FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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somente de reconhecimento. Os tiros que Paulo Duarte ouviu atrás de si não foram apenas frutos de sua imaginação. Na verdade, não sabia ele que naquela tarde ocorrera o primeiro bombardeio aéreo contra uma cidade brasileira, Cachoeira Paulista. O ataque governista causou grande pânico na população. O repórter Brussolo (1932, p. 35) narra, em seu diário, no dia 15 de julho, que as várias notícias eram espalhadas, anunciando-se que: “A aviação legalista bombardeou tropas rebeldes”. As informações espalhavam-se ainda com poucos créditos, pois eram difíceis as comunicações com as frentes de batalhas. Só com o tempo poderiam ser confirmadas. Nesse caso, o fato foi certificado pelo autor: Ao que estou informado e conforme notícias que redigi no jornal, no Valle do Parahyba (sic) nossos soldados tiveram o seu baptismo de fogo antehontem (sic). Registraram-se algumas escaramuças. Tomaram parte as tropas vanguardistas dos constitucionalistas e as que foram enviadas pelo dictador (sic) Getúlio Vargas. Foram diminutos os disparos feitos. O mesmo não succedeu (sic) no encontro do 1º R.C.D. com as patrulhas do 5º Batalhão da Força Pública. Estas eram comandadas pelo capitão Odilon. Estabeleceu-se fortíssimo tiroteio. (BRUSSOLO, 1932, p. 35-36) O avião retirou-se ao fim da missão de reconhecimento de Queluz. Sem que os soldados soubessem o que aconteceu em Cachoeira, retornaram à plataforma para continuarem a organização dos preparativos para a ida à frente, até a estação de Bianor. Uma locomotiva partiu e logo retrocedeu, porque o trem fora atingido por um forte tiroteio e os soldados, temerosos, não quiseram obedecer a ordem de desembarque. Foi então que Nino e Paulo Duarte, para convencer os soldados, viram-se obrigatoriamente convencidos de que também deveriam ir para a frente. Assim que teve contato com a o tiroteio nas trincheiras, Paulo Duarte (1947, p. 25) exclamou: “Para que avançou mais do que podia, seu burro! escutava dentro de mim – agora que leve o diabo!”. Sob seu primeiro forte tiroteio, além de controlar o próprio despreparo e medo, o combatente se sentiu no dever de, com seu próprio exemplo, não deixar a tropa debandar, mas pelo contrário, atacar. Era necessário mover de posição. O autor relata que ocultou a fraqueza para que os soldados o acompanhassem e decidiu atravessar até a vanguarda. Senti a necessidade de uma loucura decisiva. Pensei na perda do setor, caso se verificasse outra debandada. Pensei também no meu ridículo [...]. Penso até que a vaidade humana gritou ainda mais alto do que a minha integração na causa! 74

Foi nesse instante que me apossei da minha loucura. Num gesto enérgico, com o desespêro e a inconsciência, atravessei o campo da metralhadora inimiga. O barranco a cem metros de distância, me abrigou como um peito materno... [...] Seguiu-me um punhado de soldados. Outros permaneceram no mesmo lugar, semi-apavorados. Gritei, cuspi insultos. De pistola em punho, novamente, fiz menção de regressar. Outro grupo pulou rápido e atravessou! Depois outro. (DUARTE, 1947, p. 25) A travessia foi vista por uma trincheira ditatorial que intensificou o ataque, mas não houve feridos. Aliviados, os soldados gritaram e fizeram gestos de insultos aos cariocas, pois estavam em Queluz, próximo à divisa com o Rio de Janeiro. A mesma sorte não foi repetida na noite posterior. A chuva impediu o retorno de Paulo Duarte para a retaguarda, em Cachoeira. O combatente teve que permanecer em Bianor (estação ferroviária do município de Queluz) e, na madrugada foi atingida por um forte tiroteio. Ao amanhecer, os soldados perceberam as péssimas condições em que estava a estação. Conforme a descrição do autor (DUARTE, 1947, p. 29), a “estaçãozinha de Bianor” parecia “objetivo militar sem nenhuma importância... localizada num buraco”. Por isso, sugeria que o “mais conveniente” era que fossem estudadas “linhas melhores e mais altas, que não fossem varridas pelas posições, a cavaleiro, do inimigo”. Nessa ocasião, os soldados combateram em uma trincheira próxima; uma vala de escoamento que era passagem obrigatória para o lugar onde estavam guardadas as armas e munições, na estação. Tratava-se de um esgoto fluvial que os soldados passaram a chamar de “Vala Suja”. As condições regulares de higiene da trincheira agravavam-se pela presença dos mortos da noite. “Eram os primeiros cadáveres que eu via na frente. Senti repugnância em tocá-los. Enquanto os olhava, à beira da linha, esperando a gôndola, dançava no meu espírito tudo quanto pode pensar quem ainda não está adaptado a carnificina” (DUARTE, 1947, p. 31). Os primeiros contatos com os mortos da guerra causaram um certo desconforto, mas, aos poucos, conforme o autor, os cadáveres incomodavam menos que a chuva e o tiroteio inimigo, que dificultavam as ações. Eram as etapas de adaptação ao ambiente de guerra, que geraram sentimentos cuidadosamente descritos pelo autor. Quando o capitão Ferraz retirou-se para Queluz para tratar de suas enfermidades, este não retornou, e o comando foi dividido entre o autor e o tenente Napoleão – nas linhas férreas – e Nino, auxiliado pelo tenente Lemos – nos morros. A equipe se pôs a planejar um ataque ao inimigo e, para isso, contaram com o Trem Blindado que viria de Cachoeira. O 75

Foi nesse instante que me apossei da minha loucura. N<strong>um</strong> gesto enérgico,<br />

com o <strong>de</strong>sespêro e a inconsciência, atravessei o campo da metralhadora<br />

inimiga.<br />

O barranco a cem metros <strong>de</strong> distância, me abrigou como <strong>um</strong> peito materno...<br />

[...] Seguiu-me <strong>um</strong> punhado <strong>de</strong> soldados. Outros permaneceram no mesmo<br />

lugar, semi-apavorados. Gritei, cuspi insultos.<br />

De pistola em punho, novamente, fiz menção <strong>de</strong> regressar. Outro grupo<br />

pulou rápido e atravessou! Depois outro. (DUARTE, 1947, p. 25)<br />

A travessia foi vista por <strong>um</strong>a trincheira ditatorial que intensificou o ataque, mas não<br />

houve feridos. Aliviados, os soldados gritaram e fizeram gestos <strong>de</strong> insultos aos cariocas, pois<br />

estavam em Queluz, próximo à divisa com o Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

A mesma sorte não foi repetida na noite posterior. A chuva impediu o retorno <strong>de</strong> Paulo<br />

Duarte para a retaguarda, em Cachoeira. O combatente teve que permanecer em Bianor<br />

(estação ferroviária do município <strong>de</strong> Queluz) e, na madrugada foi atingida por <strong>um</strong> forte<br />

tiroteio.<br />

Ao amanhecer, os soldados perceberam as péssimas condições em que estava a estação.<br />

Conforme a <strong>de</strong>scrição do autor (DUARTE, 1947, p. 29), a “estaçãozinha <strong>de</strong> Bianor” parecia<br />

“objetivo militar sem nenh<strong>um</strong>a importância... localizada n<strong>um</strong> buraco”. Por isso, sugeria que o<br />

“mais conveniente” era que fossem estudadas “linhas melhores e mais altas, que não fossem<br />

varridas pelas posições, a cavaleiro, do inimigo”.<br />

Nessa ocasião, os soldados combateram em <strong>um</strong>a trincheira próxima; <strong>um</strong>a vala <strong>de</strong><br />

escoamento que era passagem obrigatória para o lugar on<strong>de</strong> estavam guardadas as armas e<br />

munições, na estação. Tratava-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> esgoto fluvial que os soldados passaram a chamar <strong>de</strong><br />

“Vala Suja”.<br />

As condições regulares <strong>de</strong> higiene da trincheira agravavam-se pela presença dos<br />

mortos da noite. “Eram os primeiros cadáveres que eu via na frente. Senti repugnância em<br />

tocá-los. Enquanto os olhava, à beira da linha, esperando a gôndola, dançava no meu espírito<br />

tudo quanto po<strong>de</strong> pensar quem ainda não está adaptado a carnificina” (DUARTE, 1947, p.<br />

31). Os primeiros contatos com os mortos da guerra causaram <strong>um</strong> certo <strong>de</strong>sconforto, mas, aos<br />

poucos, conforme o autor, os cadáveres incomodavam menos que a chuva e o tiroteio inimigo,<br />

que dificultavam as ações. Eram as etapas <strong>de</strong> adaptação ao ambiente <strong>de</strong> guerra, que geraram<br />

sentimentos cuidadosamente <strong>de</strong>scritos pelo autor.<br />

Quando o capitão Ferraz retirou-se para Queluz para tratar <strong>de</strong> suas enfermida<strong>de</strong>s,<br />

este não retornou, e o comando foi dividido entre o autor e o tenente Napoleão – nas linhas<br />

férreas – e Nino, auxiliado pelo tenente Lemos – nos morros. A equipe se pôs a planejar <strong>um</strong><br />

ataque ao inimigo e, para isso, contaram com o Trem Blindado que viria <strong>de</strong> Cachoeira. O<br />

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