FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

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110 Quando o trem, obedecendo às instruções do carro 1º, parou chegado aos dormentes, o Carlos escolheu o menor dos rapazes [...]. Pequenino, não era preciso abrir uma das portas laterais do carro, manobra perigosíssima àquele instante em que recebíamos balas de todos os lados. O Augusto deslizou-se pelo pequeno quadrado da latrina, caindo já no leito da linha. Mas o inimigo defendia a sua armadilha. O fogo varria o leito ferroviário. O pequeno, entretanto, impávido, alheio às balas, arrastando-se ao leito da via férrea, calmamente, foi empurrando o primeiro dormente que rolou ao lado. Depois o segundo e, cinco minutos depois, o telefone, que narrava cada fase da manobra, deu a linha por desimpedida. Cindo minutos que duraram um século [...]. E transmitiu a ordem: – Esperar o Augusto. Se não entrar, o trem avançará um pouco para pegá-lo ferido ou morto. Dois minutos depois: – O Augusto entrara ileso. (DUARTE, 1947, p. 265-266) O jovem soldado tivera sorte de ficar ileso, considerando o alto número de mortos e feridos da guerra de 1932. Quem tinha essa fortuna não poderia abusar. Mesmo assim, Augusto repetiu a operação quando pela segunda vez foi necessário, demonstrando que o sentido de sua atuação repousava no serviço ao ideal e no auxílio aos companheiros, o que o tornou digno de ter sua história registrada. O final feliz é um sopro de alívio em meio a tantos infortúnios e tensões constitucionalistas que envolvem a narrativa. O conteúdo heroico é dimensionado nos feitos de Augusto que, ao arriscar sua vida em prol do grupo e sair vencendo a morte, ganhou o reconhecimento dos companheiros. A coragem em expor-se à possibilidade de perder a vida (a única coisa que o vivente perde em definitivo) torna “dignos de admiração aqueles que escolheram arriscá-la, jogando constantemente no campo de combate” (ARGUELHES, 2008, p. 89). Atitudes de reptação do sopro vital são consideradas indícios que separam heróis de pessoas comuns. O narrador estendeu ao grupo o reconhecimento pelos atos de bravura. “No grande combate de Lorena, o espírito de sacrifício dêsses (sic) moços chegou ao auge. O pequeno Augusto foi promovido […] Mas, se pudesse fazer inteira justiça, as promoções tinham que alcançar a todos” (DUARTE, 1947, p. 281). O autor retira da história o aspecto individual da ação, transformando-a em representação de um espírito coletivo. Assim, a imagem de heróis constitucionalistas é criada. A saga de Augusto é narrada em clima de ação e aventura. As palavras acionam sentidos no leitor que criam, na mente deste, imagens. Segundo Marília da Silva Franco (1984), o início do século XX experimentou o diálogo entre literatura e cinema, que apresentam ao leitor gestos, ações e emoções dos personagens. As obras literárias influenciam o cinema na arte de contar história, mas também se tornaram influenciadas pela incorporação

de procedimentos cinematográficos. Essa aproximação é notada na obra de Paulo Duarte, que trouxe para sua obra influências do cinema europeu pós-guerra. A população foi despertada para a desassociação entre o imaginário (sobretudo da tradição ocidental) de guerra e o confronto real durante a Primeira Guerra Mundial. Delmo de Oliveira Arguelhes (2008), expõe que a Guerra de 1914-1918 inaugurou um novo estilo: a guerra total − em que não apenas as forças armadas se defrontaram, mas populações inteiras, produzindo cifras até hoje aterradoras de 20 milhões de seres humanos mortos (mais de metade civil). A ilusão de que a guerra seria edificante e rápida foi desfeita nas trincheiras. A carnificina da Grande Guerra também foi responsável pela solidificação de um sentimento pacifista que, apesar de já existir, encontrou respaldo após 1914. Esse sentimento pacifista impulsionou estudos científicos e produções artísticas. Nos anos de 1920, as narrativas de guerra se tornaram temas de curiosidade para o grande público e foram adaptadas a livros e filmes. Acredita-se que essas obras tenham influenciado a leitura que Paulo Duarte fez da guerra que presenciou como combatente. Ao transcrever sua vivência, o autor aproxima-se das descrições da Primeira Guerra e, em alguns momentos, faz comparações entre esta e o confronto paulista. Dessa forma, o autor apresenta o movimento constitucionalista como uma verdadeira guerra, não como uma simples revolta armada. Assim, amplia o conteúdo simbólico do evento, inédito em território nacional. No início no livro, ante as dificuldades de descrever com as próprias palavras, Paulo Duarte compara o cenário da guerra paulista com as cenas criadas pelos cineastas Friedrich Wilhelm Murnau e George Wilhelm Pabst. Embora Paulo Duarte não tenha citado os títulos dos filmes, considerando o tema e o ano de produção, acredita-se que o autor tenha se referido aos clássicos: Nosferatu: a sinfonia do horror e Guerra, flagelo de Deus, respectivamente. O alemão Murnau ultrapassa as marcas do expressionismo em filmes como Nosferatu 53 , filmado após a Grande Guerra, em 1922. O cineasta expressa seu temor diante das mazelas que afligiram a Europa, exprimindo o ambiente de revolta e desespero, decorrente da atmosfera que entremeia os anos próximos ao pós-guerra. Os elementos visuais e a caracterização dos personagens exteriorizam as deformações do próprio espírito da época: névoas, sombras, árvores retorcidas, animais assustadores e a imagem horrenda e mórbida de 53 Nostefatu é um vampiro e seu nome, segundo J. Gordon Melton (apud NOVO, 2008, p. 2), tem origem grega e significa “portador de pragas”. “Alguns autores apontam a representação do personagem e a desgraça trazida por ele como um prenúncio do nazismo na medida em que o diretor enfatiza os perigos trazidos pela figura do estrangeiro, simbolizando uma preocupação com a integridade alemã que viria a se transformar mais tarde no nacionalismo exacerbado”. 111

<strong>de</strong> procedimentos cinematográficos. Essa aproximação é notada na obra <strong>de</strong> Paulo Duarte, que<br />

trouxe para sua obra influências do cinema europeu pós-guerra.<br />

A população foi <strong>de</strong>spertada para a <strong>de</strong>sassociação entre o imaginário (sobretudo da<br />

tradição oci<strong>de</strong>ntal) <strong>de</strong> guerra e o confronto real durante a Primeira Guerra Mundial. Delmo <strong>de</strong><br />

Oliveira Arguelhes (2008), expõe que a Guerra <strong>de</strong> 1914-1918 inaugurou <strong>um</strong> novo estilo: a<br />

guerra total − em que não apenas as forças armadas se <strong>de</strong>frontaram, mas populações inteiras,<br />

produzindo cifras até hoje aterradoras <strong>de</strong> 20 milhões <strong>de</strong> seres h<strong>um</strong>anos mortos (mais <strong>de</strong><br />

meta<strong>de</strong> civil). A ilusão <strong>de</strong> que a guerra seria edificante e rápida foi <strong>de</strong>sfeita nas trincheiras. A<br />

carnificina da Gran<strong>de</strong> Guerra também foi responsável pela solidificação <strong>de</strong> <strong>um</strong> sentimento<br />

pacifista que, apesar <strong>de</strong> já existir, encontrou respaldo após 1914.<br />

Esse sentimento pacifista impulsionou estudos científicos e produções artísticas. Nos<br />

anos <strong>de</strong> 1920, as narrativas <strong>de</strong> guerra se tornaram temas <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> para o gran<strong>de</strong> público<br />

e foram adaptadas a livros e filmes. Acredita-se que essas obras tenham influenciado a leitura<br />

que Paulo Duarte fez da guerra que presenciou como combatente.<br />

Ao transcrever sua vivência, o autor aproxima-se das <strong>de</strong>scrições da Primeira Guerra e,<br />

em alguns momentos, faz comparações entre esta e o confronto paulista. Dessa forma, o autor<br />

apresenta o movimento <strong>constitucionalista</strong> como <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira guerra, não como <strong>um</strong>a<br />

simples revolta armada. Assim, amplia o conteúdo simbólico do evento, inédito em território<br />

nacional.<br />

No início no livro, ante as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver com as próprias palavras, Paulo<br />

Duarte compara o cenário da guerra paulista com as cenas criadas pelos cineastas Friedrich<br />

Wilhelm Murnau e George Wilhelm Pabst. Embora Paulo Duarte não tenha citado os títulos<br />

dos filmes, consi<strong>de</strong>rando o tema e o ano <strong>de</strong> produção, acredita-se que o autor tenha se referido<br />

aos clássicos: Nosferatu: a sinfonia do horror e Guerra, flagelo <strong>de</strong> Deus, respectivamente.<br />

O alemão Murnau ultrapassa as marcas do expressionismo em filmes como<br />

Nosferatu 53 , filmado após a Gran<strong>de</strong> Guerra, em 1922. O cineasta expressa seu temor diante<br />

das mazelas que afligiram a Europa, exprimindo o ambiente <strong>de</strong> revolta e <strong>de</strong>sespero,<br />

<strong>de</strong>corrente da atmosfera que entremeia os anos próximos ao pós-guerra. Os elementos visuais<br />

e a caracterização dos personagens exteriorizam as <strong>de</strong>formações do próprio espírito da época:<br />

névoas, sombras, árvores retorcidas, animais assustadores e a imagem horrenda e mórbida <strong>de</strong><br />

53 Nostefatu é <strong>um</strong> vampiro e seu nome, segundo J. Gordon Melton (apud NOVO, 2008, p. 2), tem origem grega e<br />

significa “portador <strong>de</strong> pragas”. “Alguns autores apontam a representação do personagem e a <strong>de</strong>sgraça trazida por<br />

ele como <strong>um</strong> prenúncio do nazismo na medida em que o diretor enfatiza os perigos trazidos pela figura do<br />

estrangeiro, simbolizando <strong>um</strong>a preocupação com a integrida<strong>de</strong> alemã que viria a se transformar mais tar<strong>de</strong> no<br />

nacionalismo exacerbado”.<br />

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