FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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valores tradicionais são adaptados às necessidades emergentes, servindo como elementos de apelo ideológico à sociedade como um todo. A correspondente identificação dos paulistas à causa passou pela consolidada interiorização desses valores. Ao assumi-los, o paulista se aproxima do grupo que diz defendê-los e, dessa forma, o interesse particular das elites encontra maneiras populares de se manifestar. As estratégias de mobilização popular que tiveram, sobretudo na imprensa, o principal veículo de atuação, foram eficazes dentro do estado, pois conseguiram deslumbrar a maioria da população. Orgulhosamente, a própria imprensa cuidou de anunciar a mudança da natureza do movimento constitucionalista, que era acusado de elitista e adquiriu depois um nítido caráter popular. É o que se nota no artigo de 1932, publicado em O Estado de São Paulo. Admitimos, para argumentar, que o movimento de São Paulo tivesse sido planejado por políticos desejosos de reconquistar o poder. Ainda assim não se poderia dizer que esse movimento é partidário. E não se poderia dizer por que, fosse qual fosse a sua origem, ele tomou tal caráter popular, ganhou proporções tais, avolumou-se de tal maneira que se transfigurou. Se algum dia foi político, nada tem de político. Se nas suas fontes remotas algum fermento partidário conteve, agora, neste momento, nenhum conserva. Hoje, é um momento do povo inteiro que nenhum político será capaz de dirigir e a que todos os políticos são forçados a obedecer [...]. Não haverá, por isso, perdão para quem quer que, sob este ou aquele pretexto, se deixe ficar à margem da corrente e não ponha a totalidade das suas energias ao serviço da causa que São Paulo defende. A indiferença será, nesta hora, um começo de traição. O fato é esse: São Paulo está em armas. Quando a terra da gente se bate, a todos seus filhos corre o dever de auxiliála combatendo sem desfalecimento ao lado dela, e com ela vencendo ou perecendo sem indagar, sequer, se ela tem razão. A espontaneidade com que os batalhões se formam e os serviços de guerra se organizam não permite a mínima dúvida sobre o caráter coletivo do movimento [...]. A grandiosidade da colaboração do povo para a obra da guerra faz-nos crer que nenhum paulista se encontra transviado dos seus deveres. Paulistas de verdade, paulistas de sangue ou de sentimento, não haverá e não há ao serviço da ditadura. (PEREIRA, 1982, p. 475) A propaganda constitucionalista conclamava a todos a pegarem em armas na defesa de São Paulo e do Brasil. Verifica-se a expressividade das mensagens na quantidade de voluntários que se alistaram sem nenhuma convocação oficial e participaram da luta tanto nas trincheiras, quanto na retaguarda. O serviço de recrutamento se iniciou apenas quando a ruptura com o governo provisório foi anunciada. E o voluntariado, em grande massa, principiou afluir nos postos especialmente organizados. Em 72 horas, 10 mil voluntários se alistaram. Somaram-se ainda as mulheres, os engenheiros e os operários, que se 42

esponsabilizaram pela construção dos materiais necessários, além de médicos, enfermeiros, do clero, dos jornalistas e muitos outros. A força do movimento era exatamente o grande entusiasmo que tomou conta do paulista. A imagem que prevalece na propaganda constitucionalista é a de um movimento consensual e arrebatador, em que as diferenças são desconsideradas. A mesma percepção consta em muitas das narrativas sobre o movimento de 1932. Ao ler os relatos memorialistas, tem-se a impressão que São Paulo inteiro correu para o alistamento, como se nota na descrição do repórter Armando Brussolo (1932, p. 25): “Velhos, moços e crianças pareciam tomados de uma alma nova e se apresentavam para receber as instrucções (sic) necessárias. E todos só tinham um anseio: seguir com destino a linha de frente e combates as tropas dictatoriaes (sic) que eram enviadas ao encontro das que defendiam o ideal constitucionalista”. O sentimento que a narrativa provoca no leitor é de comoção e deslumbramento diante dessa aparente homogeneidade paulista quando se pontua a presença de estudantes, de profissionais de diversas categorias e de intelectuais. Referia-se também à empolgação das mulheres, aos batalhões de etnia negra e indígena, aos batalhões representativos de crianças. De fato, homens e mulheres de diferentes idades e posições sócio-econômicas estiveram envolvidos na guerra constitucionalista. No entanto, o mito que envolve o movimento apenas ocultou a existência de conflitos e desigualdades no seio do movimento constitucionalista. Os voluntários foram atraídos pela forte propaganda constitucionalista. Os revolucionários de 1932 buscavam atestar que as notícias e propagandas do movimento estavam de acordo com as aspirações reais da população ciente das grandezas de São Paulo. Apresenta-se como um mito homogeneizador de paulistanidade e prosperidade para todos, não aludindo aos aspectos estruturais da crise (BEZERRA, 1988). Os paulistas resgataram aspectos da história que estavam ocultados ou depreciado, como, por exemplo, o mito bandeirante que passou a divulgar a imagem de que o legado de glórias dos desbravadores não é apenas exclusividade das famílias tradicionais. Assim, percebe-se a transformação do mito, que abandona a centralidade dos descendentes de Fernão Dias para se tornar uma virtude de “todo” paulista, pois participaram das bandeiras também os homens simples e rudes que desbravaram o sertão. A presença de homens de diferentes posições sociais tornou possível generalizar a figura do bandeirante a todo paulista. Contudo, apenas os descendentes dos ilustres chefes de expedições recebiam as honras e heranças materiais garantidas pela importância do nome da família. 43

valores tradicionais são adaptados às necessida<strong>de</strong>s emergentes, servindo como elementos <strong>de</strong><br />

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encontra maneiras populares <strong>de</strong> se manifestar.<br />

As estratégias <strong>de</strong> mobilização popular que tiveram, sobretudo na imprensa, o principal<br />

veículo <strong>de</strong> atuação, foram eficazes <strong>de</strong>ntro do estado, pois conseguiram <strong>de</strong>sl<strong>um</strong>brar a maioria<br />

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caráter popular. É o que se nota no artigo <strong>de</strong> 1932, publicado em O Estado <strong>de</strong> São Paulo.<br />

Admitimos, para arg<strong>um</strong>entar, que o movimento <strong>de</strong> São Paulo tivesse sido<br />

planejado por políticos <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> reconquistar o po<strong>de</strong>r. Ainda assim não<br />

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que, fosse qual fosse a sua origem, ele tomou tal caráter popular, ganhou<br />

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dia foi político, nada tem <strong>de</strong> político. Se nas suas fontes remotas alg<strong>um</strong><br />

fermento partidário conteve, agora, neste momento, nenh<strong>um</strong> conserva. Hoje,<br />

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Não haverá, por isso, perdão para quem quer que, sob este ou aquele<br />

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nesta hora, <strong>um</strong> começo <strong>de</strong> traição. O fato é esse: São Paulo está em armas.<br />

Quando a terra da gente se bate, a todos seus filhos corre o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> auxiliála<br />

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perecendo sem indagar, sequer, se ela tem razão.<br />

A espontaneida<strong>de</strong> com que os batalhões se formam e os serviços <strong>de</strong> guerra se<br />

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A grandiosida<strong>de</strong> da colaboração do povo para a obra da guerra faz-nos crer<br />

que nenh<strong>um</strong> paulista se encontra transviado dos seus <strong>de</strong>veres. Paulistas <strong>de</strong><br />

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serviço da ditadura. (PEREIRA, 1982, p. 475)<br />

A propaganda <strong>constitucionalista</strong> conclamava a todos a pegarem em armas na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong><br />

São Paulo e do Brasil. Verifica-se a expressivida<strong>de</strong> das mensagens na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

voluntários que se alistaram sem nenh<strong>um</strong>a convocação oficial e participaram da luta tanto nas<br />

trincheiras, quanto na retaguarda. O serviço <strong>de</strong> recrutamento se iniciou apenas quando a<br />

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