FILOSOFIA DA TEORIA POLÍTICA: ALGUNS MOMENTOS
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cadernos ufs - filosofia<br />
submissão ou a isenção do Estado frente à moralidade religiosa 9 . O Príncipe é o<br />
exemplo mais emblemático desse tipo de escrita, já que desenvolve o conselho não<br />
apenas em seu conteúdo, mas também na forma do texto. No caso dessa obra<br />
especificamente, como bem se sabe, ela foi feita com um destinatário já em mente,<br />
o “Magnífico Lourenço de Médici”, assim como consta em sua introdução.<br />
Haveria um paradoxo no fato de que Maquiavel seja visto como aquele que<br />
inicia a visão de que o soberano não deve ser julgado – isto é, que não se<br />
pode dizer se agiu de modo certo ou errado – e o fato de que o próprio autor<br />
escreve uma obra para indicar como agir corretamente? Trata-se aí de compreender<br />
as concepções de certo e errado que podemos encontrar no autor: o<br />
certo e o errado estão sujeitos à situação em que o príncipe se encontra e não<br />
necessariamente a algum critério imutável.<br />
Para responder à pergunta, deve-se esclarecer que, em Maquiavel, contrariamente<br />
ao que muitas vezes se considera, não há uma oposição entre a moral<br />
do príncipe e a da Igreja; há apenas uma diferenciação. Assim, essas duas<br />
morais caminham paralelamente. A ação do príncipe não é necessariamente<br />
imoral, ela apenas pode vir a ser. Em outros momentos, pode ser que ambas<br />
coincidam e que a virtude do príncipe oriente para a mesma ação que a virtude<br />
religiosa. Em tais casos, sem dúvida, o príncipe terá seguido sua própria<br />
moral, mas não convém dizer que a moral cristã tenha sido contrariada. Em<br />
outros momentos tal coincidência não ocorrerá e a separação entre Estado e<br />
religião que era potencial se tornará real. A intenção teórica parece ser a de<br />
que isso não gere prejuízo algum ao príncipe, de modo que este não hesite em<br />
ir contra a moral cristã, caso considere necessário. A soberania se torna então<br />
absoluta, já que essa deve ser pensada não apenas em relação aos outros<br />
domínios – ou outros governantes – mas também referindo-se à independência<br />
em relação à Igreja enquanto ator supranacional. As críticas que se desenvolveram<br />
sobre esse tema da existência ou não de uma moral própria do<br />
Estado para orientar os governantes darão origem ao pensamento sobre a<br />
razão de Estado 10 . Muitas delas não tinham a intenção de colaborar com os<br />
argumentos de Maquiavel, mas, ao contrário, pretendiam colocar limites ao<br />
que se chamou de maquiavelismo, isto é, a ação indiscriminada dos<br />
governantes, seguindo apenas seus próprios interesses 11 .<br />
9 Diz Skinner sobre esse problema, referindo-se ao conflito entre Erasmo e Maquiavel: “Maquiavel supõe, com<br />
o espírito de um utilitário moderno, que a pergunta fundamental deve ser como conservar a própria república.<br />
Assim, então, apóia invariavelmente a necessidade de um cálculo prudente das conseqüências prováveis”<br />
(ob.cit. p.279. Tradução minha, do espanhol).<br />
10 Discutir razão de Estado em Maquiavel não é tão simples quanto muitas vezes se propõe. Ocorre que no momento<br />
da obra não há propriamente o que conhecemos como Estado em sua concepção moderna. Tampouco na teoria<br />
é possível encontrar os elementos formais que se exige para considerar um sistema político como Estado. A<br />
ausência do direito na discussão do autor é apenas um dos elementos que geram essa dificuldade. Segundo Yves-<br />
Charles Zarka (1996), a razão de Estado apenas se constituiria definitivamente no plano teórico após as obras de<br />
Jean Bodin, que puderam separar a soberania do governo, o que, em Maquiavel, ainda não ocorre.<br />
11 Perceba-se que o maquiavelismo, assim como outros “ismos” é um recorte seletivo da teoria de Maquiavel.<br />
A ação do governante não é exatamente aleatória, uma vez que deve corresponder à virtude do príncipe. No<br />
entanto, foram essa considerações sobre a arbitrariedade da ação do príncipe, e não os próprios textos do<br />
autor, que levaram às mais ferozes críticas contra ele.