemonia costuma com freqüência ser discuti<strong>da</strong> em relação ao mundo grego <strong>da</strong><br />

"pólis" clássica e <strong>da</strong> Época Helenística, raramente no tocante ao Egito faraônico, já que se<br />

supõe ser a <strong>ética</strong> prescritiva de base religiosa existente entre os antigos egípcios coisa muito<br />

diferente <strong>da</strong> <strong>ética</strong> <strong>eudemônica</strong>. Entretanto, mediante um exame cui<strong>da</strong>doso <strong>da</strong>s condições de<br />

emissão dos textos egípcios conhecidos como "ensinamentos" - um gênero atestado com<br />

segurança desde o início do segundo milênio a.C., alguns textos tendo sido atribuídos a<br />

autores ain<strong>da</strong> mais antigos -, bem como de seu conteúdo, verificaremos que uma <strong>ética</strong><br />

<strong>eudemônica</strong> foi a que se expôs nesses escritos, dirigi<strong>da</strong> à elite do Egito faraônico. As<br />

semelhanças e diferenças <strong>da</strong> eudemonia nos casos egícpio e grego serão examina<strong>da</strong>s,<br />

tentando assim estabelecer em que as características básicas de ambas as<br />

socie<strong>da</strong>des se aproximavam ou se afastavam.<br />

Erotismo ou religião? Numismática, iconografia e o Império Romano<br />

Claudio Umpierre Carlan (Prof. Dr. – UNIRIO/CEIA)<br />

O objetivo do mini-curso é estabelecer uma discussão teórica e metodológica de questões<br />

relativas ao estudo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, particularmente sobre o erotismo e a religião no Mundo<br />

Antigo. Como modelo, usaremos um estudo de caso como meio de mostrar as<br />

peculiari<strong>da</strong>des do erotismo e <strong>da</strong> religião no Império Romano do século IV d.C. As<br />

cunhagens monetárias que figuram Santa Helena, mãe do Imperador Constantino, mostram<br />

que o cristianismo em época romana estava bem inserido na religiosi<strong>da</strong>de antiga.<br />

Medéia – uma deusa humaniza<strong>da</strong><br />

Daniele Rodrigues Ramos Kazan (Mestran<strong>da</strong> – UFF)<br />

Nossa proposta é reconstruir o trajeto <strong>da</strong> narrativa de Medéia, desde a socie<strong>da</strong>de matriarcal<br />

que a fun<strong>da</strong>mentou, até chegar aos palcos gregos pela peça de Eurípedes. Buscaremos,<br />

também, entender essa figura singular que é Medéia entre as personagens femininas gregas, já<br />

que ela não pertence a nenhum grupo específico: não está entre as demais humanas, não é<br />

uma simples feiticeira, nem faz parte do seleto grupo <strong>da</strong>s deusas olímpicas.<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 235


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Os phármaka gregos: instrumentos de propagação do prazer<br />

Dulcileide Virginio do nascimento (Profª Drª - UERJ/ FGV)<br />

O período helenístico é marcado pelo sincretismo religioso e pela propagação do que<br />

denominamos magia, enquanto téchne. Encontramos o relato sobre magia amorosa em<br />

muitas obras literárias, como, por exemplo, na poesia de Homero, de Apolônio de Rodes, e<br />

de Teócrito, bem como nos Papiros Mágicos Gregos. Tais relatos, entretanto, não<br />

funcionam como manuais de instrução nos dias atuais, pois necessitam de uma pessoa que<br />

tenha sido inicia<strong>da</strong>. Nesta comunicação, portanto, refletiremos sobre o poder dos phármaka<br />

como ingredientes mágicos para a propagação do prazer e para manutenção do<br />

relacionamento amoroso, e como Platão, representante do ideal moralizante helênico, nas<br />

Leis, analisa tais procedimentos.<br />

O sistema flexional do verbo latino<br />

Edna Ribeiro de Paiva (Profª Drª - UFF)<br />

A constituição mórfica do verbo latino; a oposição de temas a princípio independentes:<br />

Infectum (aspecto imperfectivo), Perfectum (aspecto perfectivo) e Supino (adjetivo verbal,<br />

formador dos tempos do Perfectum na voz passiva e nos verbos depoentes). Formação dos<br />

Modos Indicativo, Subjuntivo e Imperativo dos verbos ditos “regulares” e do verbo sum<br />

(elemento constitutivo <strong>da</strong> voz passiva analítica do Perfectum). Tradução portuguesa de ca<strong>da</strong><br />

Tempo / Modo verbal latino. Exercícios para fixação <strong>da</strong> conjugação latina e tradução de<br />

curtas sentenças utiliza<strong>da</strong>s para exemplificar o emprego <strong>da</strong>s formas verbais estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />

As lamentações de Ariadne nas núpcias de Peleu e Tétis<br />

Edna Ribeiro de Paiva (Profª Drª - UFF)<br />

Catulo celebrizou-se por sua obra lírica, composta geralmente de poemas curtos, sobretudo<br />

por aqueles que pertencem ao “Ciclo de Lésbia”, em que julgamos vislumbrar sua<br />

personali<strong>da</strong>de. Mas os poemas de influência alexandrina, de maior extensão,<br />

contemporâneos dos primeiros, legaram-nos peças como o poema mitológico Núpcias de<br />

Peleu e Tétis. Dentro dele, insere-se o belíssimo episódio de Teseu e Ariadne, que<br />

abor<strong>da</strong>remos aqui.<br />

Labor improbus et orpheus nas Geórgicas de Vergílio<br />

Elaine Cristina Prado dos Santos (Profa. Dra. Universi<strong>da</strong>de Presbiteriana Mackenzie)<br />

O poeta Vergílio (Ia.C.), nas Geórgicas, ao cantar os diversos aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> agrícola,<br />

expressa a vi<strong>da</strong> do campo como labor improbus, (I, 145-146), não por ser uma punição ou<br />

prova dos deuses, mas por ser um estimulante à luta obstina<strong>da</strong> do homem com a terra,<br />

convi<strong>da</strong>ndo-nos a retornar à simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> rural, por meio <strong>da</strong> famosa apóstrofe<br />

dirigi<strong>da</strong> aos agricultores: O fortunatos nimium. O objetivo desta conferência é apresentar a<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 236


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

visão do labor, segundo o poeta latino, nas Geórgicas, bem como o IV canto, marcado pelo<br />

mito de Orfeu e pelo reino <strong>da</strong>s abelhas, que, com suas coletivas virtudes, omnibus una quies<br />

operum, labor omnibus unus (IV, 184), lembram o antigo modo italiano de vi<strong>da</strong> e um mundo<br />

social e político que o poeta levou em consideração.<br />

Desejo e tabu no romance grego Dáfnis e Cloé<br />

Elisa Costa Brandão de Carvalho (Profª Doutoran<strong>da</strong> – UERJ)<br />

O romance grego Dáfnis e Cloé nos transporta para um cenário paradisíaco e erótico, onde a<br />

“natureza”, governa<strong>da</strong> por Eros, exerce o papel de preceptora na educação sexual dos<br />

amantes e protagonistas, Dáfnis e Cloé. Destarte, o presente trabalho pretende analisar como<br />

a educação sexual desses jovens é conduzi<strong>da</strong>, esta segue a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> “natureza” ou, na<br />

ver<strong>da</strong>de, a moral e a opressão de uma cultura patriarcal estão subentendi<strong>da</strong>s.<br />

O modelo <strong>da</strong> dor laocoontiana na Cleópatra de Guido Reni<br />

Evelyne Azevedo ( Professora Mestran<strong>da</strong> – UERJ)<br />

O presente trabalho discutirá a visão <strong>da</strong> morte honrosa associa<strong>da</strong> à figura de Cleópatra no<br />

quadro de Guido Reni de 1630. Na obra o artista confere à rainha egípcia o olhar<br />

laocoontiano destinado aos heróis. No século XVII, Cleópatra foi admira<strong>da</strong> não por sua<br />

beleza e sensuali<strong>da</strong>de, mas por sua entrega ao destino trágico. Discutiremos, portanto, a<br />

importância desta representação a qual estava intimamente relaciona<strong>da</strong> à representação de<br />

Cristo.<br />

Prisciano de Cesaréia e Apolônio Díscolo: mos maiorum e tradição gramatical antiga<br />

Fábio <strong>da</strong> Silva Fortes (Doutorando – UNICAMP)<br />

Que a tradição gramatical latina é em grande parte tributária <strong>da</strong>s especulações filosóficas e<br />

gramaticais dos gregos é consenso entre estudiosos modernos e antigos. Em meu trabalho,<br />

analiso a forma como Prisciano (séc. VI), em sua epístula a Juliano, prefacia a sua longa obra<br />

gramatical, as Institutiones grammaticae, tratando <strong>da</strong> forma como a tradição dos antigos, em<br />

especial de Apolônio Díscolo (séc. II), é retoma<strong>da</strong> e rediscuti<strong>da</strong>.<br />

O palavrão em dicionários Latino-Portugueses escolares<br />

Fábio Frohwein de Salles Moniz (Doutorando – UFRJ)<br />

Quem navega pela Internet em busca de curiosi<strong>da</strong>des do latim acaba descobrindo a página<br />

Verba Cloacae, pequeno glossário de palavras obscenas. Embora os termos figurem em<br />

clássicos, os dicionários escolares não os registram. Porém, há vocábulos alusivos à<br />

sexuali<strong>da</strong>de em dicionários escolares. Esta comunicação objetiva, portanto, refletir sobre a<br />

ausência de determina<strong>da</strong>s palavras obscenas em dicionários latino-portugueses escolares.<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 237


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Corpo e sexuali<strong>da</strong>de no ginásio grego<br />

Fábio de Souza Lessa (Prof. Dr. UFRJ/LHIA)<br />

Nesta comunicação, procuraremos entender o ginásio grego como um espaço praticado, isto<br />

é, construído culturalmente. Neste sentido, mais do que um espaço físico típico <strong>da</strong>s póleis, os<br />

ginásios entre os helenos se constituíram num lócus privilegiado para o exercício <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />

<strong>da</strong> paidéia, <strong>da</strong> convivência coletiva, <strong>da</strong> expressão corporal, <strong>da</strong>s relações de amizade e <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong>de. No ginásio, ensinava-se como usar o corpo de forma que ele pudesse desejar e<br />

ser desejado com honra. O corpo nos ginásios falava sobre a pólis. Quanto a documentação,<br />

articularemos as informações advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> produção literária com aquelas forneci<strong>da</strong>s pela<br />

cultura material do Período Clássico (séculos V e IV a.C.).<br />

Entre desejo e moral... Múltiplas práticas do prazer e suas traduções em versos <strong>da</strong><br />

grécia antiga<br />

Fernan<strong>da</strong> Lemos de Lima (Profª Drª - UERJ/FGV)<br />

Com o auxílio teórico de estudiosos como Foucault, Cohen, Dover Mavropulos, faremos<br />

um pequeno passeio pela poesia, em diversos momentos <strong>da</strong> literatura grega, e procuraremos<br />

perceber como o desejo erótico, o prazer, o amor e as dores que podem os acompanhar são<br />

traduzi<strong>da</strong>s em versos gregos. Estarão presente e nos aju<strong>da</strong>rão na caminha<strong>da</strong> poetas como<br />

Safo, Anacreonte, Calímaco entre outros.<br />

Eufemismos bíblicos relativos ao sexo e à moral<br />

Francisco de Assis Florencio (Prof. Dr. – UERJ)<br />

O nosso trabalho tem por objetivo apresentar um razoável número de eufemismos bíblicos<br />

que comprovam a preocupação dos autores sacros com a explicitação <strong>da</strong>s relações sexuais;<br />

com a exposição <strong>da</strong>s partes puden<strong>da</strong>s do corpo;bem como com atitudes vexatórias. Para<br />

isso, faremos uso <strong>da</strong> Bíblia em quatro versões: latina, grega, hebraica e portuguesa,<br />

com ênfase na Vulgata.<br />

A atuação de Afrodite no paidikòs érōs<br />

Glória Braga Onelley (Profa. Dra – UFF)<br />

Propõe-se o presente trabalho analisar alguns fragmentos consagrados ao paidikòs érōs e<br />

insertos nos Theognidea, buscando mostrar o horizonte de atuação <strong>da</strong> deusa do amor e <strong>da</strong><br />

sedução, Afrodite, em virtude de ser ela a responsável pelo prazer do erastés em sua relação<br />

com o erômenos.<br />

Considerações sobre o vocabulário acerca <strong>da</strong> mão-de-obra na De Re Rustica de<br />

Varrão<br />

José Ernesto Moura Knust (Graduando – UFF)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 238


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

A partir <strong>da</strong> análise do vocabulário utilizado por Marcos Terêncio Varrão para descrever o<br />

trabalho rural em seu tratado sobre as coisas do campo, pretendemos tecer considerações<br />

sobre a importância relativa <strong>da</strong> escravidão e do trabalho nos campos italianos no século I<br />

a.C.<br />

Safo de Lesbos no Teatro Antigo<br />

José Roberto de Paiva Gomes (NEA-UERJ)<br />

Abor<strong>da</strong>remos os paradigmas formulados no teatro greco-romano a cerca <strong>da</strong> figura de Safo<br />

de Lesbos. Procuraremos estabeleceremos sua persona teatral e qual o objetivo do autor<br />

antigo ao formular tais imagens.<br />

O uso de phármaka na Grécia Antiga: o limite moral entre magia e medicina<br />

Josilene Campanati de Oliveira (Graduan<strong>da</strong> – UERJ)<br />

Esta comunicação descreverá a parte inicial de uma pesquisa que busca compreender como,<br />

na Grécia Antiga, a utilização dos phármaka passou do campo puramente mágico e<br />

sobrenatural para o técnico-médico. Para tanto abor<strong>da</strong>remos as práticas mágicas utiliza<strong>da</strong>s<br />

por Medéia, principal representante <strong>da</strong> magia na literatura grega e percorreremos o caminho<br />

<strong>da</strong> magia na Antigui<strong>da</strong>de <strong>Clássica</strong>, a fim de que possamos delinear os conceitos que<br />

rotularam o que era magia, diferenciando-o <strong>da</strong> medicina<br />

Amor e festa no Egito Antigo<br />

Julio Gralha (Prof Doutorando – UERJ/NEA)<br />

As práticas de amor e as manifestações culturais festivas no Egito Antigo podem ser<br />

considera<strong>da</strong>s uma abor<strong>da</strong>gem possível para se compreender, em certa medi<strong>da</strong>, a civilização<br />

Egípcia. Além disso estas mesmas práticas e manifestações estão permea<strong>da</strong>s do caráter<br />

mítico, mágico e religioso. Assim sendo as práticas mágico-religisoas de amor, os festivais ao<br />

longo do ano egípcio, os contos e poemas de amor; e a iconografia <strong>da</strong> época. Serão objetos<br />

de análise neste mini-curso.<br />

Calpurnius Siculus : um novo poeta bucólico<br />

Leonardo Ferreira (Graduando – UFF)<br />

Este trabalho tem como proposta discutir a retoma<strong>da</strong> e as inovações trazi<strong>da</strong>s para a<br />

poesia bucólica por Calpurnius Siculus poeta freqüentador <strong>da</strong> corte de Nero . Ao cenário<br />

pastoril retornam os mesmos pastores vergilianos : Coridão, Melibeu, Mopso e outros, mas a<br />

grande contribuição de Calpurnius foi trazer para a sua poesia a <strong>questão</strong> <strong>da</strong> sedução do<br />

camponês e o prazer que sente na ci<strong>da</strong>de . A análise de algumas passagens <strong>da</strong> Bucolica VII de<br />

Calpurnius Siculus mostra o pastor Coridão tão encantado com os espetáculos do teatro que<br />

esqueceu-se de cultuar seus deuses campestres.<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 239


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Prazer e sexuali<strong>da</strong>de no Papiro Médico de Kahun<br />

Liliane Cristina Coelho (Mestran<strong>da</strong> – UFF)<br />

Com o objetivo de desfrutar <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong>de sem se preocupar com uma possível concepção,<br />

os antigos egípcios criaram diversos métodos que intencionavam evitá-la. Estes<br />

procedimentos são descritos em muitos papiros, que <strong>da</strong>tam dos diferentes períodos <strong>da</strong><br />

história egípcia. Nesta comunicação, abor<strong>da</strong>remos o prazer e a sexuali<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong><br />

análise do mais antigo tratado ginecológico <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, o Papiro Médico de Kahun.<br />

Naturalismo ou covencionalimo - a escolha socrática<br />

Luciano Ferreira de Souza (Mestrando – USP)<br />

A comunicação tem por objetivo discutir as duas teses sobre a origem <strong>da</strong> linguagem<br />

apresenta<strong>da</strong> no Crátilo de Platão e o posicionamento de Sócrates face aos seus<br />

interlocutores. Da<strong>da</strong> a refutação de ambas as teses, caminha-se para a posição ontológica do<br />

final do diálogo, ou seja, a confrontação entre Lngüística e Ontologia.<br />

Um vitupério a cupido: a retórica do romance 11 de Padre Antonio <strong>da</strong> Fonseca (ms.<br />

2998 bguc)<br />

Luís Fernando Campos D'Arcadia (Graduando – UNESP)<br />

O ms. 2998 <strong>da</strong> BGUC, atribuído ao padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca, contém 104 romances. Sem<br />

fugir a seu tempo, os séculos XVII e XVIII, a escrita dos romances é direciona<strong>da</strong> por<br />

princípios de retórica e po<strong>ética</strong>, oriundos <strong>da</strong> antigüi<strong>da</strong>de grega e romana. O romance 11<br />

constitui um vitupério ao deus Cupido; faremos sua análise a partir <strong>da</strong> leituras de preceptistas<br />

antigos, além <strong>da</strong>s obras de teóricos atuais, como João Adolfo Hansen.<br />

O significado <strong>da</strong> pesquisa na área de estudos de língua e literatura latina<br />

Lívia Lindóia Paes Barreto (Profª Drª - UFF)<br />

O presente trabalho é um produto <strong>da</strong>s reflexões que vêm sendo feitas ao longo de um<br />

percurso de mais de vinte e cinco anos de magistério em nível superior ( UFRJ e UFF) ,<br />

especificamente, na área de estudos de Língua e Literatura Latina. Pesquisar nesta área não é<br />

simplesmente voltar os olhos para o passado mas compreender o presente como uma<br />

continuação deste passado. Tomando como foco central e direcionador de pesquisa o texto<br />

latino, enquanto organismo vivo e representativo de uma cultura que é um dos pilares <strong>da</strong><br />

civilização ocidental, apresentamos algumas reflexões sobre o significado e funcionali<strong>da</strong>de<br />

desta pesquisa no contexto clássico e medieval .<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 240


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

A propagan<strong>da</strong> imperial romana à luz <strong>da</strong> iconografia numismática politeísta de<br />

Alexandria no século dos antoninos<br />

Luís Eduardo Lobianco (Prof. Dr. – CEIA/ UFF)<br />

Este trabalho pretende analisar a propagan<strong>da</strong> imperial difundi<strong>da</strong> no Egito Romano, em<br />

diferentes níveis de atuação, a partir <strong>da</strong> análise de corpus iconográfico cunhado em moe<strong>da</strong>s de<br />

Alexandria, ao longo do século II d.C., em especial tendo como objeto de estudo as<br />

seguintes divin<strong>da</strong>des egípcias: Serápis, Nilo, Euthenía e Ísis, esta última em várias<br />

manifestações.<br />

Lascívia e impie<strong>da</strong>de no oikos de Odisseu: a infideli<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s servas e a punição de<br />

Telêmaco (XXII, 465-73)<br />

Marcelo Sussumu Takahashi (Mestrando – USP)<br />

Ausente por 20 anos, Odisseu retorna a seu lar, encontrando, porém, um oikos corrompido,<br />

desestabilizado e quase consumido pelos pretendentes de Penélope e por seus servos infiéis.<br />

Em sua vingança, entretanto, caberá a punição mais infame a esses últimos, especialmente às<br />

mulheres, 12 dentre 50, que, ao se deitarem com os pretendentes, insultam a honra e a casa<br />

do herói, levando Telêmaco a executá-las de maneira fria e cruel.<br />

Copa (A Taberneira), um convite ao prazer<br />

Marco Antonio Abrantes de Barros (Mestrando – UERJ)<br />

Análise estrutural <strong>da</strong> composição pseudovirgiliana Copa (A Taberneira), poesia que exalta os<br />

prazeres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o luxo em contraste com a tradicional visão de frugali<strong>da</strong>de romana.<br />

Elementos orientais presentes no texto demonstram uma influência material vin<strong>da</strong> do<br />

Oriente e <strong>da</strong> Grécia.<br />

A poesia erótica de Catulo<br />

Maria Lúcia Malheiros Cardoso (Mestran<strong>da</strong> – UFRJ)<br />

Na poesia de Catulo,o erotismo serve a muitos propósitos: cantar o objeto de seu amor, se o<br />

poeta se mostra apaixonado, detratá-lo, se suspeita de traição, desfeitear adversários e rivais.<br />

Neste trabalho, pretende-se apresentar as manifestações heterossexuais do erotismo do<br />

poeta, lembrando que não se pode "tomar como biográfico tudo que é narrado, como<br />

pessoal o que é engendrado", como diz Oliva Neto, em O livro de Catulo.<br />

A expressão do amor nas poesias do Ciclo de Lésbia<br />

Maria Nazaré Achão Assunção (Especialização – UFF)<br />

Este trabalho pretende analisar, a partir do texto latino, os poemas de Catulo dedicados à sua<br />

ama<strong>da</strong>, que compõem o "Ciclo de Lésbia", procurando captar to<strong>da</strong> a riqueza po<strong>ética</strong> dessas<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 241


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

composições, que expressam as várias faces do amor,nas quais o poeta latino,<br />

magistralmente, alia técnica à naturali<strong>da</strong>de.<br />

O erotismo e a sexuali<strong>da</strong>de dos egípcios no outro mundo<br />

Moacir Elias Santos (Doutorando – UFF)<br />

Ao imaginarem uma nova existência após a morte os antigos egípcios transferiram todos os<br />

aspectos de sua vi<strong>da</strong> terrena para o além. Assim, referências ao erotismo e a sexuali<strong>da</strong>de<br />

podem ser encontrados, direta ou indiretamente, nos textos de natureza funerária e nas<br />

tumbas tebanas do Reino Novo (c.1550-1070 a.C.). Nesta comunicação mostraremos como<br />

tais fontes aludem aos anseios dos egípcios com relação aos aspectos supracitados.<br />

A religio, a fides e o ius no Amphitruo de Plauto<br />

Nathália Esteves <strong>da</strong> Silva (Profª – UFF)<br />

No Amphitruo de Plauto será estu<strong>da</strong><strong>da</strong> a <strong>questão</strong> do perdão que Anfitrião concede à sua fiel<br />

e leal esposa, Alcmena, mesmo após ela tê-lo traído com Júpiter, que só tinha a intenção de<br />

concretizar seu prazer sexual, fazendo-se passar pelo marido de Alcmena. Para tal pesquisa<br />

serão avaliados três conceitos que servem de base sustentadora dos costumes do homem<br />

romano: a religio, a fides e o ius.<br />

A fonte lucreciana: a teoria atomista de Epicuro<br />

Nilceléia <strong>da</strong> Silva Rosário (Graduan<strong>da</strong>- UFF)<br />

A partir <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> <strong>questão</strong> dos átomos, procuraremos nos deter em Epicuro quanto a<br />

construção <strong>da</strong> natureza para explicar o clinamen no De Rerum Natura.<br />

A concepção do prazer e <strong>da</strong> moral em Satyricon<br />

Nilceléia <strong>da</strong> Silva Rosário (Graduan<strong>da</strong>- UFF)<br />

Satyricon é um romance escrito por Petrônio aproxima<strong>da</strong>mente em torno do ano 65<br />

d.C, durante o Principado de Nero, que relata as aventuras e os infortúnios do narrador<br />

Encólpio, e de seus companheiros Gitão e Ascilto pelo território do sul <strong>da</strong> Itália na busca<br />

incessante do prazer, com total desprendimento moral e do pudor. Para tanto, o objetivo<br />

desse trabalho é analisar a forma em que o narrador apresenta o prazer e a moral na referi<strong>da</strong><br />

obra em relação ao modo de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de romana <strong>da</strong> época.<br />

Os recursos não verbais na cena de reconhecimento de Helena e Menelau na<br />

peça Helena de Eurípides<br />

Pedro <strong>da</strong> Silva Barbosa (Prof. Mestrando – UFRJ)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 242


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Pretende-se neste trabalho analisar os elementos conversacionais presentes no diálogo entre<br />

os personagens Helena e Menelau na cena de reconhecimento <strong>da</strong> peça Helena de Eurípides.<br />

Verificaremos em que medi<strong>da</strong> os recursos não verbais, anunciados na peça, realmente se<br />

realizam e se tornam relevantes para o reconhecimento destes personagens.<br />

Entre a fala e o silêncio: uma leitura dos discursos em Hipólito de Eurípides<br />

Pedro Ivo Zaccur Leal (Mestrando – UFF)<br />

Uma análise dos discursos presentes na tragédia Hipólito de Eurípides e o jogo entre a fala e<br />

o silêncio que permeiam as decisões dos personagens principais e as suas ações. E a oposição<br />

entre o discurso misógino e feminista.<br />

A visão como fonte de prazer em Ceruus ad Fontem: uma análise semiótica e estudo<br />

<strong>da</strong> progressão referencial na fábula de Fedro<br />

Rachel Maria Campos Menezes de Moraes (Graduan<strong>da</strong> – UFF)<br />

O trabalho apresenta a análise semiótica e o estudo <strong>da</strong> progressão referencial <strong>da</strong> fábula<br />

Ceruus ad Fontem, de Fedro. Para a análise semiótica foi utiliza<strong>da</strong> a teoria desenvolvi<strong>da</strong> por<br />

Greimas e para a progressão referencial, aplicou-se o arcabouço teórico <strong>da</strong> lingüística textual,<br />

em particular os conceitos de tópico e de progressão referencial. Assim, tenta-se explicar a<br />

visão como fonte de prazer na fábula, levando-se em conta os pronomes utilizados e as<br />

escolhas lexicais feitas<br />

A religião em Lucrécio<br />

Raphael de Siqueira David (Graduando – UFF)<br />

Os valores do epicurismo lucreciano são simples: primeiro consiste na ausência de<br />

perturbação do corpo e <strong>da</strong> alma (eu<strong>da</strong>imonía) e aprofun<strong>da</strong> a <strong>questão</strong> do não temor aos deuses.<br />

Sexuali<strong>da</strong>de e erotismo entre quatro paredes: análise <strong>da</strong> decoração musiva de um<br />

T<br />

T<br />

T<br />

cubiculum <strong>da</strong> Domus Sollertiana<br />

Regina Maria <strong>da</strong> Cunha Bustamante (Profª Drª - UFRJ/LHIA)<br />

Em El Djem na Tunísia, antiga ci<strong>da</strong>de romana de TThysdrusT, escavações arqueológicas,<br />

realiza<strong>da</strong>s entre 1960 e 1961, desvelaram uma rica residência urbana, que ficou conheci<strong>da</strong><br />

como TDomus Sollertiana Tdevido à inscrição musiva TSOLLERCIANA DOMVS SEMPER<br />

FELIX SVIST. Na ala oeste do seu peristilo, situam-se os quartos de dormir (TcubiculaT), cujos<br />

pavimentos possuem decorações musivas. Neste trabalho, selecionamos um deles, que<br />

apresenta um mosaico, <strong>da</strong>tado de fins do século II e início do III e medindo 4,76m X 3,70m,<br />

contendo um sofisticado arranjo em torno de temas eróticos e sensuais retirados<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 243


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

<strong>da</strong> mitologia clássica. Objetivamos apreender o sentido dos seus signos icônicos e inseri-los<br />

no contexto histórico-cultural que caracterizou a socie<strong>da</strong>de afro-romana no período em<br />

<strong>questão</strong>.<br />

O delinear <strong>da</strong> loucura na tragédia os Persas de Ésquilo<br />

Ricardo de Souza Nogueira (Prof. Doutorando – UFRJ)<br />

Intenta-se, primeiramente, mol<strong>da</strong>r um conceito de loucura a partir de características<br />

inerentes ao discurso trágico de Ésquilo. Esse conceito estabelecido será, depois, empregado<br />

para analisar a construção do elemento loucura na tragédia Os Persas. Será enfoca<strong>da</strong> a ação do<br />

rei Xerxes, personagem que, dominado por uma áte divina, opõe-se a uma moral religiosa<br />

vigente entre os gregos, acumulando os excessos que produzem o louco.<br />

Intervenção: a aventura cômica: entre a moral e o prazer<br />

Silvia Damasceno (Profª Drª - UFF/CEIA)<br />

Até onde pode ir o poeta cômico, no seu afâ de trazer para o palco do teatro um recorte do<br />

real, travestido de fantasia cômica? Como trazer o prazer do riso sem ultrapassar as<br />

fronteiras do moralmente aceitável? Como revestir o triste de ridículo? Assim<br />

sendo, o presente trabalho pretende evidenciar alguns caminhos seguidos pelo poeta cômico<br />

para obter a o riso, dentro de inúmeras contigências inerentes à poiesis cômica.<br />

O deleite musical em Pítica 1<br />

Shirley Fátima Gomes de Almei<strong>da</strong> Peçanha (Profª. Drª. –UFRJ)<br />

Inicia-se a ode pindárica Pítica 1 com uma invocação à lira de ouro, apanágio comum de<br />

Apolo e <strong>da</strong>s Musas. No presente trabalho, pretende-se examinar o poder mágico exercido<br />

pela música e o prazer dela decorrente.<br />

O fogo: a intervenção moralizante do olimpo nos contos de fa<strong>da</strong><br />

Sonia Maria Branco de Freitas Maia (Profª - UCAM)<br />

Prometeu criou o homem e deu a ele o fogo, sinal de sabedoria, de vi<strong>da</strong>, de transformação e<br />

de morte. Concomitantemente, no conto Vasalisa a existência <strong>da</strong> menina está diretamente<br />

liga<strong>da</strong> aos olhos de fogo <strong>da</strong> caveira que pertence à Baba Yaga, senhora do fogo que dá a vi<strong>da</strong><br />

e a destruição. Nesta comunicação verificaremos as ligações míticas e ocultas entre o fogo de<br />

Prometeu e o fogo de Baba Yaga, distinguindo a ação prazerosa do fogo de Prometeu <strong>da</strong><br />

ação moralizante de Baba Yaga.<br />

O prazer: uma <strong>da</strong>s manifestações de eros<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 244


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Tânia Martins Santos (Profª Drª - UFRJ)<br />

Os conceitos de moral e prazer, bastante explorados por poetas e prosadores em momentos<br />

vários <strong>da</strong> produção literária <strong>da</strong> Grécia, inspiram pronunciamentos que trazem à tona<br />

reflexões acerca do homem e dos aspectos morais, sociais e políticos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de grega.<br />

Assim sendo, propõe-se o presente trabalho a tecer algumas considerações sobre tais<br />

concepções, procurando-se ressaltar que o prazer aliado à vi<strong>da</strong> e à juventude constituem um<br />

triângulo equilátero, cuja área reflete o amor, e a ausência de apenas um dos elementos<br />

provoca a desagragação dos restantes.<br />

Moral socrática e prazer nos discursos de Diotima de Mantinéia e Alcibíades, no<br />

Banquete de Platão<br />

Tatiana Maria Gandelman de Freitas (Mestran<strong>da</strong>- UFRJ)<br />

Diotima inicia Sócrates nos caminhos do ver<strong>da</strong>deiro amor. Utilizando-se <strong>da</strong> maiêutica, a<br />

sacerdotisa de Mantinéia propõe ao filósofo uma ascese moral em direção ao amor através<br />

do belo e à sua essência. Como contraponto à fala de Sócrates, Alcibíades é o homem <strong>da</strong><br />

hýbris, preso às sensações do mundo sensível que, mesmo sem negar a força socrática do<br />

logos, coloca-se inteiramente no plano do prazer carnal.<br />

Amor e/ou prazer? Uma análise do canto III <strong>da</strong>s Georgicas de Vergílio<br />

Thaíse Pereira Bastos de Almei<strong>da</strong> Silva (Profª – UFF)<br />

O tema do canto III <strong>da</strong>s Georgicas é a criação de animais próprios do universo campestre.<br />

Poeticamente, eles incorporam características humanas ao se lançarem, segundo Vergílio, “na<br />

ardente loucura do amor” que a todos os seres domina. (v.244) Pretende-se, aqui, analisar<br />

passagens cuja temática é esta entrega ao combate amoroso a fim de discutir a relação<br />

amor/prazer bem como a comparação homem/animal realiza<strong>da</strong>s pelo poeta.<br />

A Bucolica X de Vergílio e a interação homem/natureza/prazer<br />

Thiago <strong>da</strong> Silva Pinheiro (Graduando – UFF)<br />

Tomando como ponto de referência a linha teórica de Pierre Grimal que vê nas Bucolicae de<br />

Vergílio ( poeta latino do século de Augusto – I a.C.) alguns traços <strong>da</strong> poesia dramática, na<br />

medi<strong>da</strong> em que elas apresentam um cenário e a interação de personagens , este trabalho tem<br />

como proposta estu<strong>da</strong>r a interação homem / natureza em busca do prazer , por meio <strong>da</strong><br />

análise semântica de algumas passagens <strong>da</strong> Bucolica X.<br />

Electra, Elektra – a permanência de um mito<br />

Thomaz Pereira de Amorim Neto (UERJ/FAPERJ)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 245


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Nuñez vislumbra e sistematiza importantes narrativas que resgatam o arquétipo literário de<br />

Electra e mostram a sua força como uma mulher que, mesmo injustiça<strong>da</strong>, consegue retornar<br />

ao seu status de princesa. Nas HQ, Frank Miller (déc. de 1970) resgata Electra com o intuito<br />

de demonstrar que, além <strong>da</strong> <strong>questão</strong> do poder real, ela tem como bases modelares a<br />

impetuosi<strong>da</strong>de, o interesse pela justiça e o mistério com relação às suas ações.<br />

O prólogo senequiano e a antecipação <strong>da</strong> catástrofe<br />

Van<strong>da</strong> Santos Falseth (Profª Drª - UFF)<br />

Sêneca, o filósofo, foi a figura mais significativa <strong>da</strong>s letras latinas <strong>da</strong> dinastia claudiana. Em<br />

sua vasta produção literária encontram-se nove tragédias inspira<strong>da</strong>s nos modelos gregos,<br />

sobretudo, em Eurípides. Os longos monólogos presentes nas tragédias, vistos pelos críticos<br />

modernos como impedimento para a representação, revelam, no entanto, a originali<strong>da</strong>de do<br />

autor, como se pode observar no prólogo <strong>da</strong> peça Medéia.<br />

As estratégias de poder de sertório na hispânia citerior: uma reflexão sobre o<br />

imperialismo romano<br />

Vanessa Vieira de Lima (Mestran<strong>da</strong> – UFF)<br />

O último século <strong>da</strong> República é considerado um dos mais importantes e conturbados<br />

momentos <strong>da</strong> História de Roma. Assim, nos voltamos para a déca<strong>da</strong> de 70 a. C, quando na<br />

Hispânia Citerior ocorreu a Revolta de Sertório, a qual se opunha ao governo em vigor na<br />

urbs. Tal evento permite-nos observar certas questões <strong>da</strong> dinâmica imperialista romana, pois<br />

seu líder era um ci<strong>da</strong>dão romano participante <strong>da</strong>s guerras civis, atuando em antiga província<br />

de Roma. Tendo-se em vista a moderna definição de imperialismo como, grosso modo, a<br />

ação de colonizar e controlar outras terras habita<strong>da</strong>s por outros povos, através de diferentes<br />

mecanismos e de idéias que justifiquem este controle, visamos a analisar, por meio <strong>da</strong> leitura<br />

isotópica, as estratégias de poder utiliza<strong>da</strong>s por Sertório, que permitiram a adesão de grande<br />

parte <strong>da</strong> população hispana aos seus ideais e, portanto, a sua revolta.<br />

Ócio e fruição do prazer - a herança antiga e as interdições cristãs<br />

Vânia Leite Fróes (Profª Drª - UFF)<br />

A tradição historiográfica quase sempre opõe à noção clássica antiga de fruição dos<br />

sentidos, uma recusa cristã dos prazeres corporais. Entende-se que é necessário discutir a<br />

natureza desta oposição, qualificando as vertentes <strong>da</strong> herança clássica que inspiraram as<br />

releituras cristãs. Como eixo <strong>da</strong> exposição, a Unoção de ócioU, desde a discussão platônica até<br />

as representações e práticas cristãs do medievo.<br />

A poesia satírica de Catulo<br />

Vera Lúcia Caetano <strong>da</strong> Silva (Graduan<strong>da</strong> – UFF)<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 246


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

Este trabalho tem por objetivo abor<strong>da</strong>r algumas peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> poesia satírica de Catulo,<br />

que destaca fatos e personagens singulares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana <strong>da</strong> Roma republicana, em<br />

situações que denunciam a quebra <strong>da</strong>s normas político-sociais vigentes na época. Diante<br />

disso, desenvolveremos uma análise literária fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> em elementos sintáticosemânticos<br />

do texto, no intuito de melhor eluci<strong>da</strong>r a nossa proposta.<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 247


UFF<br />

XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS<br />

ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS DO XX SEMINÁRIO DE ESTUDOS CLÁSSICOS:<br />

Revista Eletrônica Antigui<strong>da</strong>de <strong>Clássica</strong><br />

www.antigui<strong>da</strong>declassica.com<br />

www.seminarioestudosclassicos.org 248

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!