FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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O movimento de 1932 convergiu a “raça negra” à luta pela liberdade, revestindo de significado o lugar do negro no conflito cívico. O marco histórico fundamental foi a narrativa do quilombo dos Palmares que, no século XVI–XVII, constituiu, em pouco tempo, o mais importante refúgio pela liberdade de escravos fugitivos na América. Relido à luz das experiências históricas do Império Português no Brasil, Palmares representou um modelo alternativo de organização da sociedade que desafiou os poderes coloniais e suas formas de domínio, baseando-se no trabalho livre e na sociedade comunal da terra. Os verdadeiros Palmares viveram há trezentos anos. Primeiro eram cerca de quarenta negros escravos. Refugiaram-se no sertão. Querendo ser homens livres, ali se fortificaram. Desciam a serra, a princípio, em busca de comida e de mulheres. Arrasavam as plantações e as senzalas. Todos os escravos fugitivos eram bem recebidos e ali principiavam a viver como homens livres. A aglomeração foi crescendo. Delineou-se a organização coletiva. Escolheuse um rei dentre os de mais ação e valentia. Foi-se esboçando uma religião primitiva, mista do cristianismo, bebida parcamente da catequização jesuítica mal assimilada, de grosseiras superstições, dos mitos africanos ou indígenas. Até leis escritas apareceram. Deixaram um dia de descer a serra para apossar-se das colheitas e das fêmeas, porque as colheitas e as mulheres iam surgindo em roças e gerações novas […] O branco civilizado queria escravizar o negro bronco que sonhara ser livre. A nação dos Palmares foi arrazada (sic). Mas os Palmares não puderam ser escravizados, porque enquanto houve um guerreiro negro em pé, êste (sic) resistiu aos invasores. (DUARTE, 1947, p.199). A luta pela liberdade e a resistência negra são lembradas por Paulo Duarte e indiretamente homenageadas no título de sua principal obra sobre o movimento constitucionalista, Palmares pelo avesso. Mesmo em outras obras, sempre que Paulo Duarte se refere ao livro explica que os “palmares eram escravos que lutavam para ser livres” (DUARTE, 1974, p.87). A saga dos mocambos do palmares é exaltada pela audácia de desafiar a sociedade e arriscar a vida na fuga quando eram ferozmente perseguidos pelos “capitães-do-mato”. Paulo Duarte insurgiu à memória dos brasileiros este histórico de lutas pela liberdade. Nesse sentido, guerreiro e heroico, o negro é visto como parte dessa nacionalidade. Diante dos estudos apresentados sobre brancos e negros nas primeiras décadas do século XX, intui-se que, ao elaborar o título da obra, em 1933, o autor tenha representado no termo “palmares pelo avesso” um meio de coagir o “ilustre povo paulista”, a elite intelectual e as oligarquias, à necessidade de oposição à ditadura varguista. Quando o texto foi publicado, no fim do Estado Novo, momento em que Vargas permanecia com imenso prestígio após a vitória de Dutra, o avesso indica no título uma crítica ao presente: as elites paulistas abdicaram da luta pela 46

liberdade, adequando-se à tutela do Estado Nacional, transformando 1932 em um movimento derrotado e esquecido. Dessa forma, aqueles que se aproximavam de Vargas e de seu sistema político eram considerados “cativos”. 7 de setembro! Completava àquele dia justamente cento e dez anos que a Pátria amada, como a chamavam todas as horríveis canções patrióticas, proclamara a liberdade. Dos dois milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados de território livrem os acontecimentos provavam que, depois de cento e dez anos de independência, apenas pequena parte tinha perdido a mentalidade de escravo... Nas nossas linhas, havia homens livres. Mesmo a disciplina de guerra não ia além da vontade de cada um combater. Era uma guerra de voluntários. O soldado que não quisesse lutar, podia retirar-se. Do lado do inimigo, deviam ser escravos. E estes morriam defendendo o cativeiro. Palmares pelo avesso... […] Ali estavam êles à nossa frente, morrendo, prontos a ver-se destruídos até o último para não se tornar homens livres. Entre ser livre e escravo, optaram pelo cativeiro...(DUARTE, 1947, p. 198-200) O autor refere-se à trama dos “verdadeiros Palmares” fazendo uma analogia aos soldados paulistas - que se alistaram voluntariamente na guerra constitucionalista - sendo essa a “pequena parte que tinha perdido a mentalidade de escravo”. A ideia de integração voluntária à guerra civil é destacada pelo autor, que critica a ambiguidade do discurso dos aliados da “ditadura”. Estes apoiavam o governo em nome do amor à Pátria, mas sacrificavam a liberdade conquistada. Apesar da relevante participação de negros, pardos e mulatos na guerra de 1932, as referências aos feitos destes segmentos populacionais são escassos, até mesmo na obra de Paulo Duarte. Há na literatura um “silêncio” sobre a participação dos negros no conflito armado de 1932, fruto do etnocentrismo que influenciou a produção acadêmica. O nosso autor não foge à regra. Seus comentários sobre a participação de negros no movimento constitucionalista, afora o título e as explicações relacionadas a ele, são bastante restritos. A descrição da fisionomia do soldado negro é ambígua: Quase de manhã uma sede horrível me torturava. Embora molhado completamente, tinha a garganta ressequida pelos gases da pólvora. - Ninguém tem água, aí? - Aqui, tem um pouco, seu capitão. Era um preto fantasticamente feio. Beiços inchados e feridos, dentes podres, gengivas escuras abertas num sorriso para me agradar. Eu testemunhara já a sua bravura e destemor. Mas tinha nojo da figura mulambenta que lembrava os morféticos de estrada. 47

liberda<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>quando-se à tutela do Estado Nacional, transformando 1932 em <strong>um</strong> movimento<br />

<strong>de</strong>rrotado e esquecido. Dessa forma, aqueles que se aproximavam <strong>de</strong> Vargas e <strong>de</strong> seu sistema<br />

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Completava àquele dia justamente cento e <strong>de</strong>z anos que a Pátria amada,<br />

como a chamavam todas as horríveis canções patrióticas, proclamara a<br />

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Dos dois milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados <strong>de</strong> território<br />

livrem os acontecimentos provavam que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cento e <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong><br />

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voluntários. O soldado que não quisesse lutar, podia retirar-se.<br />

Do lado do inimigo, <strong>de</strong>viam ser escravos. E estes morriam <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o<br />

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Palmares pelo avesso...<br />

[…] Ali estavam êles à nossa frente, morrendo, prontos a ver-se <strong>de</strong>struídos<br />

até o último para não se tornar homens livres. Entre ser livre e escravo,<br />

optaram pelo cativeiro...(DUARTE, 1947, p. 198-200)<br />

O autor refere-se à trama dos “verda<strong>de</strong>iros Palmares” fazendo <strong>um</strong>a analogia aos<br />

soldados paulistas - que se alistaram voluntariamente na guerra <strong>constitucionalista</strong> - sendo<br />

essa a “pequena parte que tinha perdido a mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escravo”. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> integração<br />

voluntária à guerra civil é <strong>de</strong>stacada pelo autor, que critica a ambiguida<strong>de</strong> do discurso dos<br />

aliados da “ditadura”. Estes apoiavam o governo em nome do amor à Pátria, mas sacrificavam<br />

a liberda<strong>de</strong> conquistada.<br />

Apesar da relevante participação <strong>de</strong> negros, pardos e mulatos na guerra <strong>de</strong> 1932, as<br />

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Paulo Duarte. Há na literatura <strong>um</strong> “silêncio” sobre a participação dos negros no conflito<br />

armado <strong>de</strong> 1932, fruto do etnocentrismo que influenciou a produção acadêmica. O nosso autor<br />

não foge à regra. Seus comentários sobre a participação <strong>de</strong> negros no movimento<br />

<strong>constitucionalista</strong>, afora o título e as explicações relacionadas a ele, são bastante restritos. A<br />

<strong>de</strong>scrição da fisionomia do soldado negro é ambígua:<br />

Quase <strong>de</strong> manhã <strong>um</strong>a se<strong>de</strong> horrível me torturava. Embora molhado<br />

completamente, tinha a garganta ressequida pelos gases da pólvora.<br />

- Ninguém tem água, aí?<br />

- Aqui, tem <strong>um</strong> pouco, seu capitão.<br />

Era <strong>um</strong> preto fantasticamente feio. Beiços inchados e feridos, <strong>de</strong>ntes podres,<br />

gengivas escuras abertas n<strong>um</strong> sorriso para me agradar. Eu testemunhara já a<br />

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os morféticos <strong>de</strong> estrada.<br />

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