12.04.2013 Views

O Príncipe, o Conselho de Estado e o Conselheiro na ... - LusoSofia

O Príncipe, o Conselho de Estado e o Conselheiro na ... - LusoSofia

O Príncipe, o Conselho de Estado e o Conselheiro na ... - LusoSofia

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

O PRÍNCIPE,<br />

O CONSELHO DE ESTADO<br />

E O CONSELHEIRO<br />

António Bento<br />

2008<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

FICHA TÉCNICA<br />

TÍtulo: O <strong>Príncipe</strong>, o <strong>Conselho</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> e<br />

o <strong>Conselheiro</strong> <strong>na</strong> Tratadística Política do Barroco.<br />

Autor: António Bento<br />

Colecção: Artigos LUSOSOFIA<br />

Direcção da Colecção: José Rosa & Artur Morão<br />

Design da Capa: António Rodrigues Tomé<br />

Pagi<strong>na</strong>ção: José M. S. Rosa<br />

Universida<strong>de</strong> da Beira Interior<br />

Covilhã, 2008<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

O <strong>Príncipe</strong>, o <strong>Conselho</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> e<br />

o <strong>Conselheiro</strong> <strong>na</strong> Tratadística<br />

Política do Barroco<br />

* * *<br />

Notas sobre o sentido dos termos<br />

“maquiavelismo” e “tacitismo”<br />

António Bento<br />

I<br />

Dentro da teoria geral do <strong>Estado</strong> mo<strong>de</strong>rno, foram sobretudo os<br />

tratadistas políticos da época barroca que mais atenção conce<strong>de</strong>ram<br />

à instituição jurídica do “<strong>Conselho</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>” e à figura mediadora<br />

do “conselheiro”. Com efeito, quer o “<strong>Conselho</strong>” (órgão consultivo<br />

do <strong>Príncipe</strong> que tor<strong>na</strong> operativa a “arte <strong>de</strong> gover<strong>na</strong>r”), quer<br />

o “conselheiro” (homem experiente nos assuntos do <strong>Estado</strong> que,<br />

com a sua previdência, se antecipa aos acontecimentos antes que<br />

estes se apresentem), ocupam um lugar fundamental nos chamados<br />

“espelhos <strong>de</strong> príncipes”, tratados políticos <strong>de</strong>dicados à formação<br />

<strong>de</strong> quem era chamado a gover<strong>na</strong>r, obras que haveriam <strong>de</strong><br />

3<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

4 António Bento<br />

proliferar um pouco por toda a Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época da Contra-<br />

Reforma até ao último quartel do século XVII. A literatura relativa<br />

aos “espelhos <strong>de</strong> príncipes” (specula principum), manuais práticos<br />

<strong>de</strong>sti<strong>na</strong>dos à instrução moral do <strong>Príncipe</strong> com vista ao bem<br />

comum, atingiu especial relevo em Espanha e Portugal, o que em<br />

parte se explica pela oposição ibérica ao mo<strong>de</strong>lo “maquiavélico”<br />

do <strong>Príncipe</strong> e, por outro, como um dos efeitos doutrinários do Concílio<br />

<strong>de</strong> Trento em matéria <strong>de</strong> “razão <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>” (Jerónimo Osório,<br />

bispo <strong>de</strong> Silves, publicou em 1542, <strong>de</strong>z anos após a primeira impressão,<br />

em Roma, <strong>de</strong> O <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong> Maquiavel, os Tratados da<br />

Nobreza Civil e Cristã, primeira tentativa <strong>de</strong> refutação sistemática<br />

dos princípios políticos do “maquiavelismo”).<br />

Prolongando uma tradição da filosofia política medieval, cujo<br />

auge coinci<strong>de</strong> com a publicação da obra Policraticus (1159), <strong>de</strong><br />

João <strong>de</strong> Salisbúria, os “espelhos <strong>de</strong> príncipes” do fi<strong>na</strong>l do Re<strong>na</strong>scimento<br />

e da época da Contra-Reforma (Jerónimo Osório é autor<br />

<strong>de</strong> um tratado intitulado Da Ensi<strong>na</strong>nça e Educação do Rei) estabelecem<br />

os princípios práticos que garantem que o <strong>Príncipe</strong>, ministro<br />

do interesse público (minister publicae utilitas), não use o<br />

seu po<strong>de</strong>r com fins tirânicos. É, pois, da distinção medieval entre<br />

o rei justo e o tirano, a qual culmi<strong>na</strong> <strong>na</strong> doutri<strong>na</strong> medieval do<br />

tiranicídio, que <strong>na</strong>sce quer a instituição mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> do “<strong>Conselho</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Estado</strong>” quer a figura política central que está no seu núcleo: o<br />

“conselheiro”.<br />

Como observa o franciscano Juan <strong>de</strong> Santa María, comissário<br />

da Cúria Roma<strong>na</strong> e capelão <strong>de</strong> Felipe III, o “<strong>Conselho</strong>” é a alma,<br />

a razão ou a inteligência do próprio <strong>Estado</strong>. Com o “<strong>Conselho</strong>”, o<br />

<strong>Príncipe</strong> consegue domi<strong>na</strong>r, não através da sua vonta<strong>de</strong>, mas mediante<br />

a sua razão, o que lhe permite ser aceite pelo povo. Daí<br />

que o <strong>Príncipe</strong> que se aparte das resoluções do “<strong>Conselho</strong>” entre<br />

no domínio imoral e anti-cristão da tirania: “Se o mo<strong>na</strong>rca, seja ele<br />

quem for, se <strong>de</strong>cidisse ape<strong>na</strong>s pela sua cabeça, sem acudir ao seu<br />

<strong>Conselho</strong> ou contra o po<strong>de</strong>r dos seus conselheiros, ainda que acer-<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 5<br />

tasse <strong>na</strong> sua resolução, sairia dos termos da mo<strong>na</strong>rquia para entrar<br />

nos da tirania” 1 .<br />

Mas o que <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista teológico-político tor<strong>na</strong> necessária<br />

a existência do “<strong>Conselho</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>” é, afi<strong>na</strong>l, uma constatação<br />

sobre a <strong>na</strong>tureza do homem tão simples quanto elementar:<br />

todo o homem pru<strong>de</strong>nte, dada a fraqueza do seu entendimento e<br />

a força das suas paixões, tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conselho (o próprio<br />

Pontífice, cujo juízo se presume infalível, não enjeita os conselhos<br />

dos seus car<strong>de</strong>ais). Assim, Pedro <strong>de</strong> Riva<strong>de</strong>neira, membro da Companhia<br />

<strong>de</strong> Jesus e supremo representante do “anti-maquiavelismo”<br />

em Espanha, po<strong>de</strong> afirmar no seu manual <strong>de</strong> cavalheirismo cristão<br />

o seguinte: “A primeira razão pela qual os príncipes <strong>de</strong>vem tomar<br />

conselho é porque estão vestidos com a mesma fraqueza e ignorância<br />

<strong>de</strong> todos os homens. Outra, mais forte, é que ser pessoa pública,<br />

mestre e guia dos <strong>de</strong>mais, os põe <strong>na</strong> obrigação <strong>de</strong> tratar e consultar<br />

os negócios graves que se lhes apresentam com as pessoas <strong>de</strong><br />

ciência e consciência” 2 .<br />

Ao contrário <strong>de</strong> Maquiavel e dos “maquiavélicos”, que exortavam<br />

o <strong>Príncipe</strong> a seguir sempre as suas próprias <strong>de</strong>liberações em<br />

<strong>de</strong>trimento dos pareceres e avisos do “<strong>Conselho</strong>”, os pensadores<br />

espanhóis do barroco procuram estabelecer pontes entre o gover<strong>na</strong>nte<br />

e o povo através dos “conselhos” e dos “conselheiros”. Essa<br />

a razão por que os “conselheiros” exercem as suas funções não a<br />

título pessoal, mas enquanto representantes do interesse público.<br />

Sem pôr em causa a unida<strong>de</strong> do <strong>Estado</strong> e a superior disposição<br />

moral do <strong>Príncipe</strong>, que individualizando o po<strong>de</strong>r, o submete, contudo,<br />

aos critérios da moralida<strong>de</strong> comum (salus rei publicae), a<br />

concepção pastoral do <strong>de</strong>ver político que o “perfeito <strong>Príncipe</strong> cristão”<br />

<strong>de</strong>ve encar<strong>na</strong>r <strong>de</strong> modo algum o isenta <strong>de</strong> ouvir o “<strong>Conselho</strong>”,<br />

que não sendo mais do que uma extensão dos olhos, dos ouvidos,<br />

1 Cf. Tratado <strong>de</strong> república y política cristia<strong>na</strong>, 1615.<br />

2 Cf.Tratado <strong>de</strong> la religión y virtu<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>be tener el <strong>Príncipe</strong> Cristiano,<br />

para gober<strong>na</strong>r y conservar sus estados, contra lo que Nicolás Maquiavelo e sus<br />

secuaces enseñam, 1595.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

6 António Bento<br />

das mãos e dos pés do Rei, é também, e por isso mesmo, todo<br />

o saber, todo o po<strong>de</strong>r e todo o enten<strong>de</strong>r do próprio Rei. É justamente<br />

neste sentido que se pronuncia o humanista espanhol Furió<br />

Ceriol, protegido <strong>de</strong> Carlos V e bibliotecário do seu filho Felipe<br />

II: “Digo que, ainda que o <strong>Conselho</strong> do <strong>Príncipe</strong> realmente não é<br />

senão um, porquanto não tem mais do que uma cabeça, que é o<br />

<strong>Príncipe</strong>, é todavia necessário que seja dividido em muitas partes,<br />

as quais terão para com o <strong>Príncipe</strong> as mesmas responsabilida<strong>de</strong>s<br />

que têm as per<strong>na</strong>s, braços e outros membros, os quais, ainda que<br />

diferentes em lugar, forma e ofício, vemos que não formam mais<br />

do que um homem” 3 .<br />

De acordo com uma metáfora corrente <strong>na</strong> tratadística barroca<br />

contra-reformista, é frequente o recurso, <strong>na</strong>s <strong>de</strong>scrições dos escritores,<br />

ao exemplo dos olhos, dos ouvidos, das mãos, dos pés<br />

do <strong>Príncipe</strong>, para com ele se significar a suprema utilida<strong>de</strong> do labor<br />

dos seus “conselheiros”, apresentados como outras tantas extensões<br />

do corpo e da mente do soberano. Eis como Furió Ceriol<br />

sintetiza a função preventiva e auscultiva do “<strong>Conselho</strong>”: “É o conselho<br />

para com o <strong>Príncipe</strong> como quase todos os seus sentidos, o seu<br />

entendimento, a sua memória, os seus olhos e os seus ouvidos, a<br />

sua voz, os seus pés e as suas mãos; para com o povo é pai, é tutor e<br />

curador; e ambos, digo o <strong>Príncipe</strong> e o seu conselho, são tenentes <strong>de</strong><br />

Deus cá <strong>na</strong> terra. Daqui se segue que o bom conselho dá perfeito<br />

ser e reputação ao seu <strong>Príncipe</strong>, sustenta e engran<strong>de</strong>ce o povo, e os<br />

dois, digo o <strong>Príncipe</strong> e o seu conselho, são bons e leais ministros<br />

<strong>de</strong> Deus” 4 .<br />

Na metaforologia política da Contra-Reforma, o trabalho discreto<br />

e quase invisível do “conselheiro” chamou a si a imagem central<br />

do relógio do po<strong>de</strong>r, dando-se a ver como o ponteiro dos segundos<br />

da própria história. Omnipresente tanto nos tratados políticos<br />

como no teatro e <strong>na</strong> pintura da época, uma tal imagem foi particularmente<br />

cultivada por Diego <strong>de</strong> Saavedra Fajardo, secretário par-<br />

3 Cf. El Concejo e Consejeros <strong>de</strong>l <strong>Príncipe</strong>, 1559.<br />

4 Cf. El Concejo e Consejeros <strong>de</strong>l <strong>Príncipe</strong>, 1559.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 7<br />

ticular do Car<strong>de</strong>al Gaspar Bórgia e embaixador nos <strong>Estado</strong>s Pontifícios<br />

e <strong>na</strong> Alemanha. Os “conselheiros” são, para ele, como “as<br />

rodas e as engre<strong>na</strong>gens inter<strong>na</strong>s <strong>de</strong> um relógio, as quais, com o seu<br />

minucioso labor, dão movimento aos ponteiros, ainda que sejam<br />

estes que marcam as horas e que se <strong>de</strong>ixam ver <strong>de</strong> fora” 5 .<br />

O “conselheiro”, homem <strong>de</strong> parecer pronto e avisado, é, sem<br />

dúvida, uma engre<strong>na</strong>gem <strong>de</strong>cisiva no relógio do po<strong>de</strong>r, embora o<br />

<strong>Príncipe</strong>, que age, <strong>de</strong>va ser o seu ponteiro e o seu peso. Contudo,<br />

não são ape<strong>na</strong>s os actos do <strong>Príncipe</strong>, mas também as manobras do<br />

“conselheiro”, a sua intriga <strong>na</strong> corte, que manejam o ponteiro dos<br />

segundos, impondo o ritmo aos acontecimentos políticos que, com<br />

ele, se domesticam e estabilizam. E esse é, por vezes, o drama:<br />

“Como os <strong>Príncipe</strong>s preferem <strong>de</strong> longe ser escutados a escutar” –<br />

assi<strong>na</strong>la Mazarino – “não é sem razão que façam sentir aos seus<br />

conselheiros que alimentam uma peque<strong>na</strong> suspeita sobre eles 6 .<br />

Também a obra <strong>de</strong> Baltasar Gracián é, a este, título notável<br />

e exemplar. A favor da extrema utilida<strong>de</strong> do “conselheiro” ao<br />

<strong>Príncipe</strong> pru<strong>de</strong>nte, ele argumenta que se a nossa boca está duas<br />

vezes fechada e as nossas duas orelhas duas vezes abertas, isso é<br />

para que possamos ouvir duas vezes mais do que falamos. O perfeito<br />

“conselheiro” <strong>de</strong>verá, pois, assemelhar-se ao mítico Argos,<br />

um prodígio <strong>de</strong> atenção com uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhos repartidos<br />

por todo o corpo: “Prometo-vos que para viver<strong>de</strong>s ten<strong>de</strong>s que vos<br />

armar com olhos da cabeça aos pés: não ape<strong>na</strong>s com orifícios para<br />

os olhos <strong>na</strong> vossa armadura, mas olhos enormes, completamente<br />

<strong>de</strong>spertos. Olhos nos ouvidos para <strong>de</strong>scobrir tanta falsida<strong>de</strong>, tantas<br />

mentiras; olhos <strong>na</strong>s mãos para ver o que os outros dão e, mais<br />

importante, o que tiram; olhos nos braços para medir a vossa capacida<strong>de</strong>;<br />

olhos <strong>na</strong> própria língua para pensar o que se diz; olhos no<br />

peito para ajudar a <strong>de</strong>senvolver a paciência; olhos no coração para<br />

5 Cf. I<strong>de</strong>a <strong>de</strong> un príncipe político-cristiano representada en cien empresas,<br />

1640.<br />

6 Cf. Breviário dos Políticos, 1684.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

8 António Bento<br />

vos proteger contra as primeiras impressões, olhos nos próprios olhos<br />

para ver o modo como eles vêem” 7 .<br />

II<br />

Uma vez a conveniência política dos “<strong>Conselho</strong>s” assente, tratase<br />

agora <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r ao repertório daquelas que <strong>de</strong>vem ser as qualida<strong>de</strong>s<br />

políticas e morais <strong>de</strong> um perfeito bom “conselheiro”. Muitas<br />

são as qualida<strong>de</strong>s que a literatura da época reclama do “conselheiro”.<br />

Armand-Jean du Plessis, car<strong>de</strong>al-duque <strong>de</strong> Richelieu, primeiroministro<br />

do <strong>Conselho</strong> <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> sob o rei<strong>na</strong>do <strong>de</strong> Luís XIII, redulas<br />

a quatro, embora estas, primeiras, se <strong>de</strong>sdobrem em várias outras:<br />

“Resumindo, a <strong>de</strong>dicação, a coragem, a probida<strong>de</strong> e a capacida<strong>de</strong><br />

fazem a perfeição do conselheiro <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>, e o concurso <strong>de</strong><br />

todas estas qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ve encontrar-se <strong>na</strong> sua pessoa” 8 .<br />

Sem preocupação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m ou hierarquia, apresenta-se <strong>de</strong> seguida<br />

uma súmula <strong>de</strong>ssas qualida<strong>de</strong>s.<br />

O “conselheiro” <strong>de</strong>ve ser pessoa com firmeza <strong>de</strong> espírito e soli<strong>de</strong>z<br />

<strong>de</strong> julgamento, pois os assuntos <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> não são consentâneos<br />

com a fraqueza e o temor que resultam <strong>de</strong> uma consciência <strong>de</strong>masiado<br />

escrupulosa. Aqueles que, por excesso <strong>de</strong> escrúpulo, preferem<br />

morrer a faltar à sua consciência, quase nunca são úteis à “arte <strong>de</strong><br />

gover<strong>na</strong>r”, já que, observa Richelieu, “o escrúpulo po<strong>de</strong> produzir<br />

muitas emoções e indulgências prejudiciais ao público” 9 .<br />

Sob esta perspectiva, o “conselheiro” é comparável ao médico<br />

que trabalha mais para prevenir as doenças do que para as curar.<br />

Antecipando os acontecimentos através <strong>de</strong> uma sábia previdência,<br />

o perfeito “conselheiro” sabe dormir sobre os assuntos, sem, contudo,<br />

retardar a sua execução. Assim, ele <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong> se<br />

7 Cf. El Criticón, 1651-1657.<br />

8 Cf. Testamento Político, 1689.<br />

9 Cf. Testamento Político, 1689.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 9<br />

antecipar aos golpes da fortu<strong>na</strong> e <strong>de</strong> reduzir o campo <strong>de</strong> acção do<br />

acaso através do exercício <strong>de</strong> uma virtu<strong>de</strong> politicamente versátil.<br />

Daí que, como observa Furió Ceriol, o “conselheiro <strong>de</strong>va saber o<br />

fim e a matéria, o como e o quando, e até on<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> cada<br />

virtu<strong>de</strong>; daí que, numa palavra, ele <strong>de</strong>va ser prático, isto é, <strong>de</strong>va ser<br />

político” 10 .<br />

Que o conhecimento da vantagem <strong>de</strong> um conselho não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

menos da prática do que da reflexão, já que o discernimento não<br />

é menor nos homens que têm prática do que nos doutos, e que,<br />

por conseguinte, “não se <strong>de</strong>vem estimar menos os conselhos dos<br />

homens experientes do que os das pessoas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> engenho”<br />

(cf. Giovanni Botero, Della Ragion <strong>de</strong> Stato, 1589), é algo que<br />

os tratadistas <strong>de</strong>ssa época tinham por assente. O que isto significa<br />

é que a capacida<strong>de</strong> dos “conselheiros” em momento algum pressupõe<br />

uma presunção <strong>de</strong> saber pedantesco. A verda<strong>de</strong>, é que não<br />

correspon<strong>de</strong>ndo o passado ao presente e sendo a constituição dos<br />

tempos, dos lugares e das pessoas tão variegada, quase “<strong>na</strong>da há<br />

mais perigoso para o <strong>Estado</strong>” – observa Richelieu – “do que aqueles<br />

que querem gover<strong>na</strong>r os reinos pelas máximas que extraem dos<br />

seus livros” (cf. Testamento Político, 1689). Outro tanto opi<strong>na</strong>ra já<br />

Espinosa, para quem “não há ninguém menos idóneo para gover<strong>na</strong>r<br />

um <strong>Estado</strong> do que os teóricos ou filósofos [. . . ]. É inquestionável<br />

que os políticos escreveram sobre as coisas políticas <strong>de</strong> maneira<br />

muito mais feliz do que os filósofos, pois tendo a experiência por<br />

mestra, não ensi<strong>na</strong>ram <strong>na</strong>da que se afastasse da prática” 11 .<br />

Decorre, pois, do que se espera do perfeito bom “conselheiro”<br />

que ele <strong>de</strong>va agir sempre com gran<strong>de</strong> pon<strong>de</strong>ração, mas sobretudo<br />

sempre a tempo e a propósito, já que <strong>de</strong>ve ser sempre ele a agir sobre<br />

as ocasiões e não as ocasiões sobre ele. É também neste sentido<br />

que Maquiavel julga que “é melhor ser impetuoso que cauteloso”.<br />

10 Cf. El Concejo e Consejeros <strong>de</strong>l <strong>Príncipe</strong>, 1559.<br />

11 Cf. Tratado Político, 1677.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

10 António Bento<br />

Porquê? “Porque a fortu<strong>na</strong> é mulher; e é necessário, querendo-a ter<br />

<strong>de</strong>baixo, vergá-la e acometê-la” 12 .<br />

O perfeito bom “conselheiro”, que não po<strong>de</strong> consumir em <strong>de</strong>liberações<br />

o tempo <strong>de</strong> actuar, que <strong>de</strong>ve falar com agu<strong>de</strong>za, que <strong>de</strong>ve<br />

ser pronto no acudir e fácil no enten<strong>de</strong>r, que <strong>de</strong>ve ser claro no ensi<strong>na</strong>r<br />

e contido no humor, esse é o “conselheiro” virtuoso que solicita<br />

a confiança do <strong>Príncipe</strong>. O <strong>Príncipe</strong>, por sua vez, <strong>de</strong>ve ser capaz <strong>de</strong><br />

repudiar as lisonjas, a hipocrisia e a dissimulação que, regra geral,<br />

acompanham a arte <strong>de</strong> aconselhar do “conselheiro”. François <strong>de</strong> La<br />

Rochefoucauld nota com crueza a ambivalência presente no aconselhamento:<br />

“Nada é mais hipócrita do que pedir ou dar conselhos.<br />

Quem pe<strong>de</strong>, parece ter um respeito venerando pelos sentimentos<br />

do amigo a quem os pe<strong>de</strong>, mas, no fundo, quer é fazer aprovar os<br />

sentimentos próprios e, assim, tor<strong>na</strong>r o outro responsável pela sua<br />

conduta. Por outro lado, o que presta os conselhos retribui a confiança<br />

que lhe é dada, com um zelo ar<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>sinteressado, apesar<br />

<strong>de</strong>, quase sempre, querer, através dos conselhos que dá, satisfazer<br />

os seus interesses ou a sua glória” 13 . Daí a extrema vigilância com<br />

que o <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong>ve acolher os pareceres, frequentemente envene<strong>na</strong>dos,<br />

dos seus “conselheiros”. Como a este propósito observa o<br />

conceptista Baltasar Gracián: “A serpente conhece uma forma <strong>de</strong><br />

fugir ao encantador: mantém uma orelha colada ao chão e tapa a<br />

outra com a cauda” 14 .<br />

Mas o <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong>ve também ser capaz <strong>de</strong> incutir no “conselheiro”<br />

a franqueza e a liberalida<strong>de</strong> da palavra, <strong>de</strong> modo a que este<br />

se certifique <strong>de</strong> que lhe po<strong>de</strong> falar sem temor e que, fazendo-o,<br />

não corre perigo. O toledano Eugenio <strong>de</strong> Narbo<strong>na</strong>, que viu a sua<br />

singular obra, feita <strong>de</strong> máximas e aforismos, censurada pela Inquisição,<br />

a isso o exorta: “Os conselhos ditos com liberda<strong>de</strong> ouçaos<br />

o <strong>Príncipe</strong> com boa disposição e creia que mais <strong>de</strong>pressa acabam<br />

12 Cf. O <strong>Príncipe</strong>, 1532.<br />

13 Cf. Máximas e Reflexões Morais, 1665.<br />

14 Cf. El Héroe, 1637.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 11<br />

os reinos às mãos dos lisonjeadores do que às dos inimigos” 15 . Da<br />

probida<strong>de</strong> e da coragem do “conselheiro” <strong>na</strong>sce assim – observa<br />

Richelieu – “uma honesta ousadia <strong>de</strong> dizer aos reis o que lhes é<br />

útil, ainda que nem sempre lhes seja agradável. [. . . ] Digo honesta<br />

ousadia porque se ela não for bem regrada e sempre respeitosa, em<br />

vez <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser posta entre as virtu<strong>de</strong>s do conselheiro <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>,<br />

será um dos seus vícios” 16 .<br />

No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Maquiavel, “não existe outro modo” <strong>de</strong> o <strong>Príncipe</strong><br />

“se guardar das adulações a não ser os homens enten<strong>de</strong>rem que o<br />

não ofen<strong>de</strong>m ao dizer-lhe a verda<strong>de</strong>”. Mas acrescenta também que<br />

“quando qualquer um lhe po<strong>de</strong> dizer a verda<strong>de</strong>, lhe falta a reverência”<br />

(cf. O <strong>Príncipe</strong>, 1532). Tem, pois, razão Richelieu quando<br />

observa que o “conselheiro” <strong>de</strong>ve falar aos reis com palavras <strong>de</strong><br />

seda: “Dizer em voz alta aquilo que se <strong>de</strong>ve dizer ao ouvido é uma<br />

falta que se tor<strong>na</strong> criminosa <strong>na</strong> boca daquele <strong>de</strong> quem ela sai 17 .<br />

III<br />

Apresenta-se, neste ponto, a questão <strong>de</strong> saber se é preferível o<br />

<strong>Príncipe</strong> que age mais pelo seu “<strong>Conselho</strong>” que por si próprio ou o<br />

<strong>Príncipe</strong> que prefere a sua cabeça à dos seus “conselheiros”. Para<br />

autores como Pedro da Riva<strong>de</strong>neira, o “<strong>Conselho</strong>” <strong>de</strong>ve estar incondicio<strong>na</strong>lmente<br />

submetido à autorida<strong>de</strong> real. Por isso, o rei po<strong>de</strong><br />

(e muitas vezes <strong>de</strong>ve) apartar-se das <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ções do “<strong>Conselho</strong>”.<br />

Apesar <strong>de</strong> entre as obrigações cristãs do <strong>Príncipe</strong> figurar a <strong>de</strong> ouvir<br />

o seu “<strong>Conselho</strong>”, não é obrigado a segui-lo. Juridicamente,<br />

está <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza da soberania que o Rei peça ajuda ao “<strong>Conselho</strong>”,<br />

respeite a sua jurisdição, reconheça os seus trâmites, mas conservando<br />

sempre a suprema potesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir: “Não consulta o<br />

15 Cf. Doctri<strong>na</strong> Política y Civil, 1604.<br />

16 Cf. Testamento Político, 1689.<br />

17 Cf. Testamento Político, 1689.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

12 António Bento<br />

<strong>Príncipe</strong> as coisas do seu <strong>Conselho</strong> como quem está obrigado a<br />

segui-las e a fazer o que este diz, nem a sua suprema potesta<strong>de</strong> está<br />

nisso atada” 18 . Esse é também o entendimento <strong>de</strong> Andrés Mendo,<br />

pregador dos reis Filipe IV e Carlos III e calificador do <strong>Conselho</strong><br />

Supremo da Inquisição: “Ouça-os [aos conselheiros] o <strong>Príncipe</strong> e<br />

execute, como acções próprias, as que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> bem pesadas <strong>na</strong><br />

balança da razão lhe pareçam as mais ajustadas” 19 .<br />

Em <strong>na</strong>da se distinguem, neste particular da doutri<strong>na</strong> do aconselhamento<br />

teorizada nos “espelhos <strong>de</strong> <strong>Príncipe</strong>s”, o auto-proclamado<br />

“anti-maquiavelismo” <strong>de</strong> Riva<strong>de</strong>neira e o “maquiavelismo” atribuído<br />

a Maquiavel. Observa o secretário florentino: “Um <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong>ve<br />

aconselhar-se sempre, mas quando ele quer e não quando os outros<br />

querem. Deve, aliás, <strong>de</strong>sencorajar quem quer que seja a aconselhálo<br />

sobre alguma coisa, se ele não lha pergunta” 20 . De acordo<br />

com Maquiavel, o <strong>Príncipe</strong> nunca po<strong>de</strong>rá ser bem aconselhado se<br />

ele próprio não for um homem <strong>de</strong> engenho raro e profundo discernimento:<br />

“Conclui-se por isso que os bons conselhos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

quer que venham, têm <strong>de</strong> <strong>na</strong>scer da prudência do <strong>Príncipe</strong>, e não a<br />

prudência do <strong>Príncipe</strong> dos bons conselhos” 21 .<br />

Uma coisa é certa: o <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong>ve ter por certo que, em situações<br />

<strong>de</strong> excepção, <strong>na</strong>s quais se trata da própria salvação do <strong>Estado</strong>,<br />

nenhuma coisa é pior do que os “conselhos” e as resoluções <strong>de</strong><br />

compromisso. Aí exige-se-lhe “uma virtu<strong>de</strong> macha que por vezes<br />

passa por cima das regras da prudência ordinária” 22 . Incluída,<br />

po<strong>de</strong> acrescentar-se, a prudência que o manda escutar quem ele<br />

permite que o aconselhe.<br />

18 Cf. Tratado <strong>de</strong> la religión y virtu<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>be tener el <strong>Príncipe</strong> Cristiano,<br />

para gober<strong>na</strong>r y conservar sus estados, contra lo que Nicolás Maquiavelo e sus<br />

secuaces enseñam, 1595.<br />

19 Cf. <strong>Príncipe</strong> Perfecto y Ministros Ajustados, Documentos Políticos e<br />

Morales, 1657.<br />

20 Cf. O <strong>Príncipe</strong>, 1532.<br />

21 Cf. O <strong>Príncipe</strong>, 1532<br />

22 Cf. Testamento Político, 1689.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 13<br />

IV<br />

Dir-se-ia que foi necessário esperar por 1559 – ano em que a<br />

Igreja con<strong>de</strong>nou oficialmente O <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong> Maquiavel, incluindoo<br />

no primeiro índice <strong>de</strong> livros proibidos, publicado por Paulo VI –<br />

para que os autores católicos <strong>de</strong> “espelhos <strong>de</strong> <strong>Príncipe</strong>s” da Contra-<br />

Reforma se vissem <strong>na</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ao alegado “maquiavelismo”<br />

<strong>de</strong> Maquiavel contraporem um assim chamado “tacitismo” – um<br />

“maquiavelismo” dito mitigado, temperado, envergonhado (casos<br />

<strong>de</strong> Scipione Ammirato e <strong>de</strong> Trajano Boccalini <strong>na</strong> Itália e <strong>de</strong> Baltasar<br />

Álamos <strong>de</strong> Barrientos e <strong>de</strong> Diego Saavedra Fajardo <strong>na</strong> Espanha).<br />

De referir que os auto-proclamados “tacitistas”, em boa<br />

parte oriundos da Companhia <strong>de</strong> Jesus, não são professores ou<br />

académicos, como seria talvez <strong>de</strong> esperar, mas funcionários políticos<br />

da Igreja consagrados ao mundo: pregadores, conselheiros,<br />

confessores.<br />

Assim, talvez a norma universal do “tacitismo” como <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>dor<br />

comum do “anti-maquiavelismo” daqueles tempos se <strong>de</strong>ixe,<br />

afi<strong>na</strong>l, entrever <strong>na</strong> i<strong>de</strong>ia segundo a qual os preceitos <strong>de</strong> Maquiavel<br />

se aplicam, mas não se <strong>de</strong>claram, ou seja, certas coisas fazem-se,<br />

mas não se dizem – e menos ainda se vertem em letra impressa para<br />

que possam ser divulgados e ensi<strong>na</strong>dos. A verda<strong>de</strong>, como observa<br />

Gabriel Naudé, é que “embora os escritos <strong>de</strong> Maquiavel se encontrem<br />

proibidos, a sua doutri<strong>na</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser praticada por esses<br />

mesmos que a censuram e proíbem” 23 . Dir-se-ia até que quanto<br />

mais indig<strong>na</strong>damente renegam o seu nome tanto mais acolhem os<br />

seus ensi<strong>na</strong>mentos e levam à prática as suas instruções.<br />

A propósito do carácter flutuante e eminentemente estratégico<br />

do termo “maquiavelismo”, recor<strong>de</strong>m-se, aqui, as palavras certeiras<br />

<strong>de</strong> Carl Schmitt em O conceito do político: “Todos os conceitos,<br />

representações e palavras políticas têm um sentido polémico; visam<br />

um antagonismo concreto e estão ligados a uma situação concreta<br />

23 Cf. Considérations politiques sur les coups d’État, 1639.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

14 António Bento<br />

cuja última consequência é um agrupamento amigo-inimigo (que<br />

se manifesta <strong>na</strong> guerra ou <strong>na</strong> revolução) e transformam-se em abstracções<br />

vazias e fantasmagóricas quando esta situação <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

vigorar” 24 .<br />

Ora, uma <strong>de</strong>ssas situações políticas concretas que, segundo Karl<br />

Schmitt, permitem discrimi<strong>na</strong>r o amigo do inimigo, é, sem dúvida,<br />

o ambiente <strong>de</strong> fervorosa e militante religiosida<strong>de</strong> <strong>na</strong>scido das lutas<br />

confessio<strong>na</strong>is <strong>na</strong> Europa, do qual <strong>de</strong>corre a “invenção” da doutri<strong>na</strong><br />

da “razão <strong>de</strong> <strong>Estado</strong>”. Com efeito, <strong>na</strong> atmosfera política da Contra-<br />

Reforma, a uniformida<strong>de</strong> confessio<strong>na</strong>l do <strong>Estado</strong> não exige menos<br />

uma racio<strong>na</strong>lização efectiva do <strong>Estado</strong> e da “arte <strong>de</strong> gover<strong>na</strong>r” do<br />

que uma justificação ético-teológica da acção do <strong>Príncipe</strong>. Para os<br />

“tacitistas”, trata-se sobretudo <strong>de</strong> conciliar os imperativos da “arte<br />

<strong>de</strong> gover<strong>na</strong>r”, com todo o cortejo das técnicas <strong>de</strong> domi<strong>na</strong>ção que<br />

lhe inerem, com uma fundamentação religiosa e uma justificação<br />

ética do exercício cristão do po<strong>de</strong>r.<br />

Daí os equívocos e as armadilhas que se esten<strong>de</strong>m ao entendimento<br />

do historiador das i<strong>de</strong>ias políticas sempre que os adversários<br />

políticos, numa época profundamente marcada pelas guerras <strong>de</strong> religião,<br />

mutuamente se acusam <strong>de</strong> “maquiavelismo”. Como observa<br />

Clau<strong>de</strong> Lefort: “Enquanto em França o maquiavelismo é principalmente<br />

o símbolo <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> intolerância, cujo objectivo é<br />

sujeitar a religião ao serviço do governo, em Espanha ele associase<br />

aos partidários da tolerância, àqueles que são acusados <strong>de</strong> arrui<strong>na</strong>r<br />

a unida<strong>de</strong> religiosa, com o fim único <strong>de</strong> assegurar o po<strong>de</strong>r<br />

do <strong>Estado</strong>. Enquanto aos olhos dos jesuítas o maquiavelismo é o<br />

breviário da Reforma, para os protestantes ele confun<strong>de</strong>-se com o<br />

jesuitismo” 25 .<br />

Na realida<strong>de</strong>, nenhum daqueles autores é, propriamente, “antimaquiavélico”.<br />

Todos são homens políticos que exprimem as exigências<br />

da sua época e os programas dos seus partidos em condições<br />

operativas diferentes daquelas em que Maquiavel foi chamado a<br />

24 Cf. Der Begriff <strong>de</strong>s Politischen, 1932.<br />

25 Cf. Le travail <strong>de</strong> l’œuvre Machiavel, 1972.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Para celebrar a Partilha 15<br />

intervir. Saavedra Fajardo, por exemplo, enten<strong>de</strong> que o <strong>Príncipe</strong><br />

cristão, rejeitando embora o embuste directo, <strong>de</strong>ve po<strong>de</strong>r praticar<br />

licitamente a (pouco cristã) virtu<strong>de</strong> política da dissimulação, sempre<br />

que, para <strong>de</strong>fesa e conservação do seu próprio <strong>Estado</strong>, a singularida<strong>de</strong><br />

da cada situação assim o exija. Para Fajardo, o <strong>Príncipe</strong><br />

<strong>de</strong>ve adaptar a sua prudência a uma realida<strong>de</strong> hostil feita <strong>de</strong> malícia<br />

e <strong>de</strong> mendacida<strong>de</strong>. A este propósito, não se <strong>de</strong>ve aqui esquecer a<br />

máxima <strong>de</strong> <strong>Estado</strong> que Gabriel Naudé imputa ao governo do “mais<br />

sábio e avisado” dos reis franceses, Louis XI: “qui nescit dissimulare<br />

nescit reg<strong>na</strong>re” – uma oportu<strong>na</strong> máxima <strong>de</strong> governo que os<br />

“tacitistas”, num difícil exercício <strong>de</strong> equilíbrio entre as exigências<br />

da ética cristã e os imperativos da conservação do <strong>Estado</strong>, jamais<br />

pu<strong>de</strong>ram enjeitar.<br />

Mas não teria sido o próprio Maquiavel, afi<strong>na</strong>l – <strong>de</strong> acordo com<br />

uma tradição republica<strong>na</strong>, liberal, romântica, e até marxista, <strong>de</strong> interpretação<br />

do seu pensamento – pouco maquiavélico, um daqueles<br />

instrutores <strong>de</strong> <strong>Príncipe</strong>s que “conhecem o jogo” político do <strong>Estado</strong><br />

e que integralmente o ensi<strong>na</strong>m, ao passo que o “maquiavelismo”<br />

vulgar, esse sim, ensi<strong>na</strong> a fazer o contrário? Tal é já a opinião do<br />

pru<strong>de</strong>nte Espinosa, para quem “talvez ele quisesse mostrar quanto<br />

uma multidão livre <strong>de</strong>ve ter medo <strong>de</strong> confiar a sua <strong>de</strong>fesa a um só,<br />

o qual, se não for vaidoso nem julgar que po<strong>de</strong> agradar a todos, tem<br />

<strong>de</strong> temer revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaverse<br />

e a atraiçoar a multidão em vez <strong>de</strong> a gover<strong>na</strong>r” 26 . Em idêntico<br />

sentido se pronunciou o <strong>de</strong>mocrata Rousseau: “Fazendo crer que<br />

dava lições aos reis, dava-as bem gran<strong>de</strong>s aos povos. O <strong>Príncipe</strong><br />

<strong>de</strong> Maquiavel é o livro dos republicanos” 27 . Quanto ao ódio que<br />

os seus contemporâneos <strong>de</strong>stilaram sobre Maquiavel, apresentao<br />

já Boccalini nos seguintes termos: “Os inimigos <strong>de</strong> Maquiavel<br />

consi<strong>de</strong>ram-no homem digno <strong>de</strong> punição porque revelou como os<br />

príncipes gover<strong>na</strong>m e, assim, instruiu o povo; “colocou <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />

cães <strong>na</strong>s ovelhas”, <strong>de</strong>struiu os mitos do po<strong>de</strong>r, o prestígio da autori-<br />

26 Cf. Tratado Político, 1776.<br />

27 Cf. Du Contrat Social, 1782<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />


✐<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

16 António Bento<br />

da<strong>de</strong>, tornou mais difícil gover<strong>na</strong>r, porque os gover<strong>na</strong>dos po<strong>de</strong>m<br />

saber a este respeito tanto quanto os gover<strong>na</strong>ntes” 28 .<br />

Como quer que seja, “maquiavelismos”, haverá com certeza<br />

muitos: fiquemo-nos, no entanto, pelos aparentemente óbvios: o<br />

“maquiavelismo” <strong>de</strong> Maquiavel, o “maquiavelismo” dos “maquiavelistas”<br />

e o “maquiavelismo” dos “anti-maquiavelistas”. Mas se agora<br />

tomarmos por boa a formulação <strong>de</strong> que o “maquiavelismo” dos<br />

“anti-maquiavelistas” é o “maquiavelismo” tanto dos discípulos<br />

como dos inimigos <strong>de</strong> Maquiavel, então talvez nos tenhamos aproximado<br />

da razão <strong>de</strong> ser do “tacitismo”: se os “tacitistas” são “temperadores”<br />

ou “mitigadores” do “maquiavelismo” – e, como tal,<br />

alegadamente “anti-maquiavélicos” – não é porque Maquiavel tenha<br />

errado <strong>na</strong>s suas <strong>de</strong>scrições da “arte <strong>de</strong> gover<strong>na</strong>r”, mas porque tudo<br />

o que Maquiavel escreveu “faz-se, mas não se diz”, ou antes, só<br />

se po<strong>de</strong> fazer precisamente <strong>na</strong> medida em que não se explica nem<br />

se sistematiza <strong>de</strong> maneira crítica isso (o mal) que se faz e o modo<br />

como se o faz.<br />

Numa elucidativa nota a uma passagem do livro III, capítulo<br />

VI, da edição <strong>de</strong> 1782 do Contrato Social, observa Rousseau a<br />

propósito <strong>de</strong> O <strong>Príncipe</strong> <strong>de</strong> Maquiavel: “A corte <strong>de</strong> Roma proibiu<br />

severamente o seu livro, segundo penso; é ela que ele mais claramente<br />

<strong>de</strong>screve” 29 .<br />

28 Cf. Ragguagli <strong>de</strong>l Par<strong>na</strong>so, 1610. . . , apud António Gramsci, “Maquiavel.<br />

Notas sobre o <strong>Estado</strong> e a política”, in Memórias do Cárcere, 1934.<br />

29 Cf. Contrat Social, 1782.<br />

www.lusosofia.net<br />

✐<br />

✐<br />

✐<br />

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!