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Merlim - Museu Maçônico Paranaense

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Depois que Brás ficou pronto, <strong>Merlim</strong> contou-lhe fielmente todas as provas de<br />

amor que Jesus Cristo havia dado a José de Arimatéia. Contou-lhe em seguida a<br />

estória de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e<br />

como Pedro havia partido e como José se desfez do Santo Graal e como morreu.<br />

Explicou como os diabos, diante desses acontecimentos, reuniram-se em conselho,<br />

porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.<br />

Considerando o prejuízo que os profetas lhes haviam causado, decidiram<br />

unanimemente gerar um homem...<br />

1


Robert de Boron<br />

<strong>Merlim</strong><br />

Romance do século XIII<br />

Traduzido do francês antigo,<br />

Com apresentação e glossário, por Heitor Megale<br />

Imago<br />

2


Copyright © Imago Editora, 1993<br />

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.<br />

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.<br />

____________________________________<br />

B741m<br />

93-0850<br />

_____________________________________<br />

Todos os direitos de reprodução, divulgação<br />

E tradução são reservados. Nenhuma parte<br />

Desta obra poderá ser reproduzida por fotocópia,<br />

Microfilme ou outro processo fotomecânico.<br />

IMAGO EDITORA LTDA.<br />

Rua Santos Rodrigues, 201-A – Estácio<br />

CEP 20250-430 – Rio de Janeiro – RJ<br />

Tel: 293-1092<br />

Impresso no Brasil<br />

Printed in Brasil<br />

Boron, Robert de<br />

<strong>Merlim</strong> / Robert de Boron, traduzido do francês antigo,<br />

com apresentação e glossário de Heitor Megale – Rio de<br />

Janeiro: Imago Ed., 1993.<br />

208 p. (Coleção Lazuli)<br />

Tradução da edição de 1980 de Alexandre Micha de:<br />

<strong>Merlim</strong><br />

Apêndice<br />

Bibliografia<br />

ISBN 85-312-0274-4<br />

1. Ficção francesa antiga. I. Megale, Heitor, 1940-<br />

II. Título. III. Série.<br />

CDD – 843<br />

CDU – 840-3<br />

3


Sumário<br />

Apresentação ................................................................................................................... 5<br />

Glossário ....................................................................................................................... 14<br />

<strong>Merlim</strong> ......................................................................................................................... 16<br />

Bibliografia ................................................................................................................. 264<br />

4


Apresentação<br />

Um menino de dezoito meses, ao ver sua mãe lamentar-se dizendo que<br />

em má hora Deus havia permitido o nascimento e a geração do filho em seu corpo,<br />

para sua morte e seu suplício, olha para ela, ri e diz: "Querida mãe, não temas nada,<br />

não morrerás pelo pecado de que nasci."<br />

Na iminência de sua mãe ser levada à fogueira, esse menino enfrenta<br />

irritado o juiz e fala: "Sei quem é meu pai melhor do que vós, o vosso; e vossa mãe<br />

sabe melhor quem vos gerou do que a minha, a mim."<br />

Esse menino é <strong>Merlim</strong>, filho de uma donzela com um incubo. Depois de<br />

desmascarar a mãe do juiz, começa a fazer reverter o quadro de condenação que se<br />

configurava em relação a sua mãe, e explica "mais por amizade do que pelo medo<br />

do poder do juiz", que, de fato, é filho de um demônio que seduziu sua mãe.<br />

Demônios desta espécie que seduzem mulher chamam-se íncubos e vivem no ar. E<br />

Deus permitiu — continua ele explicando a quantos se encontram no tribunal —, que<br />

esse demônio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e acontecidas. Por<br />

isso é que eu sei a vida que a mãe do juiz levou. E Nosso Senhor, para recompensar<br />

a virtude de minha mãe, seu sincero arrependimento, pela penitência que lhe impôs<br />

o ermitão, e pela obediência aos mandamentos da nossa santa Igreja, deu-me a<br />

graça de conhecer, em parte, o futuro.<br />

Ainda menino, dá mais provas de conhecimento do passado, como na<br />

cena em que os emissários do rei o levam à corte. Um dia, passam por uma vila,<br />

onde se enterrava uma criança. Homens e mulheres acompanham o corpo com<br />

grandes manifestações de dor. Ao ver essa dor e os padres e os clérigos que<br />

5


cantavam e levavam o corpo com pressa a enterrar, <strong>Merlim</strong> começa a rir e pára. A<br />

quem lhe pergunta por que ria, responde que era pela maravilha que presenciava:<br />

"...na frente vai o clérigo que canta; pois ele é que deveria lamentar-se no lugar do<br />

homem. O menino que está morto e pelo qual o homem chora é filho do clérigo que<br />

canta." E prova disso depois, o testemunho da mãe da criança.<br />

O riso de <strong>Merlim</strong> percorre a narrativa, prenunciando sempre o controle do<br />

uso da magia da personagem.<br />

<strong>Merlim</strong> controla também a própria narrativa. Confia a Brás a missão de<br />

meter em escrito toda a matéria que lhe passar e profetiza que nunca a estória de<br />

uma vida será ouvida com tanto agrado, como a de Artur e a dos homens de seu<br />

tempo. E quando Brás tiver acabado o livro e contado as vidas deles a todos, seu<br />

mérito será igual ao daqueles que vivem na companhia do santo vaso que se chama<br />

Graal, e seu livro será chamado Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer<br />

em escutá-lo, porque muito pouca coisa dele, de palavras ou ações contadas,<br />

deixará de ter proveito, ou será letra morta.<br />

<strong>Merlim</strong>, essa personagem de uma origem misteriosa principiada num<br />

concílio dos demônios, atua na Inglaterra, num tempo em que o cristianismo apenas<br />

lá chegara e a ilha não havia tido ainda nenhum rei cristão.<br />

As mais antigas informações acerca de <strong>Merlim</strong> nem sempre coincidem.<br />

Os poemas galeses de Mirdim, sem dúvida, forma literária de folclore mais antigo,<br />

apresentam a personagem com traços que caracterizam a figura do mago como um<br />

herói, um chefe guerreiro ou um bardo chamado Mirdim. Tocado pela loucura ao<br />

cabo de uma batalha, refugia-se na floresta de Caledônia, onde passa a viver como<br />

selvagem ocupando-se em profetizar acerca da vida política de seu povo em conflito<br />

6


com povos rivais 1 . Triads, versos da antiga literatura galesa que cantam importantes<br />

assuntos da tradição do povo gales, numa estrutura de grupos de três, traz <strong>Merlim</strong><br />

embarcando numa nave de cristal com seus nove bardos sábios — e nunca mais se<br />

soube dele 2 . Outra lenda de Gales apresenta <strong>Merlim</strong> num palácio de cristal na ilha<br />

de Bardsey, cercado dos treze tesouros da Grã-Bretanha. De acordo com essa<br />

lenda, o mago estaria fadado a permanecer nesse palácio, num sonho encantado,<br />

até o dia em que Artur voltasse da Ilha de Avalon, que é o lugar para onde o rei<br />

havia seguido com Morgana e as fadas, depois da última batalha contra seu filho<br />

incestuoso Morderete 3 . A estória mais repetida nos romances da época, no entanto,<br />

dá outro destino a <strong>Merlim</strong>, sob os encantamentos de Viviane, num palácio<br />

encantado, na floresta de Broceliande 4 .<br />

Não apenas os destinos de <strong>Merlim</strong> são diferentes, como também variadas<br />

são as versões de sua origem. Numa tradição considerada galesa, mas que pode<br />

remontar a uma língua comum anterior à distinção entre o galés, o cornualhês e o<br />

bretão, situa-se a lenda de Myrddin Willt, o <strong>Merlim</strong> Silvestre, o <strong>Merlim</strong> da floresta de<br />

Caledônia. Em Monmouth, encontramos <strong>Merlim</strong> Ambrósio, o mago do rei Aurélio<br />

Ambrósio, que teria vivido cerca de um século adiante daquele. Talvez fosse mais<br />

acertado considerar esses dois um só, tal a variedade de figuras que <strong>Merlim</strong><br />

1 A. O. H. Harman, "The Welsh Myrddin Poems" in Roger Dhernian Loomis (org.), Arthurían Literature<br />

in the Middle Ages. A Collaborative History (Oxford: Clarcnclon Press, 1959), p. 20-30.<br />

2 Rachel Bromwich. Trioedd Ynis Prydein (Cardiff: University of Wales Press, 1961).<br />

3 É o que ocorre em A morte de rei Artur, no Ciclo do Pseudo Map ou Vulgata da matéria da<br />

Bretanha, bem como na Demanda do Santo Graal, na Post-Vulgata. Da primeira destas obras, há<br />

tradução brasileira recente, A Morte do Rei Artur (São Paulo: Martins Fontes, 1992) e da outra, há<br />

edição em português contemporâneo: Demanda do Santo Graal (São Paulo: T. A. Queiroz Editor,<br />

Editor, 1ª reimpr., 1989). Na obra tardia de Malory, The Whole Book of King Arthur and His Noble<br />

Knights of lhe Round Table, titulo alterado pelo editor Ccazton para Le Morte D’Arthur, também está<br />

presente a cena.<br />

4 É o que se pode constatar Agravain, ed. H. Oskar Sommer, The Vulgate Version of the Arthurian<br />

Romances, vol. V: Le Livre de Lancelot del Lac, parte 3; no Galehaut, na mesma edição de Sommer,<br />

vol. III, Le livre de Lancelot del Lac, parte l e vol. IV, parte 2; ainda na mesma edição de Sommer, vol.<br />

VII, Le Livre d'Artus; em La Suite du Merlin, na edição de Gaston Paris: Mertin roman en prose du<br />

XIII. siecle, publiê d'apres lê ms. Huth; e na Vulgate Merlin Continuation, novamente na edição de<br />

Sommer, vol. II: L'Estoire de Merlin.<br />

7


assume, como se verá, por exemplo, ao longo deste livro. O que é comum às lendas<br />

bretãs que estariam entre as fontes deste livro é que <strong>Merlim</strong> é um mago com<br />

poderes sobrenaturais exercendo a função de profeta e protetor dos bretões.<br />

Quando a personagem chega à Historia Regum Britanniae, de Geoffrey of<br />

Monmouth, seus traços, provenientes porventura de variadas fontes, não sofrem<br />

alterações tão relevantes. Nessa obra, em sua primeira aparição, encontramo-lo já<br />

moço, na corte de Vortigerne, sendo agredido por outro jovem que o desafia por<br />

ignorar quem é seu pai 5 .<br />

Geoffrey of Monmouth declara ter traduzido as Profecias de <strong>Merlim</strong> do<br />

original galés para o latim, a pedido de Alexandre, bispo de Lincoln 6 . Entre outras<br />

obras em latim que trazem essas profecias com as possíveis diferenças, ou<br />

simplesmente fazem referência a elas, está a Historia Ecclesiastica, de Ordericus<br />

Vitalis 7 .<br />

Historia regum Britanniae, de Geoffrey of Monmouth inspirou Wace of<br />

Jersey em seu Roman de Brut, obra que, para alguns estudiosos, é considerada<br />

como aquela Historia posta em versos. Essa obra normanda é, sem dúvida, o elo de<br />

ligação entre as fontes primitivas e o grande desenvolvimento que atingirá a<br />

chamada matéria da Bretanha. Robert de Boron deve muito ao Brut de Wace, tendo<br />

5<br />

Geoffrey of Monmouth, Historia Regum Britanniae, ed. de Jacob Hammer (Cambridge: The<br />

Mediaeval Academy of America, 1951).<br />

6<br />

Na obra referida na nota anterior, nos Livros II e VII.<br />

7<br />

Orderici Vitalis Angligenae coenobii Uticensis monachi, Historiae Ecclesiasticae libri tredecim, ed.<br />

Auguste Le Prevost (Paris: 1852), apud Michael J. Curley, "A New Edition of John of Cornwall's<br />

Prophetia Merlini" in Sepeculum, LVII, fasc. 2, 1982, p. 217-249.<br />

8


utilizado até mesmo a grande inovação de Wace: o estabelecimento da távola<br />

redonda por Artur 8 .<br />

As circunstâncias do nascimento do mago são as mesmas em Geoffrey e<br />

em Wace. Geoffrey conta ter lido nos filósofos e cm numerosas histórias que muitos<br />

homens foram concebidos da mesma forma que <strong>Merlim</strong>. Como Apuléio sustenta a<br />

respeito do deus de Sócrates, habitam entre a lua e a terra certos espíritos que<br />

chamamos íncubos. Eles participam ao mesmo tempo da natureza humana e da<br />

angélica e, quando lhes agrada, assumem figura humana para seduzir mulheres. Má<br />

de ter sido assim que este menino nasceu. Wace, em seus versos, não é muito<br />

diferente. O que se nota é que à natureza humana acrescenta-se a diabólica, que<br />

aliás não é senão a angélica decaída 9 .<br />

Em Robert de Boron, há um projeto de maiores proporções, com um<br />

programa definido. Atendo-nos inicialmente apenas ao <strong>Merlim</strong>, convém observar que<br />

o estatuto e a função da personagem passa por uma grande transformação, na<br />

medida em que o autor a situa dentro da história da humanidade, num momento<br />

crucial posterior à redenção. Percebendo o grande risco de uma perda total, os<br />

demônios resolvem, em concilio, dar sua réplica decidindo criar o avesso de Cristo<br />

por meios que violam as leis ordinárias da criação: o diabo fecunda um corpo<br />

feminino, assim como o Espírito Santo fizera com a Virgem. O esperado fruto<br />

diabólico teria a missão de desviar o povo de Deus do caminho traçado por Cristo e<br />

conquistá-lo para os domínios infernais.<br />

8 Wace of Jersey, Le Roman de Brut, edição de Yvor Arnold (Paris: SATF, 1938): "Pur les nobles<br />

baruns qu'il out, / Dunt chescuns mieldre estre quidout, / Chescuns se teneit al meillur, / Ne nuls n'en<br />

saveit le peiur, / Fist Artur Ia Roünde Table / Dunt Bretun dient mainte fable." (versos 9747-9752).<br />

9 Cf. entre outras passagens bíblicas: Luc. X, 18 e Apoc. XII, 7 - 10.<br />

9


Mas os demônios fracassam. As razões desse fracasso, o próprio <strong>Merlim</strong><br />

as expõe a seu fiel amigo Brás: "Eles (os demônios), por sua vez, não foram sábios<br />

quando decidiram que um deles engravidaria minha mãe, como de fato engravidou:<br />

o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a virtude de minha<br />

mãe prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito em minha avó, não teria<br />

tido o poder de conhecer a Deus e acabaria pertencendo a eles, pois ela levou má<br />

vida e por causa dela aconteceram todas as catástrofes que se abateram sobre meu<br />

avô e sobre minha mãe..."<br />

Em conseqüência, pois, da virtude de sua mãe, este filho de um incubo<br />

confirma as esperanças de salvação para toda a humanidade. Esta é a primeira<br />

grande renovação que Robert de Boron opera na tradição da personagem de<br />

<strong>Merlim</strong>.<br />

A segunda, estreitamente vinculada a essa, foi acoplar <strong>Merlim</strong> e o Graal<br />

de modo tão íntimo que o próprio <strong>Merlim</strong> tornou-se autor da estória, na medida em<br />

que é ele quem passa os fatos a serem registrados para seu fiel escriba e confidente<br />

Brás. Dessa forma, cumpre <strong>Merlim</strong> a função de preparar os reis e o povo da<br />

Inglaterra para a vinda do cavaleiro que há de "dar cima" às aventuras do reino de<br />

Logres 10 : o cavaleiro digno de ocupar o lugar vazio da mesa do Graal — a mesa de<br />

José de Arimatéia —, símbolo daquele lugar deixado vazio por Judas na mesa da<br />

ceia de Cristo com seus discípulos, a primeira das mesas. Esse cavaleiro, flor da<br />

cavalaria, preencherá a vaga na terceira mesa, a távola redonda fundada pelo rei<br />

Artur.<br />

10 Dar cima é uma expressão corrente nos textos arturianos medievais ibéricos, com o significado de<br />

levar a cabo, levar a bom termo, acabar, terminar com êxito.<br />

10


Em conseqüência dessas duas grandes inovações, a trama recebe as<br />

adaptações necessárias. Na infância, <strong>Merlim</strong> vai confirmando seu dom de profecia,<br />

ao longo de episódios que arrancam a admiração dos circunstantes. Com o episódio<br />

da torre de Vortigerne, ele conquista a fama de sábio e desmascara os conselheiros<br />

do rei que o queriam morto e seu sangue misturado na massa da reconstrução da<br />

torre. Essa sabedoria só cresce com a prudência demonstrada no modo como<br />

persegue o usurpador, vence os invasores e elimina um dos filhos de Constâncio<br />

para evitar lutas fratricidas. <strong>Merlim</strong> ganha a estima e a admiração de todos, sabe<br />

estimular os dois irmãos, provoca Uter na relação com sua amiga e finalmente,<br />

utilizando-se do dom de transformar-se e de transformar os outros, favorece os<br />

amores de Uter por Igerne, provocando assim o nascimento de Artur.<br />

Essa é a grande cena da origem de Artur. Se em Geoffrey of Monmouth e<br />

em Wace, ela pode ter chocado, porque Uter e Igerne casam-se logo e Artur cresce<br />

ao lado de seus pais, herdando pacificamente o reino, em Robert de Boron há<br />

atenuantes altamente implicadas em seu projeto. Uter casa-se com Igerne, mas<br />

Artur torna-se o menino sem pai, abandonado por sua mãe, portanto sem direito ao<br />

trono ou ignorando a possibilidade de herdá-lo. Parece um tropeço, mas na verdade<br />

é um grande recurso para garantir ao futuro rei dupla legitimidade. Com a espada<br />

tirada da bigorna e com a longa espera da confirmação de seu direito ali<br />

conquistado, patenteia-se a legitimidade divina: revelado no Natal, é sagrado rei em<br />

Pentecostes. Mais tarde, ainda por meio de <strong>Merlim</strong> e de seu pai nutrício Antor,<br />

sobrevém a confirmação da legitimidade terrena: era filho de Uter.<br />

Percebe-se assim como é construído este <strong>Merlim</strong> de Robert de Boron e<br />

como obedece a um propósito novo dentro de um projeto que costuma ser apontado<br />

como projeto de cristianização da matéria da Bretanha — mas cristianização mais<br />

11


acabada ainda está por vir. Aqui, porém, não é o momento nem o lugar de tratar<br />

dela. A obra é outra.<br />

Este <strong>Merlim</strong> é tradução do francês antigo do Merlin do século XIII, a<br />

personificação do romance em verso de Robert Boron. E muito polêmica a questão<br />

da autoria da prosificação. Sabe-se que, pelo menos em sua segunda versão, não é<br />

do próprio Robert de Boron, motivo pelo qual ela é sempre nomeada como Pseudo-<br />

Boron.<br />

O texto de que nos servimos foi a edição de Alexandre Micha (Paris e<br />

Genebra: Droz, 1980), tendo tomado o cuidado de oferecer ao leitor as variantes do<br />

final, segundo o manuscrito de Módena e o Didot, a que não teríamos acesso, se<br />

não fosse a edição de Micha. Como se percebe nos três finais da narrativa, existe<br />

sempre uma ligação com o Perceval, do ms. Didot, o que confirma a descrição de<br />

uma trilogia de obras de Robert Boron: Joseph d'Arimathie, Merlin e Perceval. A<br />

matéria narrada termina com a coroação do rei Artur.<br />

Na tradução, tomamos o cuidado de aportuguesar os nomes próprios, em<br />

concordância com a tradição das traduções dos textos arturianos para o galaico-<br />

português realizada no século XIII. Só intervimos minimamente, como por exemplo<br />

no caso de Vertigier, passado a Vortigerne, com apoio na forma latina registrada na<br />

Historia Regum Britaniae: Vortigernus, mesmo porque os breves fragmentos do<br />

<strong>Merlim</strong> galaico-português não trazem esse nome. Deixamos aqui consignados<br />

nossos agradecimentos a Antônio Furtado, professor da Pontifícia Universidade<br />

Católica do Rio de Janeiro, pesquisador arturianista de escol, pela solicitude com<br />

que leu nosso trabalho e nos apresentou sugestões; a Sílvio Almeida de Toledo<br />

12


Neto, cujas pesquisas iniciais são altamente promissoras, e aos pós-graduandos que<br />

nos acompanham de perto.<br />

São Paulo, 3 de janeiro de 1993<br />

Heitor Megale<br />

13


Glossário<br />

Candelária — a festa da Purificação de Nossa Senhora, celebrada a 2 de fevereiro.<br />

O nome está ligado ao uso de velas acesas na procissão da solenidade.<br />

Circuncisão — a festa da circuncisão de Jesus, celebrada em primeiro de janeiro.<br />

Observe-se que o texto permite perceber a importância das festividades litúrgicas,<br />

para as quais eram marcados sucessivamente compromissos do reino: Natal,<br />

Circuncisão, Candelária, Páscoa, Trindade, Pentecostes.<br />

Clerezia — ciência, instrução, conhecimento; é usada a expressão mestria de<br />

clerezia.<br />

Graal — Robert de Boron associa Graal a graça e, aproximando as duas palavras<br />

(n°. 48) estabelece um jogo de sonoridade na relação entre o objeto e seus efeitos.<br />

No seu José de Arímatéia, o Graal explica-se pelo verbo agradar (agréer). Não há<br />

referência a uma refeição; a fome parece saciada pela graça que o graal prodigaliza.<br />

Não há também interesse em trabalhar a etimologia da palavra.<br />

Cuersil — termo saxão de convite à bebida, ao se fazer um brinde; equivale à<br />

expressão: à sua saúde.<br />

Justa — combate individual, estando os contendores armados, a cavalo, e<br />

começam a luta com a lança.<br />

14


Mestria — saber grande, de mestre (Morais, 1813); domínio do conhecimento, na<br />

expressão mestria de clerezia.<br />

Rico-homem — na hierarquia feudal, indivíduo das famílias mais poderosas,<br />

imediatamente superior aos infanções, que constituíam o grau supremo da cavalaria,<br />

e inferior aos títulos nobiliárquicos (Magne, Glossário da D.S.G.).<br />

Século — mundo, vida profana, por oposição à vida monástica, clerical ou religiosa.<br />

Senescal — provedor, vedor ou mordomo-mor da casa real.<br />

Torneio —jogo público em que os cavaleiros mostravam sua destreza em combates<br />

coletivos.<br />

Vésperas — hora canônica equivalente a 18 horas. As demais: prima, 6 horas;<br />

terça ou tércia, 9 horas; sexta, 12 horas, noa, 15 horas; completas, 21 horas;<br />

matinas, 24 horas e laudes, 3 horas<br />

15


<strong>Merlim</strong><br />

16


1<br />

O inimigo ficou muito irado quando Nosso Senhor desceu ao inferno e<br />

libertou de lá Adão e Eva e quantos mais lhe agradou. Quando os demônios viram<br />

isso, ficaram muito maravilhados, reuniram-se em conselho e disseram entre si:<br />

— Quem é este homem que nos levou de vencida? Por que, com toda<br />

nossa força, nada há que possamos fazer para impedir que continue fazendo o que<br />

bem lhe apraz? Nunca podíamos imaginar que algum homem nascido de mulher<br />

pudesse escapar de nossas garras. E eis que esse nos destrói! Como pode ter<br />

nascido sem ter parte nos pecados deste mundo, diferentemente de todos os outros<br />

homens?<br />

Respondeu então um dos demônios:<br />

— Fomos vencidos pelo que julgávamos que mais nos valeria. Lembrai-<br />

vos do que diziam os profetas que anunciavam que o Filho de Deus viria à terra para<br />

apagar o pecado de Adão e Eva e de seus descendentes. Nós nos apoderamos<br />

daqueles que proclamavam que esse homem viria à terra e os livraria das penas do<br />

inferno. E eis que aconteceu o que não cansavam de anunciar. Esse homem nos<br />

arrebatou aquilo de que nos havíamos apoderado e não podemos nada contra ele.<br />

17


Ele nos arrebatou todos aqueles que já tínhamos sob nosso domínio e que ninguém<br />

nos podia mais retirar. Como foi que isso aconteceu? Como não os teremos mais?<br />

— Não sabeis então, prosseguiu outro demônio, que ele faz com que se<br />

lavem com água, em seu nome, para que essa água lave o delito de pai e mãe, justo<br />

aquele pecado pelo qual os teríamos sob nosso domínio, como sempre os tivemos?<br />

Doravante perdemos a todos, por causa dessa água, e não temos nenhum poder<br />

sobre eles, a menos que venham a nós por seus próprios pecados. Desse modo<br />

nosso poder ficou rebaixado e bloqueado. E ainda há mais: ele anunciou que vai<br />

ordenar e deixar ministros seus na terra para salvá-los, ainda que venham a<br />

participar de nossas obras, bastando que as reneguem, que se arrependam e façam<br />

quanto lhes for ordenado. Assim os perdemos, se forem moderados. Um benefício<br />

inteiramente espiritual propiciou aquele que veio à terra para salvar a humanidade e<br />

quis nascer de uma mulher, sem que o soubéssemos, sem pecado de homem e de<br />

mulher. E se o víssemos e o tentássemos de todos os modos a nosso alcance, não<br />

encontraríamos nele nenhuma de nossas obras, tal é sua determinação de salvar os<br />

homens. Tanto amou os homens, que quis morrer para salvá-los e tirá-los de nosso<br />

jugo. Deveríamos então agora buscar um meio de reconquistar os homens, antes<br />

que possam se arrepender e antes que digam a quem lhes deu o perdão que esse<br />

homem os redimiu com sua morte. Então disseram todos juntos:<br />

— Perdemos tudo, visto que ele pode perdoar os pecados até o último<br />

instante da vida do homem; e, se o encontra em suas obras, estará salvo; e ainda<br />

que esteja em nossas obras até o fim, se se arrepende e cumpre o que mandam<br />

seus ministros, nós o teremos perdido. Assim perdemos a todos, se não os<br />

retivermos. Mas quem nos prejudicou mais e nos estorvou e propiciou a vinda dele à<br />

terra?<br />

18


Então prosseguiram dizendo entre si:<br />

— Quem mais nos prejudicou foram aqueles que anunciaram sua vinda.<br />

Por meio desses é que nos advieram os maiores prejuízos. Quanto mais<br />

anunciavam sua vinda, mais nós os atormentávamos. Parece mesmo que ele se<br />

apressou em vir ajudá-los e socorrê-los dos tormentos que lhes causávamos. De<br />

que modo conseguiríamos alguém que falasse aos homens e dissesse quais são os<br />

nossos objetivos, qual o nosso poder e a nossa maneira de agir, e que tenha, como<br />

nós, poder de saber o que acontece, o que se diz e o que se faz? Se contássemos<br />

com um homem com esse poder, que soubesse essas cousas, e pudesse viver com<br />

os outros homens na terra, ele poderia nos ajudar muito a enganá-los, assim como<br />

os profetas que estavam do nosso lado e prediziam o que nunca imaginávamos que<br />

pudesse acontecer. Este homem falaria as cousas ditas e feitas num passado<br />

distante ou próximo e ganharia a confiança de muita gente. Então disseram todos<br />

juntos:<br />

— Excelentes resultados conseguiria quem tal homem pudesse criar.<br />

Todos acreditariam nele.<br />

Disse um deles:<br />

— Não tenho o poder de conceber nem de fecundar uma mulher, mas se<br />

tivesse, faria com gosto, porque tenho uma mulher que faz e diz tudo o que eu<br />

quero.<br />

Disse um outro:<br />

— Mas há entre nós quem pode assumir a figura humana e fecundar uma<br />

mulher, e convém que a engravide o mais discretamente que puder.<br />

Assim disseram e decidiram que gerariam um homem que enganaria os<br />

outros. São loucos demais, porque imaginam que Nosso Senhor, que tudo sabe,<br />

19


ignore suas obras. O diabo então decidiu fazer um homem que tivesse a sua<br />

memória e a sua inteligência para enganar Jesus Cristo. Deste modo podeis saber o<br />

quanto é louco o diabo, e muito devemos temer, porque tão louca cousa nos<br />

engana.<br />

20


2<br />

Tendo concordado todos com tal decisão, os demônios encerraram o<br />

conselho. Aquele que, como dissera, tinha uma mulher em seu poder, não demorou<br />

a dirigir-se para onde ela estava. E tendo chegado a ela, encontrou-a muito<br />

disponível c ela entregou-lhe o que tinha, até seu senhor e sua própria pessoa. Ela<br />

era mulher de um rico-homem que tinha muitos bens e numeroso rebanho. Esse<br />

homem tinha dessa mulher submissa ao diabo um filho e três filhas. O diabo não<br />

esqueceu nada, dirigiu-se ao campo como quem desejava ardentemente enganar o<br />

marido dela. Um dia conversou com a mulher e perguntou-lhe como poderia enganar<br />

seu marido. Ela respondeu que não poderia enganá-lo de modo algum, sem que ele<br />

se enfurecesse. "E podes facilmente irritá-lo, porque ficará irado, se tomares minhas<br />

coisas."<br />

Então voltou o diabo ao rebanho do rico-homem e matou grande parte do<br />

gado. Quando os pastores viram os animais morrerem no meio do campo,<br />

maravilharam-se muito e disseram que iriam contar a seu senhor. Foram e contaram<br />

a seu senhor a maravilha que provocava a morte de seu gado. Ao ouvir, irou-se e<br />

maravilhou-se muito o senhor de corno os animais morriam. E perguntou aos<br />

pastores:<br />

21


— Sabeis o que têm estes animais que morrem assim?<br />

Eles responderam que não sabiam. E assim passou aquele dia. O diabo,<br />

tendo sabido que o senhor irou-se por tão pouco, imaginou que, se lhe fixasse maior<br />

prejuízo, o enfureceria mais, e assim o teria mais a sua vontade. Voltou então ao<br />

rebanho e a dois belos cavalos que ele tinha, e os matou numa noite. Quando o<br />

senhor soube que suas coisas iam tão mal, irritou-se muito e disse uma palavra<br />

louca, porque na sua grande fúria disse que dava ao diabo o que tivesse sobrado.<br />

Ao saber que lhe havia sido dado tal dom, o diabo ficou muito alegre e<br />

resolveu causar ainda maiores prejuízos, matando desta vez todos os animais. No<br />

auge de sua fúria e de seu desespero, o senhor fugiu de toda companhia. Quando o<br />

diabo soube que ele se isolara de toda gente, concluiu que realizaria tudo o que<br />

queria, porque podia estar lá quando quisesse. Chegou-se então ao filho dele, um<br />

belo rapaz, e o estrangulou, enquanto dormia. De manhã, encontraram o rapaz,<br />

morto. O pai, ao ser informado de que havia perdido seu filho, entregou-se ao<br />

desespero e renegou sua fé. Ao saber que ele havia perdido a fé e não a recobraria<br />

mais, o diabo, muito feliz, voltou à mulher, por meio da qual havia conseguido seus<br />

objetivos. Fez com que ela subisse sobre o cofre de madeira do celeiro, e passou<br />

uma corda das pranchas do celeiro em seu pescoço, em seguida afastou o cofre, e<br />

assim enforcou-a. Ela foi então encontrada morta. O senhor, informado de que havia<br />

perdido a mulher além da perda do filho, ficou de tal maneira abatido, que caiu<br />

doente e morreu. Assim procede o diabo com aqueles que pode enganar e submeter<br />

a sua vontade.<br />

22


3<br />

Quando soube do acontecido, o diabo ficou muito satisfeito e começou a<br />

imaginar como iria seduzir as três filhas sobreviventes. Entendeu muito bem que<br />

nada conseguiria se não fizesse o que elas queriam. Ora, havia na cidade um jovem<br />

que lhe e ir. muito dedicado. O diabo levou-o então a elas. Ele começou a cortejar<br />

uma das três e conseguiu fazer e falar tão bem que a seduziu para seu grande<br />

prazer. Mas o diabo não se preocupa em esconder seu êxito, ao contrário, gosta de<br />

torná-lo conhecido para prejudicar mais suas vítimas. Esforçou-se então para que<br />

toda gente soubesse do acontecido. Naquele tempo era costume que a mulher<br />

surpreendida no pecado, salvo o caso de entregar-se abertamente a qualquer<br />

homem, fosse condenada à morte. O diabo, que nada mais deseja do que prejudicar<br />

suas vítimas, tornou público então tudo o que havia passado. Quando os juízes a<br />

viram, tiveram muita pena dela, em consideração ao senhor de quem era filha.<br />

Disseram eles:<br />

— Grande maravilha podeis ver que se passou com o senhor de quem<br />

esta jovem foi filha, porque não há muito tempo ele era um dos mais notáveis desta<br />

cidade.<br />

23


Depois que falaram isso, disseram que convinha que a justiça fosse feita.<br />

Concordaram que a enterrariam viva, à noite, para poupar seus amigos. Assim foi<br />

feito. Eis como o diabo procede com quem se entrega a sua vontade.<br />

Ora, havia na região um ermitão que era muito bom confessor e ouviu<br />

falar dessa maravilha. Veio encontrar as irmãs sobreviventes, a mais velha e a<br />

caçula. Reconfortou-as e perguntou-lhes:<br />

irmão?<br />

— Como tal desventura aconteceu a vosso pai, a vossa mãe e a vosso<br />

Elas responderam:<br />

— Nada sabemos a respeito, senão que imaginamos que Deus nos odeia,<br />

visto que permite que soframos assim.<br />

E o ermitão disse:<br />

— Estais enganadas. Deus não odeia ninguém, a Ele pesa que o<br />

pecador odeie a si mesmo. Sabei que tudo o que aconteceu foi por obra do diabo. E<br />

de vossa irmã que teve morte tão vil, sabeis se procedia daquele modo?<br />

Responderam elas:<br />

— Senhor, Deus nos odeia; nada mais sabemos a respeito.<br />

— Guardai-vos das más obras, porque as más obras conduzem o<br />

pecador e a pecadora a mau fim. E quem a Deus entrega-se não pratica más obras<br />

nem tem mau fim.<br />

Assim as exortava o ermitão, esperando que o ouvissem. A mais velha<br />

ouviu atentamente e o que ele lhes disse agradou-lhe muito. O ermitão instruiu-a<br />

pois na fé, falou-lhe do poder de Jesus Cristo e ensinou-a a crer e a amar. E ela<br />

esforçou-se muito para guardar os ensinamentos e pô-los em prática.<br />

Acrescentou o ermitão:<br />

24


— Se confiardes no que vos direi, grandes benefícios vos advirão e sereis<br />

minha amiga e minha filha em Deus; e em qualquer dificuldade que estiverdes, por<br />

maior que seja a necessidade, se agirdes segundo os meus conselhos, poderei vos<br />

assistir com a ajuda de Nosso Senhor. Não receeis então nada, porque Nosso<br />

Senhor vos socorrerá, se permanecerdes com ele e vierdes freqüentemente me ver,<br />

porque não me instalarei longe daqui.<br />

Dessa maneira aconselhou o ermitão as duas donzelas e apontou-lhes o<br />

bom caminho. A mais velha recebeu muito bem o ermitão e apreciou seus conselhos<br />

e as boas palavras que dizia.<br />

25


4<br />

Quando o diabo soube disso, pesou-lhe muito e teve grande receio de<br />

perdê-las. Imaginou então como poderia enganá-las por meio de um homem, no<br />

caso de não conseguir por meio de uma mulher. Ele conhecia uma que muitas vezes<br />

já havia cumprido sua vontade e feito suas obras. Tomou então essa mulher e<br />

mandou-a à casa das duas irmãs. Ela chamou à parte a mais jovem — à mais velha<br />

não ousava falar, tanto sua conduta era cheia de humildade —, e estando a sós com<br />

ela, perguntou-lhe:<br />

satisfeita?<br />

— Que vida leva agora vossa irmã? Imaginais que ela esteja feliz e<br />

E ela respondeu:<br />

— Ela anda muito pensativa e está tão preocupada com as desventuras<br />

que nos aconteceram, que não externa alegria nem para mim nem para outrem. E<br />

um ermitão que lhe falou de Deus modificou de tal maneira sua conduta, que ela não<br />

faz, senão o que ele quer.<br />

Então disse-lhe a mulher:<br />

— Que pena! Vosso belo corpo não terá nunca prazer, enquanto estiver<br />

em companhia dela. Por Deus, bela amiga, se soubésseis os prazeres que as outras<br />

26


mulheres têm, desprezaríeis tudo o que tendes, "reinos tal prazer quando estamos<br />

em companhia de quem amamos que, ainda que tivéssemos de nos contentar<br />

apenas com um pedaço de pão, ficamos tão felizes como não poderíeis estar com<br />

todas as riquezas do inundo. Por Deus! Que prazeres pode experimentar uma<br />

mulher que não conhece o prazer do homem? Minha bela amiga, digo-vos que não<br />

tereis nem sabereis o que e o prazer do homem. E explico por quê. Vossa irmã é<br />

mais velha que vós; se puder, conhecerá antes que vós os prazeres da carne; não<br />

permitirá que passeis na frente dela. E depois que tiver conhecido, não cuidará mais<br />

de vós. E vós tereis perdido, para vossa desventura, todo o prazer de vosso belo<br />

corpo.<br />

— Mas como ousarei fazer o que dizeis? Minha irmã morreu disso!<br />

Ela respondeu:<br />

— Vossa irmã o fez loucamente e seguiu maus conselhos. Vós, se<br />

confiardes em mim, não sereis vítima das circunstâncias, nem de acusação.<br />

— Não sei como me atrevo a continuar falando disso, por causa de minha<br />

irmã. Ide embora agora. Quando vos vir novamente, então podereis voltar a falar a<br />

respeito.<br />

Tendo ouvido essa resposta, o diabo ficou muito alegre e soube que a<br />

teria a sua vontade. Então afastou a mulher que possuía. Depois que a mulher foi,<br />

estando a sós, a donzela rememorou tudo o que lhe havia sido dito. E o diabo,<br />

quando a viu tão inclinada a sua vontade, que não parava de pensar naquilo,<br />

excitou-a o mais que pôde, tanto que, à noite, ela olhava o próprio corpo e dizia: "De<br />

fato, tem razão a mulher que me diz o que estou perdendo." Assim que raiou o dia,<br />

mandou chamá-la e disse-lhe:<br />

27


espondeu:<br />

— Tínheis razão em dizer que minha irmã não se preocupa comigo. Ela<br />

— Eu sabia. Ainda menos cuidará, se encontrar o próprio prazer. Nós não<br />

temos outra razão de viver, senão a de ter o prazer do homem.<br />

Então disse ela:<br />

condenação à morte.<br />

— Eu o terei de muito boa vontade, desde que não precise temer a<br />

— Haveriam de matá-la, se o fizésseis tão loucamente como vossa irmã.<br />

Mas eu vos ensinarei como fazer.<br />

— Dizei-me como, e eu confiarei em vosso ensinamento.<br />

Ao que ela respondeu:<br />

— Vós vos entregareis a todos os homens e fugireis para longe daqui<br />

dizendo que não podeis mais suportar vossa irmã. Deste modo fareis de vosso corpo<br />

o que bem quiserdes; não encontrareis na Justiça quem vos retruque e estareis livre<br />

de qualquer perigo. E depois que tiverdes levado essa vida, encontrareis facilmente<br />

um homem prudente que se sentirá muito feliz de vos ter, por causa de vossa<br />

grande fortuna. Dessa forma, podereis conhecer todos os prazeres do mundo.<br />

Então fugiu abandonando a casa de sua irmã e entregou seu corpo aos<br />

homens, pelo conselho dessa mulher.<br />

28


5<br />

Depois que enganou a outra irmã, o diabo ficou muito alegre. A mais<br />

velha, ao ver que sua irmã havia ido embora, procurou o ermitão, aquele que a<br />

mantinha fiel em sua crença, muito revoltada e externando grande dor pelo fato de<br />

ter desse modo perdido sua irmã. E o ermitão, vendo-a fazer tal lamento, teve muita<br />

pena e disse-lhe:<br />

transtornada.<br />

— Faze o sinal da cruz e recomenda-te a Deus, porque te vejo muito<br />

Ela respondeu:<br />

— E com razão, pois perdi minha irmã.<br />

E contou-lhe como acontecera e o que pôde saber que ela havia se<br />

entregado a todos os homens. Quando o ermitão ouviu isto, ficou muito atordoado e<br />

disse:<br />

— O diabo ainda está ao vosso redor e não terá sossego, enquanto não<br />

tiver seduzido as três, se Deus não vos guarda.<br />

Então perguntou ela:<br />

— Senhor, por Deus, como poderei guardar-me? Não há nada que<br />

tanto receie, como sucumbir a sua sedução.<br />

29


Respondeu o ermitão:<br />

— Se confiares em mim, ele nunca te seduzirá. Respondeu ela:<br />

— Confiarei em tudo que me disserdes. E ele disse:<br />

— Crês no Pai, no Filho e no Espírito Santo? Crês que essas três<br />

pessoas fazem um só Deus? Crês que Nosso Senhor veio à terra para salvar todos<br />

os pecadores que acreditarem no poder do batismo e dos outros sacramentos da<br />

Santa Madre Igreja e obedecerem aos ministros que ele deixou na terra para ensinar<br />

a acreditar no seu nome?<br />

E ela respondeu:<br />

— Em tudo o que dissestes e ouvi eu creio; assim verdadeiramente me<br />

guarde ele que o diabo não possa me seduzir.<br />

Disse-lhe o ermitão:<br />

— Se acreditas no que eu disse, o demônio não te poderá enganar. Mas<br />

acima de tudo peço-te que não te entregues à cólera, porque o diabo insinua-se<br />

mais quando um homem ou uma mulher estão em grande cólera. Por isso guarda-te<br />

de todas as más obras e desventuras que sobrevierem. Vem a mim e conta-me o<br />

que te torna culpada diante de Nosso Senhor, de todos os santos e de todas as<br />

santas e de todas as criaturas que crêem em Deus e o servem e o amam, e de mim,<br />

em honra de Deus. Todas as vezes que deitares e te levantares persigna-te em<br />

nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em nome desta cruz que fez de seu<br />

Santo Corpo e no nome daquela em que sofreu a morte para salvar os pecadores<br />

das penas do inferno e do poder do diabo. Se assim fizeres como te ordeno, nada<br />

receies do inimigo. Cuida que haja sempre claridade onde dormires, porque o diabo<br />

odeia sobretudo a luz e não vem facilmente onde ela brilha.<br />

30


enganasse.<br />

Isto ensinou o ermitão à donzela que tinha muito pavor de que o diabo a<br />

Então voltou a donzela à casa, firme na fé e muito humilde diante de Deus<br />

e da gente pobre de sua região. As pessoas honestas vinham vê-la e diziam-lhe<br />

freqüentemente:<br />

— Amiga, muito deveis temer do que aconteceu a vossos pais, a vosso<br />

irmão e a vossas duas irmãs. Tende ânimo forte, porque sois mulher rica e tendes<br />

boa herança e muito feliz será o homem que vos esposar. Mas ela respondia:<br />

— Nosso Senhor me mantenha no estado que ele sabe que me convém.<br />

Assim ficou a donzela por muito tempo, dois anos ou mais, que o diabo<br />

não pôde seduzi-Ia e nem soube de má obra que ela fizesse. Pensou muito o diabo<br />

e entendeu que não poderia seduzi-la, porque não via como induzi-la a alguma de<br />

suas más obras; até que percebeu que não conseguiria enganá-la, senão fazendo-a<br />

esquecer o que o ermitão lhe havia ensinado, e isto não seria possível, se não a<br />

enfurecesse, porque ela não tinha nenhuma tendência para as obras do seu agrado.<br />

31


6<br />

Apoderou-se o diabo da irmã dela, e levou-a, um sábado à noite, à casa<br />

da mais velha, para ver se a punha em estado de cólera, e assim seduzi-la. A má<br />

irmã chegou à casa paterna muito tarde da noite com um bando de maus rapazes<br />

que ela fez entrar. Quando a irmã os viu, ficou muito irada e disse-lhes:<br />

— Minha irmã, enquanto levais esta vida não deveríeis vir aqui, porque<br />

fareis com que me censurem, sem que eu dê motivo.<br />

Quando ouviu que ela seria censurada por sua culpa, ficou muito<br />

enfurecida e disse, como quem tinha o diabo no corpo, que a odiava, que sua<br />

conduta era pior, que ela era amante do ermitão e que, se as pessoas ficassem<br />

sabendo, ela seria queimada viva. A mais velha, sentindo-se assim acusada de tal<br />

diabrura, enfureceu-se e ordenou que sua irmã se retirasse da casa, mas a outra<br />

retrucou que a casa era do pai delas duas e que não sairia. Compreendendo que ela<br />

não sairia, tomou-a pelos ombros e quis empurrá-la para fora, mas a outra reagiu e<br />

os rapazes que estavam com ela agarraram a mais velha e bateram nela muito<br />

cruelmente. Quando conseguiu escapar, porque estavam cansados de bater, entrou<br />

no quarto e trancou a porta. Ela não tinha senão uma serva e um servo, sobre os<br />

quais eles descarregaram sua fúria. Uma vez só no quarto, deitou-se no leito<br />

32


inteiramente vestida e chorou copiosamente, cheia de raiva de sua irmã que a havia<br />

maltratado dessa maneira. E assim dormiu. O diabo, quando a viu só e enfurecida,<br />

na escuridão, onde não se enxergava absolutamente nada, ficou muito alegre.<br />

Então lembrou-se a mais velha da dor de seu pai e de sua mãe, de seu<br />

irmão e de sua irmã, essa com quem havia brigado. Chorou, ao lembrar-se de todas<br />

essas coisas, muito sentidamente e nessa dor adormeceu.<br />

O diabo, quando percebeu que ela havia esquecido tudo o que o ermitão<br />

lhe havia recomendado, devido à grande raiva que tomou conta dela, alegrou-se e<br />

disse:<br />

— Agora ela está bem transtornada e fora da proteção de seu mestre.<br />

Podemos bem entregá-la a nosso homem.<br />

Aquele demônio que tinha poder de, assumindo figura humana, dormir<br />

com mulher estava pronto. Veio, dormiu com ela e ela concebeu. Depois de ter<br />

concebido, acordou, lembrou-se do ermitão, persignou-se e disse:<br />

— Santa Maria! O que me aconteceu? Não sou mais como era quando<br />

me deitei! Gloriosa Mãe de Deus, filha e mãe de Jesus Cristo, rogai, em vossa<br />

bondade, ao Pai e caro Filho, que guarde minha alma e a defenda contra o inimigo.<br />

Então levantou-se e começou a procurar aquele que a havia assim<br />

tratado, imaginando poder encontrá-lo. Foi à porta e encontrou-a fechada, como a<br />

havia deixado ela mesma. Vendo que eslava bem fechada a porta do quarto,<br />

procurou por todo o quarto e nada encontrou. Então entendeu que havia sido<br />

enganada pelo inimigo. Lamentou-se muito e pediu a Nosso Senhor que não a<br />

deixasse ser desonrada nesse mundo. Passou a noite e veio o dia. Tão logo raiou o<br />

dia, o diabo levou de volta a mulher, porque ela havia feito muito bem tudo aquilo por<br />

que viera. Depois que ela c os rapazes foram embora, a mais velha saiu do quarto<br />

33


chorando e, muito irada, chamou seu servo ordenando-lhe que procurasse duas<br />

mulheres. Assim que chegaram, ela se pôs a caminho cio seu confessor.<br />

34


7<br />

Foi muito depressa e chegou; quando ele a viu, disse-lhe:<br />

— Estás em dificuldade, porque te vejo muito aflita! E ela respondeu:<br />

— Devo estar mesmo muito aflita, porque o que me aconteceu ontem<br />

nunca aconteceu com ninguém, a não ser comigo. Venho pois aconselhar-me<br />

convosco, porque me dissestes que todo pecador, seja qual for a enormidade de seu<br />

pecado, será perdoado se confessar e arrepender-se sinceramente e fizer o que seu<br />

confessor ordenar. Ora, senhor, eu pequei, confesso, e fui seduzida pelo diabo.<br />

Então contou como sua irmã viera à casa, e como enfureceu-se, e como<br />

os rapazes bateram nela, e como refugiara-se em seu quarto cheia de raiva, mas<br />

teve todo o cuidado de fechar bem a porta.<br />

— Como estava com muita raiva, esqueci-me de persignar-me, bem como<br />

esqueci-me de vossas recomendações. E do modo como deitei inteiramente vestida,<br />

adormeci. Ao acordar, tomei conta de que estava desonrada e deflorada. Revirei<br />

meu quarto e assegurei-me de que a porta estava fechada como eu a fechara; não<br />

achei ninguém e nem pude saber quem me fizera aquilo. Senhor, tudo passou como<br />

vos digo: fui enganada pelo diabo. Suplico, em nome de Deus, que me ajudeis a<br />

salvar a minha alma, ainda que meu corpo deva ser entregue ao suplício.<br />

35


O ermitão ouviu com muita atenção tudo o que ela disse, mostrou-se<br />

muito maravilhado e não acreditou em nada do que ela contara, porque, disse ele,<br />

nunca ouvira contar semelhante maravilha. E disse a ela:<br />

— Estás possuída pelo diabo, e ele ainda está em ti. Como ouvirei tua<br />

confissão e te darei penitência, se sei verdadeiramente que estás mentindo? Jamais<br />

uma mulher foi deflorada sem saber de quem ou ao menos sem ver quem a<br />

deflorava e queres me fazer acreditar que essa maravilha aconteceu?<br />

— Senhor, que Deus me salve e me preserve dos suplícios, tão<br />

verdadeiramente como vos digo a verdade.<br />

E o ermitão:<br />

— Se é tão verdade como dizes, verás pelas próprias obras. No entanto,<br />

cometeste um grande pecado não cumprindo o que eu havia determinado; porque<br />

desobedeceste, imponho a penitência de, pelo resto da vida, toda sexta-feira, não<br />

comeres senão uma vez. E quanto ao que me dizes da luxúria, no que nada<br />

acredito, convém que te dê uma penitência, se te comprometeres a cumpri-la.<br />

Ela respondeu:<br />

— Não me ordenareis nada, por mais difícil que seja, que eu não faça.<br />

O ermitão:<br />

— Deus te ouça! Asseguras então que vens aconselhar-te na Santa<br />

Igreja, sob a proteção de Jesus Cristo que nos redimiu com tão alto preço como o de<br />

sua morte — em verdadeira confissão e com firme arrependimento e bons<br />

propósitos de coração — e tudo o que disseste pela boca garantes cumprir em teu<br />

coração e em teu corpo, na medida de tuas forças? E ela respondeu:<br />

Deus o quer.<br />

— Senhor, assim como dissestes, eu me comprometo, de boa vontade, se<br />

36


O ermitão:<br />

— Confio em Deus que se o que dizes é verdade, ele te protegerá.<br />

— Senhor, que Deus me salve do mal, tanto quanto é verdade o que digo.<br />

— Prometes cumprir a penitência que te imporei e fugir de todo o pecado?<br />

— Sim, prometo.<br />

— Renuncia então a toda luxúria e eu te proíbo, até o fim de teus dias, de<br />

sucumbires a qualquer pecado da carne, exceto cm sonho, porque o homem nada<br />

pode contra os sonhos. Tens firme propósito de te guardares de todo pecado da<br />

carne?<br />

— Sim, se me garantes que eu não seja condenada por esse, nenhum<br />

outro me acontecerá.<br />

— Desse eu serei tua garantia perante Deus, por seu mandamento, pois<br />

nos pôs na terra como seu ministro.<br />

Ela aceitou a penitência que ele impôs, com muito boa vontade e<br />

chorando, como quem se arrepende de todo o coração. O ermitão fez sobre ela o<br />

sinal da cruz, deu-lhe a absolvição e confirmou-a no amor de Jesus Cristo. No<br />

entanto, continuou a perguntai-lhe se o que havia dito era verdade, e concluiu que<br />

ela, de fato, havia sido enganada pelo inimigo. Fez então com que tomasse água<br />

benta, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, lançou também a água sobre<br />

ela, e disse:<br />

tiveres necessidade.<br />

— Cuida de não esqueceres minhas ordens, e volta todas as vezes que<br />

Abençoou-a então e recomendou-a a Deus, e passou a considerar como<br />

penitência todas as boas ações que ela fizesse.<br />

37


8<br />

Então voltou para casa e levou vida exemplar e muito simples. E quando<br />

o diabo viu que a havia perdido e que não sabia o que ela dizia ou fazia, como se ria<br />

nunca tivesse existido, ficou muito irritado.<br />

A jovem viveu assim até o momento em que não pôde esconder o fruto<br />

que carregava no corpo. Ela criou barriga e engordou, de modo que as outras<br />

mulheres perceberam e vieram falar-lhe:<br />

— Por Deus, senhora, o que é isso? Engordastes muito.<br />

Ela respondeu:<br />

— É verdade.<br />

— Estais grávida?<br />

— Sim, como vedes.<br />

— E de quem?<br />

— Tanto quanto peço a Deus que me dê uma boa hora, eu não sei.<br />

— Dormistes com tantos homens que não sabeis quem é o pai?<br />

— Que Deus me impeça para sempre de deitar com algum homem, se<br />

conscientemente mantive relações que me tornaram grávida!<br />

As mulheres que ouviram isso persignaram-se e disseram:<br />

38


— Amiga, isso não poderia acontecer, nem nunca aconteceu convosco<br />

nem com ninguém mais. Sem dúvida amais em segredo alguém que não quereis<br />

acusar. Mas certamente esta é a vossa grande desgraça, porque, assim que os<br />

juízes souberem, devereis morrer.<br />

Ao ouvir isso, ficou muito espantada e disse:<br />

— Deus salve a minha alma, tanto é verdade que nunca vi nem conheci<br />

quem me deixou neste estado.<br />

As mulheres riram e a tomaram por louca e consideraram grande<br />

desventura que ela perdesse desse modo sua herança, tão bela terra e tão bom<br />

feudo. A jovem inteiramente transtornada procurou seu confessor e contou-lhe o que<br />

haviam dito as mulheres. O ermitão percebeu que ela estava grávida, maravilhou-se<br />

muito e perguntou-lhe:<br />

— Cumpriste rigorosamente a penitência que te impus?<br />

— Sim, senhor, sem faltar nada.<br />

— E verdadeiramente não te aconteceu esta maravilha mais de uma vez?<br />

— Não, senhor, nunca me aconteceu nem antes, nem depois.<br />

O ermitão ouviu, maravilhou-se muito, anotou por escrito cuidadosamente<br />

a noite e a hora, como disse ela e concluiu:<br />

— Fica tranqüila! Quando esta criança que carregas nascer, saberei de<br />

fato se me mentiste. E confio em Deus que, se o que me contas te é verdade, ele te<br />

salvará da morte. Certamente pássaras muito maus momentos, porque os juízes,<br />

quando o souberem, mandarão tomar teus bens e tua terra e falarão cm executar-te.<br />

Quando te mandarem prender, faze-me saber e, se puder, irei em teu socorro. E, se<br />

és tal como dizes, Deus não te recusará ajuda. Volta então cm paz para tua casa,<br />

confia em Deus e fica segura de que vida boa ajuda muito a ter bom fim.<br />

39


9<br />

Então voltou para casa e ficou em paz em sua vida simples até que os<br />

juízes chegaram a sua terra e souberam da novidade. Mandaram buscá-la a sua<br />

presença. Quando ela foi presa, mandou buscar o ermitão, aquele que sempre a<br />

havia aconselhado. Quando ele soube, veio o mais depressa que pôde. E ao chegar,<br />

já encontrou os juízes. Ao vê-lo, citaram-no e contaram-lhe a declaração da mulher<br />

que dizia não saber quem a havia engravidado e perguntaram-lhe:<br />

homem?<br />

— Cuidais que uma mulher possa engravidar e ter filho sem conhecer<br />

O ermitão respondeu:<br />

— Não vos direi tudo o que sei, mas posso pelo menos vos declarar, se<br />

meu conselho quereis ouvir, que não fareis justiça condenando esta mulher,<br />

enquanto estiver grávida, porque não é razoável nem justo que uma criança seja<br />

executada, nada tendo a ver com o pecado da mãe. Se a condenardes à morte,<br />

podereis dizer que executastes quem tinha pecado e também quem não tinha<br />

pecado.<br />

Então disseram os juízes:<br />

— Seguiremos vosso conselho. O ermitão:<br />

40


— Já que assim decidistes, fazei guardar esta mulher numa torre, em tal<br />

lugar que nada possa fazer de repreensível. Deixai com ela duas mulheres que a<br />

ajudarão, quando a hora chegar, a fazer o parto. Cuidai que de lá não possam sair, e<br />

dai a elas tudo o de que precisarem. Mantendo-a desse modo sob vigilância até o<br />

nascimento da criança. Aconselho ainda que deixe a criança alimentar-se até o dia<br />

em que possa pedir o de que tenha necessidade. Se até então nada tiver acontecido<br />

de diferente, fareis com esta mulher o que quiserdes. Se confiais em meu conselho,<br />

fazei assim; se quiserdes agir de outro modo, nada poderei fazer.<br />

Os juízes responderam:<br />

— Parece-nos que tendes razão.<br />

Então fizeram corno o ermitão disse. Colocaram-na em uma torre alta.<br />

Mandaram murar todas as portas embaixo e puseram em sua companhia duas<br />

mulheres, as mais prudentes que puderam encontrar. Deixaram aberta uma janela<br />

no alto para fazer chegar tudo o de que precisassem, por uma corda. O ermitão,<br />

quando soube que tudo havia sido feito, falou com ela, pela janela, e disse:<br />

— Quando tiveres a criança, faze batizá-la o mais depressa que puderes<br />

e, quando vierem tirar-te daqui para levar à fogueira, manda chamar-me.<br />

41


10<br />

Assim ficou a mulher muito tempo na torre. Os juízes cuidaram bem que<br />

ela tivesse na torre tudo o de que precisava. E assim ficou lá e teve a criança, como<br />

a Deus aprouve. Desde o nascimento, a criança teve o poder e a inteligência do<br />

diabo, pelo qual havia sido concebido. Mas o diabo o havia feito loucamente, porque<br />

sabia muito bem que Nosso Senhor havia redimido com sua morte e perdoado os<br />

pecados de todos aqueles que se arrependem sinceramente. Ora, o diabo havia<br />

seduzido aquela mulher por astucia, por ardil e estando ela dormindo. E tão logo<br />

sentiu-se enganada, implorou a piedade de quem era preciso e submeteu-se aos<br />

mandamentos de Deus e da Santa Igreja e fez tudo o que lhe ordenaram. E porque<br />

Deus não quis que o diabo perdesse o conhecimento do que devia acontecer e quis<br />

que ele tivesse o que desejava, por isso o criou. Ele o criou para que tivesse a arte<br />

de saber as coisas que existiam, as coisas ditas e feitas e acontecidas, e tudo isso<br />

ele soube. E Nosso Senhor que tudo sabe e conhece, pelo arrependimento da mãe,<br />

pela confissão e pelo bom propósito que tinha em seu coração, pela boa vontade<br />

que a conduzira até o ponto em que estava e pela força do batismo, pelo qual o filho<br />

havia sido levado até a fonte batismal, quis Nosso Senhor que o pecado de sua mãe<br />

não o pudesse prejudicar. Deu-lhe então o poder e a inteligência de saber as coisas<br />

42


que deviam acontecer. Por essas razões teve o menino o conhecimento das coisas<br />

feitas, ditas e acontecidas, porque ele o teve do inimigo. E além de saber as coisas<br />

que estão por acontecer, quis Nosso Senhor que soubesse, em relação às outras<br />

coisas, o que sabia de sua parte. Volte-se para a parte que quiser, ele terá do diabo<br />

seu direito e de Nosso Senhor, o seu, porque o diabo não lhe deu senão o corpo, e<br />

Nosso Senhor pôs nesse corpo o espírito para ver, ouvir e compreender cada coisa<br />

segundo o ajudar a memória. E a ele, deu-lhe ainda mais que a qualquer outra<br />

pessoa, porque para grandes coisas foi feito. Então saberá muito bem a que<br />

dedicar-se. E assim ele nasceu. Quando as mulheres o tomaram em seus braços,<br />

assustaram-se porque ele era mais peludo que todas as crianças que haviam visto.<br />

Levaram-no à mãe que persignou-se ao vê-lo e disse:<br />

batizá-lo.<br />

— Este menino me enche de medo. E as outras mulheres disseram:<br />

— A nós também, a tal ponto que com dificuldade o conseguimos segurar.<br />

— Fazei com que o levem fora da torre — disse a mãe —, e mandai<br />

— Como quereis que se chame?<br />

— O nome de meu pai.<br />

Colocaram-no em um cesto, desceram-no pela corda ordenando que<br />

fosse batizado com o nome de seu avô materno; aquele homem bom chamava-se<br />

<strong>Merlim</strong>. Desse modo foi o menino batizado com o nome de <strong>Merlim</strong>, da parte de seu<br />

avô, e foi recambiado à mãe para o amamentar, porque nenhuma outra mulher<br />

ousava fazê-lo. Sua mãe o amamentou até que tivesse nove meses. As mulheres<br />

que estavam com sua mãe repetiam muitas vêzes que se maravilhavam muito por<br />

esse menino ser assim tão peludo e parecer mais velho; não tendo senão nove<br />

meses, era como se tivesse dois anos ou mais.<br />

43


11<br />

Então aconteceu, muito tempo depois, que o menino chegou aos dezoito<br />

meses, e as duas mulheres disseram à mãe:<br />

— Senhora, queríamos sair daqui e voltar a nossas famílias e amigos, em<br />

nossas casas, porque há muito tempo que estamos aqui.<br />

Ela respondeu:<br />

— Assim que tiverdes saído daqui, sei que virão condenar-me.<br />

— Certamente, senhora, mas não podemos ficar aqui eternamente.<br />

Ela chorou e implorou por Deus que ficassem mais um pouco. Dirigiram-<br />

se à janela e a mãe, com o menino nos braços, sentou-se, chorou muito e disse:<br />

— Filho, por tua causa serei morta, sem o ter merecido; morrerei porque<br />

não há quem saiba a verdade e não há quem acredite em mim, por isso morrerei.<br />

Como se lamentasse dessa forma por sua morte, dizendo que em má<br />

hora Deus havia permitido seu nascimento e geração em seu corpo para sua morte<br />

e seu suplício, falando essas coisas e mostrando a Nosso Senhor seus sofrimentos,<br />

o menino olhou para ela, riu e disse:<br />

nasci.<br />

— Querida mãe, não temas nada, não morrerás pelo pecado de que<br />

44


Ouvindo-o assim falar, enfraqueceu seu coração e teve pavor e soltou o<br />

menino dos braços; ele caiu ao chão e machucou-se. As mulheres que estavam à<br />

janela voltaram-se para ela e imaginaram que ela quisesse matá-lo.<br />

— O que quereis fazer? Quereis matar vosso filho?<br />

Ela respondeu inteiramente transtornada:<br />

- Não! Jamais pensei nisso. O que aconteceu foi uma grande maravilha:<br />

ele falou comigo! Então faltaram-me o ânimo e os braços, por isso caiu.<br />

- E o que disse ele?<br />

- Que não morrerei por causa dele.<br />

- Ele ainda vai falar mais?<br />

Tomaram-no então em seus braços e ficaram atentas para ver se falaria<br />

de novo, mas ele não mostrou intenção de falar mais nada. Passado um bom tempo,<br />

disse a mãe às mulheres:<br />

ele vai querer falar.<br />

— Ameaçai-me e dizei que serei queimada por meu filho, então vereis se<br />

As mulheres então disseram:<br />

— Muito grande desgraça vos atingirá porque sereis queimada por causa<br />

de vosso filho. Melhor seria que ele não tivesse nascido.<br />

tranqüilamente:<br />

Ele então respondeu:<br />

- Estais mentindo. Foi minha mãe que vos mandou dizeer isso.<br />

Apavoradas por ouvi-lo dizer isto, gritaram:<br />

- Não é um menino, mas é o diabo que sabe o que dissemos.<br />

E começaram a falar novamente e a questioná-lo, mas ele respondeu<br />

45


mãe.<br />

gente.<br />

- Deixai-me em paz, porque sois loucas e pecadoras mais do que minha<br />

Ouvindo isto, ficaram muito maravilhadas e disseram:<br />

— Esta maravilha não pode ficar apenas entre nós. Vamos contá-la a toda<br />

Então foram à janela, chamaram as pessoas e contaram o que o menino<br />

havia dito e falaram que não queriam mais ficar lá. Que fossem contar aos juízes.<br />

Quando os juízes souberam dessa maravilha, concluíram que era coisa<br />

muito maravilhosa e que havia razões para executar a mãe. Mandaram fazer as<br />

cartas de convocação para executá-la no prazo de quarenta dias. Quando a<br />

intimação foi entregue e a mãe soube que o dia de seu suplício estava marcado,<br />

mandou imediatamente avisar seu confessor.<br />

46


12<br />

O tempo passou e não faltava senão uma semana para que ela fosse<br />

levada à fogueira. Quando pensou nisso, ficou muito aterrorizada. O menino que<br />

andava pela torre, ao ver sua mãe chorando, começou a rir e a externar grande<br />

alegria. Então as mulheres disseram:<br />

— Pensa bem agora que na semana que entra tua mãe será queimada<br />

por tua causa. Maldita seja a hora, em que nasceste, se Deus não intervém, porque<br />

ela sofrerá o suplício.<br />

E ele respondeu e disse:<br />

— Elas mentem, querida mãe, enquanto eu viver, ninguém ousará te fazer<br />

queimar, nem submeter a julgamento de morte, senão Deus.<br />

Ouvindo isto, a mãe e as mulheres ficaram muito felizes e disseram:<br />

— Um menino que tais palavras diz ainda será muito cheio de sabedoria.<br />

As coisas ficaram assim ate o dia marcado para o suplício. As mulheres<br />

foram postas fora da torre e a mãe saiu com o filho nos braços. Os juízes chegaram<br />

e conversaram com as duas mulheres, à parte, e perguntaram se era verdade que o<br />

menino falava aquelas coisas. E elas contaram tudo o que haviam ouvido. Ao tomar<br />

conhecimento, maravilharam-se muito e disseram que o menino precisaria saber<br />

47


muito para livrar a mãe da morte. Tomaram então seus lugares, e o ermitão que<br />

aconselhava a mãe chegou.<br />

- Senhora — disse um dos juízes —, tendes uma última vontade a fazer?<br />

Preparai-vos, porque estais prestes a ser executada.<br />

- Senhor — disse ela —, se permitis, gostaria de falar com este ermitão.<br />

O juiz deu-lhe permissão; ela dirigiu-se a uma câmara e seu filho ficou<br />

fora. Muita gente então começou a perguntar o que se passava, sem obter resposta.<br />

A mãe falava com seu confessor muito piedosamente chorando. Depois que falou<br />

tudo o que queria, o ermitão perguntou-lhe<br />

— É verdade que seu filho fala corno estão contando?<br />

— Sim, senhor — respondeu ela, e repetiu o que dele havia ouvido.<br />

— Alguma maravilha está para acontecer então — concluiu ele.<br />

Saiu o ermitão da câmara e foi para onde os juízes estavam. Saiu depois<br />

a infeliz vestida apenas com a túnica e encontrou seu filho fora da câmara. Tomou-o<br />

em seus braços e dirigiu-se para diante dos juízes. Eles perguntaram-lhe:<br />

— Senhora, quem é o pai deste menino? Não ouseis ocultar.<br />

Ela respondeu:<br />

— Senhores, sei bem que estou condenada à fogueira, mas Deus não<br />

tenha piedade de mim, se algum dia conheci o pai deste menino ou se alguma vez<br />

tive intimidades com um homem de que ficasse grávida.<br />

— Não acreditamos que isso possa ser verdade, mas perguntaremos às<br />

outras mulheres se é possível que uma mulher se engravide sem o concurso de um<br />

homem, porque nunca ouvimos falar tal maravilha. Então retiraram-se e foram<br />

perguntar a diversas mulheres a respeito do que se dizia da mãe de <strong>Merlim</strong>:<br />

48


— Senhoras, já vos aconteceu ou alguma de vós já ouviu contar ter<br />

alguma mulher concebido ou posto no mundo um filho, sem ter tido relações carnais<br />

com um homem?<br />

Cristo.<br />

Elas responderam:<br />

— É impossível. Nunca ouvimos falar tal coisa, senão da mãe de Jesus<br />

Os juízes voltaram então e relataram para a mãe de <strong>Merlim</strong> o que as<br />

outras mulheres haviam dito.<br />

49


13<br />

E concluíram que nada mais havia a fazer, senão aplicar a justiça. Falou<br />

um dos juízes, o mais poderoso, com quem todos os outros concordavam:<br />

— Ouvi dizer que este menino fala e que ele diz que sua mãe não<br />

receberá morte por ele. Se deseja vir em seu socorro, o que está esperando para<br />

falar?<br />

Ao ouvir isto, soltou-se o menino dos braços da mãe e pôs-se de pé.<br />

Dirigiu-se então à frente dos juízes e disse:<br />

— Senhores, peço-vos, se o souberdes, que me digais por que quereis<br />

lançar minha mãe à fogueira.<br />

Um deles respondeu:<br />

— Sei muito bem por que è te direi: porque ela te teve em maldade do<br />

próprio corpo e porque nega-se a acusar quem no seu corpo te gerou. E nós<br />

seguimos uma lei antiga, segundo a qual devemos fazer justiça com uma mulher<br />

nessas circunstâncias, por isso a queremos fazer com tua mãe.<br />

O menino replicou:<br />

— Senhores, não é desta vez que minha mãe será levada à morte. Se<br />

fosse para se levar à morte todos aqueles e todas aquelas que têm tido relações<br />

50


carnais com parceiro alem do próprio, seria preciso lançar à fogueira dois terços dos<br />

homens e das mulheres aqui presentes. Conheço bem todos os seus segredos e, se<br />

quisesse, poderia revelá-los. Aqui há muitos que fizeram pior do que minha mãe,<br />

porque o fizeram sabendo e conhecendo o parceiro, ela, que o fez sem saber, não é<br />

culpada do que a acusam. Isso o sabeis vós muito bem. E se ela o fosse, aqui está o<br />

ermitão que se responsabilizou seu erro. Se duvidais de mim, perguntai a ele.<br />

Os juízes chamaram o ermitão e relataram a ele palavra por palavra o que<br />

o menino havia dito e perguntaram-lhe se era verdade. O ermitão respondeu:<br />

- Senhores, tudo o que ele vos disse a respeito do pecado de sua mãe é<br />

verdade. Ela me contou que, do modo como aconteceu, ela não tinha receio — nem<br />

de Deus nem do mundo — de que a condenassem. E ela mesma vos contou como<br />

foi enganada e como esta maravilha de ter ficado grávida do menino lhe aconteceu<br />

dormindo, sem nenhum outro delito, e que ela não sabe quem a engravidou. Assim<br />

confessou e arrependeu-se, mas que tivesse acontecido desse modo, eu nunca<br />

acreditei, no entanto, o fato de eu não acreditar não pode nem deve em nada<br />

prejudicá-la, pois sua consciência é verdadeira.<br />

Então o menino tomou a palavra e disse:<br />

— Vós sabeis a noite e hora e hora em que fui gerado e vos é fácil saber<br />

o dia e a hora em que nasci. De modo que podeis verificar, em grande parte, o que<br />

minha mãe diz.<br />

— Seguramente — disse o ermitão —, é verdade o que dizes. Não sei de<br />

onde vem tua sabedoria que é superior a de todos nós juntos.<br />

Chamaram então as duas mulheres que haviam vivido com a mãe de<br />

<strong>Merlim</strong> na torre, e elas fizeram um relato, diante dos juízes, da duração da gravidez<br />

da mãe, da concepção do menino e do parto. Elas compararam suas informações<br />

51


com as anotações do ermitão e concluíram que haviam chegado ao mesmo<br />

resultado.<br />

— Apesar disso — disse um dos juízes ao menino — ela não estará quite,<br />

se não nos disser quem te gerou e quem é teu pai.<br />

O menino irritou-se e disse:<br />

— Sei quem é meu pai melhor do que vós, o vosso; e vossa mãe sabe<br />

melhor quem vos gerou do que a minha, a mim.<br />

A que o juiz replicou encolerizado:<br />

— Se tens alguma acusação contra minha mãe, eu a chamarei ajuízo.<br />

— Posso muito bem dizer que, se a condenásseis à morte, a pena seria<br />

mais merecida do que pela minha mãe. Se pois eu a obrigo a que vos dê ela mesma<br />

a prova, livrai a minha mãe, porque não é culpada do que a acusam, e ela disse a<br />

verdade quando contou como fui gerado.<br />

— <strong>Merlim</strong> — respondeu o juiz muito irritado —, se é assim, tua mãe<br />

escapará da fogueira, no entanto, fica sabendo que, se não podes fornecer prova do<br />

erro de minha mãe, então a tua não fica livre e tu serás queimado juntamente com<br />

ela.<br />

52


14<br />

Os juízes fixaram então um recesso de quinze dias. O juiz mandou buscar<br />

a própria mãe e manteve cuidadosamente vigiados <strong>Merlim</strong> e sua mãe. Prosseguiram<br />

os interrogatórios do menino a respeito de sua mãe, mas durante este prazo não<br />

conseguiram dele nem uma palavra. No dia marcado, a mãe do juiz chegou; então<br />

mandaram buscar na prisão <strong>Merlim</strong> e sua mãe e conduziram todos à presença do<br />

povo.<br />

formular a acusação.<br />

- <strong>Merlim</strong> — disse o juiz —, eis aqui minha mãe contra quem deves<br />

- Não sois nem de longe tão sábio como imaginais disse o menino.<br />

Conduzi vossa mãe, à parte, a uma casa e convocai para vos ajudar os amigos mais<br />

fiéis; e eu i invocarei os que ajudarão minha mãe: Deus todo-poderoso e seu<br />

confessor.<br />

Todos quantos ouviram tais palavras da boca do menino ficaram<br />

abismados e não sabiam o que dizer, mas o juiz entendeu claramente que ele era<br />

sábio e estava em direito.<br />

— Senhores — perguntou o menino aos outros juízes —, se eu provar,<br />

em bom juízo, o direito de minha mãe contra este homem, vós a absolvereis?<br />

53


— Sim — responderam —, se ela escapar deste, não encontrará mais<br />

quem a acuse de nada.<br />

Retiraram-se então o juiz e <strong>Merlim</strong> a uma câmara. O juiz levou dois outros<br />

homens dentre seus amigos, os mais sábios que pôde encontrar; e <strong>Merlim</strong>, o<br />

confessor de sua mãe. Estando assim reunidos, disse o juiz a <strong>Merlim</strong>:<br />

tua.<br />

— Agora podes dizer a minha mãe tudo o que queres para desculpar a<br />

— Não quero — replicou <strong>Merlim</strong> — dizer contra vossa mãe algo para que<br />

minha mãe fique livre, se vossa mãe nada tiver feito de errado, pois não quero<br />

defender minha mãe injustamente, mas quero ver triunfar o direito de Deus e o dela.<br />

Minha mãe, vós o sabeis muito bem, não mereceu nenhum castigo como o que lhe<br />

quereis impor e, se acreditais em mim, vós a absolvereis e então renunciarei ao<br />

interrogatório da vossa.<br />

defendê-la.<br />

mãe.<br />

— Não escaparás assim — disse o juiz —, é preciso que fales mais.<br />

— Vós nos havíeis assegurado a mim e a minha mãe que eu poderia<br />

— É verdade, e estamos aqui reunidos para ouvir o que dirás sobre minha<br />

— Prendestes minha mãe e a quereis lançar à fogueira, porque eu nasci<br />

e ela não sabe dizer quem me concebeu, mas, se eu quisesse, saberia melhor<br />

nomear meu pai do que vós, o vosso.<br />

esposo?<br />

— Querida mãe — disse o juiz —, não sou o filho de vosso legítimo<br />

— Por Deus, meu filho, de quem serieis filho senão de meu bom senhor<br />

que morreu? — respondeu a mãe do juiz.<br />

54


— Senhora — interveio <strong>Merlim</strong> —, precisareis dizer a verdade, no caso de<br />

vosso filho não nos livrar a mim e a minha mãe; mas se ele o fizer, sem mais nada<br />

perguntar, eu me calarei.<br />

— Não farei nada disso — interveio o juiz.<br />

— Teríeis pelo menos a vantagem de encontrar vosso pai vivo, pelo<br />

testemunho de vossa mãe — disse <strong>Merlim</strong> ao juiz.<br />

Ao ouvir tais palavras, todos os que estavam presentes a este julgamento<br />

persignaram-se, tão maravilhados ficaram.<br />

— Senhora — disse <strong>Merlim</strong> à mãe do juiz —, será necessário que digais a<br />

vosso filho a verdade sobre vosso pai.<br />

— E já não a disse, demônio!<br />

— Sabeis muito bem que ele não é filho daquele que cuida ser.<br />

— E de quem é então? — replicou ela, apavorada.<br />

— Sabeis, em verdade, que é filho de vosso confessor! E eis aqui a prova:<br />

a primeira vez que dormistes com ele, dissestes-lhe que tínheis muito medo de que<br />

vos fizesse um filho. Ele vos respondeu que isto não aconteceria e que ele poria por<br />

escrito a anotação de cada vez que dormisse convosco. Ele temia, portanto, que a<br />

enganásseis com outro homem, e naquela época tínheis discórdia com vosso<br />

marido. Agora, dizei se é verdade o que acabei de falar, senão, prosseguirei.<br />

inimigo?<br />

- O que ele disse é verdade? — perguntou encolerizado o juiz a sua mãe.<br />

- Filho querido — disse a mãe muito confusa — , acreditais neste<br />

Senhora — continuou <strong>Merlim</strong> — , se não reconheceis a verdade, direi<br />

ainda outra coisa que sabemos muito bem ser verdadeira.<br />

Corno a mulher continuasse muda, ele prosseguiu:<br />

55


- Quando percebestes vossa gravidez, pedistes a vosso confessor que<br />

vos reconciliasse com vosso marido, antes que ele notasse vosso estado. Vosso<br />

confessor o enganou tão bem que vos reconciliou, e então dormistes .com vosso<br />

marido. Em seguida, fizestes com que ele acreditasse que vosso filho era dele, como<br />

o pensa ainda hoje grande parte das pessoas; vosso próprio filho aqui presente está<br />

firmemente persuadido disso. Quanto ao mais, continuastes vossa manobra e ainda<br />

hoje a sustentais,. Na noite anterior a vossa vinda para cá, ainda dormistes com<br />

vosso confessor e, de manhã, ele vos acompanhou bom pedaço do caminho<br />

e, ao despedir-se, disse rindo no vosso ouvido: "Amiga, cuidai bem de fazer e dizer<br />

tudo o que meu filho quiser." Porque ele sabia muito que o filho era seu, por causa<br />

das anotações que fizera.<br />

56


15<br />

Quando a mãe do juiz ouviu o que <strong>Merlim</strong> dizia — e ela sabia muito bem<br />

que era tudo verdade — , caiu sentada, com enorme assombro, e compreendeu que<br />

lhe convinha confessar tudo.<br />

— Minha mãe — disse-lhe o juiz — , seja quem for o meu pai, eu sou<br />

vosso filho e vos tratarei como tal. Dizei, eu vos peço, se esse menino diz a verdade.<br />

— Meu filho, em nome de Deus, piedade! Não posso mais te esconder:<br />

aconteceu tudo como ele disse.<br />

— Este menino dizia então a verdade, quando afirmava que conhecia<br />

melhor seu pai do que eu, o meu! Não é pois justo que eu puna sua mãe, quando<br />

não puno a minha. <strong>Merlim</strong> — dirigiu-se diretamente ao menino —, eu te pergunto,<br />

em nome de Deus e para que eu possa te desculpar e a tua mãe diante do povo,<br />

quem é teu pai?<br />

— Vou dizer, mais por amizade do que pelo medo do vosso poder. Quero<br />

que saibais e acrediteis que sou filho de um demônio que seduziu minha mãe. Sabei<br />

também que demônios desta espécie chamam-se íncubos e vivem no ar. E Deus<br />

permitiu que esse demônio me desse o conhecimento das coisas feitas e ditas e<br />

acontecidas. Por isso é que eu sei a vida que vossa mãe levou. E Nosso Senhor,<br />

57


para recompensar a virtude de minha mãe, seu sincero arrependimento, pela<br />

penitência que lhe impôs o ermitão, e pela obediência aos mandamentos da nossa<br />

santa Igreja, deu-me a graça de conhecer, em parte, o futuro. E com o que vos direi,<br />

hei de prová-lo. Então chamou o juiz à parte e disse-lhe: — Vossa mãe vai contar<br />

àquele que vos gerou tudo o que eu disse. E quando ele souber, terá tal pavor e tal<br />

remorso, que não suportará. Então empreenderá uma fuga por medo de vós; e o<br />

diabo, cujas obras sempre praticou, o fará chegar à margem de um rio, e nas águas<br />

deste rio se afogará. Poderei então provar para vós que conheço o futuro.<br />

que disseres.<br />

— <strong>Merlim</strong> — disse o juiz —, se assim for, nunca deixarei de acreditar no<br />

Encerrada essa conversa, voltaram para diante do povo.<br />

- Este menino — disse o juiz, dirigindo-se a todos — salvou sua mãe da<br />

fogueira. E todos quantos o virem saibam que nunca terão visto nem verão jamais<br />

alguém tão sábio.<br />

O povo respondeu:<br />

- Deus seja louvado! Ela está salva!<br />

Desse modo foi a mãe de <strong>Merlim</strong> salva da morte e a do juiz, culpada.<br />

<strong>Merlim</strong> permaneceu com os juízes. E aquele juiz mandou que dois homens<br />

acompanhassem sua mãe para saber se era verdade o que o menino havia dito. A<br />

mãe do juiz, assim que chegou à casa, foi contar ao ermitão tudo como se passara.<br />

Ao ouvir, ele ficou tão espantado, que não respondeu palavra. Concluiu que, assim<br />

que os juízes chegassem, o matariam. Pensando assim, fugiu para fora da cidade e<br />

chegou a um rio, disse então que mais lhe valia matar-se do que receber morte vil ou<br />

ser entregue ao suplício pelos juízes. Foi assim que o diabo, cujas obras ele sempre<br />

havia feito, o induziu a lançar-se ao rio e afogar-se nas águas, sob os olhares dos<br />

58


dois homens que haviam sido enviados juntamente com a mulher e o haviam<br />

seguido. Eis por que a estória aconselha que nenhum homem fuja da companhia<br />

dos outros, porque mais facilmente o diabo apodera-se de quem está isolado. As<br />

testemunhas da morte do ermitão — ele havia se afogado dois dias após a chegada<br />

deles — voltaram aos juízes e contaram o que haviam assistido. Quando o juiz<br />

soube que o ermitão havia se afogado, tomou-o por grande maravilha e foi repeti-lo<br />

a <strong>Merlim</strong>. <strong>Merlim</strong> riu e disse ao juiz:<br />

— Agora podeis saber que eu dizia a verdade. Peco-vos que, assim como<br />

o contastes para mim, também o conteis a Brás. Brás era o ermitão que confessava<br />

sua mãe. E o juiz contou-lhe a maravilha que havia acontecido ao outro ermitão.<br />

59


16<br />

Depois, <strong>Merlim</strong> saiu com sua mãe e Brás numa direção e os juízes,<br />

noutra. Brás era um clérigo cheio de sabedoria e de discernimento. Havia ficado de<br />

tal modo impressionado com as sábias palavras de <strong>Merlim</strong> — que no entanto não<br />

tinha senão dois anos e meio de idade —, que se perguntava onde poderia o menino<br />

ter haurido tamanha sabedoria. De diversas maneiras tentou sondá-lo, até que<br />

<strong>Merlim</strong> lhe disse:<br />

— Brás, não tente experimentar-me, quanto mais esforçar-se nisso, mais<br />

surpresas terá. Faça porém o que lhe pedir e tenha confiança no que eu disser,<br />

assim lhe ensinarei a merecer o amor de Jesus Cristo e a ter alegria constante.<br />

Brás respondeu:<br />

— <strong>Merlim</strong>, já ouvi contares e, da minha parte, acredito que foste gerado<br />

pelo diabo, por isso receio que me enganes.<br />

Disse-lhe então <strong>Merlim</strong>:<br />

— É costume dos maus ver por toda a parte os próprios vícios e enxergar<br />

muito mais o mal do que o bem. O senhor me ouviu dizer que fui gerado pelo diabo,<br />

mas também me ouviu dizer que Nosso Senhor me havia dado a faculdade de<br />

conhecer o futuro. Se fosse sábio, o senhor deveria procurar saber qual caminho eu<br />

60


deveria seguir. Saiba que Nosso Senhor conferiu-me este poder, porque os diabos<br />

queriam perder-me, eu, no entanto, não perdi seu engenho e sua arte, antes tenho<br />

deles aquilo que devo ter, mas não o utilizo em proveito deles. Eles, por sua vez,<br />

não foram sábios quando decidiram que um deles engravidaria minha mãe, como de<br />

fato engravidou: o vaso que me recebeu era muito puro para pertencer a eles, e a<br />

virtude de minha mãe prejudicou-lhes muito o plano. Se me tivessem feito e<br />

concebido em minha avó, não teria tido o poder de conhecer a Deus e acabaria<br />

pertencendo a eles, pois ela levou má vida e por causa dela aconteceram todas as<br />

catástrofes que se abateram sobre meu avô e sobre minha mãe, como a última que<br />

lhe contei. Mas agora acredite que vou ensinar-lhe a respeito da fé e da crença em<br />

Jesus Cristo, e direi coisas que ninguém saberia dizer-lhe, a não ser o próprio Deus.<br />

faça disso um livro e assim muitas serão as pessoas que se tornarão melhores e se<br />

afastarão do pecado, ouvindo sua leitura, então terá feito uma esmola e uma boa<br />

ação.<br />

Brás respondeu:<br />

— De muito boa vontade farei o livro, mas te conjuro, em nome do Pai, do<br />

Filho e do Espírito Santo, tão verdadeiramente quanto sei e creio nestas três<br />

pessoas como um só Deus, em nome da boa senhora que carregou o corpo de<br />

Deus, de todos os santos apóstolos, de todos os anjos e de todos os arcanjos, de<br />

todos os santos e santas, de todos os prelados da santa Igreja, de todos os homens,<br />

de todas as mulheres, de todas as criaturas que servem e amam a Deus, e peço que<br />

me ensines a não me enganar e nada fazer que não seja do agrado de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo.<br />

61


— Que todos aqueles que acaba de nomear me prejudiquem junto a Deus<br />

— respondeu <strong>Merlim</strong> — se eu fizer com que o senhor aja contra a vontade de Jesus<br />

Cristo, meu salvador.<br />

— Dize-me então tudo o que queres, porque, desde já, farei o que<br />

julgares que é bom e deva fazer.<br />

— Vá buscar bastante pergaminho e tinta, porque tenho muitas coisas a<br />

ditar que o senhor deverá escrever no livro e não imaginaria que qualquer outra<br />

pessoa pudesse dizer.<br />

Depois que Brás ficou pronto, <strong>Merlim</strong> contou-lhe fielmente todas as provas<br />

de amor que Jesus Cristo havia dado a José de Arimatéia. Contou-lhe em seguida a<br />

estória de Alan e de seus companheiros, como havia partido da casa de seu pai e<br />

como Pedro havia partido e como José se desfez do Santo Graal e como morreu.<br />

Explicou como os diabos, diante destes acontecimentos, reuniram-se em conselho,<br />

porque haviam percebido que tinham perdido seu antigo poder sobre os homens.<br />

Considerando o prejuízo que os profetas lhes haviam causado, decidiram<br />

unanimemente gerar um homem.<br />

— O resto — acrescentou <strong>Merlim</strong> — o senhor ouviu de minha mãe e de<br />

outros, quanto esforço e quanta astúcia despenderam, mas não foram capazes de<br />

me conservar do lado deles.<br />

Desse modo <strong>Merlim</strong> expôs toda a estória a Brás que a meteu por escrito.<br />

Maravilhou-se muito com as revelações de <strong>Merlim</strong>, e dizia que todas essas<br />

maravilhas pareciam-lhe boas e belas e as ouvia com muito agrado.<br />

Enquanto trabalhava, <strong>Merlim</strong> disse-lhe:<br />

— Esta obra que o senhor está escrevendo lhe causará muitos<br />

sofrimentos e a mim ainda maiores.<br />

62


— Como assim?<br />

— Serei procurado desde o Ocidente e todos os que vierem a minha<br />

procura terão jurado a seus senhores matar-me e levar-lhes meu sangue. No<br />

entanto, logo que me virem e me ouvirem, perderão a vontade de cumprir seus<br />

juramentos. E quando eu for com eles, o senhor se dirigirá para onde habitam os<br />

que guardam o Graal, lá o escutarão sempre e conservarão de bom grado o livro em<br />

que tanto tem trabalhado. Entretanto este livro não estará revestido de autoridade,<br />

porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os<br />

apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor,<br />

ao passo que o senhor, o que faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de<br />

mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer,<br />

assim seu livro será cheio de segredos e poucos os haverá que os desvendarão.<br />

Quando eu for com os que vierem me buscar, o senhor levará o livro. Então, os<br />

livros de José e de Bron e o seu, quando o senhor o tiver terminado, serão reunidos.<br />

E será boa coisa, prova do meu e do seu trabalho. Aqueles a quem agradar serão<br />

reconhecidos e rezarão a Nosso Senhor por nós. E quando os dois livros forem<br />

reunidos, formarão um belo livro e os dois serão a mesma coisa, só não estarão lá<br />

as palavras secretas trocadas entre Jesus Cristo e José, que não posso e nem devo<br />

contar.<br />

Assim diz Roberto de Boron que este conto relata e assim ditou <strong>Merlim</strong><br />

que não pôde saber o Conto do Graal.<br />

63


17<br />

No tempo de que vos falei e ainda vos estou falando, a Inglaterra apenas<br />

havia recebido o cristianismo, e não tinha tido ainda nenhum rei cristão. Dos reis<br />

anteriores nada vos falarei, a não ser o que tiver relação com o meu conto. Houve<br />

um rei na Inglaterra chamado Constâncio. Seu reinado durou muito tempo. Ele tinha<br />

três filhos: o mais velho chamava-se Moines, o segundo Pendragão e o terceiro Uter.<br />

Constâncio em sua terra tinha um homem que se chamava Vortigerne, homem cheio<br />

de sabedoria, muito hábil e bom cavaleiro, no seu tempo. Constâncio morreu, e seus<br />

súditos perguntavam-se a quem escolheriam para sucedê-lo. A maioria concordou<br />

que fizessem rei a Moines, porque era o mais velho. O próprio Moines concordou e<br />

então o fizeram rei. Quando Moines tornou-se rei, houve uma guerra e Vortigerne<br />

tornou-se senescal. Os saxões, com efeito, declararam guerra ao rei e às<br />

populações que reconheciam as leis de Roma e atacaram repetidamente os cristãos.<br />

O senescal, no entanto, governava como bem entendia, visto que o rei era apenas<br />

um menino e não tinha a sabedoria nem a bravura necessárias para sua função.<br />

Vortigerne, por sua vez, detinha grande parte do reino sob seu domínio e gozava de<br />

muita simpatia entre as pessoas que, como ele sabia, reconheciam sua força.<br />

Quando ele avaliou que o tinham por prudente e sábio, orgulhou-se muito e — visto<br />

65


que se considerava insubstituível — renunciou a continuar comandando a guerra e a<br />

ocupar-se de negócios do rei. Então afastou-se dessas atividades. Quando os<br />

saxões souberam disso, reuniram-se e vieram com grande força atacar os cristãos.<br />

Moines foi então procurar Vortigerne.<br />

— Amigo, peco-vos que me ajudeis a defender este reino. A sorte de<br />

todos os seus habitantes, bem como a minha, está em vossas mãos.<br />

— Senhor, que outros encarreguem-se disso doravante, porque em vosso<br />

reino há pessoas que me odeiam por vos ter servido. Então quero que agora essas<br />

pessoas se ocupem da guerra, porque eu não me ocuparei nunca mais.<br />

Quando o rei e os seus viram que Vortigerne não mudava de opinião,<br />

partiram para combater os saxões. Mas estes venceram, e, de volta, os homens de<br />

Moines confessaram a derrota e disseram que tudo teria sido diferente, se<br />

Vortigerne tivesse ido com eles. E assim ficou. O rei menino não sabia governar nem<br />

ganhar a simpatia das pessoas de que precisava, e muitos começaram a odiá-lo.<br />

Chegou o dia em que o rei Moines foi considerado mau e seus súditos se recusaram<br />

a suportá-lo mais tempo. Então foram procurar Vortigerne.<br />

— Senhor, estamos sem rei e sem chefe, porque nosso rei não vale nada.<br />

Por Deus, pedimos que sejais nosso rei e nos governeis, porque ninguém melhor do<br />

que vós deve reinar nesta terra.<br />

— Senhores, se o rei tivesse morrido e me pedísseis para sucedê-lo, de<br />

bom grado aceitaria, mas enquanto Moines for vivo, é impossível.<br />

Cada um que ouviu essa resposta de Vortigerne interpretou-a a seu<br />

modo. Despediram-se de Vortigerne, voltaram para suas terras e reuniram seus<br />

amigos para examinar a situação e contaram a conversa que haviam tido com ele.<br />

66


— O melhor que temos a fazer — concluíam eles — é matar Moines.<br />

Depois que o matarmos, Vortigerne será rei. Então saberá que chegou ao trono,<br />

graças a nós que matamos Moines por ele, e fará tudo o que quisermos; assim o<br />

teremos em nossas mãos.<br />

67


18<br />

Procuraram então entre si quem mataria o rei e escolheram doze. Os<br />

doze dirigiram-se a Moines munidos de facas e espadas com que o matariam, mas<br />

seus cúmplices também estavam na cidade para ajudá-los, se fosse o caso. Então<br />

entraram os doze onde Moines estava, lançaram-se sobre ele e o mataram a golpes<br />

de faca e de espada. Tudo se passou muito rápido — Moines era muito jovem, um<br />

menino — e diante de uma indiferença quase geral. Os conjurados voltaram então a<br />

Vortigerne e disseram-lhe:<br />

encolerizou-se.<br />

— Será rei, porque matamos o rei Moines. Ao ouvir esta nova, Vortigerne<br />

— Senhores — disse ele —, fizestes muito mal assassinando vosso<br />

senhor e aconselho-vos a fugir. Os senhores desta terra vos matarão, se puderem<br />

apoderar-se de vós; de minha parte, estou muito descontente por vos ver aqui.<br />

Os conjurados retiraram-se.<br />

Depois, as pessoas do reino reuniram-se para deliberar sobre a escolha<br />

do novo rei. Vortigerne, como vos disse, tinha sabido ganhar a confiança e a<br />

amizade das pessoas do reino. Então escolheram-no de comum acordo. Estavam<br />

presentes a esse conselho dois homens que tinham a guarda dos dois outros filhos<br />

68


de Constando, os dois irmãos de Moines, Pendragão e Uter. Ao verem que<br />

Vortigerne seria rei, ficaram convencidos de que ele havia feito matar Moines.<br />

— Tão logo Vortigerne chegue ao trono, mandará matar estes dois<br />

meninos que guardamos. Nós que admiramos e amamos muito seu pai que nos<br />

cumulou de benefícios e a ele devemos tudo o que temos, seríamos muito maus, se<br />

agora os abandonássemos a sua sorte. Não há a menor dúvida, assim que<br />

Vortigerne for rei, ele os fará matar, antes que tenham atingido a idade de reivindicar<br />

o trono que lhes pertence, o que ele sabe muito bem.<br />

Decidiram então os dois preceptores fugir com os meninos para um reino<br />

estranho, em direção ao Oriente, porque de lá haviam vindo seus ancestrais. Assim<br />

os guardariam, de modo que Vortigerne não os pudesse matar. E quando fossem<br />

maiores, poderiam reivindicar sua herança. Salvando assim da morte os filhos,<br />

estariam retribuindo ao pai o que lhes havia feito. Levaram então os meninos. A<br />

respeito deles não pode mais falar o conto, antes que chegue lá. Mas já pode provar<br />

este conto que ninguém perde aquilo que fez para pessoas honestas.<br />

Vortigerne, assim conta a estória, foi feito rei. Quando foi sagrado e feito<br />

senhor cio país, vieram a ele os que. mataram Moines. Quando Vortigerne os viu,<br />

fingiu que nunca os havia visto, mas eles o repreenderam e disseram que era rei<br />

porque eles haviam matado Moines. Ao ouvir a confissão do crime, Vortigerne<br />

mandou imediatamente prendê-los.<br />

- Vós mesmos vos condenastes à morte — disse-lhes —, porque não<br />

tínheis nenhum direito de matar Moines e faríeis o mesmo comigo, se pudésseis,<br />

mas saberei bem defender-me.<br />

- Senhor — responderam eles apavorados —, acreditamos agir no vosso<br />

interesse e imaginamos que nos amaríeis mais.<br />

69


— Pois vos mostrarei como se deve amar pessoas da vossa espécie!<br />

Mandou logo prender os doze, amarrá-los a doze cavalos e esquartejá-<br />

los, de modo que praticamente nada sobrou deles. Depois que assim morreram,<br />

numerosos parentes de cada um deles vieram a Vortigerne e disseram:<br />

— Vortigerne, vós nos desonrastes lançando nossos parentes e amigos a<br />

suplício tão infame. Doravante não vos serviremos!<br />

Muito irritado com suas ameaças, Vortigerne respondeu que, se eles<br />

acrescentassem uma palavra, os faria passar pelo mesmo suplício que seus<br />

parentes. Mas eles zombaram de sua ameaça e responderam abertamente que não<br />

o temiam mais.<br />

— Rei — disseram —, podeis nos ameaçar quanto quiserdes. Enquanto<br />

restar um de nós, nunca há de cessar a guerra que vos faremos. A partir de agora,<br />

nós vos desafiamos. Não sois senhor nosso e não sois senhor legítimo deste reino.<br />

Então foram aos seus parentes e amigos — era grande a linhagem de<br />

cada um deles — e contaram o que Vortigerne lhes havia dito e como haviam<br />

respondido. Todos quantos os ouviram ficaram muito furiosos e concluíram que já<br />

haviam sofrido muito e que o rei devia morrer. Assim nasceram as hostilidades entre<br />

Vortigerne e aqueles, cujos parentes ele havia mandado matar.<br />

70


19<br />

Vortigerne teve a terra muito tempo e freqüentemente combateu contra os<br />

saxões, até que os expulsou da terra. Depois tornou-se tirano tal, que seu povo não<br />

pôde mais suportá-lo e revoltou-se contra ele. Temendo ser expulso do reino,<br />

Vortigerne enviou mensageiros aos saxões fazendo-lhes propostas de paz. Os<br />

saxões receberam com alegria essas propostas. Ora, entre eles, havia alguém mais<br />

valente, Anguis. Anguis havia servido muito tempo Vortigerne e, de certa feita,<br />

graças a ele, o rei havia vencido rebeldes. Terminada a guerra, Anguis havia<br />

confidenciado ao rei seus temores e dissera a Vortigerne que seus súditos o<br />

odiavam. Muito fez Anguis e afastou coisas que vos não devo dizer, apenas vos digo<br />

que fez tantas coisas boas para Vortigerne que conseguiu que ele se casasse com<br />

uma de suas filhas. E saibam todos aqueles que este conto ouvirem que foi ela<br />

quem, pela primeira vez, na Inglaterra disse: "Guersil!" Não devo demorar-me a falar<br />

de Anguis nem de outros assuntos, mas saibam que os cristãos ficaram muito irados<br />

quando viram que Vortigerne casou-se com sua filha. Falavam que Vortigerne havia<br />

renegado sua fé, ao esposar uma mulher que não era cristã. Vortigerne soube então<br />

que não era tão amado de seu povo; soube também que os filhos de Constando<br />

tinham ido para o estrangeiro, mas voltariam, logo que pudessem, com a firme<br />

71


intenção de lhe causar a ruína. Decidiu então construir uma torre tão alta e tão sólida<br />

que fosse inexpugnável. Mandou trazer pedra e tudo o mais para levantá-la. Depois<br />

de vinte dias ou três semanas de trabalho, a torre desmoronou. Sua construção foi<br />

reiniciada, mas outra vez desabou e assim por três vezes. Quando ele viu que sua<br />

torre não se mantinha, disse que nunca mais teria algum contentamento, enquanto<br />

não soubesse por que sua torre desabava. Reuniu então todos os sábios do reino e<br />

relatou-lhes o fenômeno maravilhoso dessa torre que caía e pediu-lhes conselho<br />

para remediar o mal. Depois de examinar os escombros da torre, os sábios disseram<br />

a Vortigerne:<br />

- Senhor, apenas os clérigos poderiam descobrir o que se passa aqui;<br />

quanto a nós, não vemos nada que possa explicar. Os clérigos conhecem mais a<br />

fundo os homens e sabem astrologia; apenas eles poderiam esclarecer . Podemos,<br />

de boa vontade, falar com eles e pedir que vos aconselhem. Falai com eles como<br />

rei, de modo que vos atendam.<br />

E o rei respondeu:<br />

- Não me pedirão nada que, se souberem me explicar, não lhes dê.<br />

72


20<br />

Reuniu então todos os clérigos de seu reino, contou-lhes o que se<br />

passara e pediu-lhes conselho. Os clérigos, por sua vez, mostraram-se<br />

maravilhados. Então o rei chamou à parte os mais sábios dentre eles e perguntou-<br />

lhes se sabiam algo daquela arte. Dois deles tomaram a dianteira e disseram:<br />

poderia saber.<br />

— Senhor, não sabemos nada de astrologia, mas há entre nós quem<br />

— Ide buscar vossos companheiros e vinde juntos falar comigo.<br />

Os clérigos consultaram-se à parte, para saber se algum deles praticava<br />

astrologia. Apresentaram-se dois que se acreditavam conhecedores para esclarecer<br />

o assunto.<br />

- Mas há outros aqui também capazes — acrescentaram esses.<br />

— Chamai-os então — disseram os demais.<br />

Tanto se organizaram, que se apresentaram sete. Cada um deles se<br />

imaginava mais sábio que o outro.<br />

Conduziram-nos então à presença do rei que lhes perguntou se poderiam<br />

explicar por que a torre desabava.<br />

— Sim — responderam eles —, é pelo impulso de um ser humano.<br />

73


— Se conseguirdes resolver, eu vos darei o que pedirdes — disse o rei.<br />

Então retirou-se o rei, enquanto os sete clérigos puseram-se a procurar<br />

por que a torre caía e como poderia ela manter-se. Eram muito conhecedores de<br />

astronomia e examinaram bem a questão. No entanto, quanto mais refletiam, menos<br />

explicação encontravam; ou melhor, não encontravam, senão uma resposta, mas<br />

sem ligação — parecia-lhes — com a construção da torre; e essa resposta os<br />

aterrorizava. O rei, em sua pressa, os convocou e disse-lhes:<br />

dias.<br />

dar a solução.<br />

que sabiam.<br />

— Senhores, por que demorais tanto em responder-me?<br />

— Senhor, o caso é penoso e convém que nos deis um prazo de nove<br />

— O prazo concordo em vos conceder, mas ao cabo dele, tereis que me<br />

— Sem dúvida, senhor.<br />

E retiraram-se para deliberar.<br />

— Senhores — diziam entre si —, o que pensais a respeito?<br />

— Não entendemos mais nada — diziam. E escondiam uns dos outros o<br />

Finalmente, o mais sábio deles tomou a palavra:<br />

— Senhores, eis o que é preciso fazer: cada um de vós, um por um, virá<br />

me dizer em segredo o que descobriu e eu não revelarei o que me disserem<br />

individualmente, senão com o acordo de todos.<br />

Esta proposição ganhou unanimidade. Ele recebeu então, à parte, um<br />

depois do outro colhendo seu depoimento. Ora, cada um, individualmente, disse-lhe<br />

a mesma coisa. Quanto à torre nada sabiam, mas viam outra maravilha: uma criança<br />

de sete anos concebida por uma mulher, mas que não tinha por pai um ser humano.<br />

74


Os seis clérigos repeliram a mesma coisa. Depois que ouviu os seis, o sétimo os<br />

reuniu a todos c disse-lhes:<br />

mesma coisa.<br />

— Senhores, dissestes todos a mesma coisa e todos escondestes a<br />

— Repeti então o que dissemos e revelai o que escondemos.<br />

— Dissestes que não sabeis o que fazer para manter a torre de pé, mas<br />

vistes um menino de sete anos concebido por uma mulher e que não tem por pai um<br />

ser humano. E não falastes mais nada, eu porém vos digo que todos vistes que<br />

deveríeis morrer por causa desse menino. Eu também vi tudo como vós. Eis pois o<br />

que me escondestes e é a respeito disso que devemos refletir, visto que estamos<br />

diante de nossa morte. Senhores, se confiardes em mim — e sabeis agora que vos<br />

digo a verdade — haveremos de saber como preservar nossas vidas.<br />

— Bem louco seria quem não cuidasse disso. Eis o que faremos: um<br />

acordo de dizermos todos a mesma coisa. Que a torre não pode manter-se de pé e<br />

não se sustentará nunca, se não se misturar na massa das fundações o sangue<br />

desse menino nascido sem pai. Se se conseguir o sangue e se ele for misturado na<br />

massa, a torre se sustentará e ficará para sempre intacta. Que cada um diga a<br />

mesma coisa ao rei, sem que ele perceba que combinamos. Desse modo,<br />

poderemos escapar da morte e nos livrar desse menino que, como vimos, deverá<br />

causar a nossa perda. Teremos que impedir também que o rei veja o menino. Será<br />

preciso que aqueles que forem procurá-lo o matem, assim que o encontrarem, e<br />

tragam seu sangue para o rei — os sete clérigos fecharam o acordo e voltaram ao<br />

rei.<br />

— Senhor — disseram —, não vos daremos a resposta juntamente, mas<br />

um depois do outro. Assim sabereis quem fala com mais sabedoria.<br />

75


Fingiram então que nada sabiam um do outro e foram, um de cada vez,<br />

falar ao rei e a cinco conselheiros que, muito maravilhados com suas revelações,<br />

concluíram finalmente que tudo aquilo podia muito bem ser verdade, se fosse<br />

possível existir um menino sem pai. O rei, maravilhado com a sabedoria dos<br />

clérigos, disse-lhes:<br />

pelos sete anos.<br />

procurar o menino.<br />

— Cada um de vós me disse separadamente a mesma coisa.<br />

— E o que, senhor? Repeti-o claramente.<br />

Repetiu então o rei, palavra por palavra, o que lhe haviam dito.<br />

— Senhor, se não dissemos a verdade, fazei de nós o que quiserdes.<br />

— Mas será possível? Como um homem pode não ter pai?<br />

— Nunca ouvimos falar de outro caso, mas esse é assim e o menino anda<br />

O rei então disse que os faria guardar cuidadosamente e mandaria<br />

— Senhor, de acordo, mas com a condição de que não o vereis nem o<br />

ouvireis. Ordenai que o matem e tragam seu sangue. Essa é a condição de vossa<br />

torre sustentar-se, no caso de dever sustentar-se.<br />

O rei mandou manter os clérigos numa fortaleza e dar-lhes tudo o de que<br />

precisassem; depois escolheu doze mensageiros e os enviou dois a dois por todas<br />

as partes do reino, não sem antes fazê-los jurar sobre as santas relíquias que aquele<br />

que encontrasse o menino o mataria e traria o seu sangue. E que não voltassem,<br />

enquanto não o tivessem encontrado.<br />

76


21<br />

Desse modo ordenou o rei Vortigerne a captura do menino e os<br />

mensageiros partiram dois a dois procuraram o menino por muitas e muitas regiões.<br />

Tanto procuraram que quatro deles o encontraram e decidiam ficar lá por algum<br />

tempo. Ora, um dia eles atravessaram um campo, à entrada da cidade, onde muitos<br />

meninos jogavam a pela. <strong>Merlim</strong>, que sabia todas as coisas, estava entre eles e,<br />

quando viu chegarem os que o procuravam, aproximou-se de um dos meninos mais<br />

ricos da cidade, que sabia que seria desagradável com ele, levantou seu bastão e o<br />

feriu na perna. O menino começou a chorar e a injuriar <strong>Merlim</strong> chamando-o de filho<br />

sem pai. Tão logo os mensageiros do rei ouviram isso, dirigiram-se os quatro ao<br />

menino e perguntaram-lhe quem lhe havia batido.<br />

teve pai.<br />

lhes:<br />

O menino respondeu:<br />

— O filho de uma mãe que nunca soube quem gerou seu filho, e nunca<br />

<strong>Merlim</strong>, que tudo acompanhava, dirigiu-se aos mensageiros rindo e disse-<br />

— Senhores, eu sou quem buscais, aquele a quem jurastes matar e cujo<br />

sangue jurastes levar ao rei Vortigerne<br />

77


Os mensageiros ficaram maravilhados e estupefatos.<br />

— Quem te disse isso? — perguntaram-lhe.<br />

— Eu o sei desde que vós jurastes.<br />

— Tu nos acompanharás, se te ordenarmos?<br />

— Senhores, eu teria medo de que tentásseis matar-me.<br />

Ele sabia muito bem que eles não tinham coragem para tanto, mas falava<br />

assim para melhor testá-los.<br />

— Se me derdes a garantia — prosseguiu — de que não me fareis<br />

nenhum mal, eu vos acompanharei e direi ao rei por que a torre não pode manter-se<br />

de pé, aquela torre para a qual quereis o meu sangue.<br />

— Este menino nos diz maravilhas — disseram —, e cometeríamos um<br />

grande erro matando-o. Mais vale que perjuremos.<br />

— Senhores — disse <strong>Merlim</strong> —, vinde comigo à casa de minha mãe,<br />

porque eu não poderia mesmo acompanhar-vos sem a permissão de minha mãe e<br />

do ermitão que mora na casa onde minha mãe está.<br />

— Iremos onde quiseres.<br />

<strong>Merlim</strong> conduziu então os mensageiros a um mosteiro de religiosas, onde<br />

havia feito entrar sua mãe.<br />

78


22<br />

Quando chegaram à casa, <strong>Merlim</strong> ordenou que recebessem muito bem<br />

os mensageiros. Assim que esses mensageiros puseram o pé no chão, <strong>Merlim</strong> os<br />

conduziu a Brás.<br />

— Brás — disse —, aqui estão aqueles que, como lhe havia predito,<br />

deveriam procurar-me para matar-me.<br />

Depois, virando-se aos mensageiros, acrescentou:<br />

— Senhores, peço-vos que conteis a este homem toda a verdade acerca<br />

do que vos perguntar e estai seguros de que, se mentirdes, eu saberei.<br />

— Não mentiremos nada, mas conta-lhe tu mesmo toda a estória tu que<br />

sabes falar melhor do que nós, e veremos se mentes.<br />

— Escute — disse <strong>Merlim</strong> a Brás — o que estes homens vão contar-lhe.<br />

Então disse a eles:<br />

— Senhores, pertenceis a um homem que se chama Vortigerne. Esse rei<br />

mandou construir uma torre que não se sustenta e, cada vez que é reconstruída, cai<br />

sem parar. O rei muito furioso mandou reunir os clérigos para ver se poderiam<br />

explicar-lhe a razão disso. Eles afirmaram que não saberiam como fazê-la sustentar-<br />

se. Depois consultaram os astros, mas não puderam saber por que ela caía. Em<br />

79


compensação, souberam que eu tinha nascido e concluíram que poderia prejudicá-<br />

los. Então combinaram matar-me, dizendo ao rei que sua torre se manteria de pé, se<br />

se encontrasse o sangue do menino nascido sem pai. Vortigerne ficou muito<br />

maravilhado com o que disseram, mas acreditou que era verdade. Então ordenou o<br />

rei a seus mensageiros que me procurassem, mas proibiu que me levassem a sua<br />

presença. Que me matassem logo que me tivessem encontrado e levassem o meu<br />

sangue para misturar na massa. Com essa condição, a torre se sustentaria de pé,<br />

afirmaram. Vortigerne escolheu então doze mensageiros e fez com que jurassem<br />

que me matariam, tão logo me encontrassem, e levariam meu sangue. Os<br />

mensageiros partiram dois a dois. Estes quatro que aqui estão me encontraram e eu<br />

me revelei a eles, brigando com um menino para que me chamasse de menino sem<br />

pai. E fiz isso para que me encontrassem, como de fato me encontraram. Agora,<br />

Brás, pergunta a eles se o que eu disse é verdade.<br />

À pergunta de Brás, os mensageiros disseram que, em verdade, tudo se<br />

passara como <strong>Merlim</strong> havia acabado de contar.<br />

— Se este menino viver, será um sábio — disse Brás persignando-se — e<br />

muito grande desgraça seria, se o tivésseis matado.<br />

— Senhor — disseram eles —, preferiríamos ser perjuros e ver nossos<br />

bens tomados pelo rei! Ele mesmo que tudo sabe saberá que não tínhamos a menor<br />

intenção de matá-lo.<br />

— Acredito — disse Brás —, mas quero perguntar-lhe isso e outra coisa<br />

na vossa frente, e vos maravilhareis com o que ele disser.<br />

disse-lhe:<br />

Chamou então <strong>Merlim</strong> que havia se afastado para os deixar à vontade e<br />

80


— Tudo o que contas te eles confirmaram e é verdade, agora pergunto de<br />

outra coisa que eles disseram: se tinham vontade de matar-te.<br />

<strong>Merlim</strong> riu e disse:<br />

— Sei bem, graças a Deus, que agora não têm vontade.<br />

Então disseram eles:<br />

— É verdade. Vireis então conosco?<br />

— Sim, se jurardes que me conduzireis ao rei e que não permitireis que<br />

sofra qualquer prejuízo até que esteja com ele e lhe fale. Só assim, depois de lhe ter<br />

falado, saberei que nada terei a temer.<br />

81


nesta empreitada.<br />

23<br />

Assim juraram eles, e Brás tomou a palavra e disse:<br />

— <strong>Merlim</strong>, agora vejo que queres me deixar. Dize-me o que devo fazer<br />

— Eu lhe darei a razão verdadeira do que me pergunta. Nosso Senhor,<br />

por direito e razão, deu-me tanto conhecimento e tal memória, que aquele que<br />

imaginava ter-me criado para si, perdeu-me, enquanto Nosso Senhor escolheu-me<br />

para realizar um trabalho seu, que não poderia ser feito, senão por mim, porque<br />

ninguém sabe as coisas que eu sei. Por isso sei que me convém ir à terra desses<br />

que vieram me buscar. E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser<br />

mais ouvido nesta terra, depois de Deus. E o senhor partirá para levar a cabo esta<br />

obra que começou, mas agora não virá comigo, antes irá procurar uma terra que tem<br />

por nome Nortumberlândia, uma terra cheia de muitas e grandes florestas e tão<br />

estranha às pessoas da própria região, que há partes onde ninguém nunca esteve.<br />

E lá viverá. Eu irei algumas vezes encontrá-lo e lhe ensinarei o que for necessário<br />

para fazer o que deve realizar. E terá muito trabalho, mas a recompensa será boa.<br />

Sabe qual? Eu lhe direi: em vida, o cumprimento dos desejos e, depois da morte, a<br />

alegria perdurável. E enquanto o mundo durar, sua obra será conhecida e ouvida<br />

82


com agrado. E sabe de onde lhe advirá tal graça? Virá da mesma graça que Nosso<br />

Senhor deu a José, aquele José a quem ele foi entregue ainda na cruz. E depois<br />

que tiver trabalhado bem por ele, por seus antepassados e por seus sucessores, e<br />

tiver feito tantas boas obras que mereça tornar-se seu companheiro, eu lhe ensinarei<br />

onde estão eles, e verá o glorioso pagamento que José recebeu pelo corpo de Jesus<br />

Cristo que lhe foi dado. Quero enfim que saiba, com mais segurança ainda, que<br />

Deus me deu conhecimento e memória tais que farei, em lodo o reino para onde<br />

vou, com que os homens bons e as boas mulheres trabalhem para a vinda daquele<br />

que deve nascer desta linhagem que Deus tanto ama. Mas quero que saiba ainda<br />

que esse trabalho não acontecerá senão no tempo do quarto rei, o rei desses<br />

tempos de grandes sofrimentos e que se chamará Artur. O senhor irá lá onde lhe<br />

disse. Eu irei freqüentemente vê-lo e lhe contarei todas as coisas que quero ver<br />

metidas no seu livro. E saiba que seu livro será muito amado e tido em grande<br />

estima por muita gente, ainda por quem nunca o tenha visto. E depois que o tiver<br />

terminado, o senhor o levará lá, onde vivem aqueles que receberam a gloriosa<br />

recompensa de que lhe falei. Entre eles, não haverá homem bom ou boa mulher,<br />

cujo nome o senhor deixe de consignar, em seu livro, nem alguma ação importante<br />

que tenham feito. Saiba igualmente que nunca a estória de uma vida será ouvida<br />

com tanto agrado, como a de Artur e a dos homens de seu tempo. E quando tiver<br />

acabado o livro e contado as vidas deles a todos, seu mérito será igual ao daqueles<br />

que vivem na companhia do santo vaso que se chama Graal, e seu livro, porque fala<br />

e falará deles e de mim, será para todo o sempre, depois de sua morte, chamado o<br />

Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer em escutá-lo, porque muito pouca<br />

coisa dele, de palavras ou ações contadas, deixará de ter proveito ou será letra<br />

morta.<br />

83


Isso falou <strong>Merlim</strong> a seu mestre Brás e desse modo ensinou-lhe o que<br />

devia fazer. E chamou-o mestre, porque havia sido o mestre e guia de sua mãe. E o<br />

homem bom, depois de ter ouvido isso, disse:<br />

— Nada me ordenarás que esteja a meu alcance, que eu não faça.<br />

<strong>Merlim</strong>, tendo ouvido estas palavras, voltou a seus mensageiros:<br />

— Senhores, acompanhai-me, e ouvireis minhas recomendações e<br />

minhas despedidas de minha mãe.<br />

Levou-os onde estava sua mãe e disse-lhe:<br />

— Mãe, estes homens vieram de região estranha e longínqua procurar-<br />

me, e quero ir com vossa permissão, porque agora me convém fazer, por Jesus<br />

Cristo, o serviço para o qual ele me deu poderes; e este serviço não posso fazer,<br />

senão indo para onde querem levar-me. Brás, vosso mestre, também partirá. É<br />

preciso pois separar-vos de nós dois.<br />

— Caro filho — disse a mãe —, eu te recomendo a Deus, porque não me<br />

atrevo a te reter. Mas se fosse do teu agrado, quereria muito que Brás ficasse.<br />

— Não é possível.<br />

Assim despediu-se <strong>Merlim</strong> de sua mãe e foi com os mensageiros. E Brás<br />

partiu em outra direção para Nortumberlândia, que é para onde <strong>Merlim</strong> o havia<br />

mandado.<br />

84


24<br />

A <strong>Merlim</strong> cavalgou com seus mensageiros e cavalgaram tanto, que<br />

passaram por uma cidade, e naquela cidade havia um mercado. À saída da cidade,<br />

viram um aldeão que havia comprado uma grande peça de couro para reparar seus<br />

sapatos que estavam estragados, porque queria ir em peregrinação. Quando se<br />

aproximaram mais do aldeão, <strong>Merlim</strong> riu. Os mensageiros que o levavam<br />

perguntaram-lhe por que rira, e ele respondeu:<br />

— Por causa do aldeão que estais vendo. Perguntai-lhe o que pretende<br />

fazer com este couro, e ele vos dirá que quer consertar os sapatos. E vós o<br />

seguireis, e eu vos digo que ele morrerá antes de chegar em casa.<br />

Ao ouvirem isso tomaram-no por grande maravilha e disseram:<br />

— Vamos experimentar para ver se é verdade. Então chegaram ao aldeão<br />

e perguntaram-lhe o que pretendia fazer aos sapatos com o couro que levava, e ele<br />

respondeu-lhe que ia consertá-los para ir em peregrinação. Tendo ouvido que ele<br />

respondera a mesma coisa que <strong>Merlim</strong> dissera, maravilharam-se e disseram a uma<br />

voz:<br />

85


— Mas esse homem parece estar em perfeita saúde. Dois de nós irão<br />

com ele, e dois seguirão o caminho e esperarão os outros dois onde ficarão para<br />

passar a noite, porque nos convém muito bem saber que maravilha é essa.<br />

Dois deles acompanharam o aldeão e não andaram mais de uma légua,<br />

que o viram cair morto no meio da estrada, com os sapatos embaixo do braço.<br />

Depois de assegurarem-se de que ele estava morto, voltaram a seus companheiros<br />

e contaram a maravilha que haviam visto. Estes, tendo ouvido a estória, disseram:<br />

sábio.<br />

— Muito loucos são os clérigos que nos mandaram matar homem tão<br />

E os outros disseram que prefeririam ser condenados ao suplício a matá-<br />

lo. Tudo isso disseram entre si, persuadidos de que <strong>Merlim</strong> não saberia, mas quando<br />

se viram diante de <strong>Merlim</strong>, ele agradeceu muito o que haviam dito.<br />

se e disseram:<br />

— O que dissemos que estais nos agradecendo?<br />

E ele repetiu as palavras que sabia que haviam dito. E eles maravilharam-<br />

— Não podemos falar nada que ele não saiba!<br />

86


25<br />

Continuaram cavalgando por muitas jornadas, até que chegaram ao reino<br />

de Vortigerne. Um dia, passaram por unia vila, onde se enterrava uma criança.<br />

Homens e mulheres acompanhavam o corpo com grandes manifestações de dor. Ao<br />

ver essa dor e os padres e os clérigos que cantavam e levavam o corpo com pressa<br />

a enterrar, <strong>Merlim</strong> começou a rir e parou. E aqueles que o levavam perguntaram-lhe<br />

porque ria, e ele respondeu:<br />

— Pela grande maravilha que vejo.<br />

Pediram-lhe que dissesse que maravilha era, e ele disse:<br />

— Estais vendo aquele homem que faz tal lamento?<br />

— Sim, muito bem.<br />

— E na frente, aquele clérigo que canta? Pois ele é que deveria lamentar-<br />

se no lugar do homem. Quero que saibais que o menino que está morto e pelo qual<br />

o homem chora é filho do clérigo que canta. O homem que não tem parentesco<br />

nenhum com o morto chora e aquele de quem ele é filho canta. No meu modo de<br />

ver, isso é uma grande maravilha!<br />

Então perguntaram-lhe os mensageiros:<br />

— Como o podemos saber?<br />

87


— Ide procurar a mãe, perguntai-lhe por que seu marido chora; ela vos<br />

dirá que é por seu filho que está morto. "Senhora — direis então —, sabemos tanto<br />

como vós de quem ele é filho: daquele clérigo que tanto cantou, e ele mesmo o sabe<br />

muito bem, pois ele mesmo vos indicou o tempo em que foi gerado."<br />

Os mensageiros, tendo ouvido o que <strong>Merlim</strong> dissera, apressaram-se em<br />

encontrar a mulher e repetiram-lhe as palavras de <strong>Merlim</strong>. Quando a mulher os<br />

ouviu, ficou muito maravilhada e disse:<br />

— Senhores, em nome de Deus, piedade! Bem vejo que nada vos posso<br />

esconder, antes vos revelarei a verdade, porque me pareceis homens muito<br />

prudentes. Tudo o que dizeis é verdade, mas, em nome de Deus, não digais nada a<br />

meu marido. Ele me mataria, se soubesse.<br />

Tendo ouvido tal maravilha, voltaram aos dois companheiros e repetiram<br />

a estória, e declararam entre si que nunca haviam visto no mundo melhor adivinho.<br />

88


Vortigerne.<br />

26<br />

Então cavalgaram tanto, que chegaram a uma jornada de onde estava<br />

— <strong>Merlim</strong> — disseram os mensageiros —, aconselha-nos, se te apraz,<br />

sobre o que devemos dizer ao senhor nosso. Podemos muito bem anunciar-lhe que<br />

te encontramos, mas tememos que se irrite por não te termos matado<br />

disse-lhes:<br />

Ao ouvir essas palavras, <strong>Merlim</strong> soube bem que queriam sua ajuda, e<br />

— Fazei como vos ensinarei e não sereis censurados. Ide a Vortigerne e<br />

dizei-lhe que me encontrastes e contai-lhe todas as provas que vos dei de meu<br />

talento de adivinho. Dizei-lhe também que eu lhe explicarei por que sua torre não se<br />

mantém de pé, com a condição de que condene os clérigos ao suplício que queriam<br />

reservar para mim. Em seguida, fazei sem medo o que ele ordenar.<br />

À noite, os mensageiros dirigiram-se a Vortigerne, que ficou muito feliz ao<br />

vê-los e perguntou-lhes:<br />

— Como cumpristes minha ordem?<br />

— Do melhor modo que pudemos.<br />

89


Então, chamaram o rei à parte e contaram tudo como havia se passado,<br />

como haviam encontrado <strong>Merlim</strong>, acrescentando que não teriam chegado a ele, se<br />

ele espontaneamente não tivesse se dirigido a eles.<br />

— De que <strong>Merlim</strong> estais falando? — disse o rei — Não deveríeis ter<br />

encontrado o menino sem pai e trazer-me seu sangue?<br />

— Senhor, esse menino sem pai é exatamente o <strong>Merlim</strong> de quem<br />

falamos. E sabei que é o melhor adivinho e o mais sábio que se possa encontrar<br />

neste mundo, salvo Deus. Ele mesmo nos disse que nos havíeis feito jurar matá-lo.<br />

Disse que os clérigos não sabem por que a torre desaba, mas ele vos mostrará a<br />

causa e vos fará vê-la com os próprios olhos. Ele nos disse muitas outras coisas<br />

mais extraordinárias ainda e nos enviou a vós para saber se quereis falar-lhe. Mas<br />

se quiserdes ainda, nós o mataremos lá onde está, pois ficaram com ele dois de<br />

nossos companheiros para guardá-lo.<br />

Disse o rei:<br />

— Se ousais garantir com vossas vidas que ele me mostrará por que a<br />

torre desaba, não quero que seja morto.<br />

— Nós vos garantimos.<br />

—Ide buscá-lo, que quero muito falar com ele.<br />

Então partiram os mensageiros, e o próprio rei cavalgou atrás deles.<br />

Quando <strong>Merlim</strong> viu os mensageiros, riu e disse:<br />

escolher.<br />

do rei.<br />

— Vós me garantistes com vossas vidas.<br />

— É verdade, preferimos arriscar nossas vidas a te matar. Tivemos que<br />

— Saberei vos proteger por essa escolha. Então cavalgaram ao encontro<br />

90


27<br />

Quando <strong>Merlim</strong> chegou perto de Vortigerne, saudou-o e disse-lhe:<br />

— Vortigerne, vinde à parte falar-me em segredo.<br />

E ele mesmo afastou-se também um pouco e chamou os mensageiros<br />

que o haviam escoltado e, estando iodos reunidos, disse:<br />

— Senhor, mandastes procurar-me por causa da torre que não pode<br />

manter-se de pé e ordenastes aos mensageiros que me matassem, ao encontrar-<br />

me. Isso por Conselho dos clérigos que diziam que a torre se manteria com o meu<br />

sangue, mas eles mentiram; se tivessem dito que ela se manteria pela minha<br />

ciência, então teriam dito a verdade. Se me jurardes que fareis a eles o que queriam<br />

que fizésseis a mim, eu mostrarei por que ela cai e vos ensinarei como se há de<br />

manter firme.<br />

quiseres.<br />

— Se me mostras aquilo em que te engajas, farei com os clérigos o que<br />

— Se eu mentir, por pouco que seja, retirai para sempre vossa confiança<br />

de mim. Façamos então virem os clérigos e eu lhes perguntarei por que a torre cai e<br />

vereis que não saberão dar a razão.<br />

91


Então o rei conduziu <strong>Merlim</strong> até o lugar onde a torre caiu e convocou os<br />

clérigos que foram à frente. Lá chegando, <strong>Merlim</strong> ordenou que um dos mensageiros<br />

lhes perguntasse por que a torre desabava.<br />

— Não sabemos por quê, mas ensinamos como poderia manter-se firme.<br />

— Vós me dissestes maravilhas — respondeu o rei —, porque me<br />

mandastes procurar um homem nascido sem pai. Ora, não imagino como seria<br />

possível encontrar tal criança!<br />

— Senhores clérigos — interveio <strong>Merlim</strong> — , vós tomais o rei por louco ao<br />

fazê-lo procurar um homem nascido sem pai, quando, na verdade, o que temíeis era<br />

morrer por causa dessa criança! Eis a razão pela qual fizestes o rei acreditar que<br />

sua torre se manteria, se ele matasse o menino e misturasse seu sangue na massa.<br />

Imaginastes que desse modo poderíeis vos livrar daquele que deve causar a vossa<br />

morte.<br />

Quando ouviram que aquele menino havia dito tal maravilha, que<br />

imaginavam ignorada por todos, ficaram completamente apavorados e<br />

compreenderam que não poderiam escapar da morte.<br />

E <strong>Merlim</strong> disse ao rei:<br />

— Senhor, agora podeis saber que estes clérigos não querem matar-me<br />

por vossa torre, mas pelo medo do que leram em sua sorte, que deviam morrer por<br />

mim. Interrogai-os vós mesmo, porque não serão tão ousados que mintam em minha<br />

presença.<br />

E o rei perguntou-lhes:<br />

— Diz ele a verdade?<br />

— Senhor, livre-nos Deus de nossos pecados, como ele diz a verdade,<br />

mas não atinamos como sabe tais maravilhas. Nós vos suplicamos, como ao senhor<br />

92


nosso, que nos deixeis viver o necessário para ver se ele diz a verdade: se a torre<br />

não se manterá por ele.<br />

Disse <strong>Merlim</strong>:<br />

— Não tenhais medo de morrer, enquanto não virdes por que a torre cai.<br />

E eles lhe agradeceram.<br />

93


28<br />

Então disse <strong>Merlim</strong> a Vortigerne:<br />

— Quereis saber por que a vossa obra cai, não pode manter-se e quem a<br />

derruba? Eu vos mostrarei e direi tudo muito claramente. Sabeis o que há embaixo<br />

desta terra? Um grande lençol de água e abaixo dele dois dragões cegos. Um ruivo<br />

e outro branco sobre os quais pesam duas enormes pedras. Eles são muito grandes<br />

e muito fortes e cada um sabe bem da existência do outro. Ora, quando aumenta o<br />

peso da água e da terra sobre eles, à medida que a torre se eleva, eles mexem e<br />

dispensam tal força que agitam o lençol d'água de cima deles e fazem cair as pedras<br />

que pesam sobre eles. E assim a torre desaba por causa desses dois dragões. Fazei<br />

examinar o solo embaixo e, se não achardes o que vos disse, fazei-me puxar por<br />

cavalos; mas se achardes, fiquem quites minhas garantias e os clérigos sejam<br />

culpados que nada sabiam do que vos disse.<br />

O rei respondeu:<br />

— Se for verdade o que me dizes, és o homem mais sábio do mundo.<br />

Agora ensina-me como fazer para retirar a terra.<br />

94


longe.<br />

— Com cavalos e carroças puxadas por homens que a levarão muito<br />

Em seguida, o rei pôs os homens ao trabalho. O empreendimento<br />

pareceu insensato às pessoas da terra, mas ninguém ousava dizer algo contra, por<br />

causa de Vortigerne. <strong>Merlim</strong> mandou que os clérigos fossem vigiados. De tal modo<br />

trabalharam para retirar a terra e por tanto tempo, que encontraram a água e a<br />

deixaram exposta. Fizeram então o rei saber que haviam encontrado a água. O rei<br />

veio muito alegre e trouxe <strong>Merlim</strong> para ver a maravilha. E quando olhou e viu que a<br />

água era muito profunda e enorme, chamou dois de seus conselheiros e disse-lhes:<br />

— Este homem sabe muitas coisas, ele sabia da existência desta água<br />

embaixo desta terra. E diz ainda que embaixo desta água há dois dragões. Custe o<br />

que custar, farei tudo o que ele disse até encontrar os dois dragões.<br />

dragões?<br />

campos.<br />

Chamando <strong>Merlim</strong> para perto de si, prosseguiu:<br />

— <strong>Merlim</strong>, falaste a verdade da água, acontecerá o mesmo com os<br />

— Sabereis quando os encontrarem.<br />

— Como poderemos tirar esta água?<br />

— Faremos com que corra em canais bem profundos, longe daqui, nos<br />

Então foi dada a ordem de cavar canais bem profundos e a água<br />

escorreu. E <strong>Merlim</strong> disse a Vortigerne:<br />

— Assim que os dois dragões que embaixo desta água estão perceberem<br />

que estão perto um do outro, eles combaterão e matarão um ao outro. Ordena então<br />

que venham aqui todos os homens bons da terra para ver a batalha, porque a<br />

batalha dos dois dragões será cheia de ensinamentos.<br />

95


O rei disse que faria de muito bom grado convocar os notáveis do reino,<br />

tanto clérigos como leigos. E quando chegaram e se reuniram, Vortigerne relatou-<br />

lhes as maravilhas que <strong>Merlim</strong> havia dito e anunciou-lhes a batalha dos dois<br />

dragões. Então diziam entre si os que isto ouviram:<br />

— Será muito bom ver isto.<br />

E perguntaram se <strong>Merlim</strong> havia dito qual dos dois ganharia. A que o rei<br />

respondeu que não havia dito ainda.<br />

96


29<br />

Depois que a água correu toda, viram as duas pedras que estavam no<br />

fundo da água. Quando <strong>Merlim</strong> as viu, disse:<br />

— Estais vendo estas duas pedras? E o rei respondeu:<br />

- Sim.<br />

— Sob estas duas pedras estão os dois dragões.<br />

— E como fazer para que saiam de lá?<br />

- Muito simples. Eles não mexerão antes de sentir a proximidade um do<br />

outro. Assim que perceberem que estão perto um do outro, combaterão até que um<br />

morra.<br />

— Poderias dizer-me qual dos dois?<br />

— O combate e seu desfecho estão cheios de significados. Eu ensinarei o<br />

que posso revelar-vos, mas em conselho, na presença de dois dos vossos amigos.<br />

Então Vortigerne chamou quatro dos homens de seu reino em que mais<br />

confiava e repetiu-lhes as palavras de <strong>Merlim</strong>. Eles o aconselharam a perguntar-lhe<br />

em segredo qual dos dois seria o vencido e que lhe dissesse antes que batalha<br />

acontecesse.<br />

97


— Tendes razão — disse Vortigerne —, porque depois da batalha ele<br />

poderia contar o que quisesse.<br />

Então chamaram <strong>Merlim</strong> e Vortigerne pediu-lhe que dissesse qual dos<br />

dois dragões seria o vencido.<br />

<strong>Merlim</strong>.<br />

— Estes quatro homens são membros do vosso conselho? — perguntou<br />

— Sim — disse o rei —, mais do que quaisquer outros.<br />

— Então posso perfeitamente dizer-vos em presença deles o que me<br />

perguntais. Quero que saibais que o branco matará o ruivo. Seu triunfo será difícil,<br />

mas cheio de significado. Quem o vir saberá; não vos posso dizer mais nada até que<br />

acabe a batalha.<br />

O povo reuniu-se e foi ver a estória. As pedras foram tiradas e apareceu o<br />

dragão branco. Quando as pessoas viram que era tão grande, tão violento e<br />

hediondo, tiveram tal pavor, que recuaram. Depois dirigiram-se para o outro e o<br />

viram sair. Ficaram ainda mais espantadas do que antes, porque era muito mais<br />

violento, muito mais forte e muito mais hediondo e provocava maior pavor; tanto que<br />

Vortigerne foi de opinião que este deveria vencer o outro.<br />

E <strong>Merlim</strong> disse ao rei:<br />

— Vortigerne, estão quites as minhas promessas?<br />

- Sim.<br />

Entrementes, os dois dragões chegaram tão perto um do outro que se<br />

cheiraram. Imediatamente lançaram-se um sobre o outro aos golpes e às dentadas.<br />

Nunca se ouviu falar de dois animais que se combatessem com tanta ferocidade<br />

toda a noite e no dia seguinte até meio-dia. E todas as pessoas que viam cuidavam<br />

que o ruivo mataria o branco, mas de repente jorrou fogo das narinas do branco e<br />

98


assim ardeu o ruivo. Depois que ele morreu, o branco afastou-se e deitou e não<br />

viveu depois senão três dias. E quantos viram tal maravilha diziam que nunca<br />

maravilha tal haviam visto.<br />

mais.<br />

Então disse <strong>Merlim</strong> a Vortigerne:<br />

— Agora podeis fazer tão alta quanto quiseres a torre, que não desabará<br />

Vortigerne convocou então os operários e mandou construir a torre mais<br />

alta e mais sólida possível. Repetidas vezes perguntou ele a <strong>Merlim</strong> o que<br />

significavam os dois dragões e como o branco havia podido finalmente derrotar o<br />

ruivo que durante todo o tempo levava a melhor.<br />

— O que há nisso de ensinamento diz respeito tanto às coisas passadas<br />

com às que hão de vir. Se me derdes a garantia de que, revelando a verdade, não<br />

me fareis mal algum e nem permitireis que me façam, explicarei o que aquilo<br />

significa e o farei diante dos membros mais respeitáveis de vosso conselho.<br />

Depois que Vortigerne prometeu que dava-lhe todas as garantias que<br />

queria, <strong>Merlim</strong> acrescentou:<br />

— Ide reunir vosso conselho e mandai virem os clérigos que leram sua<br />

sorte sobre a torre e quiseram matar-me.<br />

Isso fez imediatamente Vortigerne e, quando todos se reuniram, tanto os<br />

conselheiros como os clérigos, <strong>Merlim</strong> disse a estes:<br />

— Senhores, cometestes grande loucura imaginando que poderíeis<br />

trabalhar com astrologia, não sendo virtuosos e justos como deveríeis. Exatamente<br />

porque sois cheios de vícios, fracassastes em vosso empreendimento. Vossa ciência<br />

não vos permitiu ler nos astros o que Vortigerne vos pedia, porque não éreis dignos.<br />

Mas vos foi mais fácil ler que eu havia nascido. Aquele que vos revelou minha<br />

99


existência e pretendeu que devíeis morrer por minha causa, o fez pela raiva de me<br />

haver perdido. Ele gostaria muito que tivésseis conseguido matar-me! Mas eu tenho<br />

um senhor tão poderoso, que saberá muito bem preservar-me, se esta for sua<br />

vontade, das intrigas do diabo, cujas imposturas tornarei claras, e nada farei para<br />

vos matar, se me prometerdes o que vos pedirei.<br />

Muito aliviados ao tomarem conhecimento de que escapariam da morte,<br />

os clérigos responderam a <strong>Merlim</strong>:<br />

— <strong>Merlim</strong>, faremos o que pedires, se pudermos, porque sabemos bem<br />

que és o homem mais sábio do mundo.<br />

— Eis então o que me prometestes: renunciar à prática de vossa arte,<br />

confessar que a ela vos dedicastes e submeter-vos a uma penitência tal, que vossas<br />

almas não sejam condenadas. Se vos comprometerdes agir desse modo, eu vos<br />

deixarei partir.<br />

pedido.<br />

Os clérigos agradeceram e prometeram fazer tudo o que ele lhes havia<br />

100


30<br />

Foi assim que <strong>Merlim</strong> poupou os clérigos, e quantos viram como ele havia<br />

se comportado ficaram muito agradecidos.<br />

Vortigerne e seu conselho aproximaram-se de <strong>Merlim</strong>.<br />

— <strong>Merlim</strong> — disse o rei —, deves contar o significado dos dois dragões.<br />

De fato, até agora, tudo o que disseste verificou-se e eu te considero o mais sábio<br />

dos homens do mundo. Peço-te então que me digas o que significam os dois<br />

monstros.<br />

— Vortigerne, o ruivo sois vós; e o branco, o filho de Constando.<br />

Tal resposta encheu Vortigerne de vergonha.<br />

— Vortigerne — prosseguiu <strong>Merlim</strong>, que percebera a perturbação do rei<br />

—, se quiserdes, eu paro por aqui; não insistais, peço-vos.<br />

— <strong>Merlim</strong>, todos os homens que estão presentes aqui fazem parte do<br />

meu conselho. Desejo pois que prossigas até o fim, que me digas, sem disfarce, o<br />

significado dos dois dragões.<br />

— O dragão ruivo sois vós e digo-vos por quê. Como sabeis, os filhos de<br />

Constando ficaram sem pai e eram muito pequenos por ocasião da morte de seu<br />

irmão. Como sabeis igualmente, se vos houvésseis comportado como deveríeis, os<br />

101


teríeis ajudado, aconselhado e defendido contra todo o mundo, mas sabeis também<br />

que vos prevalecestes da riqueza e da terra de seus homens para conseguir a<br />

amizade das pessoas neste reino. Quando percebestes que tínheis chegado a este<br />

ponto, vos afastastes, sabendo que logo teriam necessidade de vós. Mais tarde,<br />

quando vieram vos procurar para dizer que o rei Moines não poderia cumprir seu<br />

papel de rei, respondestes perfidamente que não poderíeis ser rei, enquanto ele<br />

vivesse. Foi aí que a vossa palavra vos traiu. Aqueles a quem vos confiastes<br />

compreenderam que lhes pedias que matassem Moines. Foi o que fizeram. Em<br />

seguida, os dois meninos que ficaram tiveram medo e fugiram para o exílio. Vós vos<br />

tornastes rei a ainda estais de posse da terra deles. E quando os que mataram<br />

Moines apresentaram-se diante de vós, fizestes matá-los para dar a entender que<br />

aquele assassinato não vos afetava. Mas isto não enganou ninguém, porque vos<br />

apoderastes de sua terra e a mantendes ainda. E esta torre, a mandastes fazer para<br />

vos proteger de vossos inimigos, mas a torre não vos pode proteger, pois vós<br />

mesmo não vos protegereis.<br />

Vortigerne, que bem ouvira o que <strong>Merlim</strong> havia dito e sabia muito bem que<br />

era tudo verdade, disse:<br />

— Sei muito bem que és o homem mais sábio do mundo. Peço-te que me<br />

aconselhes contra estas coisas e me digas de que morte cuidas que morrerei.<br />

— Se não vos disser de que morte morrereis, também não direi o que<br />

significam os dois dragões.<br />

E ele suplicou que dissesse sem ocultar o que quer que fosse, porque de<br />

bom grado o queria saber.<br />

— O dragão ruivo que era muito grande e violento sois vós com vossas<br />

más intenções. A força dele significa o vosso poder. O outro, o branco, representa os<br />

102


dois jovens herdeiros que fugiram por vossa causa. O longo combate representa o<br />

reino de que fostes tanto tempo senhor. Que o dragão branco enfim tenha queimado<br />

o ruivo significa que os dois meninos vos farão queimar. E não penseis que, graças<br />

à torre, podereis escapar de vosso destino.<br />

— Mas, <strong>Merlim</strong> — perguntou Vortigerne cheio de angústia e de pavor —,<br />

onde estão esses dois meninos?<br />

— Estão no mar. Embarcaram com muita gente em suas naves e estão a<br />

caminho para vingarem-se de vós. Dizem e com justiça que matastes seu irmão e<br />

eles, por sua vez, vos matarão. Sabei que chegarão, de hoje a três meses, ao porto<br />

de Vincestre.<br />

Vortigerne ficou muito angustiado com estas novas e com saber que essa<br />

gente vinha. Então perguntou a <strong>Merlim</strong>:<br />

— Pode ser diferente?<br />

— De modo algum. Nada pode impedir que morras queimado pelos filhos<br />

de Constando, do mesmo modo como vistes o dragão branco queimar o ruivo.<br />

Foi assim que <strong>Merlim</strong> contou a Vortigerne o significado dos dois dragões.<br />

103


31<br />

Vortigerne soube que os filhos de Constando vinham com muita gente.<br />

Então convocou seus homens para a data que <strong>Merlim</strong> havia anunciado, ordenando<br />

que fossem em direção ao mar, e assim os conduziu a Vincestre, onde eles<br />

deveriam chegar. E quando estavam todos reunidos, ninguém sabia por quê, salvo<br />

aqueles que haviam estado no conselho com <strong>Merlim</strong>.<br />

<strong>Merlim</strong> não estava ali, porque tão logo disse ao rei por que sua torre caía<br />

e contou o significado dos dragões, despediu-se e partiu dizendo que havia feito<br />

muito bem aquilo pelo que viera. Dirigiu-se a Nortumberlândia para encontrar-se com<br />

Brás e contou-lhe as coisas e Brás as meteu em seu livro e, por seu livro, as<br />

sabemos nós ainda hoje. Lá esteve <strong>Merlim</strong> tanto tempo, que os filhos de Constando<br />

mandaram procurá-lo.<br />

Vortigerne porem estava no porto com todos os seus e esperava o dia<br />

marcado por <strong>Merlim</strong>. Efetivamente, ao cabo de três meses, os habitantes de<br />

Vincestre viram aproximar-se, vindos do mar, numerosos navios carregados de<br />

tropas dos filhos de Constando. Logo Vortigerne deu ordem a seus homens de<br />

armarem-se e defenderem o porto. Mas quando os filhos de Constando<br />

aproximaram-se da praia, os que estavam na terra viram as bandeiras reais de<br />

104


Constando e maravilharam-se. Assim que o primeiro navio encostou, perguntaram<br />

logo a seus ocupantes de quem eram as naus e que estória era essa. Eles<br />

responderam:<br />

— De Pendragão e de seu irmão Uter, os dois filhos de Constando que<br />

voltaram para tomar posse de seu reino que Vortigerne, o traidor, ocupa há muito<br />

tempo. E mandou matar o irmão deles, por isso estão vindo vingar sua morte.<br />

Quando os homens da praia souberam que estavam diante dos filhos de<br />

seu senhor legítimo e viram que traziam tão grande efetivo que a batalha poderia<br />

virar em seu prejuízo, foram dizê-lo a Vortigerne.<br />

Logo o rei compreendeu que a maior parte de seus homens o<br />

abandonaria e já havia escolhido o lado de Pendragão, ficou com medo e ordenou<br />

às tropas que não poderiam traí-lo que pusessem a fortaleza em estado de defesa.<br />

E fizeram o melhor que puderam. E as naus chegaram. À medida que aportavam,<br />

saíam delas os cavaleiros armados e toda a outra gente, dirigindo-se para a<br />

fortaleza. E as pessoas que viram os filhos de seu senhor aproximarem-se<br />

receberam-nos como seu senhor. Os que estavam com Vortigerne ficaram na<br />

fortaleza e a defenderam, mas os atacantes davam golpes muito violentos.<br />

Pendragão pôs fogo na fortaleza e nesse fogo ardeu Vortigerne.<br />

Desse modo retomaram os filhos a terra e fizeram saber a toda a região e<br />

a todo o reino que estavam de volta. Com essa nova, tiveram todos muita alegria e<br />

vieram todos a seu encontro e os receberam como seus senhores. Assim retomaram<br />

os dois irmãos a herança e fizeram rei Pendragão. Ele foi muito bom e leal.<br />

Os saxões que Vortigerne havia atraído para o reino haviam se<br />

apoderado da maior parte das fortalezas, de onde atacavam sem trégua o novo rei e<br />

os cristãos. A guerra prosseguia com altos e baixos para os dois lados, até que<br />

105


Pendragão veio cercar a fortaleza de Anguis. O cerco durava mais de um ano,<br />

quando Pendragão fez um conselho para decidir qual o melhor modo de tomar a<br />

fortaleza. Ora, havia lá homens que haviam participado do conselho em que <strong>Merlim</strong><br />

havia desvendado para Vortigerne o significado dos dragões, a estória dos filhos de<br />

Constâncio e a morte do usurpador. Fizeram chamar Pendragão e Uter, seu irmão, à<br />

parte, e contaram a eles as maravilhas que anunciara <strong>Merlim</strong>, assegurando ao rei<br />

que ele era o mais sábio de todos os adivinhos e que, se ele quisesse, poderia dizer<br />

como a fortaleza seria tomada.<br />

Depois que Pendragão ouviu, maravilhou-se e disse:<br />

— Onde poderia encontrar tão bom adivinho?<br />

— Isso não sabemos, mas temos certeza de que falamos com ele e de<br />

que ele está em alguma parte deste reino. E se ele quiser vir aqui, virá.<br />

E Pendragão disse:<br />

— Se ele está neste reino, eu o encontrarei facilmente.<br />

Então convocou mensageiros e os enviou por toda a parte do reino.<br />

106


32<br />

<strong>Merlim</strong>, que soube que o rei o mandara procurar com muita pressa,<br />

depois que falou com Brás, dirigiu-se para uma cidade, onde sabia que estavam os<br />

mensageiros que o procuravam. Veio sob a aparência de um lenhador, com um<br />

machado ao ombro, as pernas enfiadas em grandes botas de couro, vestido de uma<br />

túnica muito rasgada, cabelos desgrenhados e uma barba hirsuta, mais parecendo<br />

um selvagem. Assim chegou a uma casa onde estavam os mensageiros. Quando o<br />

viram, examinaram-no maravilhados e disseram um ao outro:<br />

— Este mal parece um homem. Ele avançou e disse-lhes:<br />

— Senhores, não estais cumprindo a contento a tarefa que vos deu vosso<br />

senhor de procurar um adivinho que tem por nome <strong>Merlim</strong>.<br />

Ao ouvirem isso, um disse ao outro:<br />

— Que diabo terá dito isso a este vilão que se intromete no que fazemos?<br />

— Se eu estivesse a procurá-lo como vós, já o teria achado.<br />

Então cercaram-no todos e perguntaram-lhe se sabia dele e o havia visto.<br />

— Ver, eu o vi e conheço sua aparência; ele sabe que o procurais, mas<br />

não o encontrareis nunca, se ele não quiser. E isso me ordenou ele que vos<br />

107


dissesse, que por nada vos esforceis por encontrá-lo, porque se o encontrardes, não<br />

irá nunca convosco. E dizei àqueles que falaram a vosso senhor que o bom adivinho<br />

está neste reino, e que eles falaram a verdade. E quando encontrardes vosso<br />

senhor, dizei-lhe que não tomará aquela fortaleza que mantém cercada, enquanto<br />

Anguis não morrer. E sabei que aqueles que vos disseram que procurásseis <strong>Merlim</strong><br />

eram cinco em todo o exército e não haverá senão três quando voltardes. A esses<br />

três e a vosso senhor dizei que, se vierem a esta região e entrarem nesta floresta,<br />

encontrarão <strong>Merlim</strong>, mas se eles mesmos não vierem, não haverá quem o encontre.<br />

Foi assim que todos entenderam a mensagem que ele disse. E virou-se e,<br />

ao virar-se, desapareceu e o perderam. Então persignaram e disseram:<br />

— Falamos com o diabo. O que fazemos com o que nos disse?<br />

E depois que entraram em acordo, acrescentaram:<br />

— Vamos voltar para junto de nosso mestre e daqueles que nos<br />

confiaram esta missão e relatar a eles essa maravilha. Vamos conferir também se os<br />

dois conselheiros morreram.<br />

perguntou-lhes:<br />

Cavalgaram até onde se encontrava o rei. E quando o rei os viu,<br />

— Encontrastes aquele que fostes procurar?<br />

—Senhor, vamos vos explicar o que nos aconteceu, mas reuni<br />

primeiramente vosso conselho e convocai aqueles que vos informaram a respeito do<br />

adivinho.<br />

E o rei os mandou chamar e, quando chegaram, reuniram-se num lugar à<br />

parte e os mensageiros relataram a maravilhosa aventura e todas as coisas que o<br />

lenhador Ihes havia dito e que dois daqueles cinco conselheiros de Vortigerne<br />

estariam mortos. Então perguntaram deles e souberam que, de fato, tinham morrido.<br />

108


E depois que ouviram como <strong>Merlim</strong> os havia ensinado a buscar, maravilharam-se<br />

todos muito de que homem tão feio, tão velho e tão hediondo como aquele de quem<br />

falavam pudesse ser <strong>Merlim</strong>; mas não sabiam que <strong>Merlim</strong> podia assumir outra<br />

aparência diferente da sua, mas ao mesmo tempo estavam certos de que ninguém<br />

podia dizer aquelas coisas, senão ele mesmo. Então disseram ao rei:<br />

— Cuidamos bem que tenha sido o próprio <strong>Merlim</strong> quem falou a vossos<br />

mensageiros, porque ninguém, senão ele, poderia saber da morte daqueles dois. E<br />

ninguém poderia predizer a morte de Anguis, senão <strong>Merlim</strong>.<br />

Então perguntaram aos mensageiros:<br />

— Em que cidade encontrastes esse homem de quem nos falastes?<br />

— Em Nortumberlândia. E foi ele que veio à nossa hospedagem.<br />

Concordaram então todos que era <strong>Merlim</strong> e disseram que queriam que o<br />

próprio rei fosse procurá-lo. E o rei disse que confiava o trono a seu irmão Uter e iria<br />

a Nortumberlândia procurar naquela floresta aquele de quem falavam.<br />

109


33<br />

O rei pôs-se a caminho e chegou a Nortumberlândia e perguntou se<br />

alguém sabia novas do lenhador, mas não achou quem soubesse. Então decidiu<br />

procurá-lo na floresta. Depois de percorrê-la em todos os sentidos, um de seus<br />

companheiros viu um rebanho de animais guardado por um homem muito feio e<br />

muito disforme. E perguntou ao homem quem era. O homem respondeu que era de<br />

Nortumberlândia e estava a serviço de seu senhor.<br />

— Tens alguma notícia de <strong>Merlim</strong>?<br />

— Não, mas vi ontem um homem que me disse que o rei viria procurá-lo<br />

hoje nesta floresta. Ele veio? Sabes algo a respeito?<br />

— É verdade que o rei o procura. Saberias ensinar como encontrá-lo?<br />

— Isto direi apenas ao rei; a ti nada mais direi.<br />

— Posso levá-lo ao rei.<br />

— Meus animais ficariam mal guardados, e eu não preciso dele. Que ele<br />

venha a mim, então direi como encontrar aquele que ele procura.<br />

— Vou buscá-lo.<br />

O homem deixou o pastor e foi à procura do rei e contou-lhe o que se<br />

passara. O rei disse-lhe:<br />

110


— Leva-me até ele.<br />

Então levou-o lá onde havia encontrado o homem, e disse:<br />

— Vês aqui o rei que trouxe comigo. Fala com ele como prometeste.<br />

— Senhor — disse ao rei o pastor —, sei bem que procurais <strong>Merlim</strong>, mas<br />

não podereis encontrá-lo, se ele não quiser. Ide então a uma de vossas cidades e<br />

ele irá vos encontrar, assim que souber que o esperais.<br />

— E como saberei que isto é verdade?<br />

— Se não acreditais em mim, não leveis em conta o que digo, porque e<br />

loucura dar fé a mau conselho.<br />

— É mau o conselho que me dás?<br />

— Não! Isto vós o estais dizendo. Sabei que o conselho que vos dou vale<br />

mais do que podeis imaginar.<br />

— Acreditarei nele.<br />

O rei foi à cidade mais próxima da floresta, o mais depressa que pôde. E<br />

depois que estava lá, chegou um dia a sua hospedagem um homem muito bem<br />

vestido, muito bem calçado e de boa aparência e disse a um cavaleiro:<br />

— Leva-me perante o rei.<br />

E o cavaleiro levou-o. Quando chegou diante do rei, disse:<br />

— Senhor, <strong>Merlim</strong> envia-me a vós e quer que saibais que foi a ele que<br />

vistes guardando um rebanho na floresta e que foi ele que vos disse que viria vos<br />

falar. E ele disse a verdade. Mas por enquanto não tendes necessidade dele, se<br />

tivésseis, ele viria de bom grado.<br />

— Eu sempre preciso dele — replicou o rei — , e não há ninguém no<br />

mundo que eu queira tanto conhecer.<br />

111


— Pois que dizeis isto, ele vos manda por minha boca a boa nova de que<br />

Anguis está morto, e Uter, vosso irmão, o matou.<br />

Ao ouvir isso, o rei maravilhou-se muito e disse:<br />

— Quero muito que seja verdade o que me dizes.<br />

— Nada mais mandou-me dizer-vos, mas sois louco em duvidar de suas<br />

palavras, antes de procurar verificar se é fato.<br />

— Tens razão.<br />

Escolheu o rei dois mensageiros, deu-lhes as melhores montarias de que<br />

dispunha e ordenou-lhes que fossem o mais depressa possível saber se era verdade<br />

a notícia da morte de Anguis. Os mensageiros apressaram-se e, depois que<br />

cavalgaram uma noite e um dia, encontraram os homens de Uter que vinham trazer<br />

ao rei a notícia da morte de Anguis. Ao se encontrarem, trocaram as informações e<br />

voltaram ao rei. E o homem que tinha vindo, da parte de <strong>Merlim</strong>, falar ao rei<br />

Pendragão partiu. Os mensageiros contaram privadamente ao rei como Uter havia<br />

matado Anguis. E o rei proibiu-lhes de revelar essa nova e ficou por lá e muito se<br />

maravilhava de como <strong>Merlim</strong> sabia da morte de Anguis.<br />

112


34<br />

Permaneceu Pendragão na cidade, esperando a volta do adivinho e<br />

imaginando perguntar-lhe, assim que ele aparecesse, em que circunstâncias Anguis<br />

havia sido morto, o que pouca gente sabia até então. Ora, um dia, estando o rei de<br />

volta do mosteiro, um homem belo, bem vestido e de aparência muito respeitável<br />

aproximou-se dele, saudou-o e disse-lhe:<br />

— Senhor, o que esperais nesta cidade?<br />

— Espero que <strong>Merlim</strong> venha falar comigo.<br />

— Senhor, não sois ainda muito sábio para reconhecê-lo, quando vos<br />

fala. Mandai chamar aqueles conselheiros que o conhecem e perguntai-lhes se eu<br />

posso ser esse <strong>Merlim</strong>.<br />

O rei maravilhou-se muito, mandou chamar os conselheiros e disse-lhes:<br />

— Senhores, estamos aqui à espera de <strong>Merlim</strong>, mas, que eu saiba,<br />

ninguém aqui o conhece. Dizei-me se vós serieis capazes de identificá-lo.<br />

— Sem dúvida, senhor, se o virmos o reconheceremos.<br />

— Senhor — interveio o homem que estava diante do rei —, como pode<br />

reconhecer outrem aquele que não conhece a si mesmo?<br />

113


— Não estamos dizendo que o conhecemos em seus segredos —<br />

disseram os três —, mas conhecemos bem sua aparência e, se o virmos, o<br />

reconheceremos.<br />

isto vos provarei.<br />

— Não conhece bem uma pessoa quem não reconhece sua aparência. E<br />

Então chamou o rei a uma câmara a sós e disse-lhe:<br />

— Senhor, quero muito bem estar do vosso lado e de Uter, vosso irmão, e<br />

sabei que sou <strong>Merlim</strong>, a quem viestes procurar. Mas estas pessoas que imaginam<br />

conhecer-me não sabem nada de mim, como vou provar. Fazei-os entrar; assim que<br />

me virem, dirão que me encontrastes. E se eu quisesse, nunca saberiam identificar-<br />

me.<br />

Ouvindo isto, o rei ficou muito alegre e disse:<br />

— Farei tudo o que quiserdes.<br />

Voltou à sala e chamou aqueles que imaginavam conhecer <strong>Merlim</strong>. E<br />

quando vieram, <strong>Merlim</strong> já havia assumido a aparência que tinha quando o haviam<br />

visto.<br />

E ao vê-lo, disseram ao rei:<br />

— Senhor, este e <strong>Merlim</strong>.<br />

Ao ouvir isso, o rei riu e disse:<br />

— Olhai bem se o conheceis.<br />

— Sabemos com certeza que é <strong>Merlim</strong>. Então disse <strong>Merlim</strong>:<br />

— Estão falando a verdade. Agora dizei-me o que quereis.<br />

— Queria pedir-vos, se fosse possível, que pudesse merecer vossa<br />

amizade e que mantivéssemos contatos contínuos, porque pessoas dignas de fé<br />

disseram-me quanto sois sábio e bom conselheiro.<br />

114


— Senhor, todos os conselhos que me pedirdes eu vos darei, se puder.<br />

— Quero saber também, se for do vosso agrado, se já conversamos<br />

desde que vim procurar-vos por esta região.<br />

— Senhor, eu sou aquele que encontrastes guardando um gado.<br />

Quando ouviram isso, o rei e aqueles que com ele estavam maravilharam-<br />

se muito e o rei disse aos conselheiros:<br />

— Conheceis muito mal <strong>Merlim</strong>, porque não o reconhecestes quando<br />

apresentou-se diante de vós.<br />

— Senhor, nós nunca o vimos fazer tal coisa, mas estamos convencidos<br />

de que ele é capaz de fazer e de dizer o que nenhum ser humano poderia.<br />

115


Então perguntou o rei a <strong>Merlim</strong>:<br />

35<br />

— Como soubeste da morte de Anguis?<br />

— Senhor, soube, quando já estáveis aqui, que Anguis queria matar<br />

vosso irmão e fui preveni-lo. Graças a Deus, ele confiou em mim e tomou cuidado.<br />

Contei-lhe a ousadia do inimigo e sua determinação. De fato, Anguis contava vir só,<br />

à noite, para matá-lo. Nesse último ponto, vosso irmão não acreditou. Entretanto,<br />

passou toda a noite só, acordado e armado, porque nada disse a ninguém, e<br />

esperou a chegada de Anguis. Anguis penetrou na tenda e procurou vosso irmão<br />

onde imaginava encontrá-lo, mas em vão. E quando ia sair, vosso irmão lançou-se<br />

sobre ele e o matou. O combate não durou muito, porque Anguis estava desarmado,<br />

ele não tinha vindo, senão para matar vosso irmão durante o sono e fugir, em<br />

seguida.<br />

— <strong>Merlim</strong> — disse Pendragão maravilhado —, sob que aparência falastes<br />

com meu irmão? Estou admirado de que ele tenha acreditado no que dissestes.<br />

— Eu tinha assumido a aparência de um velho de cabelos brancos. Falei-<br />

lhe em segredo, e disse que ele podia esperar a morte naquela noite, se não<br />

tomasse cuidado.<br />

116


— E dissestes quem éreis?<br />

— Ele ainda não sabe quem lhe falou e não saberá até que lhe conteis.<br />

Foi por isso que vos fiz saber pelo mensageiro que não tomaríeis a fortaleza, antes<br />

da morte de Anguis.<br />

— Caro amigo, vireis comigo? Tenho grande necessidade de vosso<br />

conselho e de vossa ajuda.<br />

— Senhor, quanto mais estiver convosco, mais vossos homens terão<br />

ciúmes da confiança que me testemunhareis! Mas se achardes que minha presença<br />

vos pode ser útil e se fordes prudente, tereis confiança em mim, apesar deles. Assim<br />

vos ajudarei a levar a bom cabo a vossa missão e a vencer os obstáculos.<br />

— <strong>Merlim</strong>, tanto já dissestes e tanto já fizestes em meu benefício e<br />

sobretudo salvastes meu irmão da morte, como dissestes, que não devo jamais<br />

duvidar de vós.<br />

— Senhor, ireis encontrar vosso irmão e perguntareis a ele quem lhe<br />

disse o que eu acabei de vos contar e, se ele vos souber dizer quem foi, retirai para<br />

sempre vossa confiança de mim. Sabei além disso que, quando quiser que me<br />

reconheçais, irei a vosso irmão sob a aparência que tinha quando lhe predisse a<br />

morte de Anguis.<br />

irmão.<br />

— Por Deus — disse o rei —, dizei-me desde já quando falareis com meu<br />

— Sabereis facilmente, mas tomai cuidado, se tendes apego à vida, de o<br />

não dizer a ninguém, porque se vos pegar traindo esse segredo, nunca mais terei<br />

confiança em vós e vós perderíeis mais do que eu.<br />

— Se eu vos mentir uma vez que seja, retirai-me toda vossa confiança,<br />

porque vos porei à prova de diversas maneiras.<br />

117


— Quero que me experimenteis de todas as formas e quero bem que<br />

saibais que falarei a vosso irmão no décimo primeiro dia depois que tiverdes falado<br />

com ele.<br />

118


36<br />

Foi assim que <strong>Merlim</strong> aproximou-se de Pendragão. Despediu-se dele e foi<br />

encontrar seu mestre Brás e contar-lhe tudo o que havia se passado. Brás meteu<br />

tudo por escrito e por ele temos conhecimento ainda hoje da estória. Pendragão<br />

voltou a Uter, seu irmão. Quando Uter o reencontrou externou muita alegria em seu<br />

rosto. Logo que se saudaram, Pendragão puxou seu irmão à parte e contou-lhe a<br />

morte de Anguis da forma como <strong>Merlim</strong> lhe havia contado e perguntou se de fato<br />

havia sido daquela forma. E Uter respondeu:<br />

— Foi assim, mas Deus me ajude, contaste-me algo que imaginava que<br />

ninguém, salvo Deus soubesse e um homem bom muito velho que me havia dito<br />

tudo isto em segredo. Não imaginava que mais alguém pudesse saber.<br />

Uter sorriu e perguntou:<br />

— Senhor, por Deus, quem te contou tudo isso? Dize-me porque estou<br />

maravilhado por saberes.<br />

— Podes muito bem saber e ouvir o que eu sei, antes peço que me digas,<br />

se o souberes, quem é o ancião que te salvou da morte? Sem ele, segundo fui<br />

informado, Anguis teria te matado.<br />

119


— Senhor, pela fé que te devo, por seres meu senhor e meu irmão, não<br />

sei quem é, mas parece-me homem muito bom e muito sábio, por isso pus nele<br />

minha confiança. Entretanto, de tudo o que me disse, nada era crível, porque Anguis<br />

revelou extremo atrevimento tentando matar-me em nosso campo e em minha<br />

tenda.<br />

velho, se o visses?<br />

— Senhor — retomou Pendragão —, reconhecerias novamente esse<br />

— Muito bem, acredito.<br />

— Está certo de que virá ver-te, de hoje a onze dias. Peço-te, pelo amor<br />

que me tens, que no décimo primeiro dia fiques todo o tempo perto de mim, de modo<br />

que eu veja todas as pessoas que vierem falar contigo.<br />

E ele jurou que não se afastaria dele, até que visse e reconhecesse o<br />

velho, no caso de ele aparecer.<br />

120


37<br />

Deste modo estiveram juntos naquele dia os dois irmãos. <strong>Merlim</strong>, por seu<br />

lado, que havia combinado tudo aquilo para conhecê-los e tornar-se amigo deles,<br />

relatou a Brás o que os dois irmãos haviam dito a seu respeito e como o rei queria<br />

colocá-lo à prova. E Brás perguntou-lhe:<br />

— O que fareis a respeito?<br />

— Eles são jovens e belos e eu não conseguiria de outro modo atrair sua<br />

simpatia, senão fazendo muitas de suas vontades, propiciando-lhes divertimentos e<br />

alegrias. Conheço uma mulher que Uter ama. Levarei a ele uma carta da parte dela,<br />

que vós escrevereis. E isto será para que ele acredite no que lhe direi em<br />

confidencia. E eu conheço todas as palavras secretas; ele se maravilhará muito<br />

quando lhe falar e desse modo passará aquele décimo primeiro dia em que ambos<br />

me verão e não me reconhecerão. No dia seguinte, procurarei os dois juntos e direi<br />

quem sou e ficarão muito felizes de me ver.<br />

Tal como <strong>Merlim</strong> disse, ele o fez. Tomou a forma de um servo da dama e<br />

dirigiu-se a um lugar onde Uter o visse diante de seu irmão e disse:<br />

— Senhor, minha dama vos saúda e vos envia esta carta.<br />

121


E ele a tomou com grande alegria, imaginando verdadeiramente que a<br />

dama a enviava, e a fez ler. E a carta dizia que confiasse no que o portador<br />

dissesse. E <strong>Merlim</strong> disse a Uter tudo o que podia causar-lhe melhor entretenimento.<br />

Assim ficou ao lado do rei até a noite. E Uter ficou o dia todo muito alegre e muito<br />

feliz. Ainda antes da hora de vésperas, Pendragão maravilhou-se de não ter visto<br />

<strong>Merlim</strong> que lhe havia prometido vir falar a Uter. Os dois irmãos esperaram até depois<br />

de vésperas. Mais tarde, retiraram-se à parte para conversar. E <strong>Merlim</strong> afastou-se e<br />

retomou a aparência que tinha quando falara com Uter pela primeira vez. Depois foi<br />

a sua hospedagem e pediu a um cavaleiro que chamasse Uter. Disseram-lhe que ele<br />

estava com o rei. Então mandou procurá-lo um mensageiro que foi dizer a Uter, na<br />

presença do rei, que um ancião o chamava à sua hospedagem.<br />

— Acho que é <strong>Merlim</strong>! — disse Pendragão, pedindo a seu irmão que<br />

viesse buscá-lo, no caso de ser o homem que lhe havia salvo a vida.<br />

Uter prometeu que viria e dirigiu-se à hospedagem. Ele reencontrou seu<br />

salvador que logo o reconheceu com grande alegria. Falaram de muitas coisas e<br />

Uter disse a <strong>Merlim</strong>:<br />

— Senhor, salvastes a minha vida, mas maravilhou-me muito que o rei<br />

pudesse me repetir tudo o que dissestes e tudo o que eu fiz depois de vossa partida.<br />

E ele contou-me que deveríeis vir hoje e insistiu muito que o informasse de vossa<br />

vinda. Ainda agora, pediu-me que viesse ver se éreis de fato <strong>Merlim</strong>. Mas eu me<br />

pergunto como terá sabido do que me dissestes.<br />

— Só pode ter sido porque lhe contaram. Ide chamá-lo e perguntai-lhe,<br />

em minha presença, quem o informou.<br />

Uter foi então chamar o rei, recomendando porém aos homens que<br />

guardavam a hospedagem que não deixassem entrar ninguém. Mas <strong>Merlim</strong> assumiu<br />

122


novamente a aparência do jovem que havia trazido a carta, e Uter e Pendragão,<br />

quando chegaram para encontrar <strong>Merlim</strong>, viram-se diante do mensageiro.<br />

— Senhor — disse Uter ao rei —, o que vejo é maravilha, pois deixei aqui<br />

o homem de quem vos falei e eis que encontro este servo! Ficai aqui. Eu vou<br />

perguntar aos sentinelas se viram sair aquele homem ou entrar este jovem.<br />

123


38<br />

Uter saiu, enquanto Pendragão ficou dando risada.<br />

— Vistes alguém entrar aqui, enquanto fui chamar meu irmão? —<br />

perguntou Uter aos guardas.<br />

— Não, senhor, ninguém.<br />

— Senhor — disse Uter, de volta, ao rei —, não compreendo mais nada!<br />

E tu — perguntou ele ao jovem —, acabas de chegar?<br />

— Eu já estava aqui quando falavas com o velho.<br />

— Por Deus! — disse Uter ao rei, persignando-se — Estou sendo vítima<br />

de algum encantamento! Nunca semelhante aventura pode ter acontecido com um<br />

ser humano!<br />

O rei pôs-se a rir a estas palavras, porque sabia que <strong>Merlim</strong> estava na<br />

origem de tudo o que se passava.<br />

— Caro irmão — replicou —, não vos imaginava capaz de mentir.<br />

— Mas eu estou desconcertado e não sei o que dizer.<br />

— Quem é este jovem?<br />

— É aquele que vos trouxe a carta.<br />

124


encontraremos.<br />

— É verdade — disse o servo.<br />

— Imaginas que possa ser ele o homem pelo qual foste me chamar?<br />

— Não, senhor. Não pode ser.<br />

— Então vamos lá fora. Se ele quiser que o encontremos, logo o<br />

Saíram. Depois de algum tempo lá fora, disse o rei a um dos cavaleiros:<br />

— Vai ver quem está lá dentro.<br />

Ele foi e viu um velho sentado na cama. Voltou e contou ao rei o que vira.<br />

E quando Uter o ouviu, ficou muito maravilhado e disse:<br />

— Por Deus, senhor! Agora vejo quem imaginava que ninguém pudesse<br />

ver. Aqui está aquele que me salvou a vida.<br />

— Que ele seja bem-vindo! — exclamou Pendragão muito feliz.<br />

Em seguida, dirigindo-se a <strong>Merlim</strong>, perguntou-lhe:<br />

— Senhor, posso contar a meu irmão quem sois?<br />

— É bom que ele saiba — respondeu <strong>Merlim</strong>. Então disse o rei que bem<br />

conhecia as manobras de <strong>Merlim</strong>:<br />

ele?<br />

— Caro irmão, onde está o moço que vos trouxe a carta?<br />

— Senhor, ele estava aqui, agora — disse Uter —, o que quereis com<br />

O rei e <strong>Merlim</strong> começaram a rir. E <strong>Merlim</strong> chamou o rei à parte e revelou-<br />

lhe o que havia dito a Uter acerca de sua amiga. Depois pediu-lhe que repetisse<br />

suas palavras ao irmão. O rei sorrindo chamou Uter e disse-lhe:<br />

— Caro irmão, perdeste teu mensageiro?<br />

— Por que, senhor, falais novamente deste servo?<br />

— Por causa das boas novas que vos trouxe de vossa amiga.<br />

125


o soubesse.<br />

— O que sabeis a respeito?<br />

— Se consentires, direi o que sei diante deste ancião.<br />

— Consinto — disse Uter, imaginando que ninguém, salvo o mensageiro,<br />

Ora, o rei repetiu palavra por palavra, tudo o que lhe havia sido dito.<br />

Depois que ouviu, muito maravilhado, disse:<br />

— Senhor, por Deus, se vos apraz, dizei-me como sabeis essas<br />

maravilhas que dissestes agora?<br />

segredo.<br />

— Direi, se este homem bom autorizar.<br />

— O que tem ele a ver com isso?<br />

— Não posso falar, se ele não autorizar.<br />

Então maravilhou-se muito Uter. Olhou o homem bom e disse:<br />

— Senhor, peço-vos permissão para meu irmão contar como soube deste<br />

— Quero bem que vos diga.<br />

— Caro irmão, não sabes quem é este homem? Sabei que é o homem<br />

mais sábio do mundo, o mais respeitável. E sabei também que tem tal poder como<br />

vos direi: nenhum outro servo vos veio procurar hoje, senão ele mesmo; ele mesmo<br />

inventou a carta que vos dirigiu aquelas íntimas palavras de vossa amiga.<br />

126


maravilha do mundo!<br />

39<br />

Ao ouvir isto, Uter ficou muito admirado e disse:<br />

— Senhor, como poderia acreditar? Se fosse verdade, seria a maior<br />

— Podes acreditar, pois é a coisa mais certa do mundo.<br />

— Não acreditaria, se não o soubesse por vós. Então o rei puxou <strong>Merlim</strong><br />

de lado e pediu-lhe que desse alguma demonstração, se lhe agradasse.<br />

aparência do servo.<br />

— Farei, com muito gosto. Retirai-vos um pouco, que me mostrarei sob a<br />

Tão logo saíram, veio ele atrás e chamou Uter dizendo-lhe que queria<br />

voltar para sua dama e que ele pedisse o que quisesse. O rei chamou o irmão à<br />

parte e disse-lhe:<br />

te falava há pouco?<br />

— Quem imaginas ser este servo? Acreditas que é a mesma pessoa que<br />

— Estou estupefato e não sei o que dizer.<br />

— Pois fica sabendo que é o mesmo que te preveniu que Anguis queria<br />

matar-te e agora fala contigo aí dentro; é o mesmo que eu fui procurar em<br />

Nortumberlândia tem o poder de conhecer as coisas que foram ditas e que<br />

127


aconteceram e, em grande parte, as que estão por acontecer. Por isso queria muito<br />

pedir-lhe, se lhe agradasse, que se tornasse nosso amigo e nosso conselheiro em<br />

todos os negócios.<br />

Então, ambos pediram-lhe, por Deus, que permanecesse com eles e<br />

depositariam nele toda a confiança.<br />

— Senhores — respondeu <strong>Merlim</strong> —, estais ambos convencidos de que<br />

conheço os segredos que quero conhecer. Quanto a vós — dirigiu-se ao rei —,<br />

imagino ter-vos dito a verdade de tudo o que me perguntastes.<br />

— De falo, não encontrei a menor mentira.<br />

— Uter, não era verdade o que te disse de tua amiga? No entanto, não<br />

imaginavas que alguém pudesse saber.<br />

— De tal modo me convencestes, que jamais, em toda a minha vida,<br />

desmerecereis minha confiança. E agora que sei que sois um homem cheio de<br />

experiência e de sabedoria, gostaria que permanecêsseis ao lado de meu irmão,<br />

— Ficaria, de bom grado, mas quero confiar-vos confidencialmente um<br />

segredo. E preciso que saibais que, de tempos em tempos, me convém, por força da<br />

natureza, estar afastado dos homens. Mas estai seguros de que, mesmo longe de<br />

vós, onde quer que eu esteja, sois a minha primeira preocupação. Nunca acontecerá<br />

que eu saiba de alguma dificuldade vossa, que não venha Imediatamente vos<br />

aconselhar em tudo. Peço-vos, pois que minha companhia desejais, que não<br />

desanimeis em minha ausência e que externeis em público, cada vez que eu volte a<br />

vos ver, grande alegria. Os homens bons apreciarão muito isto, e os maus, aqueles<br />

que não vos amam, me odiarão, mas não ousarão demonstrar, se agirdes dessa<br />

maneira. Sabei, por fim, que, exceto para vós e privadamente, não modificarei mais<br />

minha aparência. É sob a aparência já conhecida que vou apresentar-me, logo<br />

128


mais, em vossa casa. Assim, os que já me viram alguma vez irão logo anunciar aos<br />

outros que cheguei. E assim que souberdes, manifestareis grande alegria, e dirão<br />

todos que sou muito bom mago. Em seguida, sem hesitação, me proporeis as<br />

questões que vossos conselheiros tiverem sugerido e eu vos darei o conselho que<br />

pedirdes. Assim ficou assentado entre <strong>Merlim</strong>, Pendragão e Uter, e afastou-se deles<br />

para assumir a aparência que as pessoas do reino conheciam. Em seguida, foi até<br />

aqueles que eram do conselho de Vortigerne. Ao vê-lo, ficaram muito alegres e<br />

foram contar ao rei que <strong>Merlim</strong> tinha chegado. O rei ficou muito satisfeito e saiu a<br />

seu encontro. E aqueles que o acompanhavam diziam:<br />

— <strong>Merlim</strong>, o rei vem ao vosso encontro!<br />

129


40<br />

Foi muito grande a alegria do rei ao receber <strong>Merlim</strong> e conduziu-o a sua<br />

hospedagem. Logo que entraram, os conselheiros chamaram-no à parte e<br />

disseram-lhe:<br />

— Senhor, tendes diante de vós <strong>Merlim</strong>, o mais sábio mago do mundo.<br />

Pedi-lhe que vos diga como apoderar-vos do castelo de Anguis e como acabará a<br />

guerra contra os saxões. Sabei que, se ele quiser, pode vos dizer.<br />

O rei disse que perguntaria, de bom grado. E eles se retiraram para deixar<br />

o rei receber condignamente o mago. No terceiro dia, reuniu-se o conselho. Então<br />

perguntou o rei a <strong>Merlim</strong> o que os outros haviam sugerido:<br />

— <strong>Merlim</strong>, ouvi dizer que sois muito sábio e muito bom mago. Peço-vos,<br />

para que eu sempre esteja próximo de vós, que me digais como apoderar-me do<br />

castelo de Anguis e se conseguirei ou não expulsar os saxões do reino.<br />

— Senhor, agora podereis saber se sou sábio. Sabei que os saxões,<br />

desde que souberam da morte de Anguis, não pensam mais em abandonar este<br />

reino. Vossos mensageiros virão dizer-vos isso amanhã. Então os devolvereis a<br />

vossos inimigos levando propostas de paz. Os saxões responderão que vos deixam<br />

130


o reino que pertenceu a vosso pai e vós os conduzireis a salvo fora da terra e lhes<br />

dareis navios para que partam.<br />

— Falastes bem — replicou o rei —, e mandarei levar-lhes propostas de<br />

paz antes, por outros meios, para ver o que hão de responder.<br />

Então o rei enviou Urfino, um seu conselheiro, por orientação de <strong>Merlim</strong>. E<br />

a mensagem seguiu para o castelo. Quando os do castelo viram chegar o<br />

mensageiro foram a seu encontro e perguntaram:<br />

— O que deseja o cavaleiro?<br />

— Tréguas! O rei pede tréguas por três meses.<br />

— Vamos nos aconselhar — responderam os saxões.<br />

Então retiraram-se para deliberar. "A morte de Anguis nos pôs numa<br />

situação muito difícil — concordaram todos —, por outro lado, não temos víveres<br />

suficientes para ficar aqui até o prazo da trégua. Peçamos então ao rei que levante o<br />

cerco e nos conceda a fortaleza como feudo. Do nosso lado, faremos homenagem e<br />

daremos cada ano como tributo dez cavaleiros armados, dez donzelas, cinco<br />

falcões, cem Iebréus, cem cavalos de batalha e cem palafréns." Esse foi o resultado<br />

de sua deliberação que foi dado ao mensageiro que voltou e relatou tudo ao rei, a<br />

<strong>Merlim</strong> e aos conselheiros. O rei perguntou a <strong>Merlim</strong> o que fazer. E <strong>Merlim</strong><br />

respondeu:<br />

— Não vos engajareis nisso, sob meu conselho, porque grandes males<br />

advirão ainda ao reino e à terra. Entretanto, ordenai imediatamente que, sem mais<br />

esperar, evacuem a fortaleza. Eles sairão, porque não têm mais víveres. Dizei-lhes<br />

porém que, em caso de recusa, nenhuma trégua lhes será concedida, mas lhes<br />

dareis navios para que possam partir. Se não aceitarem, matai quantos prenderdes,<br />

131


mas asseguro-vos que ficarão muito felizes de saírem vivos, parque, no momento,<br />

estão convencidos de que vão morrer.<br />

Do modo como <strong>Merlim</strong> disse, mandou o rei fazer na manhã seguinte.<br />

Enviou seus mensageiros com essas propostas. Logo que os saxões perceberam<br />

que poderiam ser salvos, sua alegria foi imensa. Não sabiam o que fazer, desde que<br />

perderam Anguis. Todo o reino foi informado da decisão do rei que fez conduzir os<br />

saxões sob escolta até o porto e deu-lhes navios para partir. Foi assim que <strong>Merlim</strong><br />

adivinhou o estado de espírito dos saxões e informou a Pendragão. E Pendragão,<br />

sob seu conselho, os expulsou do reino. Desse modo, <strong>Merlim</strong> tornou-se senhor do<br />

conselho do rei.<br />

132


41<br />

E assim foi durante muito tempo, até que um dia, depois de discutir um<br />

grave problema com o rei, um dos barões suspeitou dele e veio dizer ao rei:<br />

— Senhor, maravilha-me que tenhais tanta confiança neste homem. Sabei<br />

que sua ciência é de origem diabólica. Se permitísseis, eu o submeteria à prova de<br />

modo que vísseis tudo muito claro.<br />

magoe.<br />

— Consinto, com a condição de não ferires seu corpo.<br />

— Senhor, não tocarei seu corpo, nem direi o que quer que seja que o<br />

Assim o rei consentiu. Depois que despediu-se do rei, ficou muito<br />

satisfeito. Aos olhos do mundo, era um homem sábio e engenhoso, cheio de felonia<br />

e perfídia; era rico e bem amparado. Um dia <strong>Merlim</strong> foi à corte. Ele o recebeu com<br />

muita alegria e conduziu-o até o rei. Depois chamou-o à parte. Nesta reunião havia<br />

vinte e cinco homens.<br />

— Senhor — disse ele ao rei —, eis aqui um dos homens mais sábios do<br />

mundo. Soube que ele havia predito a Vortigerne de que modo morreria: queimado<br />

no incêndio que fizestes. E de fato foi assim. Por isso, suplico a vós e a todos os que<br />

aqui estão, pois sabeis todos que estou doente, que lhe peçam que diga de que<br />

133


modo morrerei, se o souber; porque sei bem que, se ele quiser, pode muito bem<br />

dizer.<br />

E eles todos perguntaram a <strong>Merlim</strong>. Então <strong>Merlim</strong> respondeu que ouvira<br />

todas as palavras que ele dissera e sabia muito bem da inveja e da maldade que o<br />

guiavam, e disse o que sabia que era bem verdade:<br />

— Senhor, pedistes que vos dissesse de vossa morte. Pois bem, eu vos<br />

direi: sabei que no dia que morrerdes, caireis de um cavalo e quebrareis o pescoço.<br />

Deste modo terminareis vossos dias.<br />

outra prova.<br />

O homem, ao ouvir isto, disse ao rei:<br />

— Senhor, ouvistes bem a resposta! Que Deus me proteja!<br />

Depois, chamando o rei à parte, acrescentou:<br />

— Senhor, guardai bem o que ele disse, porque vou submetê-lo a uma<br />

Então partiu para sua terra, disfarçou-se em roupas diferentes e, o mais<br />

depressa que pôde, voltou à cidade em que o rei estava, e fingiu-se de doente.<br />

Pediu ao rei que o levasse onde estava <strong>Merlim</strong>, sem que ele o soubesse. O rei disse<br />

que concordava e que <strong>Merlim</strong> não o saberia. Então foi a <strong>Merlim</strong> e disse:<br />

— Vamos ver um doente e levemos conosco quem quiserdes.<br />

— Senhor — replicou <strong>Merlim</strong> rindo —, nenhum rei pode deslocar-se sem<br />

uma escolta de pelo menos vinte homens.<br />

O rei escolheu quem ele queria para acompanhá-los e todos dirigiram-se<br />

para junto do doente. Assim que chegaram, a mulher do doente, instruída por ele,<br />

jogou-se aos pés do rei e disse:<br />

— Senhor, em nome de Deus, fazei com que vosso mago diga se meu<br />

senhor que aqui está em tal langor nunca vai sarar.<br />

134


O rei, com um ar de compaixão, virou-se para <strong>Merlim</strong> e disse:<br />

— Poderíeis saber algo do que esta mulher me pede acerca da morte<br />

de seu senhor, se algum dia há de sarar?<br />

— Senhor, quero que saibais que este doente que aqui está não pode<br />

morrer desse mal nem neste leito.<br />

O doente esforçou-se muito, fingindo dificuldade para falar, e disse:<br />

— Senhor, por Deus, de que morte morrerei, quando escapar desta?<br />

— No dia em que morreres, serás encontrado pendurado.<br />

Em seguida, saiu mostrando-se irritado. Deixou o rei na casa e fez isso<br />

para que o homem pudesse falar com o rei.<br />

135


ao rei:<br />

42<br />

Depois que <strong>Merlim</strong> saiu e o homem teve certeza de que havia saído, disse<br />

— Senhor, vedes claramente que esse homem é um louco e um<br />

mentiroso, porque profetizou para mim duas mortes incompatíveis, mas ainda o<br />

submeterei a uma terceira prova diante de vós. Irei amanhã a uma abadia, fingirei de<br />

doente e vos mandarei chamar pelo abade que vos dirá que eu sou um de seus<br />

monges. Ele vos dirá que está muito angustiado com medo de que eu morra, então<br />

pedirá, por Deus, que leveis lá vosso mago. Confesso que não o experimentarei<br />

senão mais essa vez. O rei jurou que iria e levaria <strong>Merlim</strong> e despediu-se. O homem<br />

foi para a abadia, fez tudo como havia combinado com o rei e pediu ao abade que<br />

fosse buscá-lo. O rei foi e levou <strong>Merlim</strong>. Cavalgaram e chegaram à abadia bem<br />

cedo, antes que a missa fosse cantada; então o rei assistiu à missa. Depois da<br />

missa, o abade dirigiu-se ao rei com uma grande companhia de monges e pediu, por<br />

Deus, que fosse ver um dos monges que estava doente e levasse seu mago para<br />

saber se o encantamento que ele fizesse valeria alguma coisa. O rei perguntou a<br />

<strong>Merlim</strong> se iria e ele disse:<br />

136


vós.<br />

— De bom grado, mas queria antes falar com Uter, vosso irmão, diante de<br />

Então chamou-os à parte diante de um altar e disse:<br />

— Senhor, mais vos vejo de perto, mais louco vos encontro! Imaginais<br />

que eu não saiba de que morte morrerá esse louco que me põe à prova?<br />

Francamente! Sei e vo-lo direi e ainda vos maravilhareis mais com o que vou dizer<br />

desta vez do que com o que disse das duas primeiras.<br />

O rei respondeu:<br />

— Mas como pode o mesmo homem ter duas mortes tão diferentes?<br />

— Senhor, se ele não morrer como eu predisse, não acrediteis em mais<br />

nada do que vos digo, porque sei muito bem a morte dele e a vossa, e sei também<br />

que, depois que virdes cumprir-se a dele, me perguntareis pela vossa. Seja como<br />

for, digo a Uter que o verei rei, antes que me separe de sua companhia.<br />

sarar.<br />

Então foram aonde o abade os conduziu, e uma vez lá ele disse ao rei:<br />

— Senhor, por Deus, fazei vosso mago dizer se algum dia este monge vai<br />

<strong>Merlim</strong> mostrou que estava com raiva e disse:<br />

— Ele pode levantar-se que não tem nada. Está perdendo tempo me<br />

colocando à prova, porque morrerá das duas maneiras que já lhe predisse, e direi<br />

hoje uma terceira mais diversa que as duas primeiras, para que bem saiba que no<br />

dia de sua morte quebrará o pescoço, ficará pendurado e se afogará. E viverá até<br />

que morra e verá que há de morrer dessas três mortes. Seguramente pode<br />

experimentar-me, porque disse-lhe toda a verdade e não se finja mais, porque<br />

conheço muito bem seu ânimo e tudo o que seu coração malvado pensa.<br />

Então o falso doente levantou-se de seu leito e disse ao rei:<br />

137


— Senhor, agora podeis ver claramente a sua loucura, porque ele não<br />

sabe o que diz. Como poderia estar dizendo a verdade, se pretende que no dia da<br />

minha morte eu quebre o pescoço, eu me pendure e me afogue? E tudo isso ao<br />

mesmo tempo? Sei perfeitamente que isso não pode acontecer comigo nem com<br />

ninguém. Considerai então se é sensato pôr a confiança num homem destes e<br />

conferir-lhe plenos poderes sobre seus conselheiros!<br />

morrestes.<br />

— No entanto, manterei toda minha confiança nele, até que saiba como<br />

Ficou o homem muito irado ao saber que <strong>Merlim</strong> não seria posto fora do<br />

Conselho antes que ele mesmo morresse. As coisas ficaram neste pé. Todo o<br />

mundo soube o que <strong>Merlim</strong> havia predito acerca da morte desse homem e todos<br />

esperaram com muita curiosidade para saber se aconteceria como havia sido<br />

predito.<br />

138


43<br />

Um dia, muito tempo depois, esse mesmo homem cavalgava com<br />

numerosa escolta, e chegou a um rio. Sobre esse rio havia uma ponte de madeira e,<br />

do outro lado dessa ponte, uma bela cidade. Ele eslava no meio da ponte, quando<br />

seu cavalo tropeçou e caiu sobre os joelhos. O homem foi lançado ao chão e, na<br />

queda, quebrou o pescoço. Tombou na água, mas uma das estacas da ponte, que<br />

estava em mau estado, prendeu suas roupas e o corpo ficou pendendo, as partes<br />

inferiores no alto e a cabeça e os ombros inteiramente na água. As pessoas da<br />

escolta saíram imediatamente pedindo socorro. Os habitantes da cidade acorreram,<br />

uns pela ponte, outros em barcos. Quando se retirou o corpo da água, as pessoas<br />

que o seguravam diziam:<br />

— Este homem está com o pescoço quebrado!<br />

— É fato — responderam os que o examinaram. Quando os que o<br />

acompanhavam ouviram, disseram:<br />

— Verdadeiramente <strong>Merlim</strong> havia dito que este homem quebraria o<br />

pescoço, ficaria pendurado e se afogaria em sua morte. E muito louco quem não<br />

acredita nesse <strong>Merlim</strong>, porque parece-nos que suas palavras são sempre<br />

verdadeiras.<br />

139


Fizeram ao corpo o que deviam e <strong>Merlim</strong> que soube do fato foi a Uter, a<br />

quem amava muito, e contou-lhe a morte do homem como havia acontecido e<br />

recomendou que contasse ao rei. E Uter dirigiu-se ao rei e contou-lhe como havia<br />

acontecido. O rei ouviu, maravilhou-se muito e perguntou:<br />

— Quem te contou foi <strong>Merlim</strong>?<br />

- Foi.<br />

perguntar ao mago.<br />

E o rei pediu-lhe que perguntasse quando havia acontecido. E Uter foi<br />

— Ontem — respondeu <strong>Merlim</strong> —, e virão informar o rei dentro de seis<br />

dias. E eu já vou indo, porque não quero estar aqui quando chegarem os<br />

mensageiros, pois me farão muitas perguntas a que não poderia responder. Não<br />

falarei mais diante do povo nem da corte, senão por palavras encobertas, porque<br />

assim não compreenderão minhas predições, senão quando se realizarem.<br />

Tais palavras disse <strong>Merlim</strong> a Uter que foi repeti-las ao rei. E o rei, que<br />

cuidava que <strong>Merlim</strong> tivesse ficado raivoso, perguntou:<br />

notícia chegasse.<br />

— Para onde foi ele?<br />

— Senhor, não sei, mas ele disse que não queria estar aqui, quando a<br />

Assim ficou o rei.<br />

140


44<br />

<strong>Merlim</strong> havia ido a Nortumberlândia encontrar seu mestre Brás para<br />

contar todas essas coisas e outras para fornecer matéria para o livro. Esteve lá até o<br />

sexto dia, quando chegaram à corte de Pendragão as pessoas que haviam assistido<br />

à morte daquele senhor. Ao chegarem, contaram ao rei a maravilha que tinham<br />

visto. O rei e todos os que ouviram disseram que <strong>Merlim</strong> era o mais sábio homem<br />

vivo. E cada um dizia que doravante não mais o ouviria profetizar algo que devesse<br />

acontecer, que não metesse por escrito. Assim começou o livro das profecias de<br />

<strong>Merlim</strong>, em que se podem ler todas as profecias que <strong>Merlim</strong> fez sobre os reis da<br />

Inglaterra e sobre todas as coisas que falou depois. Mas esse livro não conta quem<br />

é <strong>Merlim</strong> nem de onde ele vem, porque só estão escritas as coisas que ele falava.<br />

O tempo passou. E <strong>Merlim</strong> era, de fato, senhor de Pendragão e de Uter. E<br />

quando soube que haviam dito aquilo a seu respeito e que deviam pôr por escrito<br />

suas palavras, contou a Brás, e Brás perguntou-lhe:<br />

tiver acontecido.<br />

— Farão outro livro igual ao meu?<br />

— Não, não meterão por escrito senão o que puderem saber, depois que<br />

141


E <strong>Merlim</strong> voltou à corte de Pendragão e de Uter, onde lhe contaram a<br />

respeito da decisão, como se ele não soubesse de nada. <strong>Merlim</strong> então começou a<br />

pronunciar palavras obscuras que fazem parte de seu livro de profecias e cujo<br />

sentido não aparece, senão depois dos .acontecimentos. Depois dirigiu-se a<br />

Pendragão e a Uter e disse-lhes muito emocionadamente que os amava muito e<br />

queria bem trabalhar por eles, em benefício de seu povo e de sua glória. Quando o<br />

viram assim humilhar-se, maravilharam-se muito e pediram-lhe que dissesse com<br />

firmeza o que quer que fosse e não lhes escondesse nada de seus negócios.<br />

— Não vos esconderei nada do que vos eleva dizer.<br />

E disse que tinha uma maravilha para revelar, a qual apreciariam muito.<br />

— Lembrai-vos dos saxões que expulsastes de vosso reino depois da<br />

morte de Anguis? Ora, Anguis pertencia a uma família muito nobre. Quando seus<br />

pais souberam o que lhe aconteceu e como os saxões tinham sido expulsos,<br />

reuniram-se e juraram vingar sua morte, pensando tambem em apoderar-se de<br />

vossa terra.<br />

— <strong>Merlim</strong>, mas eles têm tanta gente para nos enfrentar?<br />

— Para um combatente vosso, eles têm dois. E vos destruirão, se não<br />

agirdes com muita sabedoria, e conquistarão vosso reino.<br />

— Faremos tudo conforme aconselhardes, sem mudar absolutamente<br />

nada. Quando imaginais que devem vir?<br />

- No décimo primeiro dia de julho, mas ninguém em vosso reino deverá<br />

saber, senão vós. Peço-vos que guardeis segredo e façais assim: convocai todos os<br />

homens, todos os cavaleiros, pobres e ricos, dai-lhes o melhor acolhimento possível,<br />

dai-lhes de vossos bens e pedi-lhes que tenham os melhores cavalos, por vós, e<br />

belas armas e consegui o amor deles o mais que puderdes, porque há grande<br />

142


sabedoria em conquistar o coração dos homens. Mantende-os assim perto de vós e<br />

convocai-os, por fim, à corte e às armas, pedi-lhes que fiquem convosco na última<br />

semana de junho, na entrada dos campos de Salaber. Lá reuni todas as vossas<br />

forças, à margem do rio, de modo que possam chegar e descer.<br />

terras?<br />

— Como? — disse o rei — Deixaremos que o inimigo entre em nossas<br />

— Sim, se confiardes em mim. Permitireis mesmo que se afastem o mais<br />

possível da costa. Eles não saberão que tendes as forças reunidas. E quando<br />

tiverem avançado pelo interior, enviareis as tropas do lado dos navios deles, para<br />

mostrai-lhes que quereis impedir-lhes a fuga. Quando perceberem isto, ficarão<br />

horrorizados. Um de vós dois irá com as tropas persegui-los até o cansaço, de modo<br />

que se sintam obrigados a acampar longe do rio. A água lhes faltará, e os mais<br />

valentes temerão pela vida. Vós os mantereis assim dois dias e, ao terceiro,<br />

combatereis. Se agirdes assim, asseguro-vos que vossas tropas vencerão.<br />

— Por Deus, <strong>Merlim</strong>! — exclamaram os irmãos — Dizei-nos ainda, se for<br />

do vosso agrado, se morreremos nessa batalha.<br />

— Senhores, aqui embaixo há um começo e um fim e ninguém deve<br />

temer a morte, mas aceitá-la como eleve, porque todo ser que vive deve, de fato,<br />

saber que vai morrer e vós deveis saber que assim acontecerá convosco e nada,<br />

nem o poder, nem a riqueza podem evitar a sorte comum.<br />

— <strong>Merlim</strong> — interveio Pendragão —, dissestes uma vez que sabíeis da<br />

minha morte tão bem quanto daquele homem que vos pôs à prova. Por isso peço-<br />

vos que me digais a verdade da minha.<br />

- Quero que vós ambos façais trazerem aqui todos os relicários que<br />

tendes e quero que cada um de vós jureis sobre os santos que fareis o que vos<br />

143


disser, em vosso benefício e no de vossa honra. E quando for assim, eu vos direi<br />

com mais segurança o que souber daquilo que acontecerá.<br />

144


juramento, disseram:<br />

45<br />

Os dois fizeram tudo como <strong>Merlim</strong> ordenou. Depois que pronunciaram o<br />

— Cumprimos quanto nos ordenastes, agora vos pedimos, se vos agrada,<br />

que nos digais por que nos mandastes fazer.<br />

— Perguntastes sobre vossa morte e sobre essa batata. Eu vos direi<br />

tanto, que não devais mais nada perguntar-me. Sabeis o que um de vós jurou ao<br />

outro? Jurastes que nessa batalha sereis sábios e leais convosco mesmos e para<br />

com Deus, porque ninguém pode ser sábio para si mesmo, se não o é em relação a<br />

Deus. Eu vos ensinarei como ser leal e justo. Confessai nesta ocasião, mais do que<br />

em qualquer outra, pois sabeis que vos deveis afrontar com inimigos. E se estais<br />

com a disposição de que vos falo, estai seguros de vencer, porque vossos<br />

adversários não crêem na Trindade, nem na paixão de Cristo. E vós defendeis vossa<br />

herança pela lei e pela religião. Ora, aquele que morrer defendendo esses direitos,<br />

segundo a virtude de Jesus Cristo e os mandamentos de nossa santa Igreja, não<br />

deve nunca temer a morte. Quero que saibais que, desde que a cristandade chegou<br />

a esta terra, não houve nenhuma batalha, nem haverá tão importante como essa. E<br />

cada um de vós jurou ao outro que tudo fará em seu benefício e pela sua honra.<br />

145


Enfim, quero que saibais, sem precisar muito mais, que um de vós há de morrer<br />

nessa batalha. E no próprio lugar do combate, o sobrevivente fará construir, sob meu<br />

conselho, a mais bela e a maior sepultura. Eu me comprometo em trazer tal ajuda,<br />

que a obra subsistirá, enquanto o mundo existir. Disse-vos que um dos dois há de<br />

morrer. Tende coragem de vos conduzir como convém.<br />

E chegou o dia fixado para a reunião dos súditos. Os irmãos haviam feito<br />

tudo o que <strong>Merlim</strong> havia ordenado: na festa de Pentecostes, mantiveram sua corte à<br />

margem do rio e o povo afluiu. Distribuíram abundantemente suas riquezas, fazendo<br />

o melhor acolhimento a todos. Fizeram saber que na última semana de junho<br />

estivessem todos nos campos de Salaber, à margem do Tâmisa, para defender o<br />

reino. Depois, na primeira semana de julho, soube-se que a frota dos saxões havia<br />

chegado. Uter, inteiramente convencido de que <strong>Merlim</strong> havia dito a verdade,<br />

ordenou aos prelados da santa Igreja que recebessem em confissão todos os<br />

homens e os exortassem a perdoar mutuamente suas ofensas. E isso foi ordenado e<br />

feito por todo o exército.<br />

146


46<br />

Quando os saxões chegaram e desembarcaram, ficaram acampados oito<br />

dias e no nono dia cavalgaram. O rei Pendragão, que tinha espiões no exército<br />

deles, logo soube da notícia. Então cavalgou e foi contar a <strong>Merlim</strong>. <strong>Merlim</strong> disse que<br />

era verdade. O rei pediu conselho sobre o que fazer. E <strong>Merlim</strong> disse:<br />

— Enviai amanhã ao encontro deles Uter com numerosa tropa. Quando<br />

ele tiver certeza de que estão longe do mar e do rio, bloqueai essas duas direções e<br />

os obrigai a acampar. Então retirai-vos e, de manhã, quando recomeçarem a<br />

avançar, atacai-os e cercai-os de tão perto, que não tenham como prosseguir. Não<br />

haverá ninguém, por mais ousado que seja, que não queira senão voltar. Continuai<br />

assim dois dias. No terceiro dia, vereis a insígnia pela qual deveis estar seguro da<br />

vitória. Vós a mostrareis a toda a gente, porque será um dia belo e muito claro e<br />

vereis um dragão vermelho a correr no ar entre o réu e a terra. Depois que tiverdes<br />

visto essa insígnia, podereis combater sem receio, porque vossa gente terá a vitória.<br />

Apenas Pendragão e Uter ouviram esse conselho e ficaram muito alegres.<br />

— Agora vou embora — disse <strong>Merlim</strong> —, mas estai certos do que vos<br />

disse, e cuidai ambos de serem prudentes.<br />

147


Despediram-se os três e Uter voltou aos seus para avançar entre os<br />

saxões e o mar. Depois que se afastou do rei, <strong>Merlim</strong> veio a ele e disse-lhe:<br />

— Podes jogar toda a tua valentia, porque não morrerás nesta batalha.<br />

Ao ouvir isso, Uter alegrou-se e ficou muito satisfeito.<br />

<strong>Merlim</strong> voltou a Nortumberlândia para junto de Brás para contar esses<br />

fatos. Do modo como <strong>Merlim</strong> havia dito, fizeram os dois irmãos. Uter e seus<br />

combatentes espalharam-se entre os navios e as tendas c obrigaram, naquela noite,<br />

os inimigos a acamparem em pleno descampado, sem água. Durante dois dias, Uter<br />

soube muito bem mantê-los assim sem poderem cavalgar. No terceiro dia, chegou<br />

Pendragão com sua tropa à frente. Como vissem os saxões no meio do campo, com<br />

as batalhas ordenadas como se fosse para combater Uter, o rei mandou ordenarem-<br />

se as suas batalhas, e logo foi feito, porque cada um sabia muito bem com quem se<br />

alinhar. Então aproximaram-se uns dos outros. E quando os saxões viram-se<br />

encalacrados, perceberam que não podiam voltar sem combater. Então apareceu no<br />

ar o monstro de que falou <strong>Merlim</strong>, um dragão vermelho a correr no ar lançando fogo<br />

pelas ventas e pela boca; era o aviso para todos que o vissem. Quando os saxões o<br />

viram, ficaram assustados e tiveram grande pavor. E Uter e Pendragão, ao vê-lo,<br />

disseram aos seus: "Corramos sobre eles, porque estão confundidos e já vimos a<br />

insígnia de que Mrrlim falou." Os que estavam na frente de Pendragão correram<br />

sobre eles com a rapidez que os cavalos puderam. Quando Uter viu que o pessoal<br />

do rei estava no meio do adversário, também correu contra eles e atacou talvez com<br />

mais violência ainda. Assim começou a grande batalha nos campos de Salaber. Não<br />

me cabe dizer quem fez bem, quem fez mal, mas posso vos dizer que Pendragão<br />

morreu e muitos outros barões morreram. O livro conta que Uter venceu a batalha,<br />

mas houve muitas mortes entre os seus, tanto de ricos, como de pobres. Dos<br />

148


saxões, ninguém escapou, ou morreram combatendo, ou foram afogados. Assim<br />

terminou a batalha de Salaber. Sobreviveu Uter a Pendragão, como senhor do reino.<br />

Ordenou que todos os corpos dos cristãos fossem enterrados num mesmo lugar e<br />

que cada um levasse os cadáveres de seus amigos. Mandou trazer o corpo de seu<br />

irmão e dos seus homens e, sobre o túmulo de cada um, mandou gravar o nome e<br />

seus feitos. Para seu irmão mandou fazer um túmulo mais alto que os outros e disse<br />

que não mandaria gravar nada nele, porque muito louco seria aquele que, vendo o<br />

túmulo, não reconhecesse que era de seu senhor. Isso fez Uter e tornou-se chefe<br />

guerreiro de toda a terra, antes de ser rei. Dirigiu-se a Londres e reuniu todos os<br />

prelados da santa Igreja.<br />

149


47<br />

Quando todos os altos homens e todos os prelados estavam reunidos,<br />

fez-se coroar e sagrar e, a partir de então usou a coroa e foi rei da terra depois de<br />

seu irmão. Quinze dias depois de sua coroação, <strong>Merlim</strong> veio à corte e Uter o<br />

recebeu com muita alegria.<br />

— Quero — disse <strong>Merlim</strong> — que digais a vosso povo tudo aquilo que eu<br />

havia predito e tudo o que eu havia pedido que fizésseis: a invasão dos saxões, o<br />

acordo que fizestes comigo, os juramentos que vós e vosso irmão Pendragão<br />

mutuamente trocastes.<br />

Uter contou então ao povo como haviam trabalhado seu irmão e ele, sob<br />

o conselho de <strong>Merlim</strong>, mas não falou do dragão, cujo verdadeiro significado ele e<br />

todos os outros ignoravam. Esse significado <strong>Merlim</strong> revelou em seguida:<br />

— O dragão representava a morte de Pendragão e a glorificação do rei<br />

Uter, e foi nome dado a seu irmão para honrá-lo. Antes chamava-se Aurelius<br />

Ambrosius, mas os habitantes do país de Borges deram-lhe esse nome porque<br />

levava uma insígnia de dragão cada vez que ia a uma batalha, por isso deram-lhe<br />

esse nome que depois nunca perdeu. E vós o tereis como sobrenome, pelo<br />

significado da batalha e pela revelação do dragão. Doravante vos chamareis<br />

150


Uterpendragão, em lembrança daquele que pendia no ar. Mandai fazer dois dragões<br />

de ouro, um colocareis na igreja de Carlion e o outro levareis à batalha. Deste modo<br />

fez-se o rei chamar-se Uterpendragão, por conselho de <strong>Merlim</strong>. Conheceram todos<br />

ainda a lealdade de <strong>Merlim</strong> e quanto bem havia feito aos dois irmãos.<br />

dizer-lhe:<br />

Uterpendragão reinava, havia já muito tempo, quando um dia <strong>Merlim</strong> veio<br />

— Não fareis mais nada a Pendragão, vosso irmão, que jaz em Salaber?<br />

— O que queres que eu faça? Farei o que quiseres ou aconselhares.<br />

— Jurastes que faríeis e eu prometi ajudar-vos a fazer algo que durasse<br />

enquanto a cristandade existir. Hoje, comprometo-me a fazer uma obra que dure<br />

enquanto o mundo existir. Cumpri vosso juramento, que eu mantenho minha<br />

promessa.<br />

— E o que poderia eu fazer?<br />

— Decidamos fazer algo inédito, de que falarão para sempre.<br />

— Concordo.<br />

— Mandai procurar enormes pedras na Irlanda e enviai navios para trazê-<br />

las. Por maiores que sejam, saberei erigi-las, e estarei lá para mostrar as que quero<br />

que tragam.<br />

Uter disse que, de bom grado, o faria. Então mandou uma numerosa frota.<br />

Lá, <strong>Merlim</strong> mostrou aos homens umas pedras gigantescas e disse-lhes:<br />

— Estas são as pedras que levareis.<br />

Ao verem as pedras, tomaram <strong>Merlim</strong> por louco, dizendo que ninguém no<br />

mundo as moveria e que se recusavam a embarcá-las. E <strong>Merlim</strong> respondeu que, se<br />

não o fizessem, por nada teriam vindo. Então voltaram, contaram ao rei a aventura e<br />

disseram que ninguém no mundo conseguiria fazer o que <strong>Merlim</strong> havia mandado.<br />

151


— Esperai que <strong>Merlim</strong> volte — disse o rei. Quando ele voltou, o rei<br />

contou-lhe o que os homens haviam dito.<br />

disse o mago.<br />

— Eles me abandonaram, mas conseguirei cumprir minha promessa —<br />

Então <strong>Merlim</strong> fez virem as pedras da Irlanda, por mágica, para o cemitério<br />

de Salaber e, quando chegaram, Uterpendragão foi vê-las e levou muita gente para<br />

ver a maravilha das pedras. E todos declararam que nunca haviam visto pedras tão<br />

gigantescas e se perguntavam quem no mundo poderia mover uma só delas e como<br />

teria sido possível trazê-las. E <strong>Merlim</strong> disse aos homens que as pusessem em pé,<br />

porque ficariam mais bonitas do que deitadas.<br />

— Ninguém, senão Deus ou vós apenas, poderia fazer isso.<br />

— Retirai-vos então, que vou quitar a promessa que, fiz, a Pendragão,<br />

quando lhe disse que faria por ele o que nenhum ser humano poderia fazer.<br />

Foi assim que <strong>Merlim</strong> levantou as pedras que ainda estão no cemitério de<br />

Salaber e lá estarão, enquanto a cristandade durar, de tal modo dura aquela obra.<br />

152


48<br />

<strong>Merlim</strong> serviu Uterpendragão e o amou por muito tempo. Como o serviu<br />

muito tempo e sabia que confiaria nele em qualquer situação, chamou-o à parte e<br />

disse:<br />

— Senhor, é preciso que vos revele o mais importante de meus segredos,<br />

porque vejo que vosso reino está em tal paz, que ninguém seria melhor senhor do<br />

que vós. E porque vos amo muito e por esta coisa que vos quero dizer, bem como<br />

porque vos salvei de Anguis, quando vos queria matar, cuido que deveis amar-me e<br />

confiar em mim.<br />

não faça, se puder.<br />

— Não há nada no mundo que me queiras dizer, em que não confie e que<br />

— Senhor, se o fizerdes, o proveito será vosso, porque vos ensinarei a<br />

fazer tal coisa que nunca vos prejudicará, e nem saberíeis nem poderíeis fazer o que<br />

quer que fosse, senão para conseguir o amor de Nosso Senhor.<br />

— Fala, sem receio, porque nada dirás que, se puder, não faça.<br />

Então disse <strong>Merlim</strong>:<br />

153


— Será muito estranha coisa o que direi e peço-vos que guardeis segredo<br />

e não digais nada ao povo nem aos cavaleiros, para que todo o proveito, toda honra<br />

e o agrado de Nosso Senhor estejam convosco.<br />

E o rei jurou a <strong>Merlim</strong> que nada diria.<br />

— Senhor — retomou <strong>Merlim</strong> —, sabeis e confiais que conheço as coisas<br />

feitas e ditas no passado. Esse poder, tenho-o de minha natureza diabólica, mas<br />

Nosso Senhor, com todo seu poder, deu-me igualmente o conhecimento, em parte,<br />

do futuro. Foi por isso que os diabos me perderam, que nunca fiz nada conforme<br />

seus desejos. Assim, sabeis agora de onde me vem o poder das coisas que sei e<br />

digo. E vos direi agora o que Nosso Senhor quer que saibais. E quando o<br />

souberdes, cuidai de trabalhar segundo a vontade dele. Senhor, deveis saber e crer<br />

que Nosso Senhor veio à terra para salvar os homens e que sentou-se à ceia,<br />

quando disse aos apóstolos que um deles o trairia. E foi verdade o que ele disse que<br />

o traidor fazia parte de sua companhia. Depois aconteceu que Nosso Senhor sofreu<br />

a morte e um cavaleiro pediu seu corpo e o tirou do patíbulo e ele lhe foi entregue<br />

como recompensa a esse soldado. Muito amou Nosso Senhor esse soldado a quem<br />

foi entregue. Mas ele passou por muitas penas e por muito medo com o que os<br />

judeus lhe fizeram mais tarde. Muito tempo depois que Nosso Senhor ressuscitou,<br />

esse soldado foi, depois da vingança da morte de Jesus Cristo, para uma região<br />

deserta, com grande parte de sua linhagem e muitas outras pessoas. Sobreveio<br />

então uma grande fome e as pessoas se queixaram a esse cavaleiro que era seu<br />

mestre. Ele então pediu a Nosso Senhor que revelasse por que passavam tantas<br />

dificuldades. E Nosso Senhor ordenou que fizesse uma mesa, no modelo daquela<br />

mesa da ceia, e colocasse sobre ela o vaso que ele tinha, coberto inteiramente com<br />

um pano branco, exceto do seu lado. Esse vaso, Jesus Cristo o preparou e por ele<br />

154


separou os bons dos maus. Nesta mesa estavam todos desejosos de tomar assento.<br />

Havia sempre um lugar vazio, em lembrança do lugar em que Judas sentou na ceia,<br />

quando ouviu o que Nosso Senhor lhe disse. E ele renunciou à companhia de Nosso<br />

Senhor e seu lugar ficou vazio até que Nosso Senhor e os apóstolos elegeram outro<br />

para ocupar seu lugar, para inteirar a conta dos doze. Essas duas mesas estão,<br />

pois, em perfeita concordância e desse modo Nosso Senhor, na segunda mesa,<br />

cumula os homens com sua graça. Essa é a razão pela qual as pessoas chamam<br />

Graal a este vaso que vêem e do qual recebem essa graça.<br />

E, se quiserdes seguir meu conselho, instituireis a terceira mesa, em<br />

nome da Trindade, cujas três pessoas estarão representadas nessas três mesas.<br />

Garanto-vos que, se o fizerdes, grandes benefícios e grandes honras vos advirão à<br />

alma e ao corpo e acontecerão em vosso tempo muitas coisas de que vos<br />

maravilhareis muito. E, se a quiserdes fazer, eu vos ajudarei. Se a fizerdes, será<br />

uma coisa muito falada pelo povo. Nosso Senhor reservou muitas graças àqueles<br />

que dela souberem falar condignamente. E eu vos digo que esse vaso e as pessoas<br />

que o guardam vieram, por vontade de Jesus Cristo, para o Ocidente, a estas<br />

paragens. E eles mesmos não sabem em que lugar está o vaso, mas o procuram, e<br />

Nosso Senhor, que tudo leva a bom termo, os conduz. E vós, se confiardes em mim,<br />

fareis em relação a estas coisas o que vos disse e, se o fizerdes, experimentareis<br />

imensa alegria.<br />

155


49<br />

Isso que Uterpendragão ouviu <strong>Merlim</strong> falar agradou-o e maravilhou-o.<br />

— Não quero — disse o rei — que Nosso Senhor perca nada por mim, por<br />

isso quero que ele saiba que me ponho inteiramente a tua disposição e nada haverá<br />

que mandes que eu não faça, se estiver em meu alcance.<br />

Nosso Senhor.<br />

Assim entregou-se o rei a <strong>Merlim</strong>, que ficou muito satisfeito.<br />

— Senhor — disse <strong>Merlim</strong> —, verificai então onde vos agrada fazê-la.<br />

— Quero que seja feita onde determinarei e souberes que agrade mais a<br />

— Nós a faremos em Carduel, em Gales. Reuni lá o povo todo do reino,<br />

os cavaleiros e as damas. Preparai-vos para distribuir com abundância vossos<br />

benefícios e oferecer-lhes uma bela festa. Irei à frente e mandarei fazer a mesa.<br />

Confiai-me homens que façam o que eu mandar. E quando lá chegardes e vosso<br />

povo se reunir, escolherei, entre aqueles que lá estiverem, quem deverá tomar<br />

assento à mesa.<br />

Do modo corno pediu <strong>Merlim</strong> o rei fez. E mandou dizer por todo o reino<br />

que estaria em Carduel no dia de Pentecostes e que todos os cavaleiros e todas as<br />

damas lá estivessem. Isso fez o rei divulgar para que todos o soubessem e <strong>Merlim</strong><br />

156


foi adiante para fazer o que convinha em relação à mesa. Assim ficou até a semana<br />

antes de Pentecostes em que o rei veio a Carduel e veio também muita gente e<br />

vieram cavaleiros e damas. Então disse o rei a <strong>Merlim</strong>:<br />

— Que pessoas escolhereis para tomar assento a esta mesa?<br />

— Amanhã vereis o que nunca imaginastes, porque escolherei cinqüenta<br />

dos melhores homens de vossa terra e, depois que tiverem tomado assento, não<br />

quererão mais voltar a sua região ou a sua terra e nem quererão partir daqui.<br />

— Isso verei com muito gosto.<br />

E <strong>Merlim</strong> fez o que havia dito. No dia de Pentecostes, escolheu cinqüenta<br />

cavaleiros e pediu-lhes e fez com que o rei pedisse que se assentassem à mesa e<br />

comessem o alimento. Eles concordaram e o fizeram com gosto. <strong>Merlim</strong>, que estava<br />

cheio de muita magia, andou entre eles e chamou o rei c mostrou o lugar vazio e<br />

muitos outros o viram, mas não sabiam o que significava, nem por que estava vazio.<br />

Depois disse ao rei que se assentasse, mas o rei disse que não se sentaria<br />

enquanto não estivessem todos servidos. Então os fez servir de tudo o que<br />

quisessem e, depois que estavam servidos, foi sentar-se. Assim passaram-se oito<br />

dias. Naquela festa, o rei fez muito ricos e belos presentes e deu muitas e belas jóias<br />

às damas e às donzelas. E quando chegou a hora de partir, vieram os homens bons<br />

e o próprio rei perguntar aos que haviam tomado assento na távola redonda o que<br />

pretendiam fazer.<br />

— Senhor — responderam —, não temos nenhuma intenção de partir.<br />

Queremos, ao contrário, sentar nessa mesa todos os dias, à hora de terça.<br />

Mandaremos vir nossas mulheres e nossos filhos a esta cidade e viveremos como<br />

agradar a Nosso Senhor. Tal é nosso desejo agora.<br />

— Senhores — perguntou-lhes o rei —, pensais todos assim?<br />

157


— Senhor — responderam —, verdadeiramente, sim. Muito nos<br />

maravilhamos com o fato de que nós, muitos dos quais nunca nos tínhamos visto e<br />

poucos dentre nós se conheciam, pensemos do mesmo modo. Agora nos amamos<br />

tanto ou mais do que um filho deve amar o pai e nunca nos separaremos, senão<br />

com a morte.<br />

O rei e quantos ouviram isso tomaram tudo por grande maravilha. Muito<br />

feliz ficou o rei e ordenou que fossem todos considerados, amados e honrados na<br />

cidade, como gente de sua corte. Assim estabeleceu em seu tempo Uterpendragão<br />

essa mesa. Depois que todos partiram, procurou <strong>Merlim</strong> e disse-lhe:<br />

— Vejo agora que dizias a verdade. Agora creio que Nosso Senhor quer<br />

essa mesa. Mas continuo maravilhado com o lugar vazio e gostaria que me<br />

dissesses, se o sabes, quem o ocupará.<br />

— Só posso dizer-vos que o assento não será ocupado em vosso tempo.<br />

Quem vai gerar aquele que vai preencher o lugar ainda não tomou mulher e não<br />

sabe que deve gerá-lo. Antes de tomar aquele assento, deverá sentar-se no lugar<br />

vazio, à mesa do Graal, o que ainda não viram cumprir-se as pessoas que guardam<br />

o vaso. Isso não acontecerá em vosso tempo, mas no reinado de vosso sucessor.<br />

Peço-vos que realizeis sempre as assembléias e as cortes nesta cidade de; Carduel,<br />

que a freqüenteis e que, três vezes por ano, convoqueis nela as cortes, por ocasião<br />

das festas anuais.<br />

— De muito bom grado o farei.<br />

— Agora tenho que ir. E não me vereis por um longo tempo.<br />

— Para onde irás? Não estarás presente a todas as festas nesta cidade?<br />

— Não, não poderei estar, porque quero que as pessoas que virem as<br />

coisas acontecerem não digam que fui eu que as fiz acontecerem.<br />

158


50<br />

Assim despediu-se <strong>Merlim</strong> de Uterpendragão e foi para Nortumberlândia<br />

encontrar-se com Brás. Contou-lhe o que se passara, como foi criada a távola<br />

redonda e muitas outras coisas que ouvireis em seu livro. <strong>Merlim</strong> ficou mais de um<br />

ano sem vir à corte. Aqueles que não o amavam e nem ao rei, mas fingiam amar,<br />

foram ao rei, certa vez, na reunião da corte do Natal e perguntaram-lhe a respeito do<br />

lugar que eslava vazio, por que não se assentava nele alguém para que a mesa<br />

ficasse completa. E o rei respondeu:<br />

— <strong>Merlim</strong> disse-me a respeito deste lugar uma grande maravilha:<br />

ninguém o ocupará em meu tempo e ainda não nasceu aquele que deve ocupá-lo.<br />

Eles riram disfarçadamente e, como eram fingidos, disseram:<br />

— Acreditais, senhor, que depois de nós haverá melhores cavaleiros e<br />

que não há em vosso reino outros tão bons como nós?<br />

— Não sei, <strong>Merlim</strong> disse-me apenas isso.<br />

— Ora, não vaieis nada se não tentardes.<br />

— Não tentarei, porque recearia ofender <strong>Merlim</strong> e irritá-lo.<br />

— Não sugerimos que tenteis agora; dizeis porem que <strong>Merlim</strong> sabe tudo o<br />

que se diz e se faz. Se ele sabe, então sabe muito bem quando falamos dele e de<br />

159


sua obra; e, se ele sabe, virá, se estiver vivo, e não deixará este lugar vazio com a<br />

grande mentira que vos falou. E se não vier até Pentecostes, não impedireis que<br />

tentemos, porque o tentaremos mesmo e há em nossa linhagem muitos homens<br />

bons que, com gosto, tomariam o assento. Vereis do que são capazes.<br />

— Não cuido — disse o rei — que isso magoasse <strong>Merlim</strong>; não há nada<br />

que ele quisesse tanto ver.<br />

— Se <strong>Merlim</strong> está vivo e se ele sabe, virá assim que o tentemos. Mas<br />

esperai, quando chegar Pentecostes, se ele não vier, então tentaremos.<br />

E o rei concordou. E eles ficaram muito satisfeitos porque acharam que<br />

haviam chegado a um bom resultado. E assim ficou até Pentecostes; o rei fez saber<br />

desde o Natal, por toda a terra, que aparecessem todos na festa de Pentecostes. E<br />

<strong>Merlim</strong>, que tudo isso relatou a Brás e contou-lhe as más intenções que tinham<br />

aqueles que estavam metidos nesse empreendimento, disse que não iria, que sabia<br />

muito bem que aquele assento devia ser testado e que era melhor que o fosse pelos<br />

mal intencionados e pelos fingidos do que pelos bons; e, se lá fosse, diriam que<br />

havia ido para atrapalhar o teste, e aqueles que fossem testar não acreditariam<br />

como convém que acreditem. Por isso disse <strong>Merlim</strong> que não iria. Então deixou<br />

passar o tempo e esperou até quinze dias depois de Pentecostes. Na festa de<br />

Pentecostes, o rei veio a Carduel com muita gente. Aqueles que vinham para<br />

experimentar o assento espalharam a notícia de que <strong>Merlim</strong> estava morto, que um<br />

camponês o havia matado num bosque confundindo-o com um selvagem. Tanto<br />

falaram e mandaram falar, que o próprio rei acreditou, e acreditou ainda mais porque<br />

havia muito tempo que ele não aparecia e não imaginava que ele esperasse que se<br />

testasse o assento. Assim estava o rei na véspera de Pentecostes e perguntou<br />

160


àqueles que deviam testar o lugar se se assentariam. E respondeu aquele que se<br />

considerava melhor que o rei e disse:<br />

— Quero que saibais e todos os que aqui estão presentes que não<br />

deixarei ninguém sentar-se, senão eu.<br />

Era de muito alta linhagem, rico e senhor de muitas terras. Havia lá muita<br />

gente esperando para vê-lo sentado: cavaleiros, clérigos, monges e artesãos da<br />

cidade. Ele os havia feito vir porque imaginava que <strong>Merlim</strong> iria e, se fosse,<br />

concordaria em ver o teste de qualquer pessoa que quisesse das três ordens que<br />

Deus estabeleceu na terra. Mas já que ele não tinha vindo, só ele experimentaria.<br />

Então dirigiu-se à mesa, onde estavam sentados os cinqüenta, e disse:<br />

— Venho sentar-me convosco para completar vossa companhia.<br />

Os cavaleiros não falaram nada, contiveram-se muito simplesmente e<br />

ficaram esperando pelo que ele quisesse fazer. O rei estava lá e muita gente com<br />

ele. O cavaleiro avançou, olhou para o assento vazio, passou entre os dois<br />

cavaleiros e sentou-se. Assim que pôs as coxas sobre o assento, afundou-se como<br />

faz uma massa de chumbo jogada dentro d'água. Assim afundou-se à vista de todos<br />

e ninguém soube o que aconteceu com ele. Quando o rei e todos os que lá estavam<br />

viram, ficaram muito espantados e ninguém sabia o que dizer. E ele era de muito<br />

alta linhagem. Como o viram perder-se desse modo, cada um quis ir ver o assento e<br />

o rei recomendou que os cavaleiros se levantassem para procurar onde poderia ter<br />

ido. Levantaram-se todos, e a dor foi tão grande na corte e a corte ficou muito triste<br />

com essa maravilha. Mais do que Iodos ficou o rei muito abatido e considerou que<br />

agira muito erradamente e disse, perante todos, que havia dito que ninguém deveria<br />

sentar-se naquele lugar e aquele cavaleiro não quis acreditar.<br />

161


51<br />

Assim desculpou-se o rei e, quando chegou o décimo quinto dia, <strong>Merlim</strong><br />

chegou. Quando o rei soube que <strong>Merlim</strong> havia chegado, ficou muito alegre e veio a<br />

seu encontro. <strong>Merlim</strong>, logo que viu o rei, disse-lhe que havia feito mal em deixar<br />

experimentar o assento. E o rei respondeu:<br />

— Sinto muito, mas ele me enganou.<br />

— Isso acontece com muita gente que pensa enganar os outros;<br />

enganam-se a si mesmas. Agora podeis ter certeza pelo que vos dizia e vos<br />

convenceu, ele acabou morrendo.<br />

— É bem verdade o que dizeis.<br />

- Agora ficai prevenido não permitindo experiências no assento, porque<br />

vos garanto que não advirão senão maldade e desonra, porque o assento da távola<br />

redonda não tem significado pequeno, mas muito alto e muito digno e fará muitos<br />

benefícios àqueles que vierem a este reino depois de vós.<br />

O rei pediu-lhe, se lhe agradasse, que dissesse o que poderia ter<br />

acontecido àquele cavaleiro que sentou-se, porque tinha o fato por grande<br />

maravilha. E <strong>Merlim</strong> respondeu:<br />

162


- Não vos adianta nada procurar saber e, se o soubésseis, de nada vos<br />

valeria, mas cuidai de amar e de honrar aqueles que têm assento na távola redonda<br />

e de conservar o que começastes o mais honradamente que puderdes e todas as<br />

cortes e todas as grandes alegrias vinde comemorar nesta cidade, em honra da<br />

mesa. Sabei, pelo que ora vistes, que ela é de tão alta dignidade que não a podeis<br />

devidamente honrar. Vou-me embora e tratai de fazer tudo como vos ensinei.<br />

— Farei, de bom grado, tudo como ensinastes e acabei de ouvir.<br />

Assim despediram-se o rei e <strong>Merlim</strong>. <strong>Merlim</strong> foi embora e o rei ficou e<br />

ordenou que fizessem na cidade grandes hospedagens e belas casas, porque lá<br />

faria suas cortes e grandes assembléias. Partiu então o rei e fez saber que todas as<br />

festas anuais como Natal, Páscoa, Pentecostes e Todos os Santos seriam<br />

comemoradas em Carduel e que todos os do reino que quisessem festejar viessem<br />

reunir-se com o rei, assim que ele os convocasse. Passou muito tempo e o rei<br />

mantinha as festas costumeiras em Carduel.<br />

163


52<br />

Um dia o rei teve vontade de reunir todos os barões e pediu-lhes que<br />

trouxessem todos suas mulheres e convocassem os cavaleiros de suas terras e os<br />

trouxessem também. Assim os fez o rei reunirem-se no Natal e convocou a todos por<br />

carta. Do modo como o rei ordenou e convocou em suas cartas, assim o fizeram.<br />

Sabei que havia muitos cavaleiros, muitas damas e donzelas. Não posso dizer nem<br />

devo perder tempo enumerando todos os que foram à corte, mas nomearei aqueles<br />

e aquelas de quem o conto falará depois. Quero pois que saibais que o duque de<br />

Tintagel estava lá e levou sua mulher Igerne. Uterpendragão, quando viu Igerne,<br />

ficou perdidamente apaixonado, mas não deixou transparecer.<br />

Quando muito a olhava com mais agrado do que as demais mulheres. Ela<br />

percebeu e deu-se conta de que o rei a olhava com agrado. Tendo percebido,<br />

esquivou-se e evitou passar diante do rei, pois era mulher muito virtuosa, muito bela<br />

e muito leal a seu senhor. E o rei, porque a amava e por não querer que o<br />

soubessem, distribuiu presentes para todas as damas, reservando para Igerne<br />

aqueles que imaginava mais agradarem. Tendo visto que todas as damas<br />

receberam presentes, Igerne não ousou recusar os seus, antes os aceitou e soube<br />

164


em seu coração que ele não havia presenteado a todas, senão para que ela<br />

recebesse os seus, mas fez que não havia percebido nada.<br />

Desse modo reuniu Uterpendragão aquela corte e de não tinha mulher.<br />

Ficou tão cheio de amor por Igerne, que não sabia o que fazer. Terminou a corte e,<br />

antes que partissem, pediu o rei a todos os barões que estivessem de volta na festa<br />

de Pentecostes com as mulheres, como dessa vez. E todos prometeram vir. E assim<br />

ficou. Quando o duque de Tintagel partiu da corte, o rei acompanhou-o<br />

demoradamente e o honrou muito. Depois, no momento de se separarem, o rei disse<br />

baixo para Igerne que ele queria que ela soubesse que levava seu coração, mas ela<br />

fez que não entendeu e assim se despediram. O rei ficou em Carduel, honrou os<br />

cavaleiros da távola redonda que haviam permanecido na sua corte, dizendo que<br />

sua presença o confortava muito, mas na verdade seu coração e seu pensamento<br />

estavam com Igerne. E assim esperou até Pentecostes.<br />

Na festa de Pentecostes, reuniram-se todos os barões e todas as<br />

mulheres. O rei ficou muito feliz ao saber que Igerne tinha vindo. Mostrou-se muito<br />

alegre e deu grandes presentes aos cavaleiros e às damas. Quando sentou-se para<br />

comer, fez com que o duque e Igerne se sentassem a sua frente. Cumulou-a tão<br />

generosamente de presentes e de favores, que Igerne não pôde fingir por mais<br />

tempo ignorar seu amor. Ficou muito angustiada e pesou-lhe muito ter demonstrado,<br />

mas era preciso.<br />

165


53<br />

Foi assim que Igerne soube, naquela festa de Pentecostes, que o rei a<br />

amava. Muito grande foi a alegria de todos e o rei honrou e agradou muito os<br />

barões. Depois que a festa acabou, cada um voltou para sua região. Ao se<br />

despedirem do rei, ele pedia-lhes que voltassem, quando os convocasse<br />

novamente. Desse modo encerrou-se a corte e o rei sofreu seu mal de amor por<br />

Igerne durante um ano. A dois de seus mais próximos queixou-se e contou o quanto<br />

sofria pelo amor de Igerne, e eles disseram:<br />

façamos por vós.<br />

— O que quereis que façamos? Não nos mandareis fazer nada que não<br />

— Aconselhai-me sobre como permanecer mais tempo em companhia de<br />

Igerne, sem levantar suspeitas.<br />

Eles disseram que, se ele se dirigisse à terra do duque, seria censurado,<br />

porque as pessoas perceberiam alguma coisa.<br />

— O que aconselhais então?<br />

— O melhor conselho que vemos é que façamos uma grande corte em<br />

Carduel e que façais saber a todos os que lá forem que deverão lá ficar durante<br />

166


quinze dias; que se preparem então para tanto e compareçam com suas mulheres.<br />

Então podereis ficar muito tempo com Igerne e ter a alegria de vossos amores.<br />

O rei convocou então seus vassalos. Todos foram a Carduel, com suas<br />

mulheres, como o rei havia pedido. Naquele Pentecostes, o rei resolveu usar coroa,<br />

colocou-a então e deu a seus barões muitos e belos presentes e também aos outros<br />

cavaleiros e às damas e a todos aqueles e aquelas com quem cuidava que seriam<br />

bem empregados. O rei estava muito alegre e muito bonito naquela festa e falou a<br />

um de seus conselheiros em quem mais confiava. Esse conselheiro chamava-se<br />

Urfino. Pediu-lhe o rei conselho sobre o que poderia fazer, pois o amor de Igerne o<br />

matava, não conseguia dormir nem descansar, pensava sempre em morrer, quando<br />

não a podia ver; quando a via, a dor aliviava-se um pouco e disse que não poderia<br />

viver muito mais, sem o conforto de seu amor, e era melhor morrer.<br />

Urfino respondeu:<br />

— Senhor, estais muito mal por imaginar que, por causa do amor de uma<br />

mulher, preferis morrer. Eu que sou um pobre homem, se a amasse tanto como vós,<br />

não pensaria na morte. Nunca ouvi falar de uma mulher que, se fosse bem cortejada<br />

por quem pudesse lhe fazer as vontades, bem como dar-lhe jóias e honrar todos os<br />

seus e fazer e dizer o que a cada um agradasse, nunca ouvi dizer de mulher que<br />

diante disso se recusasse. E vós vos atormentais! Que ânimo fraco vos abate?<br />

— Urfino, o que dizes é muito sensato. Sabes o que convém fazer em tais<br />

circunstâncias. Peço-te então que me ajudeis como puderes. Pega em minha<br />

câmara tudo o que quiseres, faze com meus bens o que for preciso e fala a Igerne o<br />

melhor que puderes do meu interesse.<br />

— Podeis confiar. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.<br />

Terminando a conversa com o rei, ainda disse-lhe<br />

167


Urfino:<br />

— O amor não respeita a razão contra o que quer fazer. Cuidai de estar<br />

em boas relações com o duque, fazei-lhe companhia o mais que puderdes e a todos<br />

aqueles que souberdes que ele ama, então mais vos amará; fazei-o sempre sentar-<br />

se a vossa mesa e fazei de tudo para agradá-lo. Eu cuidarei de falar com Igerne.<br />

— Isso saberei muito bem fazer. E assim começaram a agir.<br />

168


54<br />

Durante os oito dias da festa, o rei demonstrou muita alegria e sempre<br />

manteve o duque em sua companhia e disse e fez tudo o que imaginou que ele<br />

quisesse e presenteou muito a ele e a seus companheiros. Urfino falou com Igerne e<br />

disse e fez tudo o que imaginou que pudesse agradá-la e deu-lhe muitos presentes.<br />

Mas ela recusava e não queria receber nada, até que um dia chamou-o à parte e<br />

disse-lhe:<br />

— Por que queres dar-me estas jóias e estes presentes?<br />

— Por vossa prudência e porque sois muito bela e por vossa simplicidade,<br />

mas não posso dar-vos nada, porque todos os bens terrenos do reino de Logres são<br />

vossos, bem como os corações dos homens estão a vossa disposição.<br />

— Como?<br />

— Tendes o coração daquele a quem tudo pertence e esse coração é<br />

vosso e ele vos obedece, por isso estão todos os corações a vossa disposição.<br />

— De que coração falas?<br />

— Do coração do rei.<br />

Ela levantou a mão, persignou-se e disse:<br />

169


— Por Deus! Como é traidor o rei que finge amar o meu senhor e quer<br />

desonrar-me! Urfino, guarda essas palavras que me dizes, porque quero que saibas<br />

que o direi ao duque meu senhor e, quando ele souber, devereis morrer, isso não te<br />

escondo.<br />

— Seria uma honra morrer por meu senhor, mas nunca uma dama se<br />

recusou, como o fazeis, de ser amiga do rei que mais vos ama do que todas as<br />

coisas que possam viver ou morrer. E vós o desprezais. Senhora, por Deus, tende<br />

piedade do rei, de vós mesma e de vosso senhor, porque é verdade que, se não<br />

tiverdes consideração, vereis grande desgraça acontecer, nem vós nem o duque<br />

podeis ir contra a vontade do rei.<br />

ele estiver.<br />

Igerne, chorando, respondeu e disse:<br />

— Com a ajuda de Deus, eu me negarei sempre e nunca mais irei onde<br />

170


55<br />

Dito isso, Urfino e Igerne se separaram. Urfino foi contar ao rei o que ela<br />

havia dito e o rei reconheceu que assim deveria responder uma dama virtuosa.<br />

— Não deixes, no entanto — acrescentou a Urfino —, de insistir, porque<br />

nunca uma dama deixou de ser vencida.<br />

No décimo primeiro dia depois de Pentecostes, quando o rei sentou-se<br />

para comer, sentou-se com ele à mesa o duque. Urfino ajoelhou-se diante do rei e<br />

disse:<br />

receba.<br />

— Oferecei esta taça a Igerne e dizei ao duque que permita que ela a<br />

— Está bem — disse o rei.<br />

Urfino levantou-se, o rei levantou a taça muito feliz e disse ao duque:<br />

— Vede esta bela taça, pedi a Igerne, vossa esposa, que ela a receba e<br />

beba por meu amor e a entregarei cheia de vinho para um de vossos cavaleiros.<br />

disse-lhe:<br />

E o duque aceitou, como quem nada de errado percebia e disse:<br />

— Senhor, muito obrigado, ela a aceitará com satisfação.<br />

O duque chamou um cavaleiro seu, com quem se dava muito bem, e<br />

171


— Bretel, toma esta taça, Ieva-a a tua dama e dize-lhe que eu ordeno que<br />

beba por amor do rei.<br />

dela e disse:<br />

Bretel pegou a taça, foi ao lugar em que Igerne comia, ajoelhou-se diante<br />

— Senhora, o rei vos envia esta taça e vosso senhor ordena que a<br />

recebais e bebais por amor dele.<br />

Ao ouvir isto, ela ficou muito envergonhada e corou e não ousou recusar<br />

pela ordem do duque. Tomou a taça e bebeu e devolveu-a ao mesmo cavaleiro para<br />

levá-la ao rei.<br />

Bretel disse então:<br />

— Senhora, meu senhor pede que fiqueis com a taça; o próprio rei o quer.<br />

Quando ela ouviu isso, entendeu que lhe conviria conservá-la.<br />

Bretel voltou ao rei, agradeceu-lhe da parte de Igerne, embora ela nada<br />

tivesse dito. O rei ficou muito satisfeito por ela ter ficado com a taça. Urfino passou<br />

perto de Igerne para verificar a sua reação. Achou-a muito pensativa e, depois que a<br />

mesa foi tirada, ela chamou Urfino e disse-lhe:<br />

— Por alta traição teu senhor enviou-me uma taça, mas fica sabendo que<br />

ele não ganhará nada com isso, antes farei com que se envergonhe e, antes que<br />

amanheça, contarei a meu senhor a traição com que tu e o rei me perseguis.<br />

Urfino respondeu:<br />

— Não sereis louca, porque nunca uma dama disse tais palavras a seu<br />

senhor que ele acreditasse. Pensai bem nisso.<br />

— Ao diabo quem confiar nisso!<br />

Então partiu Urfino, e o rei, depois de comer e de ter lavado as mãos,<br />

estava muito alegre e tomou o duque pela mão e disse-lhe:<br />

172


— Vamos ver as damas.<br />

O duque concordou e foram à câmara em que Igerne e as outras damas<br />

haviam comido. Veio então o rei com os outros cavaleiros para ver as damas, mas<br />

Igerne percebeu claramente que o rei não tinha vindo senão por ela.<br />

173


56<br />

Ela suportou isso todo o dia até à noite. E à noite foi para sua<br />

hospedagem. Quando o duque chegou, encontrou-a chorando e lamentando-se<br />

muito em sua câmara. Ao vê-la nesse estado, o duque maravilhou-se muito, tomou-a<br />

nos braços como quem muito a amava e perguntou-lhe o que tinha. E ela disse que<br />

queria estar morta. O duque maravilhou-se muito e perguntou-lhe por quê. Ela<br />

respondeu:<br />

— Não vos esconderei nada, porque não há nada que tanto ame como<br />

vós. O rei disse que me ama e que todas essas cortes que faz, a que convoca todas<br />

as damas, ele as faz e manda virem as damas só por mim e para vos dar a<br />

oportunidade de me trazeres junto. Desde a festa anterior, eu sei; evitei-o e recusei<br />

todos os seus presentes. Nunca nada recebi e hoje vós me fizestes receber a taça e<br />

a enviastes por Bretel, para que eu bebesse por amor dele. Por isso queria estar<br />

morta, porque não consigo impedir Urfino, seu conselheiro, de me falar. Assim quero<br />

que saibais, pois que vos digo isto, que tal situação não pode durar sem trazer<br />

grande desgraça e peço-vos, como meu senhor, que me leveis a Tinlagel, porque<br />

não quero mais ficar nesta cidade.<br />

174


Quando o duque, que muito amava sua mulher, ouviu isso e<br />

compreendeu o que se passava, ficou tão irado como ninguém podia ficar. Mandou<br />

convocar os seus cavaleiros na cidade. Quando chegaram, viram bem que seu<br />

senhor estava furioso. E ele lhes disse:<br />

— Preparai-vos para cavalgar às escondidas, que ninguém o saiba,<br />

porque quero ir embora e não me pergunteis agora por quê.<br />

— Às ordens, senhor.<br />

— Pegai vossas armas e vossos cavalos, deixai as bagagens que vos<br />

seguirão amanhã, porque não quero que o rei saiba e quero esconder a saída de<br />

quem for possível.<br />

Do modo como o duque ordenou fizeram. E o duque tinha mandado trazer<br />

seu cavalo e o palafrém de Igerne, montou o mais depressa que pôde e foi para sua<br />

terra e levou sua mulher.<br />

175


57<br />

De manhã, depois que já tinham partido, houve um grande rebuliço na<br />

cidade entre os que ficaram. O rei soube de manhã que o duque tinha ido. Teve<br />

grande dor e ficou muito triste porque ele levou Igerne. Convocou todos os seus<br />

barões e todo o seu conselho e revelou a ofensa e o desprezo que o duque lhe<br />

havia feito. E muitos falaram que estavam maravilhados e que ele havia feito grande<br />

loucura que não sabiam como reparar. Isso diziam aqueles que não sabiam a razão<br />

pela qual o duque havia partido. O rei então pediu que o aconselhassem como<br />

poderia fazer para reparar a ofensa e eles disseram:<br />

— Reparareis como vos aprouver.<br />

O rei contou-lhes o que já haviam presenciado, que os havia mais<br />

honrado que aos outros barões. Eles disseram que era verdade e que muito se<br />

maravilhavam com esse ultraje. E o rei disse:<br />

— Se concordais, ordenarei que reparem essa ofensa, que assim como<br />

partiram, voltem à corte para se justificarem.<br />

O conselho todo concordou. Dois homens foram levar a mensagem.<br />

Cavalgaram tanto, que chegaram a Tintagel, onde encontraram o duque. E quando o<br />

encontraram, deram-lhe a mensagem que haviam recebido. Quando o duque os<br />

176


ouviu dizer que lhe convinha voltar atrás como tinha vindo, soube bem que lhe<br />

convinha também levar Igerne, então respondeu aos mensageiros e disse:<br />

— Não irei de volta à corte, porque o rei tanto fez e disse a mim e aos<br />

meus, que já não lhe tenho confiança e nem me conto em sua corte nem sob sua<br />

mercê e outra coisa não tenho a dizer, mas daquilo que digo tomo a Deus por<br />

garantia. Ele sabe muito bem que tanto me fez quanto pôde, quando era meu<br />

senhor, que não lhe posso mais ter confiança.<br />

177


58<br />

Então partiram os mensageiros que não podiam mais esperar. Depois que<br />

os mensageiros partiram de Tintagel, o duque convocou seus homens e seu<br />

conselho, contou-lhes por que tinha ido a Carduel, o mal e a desonra com que o rei<br />

o perseguia e a deslealdade que pretendia com sua mulher. Tendo ouvido,<br />

maravilharam-se muito e disseram que, se a Deus aprouvesse, isso não seria<br />

tolerado e que quem tal perfídia fazia a seu vassalo devia ser castigado.<br />

Então disse o duque:<br />

— Peco-vos, por Deus e por vossa honra e pelo que me deveis, que me<br />

ajudeis, em caso de guerra, a defender minha terra.<br />

E eles responderam que o fariam, bem como todos os outros que<br />

pudessem fazê-lo, empenhando a própria vida. Assim aconselhou-se o duque com<br />

seus homens.<br />

Os mensageiros chegaram a Carduel e encontraram o rei e seus barões.<br />

Contaram ao rei e a seu conselho o que o duque havia dito.<br />

Então disseram todos que estavam muito maravilhados com a loucura do<br />

duque, porque antes o tinham como homem prudente. O rei pediu-lhes e exigiu<br />

como a seus homens que vingassem a humilhação c a vergonha imposta a sua<br />

178


corte. Todos responderam que não se opunham, mas pediram, por sua lealdade,<br />

que lhe dessem um prazo de quarenta dias. Assim fé/, o rei c pediu que em quarenta<br />

dias estivessem todos reunidos para a guerra. E disseram que o fariam com<br />

satisfação. Depois disso, o rei enviou seus mensageiros para desafiar o duque em<br />

quarenta dias. Ele respondeu que se defenderia como pudesse, no caso de ser<br />

atacado. Tendo partido os mensageiros, o duque convocou seus homens, contou-<br />

lhes o desafio que recebera e pediu-lhes que o ajudassem, porque precisava muito<br />

deles. Responderam que de bom grado o ajudariam. No conselho, o duque disse<br />

que tinha apenas dois castelos que podiam oferecer resistência ao rei, que esses<br />

dois ele não tomaria, enquanto ele vivesse. Revelou que deixaria Igerne em<br />

Tintagel, onde ficariam dez cavaleiros, porque sabia bem que o castelo não tinha<br />

dificuldades contra ataques de quem quer que fosse e esses dez cavaleiros e os<br />

homens da cidade guardariam bem a entrada. Assim como ordenou foi feito, e ele<br />

com toda sua gente foi a seu outro castelo que era mais fraco para reforçá-lo,<br />

porque de outra maneira não poderia defendê-lo.<br />

179


59<br />

Deste modo preparou-se o duque para defender-se. E os mensageiros<br />

que o desafiaram, depois que voltaram à corte, contaram ao rei que o duque<br />

preparava-se para defender-se. Muito irritado com essas novas, o rei mandou cartas<br />

a seus vassalos por todo o reino para que se reunissem na fronteira das terras do<br />

duque num campo às margens de um grande rio. Estando reunidos, contou-lhes a<br />

desonra e a humilhação que o duque havia feito e o desafio de sua corte que ele<br />

havia enfrentado. Os barões disseram que ele estava certo e que o amavam. Desse<br />

modo entrou o rei na terra do duque, tomou seus castelos, suas cidades e sua terra.<br />

Ouviu dizer que o duque estava num castelo seu c sua mulher cm outro. Então falou<br />

o rei a seu conselho e perguntou que castelo iria atacar. Os barões aconselharam<br />

que fosse ao duque onde quer que estivesse, porque lendo o duque, teria terra.<br />

Todos eram unânimes e o rei concordou. Quando cavalgaram para onde o duque<br />

estava, o rei falou a Urfino:<br />

— Então não verei Igerne? Urfino respondeu:<br />

— É preciso conformar-se com o que não se pode ter. Deveis vos<br />

esforçar muito para ter o duque, porque, se o tiverdes, estareis encaminhado para<br />

vosso outro assunto. Aqueles que vos aconselharam a ir onde o duque está, muito<br />

180


om conselho vos deram, porque não seria bom que fósseis onde está Igerne, pois<br />

estaríeis revelando o caso.<br />

Assim atacou o rei o duque em seu castelo. O ataque foi muito forte e o<br />

duque defendeu-se muito bem.<br />

181


60<br />

Muito tempo ficou o rei cercando o castelo, sem conseguir tomá-lo; estava<br />

muito angustiado e acabrunhado pelo amor de Igerne, mas tanto que um dia, em<br />

sua tenda, começou a chorar. Quando os seus o viram chorar, saíram e deixaram-no<br />

só. Urfino, ao saber disso, veio; ao ver o rei chorar, pesou-lhe muito e perguntou-lhe<br />

por que chorava.<br />

— Deves saber muito bem por quê. Sabes que morro de amor por Igerne.<br />

E vejo que vou morrer, porque não bebo, não como, nem durmo e não tenho o<br />

descanso de que preciso, por isso sei que vou morrer e não vejo como possa ter<br />

remédio e tenho pena de mim mesmo.<br />

— Estais com ânimo muito abatido e fraco para imaginar que morrereis<br />

por amor de uma mulher. Eu vos darei um bom conselho. Mandai procurar <strong>Merlim</strong>,<br />

pedi-lhe que venha aqui. Podeis ter certeza de que vos dirá o que deveis fazer,<br />

desde que fizésseis tudo o que ele pedisse e não o contrariásseis.<br />

— Não há nada que eu pudesse fazer que não tenha feito. <strong>Merlim</strong> está<br />

sabendo do meu sofrimento. Tenho receio de tê-lo magoado por ter permitido que<br />

experimentassem o assento da távola redonda, pois há muito tempo que não volta<br />

aqui. Pode acontecer também que ele reprove meu amor por uma mulher de um<br />

182


vassalo meu. Não agüento mais, nem posso desligar dela o meu coração. E lembro-<br />

me muito bem de que ele recomendou que nunca o mandasse procurar.<br />

— Estou certo de que, se ele está de boa saúde e vos ama ainda como<br />

antigamente, tão logo saiba de vossa dor, não demorará nada para que tenhais<br />

novas dele.<br />

Desse modo Urfino confortou o rei. E acrescentou que, se ele se<br />

esforçasse para manter boa aparência e se alegrasse e reunisse seus homens e<br />

passasse o tempo com eles, esqueceria grande parte de sua mágoa. E o rei<br />

respondeu que faria, de boa vontade, o que ele tinha dito, mas a mágoa e o amor<br />

ele não podia esquecer. Assim reconfortou-se o rei por algum tempo e recomeçou o<br />

ataque ao castelo, mas não pôde tomá-lo.<br />

183


61<br />

Um dia aconteceu que Urfino cavalgava pelo campo e encontrou um<br />

homem que ele não conhecia e esse homem lhe disse:<br />

— Senhor Urfino, gostaria muito de falar contigo em segredo.<br />

— E eu contigo também.<br />

Saíram então do campo, ele a pé e Urfino a cavalo. Urfino apeou e<br />

perguntou-lhe quem era.<br />

— Sou um homem muito velho, isto podes muito bem ver; quando era<br />

jovem era considerado muito prudente, mas agora dizem, por muitas coisas que<br />

digo, que ando caduco. Em todo caso, quero dizer-te, confidencialmente, que ainda<br />

há pouco estive em Tintagel. Lá conheci um homem do conselho do duque que me<br />

disse que Uterpendragão, teu rei, ama Igerne, a mulher do duque, e por isso veio o<br />

rei destruir a terra dele. Se teu rei e tu confiardes em mim, eu conheço um homem<br />

que te faria falar com Igerne e que aconselharia o rei em seus amores.<br />

Quando Urfino ouviu esse velho assim falar, maravilhou-se muito<br />

imaginando onde poderia ele ter aprendido o que dizia. Rogou-lhe insistentemente<br />

que, se pudesse, lhe apresentasse logo aquele que poderia aconselhar o rei em<br />

seus amores.<br />

184


daria.<br />

daqui ao campo.<br />

— Queria primeiro saber — replicou o velho — que recompensa o rei me<br />

— Depois que tiver contado ao rei, vos encontrarei aqui?<br />

— Haverás de encontrar-me ou ao meu mensageiro amanhã, no caminho<br />

Recomendou-o a Deus e partiu dizendo que não demorasse e não<br />

falhasse, porque lhe diria coisas de que muito se alegraria.<br />

Urfino partiu também e foi o mais depressa que pôde encontrar-se com o<br />

rei e contou-lhe o que lhe disse aquele homem. O rei, depois que o ouviu, riu e ficou<br />

muito alegre e perguntou a Urfino:<br />

dareis.<br />

— Conheces o homem que te falou?<br />

— Vi muito bem que era um velho e muito fraco.<br />

— Quando deve ele te falar novamente?<br />

— De manhã. E pediu-me que soubesse dizer-lhe que recompensa lhe<br />

— Tu me levarás a falar com ele.<br />

E Urfino disse que iria com gosto e acrescentou:<br />

— Assim falareis com ele sem minha companhia e lhe oferecereis o que<br />

quiser receber.<br />

muito tempo.<br />

E assim ficou até a manhã seguinte, mas o rei nunca esteve tão alegre, havia<br />

185


62<br />

De manhã, depois da missa, na hora mesma que Urfino quis, cavalgou o<br />

rei pelo campo na direção em que Urfino o guiava. Depois que saíram do campo,<br />

viram um paralítico que parecia não enxergar nada. Quando o rei passou diante<br />

dele, gritou:<br />

— Rei, que Deus encha vosso coração daquilo que mais o quereis ver<br />

cheio! Dai-me alguma coisa de que vos seja agradecido.<br />

minha vontade?<br />

pode fazer.<br />

O rei olhou, chamou Urfino e disse-lhe rindo:<br />

— Urfino, farias para mim o que te pedisse, por meu amor e para cumprir<br />

— Não há nada que tanto deseje, como fazer por vós o que ninguém<br />

— Ouviste o que este paralítico me pediu prometendo a coisa do mundo<br />

que eu mais desejo? Vai então, fica com ele e dizer-lhe que te entreguei a ele,<br />

porque não há nada no mundo que eu tanto preze como tu.<br />

disse-lhe:<br />

Urfino foi sentar-se ao lado do paralítico. Quando o paralítico viu Urfino,<br />

— O que vieste procurar?<br />

186


— O rei entregou-me a ti para que seja teu. Ao ouvir isso, ele riu e disse:<br />

— Urfino, o rei sabe o que se passa e me conhece melhor do que tu.<br />

Quero que saibas que o velho que viste ontem enviou-me aqui, mas não te direi<br />

nada do que ele me disse. Volta ao rei e dize-lhe que vejo bem que ele cometeria<br />

um grande erro para ter o que deseja, mas tudo se resolverá a seu favor, porque<br />

logo me reconheceu.<br />

disse-lhe:<br />

paralítico?<br />

dizer-me.<br />

E Urfino disse:<br />

— Não ousarei perguntar nada a teu respeito.<br />

— Perguntai ao rei e ele vo-lo dirá.<br />

Urfino montou e voltou ao rei. Quando o rei o viu, chamou-o à parte e<br />

— Como estás aqui? Não havia mandado que fósseis encontrar o<br />

— Ele vos manda dizer que sabeis quem ele é, o que de modo algum quis<br />

Então voltaram os dois juntos o mais depressa que puderam e, quando<br />

chegaram onde Urfino havia deixado o paralítico, não encontraram ninguém. Então<br />

disse o rei a Urfino:<br />

— Aquele homem que falou contigo ontem tinha a aparência de um velho,<br />

mas é o mesmo que viste hoje como paralítico.<br />

Quem poderia ser?<br />

— Será mesmo verdade? Como poderia um homem se transfigurar?<br />

— Fica sabendo que é, de fato, <strong>Merlim</strong> que brinca assim conosco. E<br />

quando quiser, nos fará saber que é ele.<br />

187


63<br />

Permaneceram lá cavalgando pelo campo. <strong>Merlim</strong> foi para a tenda do rei,<br />

sob sua verdadeira aparência, como era conhecido e perguntou onde eslava o rei.<br />

Quando o mensageiro encontrou o rei, disse-lhe que <strong>Merlim</strong> o procurava. Ele ficou<br />

tão alegre, que não soube o que responder; voltou o mais depressa que pôde e<br />

disse a Urfino:<br />

— Agora vais ver o que te anunciei. <strong>Merlim</strong> chegou. Eu sabia muito bem<br />

que era inútil procurá-lo.<br />

— Se alguma vez respeitastes a vontade dele, agora e o momento de<br />

fazer melhor ainda, porque ninguém, melhor do que ele, vos poderá ajudar a<br />

conseguir o amor de Igerne.<br />

— Tens razão, não há nada que ele me ordene que eu não faça.<br />

Foram até a tenda e o rei encontrou <strong>Merlim</strong>. Ao vê-lo, ficou muito alegre e<br />

disse-lhe que era bem-vindo. Abraçou-o docemente e disse-lhe:<br />

— De que me queixarei a vós que conheceis tanto como eu meu<br />

sofrimento? Nunca alguém demorou tanto para chegar como vós! Peço-vos, por<br />

Deus, que me ajudeis a conseguir o que meu coração deseja.<br />

188


— A respeito do que falais, não vos direi nada sem Urfino.<br />

Então o rei mandou chamar Urfino e retiraram-se à parte para conversar.<br />

Então disse o rei a <strong>Merlim</strong>:<br />

— Eu disse a Urfino o que mandastes, porque sois, de fato, o homem que<br />

ele viu e sois também o paralítico.<br />

Urfino olhou para ele com curiosidade e perguntou:<br />

— Pode isto que o rei disse ser verdade?<br />

— Sim — respondeu <strong>Merlim</strong> —, sem falha, sou eu; assim que soube que<br />

ele te enviou, sei que ele se havia apercebido.<br />

Então disse Urfino ao rei:<br />

— Senhor, deveis falar a <strong>Merlim</strong> de vosso caso e não apenas vos<br />

lamentar quando estais só.<br />

— Não sei o que dizer-lhe nem o que pedir-lhe, porque ele sabe muito<br />

bem que meu coração e meu ânimo não lhe poderiam mentir, que ele não o<br />

soubesse, mas, por Deus e por meu amor, peço-lhe que, se for do seu agrado, me<br />

ajude a ter o amor de Igerne e ele nada dirá que queira que se faça que não seja<br />

feito.<br />

— Se vos comprometeis desse modo a dar-me o que vos pedir,<br />

procurarei conseguir que tenhais seu amor e vos farei dormir em sua câmara com<br />

ela inteiramente nu.<br />

dê.<br />

Ao ouvir isto, Urfino riu e disse:<br />

— Agora quero ver o que vale o coração de um homem.<br />

— Certamente — disse o rei —, não sabereis pedir-me nada que não vos<br />

— Como posso ter certeza disso? — perguntou <strong>Merlim</strong>.<br />

189


— Do modo como quiserdes.<br />

— Jurai-me sobre as santas relíquias e mandai Urfino jurar que o que vos<br />

pedir, no dia seguinte ao que vos tiver feito dormir com ela e ter tido com ela todo o<br />

vosso prazer, vós me dareis, sem nada subtrair.<br />

E o rei respondeu que sim e de muito boa vontade. E <strong>Merlim</strong> perguntou a<br />

Urfino se ele juraria e ele respondeu que cumprisse sua parte depois que tivessem<br />

jurado. <strong>Merlim</strong>, ao ouvir isso, riu e disse:<br />

acontecerá.<br />

— Depois que os juramentos tiverem sido feitos, eu vos direi o que<br />

Então o rei mandou trazerem as mais caras relíquias e jurou sobre um<br />

livro o que havia prometido e do modo como havia entendido que, em boa fé, lhe<br />

daria o que lhe fosse pedido depois do juramento. E Urfino jurou em seguida, que<br />

Deus e os santos ajudassem o rei a manter o que havia jurado e prometido.<br />

Desse modo foram feitos os juramentos e <strong>Merlim</strong> os tomou.<br />

190


Então disse o rei a <strong>Merlim</strong>:<br />

64<br />

— Agora peço-vos que vos ocupeis do meu caso, como daquele que mais<br />

desejoso está de cumprir sua vontade.<br />

— Senhor, para ir junto de Igerne, será preciso trocar vossa aparência,<br />

porque ela é muito virtuosa e fiel a Deus e a seu senhor. Vereis como será possível<br />

satisfazer vossos desejos: vou dar-vos a aparência do duque, de modo que ninguém<br />

vos reconhecerá. Há dois cavaleiros muito íntimos do duque e de sua mulher, um<br />

chama-se Bretel e o outro Jordão. Darei a Urfino a aparência de Jordão e eu tomarei<br />

a de Bretel e assim iremos convosco a Tintagel. Eu vos farei abrir as portas e vos<br />

farei entrar entre mim e Urfino; mas convirá que saiais de lá muito cedo, porque,<br />

quando lá dentro estivermos, teremos muito estranhas notícias. Voltai agora a<br />

vossas tropas e a vossos barões e proibi a quem quer que seja de aproximar-se do<br />

castelo, enquanto não tivermos voltado e cuidai de não dizer a qualquer outra<br />

pessoa onde quereis ir.<br />

O rei respondeu que faria tudo conforme o combinado e garantiu que os<br />

seus cumpririam fielmente suas ordens.<br />

191


— Estou pronto e vos darei as aparências novas a caminho.<br />

O rei apressou-se o mais que pôde para fazer o que <strong>Merlim</strong> havia<br />

ordenado e voltou dizendo:<br />

— A minha parte está feita, cuidai da vossa. E <strong>Merlim</strong> disse:<br />

— E só montar.<br />

Então prepararam-se para viajar à noite.<br />

192


<strong>Merlim</strong>:<br />

65<br />

Naquela noite, cavalgaram tanto que chegaram a Tintagel. Então disse<br />

— Ficai aqui, enquanto Urfino e eu vamos ali. Depois voltou ao rei<br />

trazendo uma erva e disse:<br />

— Esfregai essa erva em vossa face e em vossas mãos. O rei pegou e<br />

esfregou-a e depois que esfregou viu que estava inteiramente igual ao duque. Então<br />

perguntou-lhe <strong>Merlim</strong>:<br />

— Senhor, lembrai-vos de alguma vez ter visto Jordão?<br />

— Sim, eu o conheço bem.<br />

<strong>Merlim</strong> voltou então a Urfino, transformou-o na aparência de Jordão e o<br />

trouxe pelo freio para perto do rei. Quando Urfino viu o rei, persignou-se e disse:<br />

— Senhor, como é possível tal semelhança entre um homem e outro?<br />

E o rei perguntou a Urfino:<br />

— O que te parece de mim?<br />

— Não o conheço por ninguém, senão pelo duque.<br />

193


E o rei disse que ele também estava inteiramente igual a Jordão. Assim<br />

estando, olharam para <strong>Merlim</strong> e pareceu-lhes que era verdadeiramente Bretel.<br />

Ficaram conversando até que escurecesse. Depois que anoiteceu, foram à porta de<br />

Tintagel. <strong>Merlim</strong>, que maravilhosamente se parecia com Bretel, chamou os porteiros.<br />

Eles vieram, e ele disse-lhes:<br />

— Abri! O duque está aqui.<br />

Abriram e viram claramente Bretel, o duque e Jordão e os deixaram<br />

entrar. Uma vez lá dentro, Bretel proibiu que dissessem na cidade que o duque<br />

havia chegado. À duquesa logo alguém foi dizê-lo. Cavalgaram até o paço e<br />

apearam. <strong>Merlim</strong> chamou o rei à parte e aconselhou-o a comportar-se lá dentro<br />

muito bem como senhor. Então foram os três até à câmara em que Igerne dormia, e<br />

ela estava deitada. O mais depressa que puderam, fizeram seu senhor desarmar-se<br />

e deitar-se. Então saíram e ficaram à porta até de manhã. Dessa maneira dormiu<br />

Uterpendragão com Igerne e naquela noite gerou o bom rei que depois teve nome<br />

Artur. A dama fez o prazer de Uterpendragão pensando estar com seu senhor.<br />

Assim ficaram juntos até de manhã.<br />

194


66<br />

De manhã, ao raiar o dia, chegaram novas à cidade de que o duque<br />

estava morto e seu castelo tomado, e a notícia chegava muito secretamente. E<br />

assim que aqueles que dormiam à porta o ouviram, levantaram-se e foram onde o rei<br />

dormia e disseram:<br />

consideram morto.<br />

— Levantai-vos e retomai vosso castelo, porque os vossos vos<br />

Ele levantou-se e disse:<br />

— Não é nenhuma maravilha que pensem assim, porque quando saí do<br />

castelo ninguém soube.<br />

Então despediu-se de Igerne e beijou-a diante daqueles que lá estavam.<br />

Depois saíram os três do castelo o mais depressa que puderam, sem serem<br />

reconhecidos. Lá fora, ficaram muito alegres. E <strong>Merlim</strong> disse ao rei:<br />

— Cumpri a minha parte. Fazei vós o mesmo.<br />

— Tendes minha palavra. Vós me propiciastes a maior alegria e<br />

prestastes o mais belo serviço que jamais alguém fez a outrem e o que vos convier o<br />

tereis muito bem.<br />

195


— Eu vos peço e quero que me assegureis: sabei que gerastes um filho<br />

em Igerne e o destes para mim, porque não deveis tê-lo. Vós o dareis então para<br />

mim com todos os poderes que tendes sobre ele. Anotareis por escrito a noite e a<br />

hora em que o gerastes e assim sabereis que vos disse a verdade.<br />

— Eu o jurei. Farei pois como dizeis. E eu vo-lo devo muito bem.<br />

Cavalgaram até um rio, no qual <strong>Merlim</strong> fez todos se lavarem. Depois que<br />

se lavaram, perderam a aparência. Então o rei cavalgou o mais depressa que pôde<br />

em direção às suas fileiras e, assim que chegou, seus homens o rodearam. E ele<br />

perguntou-lhes como havia acontecido a morte do duque. Eles contaram que na<br />

noite em que ele partira, estava tudo muito calmo. E que o duque, ao perceber sua<br />

ausência, fez armar todos os seus e os fez sair por aquela porta e saíram todos, uns<br />

a pé e outros a cavalo, e invadiram o campo. Correram sobre nossas fileiras e<br />

causaram muito prejuízo, enquanto não havia muitos armados, mas logo levantou-se<br />

um alarido e nos armamos e fomos em cima deles devolvendo-os porta adentro. O<br />

duque deu meia-volta e combateu com muita bravura, mas seu cavalo morreu e ele,<br />

caído e perdido, foi morto pelos nossos que estavam a pé e não o conheciam.<br />

Batemos então os outros porta adentro, que não podiam defender-se, depois de<br />

terem perdido o duque. Desse modo tornamos a cidade. O rei respondeu-lhes que<br />

muito lhe pesava a morte do duque. Assim morreu o duque de Tintagel e assim<br />

perdeu seu castelo.<br />

196


67<br />

O rei falou a seus barões e demonstrou que lhe pesava muito a desgraça<br />

do duque. Então pediu conselho sobre como poderia remediar o acontecido, sem<br />

provocar censura, porque ele não odiava o duque de morte e muito lhe pesava sua<br />

morte e estava disposto a remediar, no que estivesse em seu poder. Então falou<br />

Urfino que era muito íntimo do rei e disse:<br />

— Já que está feito, convém remediar o mal o mais depressa possível.<br />

Chamou um bom número de barões à parte e perguntou-lhes:<br />

— Senhores, que compensação imaginais que o rei deve fazer pela morte<br />

do duque a sua mulher e a seus amigos? O rei vos reuniu em conselho e deveis<br />

aconselhá-lo o melhor que puderdes, porque é vosso senhor.<br />

— De muito bom grado o aconselharemos e vos perguntamos, por serdes<br />

o mais próximo dele, que nos digais que proposta lhe devemos fazer.<br />

— Imaginais porventura que, por estar mais próximo dele, não lhe dou os<br />

mesmos conselhos em público? Estaríeis me tomando por um traidor? Se ele<br />

confiasse na minha proposta de paz, eu lhe sugeriria algo que vós não ousaríeis<br />

imaginar.<br />

— Pedimos que nos digais, porque sois prudente, leal e bom conselheiro,<br />

197


— Direi qual a minha sugestão e vós, se a achardes boa, levai-a ao rei.<br />

Aconselharei ao rei que envie mensageiros por toda a parte onde há amigos do<br />

duque convocando-os a Tintagel. O rei irá a Tintagel e ordenará que a duquesa e os<br />

seus venham até ele e então lamentará muito a morte do duque e proporá tal<br />

remédio que, se houver quem o rejeite, sobre eles recairá a censura e o rei será<br />

considerado leal e prudente. E vós todos de seu conselho procurai o que o rei<br />

poderia oferecer e fazer. Ele deve buscar a paz, e quer fazê-la.<br />

não haverá outro.<br />

— Concordamos com esse conselho — disseram os homens bons — e<br />

Então foram à presença do rei, expuseram o conselho que Urfino lhes<br />

havia dado, mas não contaram que era de Urfino, porque este lhes havia pedido e<br />

exigido. O rei ouviu sua exposição e respondeu:<br />

falastes.<br />

— Aprovo inteiramente esse conselho e quero que seja assim como<br />

198


68<br />

Desse modo enviou o rei mensageiros a todos os parentes do duque<br />

dizendo que, em boa paz, fossem a Tintagel, porque ele queria reparar todas as<br />

coisas de que podiam se queixar dele. Então cavalgou o rei para Tintagel e <strong>Merlim</strong><br />

veio a ele e disse-lhe:<br />

— Sabeis quem fez essa proposta que estais levando adiante?<br />

— Sei apenas que ela me foi feita pelos barões.<br />

— Todos eles juntos não seriam capazes de chegar a tal proposta, mas<br />

Urfino, que é muito sábio e que vos é fiel, buscou em seu coração a mais bela e a<br />

mais honrada solução que há para a paz e imagina que ninguém sabe, senão ele;<br />

no entanto, o único a saber sou eu e agora sabeis vós também.<br />

Então pediu o rei a <strong>Merlim</strong> que lhe contasse o que Urfino havia decidido.<br />

<strong>Merlim</strong> contou então ao rei tudo o que Urfino havia imaginado.<br />

Ao ouvi-lo, o rei ficou muito alegre em seu coração e disse:<br />

— E vós, <strong>Merlim</strong>, o que dizeis a respeito?<br />

— Não há tão boa, nem tão leal, nem tão comovente proposta. Por ela<br />

satisfareis a vontade do vosso coração naquilo que ele mais deseja. E agora quero<br />

199


ir-me, mas antes quero falar convosco na presença de Urfino. E depois que eu tiver<br />

ido, podereis perguntar a Urfino o que ele imaginou para conseguir essa paz.<br />

O rei disse que o faria, então Urfino foi chamado e, quando chegou à<br />

presença de ambos, <strong>Merlim</strong> disse ao rei:<br />

— Senhor, vós me prometestes entregar-me o filho que gerastes, porque<br />

não o podeis reconhecer como filho. E metestes por escrito a noite e a hora em que<br />

foi gerado e sabeis que o gerastes por mim e por minha arte: assim seria meu o<br />

pecado, se não o ajudasse. A mãe dele poderia passar muita vergonha por seu<br />

nascimento, e uma mulher não sabe como reagir, quando não pode dissimular.<br />

Quero também que Urfino meta em escrito a noite e a hora em que o menino foi<br />

gerado. Não me vereis mais antes da noite em que há de nascer. Peço-vos, como a<br />

meu senhor, que confieis no que vos dirá Urfino, porque ele vos ama e não vos<br />

aconselhará nada que não seja senão em vosso proveito e em vossa honra. Eu não<br />

falarei mais convosco nos próximos seis meses, mas falarei com Urfino e o que vos<br />

ordenar por ele, confiai e mandai fazer, se quiserdes conservar minha amizade e a<br />

dele e salvar vossa honra.<br />

Então Urfino anotou a data da concepção do menino. E <strong>Merlim</strong> puxou o<br />

rei de lado e disse-lhe:<br />

— Senhor, casareis com Igerne; cuidai que ela nunca saiba que já<br />

dormistes com ela e a engravidastes. Ela estará mais presa à vossa vontade, se lhe<br />

perguntardes da gravidez e de quem ficou grávida, ela não vos saberá dizer quem é<br />

o pai e por isso se envergonhará muito diante de vós. Assim me ajudareis a obter o<br />

menino mais facilmente.<br />

200


69<br />

Depois disso, despediu-se <strong>Merlim</strong> do rei e de Urfino. O rei cavalgou para<br />

Tintagel e <strong>Merlim</strong> foi encontrar-se com Brás, a quem contou todas estas coisas e ele<br />

as meteu por escrito e por ele as sabemos nós ainda hoje. O rei, assim que chegou<br />

a Tintagel, convocou seus homens em conselho e perguntou-lhes o que conviria<br />

fazer.<br />

— Senhor — disseram eles —, aconselhamos concluir a paz com a<br />

duquesa, seus parentes e com os parentes do duque.<br />

O rei então mandou irem junto à duquesa e dizer-lhe que ela não poderia<br />

defender-se e, se quisesse a paz, ele a faria de muito boa vontade. Enquanto os<br />

mensageiros foram à duquesa, o rei chamou à parte Urfino e perguntou-lhe o que<br />

achava dessa paz, dando-lhe a entender que sabia perfeitamente que ela vinha de<br />

seu coração. E Urfino respondeu:<br />

vos agrada.<br />

teu coração.<br />

— Senhor, já que sabeis que fui eu que a imaginei, cabe a vós saber se<br />

— Agrada-me e quereria que se realizasse do modo como idealizaste em<br />

E Urfino disse:<br />

201


— Então não vos preocupeis, que a conseguirei facilmente.<br />

O rei rogou-lhe muito que se empenhasse.<br />

Os mensageiros do rei encontraram a duquesa, seus parentes e amigos e<br />

os parentes do duque e explicaram que o duque havia morrido por falha própria.<br />

Acrescentaram que pesava muito ao rei e que ele queria fazer a paz com a dama e<br />

todos os amigos do duque. Percebendo que não podiam mesmo defender-se do rei,<br />

os homens bons aconselharam à duquesa e a seus parentes que fizessem a paz<br />

com o rei. Os parentes da duquesa e os do duque retiraram-se a uma câmara para<br />

discutir. De volta, disseram à duquesa:<br />

— Senhora, estes homens bons dizem a verdade afirmando que o duque<br />

morreu por falha própria e dizem também a verdade que não vos podeis defender do<br />

rei. Mas perguntai-lhes que paz o rei deseja fazer convosco e conosco e então<br />

podereis avaliar se o que ele vos oferece pode ser recusado. De dois males, deve-se<br />

escolher o menor, tal e nosso parecer.<br />

— Nunca — disse a dama — afastei-me do conselho de meu bom senhor,<br />

e não me afastarei do vosso, porque não conheço ninguém em quem deva confiar,<br />

senão vós.<br />

tomou a palavra:<br />

Voltaram então à presença dos mensageiros do rei e o mais sábio deles<br />

— Senhores, minha dama convocou seu conselho e expôs que confia em<br />

vós, em grande parte, e quereria saber, se vos for possível, qual o tipo de reparação<br />

que o rei pretende fazer pela morte de seu senhor que era tão amigo dele.<br />

— Senhor — responderam os mensageiros —, não sabemos exatamente<br />

a vontade do rei, mas isto vos podemos dizer: reunirá seu conselho e o que seus<br />

barões decidirem que deva fazer, ele o fará.<br />

202


— Então saberão muito bem reparar, se for verdade o que dizeis, porque<br />

são homens bons e, se Deus quiser, aconselharão ao rei uma reparação a sua<br />

altura.<br />

Fixaram então o prazo de quinze dias para a dama e os seus irem à<br />

presença do rei para ouvir e saber o que o rei pretendia dizer-lhes e, se o que ele<br />

quisesse não agradasse à dama c aos seus, que fossem reconduzidos a Tintagel.<br />

203


70<br />

Assim ficou marcado o dia e os mensageiros vieram e contaram ao rei<br />

como encontraram a dama e os seus e que conselho havia ela recebido. O rei<br />

garantiu que, de muito bom grado, facilitaria sua vinda e os ouviria, se lhe pedissem<br />

razão. Os quinze dias, o rei passou falando com Urfino de muitas coisas. No dia<br />

marcado, de acordo com o conselho dos barões, mandou salvos-condutos à<br />

duquesa e, depois que ela chegou, reuniu todos os seus barões e seu conselho e<br />

mandou perguntar à dama e ao conselho dela, sob que condições queriam a paz.<br />

— Senhor — responderam eles —, a dama não veio aqui para pedir, mas<br />

para ouvir o que se lhe oferecerá pela morte de seu senhor.<br />

Foram até o rei e falaram isso.<br />

O rei, tendo ouvido, considerou muito sábias as palavras. Chamou à parte<br />

seu conselho e pediu sua opinião.<br />

— Senhor — disseram —, ninguém, senão Deus, pode saber o que vosso<br />

coração quer, nem a paz, que quereis, nem o que lhes pretendeis oferecer.<br />

— Logo vos direi o que tenho no pensamento e no coração. Sois todos<br />

homens meus e de meu conselho, ponho-me em vossas mãos. Cuidai de como<br />

deveis fazer a vosso senhor, porque não aconselhareis nada que eu não faça.<br />

204


— Se vós não sabeis encontrar solução, senhor, nós não saberíamos<br />

assumir tão grande responsabilidade, sem estar muito seguros de vossas intenções.<br />

— Parece — interveio Urfino — que considerais o rei um louco e que não<br />

confiais no que vos diz.<br />

— Pode ser — disseram —, mas pedimos ao rei que ordene que venhas a<br />

nosso conselho e que a opinião que formarmos a leves a ele e que tu mesmo nos<br />

aconselhes do melhor modo que puderes.<br />

Quando o rei ouviu que convocavam Urfino, ficou muito alegre e disse:<br />

— Urfino, eu te criei e fiz de ti um homem poderoso e sei muito em que és<br />

prudente. Vai com eles, aconselha-os, por minha ordem, do melhor modo que<br />

puderes.<br />

— Senhor — respondeu Urfino —, eu o farei, pois que o ordenais, mas<br />

quero que fiqueis sabendo que nenhum rei nem príncipe pode ser amado demais<br />

por seus vassalos e, se forem homens de valor, não se humilhe nunca diante deles<br />

para ganhar seus corações.<br />

205


71<br />

Então foi Urfino ao conselho dos barões e, depois que começaram a<br />

reunião, perguntaram-lhe o que aconselhava a respeito.<br />

— Ouvistes que o rei coloca a questão em vossas mãos. Vamos saber se<br />

a dama e os seus fazem o mesmo.<br />

Acharam que era muito sábio e foram à dama e a seu conselho e<br />

explicaram que o rei confiava a eles o assunto c queriam saber se eles fariam o<br />

mesmo.<br />

— Ela precisa aconselhar-se muito bem a respeito e o fará.<br />

E disseram que o rei não poderia fazer melhor do que confiar o assunto a<br />

seus barões. A dama, os seus conselheiros e os parentes do morto aceitaram<br />

também confiar o caso a eles, que tomaram então o encargo de decidir. Reuniram-<br />

se e consultaram-se mutuamente. Depois que todos haviam emitido opinião,<br />

perguntaram a Urfino o que ele propunha.<br />

— Direi — falou Urfino — a minha opinião a respeito do assunto e o que<br />

disser aqui sou capaz de repetir por toda a parte. Sabeis que o duque morreu por<br />

culpa do rei e por sua força e, por errado que estivesse em relação ao rei, não havia<br />

feito nada por que devesse morrer. Não é verdade? E sabeis que sua mulher ficou<br />

206


esponsável pelos filhos e sabeis que o rei devastou e destruiu sua terra. Sabeis<br />

também que ela é a melhor dama deste reino e a mais bela e a mais prudente.<br />

Sabeis por fim que os parentes do duque perderam muito com sua morte. É pois<br />

justo que o rei lhes dê parte do que perderam, de acordo com sua posição, de modo<br />

que possa merecer seu amor. Por outro lado, sabeis que o rei está sem mulher. Por<br />

isso declaro que ele não pode reparar o prejuízo que causou à dama, senão<br />

esposando-a. Sou de opinião de que ele deveria fazer isso tanto para reparar o mal<br />

que lhe causou como para conquistar o amor de todos os que neste reino souberem<br />

de sua atitude reparadora. Depois, que ele case a filha mais velha com o rei Lote de<br />

Orcânia, aqui presente, e faça com que o tenham por homem prudente e leal.<br />

Ouvistes agora a minha opinião — concluiu Urfino —, se quiserdes, podeis expor<br />

outra.<br />

E eles responderam juntos:<br />

— Emitiste o mais ousado conselho que ninguém se atreveria a imaginar<br />

nem ousará contestar. Se o levares ao rei do modo como aqui o disseste e ele<br />

concordar, nós, de bom grado, concordaremos.<br />

— Isso não basta — disse Urfino. — É preciso que confirmeis esse<br />

acordo. Vedes aqui o rei de Orcânia, de que depende em grande parte a paz. Que<br />

ele diga o que lhe parece.<br />

obstáculo à paz.<br />

— No que me diz respeito — falou o rei de Orcânia —, não quero ser<br />

Tendo ouvido isso, o conselho concordou plenamente e foram todos<br />

juntos à tenda onde estava o rei. A dama foi convocada, bem como todos os do seu<br />

conselho. E estando todos reunidos, sentaram-se e Urfino, de pé, expôs seu parecer<br />

como antes. Depois perguntou aos barões:<br />

207


— Estais todos de acordo?<br />

Eles responderam que sim. Então Urfino dirigiu-se ao rei e disse:<br />

— Senhor, o que dizeis? Aceitais as condições dos barões?<br />

— Sim — respondeu o rei —, se a dama e seus amigos aceitarem e se o<br />

rei Lote concordar em tomar a filha do duque como esposa.<br />

Então falou o rei Lote:<br />

— Senhor, não me pedireis nada por vossa honra e por vossa paz, que<br />

eu, de muito bom grado, não faça.<br />

Então Urfino, na presença de todos, dirigiu-se àquele que falava pela<br />

dama e perguntou-lhe:<br />

— Concordais com esta paz?<br />

E ele, olhando para a dama e para os seus conselheiros que estavam<br />

emocionados até as lágrimas de alegria e de piedade, respondeu como um sábio,<br />

mas chorando ele também, que nunca havia visto um senhor fazer tão honrada<br />

proposta. Em seguida, perguntou à dama e aos parentes do duque se estavam de<br />

acordo. A dama ficou em silêncio, mas seus parentes e os do duque responderam:<br />

— Não há quem tema Deus que não deva concordar e nós concordamos<br />

inteiramente, porque sabemos que o rei é tão prudente e leal, que nos pautaremos<br />

por essas palavras.<br />

Assim foi jurado de uma parte e de outra.<br />

208


72<br />

Uterpendragão esposou Igerne, e o rei Lote de Orcânia, a filha dela. As<br />

bodas do rei e de Igerne aconteceram no trigésimo dia depois que ele havia dormido<br />

com ela em seus aposentos.<br />

Da filha que ela deu a Lote nasceram Morderete e Galvão, Guerrees,<br />

Agravaim e Gaeriete. O rei Neutro de Garlote esposou a outra filha que era bastarda<br />

e que tinha nome Morgana. Seguindo o conselho de todos os amigos, o rei a fez<br />

receber instrução num mosteiro de mulheres e ela aprendeu tanto e tão bem, que<br />

dominou as artes e adquiriu a maravilha de uma arte chamada astronomia, de que<br />

se utilizou sempre e, por causa da mestria de clerezia que demonstrava, foi<br />

chamada Morgana, a fada. O rei cuidou também da educação das outras crianças e<br />

amou muito os parentes do duque.<br />

Desse modo teve o rei Igerne. O tempo passou até que sua gravidez<br />

começou a aparecer. Uma noite, quando o rei dormia com ela, pôs a mão sobre a<br />

barriga dela e perguntou-lhe de quem estava grávida, porque não poderia estar<br />

grávida dele, pois, desde que a havia esposado, nunca havia dormido com ela, sem<br />

deixar anotado; não poderia estar grávida do duque, porque muito tempo antes da<br />

209


morte dele, ela já não o via. Ao ouvir que o rei a acusava, Igerne teve pavor e<br />

vergonha e disse, em lágrimas:<br />

— Senhor, a respeito do que sabeis, não vos posso obrigar a ouvir<br />

mentira, nem qualquer outra coisa vos direi. Mas, por Deus, senhor, tende piedade<br />

de mim, porque vos contarei maravilhas e verdades, se me assegurardes que não<br />

me abandonareis.<br />

venhais a dizer.<br />

— Falai tudo, sem receio, que não vos deixarei por qualquer coisa que<br />

Ela, ao ouvir isso, ficou muito aliviada e disse:<br />

— Senhor, eu vos contarei maravilhas.<br />

E contou como um homem havia dormido com ela, com toda a<br />

semelhança de seu senhor e havia levado dois homens com a aparência dos dois<br />

que seu senhor mais amava. E assim entrou em seus aposentos diante de todos e<br />

dormiu com ela. E ela pensou que era seu senhor. Aquele homem gerou o filho de<br />

que estava grávida. E ela bem sabia que ele havia sido gerado naquela noite em<br />

que seu senhor tinha morrido, porque ele ainda eslava dormindo com ela, quando<br />

chegaram as notícias da morte de seu senhor.<br />

— Eu eslava convencida — disse ela — de que era meu senhor, e as<br />

pessoas não sabiam que ele tinha vindo até mim.<br />

— Senhora — disse o rei —, cuidai que nenhum homem e nenhuma<br />

mulher jamais saibam disso que deveis esconder, porque serieis desonrada, se<br />

viessem a sabê-lo. E quero que saibais que este filho que nascer não é de direito<br />

nem meu nem vosso e que nem vós nem eu nada temos a fazer. Então, assim que<br />

nascer, peço-vos que o confieis a quem eu indicar e nunca mais teremos notícia<br />

dele.<br />

210


— Senhor, de mim e de ludo o que me diz respeito podeis fazer vossa<br />

vontade, porque vos pertenço.<br />

211


73<br />

O rei foi repetir a Urfino sua conversa com a rainha.<br />

— Senhor — disse Urfino —, sabeis agora como Igerne é virtuosa e<br />

franca, porque de tamanha desventura não vos ousou mentir. E agistes muito bem<br />

em relação ao interesse de <strong>Merlim</strong>, porque de outro modo não conseguiria o menino.<br />

E assim passou o tempo ale o sexto mês, ocasião em que <strong>Merlim</strong> tinha<br />

ficado de voltar. Veio e conversou com Urfino reservadamente perguntando-lhe o<br />

que queria saber e Urfino respondeu-lhe a verdade de tudo o que sabia. Depois que<br />

os dois conversaram, <strong>Merlim</strong> pediu a Urfino que chamasse o rei. Estando juntos o<br />

rei, <strong>Merlim</strong> e Urfino, o rei contou a <strong>Merlim</strong> como havia procedido com a rainha e<br />

como Urfino havia conseguido a paz com o acordo de que ele tomasse Igerne por<br />

mulher.<br />

— Urfino — disse <strong>Merlim</strong> ao rei — está quite do pecado que cometeu<br />

favorecendo vossos amores com a rainha, mas eu não me livrei ainda do pecado<br />

que tenho da senhora e da gravidez que tem dentro de si, que não sabe de quem é.<br />

— Sois tão sábio — respondeu o rei —, que logo vos sabereis quitar.<br />

— Convém que me ajudeis!<br />

212


O rei disse que o ajudaria de todo modo que estivesse a seu alcance e,<br />

quanto ao menino, ele sabia muito bem como agir para que ele o tivesse.<br />

— Senhor — disse <strong>Merlim</strong> —, mora nesta região um dos homens mais<br />

prudentes e mais leais de vosso reino e ele tem por esposa a mulher mais prudente,<br />

a mais leal e a mais provida de qualidades que existe no reino. Ela deu à luz um filho<br />

e seu marido não tem recursos. Quero que mandeis chamar esse homem e lhe<br />

façais dar o de que precisa, de modo que ele e sua mulher jurem sobre as santas<br />

relíquias que criarão um menino que lhes será futuramente confiado e que será<br />

amamentado pela mulher. Ela confiará seu filho a uma ama de leite e<br />

amamentará o menino que lhe for entregue, como se fosse o próprio filho.<br />

— Do modo como dizeis, hei de fazer.<br />

213


74<br />

Despediu-se <strong>Merlim</strong> do rei e foi até Brás, seu mestre. Urfino foi buscar o<br />

homem bom. Assim que ele chegou, o rei manifestou grande contentamento. Ele<br />

maravilhou-se muito com a alegria do rei. E o rei disse-lhe:<br />

— Amigo, convém que vos conte a maravilhosa aventura que me<br />

aconteceu. Sois meu homem natural. Peco-vos então, em nome da fé que me<br />

deveis, que me ajudeis num problema que vos exporei e de que guardareis o maior<br />

segredo possível.<br />

— Senhor, farei o que me disserdes, na medida de minhas forças, e, se<br />

não puder, pelo menos saberei calar-me.<br />

— Aconteceu-me um sonho maravilhoso, enquanto dormia. Vinha a mim<br />

um homem bom e dizia-me que vós sois o mais sábio de meu reino e o mais leal<br />

para comigo. E contava-me que ganhastes um filho de vossa mulher. Então dizia-me<br />

que vos pedisse que vossa mulher não amamentasse vosso filho, mas o fizesse ser<br />

amamentado por outra mulher, de modo que vossa mulher, por amor a mim,<br />

amamentasse um menino que vos será entregue.<br />

214


— Senhor, é muito grande coisa o que quereis: que afaste meu filho de<br />

minha mulher e o faça ser amamentado por outra! Vou ver com minha mulher, mas<br />

peço-vos que me digais, se for de vosso agrado, quem é a criança que me será<br />

entregue?<br />

— Deus me ajude, não sei.<br />

— Nada há que mandeis que eu não faça.<br />

Então deu-lhe o rei tal soma de dinheiro que ele ficou inteiramente<br />

confuso e logo partiu. De volta a sua mulher, contou-lhe o que o rei lhe dissera e ela<br />

achou muito estranho.<br />

— disse ela.<br />

— Como poderia fazer isso de deixar meu filho para amamentar outro?<br />

— Não há nada que não devamos fazer por nosso rei. Ele tanto nos deu<br />

e tanto nos faz e promete fazer, que a nós convém satisfazer seu prazer e sua<br />

vontade. E quero que me jureis fazê-lo.<br />

— Eu e o menino vos pertencemos. Fazei pois de mim e dele vossa<br />

vontade, como vos agradar, porque em nada devo opor-me a vós.<br />

O homem ficou muito feliz ao ouvir que sua mulher faria o que ele<br />

quisesse. Pediu-lhe então que procurasse uma mulher que amamentasse o filho,<br />

antes que lhe trouxessem o outro menino.<br />

215


75<br />

Desse modo o homem bom desmamou seu filho de sua mulher. E a<br />

rainha estava muito perto de dar à luz. Na véspera do nascimento, <strong>Merlim</strong> veio<br />

reservadamente à corte e falou com Urfino à parte e disse-lhe:<br />

— Ufiino, estou muito satisfeito com o rei que soube falar muito<br />

habilmente com Antor a respeito do que lhe havia pedido. Dize-lhe que se dirija<br />

agora à rainha e lhe diga que amanhã, depois de meia-noite, ela dará à luz seu filho<br />

e ordene-lhe que o entregue ao primeiro homem que ela verá à porta de seus<br />

aposentos.<br />

Urfino, ao ouvir isso, perguntou-lhe:<br />

— Não conversareis com o rei?<br />

— Não. Dessa vez, não.<br />

Então dirigiu-se Urfino ao rei e contou-lhe o que <strong>Merlim</strong> lhe havia<br />

ordenado. O rei ficou muito satisfeito e perguntou-lhe:<br />

disse-lhe:<br />

— Ele não virá ver-me antes de partir?<br />

— Não, mas fazei o que vos ordena. Então o rei dirigiu-se à rainha e<br />

216


de acordo.<br />

— Senhora, peço-vos que confieis no que vos direi.<br />

— Senhor — respondeu ela —, confiarei em tudo o que disserdes e agirei<br />

— Senhora, amanhã, depois da meia-noite, dareis à luz, com a ajuda de<br />

Deus, ao menino que tendes em vosso seio. Peço-vos e ordeno que, assim que ele<br />

nascer, o façais entregar, por uma de vossas amas, ao primeiro homem que ela verá<br />

à porta da câmara. Também proibireis a todas as mulheres que vos assistirem de<br />

contar o nascimento deste menino, porque, se viessem a sabê-lo, seria para vós e<br />

para mim muito desonroso. As pessoas diriam que não poderia ser meu filho e não<br />

me parece mesmo que pudesse sê-lo.<br />

— Senhor, de fato, como já vos disse, não sei quem o fez em mim e<br />

cumprirei tudo o que me ordenardes, porque estou muito envergonhada com a<br />

desventura que me aconteceu. Mas estou igualmente maravilhada com o fato de<br />

saberdes a data do nascimento.<br />

— Peço-vos que façais como vos ordeno.<br />

— Senhor, de muito bom grado o farei, se Deus quiser.<br />

Assim terminou a conversa do rei e da rainha. E ela esperou até que<br />

aprouve a Deus que, no dia seguinte, por volta da hora de vésperas, começou a<br />

sentir as primeiras dores do parto.<br />

217


76<br />

Os trabalhos de parto duraram até a hora que o rei previu e o menino<br />

nasceu entre a meia-noite e a aurora. Assim que ele nasceu, Igerne chamou uma de<br />

suas amas em quem muito confiava e disse-lhe:<br />

— Minha ama, toma este menino e leva-o à entrada da câmara, lá<br />

encontrareis um homem que o pedirá, entrega-o a ele, mas observa bem quem é o<br />

homem.<br />

Ela fez o que a rainha ordenou. Pegou o menino, envolveu-o nos mais<br />

ricos panos que tinha e levou-o até à porta da câmara. Quando a abriu, viu um<br />

homem que parecia muito velho e fraco. E ela disse-lhe:<br />

te ordenou.<br />

— O que estás aqui esperando?<br />

— Espero o que tu trazes.<br />

— Quem és, para que o diga à dama a quem entreguei seu filho?<br />

— A qualquer pergunta que faças nada responderei, mas faze o que ela<br />

Então ela entregou-lhe o menino e ele o tomou e desapareceu, sem que<br />

ela pudesse saber para onde. Então voltou à rainha e disse-lhe:<br />

218


ele.<br />

— Entreguei o menino a um homem muito velho, mas não sei quem é<br />

A rainha chorou como mãe mergulhada em imensa dor. E o homem que<br />

havia recebido o menino dirigiu-se o mais depressa que pôde à casa de Antor.<br />

Encontrou-o de manhã dirigindo-se à missa. Sob a aparência de um velho homem<br />

bom, chamou-o e disse-lhe:<br />

lhe:<br />

— Antor, desejo falar contigo.<br />

Antor observou-o e maravilhou-se de como parecia homem bom e disse-<br />

— Senhor, também eu desejo falar contigo.<br />

— Trago-te um menino e peço-te que o faças amamentar como se fosse<br />

teu próprio filho e sabe que, se o fizeres, tanto bem te advirá a ti e aos teus<br />

descendentes, que se alguém te dissesse agora, não acreditariam.<br />

— E este o menino a quem o rei pediu-me que fizesse minha mulher<br />

amamentar no lugar de meu filho?<br />

— Sim, é este, sem falha, e o rei e todos os homens bons e todas as<br />

mulheres deveriam pedir-te o mesmo, como o faço eu agora. Quanto ao meu pedido,<br />

sabe que vale tanto como o de um senhor poderoso.<br />

Antor tomou nos braços o menino que lhe pareceu muito bonito e<br />

perguntou se ja estava balizado. O velho respondeu que não e que ele o fizesse<br />

batizar.<br />

— Que nome queres que ele tenha?<br />

— Se queres batizá-lo de acordo comigo e sob meu conselho, põe-lhe o<br />

nome de Artur. E eu vou embora, porque nada mais tenho a fazer aqui. Quanto a<br />

isso, cuida que muito grandes benefícios te advirão e, em pouco tempo, tu e tua<br />

219


mulher não sabereis mais dizer a quem mais amais, se a este menino ou a vosso<br />

filho.<br />

mimec quem es tu?<br />

— Senhor — perguntou-lhe ainda Antor —, quem direi que o trouxe a<br />

— Por enquanto nada mais saberás a meu respeito.<br />

Assim despediram-se um do outro e Antor fez balizar o menino e deu-lhe<br />

o nome de Artur. Depois levou-o a sua mulher e disse-lhe:<br />

— Aqui está o menino, que tanto pedi que aceitasses.<br />

— Seja bem-vindo! — disse, tomando-o nos braços e perguntou se ja<br />

estava batizado e ele respondeu-lhe que sim e que tinha por nome Artur. Então<br />

amamentou-o e entregou o próprio filho a uma ama de leite.<br />

220


77<br />

E Uterpendragão reinou por muito tempo. Depois aconteceu que foi<br />

acometido de uma grave doença de gota nas mãos e nos pés. Houve muitas<br />

revoltas por seu reino em diversos lugares e tanto o contrariavam que ele convocou<br />

seus barões. E os barões aconselharam que, se pudesse, vingasse. Então disse-<br />

lhes Uterpendragão que, por Deus e por ele, fossem todos juntos, como devem fazer<br />

homens bons por seu senhor. Eles responderam que iriam de bom grado. Foram e<br />

encontraram os inimigos do rei e os seus que já detinham boa parte da terra. Os<br />

guerreiros do rei, como combatentes sem chefe, combateram loucamente e foram<br />

derrotados e o rei perdeu muitos de seus homens. Assim que a notícia da derrota<br />

espalhou-se, o rei soube e ficou muito irado. Chegaram os sobreviventes da batalha.<br />

E os vencedores eram muito mais numerosos e os saxões, que estavam na terra em<br />

condição inferior, aliaram-se a eles e assim conquistaram muita gente. <strong>Merlim</strong>, que<br />

sabia de tudo isso, veio ao rei que estava muito fraco, por causa de sua doença, e<br />

muito envelhecido. Ele, quando soube que <strong>Merlim</strong> vinha, ficou muito alegre. E<br />

<strong>Merlim</strong>, ao chegar, disse-lhe:<br />

— Estais com medo.<br />

221


— E com razão, porque aqueles de quem não imaginava nada dever<br />

recear destruíram o meu reino e os meus homens estão mortos e derrotados.<br />

222


E <strong>Merlim</strong> respondeu-lhe:<br />

78<br />

— Agora podeis saber como nada vale tanto, como ter um bom mestre.<br />

— Por Deus, <strong>Merlim</strong>, aconselhai-me sobre o que deverei fazer.<br />

— Eu vos direi umas coisas muito reservadas e quero que confieis em<br />

mim. Reuni todos os vossos guerreiros e toda a vossa gente e, quando estiverem<br />

todos reunidos, fazei com que vos coloquem numa maca e ide combater vossos<br />

inimigos e os vencereis. Depois que os tiverdes vencido, estará provado que uma<br />

terra não vale grande coisa sem o seu senhor. Depois, dividi, por Deus, por vossa<br />

honra e pela vossa alma, todo vosso tesouro e vossa grande riqueza, porque quero<br />

que saibais que, depois de ter feito isso, não vivereis mais por muito tempo. E quero<br />

que saibais que aqueles que têm muita riqueza e morrem com ela, ao partirem, não<br />

podem elas fazer bem a sua alma, porque esses bens não lhes pertencem, antes<br />

pertencem àquele que nenhum bem os deixa fazer, e sabei que é o diabo. E mais<br />

valeria ao rico que nunca tivesse tido nada ou repartisse convenientemente os bens<br />

terrenos, porque as riquezas e as vaidades que se tem neste mundo não são senão<br />

prejuízo para a alma, se se não as reparte, como se deve. E vós que estais perto de<br />

vosso fim, que acabar vos convém, sabei que deveis deixar tudo e distribuir de tal<br />

223


maneira que não percais a alegria do outro mundo, porque a deste não vale nada e<br />

vos direi por quê numa só palavra: neste mundo terreno não há alegria que dure e a<br />

que se compra no outro mundo não pode falhar, nem envelhecer, nem deteriorar e<br />

qualquer coisa que se tenha nesta vida mortal deve-se entregar a Nosso Senhor<br />

para se ter como provar da outra. Então, convém, se se quer agir prudentemente,<br />

que, daquilo que Deus deu nesta vida mortal, se utilize para conquistar e conseguir a<br />

vida perdurável. E vós, que tanto tivestes neste mundo, o que fizestes por Nosso<br />

Senhor que tantas graças vos deu? Eu vos amei muito e muito vos amo, mas sabei<br />

que ninguém pode e deve vos amar melhor do que vós mesmo, assim como<br />

ninguém pode vos odiar mais do que vós mesmo. Digo-vos claramente que, depois<br />

de terdes ganho esta vitória nesta batalha, não vivereis muito e quero que saibais<br />

que tudo o que um homem tenha feito de bem em sua vida toda não vale mais do<br />

que uma boa morte, porque, se tivésseis feito todo o bem do mundo, e viésseis a ter<br />

um mau fim, correríeis o risco de pôr tudo a perder e, se tivésseis feito muito mal,<br />

mas conseguísseis uma boa morte, ganharíeis o perdão. Quero também que saibais<br />

que nada levareis deste século, salvo a honra, e como nenhuma honra pode<br />

prescindir de esmola, nenhuma esmola é dada sem honra. Eu vos revelei o quanto<br />

vos amo e vos desvendei vosso destino: sabeis que Igerne, vossa mulher, está<br />

morta e não a podeis mais ter. Desse modo, depois de vossa morte, a terra ficará<br />

sem herdeiro, eis por que vos deveis aplicar em agir corretamente. Eu partirei, que<br />

não tenho mais o que fazer convosco, mas a Urfino pedi que confie em mim, quando<br />

for necessário.<br />

Uterpendragão tomou a palavra e disse:<br />

— Terrível coisa dissestes afirmando que vencerei meus inimigos na<br />

maça. Como poderei agradecer convenientemente a Nosso Senhor tal bondade?<br />

224


<strong>Merlim</strong> respondeu:<br />

— Só com uma boa morte. Eu vou indo e peço que vos lembreis depois<br />

da batalha daquilo que vos disse.<br />

<strong>Merlim</strong> respondeu:<br />

E o rei falou e perguntou novas daquele menino que ele havia levado. E<br />

— A respeito dele não tendes nada a perguntar, mas quero muito que<br />

saibais que o menino está belo, grande e muito bem alimentado.<br />

E o rei perguntou-lhe:<br />

— E eu vos verei ainda?<br />

— Sim, ainda uma vez.<br />

225


79<br />

Desse modo despediram-se <strong>Merlim</strong> e o rei. O rei reuniu os seus homens e<br />

disse que iria contra seus inimigos. E foi e fez-se carregar numa maca, e os<br />

encontrou e foi contra eles e os combateu. E os guerreiros do rei, pelo conforto de<br />

saber que contavam com seu senhor, derrotaram os inimigos e mataram a muitos. O<br />

rei teve a vitória desta batalha e destruiu seus inimigos e recolocou seu reino todo<br />

em paz. Lembrou-se do que <strong>Merlim</strong> lhe havia dito e voltou para Logres. De volta,<br />

mandou buscar seus bens e seus tesouros e mandou homens e mulheres de<br />

confiança reunir os pobres de seu reino e deu-lhes muito grandes esmolas e o<br />

restante distribuiu de acordo com o conselho e a vontade dos ministros da santa<br />

Igreja e de seus confessores. Assim fez e distribuiu seus bens, de modo que<br />

nenhum bem lhe sobrou, de que se lembrasse, que não tivesse distribuído por amor<br />

de Deus e pelo conselho de <strong>Merlim</strong>. Humilhou-se muito perante Deus e tão<br />

docemente em relação a seus ministros, que toda a gente ficou tocada de piedade.<br />

Por muito tempo o assistiram doente e, logo que sua doença piorou, reuniu-se o<br />

povo em Logres, com muita pena de que pudesse vir a morrer, mas via-se que a<br />

morte era inevitável. Estava tão doente e tão fraco, que perdeu a voz e não pôde<br />

226


falar durante três dias. Então <strong>Merlim</strong>, que tudo sabia, veio à cidade. Assim que<br />

chegou, os homens bons da terra levaram-no diante do rei e disseram-lhe:<br />

— <strong>Merlim</strong>, o rei que tanto amais está morto. <strong>Merlim</strong> respondeu:<br />

— Não estais falando a verdade. Ninguém que tenha um bom fim como<br />

ele morre; mas ele de fato não está morto.<br />

— Está, pois há três dias que não fala.<br />

— Falará, se Deus quiser, e vinde ver que vou fazê-lo falar.<br />

— Isso seria uma grande maravilha!<br />

— Então vinde.<br />

E foram até onde o rei jazia e mandaram abrir todas as janelas. E o rei<br />

olhou para <strong>Merlim</strong>, mas pareceu que não o reconheceu. <strong>Merlim</strong> falou aos barões que<br />

ali estavam e aos prelados da santa Igreja que agora queria ouvir a última palavra<br />

que o rei diria. E eles perguntaram:<br />

ouvido:<br />

— Como imaginais fazê-lo falar?<br />

— Vós o vereis.<br />

Então foi do outro lado da cabeceira e confidenciou-lhe muito baixo ao<br />

— Agistes muito bem no fim, se vossa consciência é tal como a<br />

aparência, e digo-vos que vosso filho Artur assumirá o reino depois de vós e, pela<br />

virtude de Jesus Cristo, será o realizador da távola que fundastes.<br />

Quando ele ouviu isto, virou-se para ele e disse:<br />

— Por Deus, pedi-lhe que rogue a Jesus Cristo por mim.<br />

E <strong>Merlim</strong> disse aos presentes:<br />

— Agora ouvistes o que imagináveis não ser possível. Sabei que esta foi<br />

sua última palavra. Não falará mais.<br />

227


Então levantou-se <strong>Merlim</strong> e todos os que essa maravilha viram, mas não<br />

houve ninguém que pudesse saber o que teria dito a <strong>Merlim</strong>. Desse modo finou o rei<br />

naquela noite e os barões e os bispos e arcebispos prestaram-lhe grande honra e o<br />

mais belo serviço que puderam. Assim morreu Uterpendragão e o reino ficou sem<br />

herdeiro.<br />

228


80<br />

No dia seguinte ao enterro do rei, reuniram-se os barões e todos os<br />

ministros da santa Igreja no paço real e discutiram em conselho como o reino seria<br />

governado, mas não conseguiram chegar a nenhum acordo. Então decidiram, por<br />

unanimidade, que se aconselhariam com <strong>Merlim</strong> que era muito sábio e de bom<br />

conselho, como nunca haviam ouvido falar de quem quer que fosse. Estando todos<br />

de acordo, mandaram procurá-lo e, quando ele chegou, disseram-lhe:<br />

— <strong>Merlim</strong>, sabemos bem que sois muito sábio, que sempre amastes o rei<br />

desta terra. Vedes claramente que a terra ficou sem herdeiro e sabeis que terra sem<br />

senhor não resiste por muito tempo. Por isso vos pedimos e rogamos, diante de<br />

Deus, que nos ajudeis a eleger um homem tal que possa governar para a honra da<br />

santa Igreja e para a salvação de seu povo.<br />

— Não sou eu — disse <strong>Merlim</strong> — quem tão alto conselho deva dar de<br />

eleger rei ou governo. Mas, se concordardes com meu parecer, eu o direi; se não<br />

concordardes, nada falarei.<br />

— Para o bem, para o proveito e para a salvação do reino, Deus nos<br />

ajude, haveremos de concordar.<br />

229


— Amo muito este reino e todas as pessoas que aqui estão. E, se vos<br />

dissesse que fizésseis de um de vós rei, confiareis em mim e com razão. Mas muito<br />

bela aventura vos adveio, se a quiserdes conhecer e confiar nela. O rei morreu no<br />

quinto dia da festa de São Martinho, e daqui para o Natal não demora nada. Se<br />

quereis confiar em meu conselho, eu o darei bom e leal, segundo as leis de Deus e<br />

as leis deste mundo.<br />

— Confiaremos! — disseram todos.<br />

— Sabeis que está chegando a testa em que o rei dos reis, o senhor de<br />

todas as coisas e o dispenseiro de todos os bens nasceu. Eu me comprometo<br />

convosco, desde que consigais o acordo das pessoas deste reino — e cada um<br />

deles tem bem necessidade de um mestre —, que Ele, que na sua bondade e na<br />

sua humildade, dignou-se fazer homem nessa festa de Natal, e nascer no mundo,<br />

Ele, o rei do universo, escolha para nós um rei que lhe agrade e que faça como Ele<br />

deseja. Que nos dê naquele dia um sinal claro de sua vontade, de modo que o povo<br />

saiba bem que o novo rei será eleito por Deus e não pelos homens. Eu vos afirmo<br />

que, se conseguirdes o acordo, vereis o sinal.<br />

Deus, poderia dar.<br />

Eles responderam:<br />

— <strong>Merlim</strong>, este é o melhor conselho e o mais leal que ninguém, salvo<br />

Então perguntaram-se uns aos outros: "Estais de acordo com este<br />

conselho?" E respondiam: "Não há na terra quem tema a Deus que não deva<br />

concordar." Os barões da terra pediram todos juntos aos arcebispos e aos bispos<br />

que junto ao povo fizessem orações e ordenassem aos padres que conseguissem<br />

que o povo cumprisse os mandamentos da santa Igreja e obedecessem às<br />

manifestações divinas.<br />

230


81<br />

Desse modo puseram-se todos de acordo com o conselho de <strong>Merlim</strong>.<br />

<strong>Merlim</strong> despediu-se deles e eles pediram que, se fosse do seu agrado, voltasse no<br />

Natal para ver naquela festa se o que ele havia dito de fato aconteceria. E ele<br />

respondeu:<br />

— Não estarei aqui e não me vereis, senão depois da eleição.<br />

E <strong>Merlim</strong> partiu ao encontro de Brás e contou-lhe essas coisas e o que ele<br />

sabia que estava para acontecer e, porque ele o disse a Brás, nós hoje sabemos o<br />

que sabemos.<br />

Os homens bons do reino e os ministros da santa Igreja fizeram saber por<br />

toda a terra que todos os homens bons do reino deveriam ir a Logres pelo Natal para<br />

ver a eleição. Foi tudo feito e sabido e esperaram então o Natal. E Antor que criou o<br />

menino, tão bem o havia alimentado, que já estava grande com dezesseis anos. Ele<br />

o havia tão lealmente cuidado que não tinha sido amamentado senão com o leite de<br />

sua mulher, enquanto o filho havia sido amamentado com ama de leite. Antor não<br />

sabia agora de quem gostava mais, se do filho verdadeiro, se desse menino a quem<br />

ele nunca havia chamado senão de filho, tanto que o jovem imaginava que, de fato,<br />

era ele seu pai. Na festa de Todos os Santos, antes do Natal, Antor armou cavaleiro<br />

231


seu filho Quéia e no Natal foi a Logres, assim como os senhores da terra, e levou os<br />

dois com ele. Na véspera do Natal, reuniram-se todos os altos homens do reino e<br />

todos os barões c todos aqueles que algum poder tinham no reino e fizeram muito<br />

bem e mandaram fazer tudo o que <strong>Merlim</strong> lhes havia ordenado. Desde que haviam<br />

chegado mantiveram-se muito simples e muito honestos e esperavam a véspera da<br />

festa.<br />

232


82<br />

Na véspera da festa, como deviam fazer, foram à missa da meia-noite e<br />

fizeram suas orações e suas preces a Nosso Senhor para que lhes desse um<br />

homem, cujo reinado tosse favorável à conservação da cristandade. Depois foram à<br />

primeira missa da aurora. Terminada esta, alguns saíram, mas outros ficaram na<br />

igreja. Assim esperaram a missa do dia. Muitos homens diziam que eram loucos<br />

aqueles que imaginavam e confiavam que Nosso Senhor fosse cuidar da eleição do<br />

rei. Estando estes a falar assim, tocou o sino para a missa do dia e todos voltaram à<br />

igreja. Quando todos estavam reunidos, um dos mais santos prelados da Igreja que<br />

se dispunha a cantar a missa, antes de começar, falou ao povo:<br />

— Senhores, estais aqui reunidos e deveis estar para três benefícios e<br />

eu vos direi quais são: a salvação de vossas almas, a honra de vossas vidas e para<br />

esperar o milagre que Nosso Senhor fará, se for do seu agrado, para nos dar um rei<br />

e chefe para manter, guardar e defender a santa Igreja e defender este reino e todo<br />

o seu povo. Estamos felizes e atentos para eleger um de vós, mas não temos tanta<br />

sabedoria para saber qual de vós seria o melhor. Como não sabemos eleger,<br />

pedimos ao rei Deus, Jesus Cristo nosso salvador, que faça uma revelação neste<br />

233


dia, tão verdadeiramente como ele nasceu neste dia. Reze cada um como melhor<br />

souber o Pai Nosso.<br />

Todos fizeram como o prelado aconselhou e ele foi cantar a missa.<br />

Cantou-a até o Evangelho e, quando chegou o Ofertório, alguns estavam reunidos<br />

diante da igreja que dava para uma grande praça.<br />

234


83<br />

O dia estava claro. Perceberam então, diante da igreja, bem na frente do<br />

pórtico, um bloco de pedra quadrado que ninguém soube dizer de que pedra era,<br />

mas diziam que era mármore. No meio estava metida uma bigorna de ferro que linha<br />

bem um meio pé de altura e nesta bigorna estava enfiada uma espada. Quando os<br />

que iam saindo da igreja viram aquilo, ficaram muito maravilhados e voltaram a<br />

contar o que haviam visto. Assim que o celebrante, que era o arcebispo de Logres,<br />

soube da notícia, pegou água benta e todos os relicários que havia na igreja e<br />

dirigiu-se para a pedra acompanhado por todos os outros clérigos. Observaram e<br />

viram a espada, invocaram Nosso Senhor, como acharam que deviam fazê-lo e, não<br />

sabendo mais o que fazer, aspergiram com água benta. Então abaixou-se o<br />

arcebispo e viu o letreiro gravado em letras de ouro no aço. Leu e dizia que aquele a<br />

quem viesse a pertencer a espada — e seria quem a tirasse dali — haveria de ser o<br />

rei da terra, pela escolha de Jesus Cristo. Depois que leu o letreiro de um lado e de<br />

outro, contou ao povo. Então escolheram dez homens, cinco clérigos e cinco leigos,<br />

para montarem guarda da pedra com a espada. Todos diziam que Jesus Cristo lhes<br />

havia dado um sinal muito claro e voltaram à igreja para a missa do dia e para<br />

235


agradecer a Nosso Senhor e cantaram um Te Deum laudamus. Chegando ao<br />

altar, o arcebispo virou-se para o povo e disse:<br />

— Senhores, agora podeis saber, ver e compreender que entre nós há<br />

alguém bom, porque, por nossas orações, Nosso Senhor fez sua revelação. E eu<br />

vos peço, exijo e ordeno que, pelas virtudes que Nosso Senhor estabeleceu nesta<br />

terra e não pela riqueza ou pela vaidade terrena, ninguém ouse ir contra a eleição,<br />

porque Nosso Senhor, que tanto benefício já nos propiciou, mostrará ainda sua<br />

vontade e seu prazer.<br />

Então cantou a missa. Depois reuniram-se todos diante da pedra e<br />

perguntavam-se uns aos outros quem tentaria primeiro tirar a espada. Mas logo<br />

concordaram que ninguém tentaria, salvo se aconselhado pelos ministros da santa<br />

Igreja.<br />

236


84<br />

Mas houve muita discordância em relação a essa opinião, porque os altos<br />

senhores ricos e poderosos queriam todos tentar primeiro. Houve pois muitas<br />

discussões que não devem ser aqui relatadas. O arcebispo falou bem alto para que<br />

todos o ouvissem:<br />

— Não sois tão sábios, nem tão nobres, nem tão prudentes como eu<br />

desejaria. Quero muito que saibam todos que Nosso Senhor que tudo vê e conhece<br />

já tem seu eleito, mas não sabemos quem é. Posso dizer-vos que riqueza, vaidade,<br />

orgulho não contam, mas apenas verdadeiramente a vontade de Nosso Senhor. E<br />

eu confio que, se aquele que esta espada deve tirar ainda está para nascer, ela não<br />

será tirada antes que ele nasça e ele mesmo venha tirá-la.<br />

Concordaram todos que aquilo que ele falara era verdade. E os ricos-<br />

homens leigos e os barões da terra reuniram-se em conselho e voltaram atrás,<br />

disseram que se acomodariam à vontade do arcebispo e o declararam na presença<br />

de todos. O arcebispo, ouvindo isto, ficou muito alegre, chorou de emoção e disse:<br />

— Toda esta humildade que aqui manifestais veio ao vosso coração da<br />

parte de Deus e quero que saibais que me conformarei em tudo à vontade de Jesus<br />

237


Cristo e em benefício da cristandade, se Deus quiser, e por isso não serei<br />

censurado.<br />

Essa discussão se desenvolvia antes da missa solene e o arcebispo deu<br />

um prazo até que a missa solene fosse cantada. Nessa missa, ele chamou a<br />

atenção dos fiéis e mostrou o belo milagre que Nosso Senhor havia leito. E disse:<br />

— Quando Nosso Senhor instituiu a justiça neste mundo, ele a<br />

manifestou, com efeito, pela espada, com que investiu a cavalaria, quando foram<br />

criadas as três ordens. E isto foi feito para que ela defendesse a santa Igreja e<br />

impusesse a justiça. Ora, hoje Nosso Senhor recorreu novamente à espada para<br />

esta eleição. Sabei bem que ele já tem tudo pesado e já decidiu a quem vai entregar<br />

este poder de justiça. Que os altos senhores não se precipitem então em submeter-<br />

se à prova. A espada não pode e não deve ser tirada sob o signo da grandeza ou do<br />

orgulho. Mas que os pobres não se irritem, se os ricos e poderosos tentarem<br />

primeiro, porque esta ordem é razoável e legítima. Os mais altos senhores do mundo<br />

devem então tentar primeiro.<br />

Todos concordaram, sem mágoa, com que o arcebispo fizesse<br />

experimentar aqueles que ele quisesse. Juraram que obedeceriam e teriam por<br />

senhor aquele a quem Deus desse tal graça.<br />

238


85<br />

Então voltaram à pedra e o arcebispo escolheu duzentos e cinqüenta dos<br />

mais altos homens para que tentassem. Depois autorizou que os outros também<br />

tentassem. E todos os que quiseram experimentar experimentaram, um depois do<br />

outro, mas não houve um que conseguisse mover a espada ou tirá-la. Então<br />

puseram os dez homens a guardá-la e foi-lhes dito que deixassem experimentar<br />

quantos o quisessem, mas que prestassem bem atenção para ver quem a tiraria.<br />

Assim ficou lá a espada até a Circuncisão. No dia da Circuncisão foram todos os<br />

barões à missa e o arcebispo fez um sermão e os instruiu o melhor que pôde. E<br />

disse-lhes:<br />

— Eu havia dito que todos poderiam vir, mesmo de muito longe, tentar<br />

tirar a espada. Agora podeis acreditar que verdadeiramente só a tirará quem Nosso<br />

Senhor tiver escolhido.<br />

E eles disseram que não se afastariam da cidade, enquanto não vissem<br />

aquele a quem Nosso Senhor queria dar aquela graça. Assim foi cantada a missa e<br />

depois cada um foi comer em sua hospedagem. Depois que comeram, como<br />

costumavam fazer naquele tempo, foram fazer um torneio fora da cidade, num<br />

campo. A maior parte do povo os acompanhou para assistir ao espetáculo; também<br />

239


foram os dez que guardavam a espada da pedra. Depois que os cavaleiros tinham<br />

feito o torneio por muito tempo, passaram os escudos a seus escudeiros que<br />

assumiram seus lugares. E o torneio derivou logo numa batalha campal a que todos<br />

acorreram, tanto armados, como desarmados. Antor havia feito seu filho Quéia<br />

cavaleiro na festa de Todos os Santos. Quéia, ao ver que a confusão estava<br />

começada, chamou seu irmão e disse-lhe:<br />

— Vai buscar uma espada em nossa hospedagem. E ele foi depressa e<br />

com muita boa vontade. Esporeou o cavalo e dirigiu-se à hospedagem. Procurou a<br />

espada de seu irmão ou uma outra, mas não pôde encontrar, porque a dona<br />

da hospedagem as havia guardado em sua câmara e ela havia ido ver o torneio<br />

como toda a gente. Ao ver que não podia levar nenhuma, chorou e ficou muito<br />

magoado. Ao voltar, passou diante da igreja, na praça, onde estava a pedra e viu a<br />

espada que ele nunca havia tentado tirar. E pensou que, se pudesse, a levaria para<br />

seu irmão. Aproximou-se então a cavalo. Pegou-a pelo punho, puxou-a e escondeu-<br />

a em baixo do pano de sua cota. Seu irmão que o esperava fora do torneio, ao vê-lo<br />

chegar, correu para ele e perguntou-lhe de sua espada. Ele respondeu que não a<br />

havia encontrado, mas trazia uma outra. Tirou-a então debaixo do pano e mostrou-a.<br />

O irmão perguntou-lhe onde a havia pego e ele disse que era a espada da pedra.<br />

Quéia pegou-a, escondeu debaixo de sua túnica e foi procurar seu pai até encontrar.<br />

240


Quando o encontrou, disse-lhe:<br />

86<br />

— Senhor, eu serei o rei, aqui está a espada da pedra.<br />

Ao ouvir isso, o pai maravilhou-se e perguntou-lhe como a havia<br />

conseguido e ele disse que havia tirado da pedra. Antor ouviu e não acreditou e<br />

disse que ele estava mentindo. Voltaram os dois para a igreja acompanhados de<br />

Artur. Quando chegaram à pedra de que a espada havia sido tirada, Antor disse:<br />

— Quéia, não mente. Dize-me como conseguiste esta espada, porque,<br />

se mentires, saberei que não te amarei nunca mais.<br />

Ele respondeu como quem estava tomado de imensa vergonha:<br />

— Pai, não mentirei nunca para vós. Foi Artur, meu irmão, que a levou<br />

para mim, quando lhe pedi que viesse buscar a minha, mas não sei como a<br />

conseguiu.<br />

direito a ela.<br />

— Dá-me esta espada aqui — disse Antor —, porque não tens nenhum<br />

E ele entregou-a e quando o pai a pegou, viu que chegava Artur que os<br />

havia seguido. Então chamou-o:<br />

241


— Filho, dize-me como conseguiste esta espada. E ele contou. O pai foi<br />

muito sábio e disse-lhe:<br />

— Pega esta espada e coloca-a lá onde a tiraste.<br />

Ele pegou e colocou-a novamente na bigorna e ela ficou como estava<br />

antes. Antor então ordenou a Quéia que tentasse tirá-la. Ele tentou, mas não<br />

conseguiu. Antor então dirigiu-se à igreja, chamou os dois filhos e disse a Quéia:<br />

— Filho, eu sabia que não tiraríeis a espada.<br />

Em seguida, apertou Artur entre seus braços e disse:<br />

— Filho, se eu conseguisse que viesses a ser rei, que proveito teria?<br />

— Senhor, não posso ter este nem nenhum outro bem de que não<br />

venhais a ser senhor, como meu pai.<br />

— Filho, teu pai sei que sou, mas só de nutrição, não sei quem te gerou.<br />

Artur, ao ouvir que aquele que ele imaginava ser seu pai não o era, ficou<br />

muito magoado e disse:<br />

— Senhor Deus, que outro bem posso ter, já que não tenho pai?<br />

Antor então disse:<br />

— Senhor, não é que não tens pai. Seria impossível. É claro que tens,<br />

mas eu não sei quem é. Mas se Nosso Senhor te deu esta graça, e eu te ajudar a<br />

consegui-la, dize-me, que benefício terei?<br />

— Senhor, aquilo que quiserdes.<br />

242


87<br />

Então contou-lhe Antor tudo de bom que lhe havia feito, corno o havia<br />

alimentado, como havia feito seu filho ser amamentado por ama de leite, para que<br />

sua mulher o amamentasse e concluiu:<br />

— Por estas razões deveis a mim e a meu filho gratidão, porque nunca<br />

alguém foi tão cuidadosamente criado como cuidei eu de ti. Se vieres a ganhar essa<br />

graça e eu puder ajudar-te a consegui-la, peço-te que faças alguma coisa por mim e<br />

por meu filho. Artur respondeu:<br />

— Senhor, peço-vos que me considereis ainda vosso filho; de outro<br />

modo, não saberia onde ir. E se podeis ajudar-me a conseguir essa graça e tal é a<br />

vontade de Deus, não sabereis pedir-me algo que eu não faça.<br />

— Não te pedirei terra, mas tão-somente que, quando fores rei, faças de<br />

Quéia, leu irmão, o senescal de teu reino, sem nomear nunca outro para este cargo,<br />

enquanto ele viver, sejam quais forem os erros que possa cometer. Deveras aceitar<br />

que ele seja cruel, pérfido e difícil de trato, porque todos estes defeitos vieram da<br />

ama de leite que o amamentou e foi por ter sido necessário alimentar-te que ele<br />

perdeu sua verdadeira natureza. Por isso peco-te que o suportes e lhe dês o que te<br />

peço.<br />

243


— Senhor — disse Artur —, aceito de bom grado. Então levou-os ao altar<br />

e Artur jurou cumprir sua promessa. Depois do juramento, saíram da igreja. A<br />

batalha havia terminado e os senhores voltavam para as vésperas. Antor chamou<br />

seus amigos e os de sua linhagem e disse ao arcebispo:<br />

— Senhor, aqui está um filho meu que ainda não é cavaleiro. Peço-vos<br />

que o faça tentar tirar a espada. Peço-vos, por favor, que chameis alguns destes<br />

senhores para presenciarem.<br />

O arcebispo fez isso. Então reuniram-se todos em torno da pedra.<br />

Estando assim reunidos, Antor pediu a Artur que tirasse a espada e a entregasse ao<br />

arcebispo. E ele o fez. Quando o arcebispo a segurou, entoou Te Deum laudamus. E<br />

levaram-no à igreja. Os barões ficaram muito magoados com o fato e diziam que um<br />

jovem não poderia ser senhor deles. O arcebispo, ao saber disso, irritou-se e disse:<br />

nós.<br />

— Nosso Senhor sabe melhor do que vós a origem de qualquer um de<br />

Antor, todos os da sua linhagem e grande parte das pessoas que estavam<br />

na igreja eram do lado de Artur, mas os barões da terra eram contra. Então o<br />

arcebispo muito ousadamente disse:<br />

— Senhores, ainda que todos quisessem se opor a esta eleição e Nosso<br />

Senhor fosse o único a querê-la, ela aconteceria. Vou dar-vos uma prova de minha<br />

confiança em Nosso Senhor. Artur, vai à pedra e põe de volta a espada onde a<br />

tiraste.<br />

tirar a espada.<br />

Ele foi e pôs a espada, na presença de todos. Então disse o arcebispo:<br />

— Nunca houve mais bela eleição! Agora, nobres senhores, ide tentar<br />

244


tirar.<br />

Eles foram tentar, um depois do outro, e não houve um que a pudesse<br />

— Muito louco é quem quer ir contra as obras de Jesus Cristo.<br />

— Senhor — disseram —, não nos opomos à vontade de Deus, mas<br />

estamos surpresos de ver um jovem tornar-se senhor nosso.<br />

— Quem o escolheu o conhece melhor que nós.<br />

Os barões pediram ao arcebispo que deixasse a espada lá até a festa da<br />

Candelária, porque assim poderiam ainda tentar aqueles que não o haviam feito. O<br />

arcebispo, para satisfazê-los, concordou.<br />

245


88<br />

Assim ficou lá a espada até a candelária. Então reuniram-se todos; e<br />

quantos quiseram experimentar tirar a espada experimentaram. E depois que todos<br />

os que quiseram experimentar haviam experimentado, disse o arcebispo:<br />

— Saibam agora todos que veremos a vontade de Jesus Cristo. Artur —<br />

dirigiu-se então a ele —, vai tirá-la. Se a Nosso Senhor aprouver que sejas o chefe<br />

deste povo, traze para mim essa espada.<br />

Ele foi, tirou-a e entregou-a ao arcebispo. Os presentes choraram de<br />

alegria e de emoção e perguntaram:<br />

— Há ainda alguém que pretenda ser contra esta eleição?<br />

Os ricos-homens responderam:<br />

— Senhor, pedimos ainda que deixeis a espada até a Páscoa. Se então<br />

ninguém a tiver conseguido tirar, obedeceremos, por tua palavra, a este jovem. E se<br />

quiserdes fazer diferente, cada um de nós se vê no direito de fazer o que melhor lhe<br />

parecer.<br />

— Havereis todos de obedecer a ele, de boa vontade e de bom coração,<br />

se marcarmos a Páscoa para sagrá-lo rei?<br />

246


Responderam todos que sim e de muito boa vontade; e que ele fizesse do<br />

reino e da terra segundo sua vontade e seu prazer. Então disse o arcebispo:<br />

— Artur, põe novamente a espada na bigorna. Se tal é a vontade de<br />

Deus, conseguirás facilmente o que ele te prometeu.<br />

Ele foi, repôs a espada em seu lugar. Depois que a colocou, fizeram-na<br />

cobrir e ela ficou lá como estava antes. E até a Páscoa continuaram experimentando<br />

tirá-la, mas nunca houve quem o conseguisse. E o arcebispo que havia tomado o<br />

menino sob sua guarda disse:<br />

— Senhor, sabes firmemente que serás rei deste povo. Pensa e cuida em<br />

teu coração de seres prudente. Pensa desde já em colher aqueles que serão teus<br />

conselheiros íntimos e te ajudarão a governar. Distribui os cargos e os ofícios de tua<br />

corte como seja fosses rei, porque sem falha o serás, se Deus quiser. E Artur<br />

respondeu:<br />

— Senhor, todo o poder que Deus quer me conferir, eu o deposito sob a<br />

guarda da santa Igreja e o submeto a vossos conselhos. Escolhei pois vós aqueles<br />

que podem melhor ajudar-me a seguir a vontade de Nosso Senhor e a defender a<br />

cristandade e chamai para perto de mim Antor, meu senhor, eu vos peço.<br />

O arcebispo chamou Antor e contou-lhe as boas palavras que Artur lhe<br />

havia dito. Escolheram então os conselheiros que quiseram e o arcebispo fez Quéia<br />

senescal da terra. Quanto aos outros ofícios e aos outros cargos, esperaram até a<br />

Páscoa.<br />

247


89<br />

Quando chegou a Páscoa, reuniram-se novamente todos os barões de<br />

Logres e, estando todos reunidos na véspera da festa, o arcebispo convocou-os em<br />

seu palácio para deliberar e explicou-lhes que a vontade de Jesus Cristo era que<br />

aquele menino se tornasse rei. Contou-lhes também as qualidades que nele havia<br />

descoberto, desde que o conhecera.<br />

— Senhor — disseram os barões —, não podemos mais ir contra a<br />

vontade de Nosso Senhor, mas o que nos parece muito grande maravilha é que um<br />

menino de origem tão humilde seja nosso rei.<br />

arcebispo.<br />

— Não serieis bons cristãos, se insistísseis em vos opor — disse o<br />

— Senhor, não faremos nada contra, mas atendei ainda alguma de<br />

nossas vontades. Vistes e conhecestes a sabedoria desse menino em diversas<br />

coisas. Nós porém não o conhecemos e não tivemos oportunidade de testá-lo e<br />

sabemos muito pouco a seu respeito. Pedimos então que, antes de coroá-lo, nos<br />

deixasse ver que tipo de homem será. Se tivermos oportunidade de observá-lo,<br />

certamente haverá alguém entre nós que seja capaz de julgar o que ele poderá vir a<br />

ser.<br />

248


— Quereis então adiar a coroação?<br />

— Senhor, não queremos adiar a eleição, mas queremos que seja<br />

amanhã. E, se houver a eleição, queremos que ele e vós adieis a coroação para<br />

Pentecostes. Estaremos desde logo com ele e o acataremos como senhor e<br />

submeteremos nossas forças a ele. Que sua coroação seja na festa de Pentecostes,<br />

isso vos pedimos que ele aceite.<br />

amizade.<br />

— Não há de ser por isso — disse o arcebispo — que perderemos vossa<br />

Foi assim que terminou a discussão. No dia seguinte, depois da missa,<br />

conduziram Artur à eleição. Ele tirou novamente a espada. Então pegaram-no em<br />

seus braços e o levantaram e o reconheceram por seu senhor. Pediram-lhe que<br />

recolocasse a espada e falasse com eles. Ele disse que de boa vontade o faria, bem<br />

como as outras coisas que pedissem. Recolocou a espada e eles o conduziram à<br />

igreja para falar-lhe e para experimentá-lo. Disseram-lhe então:<br />

— Senhor, vimos claramente e sabemos que Nosso Senhor quer que<br />

sejais nosso rei; nós também o queremos. Nós vos reconhecemos como senhor e<br />

vos prestaremos a homenagem por nossas terras. Pedimos porem que adieis vossa<br />

coroação até Pentecostes, sem por isso renunciar a vosso poder sobre este reino e<br />

sobre nós mesmos. Queremos que respondais a respeito dessa questão sem ouvir<br />

qualquer conselho.<br />

E Artur respondeu-lhes:<br />

— Senhores, vós estais me pedindo que receba vossa homenagem e vos<br />

reconduza à posse de vossos feudos. Ora, não posso nem devo fazê-lo, porque não<br />

quero dispor de vossas terras ou de qualquer outra de quem quer que seja, nem<br />

quero governar, antes que esteja eu mesmo de posse das minhas. Não posso ser o<br />

249


senhor deste reino, como me propondes, antes de ter sido sagrado, coroado e<br />

investido da dignidade real. Mas aceito, de boa vontade, adiar a sagração até a data<br />

que propondes, porque não quero ser sagrado, senão por Deus e por vós.<br />

Então disseram os barões entre si:<br />

— Se este menino viver, será muito sábio e muito prudente, porque nos<br />

respondeu muito bem.<br />

Pentecostes.<br />

E a Artur disseram:<br />

— Senhor, parece-nos melhor que sejais sagrado e coroado na festa de<br />

E ele disse que concordava com o que queriam.<br />

250


90<br />

Marcaram o prazo até Pentecostes e até lá obedeceram a Artur, em<br />

confiança ao arcebispo. Fizeram trazer belos presentes, jóias e tudo o que<br />

imaginavam que pudesse experimentá-lo para ver se era sensível a este tipo de<br />

aproximação. Ele perguntava aos íntimos a qualidade de cada pessoa e, de acordo<br />

com a resposta, dispunha dos bens. Ao receber os bens, distribuía-os do modo<br />

como o livro nos conta: aos bons cavaleiros dava os cavalos; às pessoas felizes e de<br />

boa vida que estavam enamoradas dava as jóias; aos avarentos dava dinheiro, ouro<br />

e prata e aos prudentes e sábios e generosos assegurava sua companhia,<br />

mandando trazerem para eles o que mais os agradasse e lhes dava. Desse modo<br />

distribuía os presentes que lhe davam aqueles que queriam testá-lo para ver como<br />

era. Quando viram que assim se comportava, não houve quem não reconhecesse<br />

que seria muito digno e que não viam nele nada errado, porque tão logo recebia um<br />

presente imediatamente o empregava bem distribuindo a cada um segundo o que<br />

era a pessoa. Desse modo testaram Artur e nunca encontraram o menor erro e<br />

esperaram até que chegasse Pentecostes.<br />

251


91<br />

Reuniram-se então todos os barões em Logres. E quantos ainda<br />

quiseram tentar a prova da espada tentaram-na, e ninguém conseguiu nada. O<br />

arcebispo estava com a coroa pronta para a sagração. Véspera de Pentecostes,<br />

antes da hora de vésperas, por comum conselho e com anuência de todos os<br />

barões, o arcebispo armou Artur cavaleiro e aquela noite fez Artur a vigília na<br />

catedral até o dia seguinte. Ao clarear o dia, os barões foram convocados e<br />

reuniram-se na catedral e o arcebispo falou a eles e disse-lhes:<br />

— Aqui está o homem que Nosso Senhor escolheu por tal eleição como<br />

vindes acompanhando desde o Natal até hoje. Aqui estão as vestimentas reais e a<br />

coroa trazidas à unanimidade do conselho e com vosso acordo. Quero de vossa<br />

boca ouvir: se houver alguém que seja contra esta eleição, que o diga.<br />

Eles responderam todos em voz alta:<br />

— Nós estamos de acordo e queremos, em nome de Deus, que ele seja<br />

sagrado rei e, se porventura tiver ele algum ressentimento contra algum de nós por<br />

ter sido contra sua eleição e sagração até hoje, queremos que ele perdoe<br />

publicamente.<br />

252


Imediatamente caíram de joelhos e todos juntos imploraram perdão. Artur<br />

chorou de emoção, ajoelhou-se e disse o mais alto que pôde:<br />

perdoe igualmente.<br />

— Perdôo-vos lealmente e peço ao Senhor que tal honra me deu que vos<br />

Então levantaram-se e os mais altos homens tomaram Artur nos braços,<br />

levaram-no onde estavam as vestimentas reais e vestiram-no. Uma vez vestido, o<br />

arcebispo, já pronto para a missa cantada, disse:<br />

— Artur, ide buscar a espada da justiça com que deveis defender a santa<br />

Igreja e salvar a cristandade por todos os meios que estiverem a vosso alcance.<br />

Então formou-se uma procissão até a pedra. Lá o arcebispo pediu a Artur<br />

que, se quisesse jurar e prometer, diante de Deus e da santa Igreja, de todos os<br />

santos e de todas as santas, salvar e manter a santa Igreja, assegurar a paz para<br />

todos os homens pobres e todas a mulheres pobres; manter-se leal à terra;<br />

aconselhar os desencaminhados; fazer o bem a todos os infelizes e garantir todos os<br />

direitos, a lealdade e a justiça, que fosse à frente e trouxesse a espada com que<br />

Nosso Senhor o havia eleito. Artur chorou com muita emoção e disse:<br />

— Assim como Deus é senhor de todas as coisas, que ele me dê força e<br />

poder para manter o que dissestes e eu ouvi, tão verdadeiramente corno a boa<br />

vontade que tenho.<br />

Pôs-se de joelhos, pegou a espada com ambas as mãos e tirou-a da<br />

bigorna como se não estivesse presa a nada. Segurou a espada em suas mãos,<br />

levou-a até o altar, onde a depôs. Em seguida, foi sagrado rei, ungiram-no e fizeram<br />

todas as coisas que devem ser feitas a um rei. Depois que foi sagrado rei, foi<br />

cantada a missa e saíram da igreja e, ao saírem, não souberam o que teria<br />

acontecido com a pedra. Assim foi Artur eleito e sagrado rei do reino de Logres e foi<br />

253


feito senhor da terra e do reino. E eu Robert de Boron que este livro escrevi, por<br />

ensinamento do Livro do Graal, não devo mais falar de Artur, enquanto não tiver<br />

falado de Alan, o filho de Bron e não tiver revelado por que razões e por que causas<br />

começaram as aventuras na Bretanha. Assim como o livro conta, convém que eu<br />

revele quem foi ele, que vida levou e que herdeiros dele saíram e o que fizeram eles.<br />

E depois, quando for a época e tiver falado dele, voltarei a falar de Artur, de seus<br />

feitos, de sua vida, de sua eleição e de sua sagração.<br />

254


Apêndice<br />

Possível fim do <strong>Merlim</strong>, segundo o manuscrito de<br />

Módena 11<br />

... e manteve a terra e o reino de Logres por muito tempo em paz. Depois<br />

que Artur foi feito rei e a missa foi cantada, foi para seu palácio com todos os barões<br />

que o tinham visto tirar a espada da pedra. Depois desta eleição, chegou <strong>Merlim</strong> à<br />

corte. E quando os barões o viram — aqueles que o conheciam — ficaram muito<br />

alegres. <strong>Merlim</strong> dirigiu-se a eles e disse-lhes:<br />

— Senhores, ouvi o que vos direi. Quero que saibais que Artur que hoje<br />

recebestes como rei é filho de Uterpendragão, vosso legítimo senhor, e da rainha<br />

Igerne. Quando ele nasceu, o rei ordenou que me fosse entregue. Assim que o<br />

recebi, levei-o a Antor, porque sabia que era um homem sábio. E ele o criou com<br />

muita boa vontade, pelos benefícios que lhe disse que receberia. E assim como lhe<br />

disse, ele de fato recebeu, visto que seu filho Quéia é hoje senescal.<br />

Interveio o rei e disse:<br />

— De fato é meu senescal e, enquanto eu viver, não deixará de sê-lo.<br />

Com esta palavra, foi muito grande a alegria e os barões ficaram alegres,<br />

ate Galvão que era filho da irmã do rei e do rei Lote.<br />

Em seguida, o rei ordenou que as mesas fossem postas. Assim foi feito e<br />

sentaram-se todos para comer, foram ricamente servidos e tiveram tudo que<br />

11<br />

Estas passagens foram traduzidas da edição crítica do <strong>Merlim</strong> por Alexandre Micha (Cenève:<br />

Librairie Droz, 1980).<br />

255


quiseram pedir. Depois que comeram, os servos retiraram as mesas, os barões<br />

levantaram-se e foram ao rei — aqueles que conheciam <strong>Merlim</strong> e haviam servido a<br />

Uterpendragão — e disseram:<br />

— Senhor, honrai muito a <strong>Merlim</strong>, porque foi o bom mago de vosso pai e<br />

sempre amou vossa linhagem, predisse a morte de Vortigerne e mandou fazer a<br />

távola redonda. Cuidai que ele seja muito honrado, porque não lhe perguntareis<br />

nada que ele não vos responda.<br />

E Artur respondeu-lhes:<br />

— Assim será.<br />

Então chamou <strong>Merlim</strong>, sentou-se perto dele e demonstrou muito grande<br />

alegria por sua vinda. E <strong>Merlim</strong> disse-lhe:<br />

— Senhor, gostaria de falar-vos muito à vontade e reservadamente, em<br />

companhia apenas de dois barões em quem mais confiais.<br />

— <strong>Merlim</strong> — disse o rei —, farei qualquer coisa que me aconselhardes,<br />

desde que não seja contra a vontade de Nosso Senhor.<br />

Então chamou Quéia, o senescal, a quem durante muito tempo havia<br />

considerado seu irmão e Galvão, o filho do rei da Orcânia, que era seu sobrinho.<br />

Estando os quatro reunidos reservadamente, disse <strong>Merlim</strong>:<br />

— Artur, sois rei, graças a Deus, e Uterpendragão, vosso pai, foi homem<br />

muito sábio; ele fez a mesa redonda em seu tempo. Ela foi feita em lembrança<br />

daquela em que Nosso Senhor sentou-se na quinta-feira e disse que Judas o trairia<br />

e foi feita em semelhança daquela mesa que José fez para o Graal, quando ele<br />

separou os bons dos maus. Quero que saibais que houve dois reis na Bretanha<br />

antes de vós que foram rei da França e imperador de Roma e quero que saibais que<br />

na Bretanha haverá ainda um terceiro rei que será rei e imperador e conquistará os<br />

256


omanos. E eu vos digo, pelo poder que tenho de saber as coisas que estão por<br />

acontecer, porque esse poder recebi de Nosso Senhor, duzentos anos antes que<br />

nascêsseis, já fostes profetizado e a vossa sorte estava lançada. Mas vos convém,<br />

para que sejais sábio e valente, que a mesa redonda seja restabelecida por vós. Isto<br />

bem vos asseguro que imperador não sereis, enquanto a távola redonda não estiver<br />

elevada em dignidade, como vos direi. Aconteceu outrora que o Graal foi entregue a<br />

José, quando ele estava na prisão. Nosso Senhor mesmo o levou. Este José, depois<br />

que saiu da prisão, foi para um deserto com muita gente da Judéia em sua<br />

companhia. Enquanto se mantinham fiéis, recebiam a graça de Nosso Senhor;<br />

quando não, ela lhes faltava. Perguntaram alguns a José se era pelo pecado deles<br />

ou pelo seu que a graça lhes faltava. Ao ouvir isso, José ficou muito magoado, foi<br />

para junto do vaso e pediu a Nosso Senhor que lhe desse uma demonstração do<br />

que poderia estar acontecendo. Então ouviu a voz do Espírito Santo que lhe disse<br />

que fizesse a mesa e ele a fez. Em seguida, colocou sobre ela o vaso e mandou que<br />

se assentassem. Então sentaram-se aqueles que estavam isentos de pecado e os<br />

que tinham pecado saíram, porque não puderam ficar lá. Havia um lugar vazio<br />

naquela mesa, porque a José parecia que ninguém deveria sentar-se no lugar em<br />

que Nosso Senhor havia sentado. Mas um falso discípulo chamado Moisés, que<br />

muitas vezes ensaiara e tentara de diversas maneiras sentar-se, veio a José e<br />

suplicou-lhe, por Deus, que o deixasse preencher o lugar que estava vazio, porque<br />

ele dizia que sentia tanto a graça de Nosso Senhor, que era digno de sentar-se no<br />

lugar vazio. E José disse-lhe:<br />

— Moisés, se não fosses tal como pareces, eu aconselharia que não te<br />

metesses a experimentar.<br />

257


Mas o discípulo respondeu que Deus lhe daria a vitória de preencher o<br />

lugar, porque ele era bom. Então disse José que, se ele era tão bom, que fosse<br />

sentar-se. E Moisés sentou e afundou-se no abismo.<br />

Ora — continuou dizendo <strong>Merlim</strong> ao rei — , sabei que Nosso Senhor fez a<br />

primeira mesa e José, a segunda e eu, no tempo de Uterpendragão, vosso pai, fiz a<br />

terceira, que muito será exaltada e de que se falará por todo o mundo, pela boa<br />

cavalaria que em vosso tempo haverá. Sabei que o Graal foi entregue a José que,<br />

depois de sua morte, deixou-o para seu cunhado Bron. Bron teve doze filhos. Um<br />

deles chamou-se Alan, o gordo, e ele confiou ao rei Pescador a guarda de seus<br />

irmãos. Este Alan veio com os seus da terra da Judéia, como Nosso Senhor o<br />

ordenou, para estas ilhas do Ocidente e chegaram então a esta região. E o rei<br />

Pescador está nestas ilhas da Irlanda, num dos mais belos lugares do mundo. Sabei<br />

que ele tem a mais grave deficiência que alguém já tenha tido e sofre de uma<br />

doença. Mas isto vos posso claramente dizer que, por velhice e por qualquer doença<br />

que tenha, não pode morrer, enquanto não vier o cavaleiro da távola redonda que<br />

mais fizer de armas e de cavalaria, em torneios e em aventuras e que será o mais<br />

louvado de todo o mundo. E ele, quando chegar, será exaltado e poderá vir à corte<br />

do rico rei Pescador e, quando perguntar para que serviu o Graal e para que serve,<br />

logo será curado. Então dirá as sagradas palavras de Nosso Senhor e passará da<br />

vida à morte. Aquele cavaleiro terá a guarda do sangue de Cristo. Terminarão os<br />

encantamentos da terra da Bretanha e a profecia será cumprida. Sabei que, se<br />

fizerdes do modo como vos ensinei, grandes benefícios vos poderão advir. Convém<br />

agora que eu vá, que não posso mais estar no século, porque não me despedi de<br />

meu salvador.<br />

258


O rei disse que, ainda que ele não pudesse permanecer junto com ele, o<br />

amaria muito. E <strong>Merlim</strong> disse que, de fato, não poderia demorar-se. Então partiu e foi<br />

para Nortumberlândia para encontrar-se com Brás, que havia sido confessor de sua<br />

mãe e estava metendo por escrito todas as suas obras, aquelas que <strong>Merlim</strong> contava-<br />

lhe. E Artur ficou com seus barões e pensou muito em tudo que <strong>Merlim</strong> havia dito.<br />

Sabei que nunca um rei teve tão grande corte e nem lhe foi feita tão grande festa<br />

como a que fizeram para Artur. Nunca também um rei fez-se tanto amar por seus<br />

barões como ele. Ele era mesmo o mais belo homem e o melhor cavaleiro que se<br />

conhecia. Era um rei muito valente e oferecia belos presentes. Era tão famoso, que<br />

não se falava senão dele por todo o mundo, de modo que todos os cavaleiros<br />

vinham a sua corte para vê-lo e para privar dele. Ninguém era armado cavaleiro,<br />

sem antes passar um ano na companhia de Artur e sem receber o penhor de suas<br />

armas, de modo que todo o mundo falasse dele.<br />

* * *<br />

[A frase que segue no manuscrito marca o início do Perceval: "Chegaram então as<br />

notícias de que Alan, o gordo, vivia e pensava em seu coração..."]<br />

259


Possível fim do <strong>Merlim</strong> segundo o manuscrito Didot<br />

(Fol. 93d) ... e manteve a terra e o reino por muito tempo em paz. Depois<br />

que ele foi coroado e lhe fizeram tudo aquilo a que tinha direito, conduziram-no ao<br />

palácio; Quéia, o senescal, foi junto e foram os outros barões e grande parte<br />

daqueles que lá estavam para ver se ele tiraria novamente a espada. Depois que foi<br />

feita a eleição, como já sabeis, veio <strong>Merlim</strong> à corte. E quando os barões que haviam<br />

servido a Uterpendragão o viram, ficaram muito alegres e fizeram muita festa para<br />

ele. E <strong>Merlim</strong> veio à frente de todos e disse:<br />

— Senhores, é de direito que vos faça sabedores de quem é este a quem<br />

fizestes rei pela eleição de Nosso Senhor. Sabei que é filho do rei Uterpendragão,<br />

nosso legítimo senhor. Na mesma noite em que nasceu ele me foi entregue. E eu<br />

encarreguei Antor de criá-lo, porque sabia que era um homem prudente e leal. E<br />

Antor o criou, de muito bom grado, pelos grandes benefícios que lhe disse que<br />

receberia. E assim como lhe disse aconteceu, porque Artur fez o filho de Antor<br />

senescal de sua terra.<br />

E Artur disse:<br />

— É de fato meu senescal e será enquanto eu viver e o teremos por<br />

senescal e senhor de tudo o que tenho.<br />

Essas palavras provocaram muita emoção e grande foi a alegria de todos<br />

os barões da região; mesmo Galvão, que era filho do rei Lote, ficou muito alegre.<br />

Depois disso, o rei mandou servir as mesas e assim foi feito e sentaram-<br />

se todos para comer e cada um teve aquilo que pediu. Depois de comer, levantaram-<br />

se, chamaram o rei e o levaram à parte e disseram-lhe:<br />

260


— Senhor, aqui está <strong>Merlim</strong> que foi o bom mago de vosso pai que o<br />

amou muito. E <strong>Merlim</strong> fez a távola redonda em seu tempo e foi ele quem predisse a<br />

morte a Uterpendragão. Agora cuidai que seja muito honrado. Artur respondeu:<br />

— Senhores, assim será.<br />

Então o rei aproximou-se de <strong>Merlim</strong>, sentou-se ao lado dele e fez muita<br />

festa por sua vinda. Depois de comer, chamou-o e conversou muito à vontade com<br />

ele e muito o honrou à ceia. E <strong>Merlim</strong> disse-lhe:<br />

— Senhor, gostaria muito de conversar convosco à parte, em companhia<br />

de dois de vossos barões em quem mais confiais.<br />

— <strong>Merlim</strong> — disse o rei —, com muito gosto e quando quiserdes.<br />

O rei chamou Quéia, o senescal, e Galvão, seu sobrinho. Estando os<br />

quatro juntos, disse <strong>Merlim</strong>:<br />

— Artur, sois rei, graças a Deus; e Uterpendragão, vosso pai, foi muito<br />

sábio e fez a távola redonda em seu tempo, em lembrança da távola que José fez<br />

para o Graal, quando separou os bons dos maus. Ora, sabei que há dois reis na<br />

Bretanha que foram reis de França e conquistaram Roma e fizeram-se coroar. E<br />

cem anos antes que fósseis coroado rei, profetizaram os profetas vossa vinda. Sabei<br />

que a rainha Sibila profetizou e disse que serieis o terceiro homem que seria rei;<br />

depois o disse Salomão e eu sou o terceiro que o digo. Visto pois que a sorte está<br />

lançada, sede sábio e valente, de modo que a távola redonda seja exaltada por vós.<br />

Sabei que não sereis imperador, enquanto a távola redonda não for exaltada por<br />

vós, como deveis dignificá-la. Aconteceu outrora que o Graal foi entregue a José.<br />

Nosso Senhor mesmo o entregou a ele na prisão. E José, por ordem de Nosso<br />

Senhor, foi a um deserto e levou grande parte de seu povo da terra da Judéia que<br />

obedeceram à sua ordem e ao serviço de Nosso Senhor. Enquanto se conduziam<br />

261


em, tinham a graça de Nosso Senhor, mas quando faziam algo diferente, ela lhes<br />

faltava. E o cavaleiro que era seu mestre ficou muito magoado e rogou a Nosso<br />

Senhor que lhe desse uma demonstração do que o povo pedia. E Nosso Senhor<br />

ordenou que ele fizesse uma távola no lugar daquela em que se assentavam. E do<br />

modo como Nosso Senhor lhe ordenou ele fez, e sentou-se nela grande parte de<br />

seu povo. Houve mais pessoas que não puderam sentar-se do que pessoas<br />

sentadas e ficou um lugar vazio em lembrança daquele em que Judas se sentara,<br />

quando Nosso Senhor disse que ele o trairia. E Moisés, um falso discípulo que<br />

desejava o lugar, tentou por diversas maneiras sentar-se nele. Veio até José e<br />

pediu-lhe que o deixasse preencher o lugar e disse que sentia tanto a graça de<br />

Nosso Senhor, que era digno de sentar-se no lugar vazio. E José disse-lhe que<br />

confiasse nele e não se sentasse nunca naquele lugar, mas ele disse que, se de fato<br />

ele era bom, que o deixasse sentar-se. E José disse-lhe:<br />

— Sentareis.<br />

Então foi Moisés ao assento e sentou-se. E assim que se assentou,<br />

afundou-se no abismo, do qual não sairá até o tempo do Anticristo. Nosso Senhor<br />

fez a primeira mesa, José fez a segunda e eu, no tempo de Uterpendragão, vosso<br />

pai, fiz a terceira, que será ainda muito exaltada e será falada pela cavalaria que<br />

nela haverá. Sabei que o Graal que foi entregue a José está nesta região e sob a<br />

guarda do rico rei Pescador, a quem José, ao morrer, entregou-o por ordem de<br />

Nosso Senhor. E esse rei Pescador sofre de uma grande enfermidade, porque é um<br />

homem velho e cheio de doenças, e não terá mais saúde enquanto não vier um<br />

cavaleiro à mesa redonda, que será o melhor diante de Deus e da santa Igreja e<br />

tanto fará em armas que será o mais louvado do mundo. Quando ele vier à casa do<br />

rei Pescador, e quando perguntar para que serve o Graal, logo será o rei curado de<br />

262


sua doença e terminarão os encantamentos da Bretanha e a profecia será cumprida.<br />

Sabei que, se fizerdes isto, muitos e grandes benefícios vos advirão. E agora<br />

convém que eu vá, porque não posso ficar muito tempo no convívio de todos.<br />

Mas Artur disse que teria muita satisfação, se ele quisesse ficar.<br />

— Isso não poderia fazer — disse <strong>Merlim</strong> —, mas ainda voltarei a vos ver.<br />

Desse modo despediu-se do rei e foi para Nortumberlândia encontrar-se<br />

com Brás, seu mestre, e contou-lhe as coisas. Depois que <strong>Merlim</strong> contou, Brás as<br />

meteu em escrito e, por seu escrito, as sabemos ainda hoje. Artur ficou com seus<br />

barões e pensou muito no que <strong>Merlim</strong> lhe havia dito. E sabei que nunca um rei teve<br />

tão grande corte como Artur e nunca se fez amar tanto por seus barões como ele.<br />

Ele era um homem belo e era o melhor cavaleiro de sua corte. E porque era tão<br />

valente e de tão agradável companhia e porque falava muito bem e dava muitos e<br />

belos presentes, não houve ninguém no mundo mais famoso do que Artur, de modo<br />

que toda a cavalaria vinha à corte para vê-lo e privar com ele. E ninguém era<br />

investido da cavalaria, se não tivesse ficado na companhia do rico rei Artur, porque<br />

era de tão elevado prestígio e de grandeza tal, que era famoso em todo o mundo.<br />

[A frase que segue no manuscrito pertence certamente a Perceval e<br />

constitui talvez seu início: "Naquele tempo, o filho de Alan, o gordo, de quem já<br />

ouvistes falar anteriormente, era pequeno..."]<br />

263


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267


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