FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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memorialistas (DE PAULA, 1998). Sendo assim, é inegável a importância dessas produções. Uma das principais marcas dessa “guerra literária” é a condição do narrador como testemunha dos acontecimentos narrados (ABREU, 2008). Nesse sentido, entende-se que sendo o escritor protagonista da história narrada, mesmo a ocorrência coletiva é descrita conforme uma percepção individual. No processo narrativo, os fatos são recriados na tentativa de reunir os fragmentos do “passado”, dando-lhes nexo, sentido e contextualizando-os. Em sua exposição, o autor comenta os fatos de maneira que apresenta suas provas pessoais com intensão de convencer o ouvinte/leitor e reivindicar na condição de testemunha o atributo da veracidade. Eis então que um pacto tácito de cumplicidade é criado entre quem escreve e quem lê. O narrador converge-se em protagonista e afirma na condição de “eu vivi” a sua experiência “apoiada em uma realidade tangível” tida como significativa na compreensão do fato; a fim de firmar com o leitor/ouvinte a condição de veracidade do relato, “uma certificação da declaração do autor” 60 . É por isso que há sempre um ritual, onde desculpas, explicações ou declarações de intenção são estabelecidas para se criar uma comunicação direta com o leitor (FEITOSA, 2002). Neste capítulo, contemplamos (resumidamente) as visões de três autores envolvidos no conflito: o repórter, o militar e o combatente. Cada um deles cumpriu esse pacto com o leitor justificando o motivos e as limitações de sua escrita sobre seu envolvimento no movimento (cada um de uma forma particular) 61 . A participação em acontecimentos públicos pode tornar foco de memória, havendo associação entre o fato e suas vidas pessoais. Segundo Ecléia Bosi (1994, p. 381-382), “a lembrança de certos acontecimentos públicos (guerra, revoluções, greves...) pode ir além das leitura ideológica que eles provocam na pessoa que os recorda. Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofré-los na carne que os torna indeléveis e os mistura com o cotidiano”. Assim, não apenas o fato chama atenção na narrativa desses autores, mas também as circunstâncias, as sensibilidades, as ênfases e os vazios que a permeiam. Diante da produção analisada, percebe-se que o registro da memória constitucionalista é permeado pela coexistência da realidade objetiva com sonhos e mitos, vinculados sobretudo a paulistanidade. Nota-se que os autores buscam edificar os bons feitos paulistas, o que torna-se essencial para a construção de uma imagem gloriosa do movimento. 60 Sobre a asserção do testemunho, tornada com promessa apoiado sobre o passado certificado pela declaração da testemunha de que “Eu estava lá”, ver Paul Ricoeur, no artigo, “A escrita da história e a representação do passado”, pronunciado na 22ª Conferência Marc Bloch, da Ècole des Hautes Études em Sciences Sociales, 2000. 61 Sobre as justificativas de Paulo Duarte, ver capítulo 2, quando tratamos das exposições do autor no prefácio de Palmares pelo Avesso. 118

Embora o desfecho não tenha sido favorável aos constitucionalistas, o relato dos ex- combatentes estruturaram-se em prol da construção da epopeia paulita, o que demonstra a incapacidade em interiorizar a derrota. 119 A necessidade de narrar algo que seja uma epopeia transformará em cenas épicas as sucessivas retiradas das forças paulistas. Talvez seja uma das primeiras vezes em que as derrotas sejam a base da narrativa dos feitos heroicos [...]. Reverter a negatividade deste fato, mostrando a organização, a racionalidade e a tranquilidade nas retiradas, é a tarefa a que se propõem essas obras. (CERRI, 2001, p. 31) Os autores retiram da história o aspecto individual da ação, transformando-a em representação de um espírito coletivo. Paulo Duarte, por exemplo, para criar um efeito positivo, estendeu ao grupo o reconhecimento pelos atos de bravura, mencionando que não apenas Augusto, mas outros jovens também que também porfiavam espaços na frente: “No grande combate de Lorena, o espírito de sacrifício dêsses moços chegou ao auge. O pequeno Augusto foi promovido […] Mas, se pudesse fazer inteira justiça, as promoções tinham que alcançar a todos” (DUARTE, 1947, p. 281). Assim, a imagem de heróis constitucionalistas é criada. Mesmo sendo derrotada no confronto bélico, na tradição constitucionalista, remete-se aos ex-combatentes como heróis. Nesse caso, o papel heroico é reinterpretado, não exigindo necessariamente a vitória como nos contos homéricos, mas valorizando a coragem e o empenho. A adaptação do conceito de herói foi um meio de tornar a guerra paulista mais honrosa. A questão da honra é visivelmente relevante para Paulo Duarte e Euclydes Figueiredo, que juntos assinaram o compromisso de defender o movimento até as últimas consequências para evitar que se desse a ele o aspecto da desonra diante da invasão ditatorial e da traição. Como afirma Lucian Febvre (1998, p. 48), fidelidade, disciplina, coragem, abnegação, honra, pátria são palavras que em tempo de paz parecem tão vazias de conteúdo, revelam-se, em certas horas, capazes de conduzir o homem a vida ou a morte. Nutridos desse sentimento, Duarte e Figueiredo envolveram-se na fuga para prosseguirem na luta. Nos três autores, as notícias do armistício são recebidas com surpresa – mesmo Paulo Duarte 62 , que durante o texto demonstrava que a vitória parecia distante diante das adversidades enfrentadas pelos soldados. Independente do lugar social em que se 62 Ver Capítulo 2, quando ao narrar o final do conflito, Paulo Duarte descreve como a notícia do armistício é recebida com tristesa pela população e com alívio por alguns soldados e oficiais. O autor expõe os irônicos comentários dos companheiros de batalha sobre o “lindo armistício que o G.Q.G” os arranjou, comparando o fato a um “marido corneado: o último a saber” da traição (Ibidem, p. 314).

memorialistas (DE PAULA, 1998). Sendo assim, é inegável a importância <strong>de</strong>ssas produções.<br />

Uma das principais marcas <strong>de</strong>ssa “guerra literária” é a condição do narrador como<br />

testemunha dos acontecimentos narrados (ABREU, 2008). Nesse sentido, enten<strong>de</strong>-se que<br />

sendo o escritor protagonista da história narrada, mesmo a ocorrência coletiva é <strong>de</strong>scrita<br />

conforme <strong>um</strong>a percepção individual. No processo narrativo, os fatos são recriados na tentativa<br />

<strong>de</strong> reunir os fragmentos do “passado”, dando-lhes nexo, sentido e contextualizando-os. Em<br />

sua exposição, o autor comenta os fatos <strong>de</strong> maneira que apresenta suas provas pessoais com<br />

intensão <strong>de</strong> convencer o ouvinte/leitor e reivindicar na condição <strong>de</strong> testemunha o atributo da<br />

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Eis então que <strong>um</strong> pacto tácito <strong>de</strong> c<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong> é criado entre quem escreve e quem<br />

lê. O narrador converge-se em protagonista e afirma na condição <strong>de</strong> “eu vivi” a sua<br />

experiência “apoiada em <strong>um</strong>a realida<strong>de</strong> tangível” tida como significativa na compreensão do<br />

fato; a fim <strong>de</strong> firmar com o leitor/ouvinte a condição <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> do relato, “<strong>um</strong>a<br />

certificação da <strong>de</strong>claração do autor” 60 . É por isso que há sempre <strong>um</strong> ritual, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas,<br />

explicações ou <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> intenção são estabelecidas para se criar <strong>um</strong>a comunicação<br />

direta com o leitor (FEITOSA, 2002).<br />

Neste capítulo, contemplamos (res<strong>um</strong>idamente) as visões <strong>de</strong> três autores envolvidos<br />

no conflito: o repórter, o militar e o combatente. Cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>les c<strong>um</strong>priu esse pacto com o<br />

leitor justificando o motivos e as limitações <strong>de</strong> sua escrita sobre seu envolvimento no<br />

movimento (cada <strong>um</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma particular) 61 . A participação em acontecimentos públicos<br />

po<strong>de</strong> tornar foco <strong>de</strong> memória, havendo associação entre o fato e suas vidas pessoais. Segundo<br />

Ecléia Bosi (1994, p. 381-382), “a lembrança <strong>de</strong> certos acontecimentos públicos (guerra,<br />

revoluções, greves...) po<strong>de</strong> ir além das leitura i<strong>de</strong>ológica que eles provocam na pessoa que os<br />

recorda. Há <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> viver os fatos da história, <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> sofré-los na carne que os<br />

torna in<strong>de</strong>léveis e os mistura com o cotidiano”. Assim, não apenas o fato chama atenção na<br />

narrativa <strong>de</strong>sses autores, mas também as circunstâncias, as sensibilida<strong>de</strong>s, as ênfases e os<br />

vazios que a permeiam.<br />

Diante da produção analisada, percebe-se que o registro da memória<br />

<strong>constitucionalista</strong> é permeado pela coexistência da realida<strong>de</strong> objetiva com sonhos e mitos,<br />

vinculados sobretudo a paulistanida<strong>de</strong>. Nota-se que os autores buscam edificar os bons feitos<br />

paulistas, o que torna-se essencial para a construção <strong>de</strong> <strong>um</strong>a imagem gloriosa do movimento.<br />

60 Sobre a asserção do testemunho, tornada com promessa apoiado sobre o passado certificado pela <strong>de</strong>claração<br />

da testemunha <strong>de</strong> que “Eu estava lá”, ver Paul Ricoeur, no artigo, “A escrita da história e a representação do<br />

passado”, pronunciado na 22ª Conferência Marc Bloch, da Ècole <strong>de</strong>s Hautes Étu<strong>de</strong>s em Sciences Sociales, 2000.<br />

61 Sobre as justificativas <strong>de</strong> Paulo Duarte, ver capítulo 2, quando tratamos das exposições do autor no prefácio <strong>de</strong><br />

Palmares pelo Avesso.<br />

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