FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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Nos relatos de Paulo Duarte, há o prosseguimento da exaltação do mito bandeirante, contudo, o texto também fornece pistas de que a propensa unidade dos discursos constitucionalistas não implicava na formação de um corpo homogêneo, pois a guerra não desfez as diferenças sociais entre os paulistas. A narrativa do sobrevivente do campo de batalha constata a presença de distinções decorrentes da posição social e do prestígio dos combatentes longe do front. O que se percebe é uma visão restrita da ideia de povo e de cidadão e um racismo mal disfarçado na “suspensão” dos preconceitos. São Paulo, no século XX, levou mais adiante que qualquer outro estado o ideal de branqueamento em detrimento da mestiçagem, da democracia racial e do sincretismo – ideais divulgados por literatos nordestinos como José Lins do Rego e Raquel de Azevedo. Para os paulistas, o branqueamento natural aconteceria por meio da dizimação dos negros pelas pestes urbanas (tuberculose, alcoolismo, sífilis), ou pela substituição da mão de obra negra pela branca livre dos imigrantes, intensificando-se as correntes imigratórias brancas (GUIMARÃES, 1999). Entretanto, em 1932, os “homens de cor”, conforme eram designados os negros pela elite paulista, foram chamados a contribuir com a guerra constitucionalista. No campo de batalha, foram divididos entre as frentes e formou-se um batalhão, especificamente por negros: a “Legião Negra”. A presença dos negros em meio a um movimento que cultuava a origem bandeirante exigiu um processo de adaptação das representações do passado aos interesses do conflito bélico. Nesse sentido analisamos o manifesto publicado à população negra por Joaquim Guaraná de Sant’Ana, o principal idealizador da Legião Negra que foi também comandante civil no movimento constitucionalista: Descendentes da Raça Negra do Brasil Estamos vivendo a hora mais decisiva da nossa História. Nós, os construtores da grandeza econômica da nossa pátria, que, como nosso sangue a temos redimido de todas as opressões e com o leite da Mãe Negra, que a todos nós embalou e ensinou com suas lendas e canções, o grande amor ao Brasil, somos neste momento um dos maiores soldados desta cruzada pelo dever que temos de defender o imenso patrimônio que durante três séculos e meio acumulamos. A dedicação e espontaneidade com que viemos cerrar fileiras pela defesa da Constituição é prova indiscutível de que os descendentes da Raça Negra, bravos com Henrique Dias, intemeratos como Patrocínio e sábios como os Rebouças, saberão, coerentes com o passado, não desmentir os seus feitos na conquista da vitória pela qual nos batemos: o Regime da Lei – a Constituição. Vinde, sem demora, onde já se acham acantonados centenas dos nossos 44

irmãos negros, formar com eles batalhões – a Legião Negra. (GOMES, 2005, p. 71-72) O texto transcrito, semelhante a outros relacionados à Legião Negra, ressalta os grandes nomes da história de negros no Brasil, que marcaram sua trajetória pela luta contra a opressão. Os textos são envoltos em uma mística segundo a qual a epopeia de Henrique Dias (líder negro que se aliou aos brancos para expulsar os holandeses que “invadiram” o nordeste brasileiro em meados do século XVII) e a defesa pela liberdade – continuando o exemplo dos líderes abolicionistas como André Rebouças e José Patrocínio – seriam grandezas revividas na luta contra Getúlio Vargas 22 . Durante o movimento, a coragem e a garra dos negros foram aclamadas como elementos que marcaram a trajetória destes no Brasil. Em homenagem aos legionários, estes eram chamados de “Pérolas Negras” - reafirmando a participação dos negros na construção do país - não apenas como trabalhadores e escravos, mas ressaltando que essa população entregou o seu melhor (suor, sangue e leite materno) 23 . Os manifestos dirigidos aos negros em defesa do movimento constitucionalista expunham as ideias de nacionalismo, integração e diferenças sociais. Segundo Ronaldo Sales Junior (2006, p. 171), no documento transcrito acima, nota-se que a “afirmação de pertencimento e de integração evoca simultaneamente o desejo de reconhecimento e a explicitação da desigualdade histórica”. Durante a guerra civil, a “união” em defesa do “patrimônio” perpassava pelo elemento que agregou brancos e negros: a luta pela liberdade. Durante o movimento constitucionalista, os paulistas invocaram estrategicamente vários personagens e acontecimentos, de forma que o particular (ou restrito a um determinado grupo) e o coletivo se entrecruzavam em uma dinâmica complexa e, por vezes, paradoxal, em que a heterogeneidade da sociedade era dissimulada em uma aparente homogeneidade. Mesmo em narrativas dispersas, aclamavam-se, ao mesmo tempo, diversos símbolos nacionais, pois estes elementos forneciam a base de identificação dos mais diversos e distantes grupos sociais. O forte apelo emocional centrado (além da constitucionalização), na liberdade e na nacionalidade era comum (por exemplo) nos discursos que relacionavam a imagem elitista representada no quadro de Pedro Américo aos paulistas (que continuariam a proclamar o grito pela independência). E, ainda, enfatizava a continuidade da resistência negra, tendo como marco histórico o fato de serem eles os descendentes dos quilombolas. 22 Ver Petrônio José Domingues, Os “Pérolas Negras”: a participação do negro na Revolução Constitucionalista de 1932. Salvador, 2003. 23 Cf. Ronaldo Sales Júnior, 2006. 45

irmãos negros, formar com eles batalhões – a Legião Negra. (GOMES, 2005,<br />

p. 71-72)<br />

O texto transcrito, semelhante a outros relacionados à Legião Negra, ressalta os<br />

gran<strong>de</strong>s nomes da história <strong>de</strong> negros no Brasil, que marcaram sua trajetória pela luta contra a<br />

opressão. Os textos são envoltos em <strong>um</strong>a mística segundo a qual a epopeia <strong>de</strong> Henrique Dias<br />

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brasileiro em meados do século XVII) e a <strong>de</strong>fesa pela liberda<strong>de</strong> – continuando o exemplo dos<br />

lí<strong>de</strong>res abolicionistas como André Rebouças e José Patrocínio – seriam gran<strong>de</strong>zas revividas na<br />

luta contra Getúlio Vargas 22 .<br />

Durante o movimento, a coragem e a garra dos negros foram aclamadas como<br />

elementos que marcaram a trajetória <strong>de</strong>stes no Brasil. Em homenagem aos legionários, estes<br />

eram chamados <strong>de</strong> “Pérolas Negras” - reafirmando a participação dos negros na construção do<br />

país - não apenas como trabalhadores e escravos, mas ressaltando que essa população<br />

entregou o seu melhor (suor, sangue e leite materno) 23 .<br />

Os manifestos dirigidos aos negros em <strong>de</strong>fesa do movimento <strong>constitucionalista</strong><br />

expunham as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> nacionalismo, integração e diferenças sociais. Segundo Ronaldo Sales<br />

Junior (2006, p. 171), no doc<strong>um</strong>ento transcrito acima, nota-se que a “afirmação <strong>de</strong><br />

pertencimento e <strong>de</strong> integração evoca simultaneamente o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reconhecimento e a<br />

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“patrimônio” perpassava pelo elemento que agregou brancos e negros: a luta pela liberda<strong>de</strong>.<br />

Durante o movimento <strong>constitucionalista</strong>, os paulistas invocaram estrategicamente<br />

vários personagens e acontecimentos, <strong>de</strong> forma que o particular (ou restrito a <strong>um</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

grupo) e o coletivo se entrecruzavam em <strong>um</strong>a dinâmica complexa e, por vezes, paradoxal, em<br />

que a heterogeneida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> era dissimulada em <strong>um</strong>a aparente homogeneida<strong>de</strong>.<br />

Mesmo em narrativas dispersas, aclamavam-se, ao mesmo tempo, diversos símbolos<br />

nacionais, pois estes elementos forneciam a base <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação dos mais diversos e<br />

distantes grupos sociais. O forte apelo emocional centrado (além da constitucionalização), na<br />

liberda<strong>de</strong> e na nacionalida<strong>de</strong> era com<strong>um</strong> (por exemplo) nos discursos que relacionavam a<br />

imagem elitista representada no quadro <strong>de</strong> Pedro Américo aos paulistas (que continuariam a<br />

proclamar o grito pela in<strong>de</strong>pendência). E, ainda, enfatizava a continuida<strong>de</strong> da resistência<br />

negra, tendo como marco histórico o fato <strong>de</strong> serem eles os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes dos quilombolas.<br />

22 Ver Petrônio José Domingues, Os “Pérolas Negras”: a participação do negro na Revolução Constitucionalista<br />

<strong>de</strong> 1932. Salvador, 2003.<br />

23 Cf. Ronaldo Sales Júnior, 2006.<br />

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