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MÚSICA ERUDITA BRASILEIRA - Departamento Cultural

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<strong>MÚSICA</strong><br />

<strong>ERUDITA</strong><br />

<strong>BRASILEIRA</strong>


Escrever um panorama da História da Música<br />

Erudita ou de Concerto no Brasil é um<br />

desafio há muito acalentado. Diferente<br />

de outras produções artísticas brasileiras,<br />

a música ainda carece de estudos<br />

organizados com o objetivo de contar sua<br />

história e, principalmente, contextualizá-la<br />

perante o repertório consagrado da música<br />

ocidental. Essa vertente da produção musical<br />

brasileira por muitos é considerada como<br />

o último tesouro ainda por ser descoberto<br />

e verdadeiramente explorado da cultura<br />

do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,<br />

e também de Camargo Guarnieri, pouco<br />

se conhece a respeito dessa imensa produção<br />

musical. Isso se dá tanto nos meios<br />

internacionais como, espantosamente, entre<br />

os próprios músicos brasileiros, que bastante<br />

sabem e executam Mozart, Beethoven<br />

e Brahms, mas que pouca informação<br />

têm de compositores brasileiros<br />

contemporâneos e mesmo de outros períodos.<br />

5


6<br />

Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou<br />

Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios<br />

de comunicação e conhecida internacionalmente como<br />

símbolo da produção musical do Brasil do século XX,<br />

a música erudita ou de concerto ainda é um território<br />

inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos<br />

próprios músicos brasileiros. Diferentemente<br />

da produção de MPB, que abrange dos últimos anos<br />

do século XIX aos dias atuais, a música “clássica”<br />

no Brasil está ligada diretamente ao início da<br />

colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco<br />

séculos de transformações e adaptações culturais<br />

ocorridas no país.<br />

A respeito de como interagem na cultura brasileira<br />

essas duas realidades musicais complementares,<br />

citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação:<br />

“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar<br />

de música brasileira corresponde a falar de música<br />

“popular” brasileira. Claro que a supremacia, em<br />

termos de difusão, da música popular sobre a música<br />

de concerto é um fenômeno mundial. O que torna<br />

o caso do Brasil específico é que os principais autores<br />

e intérpretes de nossa música popular desfrutam<br />

do status não apenas do carinho das massas, mas o afago<br />

da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica”<br />

da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para<br />

o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos<br />

brasileiros, na área de música, são gente como Chico<br />

Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não<br />

Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,<br />

por mais que possamos admirar e respeitar o talento<br />

desses compositores. As idéias dos astros da MPB é<br />

que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos<br />

formadores de opinião pública. Quando acontece um<br />

fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber<br />

a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para<br />

o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição<br />

presidencial é sempre repercutida pela imprensa com<br />

estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem<br />

Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.<br />

Não se trata aqui de atacar a música popular<br />

brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido<br />

pela música brasileira de concerto.”<br />

Ao procurarmos os vários fatores a que se deve<br />

a atual situação de desconhecimento da história e da<br />

produção da música de concerto no Brasil, deparamonos<br />

com dois principais, que são a falta de programas<br />

editorais eficazes para a publicação de obras compostas<br />

no Brasil desde o século XVIII e o próprio<br />

desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações<br />

musicais em conhecer e programar esse repertório em<br />

seus concertos. Diante desse quadro, nada mais<br />

oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,<br />

esta História da Música Erudita no Brasil, de modo<br />

multidisciplinar e em formato de revista.<br />

Para esta publicação elaboramos uma pauta onde<br />

subdividimos os assuntos em três grandes períodos<br />

históricos: do Descobrimento à Independência, do<br />

Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias<br />

atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada<br />

por artigos de diferentes características. Há os artigos<br />

contextualizantes de um período histórico e que vêem<br />

a produção musical no âmbito sociológico, e há os que<br />

exploram a biografia dos principais compositores de<br />

cada período, tornando-se importantes verbetes para<br />

uma compreensão mais objetiva da biografia e<br />

produção de cada compositor ou período estético<br />

abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma<br />

revista de divulgação de cultura brasileira no exterior,<br />

tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que<br />

jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos<br />

abordados, possa ter uma ambientação histórica<br />

e social na qual essa música foi produzida.<br />

Acessíveis e interessantes para músicos,<br />

ou somente interessados em saber mais sobre essa<br />

produção musical, os artigos foram escritos por alguns<br />

dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do<br />

assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.<br />

A presença do CD anexo, assim como as bibliografias<br />

e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada<br />

assunto abordado nos artigos. Desse modo,<br />

pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,<br />

possibilitando que a mesma possa ser utilizada como<br />

um guia referencial para aqueles que pretendem<br />

começar a se enveredar pelo tema, e até servir como<br />

base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.<br />

Dentre as publicações mais importantes de História


da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por<br />

somente um autor, podemos citar as de Vicente<br />

Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,<br />

ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz<br />

Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer<br />

nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.<br />

Nesta Textos do Brasil, por sua característica<br />

multidisciplinar unindo conhecimentos específicos<br />

para cada assunto abordado, pretendemos contribuir<br />

para incrementar e dar nova visão sobre essa não<br />

vasta, porém importante, bibliografia existente<br />

a respeito do tema.<br />

O primeiro texto da revista, “Música e sociedade<br />

no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata<br />

inicialmente da música composta e utilizada pelos<br />

jesuítas com o objetivo de catequizar os povos<br />

indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos<br />

da colonização. Apesar de não existir documentação<br />

musical remanescente do período, o pesquisador faz<br />

uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse<br />

processo, tendo como fonte o trabalho realizado<br />

pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando<br />

em suas notas as informações necessárias para<br />

a reconstituição provável desse material. No mesmo<br />

artigo, Budasz trata da produção musical para os versos<br />

do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século<br />

XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das<br />

primeiras informações a respeito de uma prática de<br />

música não-litúrgica ou profana em nosso território.<br />

Desta também não restou documentação musical<br />

específica, porém é também possível realizar um<br />

processo comparativo e de reconstituição baseado<br />

em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que<br />

são feitas referências em documentos da época.<br />

Ainda no século XVII e início do XVIII temos,<br />

para não deixar de citar, o caso da música composta<br />

na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −<br />

hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul<br />

do país, mas que no período pertenciam à Coroa<br />

espanhola −, sendo sua produção artística e musical<br />

mais diretamente ligada à arte barroca praticada<br />

em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.<br />

Para conhecermos mais a respeito desta produção,<br />

basta que conheçamos os trabalhos editoriais<br />

A música “clássica”<br />

no Brasil está ligada<br />

diretamente ao início da<br />

colonização pelos portugueses e<br />

perpassa pelos cinco séculos de<br />

transformações e adaptações<br />

culturais ocorridos no país<br />

e de partituras, assim como os registros musicais em<br />

discos e sobre música barroca hispano-americana.<br />

Tratando a pauta com respeito a uma ordem<br />

cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da<br />

música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade<br />

do século XVIII e primeira metade do XIX.<br />

Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia<br />

anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado<br />

por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais<br />

difundido, porém também pouco conhecido da<br />

produção musical do Brasil colônia, que é a música<br />

sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de<br />

Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades<br />

leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São<br />

Paulo, Bahia e Pernambuco.<br />

Esse artigo trata justamente da música a partir<br />

do primeiro documento musical encontrado, que é um<br />

recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza<br />

as produções nordestinas do mesmo período para,<br />

aí sim, dar total ênfase à mais importante escola<br />

de compositores do período colonial, que é a das Minas<br />

Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto<br />

bastante completo, que contempla a produção de vários<br />

nomes importantes do período, como Emerico Lobo de<br />

Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho<br />

Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.<br />

Nesta nossa introdução não podemos deixar<br />

de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo<br />

musical se estabeleceu no Brasil colonial,<br />

principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa<br />

7


8<br />

linguagem musical eminentemente italiana tem uma<br />

trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir<br />

da década de 1710, manda jovens compositores<br />

portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo<br />

em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical<br />

italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo<br />

para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos<br />

como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para<br />

dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como<br />

a mais importante colônia do império português<br />

do período, o Brasil tem uma grande atividade musical<br />

e está em estreito contato com as novidades vindas<br />

da metrópole, passando também a ter sua produção<br />

musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a<br />

descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas<br />

Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila<br />

Rica surgem para, além das tradicionais grandes<br />

cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem<br />

intensa atividade musical, que caracterizará um dos<br />

mais profícuos momentos da história musical brasileira.<br />

No entanto, não há parâmetro para as<br />

transformações nas atividades culturais e mesmo sociais<br />

do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI<br />

de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de<br />

salvaguardar a alta administração portuguesa da<br />

invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.<br />

O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:<br />

Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo<br />

musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa<br />

justamente a falar das grandes mudanças sociológicas<br />

e estilístico-musicais que se seguem após este<br />

importante momento da História do Brasil.<br />

Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,<br />

segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais<br />

representativo compositor desse período colonial<br />

brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia<br />

(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes<br />

Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio<br />

de Janeiro”, trata de sua interessante biografia<br />

e de como suas obras sobreviveram através do tempo.<br />

Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio<br />

de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783<br />

e a última de 1826, sua música também reflete<br />

as transformações que essa cidade, como capital<br />

da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.<br />

Esses anos foram intensos também para as artes<br />

plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística<br />

Francesa de 1817 e de músicos como o compositor<br />

austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão<br />

diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço<br />

de Luís XVIII de França – e que permaneceu no<br />

Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção<br />

de música instrumental na corte como música para<br />

piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças<br />

à presença desse compositor, os músicos atuantes na<br />

cidade puderam travar contato com o que havia de<br />

mais relevante da produção musical centro-européia,<br />

como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José<br />

Maurício em 1819, e os oratórios As Estações<br />

e A Criação de Joseph Haydn, este último também<br />

comprovadamente regido por José Maurício em 1821.<br />

Nos anos que seguiram ao processo de<br />

Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em<br />

1822, as atividades culturais sofreram um grande<br />

declínio em comparação aos faustos anos da presença<br />

da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma<br />

longa reestruturação se inicia com a criação do<br />

Imperial Conservatório de Música, atual Escola de<br />

Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que<br />

teve como seu primeiro diretor o autor do Hino<br />

Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,<br />

que durante o tempo de José Maurício esteve entre<br />

seus alunos diletos.<br />

Esse período se caracterizou por uma certa<br />

desestruturação da Real Capela de Música,<br />

transformada em Imperial Capela, e seus músicos –<br />

entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes<br />

Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades<br />

financeiras. Essa época coincidiu também com<br />

a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,<br />

passando a ser um novo parâmetro para a produção<br />

operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto<br />

sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei<br />

D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas<br />

foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di<br />

Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de<br />

poucos meses em relação às estréias européias. Essa<br />

modificação no gosto serviu de modelo para a criação


e mesmo para a vida musical do Brasil independente.<br />

A música das óperas de Rossini foi muitas vezes<br />

adaptada para a realidade da música sacra, criando<br />

curiosidades como a Missa da Gazza Ladra, de Pedro<br />

Teixeira de Seixas, em que a música da ópera foi<br />

transcrita quase literalmente para o texto litúrgico.<br />

Ainda nesse período inicia-se o interesse pela música<br />

instrumental.<br />

O início de um período romântico brasileiro pode<br />

ser caracterizado sobretudo pela figura de Antonio<br />

Carlos Gomes (1836 – 1896), que se tornou símbolo<br />

da vida musical do Segundo Império compondo óperas<br />

em língua portuguesa, como A Noite do Castelo (1861)<br />

e Joana de Flandres (1863), e tendo conquistado êxitos<br />

relevantes na Europa com suas óperas, como Il Guarany<br />

(1870) e Salvator Rosa (1874). Contudo, outros<br />

compositores, como Elias Álvares Lobo, autor da ópera<br />

A Louca, também foram importantes para a criação,<br />

mesmo que temporária, de uma produção de óperas<br />

em língua portuguesa. Essas obras em língua nacional<br />

eram em estética musical italiana, profundamente<br />

baseada no “bel canto” de Bellini e posteriormente<br />

Verdi. Artigo a respeito de Carlos Gomes,<br />

“Considerações sobre Carlos Gomes”, é escrito pelo<br />

Maestro Luiz Aguiar, profundo conhecedor do assunto,<br />

responsável por vários trabalhos de resgate e edições<br />

desse importante compositor.<br />

No último quartel do século XIX, vários<br />

compositores brasileiros começam a se destacar<br />

na produção de música instrumental de forte influência<br />

alemã, como Alberto Nepomuceno (que foi aluno<br />

de Grieg na Noruega), Leopoldo Miguez e Alexandre<br />

Levy, e de linguagem francesa, como Henrique<br />

Oswald. Essa é uma importante geração de<br />

compositores que atuam num conturbado período<br />

de fins do Império e do início do período republicano<br />

brasileiro, quando começam a ser esboçados<br />

importantes conceitos nacionalistas em música. Nessa<br />

mesma época, o antigo Conservatório Imperial<br />

de Música passa a ser o Instituto Nacional de Música,<br />

tendo Alberto Nepomuceno como seu diretor.<br />

A música instrumental de câmara e sinfônica passa<br />

a ter papel predominante na vida musical brasileira.<br />

A respeito desse período e de seus principais<br />

No entanto, não há parâmetro<br />

para as transformações<br />

nas atividades culturais<br />

e mesmo sociais do Brasil<br />

como o deslocamento da<br />

Corte de D. João VI de Portugal<br />

para o Rio de Janeiro<br />

compositores foram escritos os artigos intitulados<br />

“O Modernismo Musical Brasileiro”, por Guilherme<br />

Goldberg, e “Henrique Oswald e os Românticos<br />

Brasileiros: em busca do tempo perdido”, por Eduardo<br />

Monteiro. Esses artigos contextualizam os compositores<br />

e suas obras em relação à produção européia e sua<br />

importância para a formação de uma nova<br />

e sólida linguagem na música brasileira.<br />

Nesse mesmo contexto, temos a figura fascinante<br />

e ambígua de Ernesto Nazareth, que circulou entre<br />

o meio da música de concerto, sendo ardoroso<br />

seguidor de Chopin, e a nascente música popular,<br />

por ter se tornado grande compositor de música<br />

de salão no Rio de Janeiro de fins do século XIX.<br />

O jornalista Alexandre Pavan, em seu artigo<br />

“Chopin Carioca”, aborda dados pitorescos da vida<br />

e obra desse compositor.<br />

Durante as primeiras décadas do século XX,<br />

questionou-se arduamente o que seriam características<br />

verdadeiras ou tipicamente brasileiras em nossa<br />

produção cultural e musical. Isso é completamente<br />

justificável dentro do pensamento de afirmação<br />

nacionalista de uma jovem nação que se consolidava<br />

como uma república e que, definitivamente, rompia<br />

seus laços com a antiga metrópole. Vale lembrar o dado<br />

histórico de que, mesmo após a independência do<br />

Brasil como nação em 1822, tivemos dois imperadores<br />

que pertenciam à linhagem portuguesa dos Bragança,<br />

respectivos filho e neto do último rei português a<br />

governar o Brasil enquanto colônia, D. João VI.<br />

9


10<br />

Com a proclamação da<br />

República em 1889, um novo<br />

país surge querendo romper<br />

com toda e qualquer<br />

influência do antigo regime.<br />

Principia o pensamento<br />

de afirmação nacional<br />

que perdura até meados<br />

do século XX, acalentado<br />

principalmente na Semana<br />

de Arte Moderna de 1922<br />

e no surgimento do<br />

ainda se discutia e mesmo impunha-se uma série<br />

de normas e conceitos do que seria genuinamente<br />

brasileiro. Nesse ínterim muitos intelectuais do período<br />

passaram a valorizar a influência dos povos africanos e<br />

seus descendentes, assim como a das nações indígenas<br />

pré-existentes à chegada do europeu nestas terras, na<br />

formação da cultura nacional. Apesar de justificado,<br />

esse pensamento deu margem a muitas injustiças<br />

e falhas nos critérios de avaliação do que conteria ou<br />

não tais características. A produção musical anterior<br />

a esse pensamento nacional, como as óperas de Carlos<br />

Gomes e a já citada música sacra colonial, foi posta de<br />

lado, visto como uma arte decadente que desprezava<br />

os batuques africanos e a influência indígena e que,<br />

portanto, estava fadada a ser avaliada como arte<br />

submissa aos valores do colonizador2 pensamento chamado<br />

Ricardo Bernardes.<br />

FOTO: AUGUSTO VIX<br />

de Antropofagismo, quando<br />

. Mesmo depois<br />

do arrefecimento desse ideário, ainda hoje perdura<br />

o conceito ou o questionamento do que seja música<br />

tipicamente brasileira. Compositores como Villa-Lobos<br />

tiveram que se afirmar duplamente como brasileiros<br />

e universais, com obras que ainda são assim divididas<br />

por muitos músicos e estudiosos do assunto.<br />

Há o Villa-Lobos ombreado a Stravisnky, de música<br />

afrancesada e de instrumentação sofisticada e ousada,<br />

e há aquele que utilizou pretensos cantos indígenas<br />

e de negros, dando sabor nacional a sua música,<br />

abusando de recursos rítmicos e conclamando a pátria<br />

ao reconhecimento de seus valores.<br />

Como outros nomes importantíssimos que<br />

escreveram na recém-estruturada linguagem<br />

nacionalista, citamos o ítalo-paulistano Francisco<br />

Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez,<br />

Guerra-Peixe e até mesmo, em uma fase,<br />

Cláudio Santoro.<br />

A idéia aqui não é criticar ou desconstruir<br />

o pensamento nacionalista, mas sim contextualizá-lo<br />

como um importante conjunto de idéias que se<br />

justificaram no período em que foram criadas e usadas<br />

como padrão, mas que já se tornam ultrapassadas<br />

e restritivas de uma avaliação mais ampla do que seria<br />

o universo musical no Brasil ao longo de praticamente<br />

cinco séculos. A respeito desse longo período, que vai<br />

das primeiras décadas do século XX até tardiamente,<br />

em alguns compositores ainda atuantes na década de<br />

60, foram escritos os seguintes artigos: “Villa-Lobos<br />

Moderno e Nacional”, de Jorge Coli; “Francisco<br />

Mignone e Lorenzo Fernandez”, pelo Maestro Lutero<br />

Rodrigues; e “Guerra-Peixe, compositor multifário”,<br />

pelo compositor e regente Ernani Aguiar.<br />

Um dos principais instrumentos a entrar em<br />

ascensão no século XX, tanto na música de concerto<br />

quanto na popular, foi o violão. Emblemático da cultura<br />

vista como genuinamente brasileira, esse instrumento<br />

teve em Villa-Lobos um dos principais compositores<br />

e entusiastas. Especificamente sobre esse aspecto da<br />

obra de Villa-Lobos, e de sua atuação para enriquecer<br />

o repertório do violão e a posterior trajetória desse<br />

instrumento na criação brasileira, é que temos o artigo<br />

“A Música Brasileira para Violão depois de Villa-<br />

Lobos”, escrito pelo consagrado violonista Fábio Zanon.<br />

Ainda na década de 30, paralelamente ao ideário<br />

nacionalista, outro movimento se configura quase<br />

numa antítese a esse pensamento. O Movimento<br />

Música Viva, liderado por Koellreutter – falecido em<br />

2005 –, teve entre seus seguidores vários compositores<br />

que transitaram entre essas duas linguagens, como os<br />

jovens compositores Cláudio Santoro e César Guerra-<br />

Peixe. Tal movimento, como diz o autor do artigo<br />

“Música Viva”, Carlos Kater, não foi apenas<br />

responsável pela primeira fase da composição atonal e<br />

dodecafônica da música brasileira. Coube a esse<br />

movimento, mais precisamente, a criação de uma nova<br />

perspectiva da produção musical, imbricada numa<br />

concepção contemporânea da função social do artista.


Para tratar especificamente de Camargo Guarnieri,<br />

compositor de carreira brilhante e formador de muitos<br />

discípulos, temos o artigo da Profa . Flávia Toni, uma<br />

das principais especialistas no assunto, “Camargo<br />

Guarnieri”.<br />

Para tratar da produção de Claúdio Santoro,<br />

compositor profícuo e de múltiplas linguagens – com<br />

importante carreira internacional também como<br />

professor – temos o artigo “Cláudio Santoro – uma<br />

trajetória”, pelo jornalista Irineu Franco Perpétuo.<br />

Mais recentemente, nas últimas décadas do<br />

século XX, grandes movimentos de música<br />

de vanguarda surgiram de forma organizada, criando<br />

festivais de música contemporânea, como bem atesta<br />

o artigo “Os Eventos para Divulgação da Música<br />

Contemporânea no Brasil”, do compositor Eduardo<br />

Guimarães Álvares.<br />

Finalmente, chegamos ao século XXI, aos<br />

compositores hoje atuantes e suas diretrizes para<br />

a fixação de suas linguagens e participações no mundo<br />

musical brasileiro bem como as relações com as demais<br />

produções ao redor do planeta. Para abordar esse tema<br />

1. PERPÉTUO, Irineu. Revista eletrônica. São Paulo: Imagem, 2000.<br />

2. Se num momento fomos colônia portuguesa, não havendo<br />

ainda, como em qualquer outra parte no mundo, um<br />

questionamento e definições de cultura nacional, hoje vemos que<br />

aquele momento pertenceu a um universo cultural luso que aos<br />

poucos foi adquirindo características singulares que poderiam<br />

diferenciar-nos em alguns aspectos da metrópole, mesmo que<br />

essa intenção não fosse proposital. É lícito dizer que a produção<br />

de música sacra no Brasil do período colonial, sobretudo no<br />

século XVIII, tem características que a diferenciam da praticada<br />

em Portugal, mesmo que sutis. Isso se dá da mesma forma como<br />

ao dizer que a produção de ópera italiana nos países germânicos<br />

por compositores também germânicos possam ter singularidades<br />

em relação à dos italianos natos, sem deixar de ser ópera italiana<br />

e ao mesmo tempo germânica. Essa ainda é uma discussão<br />

polêmica, mas que abre caminho para vários questionamentos<br />

sobre os conceitos de estilos nacionais. Baseado nesse mesmo<br />

princípio, ainda que bastante criticado pelo pensamento<br />

nacionalista, a música de características estritamente européias<br />

escrita por brasileiros – principalmente se escrita antes do<br />

surgimento dessa noção de nacionalismo cultural – pode conter<br />

elementos provindos da adaptação dessa linguagem musical<br />

Mais recentemente, nas últimas<br />

décadas do século XX,<br />

grandes movimentos de música<br />

de vanguarda surgiram de<br />

forma organizada, criando<br />

festivais de música<br />

contemporânea<br />

contamos com artigo “Produção Musical Erudita<br />

no Brasil a partir de 1980 – Pluralidade Estética”,<br />

do atual presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />

Contemporânea, Harry Crowl, que discorre sobre<br />

as principais tendências atuais e os nomes mais<br />

representativos e atuantes desde a década de 1980<br />

até os dias de hoje.<br />

à realidade local, tornando-se também brasileira.<br />

Com esse princípio, tais adaptação e transformação são<br />

de grande valia para a compreensão da formação de uma cultura<br />

e produção musicais brasileiras, sem que necessariamente se<br />

procure encontrar características “brasileiras” tais como muitas<br />

vezes forjadas durante o auge do pensamento nacionalista. Do<br />

mesmo modo, em relação àquela que faz a quase totalidade da<br />

produção musical do Brasil colônia, a música sacra do rito<br />

católico é uma música de linguagem efetivamente européia,<br />

tipicamente italiana como praticamente em todo o Ocidente, mas<br />

que contém sua importância e singularidades em como essa<br />

linguagem foi aqui absorvida e sutilmente transformada.<br />

Para não alongar essa discussão, citamos ainda um interessante<br />

exemplo de como a circulação da produção musical vinda da<br />

metrópole se adaptou ao gosto e possibilidades locais. Chamamos<br />

a atenção para a tradição de representações de óperas barrocas<br />

portuguesas – de linguagem musical italiana – na então longínqua<br />

Pirenópolis, no sertão da província de Goiás, situada no coração do<br />

continente sul-americano. Essas óperas foram constantemente<br />

representadas e até adaptadas por várias gerações, assim como<br />

várias óperas de autores italianos que foram adaptadas para a<br />

língua portuguesa para serem compreendidas pela população local.<br />

RICARDO BERNARDES<br />

Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />

Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />

11


14<br />

Música<br />

e sociedade<br />

no Brasil<br />

colonial<br />

ROGÉRIO BUDASZ<br />

Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra<br />

na Festa de Reis. Aquarela colorida<br />

do livro “Riscos illuminados de figurinos<br />

de brancos e negros dos uzos<br />

do Rio de Janeiro e Serro Frio”.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE ICONOGRAFIA


Sem levar em conta alguns casos isolados de portugueses<br />

e franceses fixando-se na costa brasileira, por livre<br />

vontade ou não, durante as primeiras décadas do século<br />

XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa<br />

região por europeus e seus descendentes tiveram início<br />

apenas na década de 1530. Missionários religiosos<br />

também começaram a se estabelecer nessa época,<br />

sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,<br />

que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo<br />

da costa brasileira.<br />

O povoamento da costa brasileira nos dois<br />

primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses<br />

foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil<br />

e da cana-de-açúcar, esse último marcando também<br />

o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram<br />

invariavelmente homens que estabeleciam<br />

propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se<br />

com as nativas, originando um novo tipo étnico,<br />

o mameluco, que se tornaria o principal responsável<br />

pela expansão territorial da colônia. A colonização foi<br />

marcada por iniciativas e regulamentações<br />

contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda<br />

de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma<br />

identidade brasileira por proibir o surgimento de casas<br />

impressoras, periódicos e universidades.<br />

Para o colono, a única forma de literatura era<br />

muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos<br />

romances populares ibéricos de teor histórico ou<br />

moral. Muitos desses romances, geralmente cantados<br />

sobre melodias simples para não dificultar<br />

a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até<br />

hoje na tradição popular tanto em Portugal como<br />

no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses<br />

quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,<br />

A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.<br />

Além desses, o repertório musical dos primeiros<br />

colonos e seus descendentes incluiria também cantos<br />

de trabalho para acompanhar ações rotineiras,<br />

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16<br />

acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi.<br />

A primeira geração de brasileiros crescia, assim,<br />

ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados<br />

e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada<br />

pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse<br />

pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua<br />

associação com os cultos nativos, algumas daquelas<br />

cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram<br />

os missionários, induzindo-os a comporem versões<br />

pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre<br />

nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,<br />

orações e hinos católicos no idioma tupi.<br />

Fora do contexto missionário, também eram<br />

comuns as bandas de corporações militares ou de<br />

escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados<br />

como aparato de ostentação e demonstração de poder,<br />

ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos<br />

clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas<br />

pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,<br />

como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa<br />

Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo<br />

alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.<br />

Para o acompanhamento costumavam ser usados<br />

tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos<br />

e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto<br />

instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,<br />

quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,<br />

sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas<br />

e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,<br />

tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,<br />

numa tradição que remonta aos segréis<br />

da Idade Média.<br />

Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,<br />

muitas vezes funcionavam como pretexto para<br />

a socialização e diversão, como satirizaria o poeta<br />

Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,<br />

a despeito de várias regulamentações repressoras e das<br />

opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre<br />

escravos era geralmente tolerado “para evitar males<br />

maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças<br />

também dificultava a identificação étnica de escravos<br />

de várias nações e crenças, diminuindo o perigo<br />

de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era<br />

insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso<br />

até o início do século XX —, o que não parece jamais<br />

ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não<br />

só as descrições de viajantes como também o fato<br />

de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos<br />

séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos<br />

e escravos nas festas.<br />

Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,<br />

nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir<br />

em miniatura o estabelecimento musical português.<br />

Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais<br />

que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo<br />

em que moldavam novas maneiras de fazer e usar<br />

a música: se Portugal era pequeno e densamente<br />

povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois<br />

sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis<br />

certas práticas musicais e inúteis outras.<br />

<strong>MÚSICA</strong> NO ESPAÇO DOMÉSTICO<br />

A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro<br />

século da colonização formava-se ao redor de alguns<br />

fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,<br />

o grosso da população habitava as propriedades rurais,<br />

que cresceram muito — em número e tamanho — nas<br />

últimas décadas do século XVI, passando<br />

a especializar-se no cultivo da cana de açúcar<br />

e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,<br />

assim como no cultivo da mandioca e na produção<br />

da farinha.<br />

Distante dos centros urbanos — numa época em<br />

que eram poucos os que se destacavam —, o engenho<br />

ficava assim definido como a principal unidade de<br />

produção e povoamento, enquanto a Casa Grande<br />

era o seu centro administrativo e religioso, na verdade<br />

o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida


a educação civil e religiosa, bem<br />

como os encontros sociais, por<br />

ocasião de batizados, de casamentos,<br />

e da hospedagem de visitantes.<br />

Nesse contexto, a música era<br />

cultivada como auxiliar no fluir<br />

das atividades sociais, como<br />

passatempo na intimidade<br />

do lar, acompanhando momentos<br />

de devoção religiosa ou como<br />

demonstração de civilidade e poder<br />

para os olhos e ouvidos externos.<br />

E era por isso que a prática musical também fazia<br />

parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor<br />

de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas<br />

diferentes, teriam os músicos escravos — cantores<br />

e charameleiros — que participariam do aparato<br />

de propaganda e demonstração de poder do senhor<br />

de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas<br />

e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.<br />

Os primeiros que se dedicaram ao ensino<br />

da música foram os missionários, que, a princípio,<br />

concentravam-se nos nativos e usavam a música como<br />

instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois<br />

deles, representando oficialmente o estabelecimento<br />

musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,<br />

enviados de Portugal para organizar a atividade<br />

musical de determinada região mas que também<br />

exerciam a função de instrutores da arte da música<br />

para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam<br />

a exercer essa função, embora de forma limitada,<br />

os cantores e instrumentistas mais destacados<br />

dentre os índios, negros e mulatos instruídos<br />

na música européia pelos missionários e mestres<br />

de capela, com o objetivo principal de interpretarem<br />

Alexadre Rodrigues Ferreira.<br />

Desenho aquarelado.<br />

Viola que tocam os pretos.<br />

Desenho aquarelado do livro<br />

Viagem filosófica às Capitanias<br />

do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO<br />

DE ICONOGRAFIA<br />

as composições por eles preparadas.<br />

Evidentemente, o filho de um senhor de engenho<br />

não entraria numa relação mestre-aprendiz com o<br />

mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta<br />

dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou<br />

seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último<br />

caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira<br />

mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não<br />

profissional era bastante comum entre a aristocracia e<br />

burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários<br />

nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se<br />

compositores competentes.<br />

Sendo o profissionalismo musical indicativo de<br />

baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da<br />

quase inexistência de compositores brancos nas Minas<br />

Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses<br />

enviados com a expressa finalidade de servirem como<br />

mestres-de-capela), numa época em que, após a<br />

descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros<br />

urbanos no interior da colônia, multiplicando-se<br />

também as oportunidades de trabalho de cantores,<br />

instrumentistas e compositores.<br />

Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII<br />

e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo<br />

musical, o diletantismo na música era qualidade<br />

apreciável. A habilidade como compositor é colocada<br />

por historiógrafos e bibliógrafos portugueses<br />

e brasileiros em pé de igualdade com a produção<br />

literária, e a proficiência na execução à viola<br />

ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução<br />

nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários<br />

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18<br />

da época comprovam que o mobiliário das casas<br />

grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além<br />

de dispor de aposentos usados como escolas, onde<br />

os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,<br />

retórica, religião e música.<br />

Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de<br />

Almeida Prado menciona, entre a aristocracia<br />

paulistana de séculos passados, além de harpistas<br />

e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores<br />

de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger<br />

viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para<br />

o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues<br />

Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”<br />

na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi<br />

convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides<br />

a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu<br />

filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando<br />

das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais<br />

não poderiam ser utilizados como forma permanente<br />

de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo<br />

da música como profissão ou como “elemento de<br />

civilidade”, usando a expressão da época. À época<br />

do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se<br />

desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna<br />

paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto<br />

buscava formas mais nobres de aquisição de capital,<br />

seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso<br />

brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,<br />

Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se<br />

com a filha de um latifundiário.<br />

Fora do contexto religioso, além da citação de<br />

Almeida Prado, a harpa aparece também em um<br />

poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.<br />

Mesmo utilizada como principal acompanhante das<br />

funções religiosas pelo interior do Brasil até as<br />

primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece<br />

ter-se difundido muito como instrumento doméstico.<br />

Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função<br />

em larga escala, permanecendo neste papel a viola<br />

até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.<br />

Principal acompanhador dos romances, cantigas,<br />

tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música<br />

solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade<br />

incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam<br />

um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra<br />

renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha<br />

como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens<br />

(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último<br />

instrumento originaria mais tarde a viola caipira<br />

brasileira, as diversas violas regionais portuguesas,<br />

e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores<br />

que se especializaram na viola de cinco ordens, como<br />

Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho<br />

e João de Lima aparecem com destaque na obra de<br />

Domingos do Loreto Couto, historiógrafo<br />

pernambucano do século XVIII.<br />

Além de chantre da catedral de Salvador por<br />

vários anos, João de Lima — conhecido do poeta<br />

Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,<br />

deixando obras de música sacra e profana<br />

e dominando a execução musical em vários<br />

instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou<br />

vários anos em Portugal, protegido do patriarca<br />

de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto<br />

atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria<br />

composto “sonatas e tocatas tanto para viola como<br />

para cravo”, além de música de salão, como<br />

minuetes e tonos.<br />

Forma de canção erudita bastante difundida na<br />

Península Ibérica e América Latina, o tono humano<br />

geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica<br />

com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas<br />

contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral<br />

da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,<br />

talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo<br />

português Antônio Marques Lésbio, com<br />

acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça<br />

Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos


de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos<br />

novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson<br />

Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto<br />

a se esta peça é um tono humano, como sugerido<br />

por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme<br />

estudo de Paulo Castagna.<br />

Embora não tenhamos notícia da sobrevivência<br />

de peças compostas por aqueles violistas<br />

pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia<br />

bastante aproximada do que tocavam, através das<br />

fontes portuguesas do início do século XVIII, para<br />

a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão<br />

para a formação do instrumentista luso-brasileiro<br />

daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas<br />

e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão,<br />

o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas<br />

fantasias e rojões.<br />

É importante lembrar que o repertório popular<br />

ibérico e latino-americano era muito menos<br />

heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.<br />

Portugal havia reconquistado sua independência da<br />

Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante<br />

a infância e juventude de Gregório de Mattos, os<br />

elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas<br />

começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no<br />

Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,<br />

e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram<br />

representadas em Salvador, autores brasileiros também<br />

escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,<br />

a música desse período também pareceria a nossos<br />

ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma<br />

influência nacional específica do que da evidência de<br />

um estilo compartilhado e generalizado por toda<br />

a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,<br />

por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar<br />

Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como<br />

o repertório português para viola e teclado.<br />

Na ausência de documentos musicais, uma ótima<br />

fonte de informações sobre a música não-religiosa<br />

tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética<br />

de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever<br />

funções musicais e teatrais, de mencionar<br />

instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais<br />

comuns tanto em Portugal como na Espanha e América<br />

Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis<br />

como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em<br />

outros casos, Mattos usa modas profanas em português,<br />

ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”<br />

cantavam. Religiosos e moralistas continuavam<br />

encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre<br />

a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo<br />

aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta<br />

Pereira, era exímio tocador de viola.<br />

Na segunda metade do século XVIII, o repertório<br />

musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um<br />

lado, o de danças afrancesadas como o minuete<br />

e a contradança — as principais coreografias de salão no<br />

Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as<br />

canções simples — as modas — agora influenciadas pelo<br />

estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com<br />

melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,<br />

despretensiosamente denominadas “modinhas”.<br />

Se a princípio estas apresentavam uma temática<br />

pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,<br />

o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto<br />

afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos<br />

ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto<br />

escandalizou viajantes do norte da Europa —<br />

originando assim a modinha brasileira, que acabaria<br />

voltando para Portugal nas obras de poetas<br />

e compositores como Domingos Caldas Barbosa<br />

e Joaquim Manuel da Câmara.<br />

Felizmente, foi preservada muita música desse<br />

período, sendo notáveis as peças coletadas pelos<br />

viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas<br />

brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda<br />

e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças<br />

instrumentais contidas no livro de saltério<br />

de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início<br />

19


20<br />

do século XIX. Há ainda uma única peça para<br />

teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,<br />

cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.<br />

Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos<br />

de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda<br />

década do século XIX, nos dão uma idéia<br />

do estiloda música de câmara para cordas<br />

composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.<br />

DISCOGRAFIA<br />

Romances Populares:<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta<br />

DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.<br />

Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta<br />

José de Anchieta:<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero<br />

A <strong>MÚSICA</strong> NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar<br />

con Jesu amado (Companhia Papagalia)<br />

Marinícolas:<br />

HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixa 2<br />

TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />

Discos; faixa 12<br />

Matais de Incêndios:<br />

HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixa 36<br />

A <strong>MÚSICA</strong> NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />

e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)<br />

Sonata ‘Sabará’:<br />

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.<br />

independente, faixa 5<br />

Modinhas:<br />

MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />

Nogueira. Estúdio Eldorado.<br />

MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais<br />

e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;<br />

faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que<br />

tem?<br />

Coleção de Spix e Martius:<br />

VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />

Nogueira. Estúdio Eldorado<br />

Recitativo e Ária:<br />

HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />

Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12<br />

Duetos concertantes:<br />

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester<br />

Brandão, Koiti Watanabe. Paulus<br />

CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS<br />

Uma espécie de teatro moral com intervenções<br />

musicais já se encontra presente no primeiro século<br />

da colonização, nos autos preparados por José<br />

de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como<br />

na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico<br />

era óbvia, e os números musicais cumpriam a função<br />

de tornar mais atraente a mensagem de submissão<br />

à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse<br />

teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial<br />

os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves<br />

e cômicos com danças, canções e romances populares.<br />

Nos séculos seguintes, os modelos passariam<br />

a ser Lope de Vega e Calderón.<br />

São bastante numerosos os relatos sobre<br />

a representação de comédias musicadas nas casas<br />

abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como<br />

aquelas para as quais o pernambucano Antônio da<br />

Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase<br />

certo que tais comédias — a grande maioria escrita em<br />

idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de<br />

Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros<br />

e alguns recitados alternando com diálogos falados.<br />

Durante o século XVII, não se tem notícia na<br />

colônia da apresentação de óperas no sentido moderno<br />

do termo, ou seja, a encenação de um enredo<br />

integralmente posto em música. Mesmo no século<br />

XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da<br />

Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,<br />

não era incomum encenarem-se libretos operísticos<br />

sem qualquer emprego da música, funções que eram<br />

mesmo assim denominadas “óperas”.<br />

Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas<br />

acepções — desde cedo explorados no Brasil como<br />

instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam<br />

a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas<br />

especificamente destinadas à representação de dramas,<br />

comédias e entremezes em música — as casas de ópera<br />

— que visavam promover uma educação cívica paralela<br />

à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século<br />

XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,<br />

além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo<br />

as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha<br />

de povoamento do interior que se sucede à descoberta


do ouro, encontramos casas de ópera em várias<br />

localidades das Minas Gerais, de Goiás<br />

e tão longe quanto em Cuiabá, no centro<br />

geográfico da América do Sul.<br />

O repertório das casas de ópera no século XVIII<br />

e boa parte do XIX incluía principalmente dramas<br />

de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,<br />

que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam<br />

o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas<br />

usando de disciplina quando necessário. Os libretos<br />

escolhidos eram bastante convenientes para<br />

a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente<br />

identificaria o herói com o soberano português.<br />

Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha<br />

compilado uma lista impressionante de óperas<br />

representadas no Brasil durante o século XVIII,<br />

apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,<br />

impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.<br />

Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza<br />

Queiroz a música de cena para uma peça teatral<br />

de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta<br />

no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns<br />

números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa<br />

de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser<br />

realizada sobre as óperas de autores europeus —<br />

Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para<br />

citar os mais importantes — representadas em casas<br />

de ópera brasileiras.<br />

Por volta do final do século XVIII, devido<br />

à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as<br />

casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas<br />

mais e mais como espaços daqueles que podem pagar<br />

e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um<br />

lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores<br />

e instrumentistas sempre foram na sua maior parte<br />

mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida<br />

ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais<br />

informal, pelos diretores musicais dos regimentos<br />

militares ou das bandas de músicos dos engenhos<br />

e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem<br />

além da casa de ópera local, como foi o caso da<br />

cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,<br />

que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.<br />

Não se colocando na posição subserviente de<br />

músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam<br />

restritas possibilidades de demonstração de suas<br />

habilidades performáticas, fossem elas de poeta,<br />

intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço<br />

doméstico, havia a academia, um misto de clube<br />

literário e sociedade secreta que se difundiria pelos<br />

principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda<br />

metade do século XVIII. É no contexto das academias,<br />

ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os<br />

de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois<br />

musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília<br />

de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador<br />

da modinha brasileira), e de obras como a cantata<br />

Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como<br />

Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta<br />

em Salvador em 1759.<br />

Não sobreviveu até nossos dias o repertório<br />

de música de câmara que talvez fizesse parte das<br />

reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam<br />

instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos<br />

de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,<br />

comprovando a prática da música de câmara européia<br />

no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,<br />

sobre um mineiro que intercepta os viajantes<br />

no interior da mata e os convida a irem à sua casa,<br />

onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo<br />

anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.<br />

ROGÉRIO BUDASZ<br />

Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo<br />

e professor da Universidade Federal do Paraná.<br />

21


22<br />

A música no<br />

Brasil Colonial<br />

anterior à<br />

chegada da<br />

Corte de<br />

D. João VI<br />

HARRY CROWL


OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS<br />

ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA <strong>MÚSICA</strong> PRODUZIDA<br />

NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO<br />

SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE<br />

IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A <strong>MÚSICA</strong><br />

PRODUZIDA EM TERRAS <strong>BRASILEIRA</strong>S EM PERÍODO<br />

ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.<br />

ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR<br />

PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE<br />

E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.<br />

23


Oconjunto da produção musical encontrado na capitaniageral<br />

das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,<br />

tornou-se a referência mais antiga da produção musical<br />

artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos<br />

isolados de manuscritos encontrados em outras regiões<br />

do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro<br />

grande conjunto de obras musicais disponíveis para<br />

o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado<br />

sobre a expressão musical no país.<br />

Apesar do deslocamento do eixo econômico para<br />

a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da<br />

Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />

musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />

Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes<br />

na década de 1980 apontam para as práticas<br />

polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,<br />

somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,<br />

Salvador, como ponto de partida para qualquer<br />

consideração que queiramos fazer sobre a música<br />

exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior<br />

à independência política. Sendo a região por onde<br />

iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa<br />

época uma sociedade já relativamente sedimentada,<br />

se comparada com as demais regiões da Colônia.<br />

Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco<br />

como a segunda região mais importante do ponto<br />

de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,<br />

o achado mais importante até agora é uma obra<br />

de caráter profano, anônima, composta em 1759,<br />

denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para<br />

soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de<br />

2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco<br />

Pereira de Mello, um importante magistrado da<br />

“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça<br />

de Portugal, na época. Essa composição, que está<br />

baseada num texto vernáculo, também de autoria<br />

desconhecida, é uma laudatória em homenagem<br />

ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia<br />

Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual<br />

semelhante à “Arcádia Romana”. O referido<br />

magistrado estava recém-restabelecido de uma longa<br />

enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária<br />

foi composto especialmente para recebê-lo numa<br />

das reuniões da “Academia”.<br />

24<br />

Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares<br />

Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e<br />

professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde<br />

estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da<br />

catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.<br />

Na época em que viveu na capital portuguesa, ele<br />

compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia<br />

cópias de música e dava aulas em casas de nobres.<br />

Na relação de músicos portugueses publicada por<br />

José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre<br />

esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural<br />

de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,<br />

muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;<br />

acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio<br />

a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da<br />

Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto<br />

principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas<br />

exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro<br />

a quatro coros, e ainda em composições profanas tem<br />

escrito com muito aserto” (sic).<br />

Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,<br />

profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu<br />

a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se<br />

na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável<br />

pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.<br />

L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente<br />

de capitão do regimento de milícia confirmada<br />

também em 1766.<br />

Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros<br />

comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em<br />

três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.<br />

Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja<br />

de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função<br />

de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde<br />

1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.<br />

De suas poucas composições que alcançaram<br />

os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,<br />

cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três<br />

vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta<br />

ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da<br />

Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino<br />

a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,<br />

matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,<br />

novenas, ladainhas e sonatas.


Apesar do deslocamento do eixo econômico<br />

para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais<br />

da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />

musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />

Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor<br />

nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar<br />

em Lisboa — de acordo com a documentação<br />

conhecida até o momento —, por outro lado,<br />

o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —<br />

São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela<br />

metrópole, no século XVIII, para ocupar a função<br />

de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.<br />

Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que<br />

foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —<br />

1801?), compositor português aluno do napolitano<br />

David Perez (1711 — 1778), importante músico que<br />

sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras<br />

foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.<br />

André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e<br />

veio para o Brasil em março de 1774. Assim que<br />

chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestrede-capela<br />

da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto<br />

ocupante da função. Suas atividades foram intensas,<br />

pois, ao que parece, havia uma necessidade<br />

de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde<br />

sua chegada até 1801, foi também o responsável pela<br />

música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.<br />

Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre<br />

eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi<br />

o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado<br />

em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo<br />

de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário<br />

de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.<br />

Como já acontecia nas demais partes da colônia,<br />

o compositor precisou atuar em outras profissões para<br />

poder sobreviver. Após requerer algumas funções que<br />

lhe permitiriam independência econômica em relação<br />

à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,<br />

em 1797, para o cargo de professor régio de gramática<br />

latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por<br />

D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.<br />

André da Silva Gomes abandonou todos os serviços<br />

J. J. Emerico Lobo<br />

de Mesquita.<br />

Tércio (1783).<br />

Fotografia<br />

do original<br />

autógrafo.<br />

FUNARTE<br />

25


26<br />

musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão<br />

em benefício da capela de música da catedral, que não<br />

deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras<br />

composições de A. da Silva Gomes, datadas e<br />

assinadas, remontam ao ano de sua chegada<br />

a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas<br />

aqui por ele, existem diversas obras de compositores<br />

portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs<br />

mais de uma centena de obras. Muitas delas foram<br />

recopiadas posteriormente por outros, sem que se<br />

transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições<br />

mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos<br />

e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma<br />

Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na<br />

Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que<br />

parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.<br />

No último quartel do século XVIII aparece ainda<br />

o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-decapela<br />

na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de<br />

nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,<br />

e é também o primeiro compositor a atuar na região<br />

do qual encontramos exemplos musicais concretos.<br />

Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,<br />

Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação<br />

musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,<br />

provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos<br />

Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde<br />

assumiria a função de mestre-de-capela, com<br />

o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como<br />

ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.<br />

A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter<br />

gozado de considerável reputação em toda a região,<br />

pois sua única composição encontrada no Brasil até<br />

o momento, os Motetos para os passos da Procissão do<br />

Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada<br />

em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção<br />

de música para a Semana Santa, anônima, proveniente<br />

de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição<br />

por Alexandre Bispo.<br />

<strong>MÚSICA</strong> NAS MINAS GERAIS<br />

O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim<br />

como o próprio afastamento geográfico da região da<br />

Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a<br />

organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa<br />

parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,<br />

assim, de critérios específicos para sua avaliação.<br />

A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios<br />

para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir<br />

de 1696, a grande movimentação humana em direção<br />

ao interior do continente fez com que as autoridades<br />

portuguesas regulamentassem a ocupação dessas<br />

regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,<br />

a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens<br />

monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido<br />

ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica<br />

formavam uma espécie de unidade corporativa desde<br />

o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros<br />

e conventos era uma realidade aparentemente<br />

irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que<br />

a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela<br />

também possibilitava o contrabando de ouro e pedras<br />

preciosas diante das autoridades civis, sem que essas<br />

pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,<br />

muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,<br />

determinou-se que toda a vida religiosa na região<br />

das minas fosse organizada por ordens leigas,<br />

ou irmandades formadas por homens comuns,<br />

que deveriam contratar todos os serviços relativos<br />

ao “bom desempenho das funções religiosas”.<br />

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado<br />

pelos portugueses para não haver distinção entre<br />

negros forros, mulatos ou mesmo brancos<br />

nativos sem posses ou posição social.


Essas irmandades eram denominadas também<br />

como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,<br />

de acordo com sua importância na comunidade.<br />

Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,<br />

pardos ou negros. O Estado colonial incentivava<br />

a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam<br />

de desde a construção da igreja até a contratação<br />

de artistas para a realização da decoração interna,<br />

talha, escultura e pintura, assim como a contratação<br />

de músicos para a criação e interpretação da música<br />

que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte<br />

dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,<br />

ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.<br />

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos<br />

portugueses para não haver distinção entre negros<br />

forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses<br />

ou posição social.<br />

A informação mais antiga que temos a respeito<br />

de um compositor ou regente ou organista, na antiga<br />

Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu<br />

a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual<br />

de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e<br />

despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na<br />

primeira metade do século XVIII, encontramos os<br />

nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza<br />

Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio<br />

do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias<br />

relativas à música em Minas no século XVIII estão<br />

restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas<br />

das irmandades. Não há registros de nomeações<br />

ou informações impressas sobre os compositores, pois<br />

a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-decapela<br />

era um privilégio das sedes de bispado, portanto<br />

somente a vila de Mariana contava com nomeações<br />

para essa função. Nas demais vilas encontramos<br />

a denominação de “responsável pela música”, o que<br />

não implicava um cargo permanente, pois um músico<br />

responsável pelo serviço em um ano determinado<br />

poderia ser substituído no ano seguinte.<br />

A documentação musical propriamente dita<br />

encontrada até o momento concentra-se numa<br />

produção posterior a 1770. Na condição de capital<br />

da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local<br />

de atividade mais intensa durante o período de final<br />

Luís Álvares<br />

de Azevedo Pinto.<br />

Te Deum Laudamus.<br />

Secretaria<br />

de Educação<br />

e Cultura de<br />

Pernambuco, 1968.<br />

Restauração<br />

do Padre Jaime Diniz.<br />

FUNARTE<br />

do século XVIII até por volta de 1850.<br />

O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente<br />

conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).<br />

A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso<br />

na Irmandade de São José dos Homens Pardos,<br />

em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como<br />

regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões<br />

até 1793, atuante em quase todas as Irmandades<br />

e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos<br />

apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:<br />

o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve<br />

Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.<br />

Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa<br />

de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição<br />

sobre texto vernáculo em português. É a única<br />

do gênero encontrada até agora no Brasil. No período<br />

em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros<br />

músicos importantes foram seus colegas no conjunto<br />

vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio<br />

José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que<br />

esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos<br />

por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois<br />

tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer<br />

indicação de como esses músicos que viveram na<br />

região das minas aprenderam a arte da solfa. Não<br />

há menção em qualquer documento da existência<br />

de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais<br />

razoável seria a de que eles se desenvolveram num<br />

processo de iniciação que seguia o modelo de relação<br />

mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,<br />

27


28<br />

DISCOGRAFIA<br />

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />

MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT<br />

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA<br />

Negro Spirituals au Brésil Baroque<br />

Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França<br />

LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />

Camerata Antiqua de Curitiba<br />

Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil<br />

IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:<br />

ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes.<br />

AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil<br />

ANDRÉ DA SILVA GOMES:<br />

MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS<br />

Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 14º Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

VENI SANCTE SPIRITU<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes<br />

AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil<br />

JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:<br />

MISSA EM MI BEMOL MAIOR<br />

Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 12º Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA<br />

Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música<br />

Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />

Direção: Luís Otávio Santos<br />

CD 11o.Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />

MATINAS DE SÁBADO SANTO<br />

Calíope<br />

Direção: Júlio Moretzsohn<br />

Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -<br />

Brasil<br />

MISSA PARA 4 a FEIRA DE CINZAS<br />

Calíope<br />

Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil<br />

PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:<br />

MATINAS DE NATAL<br />

Coral Porto Alegre e Orquestra<br />

Regência: Ernani Aguiar<br />

CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,<br />

RS - Brasil<br />

como já pode ser constatado.<br />

Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou<br />

na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa<br />

Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,<br />

em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos<br />

homens Pardos, em junho de 1768.<br />

Em todas essas confrarias, ocupou cargos<br />

importantes, como o de escrivão e tesoureiro.<br />

Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras<br />

festividades, durante longo período da segunda metade<br />

do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de<br />

linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo<br />

recenseamento consta que Gomes da Rocha contava<br />

com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,<br />

nascido em 1754. De sua produção, conhecemos<br />

apenas uma parte mínima, que são as obras<br />

Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I<br />

e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,<br />

de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola<br />

e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para<br />

2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo<br />

contínuo. Há ainda uma obra incompleta,<br />

as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.<br />

Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi<br />

regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento<br />

de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado<br />

com a contratação para a realização do serviço anual<br />

das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.<br />

Em 1770, entrou para a Irmandade de São José<br />

dos Homens Pardos, que lhe registrou<br />

o falecimento em 10/06/1820.<br />

Outros três compositores de Vila Rica que<br />

mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—<br />

1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)<br />

e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,<br />

1794 — Mariana, 1832).<br />

Coelho Neto, que era trompista, clarinista<br />

(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além<br />

de compositor e regente, exerceu ainda, segundo<br />

documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro<br />

Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de<br />

alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral<br />

Luís da Cunha Menezes para reger a música de três<br />

óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos


Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />

o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte<br />

da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação<br />

do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão<br />

Arp Schnitger mais importante fora da Europa.<br />

do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.<br />

Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,<br />

o compositor declara contar com 58 anos, tendo<br />

nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar<br />

o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina<br />

de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada<br />

em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.<br />

Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,<br />

foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.<br />

Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.<br />

Acreditamos que as obras que levam o nome<br />

de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois<br />

apresentam características formais muito semelhantes<br />

entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando<br />

o hino Maria Mater Gratiae foi composto.<br />

Jerônimo de Souza Queiroz foi organista<br />

e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza<br />

Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.<br />

Seu nome tem sido freqüentemente confundido com<br />

o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um<br />

importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou<br />

na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre<br />

1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo<br />

a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data<br />

exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o<br />

seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.<br />

De sua obra, dispomos hoje de uma coleção<br />

aproximada de 20 manuscritos. Suas composições<br />

mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo<br />

a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae<br />

(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício<br />

de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).<br />

O último grande compositor ativo em Vila Rica<br />

foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo<br />

(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical<br />

do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome<br />

aparece como o responsável pela regência da<br />

temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,<br />

atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,<br />

alternadamente, a partir de 1819, com sua formação<br />

sacerdotal no Seminário de Mariana, que se<br />

completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante<br />

jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos<br />

compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo<br />

obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes<br />

quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou<br />

variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,<br />

que é o único exemplar de música puramente<br />

instrumental encontrado em Minas pelo autor<br />

do presente texto.<br />

Suas principais composições são: Missa e Credo<br />

a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas<br />

de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum<br />

(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).<br />

O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos<br />

de idade, em 1832.<br />

Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como<br />

sede do bispado, foi um centro musical de grande<br />

importância, sendo que a função de mestre-de-capela<br />

foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.<br />

Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />

o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,<br />

no norte da Alemanha, originalmente para servir<br />

em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei<br />

ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp<br />

Schnitger mais importante fora da Europa.<br />

29


30<br />

Outro compositor importante que provavelmente<br />

atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,<br />

procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras<br />

encontram-se em manuscritos, no Museu da Música<br />

de Mariana.<br />

Da avaliação que se pode fazer até o momento<br />

da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora<br />

da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,<br />

percebemos que a produção musical de lá foi<br />

igualmente intensa, porém a perda da documentação<br />

musical foi ainda maior que em outros lugares.<br />

Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em<br />

Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos<br />

(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis<br />

Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece<br />

exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,<br />

em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está<br />

bem próxima da dos demais compositores.<br />

As Vilas de São José e São João del-Rei<br />

desempenharam também um importante papel na<br />

produção musical do período. O compositor de maior<br />

destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias<br />

de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse<br />

compositor jamais atuou fora de sua região, onde<br />

foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José<br />

del-Rei (atual Tiradentes).<br />

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />

de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />

entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa<br />

parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.<br />

Em São João del-Rei, os compositores mais<br />

importantes são Antônio dos Santos Cunha,<br />

Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco<br />

Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José<br />

Fernandes Braziel.<br />

Santos Cunha representa, juntamente como<br />

Pe. João de Deus, o início das influências românticas<br />

na música produzida na região das minas. Esse<br />

compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;<br />

ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.<br />

A primeira notícia escrita de atividade musical<br />

em São João del-Rei data de 1717, quando o<br />

Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro<br />

de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma<br />

visita à antiga vila.<br />

O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata<br />

minuciosamente a recepção, descrevendo desde<br />

a marcha de entrada da comitiva na vila até a<br />

solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música<br />

organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja<br />

foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo<br />

o clero e música”, o que provavelmente indica uma<br />

forma alternada de canto em polifonia com os padres<br />

cantando um verso gregoriano e o conjunto musical<br />

respondendo com um verso musical, tal como se faz,<br />

ainda hoje, na cidade.<br />

Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo<br />

responsabiliza-se pela parte musical de importantes<br />

festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na<br />

solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos<br />

depois, organizou a música para a festa de São João<br />

Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em<br />

1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes<br />

Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser<br />

o compositor mais antigo do qual conhecemos algum<br />

exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:<br />

Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou<br />

em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que<br />

o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante<br />

ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos<br />

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />

de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />

entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida<br />

boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.


compositores mineiros da época. João José das Chagas<br />

e Francisco Martiniano de Paula Miranda são<br />

compositores também representativos da música<br />

do início do século XIX.<br />

Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece<br />

o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles<br />

como músico. Em época ignorada, esse compositor<br />

transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade<br />

(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga<br />

que temos é uma página de rosto existente no Museu<br />

da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona<br />

de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.<br />

Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona<br />

Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas<br />

são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira<br />

de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira<br />

“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.<br />

Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,<br />

em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu<br />

ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,<br />

a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.<br />

Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,<br />

uma Trezena de Santo Antônio e um Domine<br />

ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.<br />

Outro importante compositor é Joaquim de Paula<br />

Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma<br />

Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região<br />

diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro<br />

do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual<br />

Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo<br />

de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha<br />

(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo<br />

(século XVIII/XIX).<br />

Lobo de Mesquita atuou como organista<br />

e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,<br />

quando se transferiu por motivos desconhecidos para<br />

o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que<br />

conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,<br />

de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão<br />

(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,<br />

muito provavelmente, já atuava como organista<br />

nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um<br />

Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.<br />

Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial<br />

do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se<br />

em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com<br />

a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração<br />

para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona<br />

Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na<br />

Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.<br />

A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas<br />

missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio<br />

de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor<br />

faleceu em 1805. Como todos os outros compositores<br />

de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.<br />

Algo em torno de 60 manuscritos chegaram<br />

até os nossos dias.<br />

José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do<br />

Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo<br />

estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo<br />

de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco<br />

podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do<br />

Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para<br />

compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807<br />

e 1808, e que seu nome figura numa relação de<br />

músicos da Irmandade de Santa Cecília no período<br />

de 1817 a 1838.<br />

O nome de Alberto Fernandes de Azevedo<br />

aparece no período de 1804−1805 na Capela das<br />

Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,<br />

segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819<br />

foi encarregado de compor a música para cravo para<br />

a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo<br />

Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.<br />

Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:<br />

Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino<br />

I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação<br />

para quatro vozes e baixo.<br />

HARRY CROWL<br />

Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />

Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.<br />

Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />

31


<strong>MÚSICA</strong> NA CORTE DO BRASIL


Entre<br />

Apolo e Dionísio<br />

Os projetos de transferência da Corte somente se<br />

concretizaram no período em que as incursões<br />

napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal<br />

e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios<br />

do século XIX, diante do medo e das ameaças que<br />

levariam à perda do poder e de partes do território<br />

Na página ao lado: Henrique Bernardelli.<br />

José Maurício tocando para D. João VI.<br />

MUSEU HISTÓRICO NACIONAL<br />

1808-1821<br />

PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO<br />

português, as opiniões sobre a retirada da Família Real<br />

e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.<br />

Para alguns se tratava de uma traição; para outros,<br />

estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto<br />

o abandono do povo e do trono, como o único recurso<br />

capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as<br />

ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia<br />

alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para<br />

os perigos de permanência da Corte em Portugal, na<br />

iminência do ataque francês, e para os benefícios que<br />

33


34<br />

essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para<br />

o marquês de Alorna, foi estratégica e importante<br />

a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,<br />

porque daqui, como um imperador em um vasto<br />

território, os domínios poderiam expandir-se<br />

e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias<br />

espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as<br />

potências da Europa” 1 . As recomendações do marquês<br />

de Alorna não foram novidades nos inícios do século<br />

XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que<br />

os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,<br />

e muito menos era nova a aliança com os ingleses.<br />

Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados<br />

de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia<br />

já admitia um projeto de se instalar fora das mediações<br />

de Portugal e se estabelecer em algum lugar<br />

do ultramar. Ou porque temia as interferências dos<br />

estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira<br />

metade do século XVII e na derradeira expansão<br />

napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque<br />

realmente confiavam no potencial econômico<br />

do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante<br />

quatro séculos, retirar-se de Portugal2 . Se pensarmos<br />

como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com<br />

que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,<br />

a retirada da Família Real para o Brasil era necessária<br />

havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças<br />

de Junot. Não bastava somente uma retirada nem<br />

as lembranças de uma terra promissora, que por direito<br />

de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.<br />

Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como<br />

um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia<br />

e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.<br />

Como estratégia política ou como reação que<br />

previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua<br />

mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus<br />

filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por<br />

13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira<br />

mudança foi acolher um número estimado de reinóis<br />

entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já<br />

no plano das perdas e da autoridade, começou nos<br />

despejos. Para toda população que tinha uma das<br />

residências “das mais excelentes”, ou pelo menos<br />

habitável, estaria sujeita, mais por obrigação<br />

que por espontaneidade, a ceder sua residência<br />

aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram<br />

marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas<br />

portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,<br />

para outros, “Ponha-se na Rua” 3 . Com a instalação<br />

da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as<br />

relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.<br />

Spix e Martius mostram que vários países vendiam<br />

produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,<br />

chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,<br />

vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,<br />

móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,<br />

cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,<br />

relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos<br />

da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,<br />

Moçambique, Angola e Bengala4 . O produto interno,<br />

a manufatura e a indústria, que ainda começavam<br />

a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem<br />

em termos de gosto nem em termos de tecnologia<br />

da civilização, com os da Europa. Os hábitos<br />

estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos<br />

cariocas, seja pela observação do outro, seja pela<br />

imitação de seu comportamento.<br />

Durante todo o período joanino, houve no Rio<br />

de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída<br />

basicamente em dois setores, o da Corte, onde<br />

a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,<br />

em que a funcionalidade era festiva e mítica. É<br />

importante pensar nisto, numa complexidade que<br />

surge no momento em que negros e mestiços são<br />

Os músicos diletantes ou<br />

amadores dividiam-se entre<br />

os negros e mestiços, com seus<br />

lundus, modinhas e batuques, e<br />

brancos pobres que normalmente<br />

tinham uma outra ocupação,<br />

que lhes assegurava o sustento.


chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes<br />

com seus instrumentos típicos e com suas próprias<br />

interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros<br />

artífices para algum trabalho ou para abrilhantar<br />

alguma festa em caráter de urgência foi uma medida<br />

comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era<br />

necessário atender um desejo de manter a pompa,<br />

a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso<br />

era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.<br />

Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,<br />

criava-se, literalmente, o artífice e artesão,<br />

normalmente uma maioria de negros, mestiços<br />

e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram<br />

formulados pela ordem e obediência. Em algumas<br />

circunstâncias, para atender à demanda musical,<br />

ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder<br />

de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,<br />

dos diletantes que estavam à mercê dessas relações<br />

de poder, não foi diferente. Robert Southey chega<br />

a falar de “devotos músicos” que eram chamados<br />

para as festas das igrejas “muitas vezes por água” 5 .<br />

Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre<br />

os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas<br />

Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham<br />

uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.<br />

Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns<br />

professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.<br />

No Rio de Janeiro já existia uma vida musical<br />

significativa para aqueles tempos históricos, com<br />

compositores ativos e importantes, como Lobo<br />

de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto<br />

em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-decapela,<br />

compositor e organista que se tornou uma<br />

das maiores expressões da História da Música no<br />

Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista<br />

e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da<br />

Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se<br />

ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da<br />

Família Real para o Brasil, juntamente com alguns<br />

dos compositores e intérpretes portugueses que<br />

serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo<br />

e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”<br />

uma nova percepção do gosto e uma nova maneira<br />

de observar o mundo das artes. O surgimento de<br />

instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,<br />

favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais<br />

35


36<br />

oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia<br />

entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram<br />

com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,<br />

contribuíram com seus comportamentos e hábitos<br />

de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo<br />

isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes<br />

e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que<br />

as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção<br />

do Real Teatro de São João, palco ideal para<br />

as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,<br />

com eles circulam também as idéias.<br />

A circulação de músicos estrangeiros no Rio de<br />

Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento<br />

de uma prática de corte, para sustentar a demanda de<br />

música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,<br />

baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores<br />

castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em<br />

seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos<br />

importantes que transformaram a idéia da criação e da<br />

recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos<br />

níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,<br />

mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma<br />

de audiência das obras no período joanino. Classicismo<br />

e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund<br />

Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse<br />

período em que a Família Real esteve no Brasil foi<br />

exatamente uma articulação desses estilos. Se a música<br />

vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música<br />

instrumental se baseou nos modelos do classicismo<br />

vienense. As relações da Casa de Bragança com<br />

as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,<br />

se reforçavam cada vez mais, através de questões<br />

políticas e conveniências matrimoniais.<br />

Acontecimentos como a vinda da Missão Artística<br />

em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina<br />

com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos<br />

costumes e hábitos europeus.<br />

O que aqui denominamos por “classicismo”<br />

conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.<br />

Um se refere à estilística tipicamente germânica<br />

e austríaca; outro, como diz o próprio termo que<br />

o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar<br />

em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,<br />

uma situação político-administrativa, o “colonialismo”<br />

português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse<br />

último termo tem significado histórico e prático. Na<br />

verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência<br />

do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação<br />

da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do<br />

Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou<br />

muito nas suas relações externas. Classicismo, com<br />

Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda<br />

de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo<br />

operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David<br />

Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de<br />

Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por<br />

José Maurício. Essas relações são importantes para<br />

a compreensão de uma estilística resultante de práticas<br />

coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com<br />

a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi<br />

sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica<br />

era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo<br />

pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido<br />

de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera<br />

italiana do final do século XVIII e da primeira metade<br />

do século seguinte reservava o caráter virtuosístico<br />

predominantemente aos cantores castratti. Como uma<br />

extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda<br />

desses cantores para a colônia, transportando,<br />

da melhor maneira possível, o cenário da prática<br />

musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.<br />

A circulação de músicos<br />

estrangeiros no Rio de Janeiro<br />

joanino foi importante para<br />

o estabelecimento de uma prática<br />

de corte, para sustentar a<br />

demanda de música e, sobretudo,<br />

ajudar a construir um novo gosto,<br />

baseado em práticas cortesãs.


Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.<br />

A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

A imaginação individual era canalizada<br />

estritamente de acordo com o gosto dos patronos.<br />

No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,<br />

e por vezes o poder político, através dos Senados e das<br />

Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres,<br />

ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse<br />

como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida<br />

correspondência com os aspectos morais e espirituais<br />

permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação<br />

social do músico e a conseqüente estilística tomaram,<br />

a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:<br />

o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo<br />

e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética<br />

e o artista, agora com nome, endereço e personalidade.<br />

Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço<br />

de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua<br />

liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com<br />

que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm<br />

desapontou a todos, aristocráticos e burgueses,<br />

e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de<br />

Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.<br />

No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era<br />

uma situação favorável, por três motivos básicos:<br />

melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar<br />

contato com músicos estrangeiros e linguagens<br />

modernas e, por fim, de garantir um status social<br />

e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.<br />

A música praticada fora do círculo cortesão foi tão<br />

multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda<br />

mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição<br />

e novidade. Costumes e práticas de várias culturas<br />

conviveram no Brasil joanino. Negros e índios<br />

compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura<br />

do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns<br />

momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de<br />

D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,<br />

os europeus tiveram de articular seus costumes<br />

e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se<br />

estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de<br />

colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento<br />

de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo<br />

de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu<br />

37


38<br />

Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,<br />

mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos<br />

aqui de formas culturais, cada uma com sua força e<br />

tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,<br />

entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno<br />

pensar em um mundo apolíneo nos domínios<br />

de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,<br />

normatizada, programada e cheia de sanções morais<br />

em um ambiente onde ela era mais espontânea.<br />

As concepções de Nietzsche sobre os mitos de<br />

Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir<br />

temas de culturas variadas nesses espaços comuns6 .<br />

Numa outra dimensão da idéia que caracteriza<br />

os personagens, a música de Apolo é européia,<br />

encontra-se cultivada fora das camadas populares,<br />

levada para o ultramar como pressuposto<br />

de modernidade e civilização, como um dispositivo<br />

importante de uma cultura que cristianizou e sustentou<br />

o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música<br />

de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;<br />

encontra-se nas manifestações das culturas de tradição<br />

oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio<br />

DISCOGRAFIA<br />

O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.<br />

Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)<br />

MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM<br />

Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone<br />

(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)<br />

GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES<br />

São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão<br />

e Koiti Watanabe (violinos)<br />

<strong>MÚSICA</strong> PORTUGUESA E <strong>BRASILEIRA</strong> DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO<br />

Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)<br />

MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />

Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto<br />

Coral. Direção: Cleofe Person de Matos<br />

MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />

Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v<br />

VENENO DE AGRADAR. MODINHAS<br />

Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)<br />

Achille Picchi (piano)<br />

MUSICA BARROCA <strong>BRASILEIRA</strong><br />

Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440<br />

Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios<br />

se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,<br />

práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.<br />

Entretanto, em alguns momentos da vida social<br />

da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por<br />

algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se<br />

tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos<br />

e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma<br />

data ou reverenciar algum nobre ou príncipe<br />

e, de forma estratégica, esses encontros de todos<br />

serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar<br />

as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,<br />

que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,<br />

que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,<br />

compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito<br />

a ponderações muitas vezes preconceituosas.<br />

Ao contrário das práticas de corte, as manifestações<br />

de características populares ou étnicas, como aquelas<br />

encontradas entre os brancos pobres, africanos<br />

e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo<br />

de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,<br />

no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas<br />

a cultos de deidades negras e a rituais animistas.<br />

A dos brancos pobres, os excluídos do processo<br />

de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui<br />

de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas<br />

absorveram elementos de todas as outras, em menor<br />

escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,<br />

através do catolicismo, formas miscigenadas<br />

das práticas européias e deram uma outra roupagem<br />

às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com<br />

que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que<br />

procurava se impor7 .<br />

Tudo isso era um espetáculo, uma mistura<br />

de catolicismo com atividades autóctones, própria<br />

de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte<br />

daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,<br />

nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto<br />

de sincrético quanto de propriedade. A palavra<br />

sincretismo vem designar não a simples e inevitável<br />

mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como<br />

uma forma em que as culturas não européias deveriam<br />

aceitar a cultura do outro. Em propostas mais<br />

abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira<br />

de preservar a própria cultura em detrimento das


interferências e das imposições das culturas européias.<br />

Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,<br />

sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas<br />

raízes e a absorção inevitável da cultura do branco<br />

se tornou um matiz para a preservação de sua própria<br />

cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa<br />

em tudo, esse sincretismo era a única forma possível<br />

de preservar o que é seu sem cair nas malhas da<br />

vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram<br />

nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas<br />

tribos e nas regiões rurais que as manifestações se<br />

tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas<br />

áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da<br />

cultura européia. Preservar a cultura afro-americana<br />

ou indígena, assim como impor por meios diversos<br />

a cultura européia, era uma articulação viável que,<br />

ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.<br />

Surgem dois territórios onde as formas de cultura<br />

se contracenam: um público e outro privado.<br />

Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte<br />

vinha de uma observação que era inversa à de um<br />

mundo proposto em um mundo diferente. Em toda<br />

essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas<br />

onde as trocas com elementos externos aconteciam<br />

primeiro, era de se esperar que existissem formas<br />

de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que<br />

existiram momentos em que as diversas formas<br />

1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa<br />

os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se<br />

acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus<br />

filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada<br />

de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo<br />

nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias<br />

padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,<br />

Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatálas,<br />

mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional<br />

as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que<br />

aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.<br />

Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.<br />

Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,<br />

Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.<br />

2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:<br />

Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.<br />

de culturas – as autóctones, as européias e africanas<br />

– manifestaram-se isoladamente, e em outras<br />

oportunidades fundiram-se numa só, permitindo<br />

a existência de vários elementos se entrecruzando.<br />

Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços<br />

originais, na sua própria origem, como no caso dos<br />

índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato<br />

dos rituais, do entretenimento ou da demonstração<br />

de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,<br />

ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,<br />

flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,<br />

existiu a convivência com negros que andavam<br />

pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.<br />

Os índios, talvez por estarem menos expostos<br />

à cultura urbana, participaram em menor escala desse<br />

processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades<br />

e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível<br />

também imaginar os índios descritos pelo príncipe<br />

Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus<br />

ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu<br />

nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,<br />

e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou<br />

uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,<br />

D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço<br />

de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam<br />

as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações<br />

e um espaço de tolerâncias.<br />

ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições<br />

Afrontamento, 1993, p. 837.<br />

3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de<br />

Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.<br />

4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.<br />

Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.<br />

5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:<br />

Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.<br />

6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.<br />

Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,<br />

p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que<br />

é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio<br />

é africano e indígena, e em certa medida, colonial.<br />

7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina<br />

e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />

MAURÍCIO MONTEIRO<br />

Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.<br />

39


José Maurício Nunes Garcia<br />

e a Real Capela<br />

de D. João VI<br />

no Rio de Janeiro<br />

RICARDO BERNARDES


José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais<br />

significativos compositores da América colonial no que<br />

diz respeito à quantidade de composições, à qualidade<br />

estética e à definição de uma linguagem própria,<br />

facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza<br />

e o destaca dos compositores mineiros ou hispanoamericanos<br />

do século XVIII, que podemos identificar,<br />

respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo<br />

comum de composição. É também o único compositor<br />

colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas<br />

ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos<br />

defensores, desde seus contemporâneos Manuel<br />

de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até<br />

o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,<br />

em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse<br />

as principais obras de José Maurício, reunidas<br />

e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1 ,<br />

e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,<br />

o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para<br />

canto e piano ou órgão2 .<br />

Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,<br />

reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício<br />

e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous<br />

Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes” 3 ,<br />

contribuindo assim para a imagem que o século XX<br />

tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que<br />

o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante<br />

os primórdios da República, quando se buscava criar<br />

a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente<br />

ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma<br />

identidade nacional.<br />

Ainda, durante o século XIX e o início do XX,<br />

outras iniciativas foram tomadas, por compositores<br />

como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,<br />

visando recuperar a obra do padre mestre, através de<br />

sua restauração e execução, como no caso da<br />

reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,<br />

ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol<br />

de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.<br />

Louis Claude Desausles Freycinet.<br />

Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris<br />

par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane<br />

et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.<br />

Paris, Pillet Ainé, 1824.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />

41


42<br />

Foi a partir da década de 1940,<br />

porém, que a vida e a obra de José<br />

Maurício Nunes Garcia contaram<br />

com um estudo bastante sério<br />

e profundo, realizado pela regente<br />

e musicóloga Cleofe Person de<br />

Mattos, que, além de transcrever<br />

e promover a execução de suas<br />

obras, editou o “Catálogo temático<br />

das obras do padre José Maurício<br />

Nunes Garcia” 4 , obra fundamental<br />

para o conhecimento da produção<br />

mauriciana. Na década de 1980,<br />

a pesquisadora editou ainda 10<br />

partituras, reunidas em 8 volumes5 ;<br />

em 1994, o Réquiem de 1816, na<br />

versão completa de orquestra6 , e sua<br />

biografia mauriciana7 .<br />

A 22 de setembro de 1767, nasce<br />

José Maurício Nunes Garcia, filho<br />

de Apolinário Nunes Garcia,<br />

(segundo registros) de raça branca,<br />

e de Victória Maria da Cruz, de<br />

ascendentes imediatos “da Guiné”,<br />

o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia<br />

Júnior, único filho legitimado de José Maurício,<br />

descreve seus avós paternos como mulatos claros<br />

“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto<br />

Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras<br />

do Padre J. M. N. G.” 8 , indica a freguesia de Nossa<br />

Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador,<br />

Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.<br />

José Maurício tem sua formação musical com<br />

Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo<br />

da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde<br />

os doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16<br />

anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.<br />

É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado<br />

para assumir a função de mestre-de-capela9 da Sé<br />

do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja<br />

da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,<br />

José Maurício já compunha para essa instituição<br />

mesmo antes de sua nomeação, como comprovam<br />

os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,<br />

Pe. José Maurício Nunes Garcia.<br />

Litogravura.<br />

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO<br />

O tempo de José<br />

Maurício à frente<br />

da Real Capela<br />

é claramente um<br />

período de transição<br />

estilística entre suas<br />

duas práticas<br />

dedicados ao conjunto da Sé.<br />

Em 1808, fugindo das tropas<br />

napoleônicas sob o comando de<br />

Junot, D. Maria I, o príncipe regente<br />

D. João, a real família, parte da<br />

Corte e da alta administração do<br />

reino português deslocam-se para<br />

a capital da colônia com o objetivo,<br />

ímpar na história da colonização<br />

do Brasil e das Américas, de lá<br />

se instalarem e fazerem da cidade<br />

a nova capital do reino,<br />

aproximando-se da metrópole sob<br />

todos os aspectos.<br />

Um choque de urbanidade<br />

então se impõe sobre o Rio de<br />

Janeiro, que – por esforços pessoais<br />

do ainda príncipe regente, a ser<br />

coroado D. João VI apenas em 1818<br />

– vai gradualmente se tornando uma<br />

capital nos moldes europeus, com<br />

a vinda da imprensa, a abertura dos<br />

portos ao livre comércio, a criação<br />

também se reflete sobre a vida musical da cidade,<br />

através da construção de um Teatro de Ópera<br />

e, principalmente, da criação de uma Real Capela de<br />

Música, nos moldes da Real Capela lisboeta. 10<br />

da Biblioteca Real. A modernização<br />

Quando do desembarque da Corte, a 8 de março<br />

de 1808, todas as festividades de recepção estavam<br />

preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do<br />

Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.<br />

Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,<br />

em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,<br />

cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,<br />

contava com um grupo vocal formado por cantores<br />

meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,<br />

como tenores e baixos. Contava ainda com um<br />

pequeno grupo de instrumentistas, que segundo<br />

a prática de orquestração de suas obras até então,<br />

provavelmente consistiam em: cordas, flautas,<br />

ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,<br />

realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este<br />

é o primeiro contato que o príncipe regente trava com


a música do compositor carioca.<br />

No mesmo mês, D. João terá ainda<br />

várias oportunidades de avaliar<br />

a qualificação musical do conjunto<br />

da Sé e, especificamente,<br />

a qualidade do nível de criação<br />

de seu mestre-de-capela, o padre<br />

José Maurício.<br />

O claro objetivo de D. João era<br />

montar uma capela musical no Rio<br />

de Janeiro nos moldes daquela que<br />

havia em Lisboa, tanto no formato<br />

quanto na fixação de um estilo<br />

musical para as obras que para<br />

lá seriam compostas. Designa<br />

então José Maurício para dirigir<br />

as atividades da recém-criada<br />

instituição, formada por músicos já<br />

atuantes na cidade e alguns vindos<br />

com D. João. Numa demonstração<br />

de apreço e admiração por seus<br />

talentos musicais, D. João<br />

concede-lhe o Hábito da Ordem<br />

A partir desse ano começam a chegar<br />

ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real<br />

de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.<br />

Os músicos são atraídos pelas possibilidades<br />

de trabalho propiciadas pela instalação permanente<br />

da Corte na cidade e pela construção, em andamento,<br />

do Teatro de Ópera.<br />

Todos esses acontecimentos, que propiciam um<br />

meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas<br />

obras que começam a circular na colônia, trazidas por<br />

D. João11 de Cristo, em 1809.<br />

, serão os responsáveis pelas transformações<br />

na linguagem musical de José Maurício.<br />

O tempo de José Maurício à frente da Real Capela<br />

é claramente um período de transição estilística entre<br />

suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos<br />

pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada<br />

da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e<br />

possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,<br />

a partir de então, a escrever uma música mais brilhante<br />

e virtuosística, com o objetivo de se aproximar<br />

Marcos Portugal.<br />

Litogravura assinada por Rodrigues.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E<br />

ARQUIVO SONORO<br />

José Maurício tem<br />

a oportunidade<br />

de estrear obras como<br />

o Réquiem de Mozart,<br />

em dezembro de 1819,<br />

e o oratório A Criação<br />

de Haydn, em 1821.<br />

do “estilo da Capela Real”.<br />

O que justamente caracteriza<br />

esse período como de transição<br />

é a síntese através da qual José<br />

Maurício adapta sua música<br />

e sua linguagem, obtendo um estilo<br />

híbrido em sua criação, ainda com<br />

resquícios fortes da primeira fase,<br />

mas já alçando vôos em direção<br />

ao estilo que iria caracterizar<br />

sua segunda fase: mais madura<br />

e moderna.<br />

O período de 1808 a 1811<br />

é extremamente fecundo: José<br />

Maurício compõe cerca de setenta<br />

obras visando atender à extensa<br />

série de solenidades. Entre as mais<br />

importantes, comprovadamente<br />

do período e que sobreviveram até<br />

nossos tempos, destacam-se: a Missa<br />

São Pedro de Alcântara de 1808,<br />

e outra Missa São Pedro de Alcântara<br />

de 1809, um Te Deum para as Matinas<br />

de São Pedro, um Stabat Mater,<br />

arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o<br />

moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.<br />

Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes<br />

e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa<br />

Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para<br />

coro e órgão e um Te Deum em dó maior.<br />

No entanto, a grande obra do período de José<br />

Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa<br />

Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.<br />

É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente<br />

das que havia composto até então e uma das mais<br />

sofisticadas de toda a sua carreira, composta num<br />

momento de plena maturidade: José Maurício tinha,<br />

então, 43 anos.<br />

Era um momento cheio de esperanças e alegrias<br />

para o compositor – por passar a trabalhar à frente de<br />

um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas<br />

potencialidades como músico e artista –, mas também<br />

de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua<br />

condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma<br />

43


44<br />

formação musical, em muitos<br />

em 1816, no intuito de retomar<br />

aspectos, autodidata.<br />

relações diplomáticas com a Corte<br />

A composição da Missa<br />

portuguesa –, José Maurício tem<br />

da Conceição para 8 de dezembro<br />

a oportunidade de estrear obras<br />

daquele ano pode ter sido uma<br />

como o Réquiem de Mozart, em<br />

comprovação aos músicos e ao<br />

dezembro de 1819, e o oratório<br />

príncipe de que José Maurício podia<br />

A Criação de Haydn, em 1821.<br />

se adaptar ao novo gosto. Essa missa<br />

O padre mestre compõe, no mesmo<br />

figura entre suas obras mais<br />

ano, dois salmos, Laudate Dominum<br />

importantes, ao lado do Ofício e<br />

e Laudate Puerum, que, segundo o<br />

Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de<br />

punho do próprio compositor, foram<br />

Nossa Senhora do Carmo, de 1818,<br />

“arranjados sobre temas da Creação<br />

e da Missa de Santa Cecília, de 1826.<br />

do Mundo do immortal Haydn”<br />

Em 1811, a chegada de Marcos<br />

Portugal, o mais afamado<br />

compositor português de sua época,<br />

encerra o período de Nunes Garcia<br />

como diretor e compositor da Real<br />

Capela. De renome internacional,<br />

Portugal vem assumir na cidade<br />

as funções de Diretor do Teatro<br />

14 .<br />

Podem ser observadas, ainda,<br />

citações do oratório As estações,<br />

do mesmo Haydn, em obras mais<br />

tardias, como no Qui Tollis da Missa<br />

Abreviada, de 1823.<br />

Sua última obra e legado<br />

é a Missa de Santa Cecília,<br />

encomendada pela ordem<br />

de Ópera de São João e de mestre compositor<br />

da Real Capela. José Maurício continua, todavia,<br />

compondo ocasionalmente para a instituição<br />

a pedido de D. João, que o tem em grande estima. 13<br />

Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro<br />

Voyage pitoresque et historique au Brésil.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode<br />

ser posta ao lado das grandes obras, compostas<br />

durante o mesmo período, dentro da história<br />

da música ocidental.<br />

Através da amizade com o compositor austríaco<br />

Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,<br />

Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo<br />

Haydn – que veio ao Brasil em uma missão<br />

e interesse por músicos e pesquisadores<br />

diplomática promovida por Luís XVIII de França brasileiros e estrangeiros.<br />

1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto<br />

Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.<br />

2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.<br />

Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.<br />

3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício<br />

e Carlos GomesI. São Paulo: Companhia Melhoramentos/<br />

Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.<br />

4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre<br />

José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de<br />

Cultura/MEC, 1970.<br />

5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/<br />

INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:<br />

Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio<br />

de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para<br />

Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />

1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />

1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/<br />

INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.<br />

Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.<br />

6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,<br />

edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.<br />

7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –<br />

biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/<br />

<strong>Departamento</strong> Nacional do Livro, 1994.<br />

8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos<br />

mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.<br />

9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação<br />

das músicas destinadas às cerimônias religiosas.<br />

10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos<br />

de excelência na criação e execução musical para as festividades


eligiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às<br />

grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em<br />

Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da<br />

Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém<br />

estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,<br />

principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo<br />

período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,<br />

importante centro de formação de músicos portugueses em todo<br />

o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar<br />

em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,<br />

destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João<br />

Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio<br />

de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,<br />

mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa<br />

Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio<br />

Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo<br />

(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José<br />

manteve contato com importantes compositores italianos da<br />

época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò<br />

Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa,<br />

tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras<br />

religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.<br />

“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,<br />

à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,<br />

iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos<br />

principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles<br />

e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do<br />

compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela<br />

Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.<br />

Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também<br />

serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais<br />

importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do<br />

século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.<br />

“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação<br />

entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,<br />

nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,<br />

setembro de 1990, p. 662-669).<br />

11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808<br />

pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a<br />

capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.<br />

12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma<br />

biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /<br />

<strong>Departamento</strong> Nacional do Livro, 1997, p. 67.<br />

13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da<br />

Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra<br />

à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores<br />

brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam<br />

na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,<br />

músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua<br />

glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra<br />

na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de<br />

real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de<br />

Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808<br />

e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um<br />

DISCOGRAFIA<br />

OFFICIUM 1816<br />

Camerata Novo Horizonte de São Paulo<br />

Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil<br />

LAUDATE DOMINUM<br />

DOMINE JESU<br />

TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS<br />

TE DEUM (1799?)<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil<br />

TE DEUM (1801)<br />

Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />

Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações<br />

Musicais, Vol.II - Brasil<br />

MOTETOS PARA SEMANA SANTA<br />

CALÍOPE<br />

Direção: Júlio Moretzohn<br />

CALÍOPE<br />

MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL<br />

LAUDATE DOMINUM<br />

DIES SANCTIFICATUS<br />

JUSTUS CUM CECIDERIT<br />

LAUDATE PUERI<br />

Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França<br />

orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a<br />

abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por<br />

cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.<br />

Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre<br />

José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa<br />

palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante<br />

os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o<br />

Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou<br />

reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.<br />

Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não<br />

afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que<br />

um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em<br />

Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o<br />

autor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atração<br />

segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,<br />

de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo<br />

plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma<br />

injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.<br />

14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um<br />

estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:<br />

Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth<br />

Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação <strong>Cultural</strong><br />

de Curitiba, 1999, p. 397.<br />

RICARDO BERNARDES<br />

Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />

Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />

45


A MODINHA<br />

E O LUNDU<br />

NO BRASIL<br />

Com crescimento populacional que vinha se acentuando<br />

46<br />

As primeiras manifestações da<br />

música popular urbana no Brasil<br />

desde o início do século XVIII e a formação de centros<br />

urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio<br />

de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo<br />

tipo de entretenimento por parte de uma classe média<br />

emergente era condição imperiosa para a manutenção<br />

de um modelo de cultura que a metrópole, no caso<br />

Portugal, vinha impondo à colônia.<br />

Antes dos concertos públicos, que só viriam<br />

a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,<br />

1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era<br />

praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto<br />

na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;<br />

as festas profanas, tais como aniversários de cidades,<br />

membros da família real ou alguma figura importante<br />

pertencente à classe dominante; as festas religiosas,<br />

que também tinham funções sociais.<br />

EDILSON VICENTE DE LIMA<br />

Uma outra forma de entretenimento que vinha<br />

sendo praticada no Brasil desde meados do século<br />

XVIII era a música patrocinada por proprietários<br />

de posses, que mantinham orquestra formada por<br />

escravos negros especialmente treinados para<br />

executarem os mais diversos instrumentos (violinos,<br />

viola, teclado, charamelas, dentre outros).<br />

As músicas que interpretavam eram os sucessos<br />

europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).<br />

Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados<br />

e para convidados especiais.<br />

Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.<br />

1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.<br />

Na Officina Nunesiana.<br />

Anno 1798.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS


48<br />

Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos<br />

XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por<br />

conseguinte, de divulgação da música cultivada pela<br />

classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde<br />

músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,<br />

tocando ou cantando suas peças preferidas.<br />

Era também a oportunidade para as moças das finas<br />

famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua<br />

encantadora voz acompanhada pela delicadeza<br />

do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).<br />

Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,<br />

pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos<br />

europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez<br />

e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou<br />

a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos<br />

ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças<br />

públicas. Desta forma, sem querer adentrar<br />

as discussões sociológicas quanto às condições sociais<br />

das diversas camadas que residiam no Brasil<br />

em meados do século XVIII, ainda que altamente<br />

europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo<br />

seu próprio caminho musical à medida que as vilas<br />

se desenvolviam.<br />

É nesse ambiente e condições sociais que, nos<br />

últimos anos do século XVIII, surge a modinha,<br />

um tipo especial de canção que será cultivada tanto em<br />

Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de<br />

canção lírica, singela e de duração reduzida, composta<br />

para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra<br />

ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais<br />

abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse,<br />

pouco a pouco, um veículo para a expressividade<br />

musical, tanto portuguesa quanto brasileira.<br />

As discussões pela definição da paternidade da<br />

modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua<br />

origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas<br />

pátrias como filha legítima. Mais do que o local<br />

de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma<br />

determinada nação que definem uma nacionalidade.<br />

Porém, a origem da modinha está intimamente<br />

relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,<br />

que em meados do século XVIII, designava,<br />

genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada<br />

nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas<br />

Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão<br />

de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,<br />

de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas<br />

acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em<br />

Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito<br />

praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).<br />

Ao absorver dessa última as características formais<br />

e melódicas, a modinha se configura de maneira muito<br />

rica, não assumindo uma forma específica.<br />

Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais<br />

singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.<br />

Mário de Andrade, no texto introdutório de sua<br />

antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,<br />

defende que o diminutivo “modinha” está intimamente<br />

relacionado com as características “acarinhantes” tão<br />

presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe<br />

Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta<br />

característica, por sua vez, é descrita com muita graça<br />

no refrão da modinha “Quando a gente está com<br />

a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou<br />

em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no<br />

Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta


doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que<br />

vi me fazem babar”.<br />

No final do setecentos, literatos e cronistas<br />

portugueses diferenciavam a modinha portuguesa<br />

da brasileira e atribuíam a esta características próprias<br />

advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador<br />

português Manuel Morais descreve algumas delas:<br />

melodia ondulante, cromatismos melódicos<br />

e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos<br />

acrescentar: melodias entrecortadas e compostas<br />

de motivos sincopados, ora em retardo, ora em<br />

antecipação, abuso de cadências femininas, porém,<br />

sempre primando por uma certa delicadeza<br />

(Lima, 2001).<br />

O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu<br />

pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,<br />

que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa<br />

(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que<br />

considera característicos do estilo brasileiro<br />

e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois<br />

poemas utilizados nas modinhas desta coleção como<br />

sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens<br />

errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,<br />

também conhecido pelo nome árcade de Lereno<br />

Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio<br />

improvisador e, naturalmente, tangia sua própria<br />

viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu<br />

no último quartel do século XVIII até sua morte.<br />

Tornou-se muito popular na corte por sua atuação<br />

como poeta e cantor de modinhas.<br />

Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea<br />

de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas<br />

e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações<br />

em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.<br />

Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa<br />

utilizou em seus poemas e que muito se assemelham<br />

ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito<br />

Modinhas do Brasil acima citado: neologismos<br />

afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além<br />

de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;<br />

também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento<br />

que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas<br />

nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular<br />

praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande<br />

sucesso no período em que viveu na corte onde era<br />

muito comum apresentar-se acompanhado por sua<br />

viola e cantando modinhas.<br />

Com base na análise poético-musical efetuada no<br />

manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas<br />

Barbosa, Béhague sugere que, se não todas<br />

as modinhas da coleção, grande parte delas é de<br />

Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características<br />

musicais consideradas brasileiras presentes em muitas<br />

modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase<br />

sincopada, que no caso dessas peças, aparece<br />

totalmente incorporada ao estilo musical, indicando<br />

uma prática adquirida naturalmente, ou seja,<br />

pela convivência, e não pelo resultado de estudos<br />

técnico-analíticos.<br />

No estágio em que se encontram as pesquisas<br />

sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto<br />

em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos<br />

Caldas Barbosa musicados por compositores de<br />

renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),<br />

compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil<br />

em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;<br />

e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico<br />

português de renome em Lisboa no final do século<br />

XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas<br />

modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura<br />

do compositor da melodia, porém é muito provável<br />

que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,<br />

e por isso não tivesse o hábito de assinar suas<br />

composições, pois consta que não era iniciado<br />

nos cânones musicais (Sandroni, 2001).<br />

Fato é que, na documentação pesquisada até<br />

o presente momento, há uma grande quantidade<br />

de modinhas que se destacam por possuir uma<br />

musicalidade muito própria: melodias sinuosas de<br />

poucos compassos e compostas por pequenos motivos,<br />

a presença da síncopa melódica, o acompanhamento<br />

em arpejos de quatro colcheias, parafraseando<br />

as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto<br />

nestas características pois elas serão associadas<br />

ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros<br />

como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).<br />

Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil<br />

é de fundamental importância, pois, das trinta<br />

49


50<br />

Domingos Caldas Barbosa.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />

modinhas que compõem a coleção, várias trazem<br />

marcadamente estas características (Lima, 2001).<br />

Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira<br />

se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,<br />

com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida<br />

pelos portugueses e todas as influências italianas<br />

incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,<br />

certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta<br />

em várias modinhas desse manuscrito, associada<br />

ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere<br />

a elas um caráter muito particular, antecipando em<br />

aproximadamente um século as características musicais<br />

que vão ser associadas ao choro, ao maxixe<br />

e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.<br />

A partir dessas afirmações, podemos concluir que,<br />

apesar de nossa dependência política, certas<br />

características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,<br />

inclusive por portugueses já no último quartel do<br />

setecentos, apontam para um direcionamento próprio,<br />

pelo menos no que tange à produção musical.<br />

Neste momento não podemos deixar de falar<br />

do lundu, dança popular brasileira introduzida<br />

no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,<br />

muito popular em meados do século XVIII (Andrade,<br />

1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança<br />

já como um resultado da confluência de elementos<br />

da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada<br />

por negros e mestiços no decorrer do século XVIII<br />

e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito<br />

por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores<br />

poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,<br />

atestando ainda mais a sua popularidade na época.<br />

O lundu era dançado, tendo como<br />

acompanhamento o batuque dos negros e<br />

instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se<br />

popular por seus elementos coreográficos: a famosa<br />

umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos<br />

das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão<br />

associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).<br />

A convivência entre negros livres e cativos, a classe<br />

média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos<br />

emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da<br />

modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez<br />

com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do<br />

batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas<br />

musicais da recatada modinha, dando origem ao<br />

lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas<br />

modinhas quase lundus, como destaca Mozart de<br />

Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha<br />

e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo<br />

da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos<br />

da cultura da classe média européia e da cultura<br />

popular afro-brasileira.<br />

É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,<br />

já no século XVIII, em espetáculos para divertir<br />

cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil<br />

quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,<br />

apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam<br />

alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,<br />

mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,<br />

e, certamente, influenciou músicos e poetas que não<br />

poderiam ficar imunes aos seus feitiços.<br />

Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,<br />

doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça


para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário<br />

simples, predominância da tonalidade maior, linha<br />

melódica sincopada e geralmente composta por<br />

fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com<br />

relação ao texto, há predominância do uso da quadra<br />

com versos em redondilha maior e uso de refrão<br />

(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua<br />

amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência<br />

para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).<br />

No século XIX, encontramos lundus estilizados,<br />

escritos em compasso binário composto, antecipando,<br />

ou já dentro de uma tradição romântica.<br />

Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já<br />

autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se<br />

verdadeiros meios da expressividade musical tanto<br />

popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos<br />

como José Maurício e Marcos Portugal; também por<br />

Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-<br />

Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras<br />

décadas do século XX. Na vertente popular, serviram<br />

de suporte para músicos como Xisto Bahia<br />

e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,<br />

de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,<br />

incorporaram-se ao repertório de espetáculos<br />

populares e serviram de crônicas à sociedade<br />

de então, como no famoso lundu Lá no largo da<br />

sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte:<br />

Itatiania, 1989.<br />

________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,<br />

1980.<br />

ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:<br />

Ricordi Brasileira, 1963<br />

BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:<br />

two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,<br />

Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,<br />

1968.<br />

KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início<br />

do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.<br />

_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular<br />

DISCOGRAFIA<br />

MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.<br />

CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989<br />

COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,<br />

Américantiga, 2003<br />

MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d<br />

MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d<br />

MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997<br />

<strong>MÚSICA</strong> DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994<br />

1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d<br />

HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> (II). São Paulo: Eldorado, s/d<br />

NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d<br />

VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d<br />

20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.<br />

São Paulo: BIEM, 1998<br />

e aos desmandos econômicos da época.<br />

Finalizando, não obstante a origem aristocrática<br />

da modinha, praticada, inicialmente, nos salões<br />

cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,<br />

aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,<br />

foi absorvendo características musicais e poéticas<br />

das manifestações advindas das classes<br />

econômicas menos privilegiadas, irmanando-se<br />

ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse<br />

caminho rumo a aceitação de todos, ambos,<br />

a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último<br />

passo para diluir-se na alma!<br />

brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.<br />

LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.<br />

MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa<br />

Nacional – Casa da Moeda, 2000.<br />

NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa<br />

Nacional – Casa da Moeda, 1991.<br />

NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.<br />

Lisboa: Movieplay, 1994.<br />

SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio<br />

de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:<br />

Ed. UFRJ 2001.<br />

TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:<br />

Art. Editora, 1991.<br />

EDILSON VICENTE DE LIMA<br />

Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.<br />

Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.<br />

51


CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />

Fora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de<br />

54<br />

Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um<br />

estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.<br />

Apesar da existência de uma série de livros, biografias<br />

e citações em diversas enciclopédias universais, o que<br />

se tem visto e lido é um amontoado de informações<br />

baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas<br />

mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante<br />

de equívocos que vão se sedimentando...<br />

Esses equívocos vão desde a data do nascimento<br />

de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas<br />

informações se baseiam no livro escrito por sua filha,<br />

Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,<br />

descreve seu pai como de origem espanhola,<br />

descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...<br />

Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não<br />

com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por<br />

sua vez era filho de português com negra. A mãe<br />

de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era<br />

filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,<br />

pois, em sua descendência.<br />

Outro equívoco que se perpetua e continua sendo<br />

divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador<br />

de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.<br />

Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande<br />

LUIZ AGUIAR<br />

veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração<br />

artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em<br />

seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava<br />

Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua<br />

família. Neste particular é bastante conhecida<br />

a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira<br />

grande emoção que a música de Verdi provocou<br />

no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história<br />

de seu primeiro contato com um “spartito” de<br />

Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após<br />

a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição<br />

da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para<br />

banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,<br />

revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,<br />

em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,<br />

compõe para os instrumentos que dispunha na Banda<br />

em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do<br />

próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em<br />

seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale<br />

amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte<br />

placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.<br />

Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em<br />

compasso ternário, quase uma valsa.<br />

Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos<br />

Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos


esquecer – isto é muito importante – da influência<br />

francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito<br />

especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência<br />

da “Grand Opera”.<br />

Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte<br />

de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam<br />

falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel<br />

canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.<br />

Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da<br />

cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!<br />

Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro<br />

Alla Scala”:<br />

02/janeiro – I Lombardi – Verdi<br />

19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota<br />

02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi<br />

23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer<br />

(em italiano, bem se vê)<br />

10/março – Le Aquille Romane – Chélard<br />

26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella<br />

31/dezembro – Norma – Bellini<br />

A temporada prossegue pelo ano de 1865 com<br />

Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –<br />

Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),<br />

do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio<br />

Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,<br />

somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874<br />

(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,<br />

Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava<br />

suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon<br />

Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo<br />

tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta<br />

à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.<br />

Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar<br />

escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que<br />

a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.<br />

Paralelamente a este momento, a este auto-exílio<br />

de quase 17 anos, eclode o movimento dos<br />

“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um<br />

“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático<br />

ao movimento de renovação da ópera e das artes em<br />

geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,<br />

Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa<br />

Carlos Gomes.<br />

Figurinos da ópera Lo Schiavo.<br />

Assinado por Luigi Bartezago.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />

– DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

55


Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.<br />

É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,<br />

com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade<br />

melódica, harmônica e rítmica, aos compositores<br />

contemporâneos daquele movimento.<br />

Na verdade, a noite de 19 de março de 1870<br />

(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca<br />

uma época na história da ópera. O autor, jovem<br />

maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.<br />

O libreto, baseado em romance de outro brasileiro<br />

desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor<br />

de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,<br />

presença de um cacique aimoré, antropófago e que,<br />

também, se apaixona pela moça branca, filha de um<br />

fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo<br />

bastante estranho; e o 3 º ato – Campo dos Aimorés –<br />

com suas danças, evocações a Tupã, utilização de<br />

instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...<br />

Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava<br />

novos caminhos: tendência à melodia infinita;<br />

abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,<br />

quartetos, alternando com recitativos; música mais<br />

adequada ao texto, num desenvolvimento natural<br />

e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,<br />

uma forte tendência na criação de situações dramáticas<br />

com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes<br />

de uma determinada personagem ou situação; temas<br />

musicais com grandes saltos melódicos ascendentes<br />

e descendentes realçando uma certa virilidade em seus<br />

meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada<br />

ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de<br />

quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta<br />

aumentada e sétima diminuída, modulando com<br />

elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas<br />

o grande progresso, rumo à personalíssima<br />

caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos<br />

Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira<br />

obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet<br />

(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),<br />

a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova<br />

tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,<br />

Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio<br />

de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />

Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem<br />

uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em<br />

dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para<br />

a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo<br />

que havia se evidenciado, de forma discreta,<br />

em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com<br />

o enriquecimento de novas combinações tímbricas<br />

na orquestra, resultando uma instrumentação plena<br />

de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente<br />

por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações<br />

e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir<br />

da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos<br />

mais belos momentos líricos de toda a história da<br />

ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,<br />

conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.<br />

É muito importante realçar que Carlos Gomes não<br />

é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam<br />

ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,<br />

impropriamente chamada de protofonia. Por que não<br />

nos referimos a esta abertura com o seu título original –<br />

sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como<br />

Carlos Gomes.<br />

Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA<br />

57


58<br />

era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio<br />

primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma<br />

outra história.<br />

Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos<br />

Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?<br />

com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de<br />

mim distante...”). Mas param por aí.<br />

Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,<br />

a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas<br />

sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva<br />

confundir conscientização com engajamento.<br />

Monarquista convicto e declarado, grande admirador<br />

DISCOGRAFIA<br />

IL GUARANY<br />

Plácido Domingo<br />

Verónica Villarroel<br />

Carlos Álvarez<br />

Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn<br />

Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling<br />

Sony SK66273 / 2 CDs<br />

COLOMBO<br />

Inacio de Nonno<br />

Carol Mc Davit<br />

Fernando Portari<br />

Maurício Luz<br />

Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar<br />

UFRJ MUSICA - emufrj - 004<br />

ABERTURAS E PRELÚDIOS<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98<br />

SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”<br />

Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112<br />

Videos VHS e CDs<br />

FOSCA<br />

Gail Gilmore<br />

Krassimira Stoyanova<br />

Roumen Doykov<br />

Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />

Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />

FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997<br />

MARIA TUDOR<br />

Eliane Coelho<br />

Kostadin Andreev<br />

Elena Chavdarova-Isa<br />

Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />

Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />

FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998<br />

de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,<br />

a favor da causa abolicionista. Possuidor de um<br />

temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista<br />

(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.<br />

Jamais um mesquinho.<br />

Romântico por natureza, mas suas óperas estão<br />

apoiadas no realismo, na corrente naturalista que<br />

desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).<br />

As personagens das óperas de Carlos Gomes são<br />

humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,<br />

mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção<br />

a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)<br />

e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),<br />

de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de<br />

“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não<br />

era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,<br />

volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental.<br />

É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se<br />

banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,<br />

em última análise, é um quarteto de cordas com<br />

o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma<br />

sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas<br />

é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu<br />

último movimento – “vivace” leva o sub-título de<br />

Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.<br />

O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,<br />

sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito<br />

Batista Filho chega a afirmar que “genialidade<br />

é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o<br />

desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:<br />

De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa<br />

fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.<br />

De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância<br />

considerável por terra e mar. A chegada na corte<br />

imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro<br />

II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino<br />

Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial<br />

de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).<br />

Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...<br />

As duas primeiras composições importantes,<br />

as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora<br />

do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março<br />

e 16 de agosto, respectivamente.<br />

Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em


Funerais do<br />

maestro Carlos<br />

Gomes.<br />

Fotografia<br />

assinada por<br />

Fidanza. 1896.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />

NACIONAL – DIVISÃO DE<br />

<strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO<br />

SONORO<br />

Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,<br />

que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:<br />

1) Óperas completas, estreadas e muitas<br />

vezes apresentadas: 9<br />

a) em português – A Noite do Castelo –<br />

1861<br />

Joana de Flandres – 1863<br />

b) em italiano – Il Guarany –1870<br />

Fosca –1873<br />

Salvator Rosa –1874<br />

Maria Tudor –1879<br />

Lo Schiavo –1889<br />

Condor –1891<br />

Colombo –1892 (na verdade um poema<br />

vocal – sinfônico mas claramente<br />

pensado como ópera)<br />

2) Revistas musicais (vizinhas das<br />

operetas), estreadas e inúmeras vezes<br />

encenadas: 2<br />

Se sa minga –1867<br />

Nella luna –1868<br />

3) música vocal de câmara: 47 (5 em<br />

português, 2 em francês, 1 em dialeto<br />

veneziano e 39 em italiano)<br />

4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)<br />

a) São Sebastião – 1856<br />

b) Nossa Senhora da Conceição – 1859<br />

c) Sem título específico – 1852<br />

5) Partes avulsas de missas (inacabadas<br />

(?) - perdidas as demais partes (?)<br />

a) Kyrie – 1865<br />

b) Qui tollis – ?<br />

c) Credo – ?<br />

6) Música instrumental de câmara: 4<br />

a) Aria para clarineta e piano – 1857<br />

b) Al chiaro di luna (para bandolim ou<br />

violino e piano) – ?<br />

c) Sonata para quinteto de cordas<br />

(Burrico de Pau) – 1894<br />

d) Variações para bandolim (Vem cá,<br />

Bitu) – ?<br />

7) Música para piano: 36 (32 para piono<br />

solo e 4 para piano a 4 mãos)<br />

8) Cantatas para coro masculino: 2<br />

a) La fanciulla delle Asturie – 1866<br />

(coro e piano)<br />

b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)<br />

9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4<br />

a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui<br />

nesta cidade) – 1855<br />

b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,<br />

veja lá) – ? (na verdade um dueto)<br />

c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni<br />

rumor) 1872<br />

d) Mama dice (anteriormente composta<br />

para canto e piano – 1882<br />

e em 1892 orquestrada pelo próprio<br />

compositor)<br />

10) Coro “a capella” : 6<br />

a) Fugas tonais – 1866<br />

b) Fugas reais – 1866<br />

11) Música orquestral: 3<br />

a) Variações sobre o tema do romance<br />

Alta Noite – 1859<br />

b) Lalalayu (anteriormente compsota<br />

para piano – 1866 e em 1867<br />

português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres<br />

(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)<br />

a Milão (1864), passando por Portugal e França, em<br />

busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe<br />

trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de<br />

luminosidade crescente, com momentos de escuridão,<br />

depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,<br />

certamente, constitui uma página das mais belas<br />

da História do Brasil.<br />

LUIZ AGUIAR<br />

Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.<br />

orquestrada pelo prórpio autor)<br />

c) Eva (valsa) – 1871<br />

12) Música para banda: 4<br />

a) Parada e dobrado sobre motivo da<br />

ópera “O Trovador”- 1856<br />

b) “L’Oriuolo” (galope) composta em<br />

1888, posteriormente instrumentada<br />

para banda por Giuseppe Mariani –<br />

1891<br />

c) Ao Ceará Livre – 1884<br />

d) Cruzador Escola “Benjamin<br />

Constant” – 1893<br />

13) Música para coro e banda: 2<br />

a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)<br />

– 1883<br />

b) A Camões ( O teu dia irromperá da<br />

história) – 1880<br />

14) Música para coro, banda e orquestra: 3<br />

a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso<br />

suol) – 1876<br />

b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884<br />

c) Coro triunfal – também conhecido<br />

como Hino Progresso (Pela estrada de<br />

flores repleta) – 1885<br />

15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?<br />

16) Óperas inacabadas: 2<br />

a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −<br />

1871 (2 atos completos somente para<br />

canto e piano)<br />

b) Morena – 1887 (idem)<br />

59


CHOPIN CARIOCA<br />

Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento<br />

técnico da música de concerto com elementos populares<br />

Todas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram<br />

60<br />

escritas para piano. Porém, ele só foi ter um<br />

instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos<br />

de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.<br />

Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos<br />

ou de lojas de música onde trabalhava.<br />

Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,<br />

em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um<br />

despachante aduaneiro e de uma pianista amadora,<br />

de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelo<br />

virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,<br />

ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma<br />

queda que provocou hemorragia no ouvido direito,<br />

causando problemas auditivos que o acompanhariam<br />

pelo resto da vida.<br />

Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,<br />

a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande<br />

interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica<br />

da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,<br />

Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção<br />

do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar<br />

ALEXANDRE PAVAN<br />

os estudos pianísticos, mas por falta de recursos<br />

o projeto foi cancelado.<br />

A falta de dinheiro foi constante na vida de<br />

Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias<br />

mais virtuosas que suas peças musicais para poder<br />

sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava<br />

em clubes que detestava e acabou arriscando até<br />

mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser<br />

nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi<br />

efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.<br />

Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth<br />

continuava compondo. Mesmo sem o merecido<br />

reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana<br />

da música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmica<br />

incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,<br />

sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande<br />

variedade de fórmulas, empregou nas suas<br />

composições uma ciência rítmica, uma beleza<br />

harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica<br />

que o tornam de fato o expoente máximo da<br />

música popular brasileira e um autêntico precursor<br />

Ernesto Nazareth em<br />

São Paulo em 1926.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />

NACIONAL – DIVISÃO<br />

DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO


da nossa música erudita de caráter<br />

tenha sido apresentado aos ilustres<br />

nacional”, escreveu o musicólogo<br />

autores brasileiros da época,<br />

Brasílio Itiberê.<br />

Milhaud surpreendeu-se mais com<br />

Essa característica da obra<br />

os sons da rua do que com aqueles<br />

de Ernesto Nazareth trouxe mais<br />

das salas de concerto. “Seria de<br />

problemas do que dividendos ao<br />

desejar que os músicos brasileiros<br />

autor: o povo não gostava muito<br />

de suas composições, porque não<br />

eram dançáveis, e os estudiosos<br />

Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.<br />

Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

compreendessem a importância<br />

dos compositores de tangos,<br />

de maxixes, de sambas<br />

torciam o nariz por considerarem<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

e de cateretês, como (Marcelo)<br />

as peças com pouco valor como obras de concerto. Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.<br />

Durante um bom período, garantiu o aluguel<br />

Realmente, o pianista carioca deve tê-lo<br />

como pianista da sala de espera do Cine Odeon, impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos<br />

na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam<br />

os espectadores se dirigiam ao cinema cerca<br />

aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur<br />

de uma hora antes do filme começar para ouvirem Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de<br />

os instrumentistas tocarem. No Odeon, também<br />

mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais<br />

se apresentava a pequena orquestra do maestro<br />

uma vez não lucrou nada com a história.<br />

Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos<br />

Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve<br />

era violoncelista.<br />

o problema de audição agravado, mas, por motivos<br />

Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se<br />

peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre<br />

de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe<br />

e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,<br />

choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios<br />

da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos<br />

classificadas desta forma nada têm a ver com a música de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,<br />

portenha. Era apenas uma denominação mais<br />

escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.<br />

aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades Foi encontrado morto – por afogamento – próximo<br />

de sua obra com os gêneros populares – como<br />

o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando<br />

a uma cachoeira.<br />

as chances de ela ser editada. Alguns tangos de<br />

DISCOGRAFIA<br />

Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer SEMPRE NAZARETH (Kuarup),<br />

que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo<br />

de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)<br />

a praxe da época, quando as editoras compravam<br />

ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres<br />

as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro<br />

das vendas para os compositores.<br />

Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana<br />

(violino) e Sebastião Vianna (flauta)<br />

ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES<br />

Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão<br />

(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)<br />

da escultora Camille Claudel) transferiu-se para<br />

RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),<br />

a embaixada francesa no Brasil e trouxe como<br />

de Radamés e Aída Gnattali (piano)<br />

acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora Inclui obras de Radamés Ganattali<br />

ALEXANDRE PAVAN<br />

Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.<br />

61


62<br />

O Modernismo


Musical Brasileiro<br />

Oobjetivo deste artigo é retratar a geração<br />

de compositores brasileiros ativos durante a Primeira<br />

República até o limiar da década de 1920.<br />

Tradicionalmente considerados românticos − como<br />

Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald<br />

(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,<br />

alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo<br />

musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha<br />

(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto<br />

Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-<br />

1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de<br />

referência: a Semana de Arte Moderna. Esse<br />

acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17<br />

de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São<br />

Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como<br />

evento que inaugura simbolicamente o modernismo”.<br />

(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,<br />

a (des)qualificação desses compositores se dava pela<br />

maior ou menor proximidade de suas obras com<br />

os ideais desse marco zero, dividindo os períodos<br />

históricos em antes e depois da Semana.<br />

Os critérios utilizados para as definições<br />

de modernidade foram “a ênfase na atualização estética<br />

e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso<br />

modo pelo romantismo, na música, e pelo<br />

parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19)<br />

e no modernismo nacionalista.<br />

Com base nesses critérios, os escritos tratavam<br />

de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista<br />

e o ultrapassado, entre o independente e o<br />

Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno<br />

por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.<br />

COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO<br />

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />

subserviente. Em suma, entre o nativo original<br />

e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.<br />

De acordo com essa concepção, os artistas<br />

da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir<br />

mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,<br />

levando a frente um projeto estético e ideológico cujo<br />

objetivo era transfigurar a identidade e o centro<br />

ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como<br />

o centro irradiador.<br />

Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),<br />

um dos ideólogos e porta-voz do movimento<br />

modernista de 1922:<br />

“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,<br />

entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo<br />

continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.<br />

(Picchia apud Brito, 1971; 171)<br />

Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-<br />

1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de<br />

conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da<br />

libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).<br />

Como resultado, aos compositores da geração<br />

anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,<br />

tributários a uma estética que não mais representaria<br />

a sociedade de então, colaboradores na perpetuação<br />

de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,<br />

alguns mereceram a qualificação de precursores, já que<br />

não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos<br />

demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na<br />

melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.<br />

Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas<br />

e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino<br />

bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram<br />

a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”<br />

(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.<br />

63


64<br />

No entanto, por mais significativos e escandalosos<br />

que tenham sido os resultados obtidos no evento<br />

paulista, os programas musicais apresentados não<br />

se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se<br />

manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria<br />

“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)<br />

e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de<br />

a própria formação desses modernistas estar vinculada<br />

ao “passado”.<br />

Em outras palavras, os resultados apresentados<br />

durante a Semana de 22 não se deram por um processo<br />

de “geração espontânea”, e sim já eram gestados<br />

e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê<br />

da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,<br />

Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre<br />

outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram<br />

os “bandeirantes” que abriram o caminho para<br />

os artistas da Semana, que sobre seus ombros<br />

Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão<br />

Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,<br />

1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.<br />

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e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.<br />

Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana<br />

de 22 manifestavam uma “preocupação febril<br />

de atualização com referência às vanguardas européias<br />

e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;<br />

66), de onde se interpreta que um compositor como<br />

Nepomuceno estava comprometido com a tradição,<br />

cabendo aos “novos modernos” os louros<br />

da atualização e do progresso.<br />

Tal afirmação pode ser contestada por artigo<br />

de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio<br />

de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicale<br />

e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,<br />

Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham<br />

a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada<br />

com partituras de música contemporânea. Entretanto,<br />

cita somente os compositores e associações francesas,<br />

como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,<br />

a Société Musical Independante e a Schola Cantorum,<br />

entre outros.<br />

A atualização do meio musical carioca era tal que,<br />

ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo<br />

e Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satie<br />

que eu conhecia até então muito imperfeitamente<br />

e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente<br />

bem toda a música contemporânea” (Milhaud apud<br />

Wisnik, 1977; 40).<br />

Dois outros relatos se referem a essa ênfase<br />

contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se<br />

da série de 26 concertos realizados durante a Exposição<br />

Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da<br />

abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.<br />

Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se<br />

dizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial no<br />

século XX” (Azevedo, 1956; 171).<br />

De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve<br />

um momento em que as circunstâncias permitiram<br />

a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos<br />

sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos<br />

nossos compositores e uma série luminosa da mais<br />

moderna literatura musical estrangeira”.<br />

(Barbosa, 1940; 28).<br />

A abrangência do repertório apresentado<br />

demonstrou que a relação de compositores estrangeiros


dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia<br />

aos franceses, como descrito por Milhaud alguns<br />

anos mais tarde, mas também incluía russos<br />

e alemães, além de brasileiros.<br />

Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas<br />

(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander<br />

Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),<br />

Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.<br />

Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna<br />

(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto<br />

Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),<br />

Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),<br />

Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.<br />

Com base na relação de compositores<br />

apresentados durante os concertos da Exposição<br />

Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento<br />

onde a intolerância estética não teria espaço. Assim,<br />

Carlos Gomes, compositor representativo do período<br />

imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava<br />

ao lado de republicanos românticos e modernos,<br />

adeptos das escolas germânica e francesa. Daí<br />

vislumbra-se, também, que a formação do público<br />

de concerto estava entre os seus objetivos.<br />

Reforça essa conclusão a respeito da atualização<br />

do modo de recepção o relato do pianista português<br />

José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de<br />

Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos<br />

por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram<br />

“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)<br />

de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela<br />

música [...]”. (Melo, 1947; 290).<br />

A modernização pretendida no meio musical<br />

carioca se refletiu também na formação musical. Coube<br />

a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das<br />

principais escolas de música européias, culminando<br />

com a publicação do relatório Organização dos<br />

Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo<br />

de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu<br />

pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.<br />

A qualidade e o grau de seriedade de seus professores<br />

e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da<br />

Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos<br />

artísticos de que dispõe o Rio é que a associação<br />

[de Concertos Populares] não tem dificuldade<br />

Luciano Gallet.<br />

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nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.<br />

(Melo, 1947; 291).<br />

Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns<br />

exemplos da música de Alberto Nepomuceno<br />

mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência<br />

modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original<br />

op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,<br />

escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros<br />

procedimentos modernos. Também seguem a mesma<br />

trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções<br />

Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista<br />

Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle).<br />

Merecem citação à parte as considerações<br />

a respeito do Trio em fá sustenido menor,<br />

de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que<br />

“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino<br />

e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino<br />

Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal<br />

do Commercio o Trio em fá sustenido menor de<br />

Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical<br />

e saudada por Luiz de Castro como o produto<br />

de um compositor que se tornou completamente moderno”<br />

[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).<br />

Pereira ainda relata o fato de que os compositores<br />

franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux<br />

(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,<br />

compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,<br />

ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno<br />

declarando Vous avez débuté par un coup de maître!<br />

(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de<br />

65


66<br />

Nepomuceno, Messager declarou<br />

a música brasileira da escola alemã,<br />

que a obra colocava o autor entre os<br />

considerada moderna, afastando-a do<br />

melhores da música moderna (Pereira,<br />

lirismo excessivo da escola italiana.<br />

op. cit.; 305). Darius Milhaud<br />

Assim, Brahms e Wagner foram<br />

concordava com essas considerações<br />

modelos em detrimento de Rossini<br />

e estava desejoso da publicação do<br />

e Verdi. No entanto, os programas<br />

Trio para levá-lo para a Europa<br />

musicais se mantiveram ecléticos.<br />

(Pereira, op. cit.; 308).<br />

Em um futuro não distante, Debussy,<br />

Após essas considerações, pode-<br />

Fauré, Sant-Säens, entre outros,<br />

se questionar a pretensão<br />

seriam somados a esse grupo.<br />

atualizadora, anti-passadista, dos<br />

As trocas com a Europa também<br />

“novos modernos”. A geração de<br />

moldaram o crescente nacionalismo<br />

compositores da Primeira República<br />

Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos<br />

já se ocupava em manter-se<br />

atualizada, já que as trocas com<br />

Edição da Sociedade Brasileira<br />

de Musicologia. São Paulo.<br />

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perder de vista que, na época, a visão<br />

européia sobre o Brasil afirmava<br />

a Europa eram freqüentes, além<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

a “impossibilidade de uma nação<br />

de a formação de muitos desses compositores<br />

civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.<br />

brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural<br />

na maioria das vezes, escolas progressistas.<br />

que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus<br />

Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto,<br />

compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes<br />

Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas<br />

Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.<br />

e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos<br />

a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. com roupagem européia. O exemplo clássico são<br />

(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode<br />

as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos<br />

ser encontrada no artigo Compositores românticos<br />

Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da música<br />

brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). popular urbana, eventualmente da popular rural<br />

Para se ter em conta o espírito<br />

ou folclórica, representada pela Série<br />

desbravador desses compositores, vale<br />

Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,<br />

lembrar que até por volta de 1880,<br />

de Alberto Nepomuceno e pelos<br />

ópera e bel canto eram sinônimos<br />

Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto<br />

de música no Brasil – e no restante<br />

Nazareth. Um grande passo nesse<br />

da América. Foi a partir dessa década<br />

caminho nacionalista foi a odisséia<br />

que se deu efetivamente a introdução<br />

nepomucena de escrever canções<br />

da música sinfônica e camerística nos<br />

sobre poemas em português, feito que<br />

eventos musicais brasileiros, tendo<br />

ainda sequer havia se concretizado em<br />

Miguez, Oswald e Nepomuceno<br />

Portugal, segundo Viana da Mota.<br />

como grandes divulgadores.<br />

Continuando a migração dos pólos,<br />

As mudanças de meios de<br />

chega-se ao extremo oposto, onde<br />

expressão e gosto pretendidos não<br />

a música brasileira se vestiria de<br />

visaram a substituição da ópera pela Leopoldo Miguez. Desenho assinado acordo com a sua sonoridade nativa,<br />

música sinfônica ou de câmera.<br />

Tinham como objetivo aproximar<br />

por Henrique Bernardelli em 1903.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

independente da citação folclórica.<br />

Foi um dos caminhos trilhados por


Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para<br />

orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.<br />

Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se<br />

coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão<br />

comum nas categorizações. São simplesmente visões<br />

distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido<br />

pelas dinâmicas sociais de cada período histórico.<br />

Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,<br />

para os compositores do período aqui tratado,<br />

apresentarem-se plenas de preconceito e presas<br />

ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.<br />

Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à<br />

Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior<br />

intimidade com a música brasileira mostra-se<br />

não procedente.<br />

Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão<br />

parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,<br />

desajeitadas as realizações musicais desses<br />

compositores brasileiros, mais acadêmicas do que<br />

revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam<br />

perturbadoramente, eram objeto de discussão<br />

e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através<br />

delas, que novas perspectivas puderam ser abertas<br />

e processos mais amplos para a expressão musical<br />

foram conquistados.<br />

Portanto, o período da Primeira República, mostra-<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil.<br />

Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.<br />

BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira<br />

de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.<br />

BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:<br />

antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1971.<br />

CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da<br />

Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.<br />

MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniais<br />

até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa<br />

Nacional, 1947.<br />

PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:<br />

DISCOGRAFIA<br />

NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,<br />

PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995<br />

Sony Music Entertainment<br />

NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE <strong>BRASILEIRA</strong>. Orquestra Sinfônica<br />

Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981<br />

MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −<br />

Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998<br />

OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL<br />

Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo<br />

Martins. FUNARTE. 1998<br />

LEVY, Alexandre − SUÍTE <strong>BRASILEIRA</strong>. Orquestra Sinfônica Brasileira/<br />

Souza Lima. Festa<br />

BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />

Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus<br />

se uma época muito rica para a música brasileira.<br />

A eterna atualização estética junto com a afirmação<br />

da identidade brasileira, pelo auto-conhecimento<br />

de suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletem<br />

um “período mágico”, onde “reside a essência do<br />

verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.<br />

(Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de<br />

Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical<br />

brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se<br />

e virou Nacionalismo Musical Brasileiro.<br />

Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-<br />

1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de<br />

Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de<br />

Janeiro, 1995.<br />

REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.<br />

5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.<br />

TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />

VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na<br />

Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/<br />

95. p.51-76<br />

WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno<br />

da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.<br />

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />

Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).<br />

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />

67


Henrique Oswald e os Românticos Brasileiros<br />

Em Busca do Tempo Perdido<br />

Talvez não haja melhor expressão do que garimpo<br />

68<br />

musical para descrever os primórdios das pesquisas<br />

musicológicas no final da década de 1940 no estado<br />

de Minas Gerais. Isto porque foi necessário muita<br />

paciência, perseverança, uma boa dose de sorte<br />

e um olhar clínico para se começar a descobrir<br />

as verdadeiras preciosidades que jaziam nos porões<br />

das cidades históricas em meio a antigos manuscritos<br />

musicais, até então considerados “papel velho, bom<br />

para queimar”.<br />

As mesmas montanhas que no século XVIII<br />

haviam presenciado a corrida do ouro – que fez<br />

florescer subitamente toda a região, produzindo uma<br />

cultura musical importante, soterrada pela ação<br />

do tempo – foram, no século XX, testemunhas de um<br />

novo rush, este mais discreto, protagonizado por<br />

musicólogos que se debruçaram sobre esse patrimônio<br />

da cultura brasileira, até então ignorado.<br />

Quase espremidos entre a produção surpreendente<br />

dos antigos mestres da música colonial mineira e os<br />

feitos merecidamente louvados de Villa-Lobos (1887-<br />

1959) e demais membros do nacionalismo musical<br />

pós-semana de 1922, encontra-se toda uma geração de<br />

autores que encarnam o romantismo brasileiro.<br />

São eles Carlos Gomes (1839-1896), Leopoldo Miguez<br />

(1850-1902), Henrique Oswald (1852-1931), Alberto<br />

Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Braga<br />

(1868-1945), para citar os mais representativos.<br />

EDUARDO MONTEIRO<br />

Diferentemente dos autores mineiros, a produção<br />

dos românticos nunca chegou a ser de fato esquecida,<br />

mas por outro lado, também não teve a sorte<br />

de ser plenamente “redescoberta” e assim repercutir<br />

com seu real valor. Parece, ao contrário, aguardar<br />

pacientemente o dia em que finalmente será<br />

reconhecida em sua magnitude. Quanto mais<br />

se estuda e conhece o conjunto da obra desses<br />

compositores, torna-se evidente sua excelência<br />

técnica e profunda inspiração.<br />

Não obstante, sua obra sofre uma espécie de<br />

preconceito latente na historiografia musical brasileira,<br />

ainda fortemente baseada na tradição fundada<br />

por Renato Almeida e Mário de Andrade. Na maior<br />

parte da literatura especializada, encontra-se uma<br />

tendência a qualificar esses autores segundo<br />

seu grau de envolvimento com a construção do mito<br />

do nacionalismo musical. Chegou-se assim, de forma<br />

velada, a uma equação simplista, na qual a importância<br />

do compositor é determinada pelo índice<br />

de características nacionais de sua obra.<br />

O distanciamento no tempo preservou os mestres<br />

mineiros desse tipo de julgamento, mas o mesmo não<br />

aconteceu com os românticos. Esses carregam até hoje<br />

o injusto fardo de serem autores supostamente<br />

influenciados em demasia pela cultura européia.<br />

O destino acabou sendo um pouco mais<br />

complacente com Alberto Nepomuceno e Carlos


Henrique Oswald. Il neige. Obra premiada no concurso promovido por “Le Figaro”:<br />

“1 er . Concours de morceaux pour piano”. 8 de novembro de 1902.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Gomes. Mesmo estando Nepomuceno, musicalmente,<br />

mais próximo do velho continente que de Villa-Lobos,<br />

este autor é freqüentemente evocado na literatura<br />

tradicional como sendo o “pai” do nacionalismo,<br />

devido à sua batalha pela valorização do canto em<br />

português. Quanto a Carlos Gomes, sua importância<br />

como operista para o Brasil jamais poderia ser negada.<br />

Felizmente, a temática indianista de Il Guarany, mesmo<br />

que cantada em italiano, forneceu elementos concretos<br />

para serem louvados pelos defensores do nacionalismo.<br />

A sorte foi mais madrasta com Leopoldo Miguez<br />

e Henrique Oswald. É comum encontrar nos livros<br />

de história da música brasileira uma censura mais ou<br />

menos explícita a estes autores em função da ausência<br />

de características nativas em suas peças. Miguez<br />

é invariavelmente acusado de wagneriano. A Oswald<br />

cabe normalmente o termo “afrancesado”.<br />

Apenas duas considerações deveriam ser<br />

necessárias para refutar este olhar preconceituoso.<br />

Inicialmente, é preciso ter consciência que embora haja<br />

um sentimento pátrio desde o século XIX que se<br />

manifesta esporadicamente na produção dos<br />

românticos, o nacionalismo musical só se organizou<br />

efetivamente como movimento em fins da década<br />

de 1920, quando esses autores ou já haviam morrido,<br />

ou composto boa parte de sua obra. Em segundo lugar,<br />

deve-se constatar que a sociedade brasileira da virada<br />

do século XX sofria de fato forte influência da cultura<br />

européia. Era portanto de se esperar que a música<br />

desses compositores refletisse essa realidade.<br />

No caso específico de Oswald, a identificação com<br />

a Europa é inerente a seu histórico de vida.<br />

O autor de Il neige!... – sua obra mais célebre, para<br />

piano solo – nasceu no Rio de Janeiro em 1852<br />

e, como boa parte dos compositores da época, era filho<br />

de europeus. A vinda de seus pais para o Brasil em<br />

69


70<br />

1850 insere-se no amplo movimento migratório<br />

verificado no século XIX. Entretanto, os Oswald nunca<br />

pretenderam trabalhar na lavoura, como era o objetivo<br />

da maior parte deste contingente. O pai, Jean-Jacques,<br />

suiço-alemão, possuía um ofício – era comerciante –<br />

e algum capital. Homem empreendedor, depois de um<br />

início difícil no Brasil, quando teve negócios<br />

malogrados e chegou mesmo, por razões ideológicas,<br />

a ser perseguido por membros da oligarquia cafeeira<br />

paulista, acabou prosperando com seu negócio de<br />

pianos na pacata São Paulo dos anos 1850-60. A mãe,<br />

Carlotta Cantagalli, uma italiana com boa formação<br />

intelectual, era uma mulher de fibra que assumiu,<br />

quando foi preciso, as despesas da casa com suas aulas<br />

de piano, francês e italiano.<br />

O retorno da família à Europa, mais<br />

especificamente a Florença, aconteceu em 1868, e teve<br />

como objetivo principal o aprimoramento musical<br />

de Oswald, que se deu junto aos excelentes mestres do<br />

DISCOGRAFIA<br />

Discos Compactos:<br />

CARDOSO, André, MONTEIRO Eduardo. “En Rêve”; “Andante<br />

con Variazioni para piano e orquestra”. In: Leopoldo Miguez e<br />

Henrique Oswald – Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />

UFRJ., Rio de Janeiro: UFRJ/Música, 2004<br />

DUARTE, Roberto Ricardo. “Elegia”. In: Música Brasileira Vol. I -<br />

Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ.. Rio de Janeiro:<br />

UFRJ, 1991<br />

KLINCK, Paul, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald.<br />

Music for violin and piano. Ghent: PKP, 1995<br />

GUIMARÃES, Maria Inês. Henrique Oswald. Piano Music. Munique:<br />

Marco Polo, 1995<br />

RUBIO, Quarteto, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –<br />

Quarteto para piano e cordas op. 26; Sonata-Fantasia op. 44;<br />

Concerto para piano e orquestra op. 10. São Paulo: Revista<br />

Concerto, Série Música de Concerto / USP / De Rode Pomp,<br />

2002<br />

Discos de vinil:<br />

DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –<br />

Obras para piano e violoncelo e piano. Rio de Janeiro: Funarte,<br />

1982<br />

FUKUDA, Elisa, DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo.<br />

Henrique Oswald – Trio em sol menor op. 9, Sonata em Mi maior<br />

op. 36. Rio de Janeiro: Funarte, 1988<br />

SILVA, Honorina. Documentos da Música Brasileira Vol. 11 - Honorina<br />

Silva interpreta Henrique Oswald. Rio de Janeiro: Funarte /<br />

Promemus, 1979<br />

Regio Istituto Musicale di Firenze, destacando-se Giuseppe<br />

Buonamici e Reginaldo Grazzini.<br />

Na Itália, Oswald casou-se com Laudomia<br />

Gasperini, teve quatro filhos e por 35 anos atuou como<br />

pianista, professor e compositor de prestígio no meio<br />

musical florentino. Mas os vínculos com a pátria jamais<br />

foram desfeitos. A partir de 1879 foi bolsista do<br />

Imperador D. Pedro II; entre 1896 e 1900 veio quatro<br />

vezes ao Brasil para realizar concertos, obtendo grande<br />

projeção; e finalmente ocupou o cargo de Chanceler<br />

no Consulado Brasileiro no Havre por um curto espaço<br />

de tempo entre 1900 e 1901.<br />

1902 é o ano que marca a grande reviravolta<br />

em sua vida. Contando 50 anos de idade, obtém<br />

o primeiro lugar em um concurso de composição<br />

organizado pelo jornal Le Figaro de Paris. No júri,<br />

ninguém menos que os ilustres compositores Gabriel<br />

Fauré e Camille Saint-Saëns, além do grande pianista<br />

Louis Diémer. Cabe a ressalva que os segundo<br />

e terceiro lugares foram atribuídos aos hoje renomados<br />

Alfredo Casella e Florent Schmitt. Essa premiação abre<br />

uma possibilidade de penetração na vida musical<br />

parisiense, a grande vitrine da época. Por outro lado,<br />

esta vitória também projeta fortemente o nome do<br />

compositor em terras brasileiras. Em conseqüência,<br />

no ano seguinte, Oswald é convidado para ser diretor<br />

do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro,<br />

a instituição musical de maior prestígio da República.<br />

O convite era irresistível e Oswald acaba por aceitá-lo.<br />

No entanto, o compositor foi hostilizado como um<br />

“estrangeiro” na direção da Instituição, cargo político<br />

para o qual não possuía nenhuma vocação. A demissão<br />

é finalmente aceita após 3 longos e sofridos anos.<br />

Entre 1906 e 1911, Oswald passa por um momento<br />

de crise e indecisão, envolvendo seu retorno à Europa,<br />

onde deveria tudo recomeçar, ou sua permanência no<br />

Brasil, onde ainda havia muito por se fazer. Mas, por<br />

fim, sua nomeação para a cátedra de piano no Instituto<br />

e a vinda de toda a família em 1911 deixam claro que<br />

a opção pelo Brasil era irreversível.<br />

Em seus últimos 20 anos no Rio de Janeiro,<br />

Oswald goza de grande reputação e prestígio como<br />

compositor e professor de piano. Sua morte, aos 79<br />

anos de idade, se dá em meio a homenagens e pleno


econhecimento como um<br />

dos maiores compositores<br />

brasileiros de todos<br />

os tempos.<br />

Itália e Brasil, os dois<br />

países nos quais o<br />

compositor viveu, tinham<br />

em comum um meio<br />

musical que privilegiava<br />

a ópera e no qual a música<br />

instrumental – solo, de<br />

câmera e sinfônica – estava<br />

Henrique Oswald.<br />

ainda em florescimento<br />

e por esta razão era fortemente calcada nas tradições<br />

alemã e, posteriormente, francesa. Embora tenha<br />

composto três óperas – uma delas um trabalho<br />

de juventude – Oswald foi predominantemente um<br />

compositor de música instrumental, e desta forma<br />

sofreu influência dos quatro países acima mencionados.<br />

Esta multiplicidade de fontes de inspiração, que<br />

proporcionou o desenvolvimento de uma escrita<br />

altamente refinada, deveria ser vista como um fator<br />

de riqueza e não como uma justificativa para a falta<br />

de interesse pela música nacionalista.<br />

Há outros aspectos muito mais relevantes que<br />

a questão do sentimento nativista a serem abordados<br />

em sua obra, como por exemplo a importância da<br />

contribuição para os gêneros sinfônico e camerístico<br />

aportados por sua produção à música do país. Oswald<br />

não foi o primeiro brasileiro a escrever obras deste<br />

tipo, mas é, no que tange a música de câmera, um dos<br />

autores nacionais mais significativos. A qualidade<br />

e o volume de sua produção são a prova disso: Sonata<br />

para violino e piano, duas Sonatas para violoncelo e<br />

piano, cinco Trios para violino, violoncelo e piano, dois<br />

Quartetos e um Quinteto para piano e cordas, quatro<br />

SUGESTÕES DE LEITURA:<br />

MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald, músico de uma saga<br />

romântica. São Paulo: EDUSP, 1995.<br />

Quartetos de Cordas, um Octeto para cordas, além de<br />

várias pequenas peças para violino e violoncelo com<br />

acompanhamento de piano.<br />

O Trio op. 9, obra-prima de sua primeira fase que<br />

testemunha ainda a influência do romantismo alemão,<br />

seria uma composição digna de figurar no catálogo de<br />

Felix Mendelssohn. A Sonata para violino e piano op. 36,<br />

que marca sua aproximação da escola francesa, poderia<br />

eventualmente ser tomada por uma peça de Fauré ou<br />

César Franck. Já a 2me Berceuse para violino e piano vai<br />

mais longe e se avizinha do universo de Ravel. Porém,<br />

infelizmente, este repertório é praticamente ignorado<br />

por nossos músicos.<br />

Mas a herança de Oswald é ainda muito mais<br />

ampla, abrange uma grande quantidade de peças para<br />

piano, Prelúdios e Fugas para órgão, duas sinfonias e<br />

várias transcrições de obras pianísticas para orquestra<br />

sinfônica e de cordas, três concertos para instrumento<br />

solista e orquestra, obras para canto e piano, canto<br />

e orquestra, coro, incluindo duas Missas, coro<br />

e orquestra, além das três óperas já mencionadas.<br />

Embora possa-se observar que é crescente o<br />

número de pesquisadores nas universidades brasileiras<br />

que se debruçam sobre seu legado, o que mostra que<br />

há um processo de revalorização em andamento,<br />

a passagem praticamente em branco do<br />

sesquicentenário do compositor no ano de 2002, indica<br />

que Oswald está longe de ocupar o lugar que lhe cabe<br />

como um dos maiores compositores brasileiros de<br />

todos os tempos. A cultura nacional seria a principal<br />

beneficiada se fosse abandonado o tom<br />

predominantemente condescendente com que<br />

o compositor é abordado em favor de um verdadeiro<br />

reconhecimento de seu valor e, sobretudo, se Oswald<br />

fosse mais executado em nossas salas de concerto.<br />

É necessário recuperar o tempo perdido!<br />

MONTEIRO, Eduardo. Henrique Oswald (1852-1931), un<br />

compositeur brésilien au-delà du nationalisme musical. L´Exemple<br />

de sa musique de chambre avec piano. Doutorado em Musicologia.<br />

Paris: Sorbonne, 2000.<br />

EDUARDO MONTEIRO<br />

Prof. Dr. do <strong>Departamento</strong> de Música da ECA-USP, é Dr. em Musicologia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne,<br />

com tese sobre a música de câmera com piano de Henrique Oswald.<br />

71


Heitor<br />

Villa-Lobos<br />

M O D E R N O E N A C I O N A L<br />

JORGE COLI


A SEMANA DE ARTE MODERNA, EM FEVEREIRO DE 1922, OCORREU EM S.<br />

PAULO. ELA PROVOCOU GRANDE ESCÂNDALO E POLÊMICA, APRESENTANDO<br />

NOVIDADES QUE, NO MEIO ACANHADO DAS ARTES PAULISTAS, PARECIAM<br />

RADICALISMOS DE VANGUARDA. AS NOVIDADES EM <strong>MÚSICA</strong> FORAM<br />

TRAZIDAS POR UM JOVEM COMPOSITOR, HEITOR VILLA-LOBOS. ALÉM DE SEUS<br />

PROPÓSITOS DE RUPTURA ESTÉTICA E ARTÍSTICA, PAIRAVA, DURANTE A<br />

SEMANA, UM VAGO TOM NACIONALISTA, E RONALD DE CARVALHO<br />

RECONHECIA, EM VILLA-LOBOS, UMA AFIRMAÇÃO DE ARTE “NACIONAL”.<br />

1922 foi o centenário da independência do<br />

Brasil, momento de carga simbólica, que sugeria uma<br />

equivalente autonomia cultural do país. No entanto,<br />

é no correr dos anos de 1920 que o modernismo<br />

brasileiro tomará, de fato, cores nacionalistas. É por<br />

volta de 1930 que esse projeto, moderno e nacional, vai<br />

se encontrar afirmado, com o romance “Macunaíma”, de<br />

Mário de Andrade, com o movimento Antropofágico,<br />

de Oswald de Andrade. Mário de Andrade teorizará<br />

a questão musical a partir desse enfoque em seu<br />

“Ensaio sobre a música brasileira”, de 1928.<br />

No entanto, vista de perto, a musicalidade<br />

profundamente brasileira, que revestiu-se de um<br />

aspecto de mito com a música de Villa-Lobos, parece<br />

bem mais ambígua. Trabalhar sobre Villa-Lobos<br />

é, de qualquer forma, delicado. Existem, está claro,<br />

algumas boas biografias e estudos, e um arrolamento<br />

catalográfico de suas obras. Mas eles são insuficientes,<br />

e seu catálogo crítico não foi ainda estabelecido.<br />

É preciso desejar muita paciência para quem decidir<br />

organizá-lo, porque o próprio Villa-Lobos<br />

encarregava-se de falsificar dados com uma ousadia<br />

e uma impudência ímpar.<br />

Como descobrir a data exata de várias de suas<br />

composições se Villa-Lobos empregava um critério<br />

cronológico “espiritual” ou “espírita”, como diz Mário<br />

de Andrade em “O mundo musical”? Villa-Lobos fazia<br />

recuar várias composições em vários anos. Uma das<br />

intenções esperadas era demonstrar que o caráter<br />

brasileiro de sua música existia desde cedo, mesmo<br />

quando ele compunha, de fato, num espírito<br />

inteiramente francês e internacional. Era uma<br />

legitimação de precocidade nacionalista.<br />

Assim, uma atitude necessária para, no mínimo,<br />

qualquer precaução metodológica no que concerne<br />

ao estudo da obra do compositor, é levar a todas as<br />

conseqüências as observações de Lisa Peppercorn<br />

em seu artigo publicado em “The Music Review”, de<br />

fevereiro 19431 , referentes a antedatação de suas peças.<br />

Mário de Andrade retoma essas indicações em<br />

“O mundo musical” 2 . Essas conseqüências impõem<br />

a precaução prévia de não se poder confiar nas<br />

informações de Villa-Lobos. É preciso, no que<br />

concerne às datas, que provas documentais realmente<br />

insuspeitas venham garantir a referência. E isto, como<br />

veremos, é capital – entre outras coisas − para se<br />

73


74<br />

UMA DAS INTENÇÕES ESPERADAS ERA DEMONSTRAR QUE O CARÁTER BRASILEIRO<br />

DE SUA <strong>MÚSICA</strong> EXISTIA DESDE CEDO, MESMO QUANDO ELE COMPUNHA,<br />

DE FATO, NUM ESPÍRITO INTEIRAMENTE FRANCÊS E INTERNACIONAL.<br />

ERA UMA LEGITIMAÇÃO DE PRECOCIDADE NACIONALISTA.<br />

compreender a célebre “alma brasileira”, que seria<br />

própria a Villa-Lobos.<br />

Mário de Andrade raciocina: “Inquieta com esses<br />

arranjos muitas vezes feitos sobre obras... ainda não<br />

escritas, e visivelmente informada pelo próprio<br />

compositor, a crítica (Lisa Peppercorn) nos conta que<br />

‘Villa-Lobos chama isso reescrever uma obra, sendo<br />

interessante também que essas músicas são datadas do<br />

ano em que foram espiritualmente concebidas, e não<br />

do momento em que foram realmente compostas’.<br />

Eu tenho a idéia de que essa foi a explicação inventada<br />

por Villa-Lobos no momento, para justificar as suas<br />

audácias, mas desde muito me sinto na obrigação<br />

de duvidar das datas com que o grande compositor<br />

antedata muitas de suas obras, na presunção<br />

de se tornar genial pioneiro em tudo.<br />

No número de Música Viva3 dedicado a Villa-Lobos<br />

a que o autor do Amazonas forneceu a relação de suas<br />

obras, estas vêm acompanhadas cuidadosamente das<br />

datas em que foram, digamos, “espiritualmente”<br />

ou “espiritistamente” concebidas... Por desgraça, nem<br />

isso é verdade, e custa a crer que o artista se arrojasse<br />

a semelhantes ilusões. Aí Villa-Lobos coloca certas<br />

obras brasileiras dele nas décadas de 1910 e 20, como<br />

as Cirandas e as Cirandinhas, que foram muito<br />

posteriormente tanto compostas quanto concebidas”. 4<br />

Mário de Andrade revela então a história das<br />

Cirandas, que ele estimulara e acompanhara a criação,<br />

testemunhando assim sobre o caráter fantasioso das<br />

afirmações do compositor.<br />

É legítimo ainda indagar o que significam,<br />

realmente, as viagens iniciáticas e míticas da juventude<br />

de Villa-Lobos pelo Brasil afora, enquanto contribuição<br />

para sua brasilidade compositiva, tal como ele<br />

as propalava? Marcel Beaufils, através do testemunho<br />

de Casadesus e Vasco Mariz, num artigo de Lucie<br />

Delarue-Mardrus, narra histórias inverossímeis<br />

contadas por Villa-Lobos em Paris: ele teria sido feito<br />

prisioneiro dos índios. Aproveitava então para<br />

aprender de cor os belos cantos dos selvagens que<br />

o torturavam. A alguém que lhe perguntava se, por<br />

acaso, teria, nessas ocasiões, praticado a antropofagia,<br />

ele confessa ter comido carne de criança com os índios.<br />

Teria tocado, num fonógrafo, música ocidental:<br />

enfurecidos, os índios precipitavam-se para destruir<br />

o aparelho. Mas, substituindo a gravação, a máquina<br />

transmitia canções indígenas e se transformava<br />

imediatamente em divindade: diante dela, toda a taba<br />

se prosterna em adoração. Ironia, imaginário, blague<br />

e impostura se mesclam. Até onde pode, de fato,<br />

ir nossa confiança nos testemunhos do compositor<br />

a respeito de seu período de formação, enquanto todas<br />

as fontes não forem controladas?<br />

Mário de Andrade lembra, em “Villa-Lobos I<br />

e II” 5 , o caráter altamente internacional das peças<br />

apresentadas pelo compositor na Semana de Arte<br />

Moderna, e isso porque Villa-Lobos não devia ter<br />

muita coisa “brasileira” para mostrar. É fato que suas<br />

composições anteriores a 1922 são, em sua esmagadora<br />

maioria, de um galicismo indiscutível: da admirável<br />

sonata para violino e piano Desespérance (em francês no<br />

título!) – onde a presença de Franck e Chausson talvez<br />

seja menos superficial que a de Debussy, esta última<br />

lembrada por Eurico Nogueira França6 ; ao Naufrágio<br />

do Kleónicos, onde o cisne negro que sobreviveu canta<br />

como o de Saint-Saëns; passando por Izaht, cujo libreto,<br />

escrito pelo compositor, coloca em cena apaches de<br />

Montmartre; ou pelas sinfonias de guerra (a sinfonia<br />

Vitória comporta uma citação da Marselhesa e é<br />

composta sobre o modelo cíclico de Vincent d’Indy);<br />

e chegando à Prole do bebê, de insofismável debussysmo.<br />

Como já foi assinalado, as Cirandas e cirandinhas


com Villa-Lobos, todas as fraudes eram<br />

“cuidadosamente” possíveis, mesmo a de inscrever<br />

uma data muito anterior sobre uma partitura –<br />

com o álibi de ali assinalar uma primeiríssima<br />

proto-concepção da obra. Mário de Andrade não<br />

acreditava muito, também, na data de origem<br />

de Amazonas. Neste caso, seja como for, existe uma<br />

primeira composição, de 1916, executada em 1918,<br />

baseada num conto do pai de Villa-Lobos, Myremis;<br />

em Amazonas, Villa-Lobos meramente substitui nomes<br />

e personagens. A “bela virgem grega, abençoada pelos<br />

deuses da mitologia” torna-se “bela virgem, abençoada<br />

pelos deuses das florestas do Amazonas”, assim como<br />

o rio se transmuta de Archeló em Amazonas. A trama<br />

é sensivelmente a mesma8 aparecem como desse período na relação<br />

de obras oferecida pelo compositor – Mário<br />

de Andrade denuncia a fraude – e hoje<br />

nenhuma cronologia séria aceita tal datação.<br />

O caso de Uirapuru, desse ponto de vista,<br />

é particularmente interessante. Com Amazonas,<br />

é considerada a primeira franca irrupção<br />

de “brasilidade” dentro da obra do compositor.<br />

Ora, Uirapuru foi estreado em Buenos Aires,<br />

em 1935. Bruno Kieffer, em seu Villa-Lobos<br />

e o modernismo da música brasileira<br />

expressão de nacionalidade autenticamente brasileira...<br />

No que concerne a Uirapuru, resta o fato, até prova<br />

do contrário, de que não existe notícia da obra anterior<br />

a 1934, quando é dedicada a Serge Lifar. Com as<br />

chaves que Mário de Andrade nos fornece, é possível<br />

compreender o fenômeno. Basta assumirmos que, bel<br />

et bien, Villa-Lobos simplesmente pré-datou as obras.<br />

Isto é fundamental, porque permite derrubar por<br />

terra o mito, a crença numa brasilidade autenticamente<br />

surgida da personalidade de Villa-Lobos, impregnada<br />

de um ser “nacional” desde sua gênese infanto-juvenil.<br />

Ao invés do mito prodigioso, teríamos o “constructor”,<br />

a posteriori, muito mais plausível. Pois é preciso lembrar<br />

, ou seja, bastou uma<br />

que, de todos os modos, apenas com os Choros,<br />

mudança rápida e superficial de nomes e lugares, num nos anos de 1920, o caráter francamente brasileiro<br />

tema originalmente clássico, grego, que lhe inspira de Villa-Lobos se afirma. Isto é, no momento de suas<br />

a música, para que a obra se transformasse numa longas e freqüentes estadas em Paris.<br />

7 , a partir<br />

de Peppercorn, assinala que Villa-Lobos,<br />

“em 1917, teria apenas composto o projeto<br />

para piano de Uirapuru, elaborando somente<br />

em 1934 a partitura para orquestra”.<br />

Kieffer examinou os originais autógrafos<br />

da partitura para piano e orquestra: “Ambas<br />

têm a assinatura de Villa-Lobos no cabeçalho<br />

e a indicação: ‘Rio 1917’. No fim da partitura<br />

para orquestra consta: “Fim Rio, 1917,<br />

reformado em 1934”. Segue a rubrica<br />

do compositor. Cremos que também do ponto<br />

de vista grafológico há identidade entre<br />

os cabeçalhos da partitura para a orquestra<br />

e a redução para piano.”<br />

Mas, o episódio das Cirandas indica que, Villa-Lobos. Caricatura assinada por Mendez em 1974.<br />

MUSEU VILLA-LOBOS<br />

75


76<br />

76<br />

Villa-Lobos. Quarteto symbolico. Original manuscrito autógrafo. Obra executada na Semana de Arte Moderna.<br />

MUSEU VILLA-LOBOS<br />

“Ao visitar Paris e o restante da Europa na década<br />

de 20” – escreve o musicólogo finlandês Eero Taarasti9 – “Villa-Lobos compreendeu qual a posição social<br />

do compositor na Europa naquele momento: ele<br />

interessava ao mundo musical europeu acima de tudo<br />

como um intérprete de brasilidade, com os ritmos<br />

de força primitiva de suas composições, harmonias<br />

próprias, melodias folclóricas que refletem a variedade<br />

das cores do trópico.”<br />

Parece bem claro que Villa-Lobos fazia “render”<br />

o exotismo. Villa-Lobos sabia que os europeus<br />

desejavam “les saveurs et les accents de sensuel<br />

exotisme”, na imagem que Cortot, em seu La musique<br />

française de piano10 , criou para caracterizá-lo e a Darius<br />

Milhaud. Genialidade à parte, Villa-Lobos escrevia<br />

então música brasileira na Europa, garantindo, assim,<br />

seu lugar de compositor “tropical”. Eram os mesmos<br />

tempos em que Paulo Prado dizia que Oswald<br />

de Andrade descobrira o Brasil na Place Clichy,<br />

inventando a Antropofagia em Paris.<br />

Portanto, Villa-Lobos fazia música brasileira na<br />

Europa, assegurando assim seu lugar de compositor<br />

tropical. Quando Henri Prunnières exalta o caráter<br />

exótico das obras que Villa-Lobos apresenta<br />

na Europa, Mário de Andrade se escandaliza, porque<br />

Prunnières se atém ao pitoresco e faz dele a grande<br />

virtude dessas composições.<br />

Mário de Andrade não demonstra consciência


de quanto Villa-Lobos é cúmplice desse estado de<br />

coisas e se revolta, porque seu projeto é alguma coisa<br />

de “profundo” e de “sério”: nada de brasileirismos<br />

para francês ouvir, mas a construção consciente<br />

de um inconsciente artístico, coletivo e brasileiro.<br />

Sobre Villa-Lobos, no “Ensaio sobre a música<br />

brasileira”, Mário de Andrade afirma: “Mesmo antes<br />

da pseudo-música indígena de agora, Villa-Lobos era<br />

um grande compositor”.<br />

Florent Schmitt dizia que Villa-Lobos era um<br />

“neo-selvagem” e, na época, convergiam para a Europa<br />

as selvagerias do mundo inteiro: isto, está claro, porque<br />

elas eram solicitadas.<br />

A ditadura Vargas fez de Villa-Lobos seu aliado<br />

oficial. A conseqüência foi a modificação profunda,<br />

a partir dos anos de 1930, na produção artística do<br />

compositor. A associação de Villa-Lobos com o Estado<br />

Novo, além de um programa de músicas de<br />

propaganda e um outro pedagógico, nas escolas,<br />

tornou o compositor menos “ousado”. Sua música<br />

perde o caráter “moderno” que possuía nos anos<br />

de 1920, quando dialogava estreitamente com<br />

as experiências de vanguarda do tempo. Villa-Lobos,<br />

músico oficial, ou quase, passou a produzir<br />

composições que se queriam brasileiras, mas que se<br />

queriam também “grandes obras”: é a partir de 1930<br />

que renascem os quartetos de cordas – quintessência<br />

das formas “clássicas” – abandonados desde 1917,<br />

e as sinfonias. É quando, também, Villa-Lobos inicia<br />

o belíssimo ciclo das Bachianas Brasileiras – no entanto<br />

1. PEPPERCORN, Lisa M. “Some aspects of Villa-Lobos’<br />

Principles of Composition, The Music Review, vol IV, nº1,<br />

fevereiro de 1943.<br />

2. Apud COLI, Jorge. Música final, Editora da Unicamp, 1998,<br />

pgs. 169 e segs.<br />

3. O texto ao qual Mário de Andrade se refere aqui é “Casos<br />

e fatos importantes sobre H. Villa-Lobos numa biografia<br />

autêntica e resumida”, in Música Viva, Ano 1, 7/8, janeirofevereiro<br />

1941, pg. 13-15.<br />

4. Apud COLI, Jorge. Op. cit., pgs 169 e segs, pg. 383.<br />

5. In “Mundo Musical”, apud COLI, Jorge – Música Final, op. cit.,<br />

pg. 169 e segs.<br />

DISCOGRAFIA<br />

VILLA-LOBOS PAR LUI MÊME (EMI): 6 discos que reúnem a quintessência<br />

do compositor, dirigindo ele próprio os coros e Orchestre<br />

National de la Radiodifusion Française, nos anos de 1950.<br />

Contém as 9 Bachianas, com a mítica gravação da nº 5, cujo<br />

solo é feito por Victoria de los Angeles, vários Chôros, a Suite<br />

Descoberta do Brasil, o Momoprecoce, com Magda Tagliaferro,<br />

o Concerto nº 5, com Felicia Blumental, e a Sinfonia nº 4<br />

HEITOR V ILLA-LOBOS − OEUVRE POUR PIANO (DISQUE DU SOLSTICE):<br />

monumento da discografia pianística, são 7 cds com todas<br />

as composições para piano solo, interpretadas por<br />

Anna Stella Schic<br />

VILLA-LOBOS − 5 PIANO CONCERTOS (Decca) − Cristina Ortiz, Royal<br />

Philarmonic Orchestra, dir Gómez-Martínez (2 CD)<br />

CHÔROS DE CÂMARA (ed. brasileira: Kuarup, ed. internacional<br />

Harmonia Mundi) - esplêndido disco por um conjunto<br />

de músicos brasileiros, que tocam os 9 choros camerísticos<br />

de Villa-Lobos<br />

QUARTETOS DE CORDA (Kuarup), pelo Quarteto Bessler-Reis, numa<br />

caixa de 6 CDs<br />

MAGDALENA, A MUSICAL ADVENTURE − Gravação completa do musical<br />

composto por Villa-Lobos para a Broadway, em 1948, com Judy<br />

Kaye, George Rose, Faith Esham, Orchestra New England,<br />

sob a direção de Robert Sher<br />

muito mais bem comportadas que os Choros e outras<br />

produções feitas na Europa, durante o período<br />

precedente. Após a Segunda Guerra Mundial,<br />

no final de sua vida Villa-Lobos se aproxima dos<br />

Estados Unidos. Tende, então, a afastar-se dos projetos<br />

nacionais de seu passado. O musical Madalena<br />

joga com uma certa ironia sobre seus temas<br />

de colorido brasileiro.<br />

6. FRANÇA, Eurico Nogueira. A evolução de Villa-Lobos na música<br />

de câmara, SEAC-MEC-Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro,<br />

1979<br />

7. KIEFFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira,<br />

Movimento, Porto-Alegre, 1981, pg. 47.<br />

8. Cf., particularmente, a análise de WRIGHT, Simon – Villa-<br />

Lobos, Oxford University Press, Oxford, 1992, pg. 13.<br />

9. TAARASTI, Eero. “Villa-Lobos – ser sinfônico dos trópicos”,<br />

in Presença de Villa-Lobos nº 9, MEC-SEAC-Museu Villa-<br />

Lobos, Rio de Janeiro, 1980, pg. 56.<br />

10. CORTOT, Alfred. La musique française de piano, PUF, Paris,<br />

1991.<br />

JORGE COLI<br />

Prof. Dr. titular em História da Arte e da Cultura. <strong>Departamento</strong> de História.<br />

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas UNICAMP.<br />

77


O violão no Brasil<br />

depois de<br />

Villa-Lobos<br />

FÁBIO ZANON


Como o café e o futebol, o violão está<br />

indissociavelmente ligado a uma visão sóciocultural<br />

do Brasil, e nossa identidade musical<br />

é impensável sem a sua presença. E não é para<br />

menos. Instrumentos da família do violão foram<br />

já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José<br />

Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de<br />

cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do<br />

século XVI revelam em comum o acompanhamento<br />

ao som de viola”.<br />

Dessa forma, desde o primeiro encontro que define<br />

nossa identidade cultural, o violão está presente.<br />

Mas sua trajetória é tortuosa. O violão em seu<br />

formato atual é, na verdade, um desenvolvimento<br />

organológico do séc. XIX. Os instrumentos trazidos<br />

pelos jesuítas provavelmente foram as vihuelas, alaúdes<br />

e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras<br />

barrocas – que, levadas ao interior do país pelos<br />

bandeirantes, foram adotadas como o instrumento<br />

folclórico nacional por excelência: a viola caipira. Isto,<br />

conjugado à marcada diferença cultural entre as classes<br />

sociais no período imperial, estigmatizou o violão –<br />

como acontecia na Espanha – como o instrumento<br />

do populacho, dos capadócios e da marginalidade, em<br />

oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom<br />

das famílias urbanas mais abastadas.<br />

Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão,<br />

como atestam as “Memórias de um Sargento de<br />

Milícias”, entre a viola e o violão, mas depois de 1850<br />

já fica clara a diferença entre a viola, um instrumento<br />

tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa<br />

(como era chamada nos métodos à venda no Rio de<br />

Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento<br />

do cancioneiro popular de tradição urbana. Até este<br />

momento, não há uma literatura específica para<br />

o instrumento publicada no país; os exemplos<br />

existentes são escritos para piano, sem dúvida pelo fato<br />

de não haver violonistas capazes de ler música.<br />

O violão também foi adotado como baixocontínuo<br />

dos incipientes grupos de choro, e a má fama<br />

decorrente é festejada nos romances de Lima Barreto.<br />

Os primeiros defensores sérios do violão como<br />

instrumento de concerto, como o engenheiro<br />

Clementino Lisboa, o desembargador Itabaiana e o<br />

professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram<br />

ao ridículo público ao se apresentarem, por exemplo,<br />

no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.<br />

Os primeiros concertos de violão solo<br />

documentados no país foram oferecidos pelo violonista<br />

cubano Gil Orozco em 1904 e não chegaram a atrair<br />

muita atenção, mas supõe-se que já houvesse um<br />

ensino sério de violão clássico nessa época, já que<br />

Villa-Lobos admitiu haver aprendido violão pelos<br />

métodos do espanhol Dionísio Aguado (1784-1849).<br />

Entretanto, aquele que podemos apontar como<br />

o primeiro concertista brasileiro não sabia ler música<br />

e tocava com o violão invertido, mas com as cordas<br />

em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto”<br />

(1889-1928). Canhoto era filho de italianos, o que<br />

ilustra uma nova tendência de popularização do violão:<br />

a sua adoção pela classe operária imigrante. Não é um<br />

mero acidente os luthiers Di Giorgio, Del Vecchio<br />

e Giannini terem se estabelecido no Brasil<br />

e transformado sua atividade artesanal em linha de<br />

produção de instrumentos dentro de poucas décadas.<br />

Mas o violão continuava sendo ridicularizado na<br />

imprensa, como alvo de charges derrogatórias, apesar<br />

do enorme sucesso popular de violonistas-compositores<br />

como João Pernambuco (1883-1947).<br />

O ano da “virada da casaca” é 1916, quando<br />

o crítico do jornal “O Estado de São Paulo” ouviu e se<br />

rendeu à arte do virtuose e compositor paraguaio<br />

Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em<br />

decorrência de seu sucesso. No mesmo ano, Canhoto<br />

apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical<br />

com extraordinário êxito.<br />

“É através deste concerto que Américo Jacomino<br />

conquista a elite paulistana e assim, possibilita o início<br />

da dissolução do preconceito que freava<br />

o desenvolvimento da música para violão”.<br />

A partir de então, a imprensa de São Paulo<br />

e do Rio de Janeiro passou a considerar o violão como<br />

instrumento de concerto e até a elogiar Barrios,<br />

Canhoto e a espanhola Josefina Robledo, aluna de<br />

Tarrega que também residiu no Brasil por vários anos.<br />

Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão<br />

como instrumento de concerto ainda não completou<br />

100 anos no Brasil, o que faz da vulcânica<br />

79


80<br />

De todos os compositores que<br />

escreveram inspirados pela arte<br />

de Segovia, Villa-Lobos<br />

é o único que parte de um<br />

conhecimento em primeira mão<br />

do arcabouço técnico do<br />

instrumento para a realização<br />

de uma linguagem individual.<br />

personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um<br />

fenômeno ainda mais singular. As contingências sócioculturais<br />

fizeram com que seu instrumento público<br />

fosse o violoncelo e que o violão fosse somente um<br />

laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para<br />

penetrar nas rodas de choro. A maior parte das obras<br />

que escreveu antes de 1920 perdeu-se, e a Suíte Popular<br />

Brasileira (1912-23) só foi publicada décadas mais tarde<br />

– à sua revelia – na França. É uma obra característica<br />

do período, onde a fronteira entre o idioma clássico<br />

e as formas de dança popular não é muito nítida.<br />

Por mais original e promissora que possa parecer<br />

a produção da primeira fase de Villa-Lobos, até 1922,<br />

há uma nítida mudança de marcha em sua estética que<br />

coincide com a residência em Paris nos anos 20,<br />

um fenômeno observado em outros compositores<br />

de orientação nacionalista. Parece que a distância<br />

e a receptividade do novo ambiente lhe permitiram<br />

realizar uma síntese entre uma visão pragmática,<br />

que aceita a superposição de influências externas<br />

como uma profecia auto-realizada em uma cultura<br />

colonizada, e uma visão idealizada, derivada de<br />

Rousseau, em que o compositor se via como um bom<br />

selvagem, corrompido por estas mesmas influências.<br />

A formidável série de Choros, as maiores obras para<br />

piano e os 12 Estudos para violão, compostos em 1929,<br />

são os frutos mais suculentos dessa síntese.<br />

Seria absolutamente impensável a realização desta<br />

obra dentro do contexto acanhado do violão clássico<br />

no Brasil dos anos 20. Por mais divergências que<br />

Villa-Lobos possa ter tido com o dedicatário, Andrés<br />

Segovia, a personagem dominante do violão no século<br />

XX, foi, sem dúvida, o vislumbre das possibilidades<br />

latentes do violão, permitido pelo extraordinário poder<br />

persuasivo de Segovia, que estimulou Villa-Lobos<br />

a escrever uma coleção comparável às grandes séries<br />

de estudos para piano ou violino. Não é exagero dizer<br />

que os 12 Estudos são um divisor de águas dentro<br />

da história do violão. De todos os compositores<br />

que escreveram inspirados pela arte de Segovia,<br />

Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento<br />

em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento<br />

para a realização de uma linguagem individual, que<br />

incorpora uma luxuriante paleta harmônica e um<br />

compromisso com a inovação no discurso musical.<br />

Prova da qualidade visionária destas obras é a espera,<br />

até 1947, para que Segovia as incluísse em seus<br />

programas e até 1953 para que fossem publicados.<br />

Neste hiato, Villa-Lobos já havia retornado<br />

definitivamente ao Brasil, e sua linguagem havia dado<br />

uma guinada na direção de um certo conservadorismo<br />

positivista e neo-clássico que pode ser detectado na sua<br />

série de 5 Prelúdios (1940).<br />

O legado de Villa-Lobos é tanto uma benção como<br />

um peso para os compositores da geração posterior.<br />

Seus Prelúdios e Estudos são as obras mais populares<br />

do violão no séc. XX, tocados por todos os violonistas<br />

de qualquer nível de excelência, e gravados centenas<br />

de vezes. Seu Concerto para violão e orquestra de 1951<br />

é uma das poucas obras brasileiras, talvez a única,<br />

com lugar assegurado no repertório internacional<br />

do gênero. As possibilidades de reconhecimento<br />

internacional, assim abertas para um compositor<br />

brasileiro, podem ser um tremendo fator de inibição,<br />

pelo temor à epigonia.<br />

Some-se a isso o fato de que uma sólida cultura<br />

clássica para o violão ainda tardou algumas décadas<br />

para cristalizar-se no Brasil. O perfil de Barrios<br />

ou Canhoto não era suficientemente “clássico” para<br />

o projeto artístico de Villa-Lobos, e a importante


contribuição de professores como Attilio Bernardini<br />

(1888-1975) teve conseqüências mais visíveis no campo<br />

do violão popular. A distinção entre o violão de<br />

concerto e o violão popular foi gradualmente se<br />

acentuando nos anos 1930, 40 e 50 e alguns dos<br />

músicos de maior visibilidade, como Dilermando Reis<br />

(1916-1977), Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto”<br />

(1915-1955), e Laurindo de Almeida (1917-1995),<br />

construíram quase que a totalidade de suas carreiras<br />

à sombra da Era do Rádio, criando um vasto repertório<br />

seresteiro no caso de Dilermando, incorporando alguns<br />

elementos impressionistas que apontam para<br />

a bossa-nova no caso de Garoto, ou simplesmente<br />

estabelecendo-se nos EUA como um músico de jazz<br />

no caso de Laurindo.<br />

Não obstante as limitações destes grandes artistas<br />

na esfera do violão clássico, eles estabeleceram uma<br />

relação próxima e estrearam algumas obras do<br />

compositor que mais se esforçou em enfraquecer as<br />

barreiras entre a música clássica e a música popular<br />

de qualidade: Radamés Gnatalli (1906-1988), que assim<br />

tornou-se o autor da obra violonística mais significativa<br />

e numerosa a partir dos anos 50, incluindo 5 concertos<br />

para violão e orquestra (1952, 53, 55, 61 e 68).<br />

A advocacia de sua obra, ministrada mais tarde por<br />

violonistas da esfera clássica, estimulou-o a compor<br />

extensivamente e criar obras de considerável interesse,<br />

como a Brasiliana nº 13, a Suíte, os 10 Estudos,<br />

os 3 Estudos de Concerto e Alma Brasileira; seu<br />

legado se estende à música de câmara com a suíte<br />

Retratos para 2 violões, a Sonatina para flauta e violão,<br />

uma Sonata para violoncelo e violão e outra para<br />

violoncelo e 2 violões, além de inúmeros arranjos que<br />

incluem o violão num contexto semi-orquestral. A obra<br />

de violão de Gnatalli traz todas as melhores qualidades<br />

e os mais evidentes problemas de sua produção como<br />

um todo: a excelente escrita instrumental,<br />

as inesperadas soluções harmônicas e o verdor<br />

da inspiração, mas também a notória falta de paciência<br />

com o acabamento e um caráter sonambulístico<br />

e quase-improvisatório que, sob um certo ponto de<br />

vista, pode ser uma qualidade. Depois de Villa-Lobos,<br />

a obra de violão de Gnatalli é a mais apreciada<br />

e freqüentemente tocada no exterior.<br />

Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções<br />

de classe através do gosto musical e transformou-as numa<br />

massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir<br />

o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo<br />

instrumento é vasto o suficiente para o surgimento<br />

de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. Por outro,<br />

ainda faltava uma metodologia que permitisse<br />

o surgimento de um número significativo de concertistas<br />

de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente<br />

quebrado por raras visitas de artistas internacionais como<br />

Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir<br />

de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos 40).<br />

O desenvolvimento desta metodologia veio com<br />

o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu<br />

em São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de<br />

modestos recursos, mas um devotado professor e autor<br />

de mais de 100 peças originais para violão, algumas das<br />

quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perduram<br />

no repertório. Ele teve um papel considerável na<br />

promoção do violão dentro do establishment musical do<br />

país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou<br />

gerações de violonistas que prontamente se<br />

estabeleceram como professores em outras capitais,<br />

com destaque para Antonio Rebello (1902-1965)<br />

no Rio de Janeiro. A Sávio também devemos a criação<br />

do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco<br />

antes de falecer, nas universidades. Ele teve<br />

a sensibilidade de não sufocar a natural vocação do<br />

violão brasileiro para o cross-over e, entre seus alunos,<br />

podemos contar tanto um Luís Bonfá ou um Toquinho<br />

quanto um Carlos Barbosa Lima.<br />

A relação de Sávio com os compositores<br />

“sinfônicos” foi algo tímida; a instrução dos<br />

compositores custou a incorporar a técnica de escrita<br />

para violão – uma novidade que Segovia havia imposto<br />

a compositores como Ponce e Turina nos anos 20 –,<br />

o exemplo de Villa-Lobos provou-se um ideal alto<br />

demais para se alcançar, e a falta de seriedade com que<br />

se encarava o violão no início do século ainda criou<br />

reverberações nos anos 40 e 50. Some-se a isso<br />

o desfavor em que a estética nacionalista caiu após<br />

a revolução de 1964 e temos um desconfortável e algo<br />

vergonhoso hiato na incorporação da obra de Camargo<br />

Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone ao<br />

81


82<br />

Almeida Prado.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

repertório internacional de violão.<br />

Camargo Guarnieri (1907-1993) seria, levando-se<br />

em conta seu implacável artesanato e concisão, o<br />

compositor ideal para dar continuação ao fio condutor<br />

de Villa-Lobos, mas na prática isso não aconteceu. Ele<br />

se exasperava com as dificuldades de se escrever bem<br />

para o instrumento, e seu único Ponteio (1944, dedicado<br />

a Carlevaro) para violão não tem o mesmo carisma dos<br />

homônimos pianísticos. Seus 3 Estudos (nº 1: 1958,<br />

nos 2 e 3: 1982), apesar de extraordinários como<br />

composições, apresentam um caráter torturado<br />

e esotérico que apela somente aos intérpretes mais<br />

intelectualmente inclinados. As 2 Valsas-choro (1954,<br />

1986) são obras bem mais simpáticas, mas, como de<br />

praxe em Guarnieri, a 2a delas ainda não está sequer<br />

editada. Lorenzo Fernandez (1897-1948) foi ainda<br />

menos generoso: deixou somente um pequeno Prelúdio<br />

(1942) de parco interesse e um arranjo da Velha<br />

Modinha (1938, original para piano como parte da<br />

Segunda Suite Brasileira) dedicado a Segovia, que<br />

freqüentemente é tocado como bis.<br />

Se a contribuição destes compositores magnos de<br />

nosso nacionalismo é numericamente decepcionante,<br />

o mesmo não se pode dizer de Francisco Mignone<br />

(1897-1986). Suas primeiras tentativas de escrever para<br />

o violão foram bem modestas, mas em 1970 ele<br />

produziu a série de 12 Valsas, em todos os tons<br />

menores, e 12 Estudos que, sem manifestarem o ímpeto<br />

renovador de Villa-Lobos, ocupam uma posição quase<br />

tão alta quanto a dele no repertório brasileiro pela<br />

precisão de escrita, inventividade no tratamento<br />

instrumental e variedade de expressão. Seu quase total<br />

desaparecimento do repertório internacional é um<br />

acidente de percurso, e nenhuma outra obra da escola<br />

nacionalista merece maior atenção. O mesmo deve ser<br />

dito do Concerto para violão e orquestra (1976),<br />

possivelmente a mais bem-concebida obra brasileira<br />

do gênero, mas que ainda não teve a chance de ser<br />

plenamente avaliada devido ao seu quase-ineditismo.<br />

Duas peças curtas, Canção Brasileira (1970) e Lenda<br />

Sertaneja (1982) completam um corpus de obras para<br />

violão de máximo interesse.<br />

A paixão de Mignone pelo violão em seu último<br />

período criativo foi causada em grande parte pelos<br />

frutos colhidos da profissionalização do ensino de<br />

violão no país. Os anos 60 e 70 marcam não só uma<br />

extraordinária expansão do ensino do violão popular<br />

com o advento da bossa-nova, mas também a<br />

consolidação da carreira internacional de uma geração:<br />

Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos (n.1940),<br />

Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio<br />

(n.1952) e Odair Assad (n.1956) e, mas tarde, Marcelo<br />

Kayath (n.1964). A percepção do Brasil como o país<br />

do violão deve muito a estes dois eventos conjugados.<br />

O cenário nacional também se beneficiou desse<br />

arranque e uma nova geração de didatas se estabeleceu<br />

neste período, com destaque para Henrique Pinto<br />

(n.1941) e Jodacil Damasceno (n.1929).<br />

Junto com Isaías Sávio, esses violonistas foram<br />

o ponto de referência para toda uma geração de<br />

compositores nacionalistas que deixaram itens isolados<br />

de considerável interesse, como José Vieira Brandão<br />

(1911-2002) com o Mosaico, Walter Burle-Marx (1902-<br />

1991), autor de Bach-Rex e Homenagem a Villa-Lobos,<br />

Souza Lima (1898-1982) com seu Cortejo e Divertimento,<br />

e Lina Pires de Campos (1918-2003), autora de<br />

4 Prelúdios e Ponteio e Toccatina. Três compositores<br />

já falecidos merecem uma menção particular pela sua<br />

importância dentro da vida musical brasileira: Cláudio<br />

Santoro (1919-1989), autor de um Estudo, um Prelúdio<br />

e da Fantasia Sul América; Theodoro Nogueira<br />

(1913-2002), autor de extensa obra que inclui 6<br />

Brasilianas, 5 Valsas-Choro, 4 Serestas, 12 Improvisos e um


Concertino para violão e orquestra; e César<br />

Guerra-Peixe (1914-1993) autor de 6 Breves, 10 Lúdicas,<br />

4 Prelúdios e da primeira Sonata brasileira para violão,<br />

de 1969, uma obra extremamente engenhosa da sua<br />

fase nacionalista.<br />

Os anos da ditadura militar provocaram uma<br />

dramática re-configuração da vida musical do país.<br />

A considerável repressão da liberdade de expressão<br />

forçou artistas e intelectuais a tomarem posições<br />

drásticas. Compositores de tendência governista não<br />

tiveram sucesso em persuadir as autoridades<br />

da necessidade de um desenvolvimento contínuo<br />

da educação musical, e tiveram de responder por isso<br />

depois da abertura nos anos 80. Uma maioria de<br />

compositores opostos ao regime refugiou-se na rotina<br />

do ensino universitário e, seguindo o modelo<br />

americano, cristalizou um sistema de ensino acadêmico<br />

que prescinde da atuação no dia-a-dia do compositor<br />

profissional e encoraja o surgimento de “processos”<br />

composicionais que muitas vezes só podem ser<br />

decodificados por colegas. Ao mesmo tempo,<br />

a participação ativa dos cantores/compositores de<br />

MPB no processo de abertura política relegou os<br />

compositores clássicos a uma posição secundária<br />

dentro do meio cultural e a um recrudescimento<br />

do interesse da imprensa pela produção de concerto,<br />

uma situação que não parece passível de reversão<br />

num futuro próximo.<br />

O violão, como um natural mediador, no Brasil,<br />

entre o universo da música clássica e da popular,<br />

encontrou-se subitamente numa posição privilegiada.<br />

Intérpretes como Barbosa Lima, Turíbio Santos e o duo<br />

Assad, inicialmente escolados na tradição clássica<br />

do violão, hoje atuam numa tênue linha divisória em<br />

que a fronteira entre o que é clássico e o que é música<br />

instrumental brasileira não é muito clara.<br />

Os compositores ativos criaram seus nichos estéticos,<br />

muitas vezes opostos, e foram seduzidos pela<br />

garantia de inclusão de suas obras para violão<br />

no repertório regular.<br />

Os compositores de orientação pós-nacionalista<br />

que mais contribuíram para o repertório brasileiro são<br />

Marlos Nobre (n.1939) e Edino Krieger (n.1928).<br />

A obra de Marlos Nobre é extensa e de incalculável<br />

alcance artístico. Os Momentos I-IV, a Homenagem<br />

a Villa-Lobos, as Reminiscências, o Prólogo e Toccata,<br />

a Entrada e Tango, as Rememórias e o Concerto para<br />

2 violões e orquestra cobrem 30 anos de produção<br />

artística, atestam sua imaginação poderosa e o colocam<br />

como um verdadeiro herdeiro de Villa-Lobos, em sua<br />

escrita detalhada, robusta realização instrumental<br />

e perfeito equilíbrio entre a cor local e as necessidades<br />

de um argumento formal de maiores proporções.<br />

A considerável dificuldade técnica de suas obras tem<br />

se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano<br />

internacional, mais respeitado que tocado, mas este<br />

é um fator que deve ser superado em favor de obras<br />

de qualidade superlativa que merecem atenção<br />

incondicional. Já Edino Krieger obteve considerável<br />

sucesso com sua Ritmata de 1974, e suas obras mais<br />

recentes, Passacaglia in Memorian Fred Schneiter e seu<br />

Concerto para 2 violões e orquestra parecem prontas a<br />

seguir o mesmo caminho. Um compositor de produção<br />

mais mirrada, mas de sumo interesse, é Osvaldo<br />

Lacerda (n.1927), autor de três encantadoras peças,<br />

Moda Paulista, Ponteio e Valsa Choro. Um item isolado<br />

de Ronaldo Miranda (1941), Appassionata, tem<br />

merecido uma calorosa acolhida internacional;<br />

a Sonatina de José Alberto Kaplan (n.1935) e a peça<br />

de mesmo título de Sérgio Vasconcelos Corrêa<br />

(n.1934), também autor de um Concerto, demonstram<br />

grande profissionalismo de fatura.<br />

A produção dos compositores independentes,<br />

seguindo a esfera de interesse dos intérpretes a quem<br />

é dirigida, cobre um amplo espectro de possibilidades<br />

estéticas. Almeida Prado (n.1943) realizou<br />

experimentos com a sonoridade, comparáveis às suas<br />

Cartas Celestes para piano, em Livre pour Six Cordes<br />

e Portrait de Dagoberto, dedicado ao violonista paulista<br />

radicado na Suíça, Dagoberto Linhares, mas sua Sonata<br />

oscila entre uma energia “prokofieviana” e um<br />

nacionalismo desbragado. Outro prolífico compositor<br />

de música para violão é Ricardo Tacuchian (n.1939),<br />

cuja produção pende entre o nacionalismo urbano<br />

da Série Rio de Janeiro e da Imagem Carioca para<br />

4 violões e o experimentalismo sonoro das duas Lúdicas<br />

e dos dois Impulsos para dois violões.<br />

A exploração de técnicas pouco convencionais<br />

83


84<br />

encontra em Sighs de Jorge Antunes (n.1942) e no<br />

Estudo nº1 para violão e narrador de Rodolfo Coelho<br />

de Souza (n.1952) o seu canal de vazão. A polissemia<br />

produziu ao menos uma obra de interesse<br />

permanente, Que Trata de España de Willy Corrêa<br />

de Oliveira (n.1938).<br />

A proliferação de concertistas de atuação local<br />

e as óbvias vantagens da colaboração entre eles e<br />

compositores ainda não plenamente estabelecidos têm<br />

criado espaço para uma atividade extensa, frenética e<br />

difícil de avaliar, mas eu apontaria os nomes de quatro<br />

compositores nascidos depois de 1960 que apresentam<br />

todas as condições para uma plena aceitação<br />

no repertório internacional: Alexandre de Faria<br />

(n.1972), cuja Entoada foi agraciada com o primeiro<br />

prêmio no Concurso Internacional “Andrés Segovia”<br />

de composição em 1997, e que desde então tem escrito<br />

obras de extrema intensidade teatral, que absorvem<br />

alguns elementos do minimalismo, informadas por<br />

um raciocínio harmônico personalíssimo e de total<br />

intransigência de expressão: o Prelúdio nº1 - Olhos de<br />

uma Lembrança”e nº2 Death of Desire, além de dois<br />

concertos para violão e orquestra, o segundo dos quais,<br />

Mikulov , foi estreado com sucesso sem precedentes<br />

na República Tcheca; Artur Kampela (n.1960), cujas<br />

Danças Percussivas, também premiadas num concurso<br />

internacional na Venezuela, incorporam elementos<br />

DISCOGRAFIA<br />

A OBRA PARA VIOLÃO DE AMÉRICO JACOMINO “CANHOTO”; Gilson<br />

Antunes, violão - independente<br />

VILLA-LOBOS - OBRA INTEGRAL PARA VIOLÃO SOLO; Paulo Pedrassoli,<br />

violão - UERJ clássica<br />

ALMA <strong>BRASILEIRA</strong>; Duo Assad - Nonesuch<br />

CONCERTO À BRASILERA; Daniel Wolff, Orq. de Câmara da ULBRA,<br />

Tiago Flores, reg. – independente<br />

GAROTO - O GÊNIO DAS CORDAS - gravações originais - EMI<br />

OBRAS DE CAMERON, AMARAL VIEIRA, CORTES, HOLLANDA CAVALCANTI E<br />

LINA PIRES DE CAMPOS; Sérgio Assad, violão- Acervo Funarte<br />

<strong>MÚSICA</strong> NOVA <strong>BRASILEIRA</strong>; Mário da Silva Jr, violão - independente<br />

MANHÃ DE CARNAVAL; Graham Devine, violão – Naxos<br />

LPs<br />

12 ESTUDOS DE FRANCISCO MIGNONE; Carlos Barbosa Lima, violão<br />

MARLOS NOBRE: Yanomami, 3 Ciclos Nordestinos, 4 momentos; duo<br />

Assad, Dagoberto Linhares, violão<br />

RAFAEL RABELLO INTERPRETA RADAMÉS GNATALLI; Rafael Rabello, violão<br />

de modulação rítmica; Alexandre Eisenberg (n.1966),<br />

autor de ambiciosos projetos formais de caráter mais<br />

tradicional como o Prelúdio, Coral e Fuga e a Pentalogia;<br />

e Marcus Siqueira (n.1974), dono de um refinado<br />

ouvido para colorido instrumental, que é ilustrado pelo<br />

Impromptu Fragile, Impromptu Móbile e Elegia e Vivo; seu<br />

concerto para violão, harpa, celeste e 2 orquestras de<br />

câmara Hoquetus, Ecos, Espelhos ainda aguarda estréia.<br />

Há também autores de itens isolados de alta qualidade,<br />

como Mikhail Malt (n.1957) e seu Lambda 3.99 para<br />

violão e sons gerados por computador; Achille Picchi<br />

(b.1957), de feição algo mais convencional e<br />

bartokiana, com seu Prelúdio, Valsa e Finale e 3 Momentos<br />

Poéticos para violão e orquestra; Harry Crowl (n.1958),<br />

de genuína erudição, autor de Assimetrias; e Roberto<br />

Victorio (n.1959), com seu Tetraktis e um Concerto para<br />

violão, flauta e orquestra. Todos estes compositores,<br />

com a provável exceção de Faria e Eisenberg, têm<br />

de conviver com a nova ordem: dificuldades para<br />

publicação, distribuição e registro fonográfico destas<br />

obras levam-nos à tábua de salvação das universidades<br />

e das sociedades e festivais de música contemporânea;<br />

uma aceitação menos circunscrita à sua área de atuação<br />

será obra do acaso e do interesse continuado dos<br />

intérpretes.<br />

Mais afortunados são aqueles que transitam na<br />

tênue linha entre o clássico, o jazz e o instrumental<br />

brasileiro. No mundo, e cada vez mais no Brasil, hoje,<br />

há uma verdadeira indústria de sociedades, festivais,<br />

editoras e companhias discográficas dedicadas<br />

exclusivamente ao violão “clássico”, e entenda-se por<br />

clássico não uma categorização estética, mas tão<br />

somente de técnica instrumental. Uma parcela<br />

significativa do público para estes eventos e produtos<br />

carece de uma ampla cultura musical e certamente não<br />

dispõe de elementos para uma apreciação crítica da<br />

produção contemporânea; normalmente são estudantes<br />

ou amadores sérios que travaram seu primeiro contato<br />

com o violão através do pop ou do jazz. O perfil deste<br />

púbico determina a aceitação internacional de<br />

compositores-violonistas como Sérgio Assad (n.1952)<br />

que, além de ser um dos integrantes do renomado duo<br />

Assad, tem intensificado sua produção nos últimos<br />

15 anos; obras como Aquarelle, sua Sonata, a série


de Jobinianas, e várias peças para duo de violões como<br />

Vitória Régia, Pinote e Recife dos Corais já fazem<br />

parte do repertório regular de estudantes do mundo<br />

todo. A extensa, variada e instrumentalmente eficiente<br />

obra de Paulo Porto Alegre (n.1956), Daniel Wolff<br />

(n.1967) e Maurício Orosco (n.1976) parece destinada<br />

ao mesmo êxito.<br />

O traço que distingue estes compositores daqueles<br />

chamados violonistas “populares” é uma evidente<br />

ambição formal decorrente de sua atividade como<br />

concertistas. Compositores-violonistas cuja principal<br />

atuação é na área dos shows amplificados ou como<br />

acompanhantes de cantores ou solistas de jazz tendem<br />

a se encarar como herdeiros da tradição de Canhoto,<br />

Garoto, Dilermando Reis ou Baden Powell, e suas<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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de Milícias, 11a ed. São Paulo: Ática, 1980.<br />

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Martins, 1928.<br />

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CHIAFARELLI, Liddy, MIGNONE, Francisco. A parte<br />

do anjo. São Paulo: Editora Mangione, 1947.<br />

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brasileiro. Rio de Janeiro, 1950.<br />

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Movimento, 1983.<br />

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_________ (coord.). Francisco Mignone, o homem e a obra. Rio de<br />

Janeiro, FUNARTE - EDUERJ, 1997.<br />

NEVES, José Maria. Música brasileira contemporânea. São Paulo:<br />

Editora Ricordi, 1981.<br />

PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos, the music. London: Khan &<br />

Averill, 1990.<br />

obras são, conseqüentemente, restritas às formas de<br />

canção e dança, o que não as impede de serem<br />

adotadas amplamente como material de concerto<br />

mundo afora. Êxito incondicional tem obtido a obra de<br />

Paulo Bellinati (n.1950), cujo Jongo já foi gravado pelos<br />

mais destacados solistas internacionais e que já<br />

produziu centenas de obras na mesma veia, mas Marco<br />

Pereira (n.1955), Celso Machado (n.1953) e Guinga<br />

(n.1950) também têm uma ampla base de admiradores.<br />

Um caso singular encontramos em Egberto<br />

Gismonti (n.1944), celebrado internacionalmente como<br />

um dos maiores instrumentistas do jazz<br />

contemporâneo, mas cujas obras Central Guitar<br />

e Variations: Hommage à Webern se alinham à produção<br />

experimental de concerto.<br />

SANTOS, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro:<br />

Museu Villa-Lobos, 1975.<br />

SUMMERFIELD, Maurice J., The Classical Guitar, its evolution,<br />

players and personalities since 1800, 5a ed. Blaydon-on-Tyne:<br />

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TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos, the life and works. London:<br />

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<strong>Cultural</strong> São Paulo, 1987.<br />

VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri Expressões de Uma<br />

Vida. São Paulo, EDUSP, 2001.<br />

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Press, 1991.<br />

Enciclopédia da Música Brasileira. 2a ed. São Paulo, Art Editora<br />

Ltda., 1998.<br />

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SIMÕES, Ronoel, O Violão em São Paulo in Violões & Mestres,<br />

Direção Nelson.<br />

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WANDERLEY, Saulo, O dia em que o violão deixou de ser bandido<br />

in www.cafemusic.com, 1998.<br />

FÁBIO ZANON<br />

Concertista, mestre pela Universidade de Londres e membro da “Royal Academy of Music” de Londres.<br />

85


Música Viva<br />

CARLOS KATER


Omovimento Música Viva foi criado no Brasil em 1938,<br />

por obra de H. J. Koellreutter, sendo suas primeiras<br />

realizações e atividades efetivamente concretizadas no<br />

ano seguinte. 1 Assim, desde 1939 e ao longo de toda<br />

a década de 40, vemos desenvolver-se um movimento<br />

pioneiro de renovação, tendo por meta instaurar uma<br />

nova ordem no meio musical, inicialmente no Rio<br />

de Janeiro e após em São Paulo. Suas principais<br />

características definem-se pelo ineditismo de propostas<br />

na área cultural, atualidade do pensamento musical,<br />

convergência com tendências estéticas, filosóficas<br />

e políticas da vanguarda internacional e assim gerador<br />

de dinamismo junto ao ambiente da época. 2<br />

De maneira geral, a importância do movimento<br />

Música Viva é ainda hoje sub-avaliada. Os jovens<br />

compositores Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe,<br />

Eunice Katunda e Edino Krieger, entre outros músicos,<br />

liderados por Koellreutter, são não apenas responsáveis<br />

pela primeira fase da composição atonal<br />

e dodecafônica da música brasileira. Cabe a eles mais<br />

precisamente a criação de uma nova perspectiva<br />

da produção musical, imbricada numa concepção<br />

contemporânea da função social do artista. Enquanto<br />

movimento que foi, Música Viva gerou intensa dinâmica<br />

cultural, agregando ao amplo conjunto de atividades<br />

promovidas - concertos, audições experimentais,<br />

conferências, cursos, programas de rádio, edição<br />

de boletins e de partituras, etc – temas contemporâneos<br />

para reflexão e oportunidades instigantes para debates.<br />

Todas essas iniciativas ofereceram-se como ricas<br />

alternativas de participação, provocando um<br />

aceleramento na compreensão da arte, do músico<br />

e de seus respectivos papéis na sociedade de sua época.<br />

Música Viva foi um movimento musical concebido<br />

sob o tríplice enfoque: Educação (formação) – Criação<br />

(composição) – Divulgação (interpretação,<br />

apresentações públicas, edições, transmissões<br />

radiofônicas), que integrados tiveram intensidades<br />

proporcionais ao longo de sua existência. Podemos<br />

distinguir três fases em sua evolução, cada qual<br />

correspondendo a momentos ideológicos relativamente<br />

distintos. Elas refletem as posturas adotadas por seus<br />

Página ao lado: Hans-Joachim Koellreutter.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

principais representantes, determinando diretamente<br />

o percurso do movimento, tanto do ponto de vista<br />

histórico quanto estético. Isto porém em quase nada<br />

descaracterizará o impulso educacional e formador que<br />

tão fortemente impregnou o conjunto das atividades<br />

desenvolvidas.<br />

MOMENTO I<br />

A primeira fase, integradora por excelência, é marcada<br />

pela coexistência interna de tendências estéticas<br />

e ideológicas bastante dessemelhantes, representadas<br />

pelos membros que constituem o grupo em sua<br />

formação original. Luiz Heitor Correa de Azevedo<br />

(musicólogo), Egydio de Castro e Silva (pianista e<br />

compositor), Brasílio Itiberê (compositor e professor),<br />

Octávio Bevilácqua (crítico musical do “O Globo”)<br />

e Andrade Muricy (escritor e crítico musical do “Jornal<br />

do Comércio”) são algumas das personalidades mais<br />

atuantes e conhecidas no ambiente musical carioca,<br />

que compõem o movimento nesta primeira fase. 3<br />

Essa tendência integradora se expressa igualmente<br />

na elaboração dos programas de concerto, nos quais<br />

mesclam-se músicas de Villa-Lobos e Camargo<br />

Guarnieri com aquelas de Koellreutter e Cláudio<br />

Santoro, acrescidas nos anos seguintes pelas de vários<br />

outros compositores, muito distantes tanto estética<br />

quanto ideologicamente.<br />

Mesmo que aparentando uma postura tradicional<br />

em razão desta constituição inicial, Música Viva<br />

reivindica já uma meta original: “divulgar o compositor<br />

e sua obra, principalmente a contemporânea”,<br />

diferentemente das sociedades musicais existentes no<br />

meio carioca da época que visavam realçar “o virtuose<br />

e o concerto”. Desde junho de 1939 têm início as<br />

“Audições Música Viva”, que inauguram publicamente<br />

o movimento, seguindo-se meses após os Concertos de<br />

mesmo nome. A primeira edição da série dos boletins<br />

Música Viva é lançada em maio de 1940, veiculando um<br />

balanço detalhado das atividades realizadas pelo grupo<br />

no ano anterior, entre textos de autores diversos,<br />

enfocando temas da atualidade, problemáticas<br />

da música contemporânea brasileira e, como<br />

suplemento, a modinha Sem fim, para canto e piano,<br />

de Fructuoso Vianna. 4<br />

89


90<br />

A divulgação musical, sob diferentes formas, passa<br />

a recobrir um vasto espectro de tendências estilísticas,<br />

gêneros e períodos históricos, integrando ao panorama<br />

musical internacional tanto a frente nacionalista quanto<br />

a nova escola composicional brasileira, ainda<br />

incipiente. Proposta inusitada para o período, ela<br />

se tornará uma característica constante ao longo da<br />

trajetória do movimento, atendendo aos objetivos de<br />

acesso ao patrimônio musical já constituído e daquele<br />

em processo de consolidação, em vista da meta de<br />

revitalizar o ambiente artístico-cultural perseguida pelo<br />

Música Viva. Isto explica melhor as transformações<br />

operadas nos momentos seguintes, quando as músicas<br />

compostas pelo grupo de compositores, instaurando<br />

tendência experimental e maior maturação<br />

de inovações compositivas, suscitam um estilo crítico<br />

combativo particular nas comunicações do grupo.<br />

MOMENTO II<br />

A segunda fase do movimento é inaugurada pelo<br />

lançamento de um importante documento, seu<br />

primeiro manifesto. Em 1º de Maio de 1944 −<br />

significativamente “dia do trabalho”−, o grupo Música<br />

Viva divulga um dos mais concisos e brilhantes<br />

manifestos brasileiros, o “Manifesto 1944”.<br />

Manifesto:<br />

O grupo Música Viva surge como uma porta que se abre<br />

à produção musical contemporânea, participando ativamente<br />

da evolução do espírito.<br />

A obra musical, como a mais elevada organização do<br />

pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa<br />

encarnação da vida, está em primeiro plano no trabalho<br />

artístico do Grupo Música Viva.<br />

Música Viva, divulgando, por meio de concertos,<br />

irradiações, conferências e edições a criação musical hodierna<br />

de todas as tendências, em especial do continente americano,<br />

pretende mostrar que em nossa época também existe música<br />

como expressão do tempo, de um novo estado de inteligência.<br />

A revolução espiritual, que o mundo atualmente<br />

atravessa, não deixará de influenciar a produção<br />

contemporânea. Essa transformação radical que se faz notar<br />

também nos meios sonoros, é a causa da incompreensão<br />

momentânea frente à música nova.<br />

Idéias, porém, são mais fortes do que preconceitos!<br />

Assim o Grupo Música Viva lutará pelas idéias de um<br />

mundo novo, crendo na força criadora do espírito humano<br />

e na arte do futuro.<br />

Aldo Parisot, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Egydio de Castro e Silva,<br />

João Breitinger, Mirella Vita, Oriano de Almeida, H. J. Koellreutter<br />

O lançamento deste documento ilustra a<br />

intensificação das atividades do movimento no Rio de<br />

Janeiro e também a fundação de seu núcleo paulista.<br />

No início deste ano, Koellreutter havia começado a dar<br />

aulas de composição para Guerra-Peixe e logo após a<br />

Edino Krieger. Santoro, seu aluno desde 1940, obtém<br />

mais um prêmio: uma significativa “Menção Honrosa”<br />

no Chamber Music Guild, com o “Primeiro Quarteto”,<br />

composto em 1943. Ao mesmo tempo em que<br />

reorganiza a constituição do grupo5 , Koellreutter<br />

implanta a bem sucedida série de programas<br />

radiofônicos levados ao ar junto à Rádio Ministério<br />

da Educação e Saúde (PRA-2), a partir de 13/05/1944. 6<br />

No entanto, o significado desse breve manifesto<br />

vai muito além do que habitualmente se considera.<br />

Ele é o reflexo inaugural do que hoje chamamos<br />

“música moderna brasileira”. Isto porque ao mesmo<br />

tempo em que através dele se busca a afirmação<br />

e a representatividade do movimento como um todo,<br />

coloca-se em primeiro plano uma criação musical<br />

de viva atualidade (original mas também em sintonia<br />

com correntes da vanguarda internacional), que passa<br />

agora a se beneficiar fertilmente das produções atonais<br />

nacionais, compostas por Cláudio Santoro7 , Guerra<br />

Peixe8 e pelo próprio Koellreutter. Em fértil<br />

contraponto com a produção nacionalista do período,<br />

estas músicas novas contam com eficazes suportes<br />

de divulgação e têm sua qualidade artística quase<br />

unanimemente reconhecida pelos críticos. Embora<br />

com estilos próprios, elas possuem em comum um<br />

modelo estético definido, representando a nova escola<br />

de composição brasileira, frente única da vanguarda<br />

de seu tempo. 9<br />

A partir desse momento Música Viva se coloca em<br />

posição ofensiva, conquistando ainda mais espaço nos<br />

meios de comunicação. Nos depoimentos públicos,<br />

procurando explicar pontos de vista e justificar


Periódico Música Viva. Ano 1. Novembro 1940. Artigo assinado por Luís Heitor.<br />

FUNDAÇÃO BILIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

91


92<br />

a importância do trabalho do grupo frente à “realidade<br />

em transformação”, Koellreutter denuncia a estagnação<br />

do meio artístico e do ensino de música no Brasil. 10<br />

Esse segundo momento ideológico é caracterizado pela<br />

substituição do conceito corrente de “indivíduo” − nos<br />

assuntos musicais elevado à categoria mítica e idealista<br />

−, pelo contemporâneo e recém-introduzido valor:<br />

“capacidade coletiva de uma geração”.<br />

MOMENTO III<br />

O segundo documento significativo produzido pelo<br />

Música Viva é o Manifesto 1946 ou Declaração<br />

de Princípios, levando os nomes de Egydio de Castro<br />

e Silva, Gení Marcondes, Heitor Alimonda, Santino<br />

Parpinelli, Eunice Katunda, Guerra Peixe, Cláudio<br />

Santoro, Koellreutter. Uma simples leitura deste<br />

documento, que se tornará referência oficial<br />

do movimento, torna evidente o grau de complexidade<br />

com que é tratado o fato musical, mediante os enfoques<br />

estético, social e econômico, refletindo, antes de uma<br />

coerência propriamente, um mosaico de flashes<br />

intensos de consciência. Reproduzimos a seguir alguns<br />

fragmentos:<br />

A música, traduzindo idéias e sentimentos na linguagem<br />

dos sons, é um meio de expressão; portanto, produto da vida<br />

social.<br />

/.../ A arte musical é o reflexo do essencial na realidade.<br />

A produção intelectual, servindo-se dos meios de expressão<br />

artística, é função da produção material e sujeita, portanto,<br />

como esta, a uma constante transformação, a lei da evolução.<br />

Música é movimento. / Música é vida.<br />

“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” compreendendo este fato combate pela<br />

música que revela o eternamente novo, isto é: por uma arte<br />

musical que seja a expressão real da época e da sociedade.<br />

“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” refuta a assim chamada arte<br />

acadêmica, negação da própria arte.<br />

“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, baseada nesse princípio fundamental,<br />

apoia tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo,<br />

escolhendo a revolução e repelindo a reação.<br />

“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, compreendendo que o artista é<br />

produto do meio e que a arte só pode florescer quando as forças<br />

produtivas tiverem atingido um certo nível de desenvolvimento,<br />

apoiará qualquer iniciativa em prol de uma educação não<br />

somente artística, como também ideológica; pois, não há arte<br />

sem ideologia.<br />

/.../ “<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, adotando os princípios<br />

de arte-acão, abandona como ideal a preocupação exclusiva<br />

de beleza; pois, toda a arte de nossa época não organizada<br />

diretamente sobre o princípio da utilidade será desligada<br />

do real.<br />

/.../ “<strong>MÚSICA</strong> VIVA” acredita na função socializadora<br />

da música que é a de unir os homens, humanizando-os<br />

e universalizando-os.<br />

“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, compreendendo a importância social<br />

e artística da música popular, apoiará qualquer iniciativa no<br />

sentido de desenvolver e estimular a criação e divulgação<br />

da boa música popular, combatendo a produção de obras<br />

prejudiciais à educação artístico-social do povo.<br />

/.../ Consciente da missão da arte contemporânea em face<br />

da sociedade humana, o grupo “<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, acompanha<br />

o presente no seu caminho de descoberta e de conquista,<br />

lutando pelas idéias novas de um mundo novo, crendo na força<br />

criadora do espírito humano e na arte do futuro. 11<br />

Este grande painel de idéias, verdadeiro mural de<br />

intenções da modernidade musical brasileira, retrata<br />

com perfeição o papel revolucionário assumido pelo<br />

movimento e o engajamento visceral com que os<br />

membros do grupo se lançam às questões fundamentais<br />

da realidade social de seu tempo. No entanto, contém<br />

já em seu bojo as contradições essenciais que<br />

provocarão abalos consecutivos até sua ruptura<br />

definitiva.<br />

Santoro, que desde Agosto de 1947 estava fora<br />

do país, participa do “II Congresso Internacional de<br />

Compositores e Críticos Musicais”, realizado em Praga<br />

de 20 a 29 de Maio de 1948. O contato direto com os<br />

músicos progressistas e suas teses o levarão a compartilhar<br />

fervorosamente dos ideais do “realismo socialista”.<br />

Serão justamente as “Resoluções” e o “Apelo”<br />

elaborados nesse congresso – e editados em seguida no<br />

Música Viva nº16 (Agosto/1948), boletim que encerra a<br />

série de publicações –, que conferirão substrato formal<br />

para a polarização das divergências ideológicas entre<br />

Koellreutter e Santoro, notadamente, deflagrando<br />

no grupo o processo efetivo de dissolvência.<br />

Assim, se por um lado o movimento Música Viva


“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” acredita na função socializadora<br />

da música que é a de unir os homens,<br />

humanizando-os e universalizando-os.<br />

demonstrava amplo desenvolvimento em sua empresa<br />

de divulgação e de formação musical, tanto no Rio de<br />

Janeiro quanto em São Paulo, por outro lado o grupo<br />

integrado pelos compositores − até então seu carrochefe<br />

−, rumava a caminho da implosão.<br />

O MOVIMENTO EM SÃO PAULO<br />

A inauguração do movimento Música Viva paulista<br />

se dá em meados de 1944, como mencionamos.<br />

O primeiro grupo que se constituiu foi a célula base<br />

de um tímido movimento, sediado na residência de um<br />

de seus participantes onde ocorriam aulas,<br />

apresentações musicais e palestras de Koellreutter.<br />

Afora seus alunos Gení Marcondes, Ruy Coelho,<br />

Álvaro Bittencourt, Ducks Simon, Ulla Simon-Wolf,<br />

Eva Kovach, Lídia Alimonda, Jenny Pereira<br />

e Magdalena Nicoll, integravam também o grupo<br />

vários outros artistas e intelectuais.<br />

Após breve interrupção, Koellreutter retomará no<br />

ano seguinte suas aulas. Nininha Gregori, Damiano<br />

Cozzella, Roberto Schnorrenberg, Hans Trostli, Jorge<br />

Wilheim e Eunice Katunda12 , são alguns dos alunosparticipantes<br />

que darão vigor a essa segunda e mais<br />

autêntica fase do movimento. Música Viva paulista<br />

é lançado oficialmente no auditório da Biblioteca<br />

Municipal em 05/07/1947, sendo o evento ilustrado<br />

com a conferência “Fundamentos de uma estética<br />

materialista da música”, pronunciada pelo líder<br />

do Música Viva e seguida, como de praxe, por debate<br />

público. Desde esta data tem início uma profícua<br />

atuação junto ao Museu de Arte de São Paulo, mediante<br />

a realização de série de cursos, conferências e dos<br />

“Concertos Música Viva”, que prolongaram-se até 1951.<br />

No entanto, apesar da dinâmica que o movimento<br />

paulista imprimiu no meio musical local, suas<br />

atividades não chegaram a alcançar a mesma<br />

magnitude verificada no Rio de Janeiro. Tampouco<br />

emergiu de seus participantes um grupo autêntico de<br />

compositores, do porte de um Santoro ou Guerra Peixe<br />

(Roberto Schnorrenberg é uma das poucas exceções),<br />

fato que em parte justifica a importância minimizada<br />

que a ele correntemente se atribui. O grupo que se<br />

formou foi composto em grande parte por musicistas,<br />

muitos dos quais jovens alunos de Koellreutter<br />

desejosos em redinamizar o ambiente da época e<br />

bastante atuantes na promoção de conferências, cursos,<br />

audições e concertos. Contudo, os núcleos paulistas de<br />

renovação, que vieram posteriormente a desempenhar<br />

um relevante papel no desenvolvimento da música<br />

brasileira desde o início da década de 60, permitem<br />

observar na base de suas iniciativas, músicos ativos<br />

formados num terreno já fertilizado pelas realizações<br />

Música Viva, seja enquanto participantes diretos do<br />

movimento, seja enquanto alunos de Koellreutter<br />

(de suas aulas particulares de composição e estética,<br />

bem como das classes por ele ministradas na “Escola<br />

Livre de Música” de São Paulo). 13<br />

TRANSCENDÊNCIA DO MOVIMENTO<br />

Em 7 de Novembro de 1950 o compositor Camargo<br />

Guarnieri, natural de Tietê/SP, publica sua “Carta<br />

Aberta”, responsável por uma das maiores polêmicas já<br />

observadas na vida musical e artística brasileira. Texto<br />

de combate, com conteúdo fortemente polêmico,<br />

acabou por representar um golpe direto no trabalho<br />

de formação musical desenvolvido por Koellreutter,<br />

93


94<br />

impondo sérias limitações à atuação do movimento<br />

na capital paulista. 14 Envolveram-se na celeuma<br />

as facções pró e contra a música dodecafônica,<br />

reavivando questões políticas e estéticas já colocadas<br />

anos antes pertinentemente pelo próprio grupo Música<br />

Viva. Como desdobramento final desse processo,<br />

deu-se um mês após no Museu de Arte um<br />

efervescente debate, que levou à desarticulação<br />

o movimento em São Paulo e após no Rio de Janeiro.<br />

Os eventos musicais até então ali desenvolvidos com<br />

sucesso reduzem-se de maneira expressiva, deixando<br />

de ter qualquer relação com o movimento logo<br />

no ano seguinte.<br />

Assim como a divulgação dos manifestos<br />

de 1944 e de 1946 havia provocado fortes reações<br />

na comunidade musical, a concepção destes<br />

documentos implicou em rupturas internas no grupo<br />

de compositores. Muito embora o progressivo<br />

engajamento partidário de alguns de seus membros<br />

acrescido de dificuldades relacionais internas tenham<br />

comprometido uma continuidade coerente<br />

e harmoniosa dos princípios do movimento, deve-se<br />

no entanto mais substancialmente à questão política<br />

e de preservação de territórios em São Paulo<br />

o esvaziamento do Música Viva brasileiro.<br />

Os produtos engendrados pelos movimentos<br />

paulista e carioca rarefazem-se entre 51 e 52,<br />

praticamente nenhuma menção à Música Viva<br />

subsistindo após estas respectivas datas. Da mesma<br />

maneira que os movimentos, o grupo de compositores,<br />

a partir de sua re-orientação estética e ideológica em<br />

1948-49, não chegou na realidade a ter um final<br />

estanque. Deu-se sim uma desarticulação, uma<br />

1. Hans-Joachim Koellreutter nasceu em Freiburg, na Alemanha,<br />

a 02/09/1915 e chegou ao Rio de Janeiro em 1937. Com 22 anos,<br />

o jovem flautista e compositor, que havia estudado com o<br />

renomado regente Hermann Scherchen, mestre de toda uma<br />

geração, traz vivo o desejo de dar continuidade no Brasil às<br />

participações que havia tido na Europa em grupos com certo<br />

ineditismo de propostas (“Círculo de Música Nova”, Berlim 1935<br />

e “Círculo de Música Contemporânea”, Genebra 1936).<br />

2. A expressão Musica Viva foi originalmente cunhada pelo<br />

músico e regente alemão Hermann Scherchen (1891-1966),<br />

dissolvência intensa e progressiva, em razão da falta<br />

interna de consenso. No entanto, o impulso dinâmico<br />

de reformular, de pôr abaixo valores acadêmicos<br />

e tradicionais, de combater preconceitos, de estimular<br />

a criatividade e a participação se mantém vivo no líder<br />

do Música Viva.<br />

De fato já antes do encerramento completo dos<br />

movimentos, Koellreutter implanta novos projetos que<br />

mesmo conferindo à ideologia Música Viva formas<br />

diferenciadas, privilegiam sempre, de maneira<br />

característica, a educação musical, a criação e o<br />

“sentido coletivista da música”. Assim, entre algumas<br />

de suas iniciativas, teremos a bem sucedida série dos<br />

“Cursos Internacionais de Férias Pró-Arte” de<br />

Teresópolis/RJ, que inaugurou a tradição dos eventos<br />

de férias no Brasil, com início em janeiro de 1950<br />

(portanto quase um ano antes da Carta Aberta);<br />

a “Escola Livre de Música” de São Paulo, a partir de<br />

1952, apresentando um projeto de formação musical<br />

inusitado e introduzindo nas salas de aula o estudo do<br />

jazz e da música popular, por exemplo; os “Seminários<br />

Internacionais de Música” de Salvador/Bahia, lançados<br />

em 1954, e que, logo nos anos seguintes, acabou por<br />

transformar a capital baiana num dos mais importantes<br />

e inovadores centros de formação de músicos<br />

e de educadores musicais do país. 15<br />

Grande parte dos músicos de relevo no cenário<br />

artístico brasileiro, bem como dos grupos corais e/ou<br />

instrumentais, espelham em sua formação uma simples<br />

influência que seja ou, mais freqüentemente, uma<br />

filiação direta com a dinâmica empresa pedagógica<br />

instalada pioneiramente pelo movimento Música Viva<br />

e por H. J. Koellreutter entre nós.<br />

inaugurando um movimento musical e nomeando assim um<br />

periódico musical, editado em Bruxelas de 1933 a 1936.<br />

Os esforços desse reconhecido mestre foram consagrados à<br />

divulgação e à melhor compreensão da música nova, cabendolhe<br />

as primeiras audições de obras de compositores modernos,<br />

hoje indiscutivelmente incorporados à história do século XX:<br />

P.Hindemith, A.Schoenberg, A.Berg, A.Webern, S.Prokofiev,<br />

I.Stravinsky, L.Dallapiccola, L.Nono, H.-W.Henze, bem como<br />

Koellreutter, Guerra Peixe, Eunice Katunda, entre outros mais.<br />

3. Diferentemente das seguintes fases nas quais os participantes


mais ativos serão jovens alunos ou ex-alunos de Koellreutter.<br />

4. A primeira fase de publicação dos boletins estende-se<br />

do nº1 de Maio/1940 ao nº 10/11 de Maio/1941. Cada um dos<br />

exemplares dessa fase oferecem em suplemento a partitura<br />

de uma composição contemporânea, de pequeno porte, quase<br />

sempre de autor nacional. A retomada das publicações se dará<br />

apenas em 1946, porém em outro formato e com nova política<br />

editorial.<br />

5. Por essa ocasião são membros do Música Viva no Rio de<br />

Janeiro: Jaioleno dos Santos, Marcos Nissensson, Santino<br />

Parpinelli e Loris Pinheiro, afora os signatários do manifesto.<br />

6. Eram irradiados semanalmente programas com música ao vivo<br />

e gravações, contando com a participação de membros do Música<br />

Viva e de artistas convidados, intérpretes que, em sua maioria,<br />

desde então impuseram-se no ambiente musical. De fato, não<br />

apenas a modernidade mas várias outras épocas foram<br />

representadas e comentadas nos programas. As estréias mundiais,<br />

nacionais ou regionais cobriram então vasta gama, incidindo<br />

sobre produções ocidentais desde a Idade Média até<br />

a contemporaneidade e, evidentemente, obras do próprio grupo.<br />

Esses programas estenderam-se até cerca de 1952.<br />

7. Aluno de Koellreutter a partir de 1940 e até por volta de<br />

meados de 41, Santoro já havia efetuado em diversas obras a<br />

passagem do atonalismo simples ao dodecafônico, encontrandose<br />

nessa ocasião em plena maturidade composicional.<br />

8. Seu colega desde inícios de 1944, este músico experiente passa<br />

rapidamente a conceber seus mais significativos frutos nessa<br />

mesma direção.<br />

9. Vale observar que raras foram as músicas compostas<br />

rigorosamente sob o método atonal-dodecafônico, tal como<br />

concebido por A.Schoenberg, praticado por seus discípulos<br />

A. Berg, A. Webern e muitos dos principais seguidores, mesmo<br />

um latinoamericano como Juan Carlos Paz. As produções dos<br />

compositores brasileiros foram em sua quase totalidade bem mais<br />

livres do ponto de vista técnico e particularmente criativas na<br />

incorporação de ritmos e padrões musicais regionais brasileiros,<br />

resultando assim em fatura fortemente original.<br />

10. Em seu texto “A música e o sentido coletivista do compositor<br />

moderno” (Diretrizes, 11/05/44, p.5) ele critica as deficiências do<br />

curso de composição da Escola Nacional de Música (RJ), gerando<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

KATER, Carlos. Catálogo de Obras de H. J. Koellreutter. Belo<br />

Horizonte: FEA / FAPEMIG − Fundação de Amparo à<br />

Pesquisa de Minas Gerais, 1997.<br />

———. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à modernidade.<br />

São Paulo: Atravez & Musa, 2001.<br />

———. Eunice Katunda, musicista brasileira. São Paulo: Annablume/<br />

FAPESP, 2001.<br />

DISCOGRAFIA<br />

KOELLREUTTER PLURAL - Centro Experimental de Música do SESC<br />

(SP,1995) (CD); “Koellreutter”, série Música Nova da América<br />

Latina - TACAPE (T0012,1983); “III Bienal de Música<br />

Contemporânea”, Vol.II. FUNARTE, LP nº 3.56.404.031; “Beatriz<br />

Balzi – Compositores Latino-Americanos 1, 2, 3”, série Música<br />

Nova de América Latina – TACAPE (CD), entre vários outros<br />

editados, sobretudo, pela FUNARTE (RJ)<br />

profunda incompatibilização não apenas com a própria escola,<br />

mas com todo o meio musical conservador carioca.<br />

11. Cf. boletim Música Viva, nº12, Jan./1947. Este documento,<br />

finalizado em 1 de Novembro 1946, foi também publicado, sob<br />

o título “Manifesto Música Viva / Declaração de Princípios”, na<br />

revista Paralelos, nº5 (SP, Jun./1947), p.49-51. Para sua transcrição<br />

integral, bem como a dos demais manifestos (1944 e 1945), ver:<br />

KATER, C. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à<br />

modernidade (2001).<br />

12. Que em seguida irá integrar o grupo de compositores no Rio<br />

de Janeiro junto com Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Edino<br />

Krieger.<br />

13. Fundada em 15 de Março de 1952, a “Escola Livre de Música<br />

de São Paulo Pró-Arte” passará a chamar-se, quatro anos após,<br />

“Pró-Arte Seminários de Música” e estende suas atividades até<br />

1958.<br />

14. Este documento foi muito provavelmente originado pelo forte<br />

incômodo causado no compositor nacionalista diante do<br />

progressivo espaço que vinha sendo ocupado em São Paulo pelo<br />

movimento Música Viva, sob a coordenação do carismático<br />

Koellreutter, de quem aliás tinha sido amigo havia quase uma<br />

década.<br />

15. A partir desses Seminários é que se originou a Escola de<br />

Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia<br />

(UFBa). Para uma apresentação das principais realizações e<br />

atividades de Koellreutter, ver: KATER, C. “H. J. Koellreutter:<br />

música e educação em movimento”, in: Cadernos de<br />

Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH: Atravez/EM-UFMG/FEA,<br />

Fev/1997, p.6-25.<br />

———. (Edit.) Cadernos de Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH:<br />

Atravez/UFMG, Fev. 1997 (contendo coletânea comentada de<br />

textos produzidos por H.J.Koellreutter em diferentes épocas).<br />

NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. SP: Ricordi,<br />

1981.<br />

MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 2000 (5ªed.).<br />

CARLOS KATER<br />

Doutor em História da Música e Musicologia pela Universidade de Paris IV (Sorbonne) e Professor Titular concursado pela UFMG, é atualmente docente<br />

da UFSCar - Universidade Federal de São Carlos e do Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade São Marcos (SP).<br />

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FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Francisco Mignone


FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Lorenzo Fernandez


Não tivessem nascido no mesmo ano, 1897, Francisco<br />

Mignone e Oscar Lorenzo Fernandez não estariam<br />

freqüentemente associados, mesmo levando em conta<br />

as várias similaridades entre suas características<br />

e vivências pessoais, compreendendo desde a comum<br />

escolha de suas profissões, a atuação no mesmo espaço<br />

físico-cultural, até a adesão, na condição de<br />

compositores, a propostas estéticas semelhantes.<br />

Porém, se olharmos de forma mais acurada, veremos<br />

que suas trajetórias foram desiguais, o que reputamos<br />

a três razões fundamentais: suas origens, as diferentes<br />

personalidades e a fatalidade que interrompeu de<br />

maneira prematura a vida de Lorenzo Fernandez,<br />

estabelecendo uma grande distinção entre os períodos<br />

de tempo que ambos dispuseram para atuar e produzir.<br />

Francisco Mignone nasceu em São Paulo, no dia<br />

3 de setembro de 1897, filho do jovem músico italiano<br />

Alferio Mignone, flautista que havia emigrado para<br />

o Brasil no ano anterior. A provinciana São Paulo não<br />

oferecia muitas oportunidades de trabalho a um<br />

instrumentista de orquestra, entidade musical até então<br />

inexistente na cidade, a não ser na forma de<br />

agrupamentos musicais heterogêneos arregimentados<br />

ocasionalmente. Entretanto, a cidade crescia<br />

e desenvolvia-se rapidamente: em 1906, começaram<br />

as atividades do Conservatório Dramático e Musical<br />

de São Paulo, do qual Alferio Mignone tornou-se<br />

professor; em 1911, inaugurou-se o Teatro Municipal<br />

de São Paulo e no ano seguinte, foi criada a Sociedade<br />

de Cultura Artística; finalmente, em 1921, foi fundada<br />

a Sociedade de Concertos Sinfônicos de São Paulo,<br />

entidade que congregou uma orquestra com quadro<br />

regular de instrumentistas, entre eles Alferio Mignone.<br />

Ser filho de um músico italiano – profissão mal<br />

vista na época – vivendo fora do grande centro dos<br />

acontecimentos e das principais instituições musicais<br />

do país, o Rio de Janeiro, era uma origem<br />

desfavorável, a não ser para quem estava também<br />

98<br />

LUTERO RODRIGUES<br />

destinado a ser músico. Desde muito cedo, Francisco<br />

Mignone recebeu uma esmerada formação musical<br />

estudando flauta e piano; aos 15 anos, ingressou no<br />

Conservatório Dramático e Musical de São Paulo onde<br />

passou a ser orientado pelos melhores professores que<br />

havia na cidade: seu próprio pai (flauta) e o célebre<br />

mestre italiano Agostino Cantú (piano, harmonia,<br />

contraponto e composição). Aos 19 anos, recebeu os<br />

diplomas de flauta, composição e piano, três vertentes<br />

que lhe foram úteis em diferentes momentos da vida.<br />

Quando terminou o Conservatório, o jovem<br />

Mignone já era conhecido no ambiente musical<br />

paulista. Desde os 13 anos de idade, tocava piano<br />

em pequenas orquestras para ajudar nas despesas com<br />

seus próprios estudos e eventualmente atuava também<br />

como flautista, não só em orquestras, mas também<br />

em conjuntos de “chorinhos” pelas ruas de São Paulo.<br />

Começava também a revelar o seu talento para<br />

a composição criando peças de cunho popular, com<br />

o pseudônimo de “Chico Bororó”.<br />

Para o público erudito paulistano, a estréia oficial<br />

de Mignone deu-se em 16 de dezembro de 1918 e foi<br />

um grande sucesso. Ele atuou como pianista, solando<br />

o 1º movimento do Concerto de Grieg, e compositor,<br />

pois duas de suas obras sinfônicas foram também<br />

ouvidas em primeira audição: o poema sinfônico<br />

Caramuru (1917) e a Suíte Campestre (1918). São Paulo<br />

tinha uma lei singular, o chamado Pensionato Artístico<br />

do Governo do Estado, que concedia bolsas de estudo<br />

no exterior para jovens artistas, desde que seus nomes<br />

fossem aprovados por uma comissão presidida pelo<br />

então deputado Freitas Valle, um admirador do talento<br />

de Mignone. Após o sucesso do concerto, a obtenção<br />

da bolsa por Mignone foi uma conseqüência natural,<br />

como também foi natural o seu destino, a Itália. Além<br />

da facilidade da língua e sua própria origem, a cultura<br />

musical italiana dominava a vida musical paulistana,<br />

onde atuavam muitos músicos originários daquele país,


embora a influência francesa preponderasse em todos<br />

os outros ramos culturais, como de resto acontecia<br />

em todo o Brasil.<br />

Não resistindo à digressão, qual não teria sido<br />

o impulso inicial na carreira do jovem compositor<br />

e seu destino após diplomar-se, se tivesse mostrado<br />

suas qualidades excepcionais de músico, cursando,<br />

não o conservatório paulistano, mas o Instituto<br />

Nacional de Música, no Rio de Janeiro, de muito<br />

maior visibilidade?<br />

Em 1920, Mignone chegou a Milão e só retornaria<br />

ao Brasil, definitivamente, em 1929. Durante este<br />

período, voltou ao nosso país algumas vezes, por curtas<br />

temporadas, geralmente para acompanhar a execução<br />

de algumas de suas principais composições da década.<br />

Na Itália, estudou harmonia, contraponto, fuga<br />

e composição com o célebre mestre Vincenzo Ferroni,<br />

que tivera formação francesa como discípulo de<br />

Massenet. Seu nome estava ligado à história da música<br />

brasileira, pois havia sido colega de Francisco Braga<br />

e professor de Alexandre Levy. Mignone solidificou<br />

e ampliou seus conhecimentos, inclusive em<br />

orquestração, arte para a qual já demonstrava<br />

especial aptidão.<br />

Em São Paulo, a orquestra da Sociedade de<br />

Concertos Sinfônicos que se responsabilizava pela<br />

execução de suas novas obras, também promovia<br />

concursos de composição, duas vezes vencidos por<br />

Mignone, em 1923 e 1926. As principais obras do<br />

compositor, durante o período, foram duas óperas:<br />

O Contratador de Diamantes (1921) e L’innocente (1927),<br />

ambas com texto em italiano, na época considerado<br />

quase uma linguagem oficial da ópera. Uma dança<br />

sinfônica do Contratador, a conhecida Congada, obteve<br />

grande sucesso ao ser incluída na programação da<br />

Orquestra Filarmônica de Viena, sob a regência de<br />

Richard Strauss, em sua passagem pelo Brasil, em<br />

1923, antecipando o sucesso que a ópera alcançaria no<br />

ano seguinte, ao ser estreada no Rio de Janeiro.<br />

Maior sucesso ainda obteria sua segunda ópera,<br />

L’innocente, em sua estréia, no Rio de Janeiro, em 1928,<br />

e algumas lideranças da vida cultural brasileira, em<br />

conjunto com setores da imprensa, passaram a<br />

vaticinar que Mignone seria o sucessor de Carlos<br />

Francisco Mignone. Festa das Igrejas. Partitura manuscrita autógrafa.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Gomes. Entretanto, nem Carlos Gomes tinha uma<br />

reputação inatacável entre as diversas facções<br />

modernistas, nem Mignone, que começou a ver<br />

questionadas suas óperas italianas através dos mesmos<br />

setores da nossa intelectualidade. Um deles era um<br />

velho conhecido seu, Mário de Andrade, antigo colega<br />

do Conservatório, que escreveu:<br />

“Mas que valor nacional tem O inocente?<br />

Absolutamente nenhum. Em música italiana, Francisco<br />

Mignone será mais um, numa escola brilhante, rica,<br />

numerosa, que ele não aumenta. Aqui ele será um<br />

valor imprescindível.” (Mariz,1997:13)<br />

Porém, Mário não havia feito apenas este elegante<br />

apelo a Mignone; em outra ocasião, dirigindo-se aos<br />

compositores brasileiros em geral, dissera:<br />

“Todo artista brasileiro que no momento atual fizer<br />

arte brasileira é um ser eficiente com valor humano.<br />

O que fizer arte internacional ou estrangeira,<br />

se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma<br />

99


100<br />

reverendíssima besta”. (Andrade, s/d.:19)<br />

Voltando ao Brasil, em 1929, Mignone tomou<br />

a decisão que gerou profundas mudanças em sua<br />

música, aderindo ao nacionalismo. Muitos anos mais<br />

tarde, ao completar 70 anos, em uma entrevista bem<br />

humorada concedida ao Jornal do Brasil, o compositor<br />

afirmou que tomara a decisão para “não ser<br />

considerado…uma reverendíssima besta”.<br />

Sob a influência de Mário de Andrade, de quem<br />

tornou-se um grande amigo, Mignone compôs, a partir<br />

de 1929, a série das 4 Fantasias Brasileiras para Piano<br />

e Orquestra, de inequívoca tendência nacionalista.<br />

Em 1933, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade<br />

onde viveria até a morte e iniciou um ciclo de obras,<br />

sobretudo sinfônicas, baseadas em elementos<br />

característicos da cultura negra do Brasil: Maracatú<br />

do Chico Rei (1933), Babaloxá e Batucajé (1936), Leilão<br />

(1941). O chamado “ciclo negro” de sua música<br />

provocou questionamentos, inclusive de Mário<br />

de Andrade, fazendo com que o compositor buscasse<br />

outros rumos. Porém, estas não foram suas únicas obras<br />

do período; também compôs o célebre ciclo das 12<br />

Valsas de Esquina (1938-1943), obras que nos remetem<br />

para a vivência seresteira do “Chico Bororó” nas ruas<br />

de São Paulo. De todos os compositores influenciados<br />

por Mário de Andrade, foi ele quem mais deixou<br />

transparecer, em sua música, os ideais socialistas da<br />

fase final da vida de Mário, através de obras como<br />

Sinfonia do Trabalho (1939) e Festa das Igrejas (1940).<br />

Crises eventuais de auto-questionamento faziam<br />

parte da personalidade de Mignone, tornando-se<br />

responsáveis por várias mudanças de rumo em<br />

sua vida. Em uma delas, a composição foi<br />

temporariamente preterida pela regência, atividade que<br />

seu múltiplo talento musical permitia exercer com<br />

perfeição, lembrando que desde 1934, Mignone<br />

assumira a cadeira de Regência do Instituto Nacional<br />

de Música e tivera a oportunidade de reger grandes<br />

orquestras da Europa, como a Filarmônica de Berlin.<br />

Em outro destes momentos de reflexão, exatamente<br />

quando completava seus 50 anos, deixou-nos um<br />

importante depoimento através do livro A parte do anjo,<br />

externando os conflitos consigo mesmo gerados por<br />

sua “facilidade natural” em relação à música.<br />

A continuação de seu trabalho de compositor pode<br />

ser definida por suas próprias palavras:<br />

“Depois de dobrar o cabo das boas resoluções, aos<br />

sessenta e mais anos, entreguei-me a escrever música<br />

pela música. Agrado a mim mesmo e é quanto basta.<br />

Aceito e emprego todos os processos de composição<br />

conhecidos.” (Mariz,1997:46)<br />

Eventualmente, o compositor criou peças<br />

de linguagem mais moderna, mas a partir da década<br />

de 60, fez experiências com a técnica dodecafônica e<br />

a música atonal, voltando em seguida à sua linguagem<br />

anterior baseada no credo nacionalista. Apesar das<br />

crises ocasionais que dificultavam seu trabalho,<br />

a produção musical de Mignone pouco a pouco tornouse<br />

muito numerosa, abrangente e diversificada,<br />

compreendendo variados gêneros e as mais diversas<br />

formações instrumentais e vocais, desde a música para<br />

piano, canto e piano, música de câmara, até aquela<br />

destinada às grandes formações de coro e orquestra<br />

sinfônica. Sua produção tem algumas particularidades<br />

que o diferenciam no cenário brasileiro, entre elas<br />

o ecletismo: compôs mais de uma dezena de bailados,<br />

número equivalente de músicas para filmes<br />

cinematográficos, mas também dois oratórios e sete<br />

missas, fato surpreendente para um compositor que<br />

se declarava não-católico.<br />

Observando a obra de Mignone como um todo,<br />

pode-se perceber que ele preferia compor a partir de<br />

motivações exteriores, geralmente literárias, e seu<br />

instrumento preferido era a orquestra sinfônica, fato<br />

que o tornou, depois de Villa-Lobos, o compositor<br />

brasileiro que mais obras escreveu para esta formação<br />

instrumental. A ópera, excluída de sua vida por uma<br />

opção consciente, voltou a fazer parte dela já perto<br />

de seu final. Escolhendo assuntos ligados ao passado<br />

histórico brasileiro, compôs O Chalaça (1976)<br />

e O Sargento de Milícias (1978).<br />

Mignone morreu no dia 19 de fevereiro de 1986,<br />

aos 88 anos de idade, e concluímos da maneira que<br />

começa quase toda a bibliografia existente sobre<br />

Mignone, afirmando que foi ele o músico mais<br />

completo entre todos os nossos compositores.<br />

Também brasileiro de primeira geração, Oscar<br />

Lorenzo Fernandez nasceu no Rio de Janeiro, 2 meses


após Mignone, no dia 4 de novembro, filho de um<br />

comerciante espanhol de boa situação econômica, Don<br />

Cassiano Fernandez Alvarez. Desde cedo, sua família<br />

destinou-o à medicina e ele demonstrava aptidão pela<br />

pesquisa científica. Aos 15 anos, começou a tocar piano<br />

de ouvido, apresentando especial interesse por acordes<br />

e harmonizações, enquanto sua irmã Amália, que<br />

estudava piano com Henrique Oswald, passou a darlhe<br />

noções de teoria musical. Preparando-se para cursar<br />

a Faculdade Nacional de Medicina, em 1916, sofreu um<br />

distúrbio nervoso que o impediu de estudar por algum<br />

tempo, dedicando-se, porém, à música como forma<br />

de relaxamento. Tendo já feito algumas incursões pela<br />

composição de peças de cunho popular, passou a ter<br />

aulas regulares de piano e no ano seguinte,<br />

matriculou-se no Instituto Nacional de Música.<br />

A partir deste momento, a vida de Lorenzo<br />

Fernandez transformou-se em um dos maiores<br />

exemplos da história da música brasileira, senão<br />

o maior, de determinação e dedicação ao objetivo<br />

de tornar-se músico, tendo plena consciência que<br />

começara mais tarde do que a prática normal<br />

recomendava e portanto deveria fazê-lo com muito<br />

maior empenho pessoal. Tal dedicação foi muito bem<br />

recebida pelos competentes mestres do Instituto,<br />

com os quais passou a estudar: J. Octaviano (teoria<br />

a solfejo), Henrique Oswald (piano), Francisco Braga<br />

(composição, contraponto e fuga) e sobretudo<br />

Frederico Nascimento (harmonia), que tornar-se-á seu<br />

mentor e amigo.<br />

Em 1923, com o agravamento dos problemas<br />

de saúde do mestre Frederico Nascimento, Lorenzo<br />

Fernandez foi nomeado professor substituto da cadeira<br />

de Harmonia Superior, tornando-se o mais jovem<br />

membro do corpo docente da instituição, posto no qual<br />

foi efetivado, em 1925, após a morte do mestre.<br />

Além desta vertiginosa carreira acadêmica, desde 1919,<br />

Lorenzo Fernandez produzia, anualmente, várias<br />

composições para piano, canto e piano, e música<br />

de câmara, incluindo o Trio nº 1, que recebeu sua<br />

estréia em 1923, num concerto inteiramente dedicado<br />

às suas obras, no Instituto Nacional de Música.<br />

Até 1924, suas composições gravitavam em torno<br />

das soluções estéticas românticas e impressionistas,<br />

Lorenzo Fernandez. Fotografia assinada por Nicolas.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

embora o compositor não se mantivesse avesso<br />

às novas propostas modernistas. Havia estado presente<br />

à Semana de Arte Moderna, de São Paulo, e passou a<br />

desenvolver, com Graça Aranha, um dos participantes<br />

da Semana, o projeto de composição de uma ópera<br />

baseada no texto de Malazarte, daquele autor,<br />

ao mesmo tempo em que iniciava uma amizade com<br />

Mário de Andrade que se tornaria sólida. 1<br />

A partir de 1924, Lorenzo Fernandez passou<br />

a evidenciar sua adesão ao nacionalismo musical<br />

brasileiro com a composição da Canção Sertaneja e do<br />

Trio nº 2, denominado Trio Brasileiro. No ano seguinte,<br />

produziu sua primeira obra orquestral, a Suíte Sinfônica<br />

sobre Três Temas Populares Brasileiros, revelando um<br />

interesse que seria sempre crescente pela arte da<br />

orquestração e pela música sinfônica. O poema<br />

sinfônico Imbapára (1928) já foi uma obra de maior<br />

fôlego e sua sucessora, Reisado do Pastoreio (1930),<br />

terminava com um Batuque que se tornaria célebre<br />

na década de 30. Após ser editado pela Ricordi italiana<br />

101


102<br />

102<br />

COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA<br />

DISCOGRAFIA o esforço sobre-humano de Lorenzo Fernandez foi<br />

Música de Francisco Mignone<br />

aquele despendido na atividade pedagógica,<br />

1 – ESTE BRASIL QUE EU AMO<br />

Intérprete: Eudóxia de Barros, pianista<br />

No fundo do meu quintal<br />

Editora Paulinas Comep – São Paulo CD 6673-7<br />

acumulando atividades nas principais instituições<br />

de ensino musical do Rio de Janeiro da sua época:<br />

professor de harmonia, mais tarde também de<br />

2 – PIANO BRASILEIRO (2CDs)<br />

contraponto e fuga da Escola (ex-Instituto) Nacional<br />

Intérprete: Francisco Mignone, pianista<br />

de Música (desde 1923), fundador e diretor do<br />

Lendas Sertanejas nº 6,7,8<br />

Conservatório Brasileiro de Música (desde 1936),<br />

Funarte – Fun 004-5M/95<br />

3 – FRANCISCO MIGNONE – 17 CHOROS PARA PIANO<br />

Intérprete: Maria Josephina Mignone, pianista<br />

17 Choros para Piano<br />

professor e diretor interino (quando Villa-Lobos<br />

viajava) do Conservatório Nacional de Canto<br />

Orfeônico (desde 1943).<br />

Funarte – ATR 32034<br />

Interrompendo esta insana atividade por cerca<br />

4 – PANORAMA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA PIANO<br />

de sete meses, em 1938, o compositor foi comissionado<br />

Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista<br />

pelo governo brasileiro para representar o país no<br />

Valsa Elegante / Lenda Sertaneja nº 8<br />

Festival Ibero-Americano de Música, na Colômbia,<br />

Universidade Federal de Goiás ADD 99129<br />

5 – FRANCISCO MIGNONE – UM CONCERTO E 19 CANÇÕES<br />

Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista<br />

e aproveitando a ocasião realizou extensa tournée<br />

artística por sete países latino-americanos: Colômbia,<br />

Orquestra Sinfônica Nacional, regente: Alceo Bocchino<br />

Panamá, Cuba, Peru, Chile, Argentina e Uruguai.<br />

Glória Queiroz, meio-soprano<br />

Nesta oportunidade, atuou como conferencista<br />

Francisco Mignone, pianista<br />

e regente, interpretando obras dos nossos maiores<br />

Concerto para Piano e Orquestra e 19 Canções<br />

compositores e obtendo grande sucesso não apenas<br />

Soarmec – Rádio MEC S003<br />

6 – FRANCISCO MIGNONE<br />

Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista<br />

Noel Devos, fagotista<br />

artístico como também pessoal, pois expressava-se<br />

perfeitamente em espanhol, a língua de seus pais.<br />

Durante a década de 30, Lorenzo Fernandez<br />

Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, regente:<br />

continuou a trabalhar na composição de sua ópera,<br />

Francisco Mignone<br />

Malazarte, e finalmente, em 1941, dirigiu sua estréia<br />

Fantasia Brasileira nº 3, para Piano e Orquestra/Leilão – Bailado/ no Rio de Janeiro com grande sucesso. A ópera foi<br />

Concertino para Fagote e Orquestra/Música nº 1, para Orquestra<br />

Funarte – ATR 32036<br />

cantada em italiano, o que era comum nas décadas<br />

anteriores, como aconteceu com as óperas de Mignone,<br />

nos anos 20 – ambas, entretanto, compostas na Itália –<br />

(1936), foi executado por grandes regentes e orquestras mas curioso para os anos 40. Anos antes, já havia<br />

de vários países do mundo, sendo também gravado; apresentado trechos da obra na forma de suíte<br />

acabou por tornar-se a obra de maior êxito de toda sinfônica, inclusive em sua viagem latino-americana.<br />

a carreira do compositor.<br />

Em relação ao conteúdo musical de suas obras,<br />

Entretanto, Lorenzo Fernandez não via limites para Luiz Heitor observou que:<br />

suas atividades, assumindo cada vez mais tarefas.<br />

“Ao contrário de outros autores nossos que, bem<br />

Desde a década de 20, atuava como crítico musical ou mal, têm pago seu tributo às grandes formas<br />

e colaborador de revistas especializadas em música, musicais, escrevendo Sonatas, Sinfonias ou Concertos,<br />

chegando a ter ainda maiores responsabilidades desta Lorenzo Fernandez evitou-as, em sua obra, que tende<br />

natureza, tais como a de redator e até fundador<br />

francamente para a interpretação pictórica da sugestão<br />

de periódicos do gênero. Tornou-se também auxiliar musical, apondo títulos de intenção descritiva a quase<br />

de Villa-Lobos nos projetos de educação musical todas as suas composições.” (Azevedo, 1950:307)<br />

implantados pelo governo Vargas, o que os aproximou Se esta afirmação era verdadeira para a produção<br />

ao ponto de tornarem-se grandes amigos. Porém,<br />

inicial do compositor, já na década de 30 começaram


a surgir obras que iriam contrariá-la, pelo menos em<br />

parte, naquilo que se refere à ausência de grandes<br />

formas musicais, como os dois Concertos para Piano e<br />

Orquestra (de 1935 e 1936, respectivamente). Na década<br />

de 40, o compositor prosseguiu em sua nova tendência:<br />

Concerto para Violino e Orquestra (1941/42), Sinfonia nº1<br />

(1945), Quarteto nº 2 (1946), Sinfonia nº 2 “O Caçador de<br />

Esmeraldas” (1946/47) e Sonata Breve, para Piano (1947).<br />

Tal como vários outros compositores da história da<br />

música ocidental, Lorenzo Fernandez esperou até<br />

sentir-se maduro o suficiente para lançar-se às grandes<br />

formas musicais. Entretanto, nem chegou a ouvir suas<br />

últimas obras, pois na manhã do dia 27 de agosto de<br />

1948, tendo regido um concerto na noite anterior, foi<br />

encontrado morto em seu próprio leito, pouco antes<br />

de completar 51 anos de idade.<br />

A obra musical deixada por Lorenzo Fernandez<br />

não é numerosa como a de seus colegas<br />

contemporâneos que, no entanto, viveram muito mais<br />

que ele. É, sim, uma obra de qualidade, sobretudo<br />

a música sinfônica e as canções, de harmonia muito<br />

rica chegando a ser ousada, freqüente textura<br />

polifônica com elaborado tratamento temático<br />

e maestria na orquestração.<br />

A distribuição de suas poucas obras em numerosos<br />

e variados gêneros, formas e formações instrumentais<br />

e vocais, dá-nos a impressão de que elas correspondem<br />

ao objetivo e gradual cumprimento de etapas<br />

evolutivas metodicamente preestabelecidas, sob<br />

o comando de uma consciência superior. A avidez com<br />

que se dedicou à vida e suas atividades parece indicar<br />

que pressentia a brevidade de sua existência.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDRADE, M.de.Ensaio Sobre a Música Brasileira. São Paulo:<br />

Martins Editora, s/d.<br />

ANDRADE, M.de.Pequena História da Música. São Paulo: Martins<br />

Editora, 1981.<br />

AZEVEDO, L.H.C.Música e Músicos do Brasil. Rio de Janeiro:<br />

Casa do Estudante do Brasil,1950.<br />

AZEVEDO, L.H.C.150 Anos de Música no Brasil. Rio de Janeiro:<br />

José Olympio Editora,1956.<br />

DISCOGRAFIA<br />

Música de Lorenzo Fernandez<br />

1 – PIANO BRASILEIRO (2CDs)<br />

Intérprete: Maria Romelita, pianista<br />

Triste Modinha/ Valsa Suburbana<br />

Funarte – Fun 004-5M/95<br />

2 – PANORAMA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA PIANO<br />

Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista<br />

Valsa Suburbana/Três Estudos em Forma de Sonatina<br />

Universidade Federal de Goiás ADD 99129<br />

3 – LORENZO FERNANDEZ vol.1<br />

Intérpretes: Quinteto de Sopros da Rádio Mec<br />

Anna Cândida, pianista<br />

Quarteto de Cordas da Rádio MEC<br />

Lenir Siqueira, flautista/José Botelho, clarinetista/Angelo<br />

Pestana, fagotista<br />

Miguel Proença, pianista<br />

Margarida Martins Maia, soprano/Leonora Gondim, pianista<br />

Suíte para Quinteto de Sopros/Noturno para Piano/<br />

Quarteto nº 1/Duas Invenções Seresteiras / Suíte Brasileira nº 3,<br />

para Piano/7 Canções<br />

Soarmec – Rádio MEC S 011<br />

4 – LORENZO FERNANDEZ vol.2<br />

Intérpretes: Orquestra Sinfônica Brasileira, regente: Alceo<br />

Bocchino<br />

Leonor de Macedo Costa, pianista<br />

Maria de Lourdes Cruz Lopes, soprano/Gerardo Parente,<br />

pianista<br />

Sinfonia nº 2 / Valsa Suburbana, Sonata Breve e Três Estudos<br />

em Forma de Sonatina, para Piano/7 Canções<br />

Soarmec – Rádio MEC S 012<br />

1. Há controvérsias sobre a época em que Lorenzo Fernandez<br />

teria entrado em contato com Graça Aranha. Para Sérgio<br />

Nepomuceno Alvim Corrêa, teria ocorrido logo após a Semana<br />

de Arte Moderna. Para Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Vasco<br />

Mariz, isto teria acontecido mais tarde, em 1930.<br />

CORRÊA, S. N. A. Lorenzo Fernandez Catálogo Geral.Rio de<br />

Janeiro: Rioarte,1992.<br />

KIEFER, B. História da Música Brasileira.Porto Alegre:Editora<br />

Movimento, 1982<br />

KIEFER, B. Mignone Vida e Obra. Porto Alegre: Editora<br />

Movimento, 1983.<br />

MARIZ, V.Vida Musical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.<br />

MARIZ, V. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Editora<br />

Nova Fronteira, 2000.<br />

LUTERO RODRIGUES<br />

Regente e coordenador musical da Sinfonia Cultura − Orquestra da Rádio e TV Cultura de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Música.<br />

103


Guerra Peixe<br />

compositor multifário<br />

Édifícil, principalmente para um ex-aluno, resumir uma<br />

104<br />

vida de múltiplas e intensas atividades ligadas<br />

à cultura, como foi a vida do compositor César Guerra-<br />

Peixe (1914-1993): compositor erudito, compositor<br />

popular, professor, pesquisador, arranjador, violinista,<br />

regente, articulista, produtor radiofônico com<br />

aproximações à pintura e à poesia.<br />

Iniciado por seu pai nas rodas de “choro” aos oito<br />

anos, aos dez já tocava violino pelas ruas de sua<br />

Petrópolis nos dias de carnaval em companhia de dois<br />

amigos. Daí por diante, afirmando-se a decisão de<br />

seguir a carreira musical, a presença da música popular<br />

é perene em toda a sua atividade musical,<br />

especialmente a da criação. E Guerra-Peixe começou<br />

a compor tão logo iniciou seus estudos na Escola de<br />

Música Santa Cecília de Petrópolis, sendo a primeira<br />

peça o Tango Nº 1 Otília, dedicado à sua primeira<br />

namorada seguindo-se uma série de danças, até mesmo<br />

não brasileiras que estavam na moda.<br />

A primeira composição de caráter erudito foi uma<br />

Abertura, escrita para a pequena orquestra<br />

da referida Escola de Música. Ocorreu então um<br />

incidente: o diretor da Escola e regente da orquestra<br />

recusou-se a experimentar a peça. Mas o presidente da<br />

sociedade mantenedora da entidade, Reynaldo Chaves,<br />

interveio energicamente e a obra foi executada. Sobre<br />

o fato, que marcou profundamente sua vida, escreveu<br />

Guerra-Peixe na sua relação de obras para canto, que<br />

organizou para servir à dissertação de mestrado do<br />

barítono Inácio de Nonno:<br />

ERNANI AGUIAR<br />

Reynaldo Chaves (violoncelista, industrial, teatrólogo<br />

e poeta) avô do compositor e regente Ernani Chaves (sic),<br />

foi o responsável por Guerra-Peixe haver se tornado<br />

compositor, animando-o insistentemente, após G.Peixe<br />

haver-se aborrecido com a composição em virtude<br />

de ciúmes demonstrados pelo diretor e professor (sic)<br />

da Escola de Música Santa Cecília, dos idos de mais<br />

ou menos 1930.<br />

Em 1931 foi estudar no Rio de Janeiro, onde<br />

se fixou definitivamente em 1934, freqüentando<br />

inicialmente aulas particulares com a grande mestra<br />

Paulina d’Ambrosio e ingressou no ano seguinte no<br />

Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música<br />

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguindo<br />

os estudos regulares e se diplomando posteriormente.<br />

Na mesma Escola terminou sua carreira de professor<br />

universitário em 1990.<br />

A vivência de Guerra-Peixe na música popular<br />

continuou com suas atuações tocando em cafés, casas<br />

de chope e bailes, tocando também nos últimos<br />

cinemas-mudos. Porém intensos estudos de matérias<br />

teórico-musicais prosseguiram sob a orientação<br />

do renomado Mestre Newton Padua.<br />

1938 foi um ano decisivo para suas idéias musicais,<br />

após a leitura do “Ensaio sobre a Música Brasileira” de<br />

Mário de Andrade, que até o fim de sua vida considerou<br />

seu Mestre, apesar de nunca ter tido a oportunidade<br />

de conhecê-lo pessoalmente. Foi realmente a partir<br />

dessa leitura que Guerra-Peixe norteou sua busca<br />

a um caminho pessoal na música brasileira.


O curso de composição foi concluído em 1943,<br />

no Conservatório Brasileiro de Música, sempre com<br />

Pádua. Criou, nesse período um grande número<br />

de composições, desde experiências sinfônicas até<br />

pequenas peças para instrumento só, porém,<br />

extremamente crítico consigo, colocou-as num “index”<br />

de composições proibidas de serem tocadas, com<br />

poucas exceções. Mas compôs também música<br />

popular.<br />

A primeira peça que mereceu entrar no “Catálogo<br />

de Obras” (por ele chamado de “cata logo”),<br />

manuscrito precioso onde anotou todas as obras até<br />

a última, várias vezes expressando idéias, foi<br />

a Sonatina 1944 para flauta e clarinete.<br />

“Convertido” ao dodecafonismo, após seu<br />

encontro com Hans Joachin Koellreutter, com quem<br />

passou a estudar, seguiu esta linha estética durante seis<br />

anos (1944-1950), na verdade dividido em dois: o cada<br />

vez mais solicitado e dedicado arranjador e compositor<br />

de música popular e o compositor erudito, segundo ele<br />

próprio “sem a menor preocupação nacionalizante”.<br />

Integrando o Grupo Música Viva, dos seguidores<br />

de Koellreutter, onde teve como colegas os notáveis<br />

compositores Cláudio Santoro, Edino Krieger e Eunice<br />

Katunda, foi que suas obras ganharam projeção<br />

internacional e a admiração de personalidades como<br />

Juan Carlos Paz e Hermann Scherchen, que regeram<br />

obras suas respectivamente em Buenos Aires e Zurich.<br />

Mas as origens do compositor eram muito fortes<br />

e as “linhas cosmopolitas” começaram a fraquejar<br />

quando, Guerra-Peixe buscou um possível encontro<br />

entre dodecafonismo e música brasileira. As idéias<br />

de Mário de Andrade estavam vivas em seu<br />

pensamento, fazendo-o sentir a necessidade de uma<br />

saída para a música brasileira chamada erudita,<br />

até então baseada num discutível folclore. Também<br />

colocou-se o problema da comunicação da nova<br />

música com o público, tão descurado no Século XX.<br />

Tiveram início suas discussões com Mozart<br />

de Araújo que culminaram em sua primeira visita ao<br />

Recife em 1949 onde teve contacto com uma música<br />

viva, nacional, sem manipulação alguma. O resultado<br />

foi a ruptura com o dodecafonismo. Em seguida<br />

ocorreu uma coincidência: Scherchen passou pelo Rio<br />

de Janeiro e convidou Guerra-Peixe para ir estudar<br />

com ele em Zurich, sendo seu hóspede e trabalhando<br />

na rádio local. Ao mesmo tempo recebeu também um<br />

convite de Recife para trabalhar também em rádio.<br />

Guerra preferiu o Recife e sempre disse que foi<br />

a melhor coisa que fez na vida. Foi um dos períodos<br />

mais férteis de sua vida quando, além de compositor<br />

erudito, seguindo novas linhas estéticas, e orquestrador,<br />

iniciou suas atividades de professor, articulista<br />

e a grande obra de pesquisador.<br />

Pesquisou Maracatu, Xangô, Catimbó, Côco, Pastoril,<br />

Zabumba (conjunto instrumental), Cabocolinhos, Reza-dedefunto,<br />

Frevo, Pregões, toques de vendedores ambulantes,<br />

manifestações culturais religiosas ou não, folguedos,<br />

atividades sociais, todas com músicas próprias, em dez<br />

cidades pernambucanas.<br />

Na época foram seus alunos: Clóvis Pereira, Jarbas<br />

Maciel, Guedes Peixoto, Lourenço da Fonseca Barbosa<br />

(“Capiba”) e Severino Dias de Oliveira (“Sivuca”).<br />

A permanência em Recife foi de três anos, quando<br />

novas obras importantes foram criadas e surgiu seu<br />

mais importante<br />

trabalho de pesquisa:<br />

o ensaio “Maracatus do<br />

Recife”, que décadas<br />

mais tarde serviu para<br />

salvar tal manifestação<br />

do desaparecimento.<br />

Imediatamente após<br />

o período recifense,<br />

seguiu-se outro maior<br />

e tão proveitoso quanto<br />

o nordestino: oito anos<br />

em S. Paulo, quando,<br />

com o apoio de Rossini<br />

Tavares de Lima,<br />

secretário da Comissão<br />

Paulista de Folclore<br />

iniciou naquele Estado<br />

outra grande pesquisa,<br />

incluindo Jongo, Tambú,<br />

Cateretê, Cururu, Dança<br />

de Santa Cruz, Dança de Guerra-Peixe.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />

São Gonçalo, Folia de Reis, – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

105


106<br />

Moçambique, Congada, Caiapós, Moda-de-viola e<br />

Samba-lenço em seis cidades paulistas, concluindo pelas<br />

semelhanças e contrastes entre o folclore<br />

pernambucano e o paulista. Em S. Paulo (1955)<br />

compôs as duas Suítes Sinfônicas Paulista nº 1<br />

e Pernambucana nº 2.<br />

No fim da década de 50, seu catálogo de<br />

composições já estava bastante enriquecido com dois<br />

quartetos, duas suítes, uma sonata e uma sonatina para<br />

piano, música de câmara diversificada, o Pequeno<br />

Concerto para piano e grande parte do elenco de mais<br />

de trinta partituras para cinema. Continuava a compor<br />

música popular e já era detentor de numerosos<br />

prêmios.<br />

A fundação da nova capital e a instituição de um<br />

“Concurso Sinfonia Brasília”, levou-o à composição de<br />

uma obra de grandes proporções, notável pela forma<br />

e pela orquestração, capaz de empolgar qualquer<br />

platéia. Obra totalmente descritiva, inclui um trecho<br />

do discurso de Kubitschek na inauguração da Cidade.<br />

Esta obra e outras atividades concorreram para que<br />

Guerra-Peixe fosse, às vezes veladamente, às vezes<br />

explicitamente perseguido por alguns esbirros<br />

da ditadura militar (1964-1984).<br />

DISCOGRAFIA<br />

CD GUERRA PEIXE – <strong>MÚSICA</strong> POPULAR<br />

Orquestra de salão “Tira o dedo do pudim” – OSTDP9798 -<br />

Produção independente<br />

CD SEBASTIÃO TAPAJÓS INTERPRETA RADAMÉS GNATTALI & GUERRA PEIXE<br />

Sebastião Tapajós, violão – Tapajós Produções - 1998<br />

CD GUERRA-PEIXE – MUSICA DE CÂMARA<br />

Ricardo Amado, violino; David Chew, violoncelo; Ruth Serrão,<br />

piano; Pauxy Gentil, flauta; José Botelho, clarineta; Noel Devos,<br />

fagote; Inácio de Nonno, barítono; Rildo Hora, harmônica<br />

de boca. RioArte – RD 005 – 1996 – Rio de Janeiro<br />

CD A RETIRADA DA LAGUNA<br />

Orquestra Sinfônica Nacional – César Guerra-Peixe, regente<br />

Acervo FUNARTE de Música Brasileira<br />

CD TRIBUTO A GUERRA-PEIXE<br />

Incluindo: Tributo a Portinari e Sinfonia Nº 2 “Brasília” de C.<br />

Guerra-Peixe<br />

Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e Coral da OSPA – Ernani<br />

Aguiar, regente<br />

ACIT Comercial e Fonográfica – 1994<br />

Com a criação da Sinfonia nº 2 Brasília, encerrou-se<br />

a segunda fase da obra composicional do Mestre.<br />

Se a primeira, segundo ele, foi a “dodecafônica”<br />

(1944-1950), a segunda foi a “nacionalista” (1950-1960).<br />

Entre a segunda e a terceira fase, que chamo de<br />

“síntese nacional” (1967-1993) (ou seria a inconsciência<br />

nacional preconizada por Mário de Andrade?)<br />

o compositor ficou seis anos sem criar nenhuma obra.<br />

Voltou para o Rio de Janeiro em 196l e, em 1963,<br />

voltou ao seu instrumento, o violino. Passou a tocar na<br />

Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, onde<br />

permaneceu até a aposentadoria e na mesma Rádio<br />

criou programas de música brasileira. Continuou ainda<br />

mais atuante como arranjador para emissoras<br />

de televisão e foi professor nos Seminários de Música<br />

da Pró Arte e depois no Seminário de Música do<br />

Museu da Imagem e do Som (MIS). Pouco a pouco,<br />

essas aulas foram se transformando no seu Curso<br />

de Composição que se tornou um dos mais famosos<br />

do País. Passaram por suas aulas Antonio Guerreiro,<br />

Ayrton Barbosa, Felícia Wang, Guilherme Bauer,<br />

Haroldo Mauro Jr., Heitor Alimonda, Jards Macalé,<br />

Jorge Antunes, José Maria Neves, Maria Aparecida<br />

Ferreira, Marlene Fernandes, Nélio Rodrigues, Nestor<br />

de Holanda Cavalcanti, Rildo Hora, todos seguindo<br />

caminhos diversos. Eu fiz o curso completo entre<br />

1969 e 1972.<br />

Já em plena maturidade, ampla experiência e total<br />

domínio da técnica composicional, iniciou a “terceira<br />

fase” com mais uma sonata e uma sonatina para piano,<br />

seguindo-se toda a obra para violão que inclui<br />

a primeira sonata brasileira para o instrumento, novas<br />

obras para canto e piano, as quatro composições para<br />

coro a capela, a segunda Sonata para violino, dezenas<br />

de obras diversas e, no elenco de obras sinfônicas,<br />

quatro importantes criações: Museu da Inconfidência,<br />

Retirada da Laguna, Assimilações e Tributo a Portinari, sua<br />

penúltima obra.<br />

Aos quarenta e sete anos foi eleito para<br />

a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira<br />

nº 34, cujo Patrono é Araújo Vianna, sucedendo seu<br />

Mestre Newton Pádua. Quem o sucedeu foi seu colega<br />

e amigo Edino Krieger, atualmente (2004) ocupando<br />

a Presidência do Sodalício.


Participou, ainda que à distância, do famoso<br />

Movimento Armorial, liderado por seu amigo Ariano<br />

Suassuna, compondo para a Orquestra do Movimento<br />

seu celebrado Concertino para violino e pequena orquestra<br />

além do Duo Característico para violino e violão (“peça<br />

singelíssima”, segundo ele) e da peça, hoje obrigatória<br />

em todas as orquestras de cordas do País, Mourão,<br />

na versão do seu ex-aluno Clóvis Pereira.<br />

Em dezembro de 1983, recebeu um telefonema<br />

de Recife, informando que no carnaval do ano<br />

seguinte, daquela Cidade, voltaria a sair um Maracatu,<br />

reconstituído graças a seu livro “Maracatus do Recife”.<br />

O Mestre considerou seu melhor presente, antecipado,<br />

dos 70 anos e disse:<br />

“Já se viu? Eu, sem outro meio de comunicação,<br />

a não ser um livrinho de 171 páginas, a 2500<br />

quilômetros do Recife, indo de raro em raro a essa<br />

Cidade, influir no seu carnaval? Chorei de emoção.<br />

Setuagenário, com uma vida agitadíssima, passou<br />

a pesquisar “Dança de Salão” e “Gafieira” e freqüentou<br />

(e dançou) assiduamente a “Estudantina” no Rio<br />

de Janeiro. Ainda foi professor na Escola de Música da<br />

Universidade Federal de Minas Gerais, onde teve como<br />

alunos Alina Sidney, Francisco Gelape (prematuramente<br />

falecido), Harry Crowl, Lucas Raposo e Nelson Salomé.<br />

O cansaço da idade levou a que alguns amigos<br />

obtivessem sua transferência para a UFRJ.<br />

Existe ainda um elenco de musicistas seus amigos<br />

que, assim como ele, considerava Mário de Andrade<br />

seu Mestre. Entre eles Rogério Rossini, Ruth Serrão,<br />

Sonia Vieira e o compositor David Korenchendler.<br />

O Mestre aproximava-se dos oitenta anos,<br />

reconhecido, verdadeiro ícone vivo da música<br />

brasileira, “colecionando” merecidos prêmios<br />

e reconhecimentos públicos (foi o único músico<br />

a ganhar três vezes o “Golfinho de Ouro” do MIS),<br />

culminando com o primeiro Prêmio Nacional<br />

da Música, concedido pelo Ministério da Cultura<br />

e escolhido por um júri formado por cinqüenta<br />

musicistas com esmagadora maioria de votos.<br />

O prêmio foi entregue a 15 de outubro de 1993,<br />

durante o concerto de abertura da X Bienal de Música<br />

Brasileira Contemporânea, perante uma platéia que<br />

lotou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro<br />

e que o aclamou numa consagração... e despedida.<br />

Cercado pelo carinho de amigos e admiradores,<br />

mas especialmente de sua sobrinha-neta Jane Guerra-<br />

Peixe e de seus alunos Antonio Guerreiro e Randolf<br />

Miguel, viveu seus últimos dias, falecendo ao cair<br />

da tarde de 26 de novembro na casa de sua ex-esposa<br />

Célia Guerra Peixe, deixando um imenso legado<br />

à música e à cultura brasileira.<br />

A figura humana do compositor foi singular.<br />

Polêmico, brigão, intempestivo, defensor de causas<br />

justas. Capaz de passar em segundos da raiva<br />

aterradora à gargalhada sonora, alegre, relaxada.<br />

Ao contrário de outros que preferiram toda a vida estar<br />

ao lado de poderosos, políticos e influentes, Guerra-<br />

Peixe sempre preferiu o lado oposto, ainda que essa<br />

posição lhe trouxesse só prejuízos.<br />

Professor exigentíssimo, selecionador, incapaz<br />

de interferir nas preferências estéticas de cada aluno,<br />

respeitador das idéias dos jovens, incentivador.<br />

Quantos não tiveram suas aulas a preços reduzidos<br />

ou... grátis?<br />

Amigo leal de seus amigos, não se furtava em<br />

apoiá-los, auxiliá-los até mesmo pecuniariamente,<br />

o que lhe valeu uma série de ingratidões. Admirador<br />

das pessoas que o cercavam, não hesitou em escrever<br />

um hino para o colégio onde estudava o filho de uma<br />

empregada sua, simplesmente por verificar o esforço<br />

que a mãe fazia para educá-lo.<br />

Este foi César Guerra-Peixe, que se auto-definiu<br />

em uma entrevista ao ex-aluno Lucas Raposo: “Queira<br />

ou não, apesar do verniz artístico, eu sou mesmo é do povão.<br />

Não fora eu filho de um humilde ferrador.”<br />

ERNANI AGUIAR<br />

Ex-aluno de César Guerra-Peixe. Compositor e Regente. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).<br />

Membro da Academia Brasileira de Música.<br />

107


Camargo<br />

Guarnieri<br />

108


Camargo Guarnieri nasce em 1907, em Tietê<br />

(SP), primogênito de uma família pobre que<br />

faz música nas horas vagas. O casal Miguel e<br />

Gécia – flautista e pianista, respectivamente –<br />

terá mais oito filhos, sendo três homens: Belline,<br />

Rossine e Verdi. Camargo é o pequeno “Mozart”<br />

de Miguel que, ao perceber a grande vocação do filho,<br />

muda-se para a capital para proporcionar melhor<br />

formação musical para o menino que compõe desde<br />

cedo. Na cidade grande sua atenção maior é para o<br />

piano, até conhecer o maestro italiano Lamberto Baldi,<br />

em 1927, com quem trabalha composição e regência.<br />

Integrado a um ambiente onde circulam idéias sobre<br />

o compromisso dos artistas com uma arte que se queira<br />

brasileira e universal, busca uma nova roupagem para<br />

suas idéias musicais: decide não usar mais o nome<br />

Mozart, por extenso, presunçoso e anacrônico para um<br />

compositor do século XX, e adota o ano de 1928 para<br />

inaugurar seu catálogo de obras. O “passado musical”<br />

fica guardado em pastas, algumas peças apelidadas de<br />

“obra interdita” – título que aguça a curiosidade dos<br />

estudiosos – e passa a assinar “M. Camargo Guarnieri”.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

FLÁVIA CAMARGO TONI<br />

Guarnieri tem pressa em fazer conhecer sua obra<br />

e escreve para piano e canto acompanhado, música<br />

de câmara e sinfônica, amadurece o projeto para uma<br />

ópera, e passa a ser ouvido nas salas de concertos<br />

de São Paulo e Rio de Janeiro. A vida profissional<br />

vai tomando corpo. Em meados da década de 30,<br />

compositor e regente ativo, vê sua produção acrescida<br />

de títulos para várias formações instrumentais, embora<br />

aguarde o momento para escrever uma Sinfonia.<br />

As obras para grande orquestra nascerão, de fato,<br />

na década seguinte o que faz supor que ele talvez<br />

almejasse uma segurança maior para escrevê-las,<br />

segurança conquistada após estudar, na França, com<br />

Charles Koechlin, o mestre que conhecia através<br />

da obra teórica bem como das composições. O nome<br />

não é escolhido ao acaso, pois o músico francês<br />

alimentava, como Guarnieri, grande afeição pela<br />

polifonia e contraponto elaborados. Para a regência,<br />

professor e aluno combinam que o melhor nome<br />

é o de François Rühlmann, à frente da Orquestra<br />

da Ópera de Paris durante aquele 1938.<br />

O breve tempo de permanência na Europa vale,<br />

109


110<br />

sobretudo, como vivência musical adquirida com<br />

a possibilidade de fazer executar sua música de<br />

câmara, além da oportunidade de escutar música nova<br />

regida por grandes nomes do momento. A Sonata para<br />

dois pianos e percussão, pelo casal Bela Bartok, Le Nouvel<br />

Âge, de Igor Markewitch, sob a batuta de Herman<br />

Scherchen, um concerto dirigido por A. Toscanini,<br />

outro, por Charles Münch, são memoráveis para<br />

o brasileiro que deve encurtar a viagem por causa da<br />

II Guerra. Regressa cheio de idéias e projetos musicais,<br />

encontrando, no entanto, um cenário profissional nada<br />

favorável, assim permanecendo até a experiência<br />

norte-americana. Mas a produção musical de Camargo<br />

Guarnieri – obra uniforme – não denota influência<br />

desta ou daquela nação onde viveu.<br />

Entre dezembro de 42 e maio de 43 Guarnieri<br />

visita os Estados<br />

Unidos a convite<br />

do <strong>Departamento</strong> de<br />

Estado e da União<br />

Pan-Americana e na<br />

oportunidade recebe<br />

pessoalmente o<br />

prêmio da Fleischer<br />

Music Collection<br />

para o Concerto nº 1<br />

Camargo Guarnieri. Trilha sonora para violino e orquestra,<br />

do filme Rebelião em Vila Rica. Edições concurso da Free<br />

Musicais Ricordi Brasileira S/A. Library da Filadélfia.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Mas quem é<br />

Camargo Guarnieri, em 1942? Com a palavra, Aaron<br />

Copland, que conhecera a música do brasileiro, no ano<br />

anterior, no Rio de Janeiro:<br />

“Camargo Guarnieri, que agora está pelos trinta<br />

e cinco anos de idade, é na minha opinião o mais<br />

sensacional dos talentos ‘desconhecidos’ da América<br />

do Sul. Suas composições já bem numerosas deveriam<br />

ser muito mais conhecidas do que o são. Guarnieri<br />

é um compositor de verdade. Tem tudo o que é preciso<br />

– personalidade própria, uma técnica acabada<br />

e imaginação fecunda. Sua inspiração é mais ordenada<br />

que a de Villa-Lobos, mas não menos brasileira...<br />

O que mais me agrada na sua música é a sua expressão<br />

emotiva sadia – é uma exposição sincera do que um<br />

homem sente... Sabe como modelar uma forma, como<br />

orquestrar bem, como tratar eficientemente o baixo.<br />

O que atrai na música de Guarnieri é o seu calor<br />

e a imaginação que vibra com uma sensibilidade<br />

profundamente brasileira. É, na sua expressão mais<br />

apurada, a música de um continente ‘novo’, cheia<br />

de sabor e de frescura.”<br />

A estada é muito proveitosa: a premiação de<br />

Guarnieri recebe boa cobertura da imprensa; ele tem<br />

a oportunidade de ver e ouvir novamente Toscanini<br />

à frente da NBC, regendo a Leningrado, de<br />

Shostakowich e um ciclo Brahms; através de Copland<br />

ele é apresentado a Sergei Koussevitzky, que o convida<br />

para reger a Abertura Concertante à frente da Sinfônica<br />

de Boston; a American League of Composers<br />

programa um recital de suas obras, no MoMA,<br />

e Leonard Bernstein está entre os pianistas da noite<br />

acompanhando o violoncelista Joseph Schuster<br />

na Sonata nº 1. Anos mais tarde Bernstein gravará<br />

a Dança brasileira regendo a Filarmônica de Nova York<br />

e ganhará a dedicatória da Sinfonia nº 4, “Brasília”,<br />

escrita em 1963.<br />

A estréia brasileira da Abertura concertante se dá no<br />

mesmo ano da composição, em 1942, com boa<br />

receptividade da crítica especializada. Dentre<br />

as manifestações destaca-se a do musicólogo Mário de<br />

Andrade, mentor artístico e amigo pessoal de Camargo<br />

Guarnieri, afirmando que pela primeira vez um autor<br />

encontrava a solução para o “allegro” brasileiro, ou<br />

seja, nas peças de movimento vivo, conseguia fugir às<br />

soluções coreográficas valendo-se de ritmos de danças<br />

populares. Assim, o crítico introduz um dos temas mais<br />

discutidos naquele momento, ou seja, o dos excessos<br />

das soluções exóticas nas composições de certos<br />

autores que se valiam, sobretudo, do uso de melodias<br />

folclóricas – temas com grande incidência de síncopas<br />

que restringiam o próprio trabalho de desenvolvimento<br />

das obras – além de percussão popular acrescentada<br />

à orquestra tradicional.<br />

No catálogo do autor há uma outra abertura para<br />

orquestra, a Festiva, e sete sinfonias, compostas entre<br />

1944 e 1985. Camargo Guarnieri já pode ser<br />

considerado um compositor maduro quando coloca no<br />

papel o material da sua Sinfonia número 1. No início de


1940 decidira que no allegro final evitaria o “caráter<br />

coreográfico” construindo uma melodia característica,<br />

“sem as síncopas sistematizadas”, como confessa a um<br />

amigo. Assim, três anos depois, quando em Nova York,<br />

a invenção chega fácil e ele deixa pronto o “Radioso”<br />

enquanto soluciona questões relativas ao<br />

desenvolvimento do primeiro movimento. Uma vez<br />

no Brasil, é possível que todo o esboço da Sinfonia<br />

pronta tenha passado por certa reestruturação tendo<br />

em vista a adequação do trabalho para as normas<br />

do Concurso Luís Roberto Penteado de Rezende.<br />

Para homenagear a memória do jovem compositor,<br />

o regulamento do Concurso determinava que<br />

o trabalho vencedor deveria ser eivado de motivos<br />

característicos nacionais. De fato, a obra foi premiada<br />

em 1944 dedicada a Sergei Koussevitzky, regente<br />

da Boston Symphony Orchestra.<br />

A Sinfonia nº 2, a Uirapuru nasce em 1945, em<br />

trajetória de sucesso, pois, no ano seguinte, antes de<br />

sua estréia, obtém o segundo lugar (Prêmio Reichold)<br />

no Concurso Sinfonia das Américas, promovido pela<br />

Orquestra de Detroit (EUA). Dedicada a Heitor Villa-<br />

Lobos, foi apelidada de “Uirapuru”, nome do pássaro<br />

amazônico tão caro a ele que até compusera um poema<br />

sinfônico (1917) e uma peça coral (1944) com o mesmo<br />

título. Ao compositor carioca, tempos depois Guarnieri<br />

fará outra dedicatória, mais explícita, com a Homenagem<br />

a Villa-Lobos (1966), para sopros e percussão.<br />

Quando o maestro paulista anuncia que está<br />

escrevendo a Sinfonia nº 3, em 1952, há certa<br />

expectativa por parte do meio musical. Alguns meses<br />

antes ele redigira e fizera publicar uma “Carta aberta<br />

aos músicos e críticos do Brasil”, quase um manifesto<br />

político contra as ingerências estéticas externas, vale<br />

dizer, contra o emprego dos princípios do<br />

dodecafonismo. Alunos de composição, leitores,<br />

ouvintes e jornalistas manifestaram-se, a favor ou<br />

contra, gerando a polêmica musical mais criativa que<br />

o Brasil jamais teve. Camargo Guarnieri instigou. Fez<br />

com que se falasse e se fizesse música. Assim, a sinfonia<br />

– não por acaso dedicada a Lamberto Baldi,<br />

o professor que acompanhou os primeiros passos do<br />

compositor em vias de amadurecer – deveria apontar<br />

para os rumos a se encaminhar uma escola de<br />

composição brasileira e contemporânea. Também não<br />

deve ter sido por acaso a escolha do primeiro tema,<br />

Teiru, canto dos índios Parecis, do Mato Grosso,<br />

celebrando a morte acidental de um cacique da tribo.<br />

A melodia, encontrada no relato de viagem do<br />

pesquisador Roquete Pinto, permeia toda a obra<br />

e dá origem a todos os motivos usados à exceção de<br />

um, o segundo tema do primeiro movimento, inspirado<br />

no canto de um pássaro da região onde nasceu<br />

o compositor. A Sinfonia nº 3 obteve o primeiro lugar<br />

no Concurso IV Centenário da Cidade de S. Paulo,<br />

em 1954.<br />

A quarta sinfonia de Camargo Guarnieri, como a<br />

de número 1, tem, como pano de fundo, duas cidades,<br />

São Paulo e Nova York, e dois concursos, num espaço<br />

cronológico de 20 anos. Na cidade norte-americana,<br />

como foi visto, ele<br />

inicia a primeira, em<br />

1943, e conclui a<br />

quarta, em 1963.<br />

Muita coisa mudara<br />

na vida do músico.<br />

Na casa dos 50 anos<br />

de idade Camargo<br />

Guarnieri ocupa<br />

postos administrativos<br />

importantes e tem Camargo Guarnieri. Prêmio Shell para a<br />

muita disposição para música brasileira. 1984.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

o trabalho.<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Personalidade de<br />

relevo, desde 1956 era assessor artístico musical do<br />

Ministério da Educação e em 1959 recebe a Medalha<br />

Valor Cívico do Governo do Estado de São Paulo.<br />

Motivada pela divulgação do Concurso “Sinfonia<br />

Brasília” – instituído para celebrar a fundação da nova<br />

Capital do país – a Sinfonia número 4 será elaborada ao<br />

longo de vários meses, dividindo a atenção do músico<br />

com a Direção do Conservatório Dramático e Musical<br />

de São Paulo e as composições do Concertino para piano,<br />

o Choro para violoncelo e o terceiro Quarteto para cordas.<br />

Guarnieri viaja bastante representando o país em<br />

Concursos e Encontros Internacionais de Composição.<br />

Assim, no final de 1961 só conseguira concluir<br />

o primeiro movimento da Sinfonia e começar o<br />

111


112<br />

movimento seguinte. Em março de 1963 a número<br />

quatro será colocada na bagagem que o acompanha<br />

aos Estados Unidos onde pretende dividir o tempo<br />

entre as atividades do Concurso “Mitropoulos”,<br />

os últimos retoques da partitura e o projeto para uma<br />

cantata. A sinfonia, aliás, será dedicada ao Presidente<br />

do júri, Leonard Bernstein.<br />

A partir de 1959, ano em que iniciava a sua<br />

Sinfonia nº 4, o compositor começa a pensar num efeito<br />

musical que só será empregado muitos anos depois,<br />

usando “canto no centro do 2º movimento e coro<br />

no final, cantando a mesma melodia do centro”, como<br />

relatou ao amigo e ex-professor Lamberto Baldi.<br />

Apesar de ser um voraz consumidor de poesia, o<br />

projeto foi postergado por não ter encontrado texto<br />

apropriado para o efeito pretendido. Aliás, a família<br />

Guarnieri era muito afeita à Literatura e o compositor,<br />

além de ter escrito sobre versos dos principais autores<br />

brasileiros de todos os tempos, já fizera parcerias com<br />

Alice e Rossine, dois de seus oito irmãos. Assim, após<br />

longo período sem dedicar-se a obras de proporções<br />

tão grandes, em 1977 – ano de seu 70º aniversário –<br />

aceita a encomenda da Secretaria de Cultura do Estado<br />

de S. Paulo para escrever a quinta sinfonia de sua<br />

carreira encomendando um texto para Rossine.<br />

Rio teimoso, poema cantado no terceiro movimento<br />

da Sinfonia nº 5 homenageia ao mesmo tempo o estado<br />

de São Paulo e a cidade de Tietê, onde Camargo<br />

Guarnieri nasceu. Tietê também dá nome ao rio que<br />

os indígenas chamavam de Anhembi, um rio “teimoso”<br />

porque não corre para o mar e deságua no Paraná<br />

facilitando a comunicação entre os dois estados<br />

vizinhos: “Tiê…/Tiê…/Ti – e – tê. //Bravo Anhembi,/<br />

rio de pássaros,/que nasce na serra/e foge do mar/<br />

para voltar ao coração da terra.//Volteia!/Volteia!/Arco<br />

da aliança/desenhado no chão do Brasil!/semente<br />

da União,/caminho da Paz…”<br />

Nova encomenda leva o compositor a compor<br />

a Sinfonia nº 6, desta vez para comemorar o aniversário<br />

de 70 anos do Teatro Municipal de São Paulo e<br />

dedicada ao músico português Filipe de Souza. Escrita<br />

entre 31 de janeiro e 17 de março de 1981, nela o autor<br />

desenvolve uma nova maneira de estruturar o primeiro<br />

movimento, adotando um único motivo melódico<br />

configurado de duas formas distintas.<br />

Só na Sinfonia nº 7, de 1985, o autor se valeria<br />

de apenas dois movimentos em obra densa e bastante<br />

curta, se comparada às primeiras peças sinfônicas.<br />

No final de sua vida, o compositor que celebrara sua<br />

terra agora escreve obra intimista, encomendada<br />

por um amigo e a ele dedicada.<br />

Camargo Guarnieri faleceu em 1993 e teve longa<br />

vida produtiva. Em suas obras visitou todas as formas<br />

consagradas, da fuga ao ballet, passando pelo prelúdio,<br />

variação, sonata, concerto e prelúdio; da canção<br />

à ópera, passando pelo madrigal, cantata e missa. Seu<br />

catálogo, grande e variado, apresenta um perfil que<br />

acompanha as múltiplas atividades exercidas, bem<br />

como as preferências pessoais. Amante da literatura,<br />

escreveu canções para várias formações; regente<br />

de coro, no início da carreira, tem obras a capella;<br />

maestro de grupos sinfônicos, tem sinfonias e concertos<br />

para instrumentos solistas; bom pianista, tem obra<br />

vasta e cultuada para teclado; diretor artístico de um<br />

grupo de cordas, produziu atendendo às características<br />

desse grupo, também. De todos os títulos ainda<br />

há muito a se conhecer, obras que vêm confirmando<br />

sempre a fatura requintada de um autor que dominava<br />

com perfeição todos os meios da escrita musical. Mas,<br />

dentre os títulos inéditos, surpreende, particularmente,<br />

a fatura de seu vasto repertório de canções, fatura que<br />

já despertara o grande interesse de Mário de Andrade.<br />

Quando, no início da década de 1940,<br />

o musicólogo paulista escuta a gravação das 13 canções<br />

pela Discoteca Pública, tenciona escrever um ensaio<br />

e reúne notas e lembretes não logrando, contudo,<br />

concluí-lo. No esboço do trabalho que permanece<br />

inédito em seu arquivo o texto de Mário de Andrade<br />

traduz tão bem a destreza do compositor que faz valer<br />

a transcrição de um trecho:<br />

“[Guarnieri] nunca é descritivo, mesmo no sentido<br />

psicológico. É realmente um valor muito curioso.<br />

Em geral C.G. cria um movimento único, de função<br />

acompanhante, que se repete infindavelmente em cada<br />

compasso. É um valor de música pura, mas que não<br />

deixa, por isso, de ser ambientador do sentimento geral<br />

melódico da canção. A esse valor, de firme caráter<br />

rítmico-harmônico de acompanhamento, ele ajunta


elementos de estrito caráter musical, de música pura<br />

(o que não quer dizer inexpressivo, mas mais<br />

ambientador que descritivamente psicológico), linhas<br />

de polifonia livre, às vezes e não raro inspiradas<br />

no contracanto do violão acompanhante ou da flauta<br />

em variação dos choros. Ou elementos imitativos.<br />

Na estética da canção de C.G., essa forma de<br />

contribuição do piano é bem nítida, e a meu ver<br />

admirabilíssima, aproximando-o conceptivamente<br />

dos melhores representantes do Lied na sua maior<br />

expressão: Schumann e Brahms. O conceito da canção<br />

(canto solista acompanhado por instrumento solista)<br />

ao mesmo tempo que se mantém em toda a sua nitidez,<br />

alcança no entanto as mais elevadas e delicadas formas<br />

de música erudita, individualista, mas pura;<br />

individualismo a que repugna atribuir ao instrumento<br />

um valor romântico de descritor de paisagens<br />

e psicologias. O piano concertante da voz, em<br />

C.G. se mantém sempre dentro das ordens gerais<br />

da expressividade estritamente sonora. Difícil<br />

e tecnicamente muito pianístico, ele é sutilmente<br />

sempre acompanhante, sem ser exatamente subalterno.<br />

É um valor puramente musical que ambienta<br />

a melodia nascida expressivamente do texto,<br />

sem se incomodar com este. De forma que se o texto<br />

amoroso se refere a seios ou luares, o piano<br />

de Camargo Guarnieri jamais se esperdiçará em efeitos<br />

de sinos ou chatices de lunaridades descritivas, mas<br />

bordará com musicalidade exclusiva a linha<br />

cancioneira vertida do texto de amor.” 1<br />

Em Camargo Guarnieri impressiona, ainda,<br />

a liderança daquele que se mantém como o grande<br />

mestre brasileiro de composição, professor que preparou<br />

vários dos compositores atuantes hoje em dia.<br />

Personalidade reconhecida e respeitada no meio<br />

DISCOGRAFIA<br />

SINFONIAS 1 - 6<br />

ABERTURA CONCERTANTE<br />

ABERTURA FESTIVA<br />

SUITE VILA RICA<br />

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo<br />

Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo<br />

Regência: John Neschling. BIS CDs 1220/1290/1320 - Suécia<br />

CHÔRO PARA PIANO E ORQUESTRA<br />

SONATINA Nº 4 PARA PIANO<br />

Czech National Symphony Orchestra<br />

Regência: Paul Freeman<br />

Piano: Caio Pagano<br />

Hallmark Classics 350712 - Canadá<br />

VALSAS E SONATA PARA PIANO<br />

Belkiss Carneiro de Mendonça, piano<br />

PAULUS 000477 - Brasil<br />

CHÔRO PARA VIOLONCELO E ORQUESTRA<br />

Orquesta de las Américas<br />

Regência: Carlos Miguel Prieto<br />

Carlos Prieto, violoncelo. URTEXT JBCC023 - México<br />

50 PONTEIOS PARA PIANO<br />

Laís de Sousa Brasil, piano. FUNARTE/EMI 532931-2 - Brasil<br />

CONCERTOS N OS 3, 4 E 5 PARA PIANO E ORQUESTRA<br />

Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC<br />

Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo<br />

Regência: Camargo Guarnieri<br />

Laís de Sousa Brasil, piano<br />

musical, M. Camargo Guarnieri foi homenageado<br />

e homenageou intérpretes, brasileiros ou não, tendo<br />

seu nome associado ao repertório de grandes artistas<br />

do século XX.<br />

1. A Canção de Camargo Guarnieri, 2 fls. de papel jornal dobradas<br />

ao meio no sentido do comprimento, ms. lápis preto,<br />

4 faces ocupadas, título grifado a lápis vermelho, In: Camargo<br />

Guarnieri: notas de pesquisa ms. lápis, 18 fls., vários formatos<br />

(Arquivo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros,<br />

Universidade de São Paulo).<br />

FLÁVIA CAMARGO TONI<br />

Musicóloga, é pesquisadora na área de Música do Instituto de Estudos Brasileiros<br />

da Universidade de São Paulo e curadora do Arquivo Camargo Guarnieri.<br />

113


Cláudio Santoro foi um típico compositor brasileiro<br />

do século XX: foi ativo, prolífico, teve uma vida<br />

movimentada, daquelas que talvez merecessem até<br />

filme, e uma produção das mais ricas, com um<br />

catálogo1 de mais de 500 itens que abrangeu as mais<br />

diversas áreas, da ópera à música de câmera, incluindo<br />

música sinfônica, vocal, instrumental e eletroacústica.<br />

Contudo, Santoro também é típico em ter sua<br />

produção largamente desconhecida, mesmo em seu<br />

país2 . Com muita sorte, o freqüentador assíduo de<br />

concertos brasileiros terá ouvido, no máximo, o seu<br />

114<br />

CLÁUDIO SANTORO<br />

UMA TRAJETÓRIA<br />

IRINEU FRANCO PERPETUO<br />

Ponteio, para orquestra de cordas, de 1953. Trata-se,<br />

realmente, de uma peça vigorosa, de apelo<br />

nacionalista, que cai bem como item de bis em<br />

qualquer programa sinfônico; agora, convenhamos,<br />

é muita injustiça a reputação de um autor de nada<br />

menos que 14 sinfonias (um número especialmente<br />

expressivo em um país carente de sinfonistas como<br />

o Brasil, já que, durante o auge da forma sinfônica<br />

na Europa, ou seja, nos períodos cronologicamente<br />

correspondentes ao Classicismo e ao Romantismo<br />

europeus, nossos compositores dedicavam-se


FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

115


116<br />

essencialmente à música sacra e à ópera) repousar<br />

sobre uma pecinha de cinco minutos de duração...<br />

Fala-se muito em um “renascimento” sinfônico<br />

no Brasil, e realmente as orquestras parecem estar<br />

passando por um salto artístico importante no país;<br />

se nem elas, contudo, executarem o legado sinfônico<br />

de compositores como Santoro, como esperar, então<br />

que a música brasileira tenha a difusão internacional<br />

com que todos sonham?<br />

Isso para não tocar no fato de que muitas vezes se<br />

toca música brasileira, por aqui, para “cumprir tabela”,<br />

como se fosse uma desagradável obrigação do<br />

intérprete. Leia-se, por exemplo, a crônica da estréia<br />

de Alma, ópera de Cláudio Santoro baseada em<br />

Oswald de Andrade, escrita em 1984 e que só veio<br />

a merecer première póstuma, no Segundo Festival de<br />

Ópera de Manaus, em 1998. Mesmo ressaltando os<br />

méritos artísticos intrínsecos da obra, Márcio Páscoa3 afirma que Alma foi reduzida a um “monturo musical”:<br />

ele fala de “inépcia dramática”, orquestra e cantores<br />

“visivelmente mal ensaiados”, uma protagonista,<br />

Rosana Lamosa, “inconvincente, e com a dicção pouco<br />

clara”, e por aí vai. Contudo, ressalta: “ficou a certeza<br />

de que Alma, melhor montada e ensaiada, terá<br />

seguramente outro impacto, e pode vir a se tornar uma<br />

peça bem mais apreciável”.<br />

Parece que somos um país de um só compositor,<br />

Villa-Lobos, admitido no “clube” não apenas por seu<br />

evidente talento e inserção internacional, mas também<br />

por ser visto como uma espécie de compositor<br />

“popular” também, um precursor dos balangandãs<br />

de Carmen Miranda e dos experimentos harmônicos<br />

da bossa nova... 4 E o resultado é que fica muito difícil<br />

colocar em pauta a música de outros autores “eruditos”<br />

brasileiros: paira sobre eles sempre a “sombra” de<br />

Villa-Lobos. Acontece com Villa-Lobos, no Brasil,<br />

o que Wilde denunciou sobre um certo uso perverso<br />

dos nomes dos grandes autores clássicos na arte em<br />

geral; ele é “degradado à função de autoridade”,<br />

e apropriado como “porrete para impedir a expressão<br />

livre da arte em formas novas” 5 . Não é “maior” (como<br />

se houvesse critérios objetivos para mensurar esse tipo<br />

de coisa) do que Villa-Lobos? Então não serve.<br />

Imagine se esse tipo de critério fosse aplicado em<br />

outros países... Se a Áustria só se importasse com<br />

compositores “maiores” que Mozart, será que alguém<br />

conheceria a música de Mahler e Bruckner?<br />

À sombra da música popular, e do nome de Villa-<br />

Lobos, Santoro na verdade brilhou bastante em vida.<br />

“Foi um dos raros compositores a conseguir um certo<br />

destaque na imprensa de um modo geral”, afirma<br />

Harry Crowl. “Foram vários os prêmios e homenagens<br />

recebidos por Santoro nesta época”, continua Crowl,<br />

referindo-se aos seus anos finais de vida. “O Brasil<br />

começava a reconhecer, ainda que palidamente,<br />

a importância deste compositor erudito. Porém, sua<br />

obra foi muito mais tocada na Europa. Os países<br />

do leste sempre receberam muito bem a sua música,<br />

especialmente a Bulgária, a Romênia, a então<br />

Tchecoslováquia e a União Soviética. De qualquer<br />

maneira, nenhum outro país foi tão generoso com<br />

Santoro como a República Federal da Alemanha.<br />

Lá, ele foi professor da Musikhochschule<br />

Heildelberg-Mannheim, nos anos de exílio e foi<br />

constantemente homenageado e tocado, tendo sido<br />

convidado para compor na Casa de Brahms por três<br />

ocasiões”, conclui Crowl.<br />

Filho de um oficial bersagliere italiano, Santoro<br />

começa os estudos musicais aos 11 anos de idade,<br />

ganhando um violino de um tio. 6 Menino-prodígio,<br />

logo obtém bolsa do governo de seu estado natal para<br />

estudar no Rio de Janeiro, ingressando, em 1933, aos<br />

14 anos, no Conservatório de Música da então capital<br />

federal, instituição na qual principia a dar aulas<br />

de violino e harmonia assim que conclui o curso. 7<br />

Ativíssimo, Santoro começa a compor em 1938, e<br />

participa da fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

e do grupo Música Viva, que gravitou em torno do<br />

compositor alemão radicado no Rio Hans Joachim<br />

Koellreuter, trabalhando pela divulgação das técnicas<br />

composicionais de vanguarda no Brasil. Santoro, por<br />

sinal, ainda que instintivamente, foi o primeiro autor<br />

a empregar a técnica dos doze sons por aqui8 . Com<br />

o talento e a importância reconhecidos antes de<br />

completar 30 anos de idade9 , começou a ser laureado<br />

em concursos de composição, até ganhar, em 1946,<br />

bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, de Nova<br />

York. Mas estávamos na Guerra Fria, e sua ligação com


idéias não estão à venda”, teria dito11 .<br />

Bolsa, Santoro acabou ganhando, mas do governo<br />

francês, para estudar em Paris com Nadia Boulanger<br />

(composição) e Eugène Bigot (regência), além de fazer<br />

curso de cinema na Sorbonne12 . Existe quase<br />

unanimidade entre os pesquisadores13 de que sua<br />

participação no II Congresso Internacional de<br />

Compositores Progressistas de Praga, em 1948,<br />

levou-o a abjurar o serialismo e abraçar o<br />

nacionalismo, em concordância com os princípios<br />

defendidos por Andrei Jdanov, comissário de cultura<br />

de Stálin, e que podem ser resumidos sob o rótulo<br />

genérico de “realismo socialista”: agora a música tinha<br />

que ser feita “para as massas” 14 bem-sucedidos corpus de lied em língua portuguesa.<br />

O tom em geral melancólico, a poesia de Vinícius<br />

e a linguagem harmônica já fizeram com que<br />

essas obras fossem associadas ao universo estético<br />

da bossa-nova.<br />

Os musicólogos gostam de dividir a produção<br />

de Santoro em fases. Gerard Béhague<br />

.<br />

E já estava o Santoro de volta ao Brasil; em<br />

princípio, sem emprego, proibido de voltar à OSB,<br />

17 o Partido Comunista acabou<br />

inviabilizando a viagem: “bastaria<br />

que assinasse um termo negando<br />

vínculo com o PC, mas ele<br />

se recusou alegando que não era um<br />

agitador e que o partido estava na O Brasil começava<br />

legalidade. O visto lhe foi negado, a reconhecer, ainda<br />

o que quebrou suas finanças, pois já<br />

tinha inclusive alugado apartamento que palidamente,<br />

em Nova York”, afirma a pesquisadora<br />

Iracele Vera Lívero de Souza a importância deste<br />

compositor erudito.<br />

Porém, sua obra foi muito<br />

mais tocada na Europa<br />

identifica, entre<br />

1939 e 1947, uma fase “orientada na direção da<br />

atonalidade”, começando com a aplicação da técnica<br />

dos 12 tons até um uso mais flexível deste mesmo<br />

idioma. Um lirismo nacionalista começa a entrar em<br />

campo por volta de 1945, com peças como a Sinfonia<br />

nº 2 e a Música para cordas; o compositor “começou<br />

estudos sérios de música folclórica e popular brasileira”<br />

em 1949-50, e “abraçou um estilo nacionalista”, com<br />

afinidades com a escrita sinfônica de Prokofiev<br />

10 sofrendo retaliações políticas; depois,<br />

trabalhando em rádios, também sob<br />

pressão política<br />

.<br />

Não foi a primeira tentativa de<br />

cooptação do compositor, que,<br />

posteriormente, teria aberto mão do<br />

mecenato da família Guinle ao ser<br />

sabatinado ideologicamente: “minhas<br />

15 . Ao longo dos anos<br />

50, começa a fazer uma série<br />

de aparições públicas na Europa,<br />

especialmente (mas não<br />

exclusivamente) em países do bloco<br />

soviético, regendo suas obras<br />

sinfônicas, em geral grandiloqüentes,<br />

e dotadas de grande energia. Mas<br />

há espaço para o intimismo: na Paris<br />

de 195716 Cláudio Santoro<br />

, Santoro e o poeta Vinícius<br />

de Moraes começam uma série<br />

de dez Canções de Amor que, juntas<br />

às Três Canções Populares, dos mesmos<br />

autores, constituem um dos mais<br />

117


118<br />

e Chostakovitch, entre 1948 e 1960 – época do Canto<br />

de Amor e Paz e das sinfonias de nº 4, 5 e 6.<br />

A década de 60 marca um breve retorno do<br />

compositor ao Brasil, em 1962, sob convite de Darcy<br />

Ribeiro, para coordenar o <strong>Departamento</strong> de Música da<br />

Universidade de Brasília. Com o golpe militar de 1964,<br />

Santoro, “o vermelho”, ficou visado; e o compositor<br />

acabou se transferindo para a então Alemanha<br />

Ocidental, com bolsa da Fundação Ford para Berlim.<br />

No novo país, seu trabalho culminou com<br />

a permanência em Heidelberg-Mannheim, como<br />

professor de regência e composição na Hochschule<br />

local (1970-78). 18<br />

O período a partir dos anos 60 também é tido<br />

como o “último”, esteticamente falando, de sua<br />

produção: o do “retorno a um serialismo qualificado<br />

e uso da aleatoriedade e outras técnicas novas” 19 .<br />

É a época das Mutationen, que empregam recursos<br />

eletroacústicos, das Interações assintóticas, do sofisticado<br />

Ciclo Brecht, com obras para canto que se afastam<br />

significativamente do idioma das parcerias com<br />

Vinícius, e da Cantata elegíaca, encomendada pela<br />

Fundação Gulbenkian, e que traz passagens corais<br />

e instrumentais improvisadas20 . “Este ir e vir<br />

1. O catálogo de obras de Claudio Santoro está disponível no site<br />

http://www.claudiosantoro.art.br, cujas informações foram<br />

de grande utilidade para a elaboração deste texto.<br />

2. Os intérpretes “quixotescos” que gravaram a música de<br />

Santoro estão listados na discografia que aparece ao final do<br />

artigo. Nela, optou-se não por fazer uma lista completa de<br />

todos os fonogramas de Santoro, nem de cada CD gravado<br />

(essas listas também estão disponíveis no site. Ver nota 1),<br />

mas por elencar os discos disponíveis comercialmente no<br />

momento da publicação deste texto.<br />

3. PÁSCOA, Márcio. Cronologia Lírica de Manaus, pg. 425-7,<br />

Governo do Estado/Editora Valer, Manaus, 2000.<br />

4. APPLEBY, David P.. Heitor Villa-Lobos – A Life (1887-1959),<br />

pg. 179-80, The Scarecrow Press, Boston, 2002.<br />

5. WILDE, Oscar. The Soul of Man under Socialism, pg. 37, in De<br />

Profundis and Other Writings, Penguin Classics, Londres, 1986.<br />

6. MARIZ, Vasco. Cláudio Santoro, pg. 15, Civilização Brasileira,<br />

Rio de Janeiro, 1994.<br />

7. Enciclopédia da Música Brasileira, pg. 710-12, Art Editora/<br />

Publifolha, São Paulo, 1998.<br />

8. No seu “Música Viva e H. J. Koellreuter – movimentos em<br />

estilisticamente de um lado a outro se pode notar<br />

também em alguns compositores da geração de<br />

Santoro ou da geração imediatamente seguinte”, afirma<br />

Roque Cordero21 .<br />

Em 1978, a ditadura militar brasileira começava<br />

a se abrandar, e Santoro finalmente pôde retornar<br />

à pátria, trabalhando novamente em Brasília, na<br />

Universidade, e organizando a Orquestra Sinfônica<br />

do Teatro Nacional. O compositor continua recebendo<br />

convites do Exterior para reger e encomendas<br />

periódicas de obras da Europa; por aqui, junto com<br />

as honrarias, havia os dissabores burocráticos da<br />

direção do Teatro Nacional22 . E foi neste palco, em<br />

meio ao ensaio do primeiro concerto da temporada<br />

de 1989 – um ano em que estava programada uma<br />

série de homenagens por seu 70º aniversário – que<br />

ele sofreu o enfarte fulminante que lhe tirou a vida.<br />

Para Santoro, estar vivo e estar ativo sempre<br />

significou a mesma coisa. Talvez o que falte, agora para<br />

que sua música mereça o reconhecimento devido, seja<br />

um novo Cláudio Santoro – não um clone estético seu,<br />

mas uma personalidade musical com a mesma energia<br />

e desenvoltura, para defender suas obras e levá-las<br />

adiante no século XXI.<br />

direção à modernidade” (Musa Editora/Atravez, São Paulo,<br />

2001), Carlos Kater, conta, à pg. 107, que Koellreuter tinha<br />

mais afinidade estética com Hindemith do que com<br />

Schönberg, até que foi levado a trabalhar com o serialismo<br />

“devido ao fato de um de seus primeiros alunos de<br />

composição, Cláudio Santoro, ter elaborado em sua Sinfonia<br />

para duas orquestras de cordas, de 1940, algumas passagens<br />

organizadas de forma serial. Como Santoro ignorasse até<br />

aquela data tudo o que se referisse à técnica dodecafônica,<br />

Koellreuter inseriu em suas aulas o estudo do assunto,<br />

encontrando aí estímulo para escrever sua primeira peça<br />

baseada no método de composição com doze notas: Invenção”.<br />

9. Em seus 150 anos de música no Brasil – 1800-1950 ( José Olympio<br />

Editora, Rio de Janeiro, 1956), Luiz Heitor já o destaca como<br />

um dos nomes mais proeminentes de sua geração e, embora<br />

ainda não consiga ver com clareza que tipo de caminho<br />

estético o autor amazonense trilharia, vaticina, sem pestanejar:<br />

“Mas de uma coisa está certo: que ela [sua música] continuará<br />

sendo música de qualidade invulgar, pois não importa qual seja<br />

a linguagem empregada para sua exteriorização, a fina<br />

sensibilidade de Santoro impõe sempre a tudo o que ele<br />

escreve um nível a que só os compositores de grande raça têm<br />

acesso” (pg. 365).


10. SUGIMOTO, Luiz. Santoro, uma vida contada ao piano, in<br />

Jornal da Unicamp, edição 224. Souza defendeu a dissertação<br />

de mestrado “Santoro: Uma história em miniaturas. Estudo<br />

analítico interpretativo dos prelúdios para piano de Cláudio<br />

Santoro” em agosto de 2003, na Unicamp, pesquisando<br />

largamente a correspondência do compositor com<br />

o musicólogo Francisco Curt Lange, amigo e incentivador<br />

de Santoro.<br />

11. PORTO, Regina. “A herança utópica”, pg. 72, in Revista<br />

Bravo, São Paulo, março de 1999.<br />

12. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 20.<br />

13. Uma exceção de peso é Flávio Silva, que sustenta, com<br />

argumentação convincente, que “a conversão de Santoro ao<br />

nacionalismo musical deve ter ocorrido antes de o compositor<br />

participar do Congresso de Praga, em maio de 1948. O corte<br />

com o dodecafonismo parece ter sido radical, sem o<br />

gradualismo com que Guerra-Peixe se afastou dessa corrente”.<br />

A argumentação é desenvolvida em “Abrindo uma carta<br />

aberta”, in “Camargo Guarnieri – o tempo e a música”,<br />

org. Flávio Silva, Funarte/Imprensa Oficial do Estado,<br />

Rio de Janeiro, 2001.<br />

14. “Se a sociedade socialista constituiu um progresso sobre<br />

a capitalista, se a classe proletária é a classe revolucionária,<br />

é necessário que a arte reflita os anseios da nova classe para<br />

que seja uma arte progressista. A arte feita nos países<br />

capitalistas reflete a classe dominante, portanto é decadente”;<br />

trecho de artigo de Cláudio Santoro na revista Fundamentos,<br />

em 1948/9, citado por Silva, Flávio, op. cit.<br />

15.“Foi deposto do cargo de diretor musical da Rádio Clube –<br />

emissora montada por Samuel Wainer- por pressão de Carlos<br />

Lacerda”. Porto, Regina, op. cit., pg. 71.<br />

16. Conta Iracele Vera Lívero de Souza (in Sugimoto, Luiz, op.<br />

cit.) que Santoro enamorara-se de Lia, a tradutora russa que<br />

o acompanhara na turnê russa de 1957. Mulher de “olhos<br />

profundos, melancólicos e cheios de ternura”, Lia era casada<br />

com um funcionário do KGB, o que fez com que o<br />

compositor tivesse que deixar a URSS. Refugiado na<br />

embaixada brasileira em Paris, lá conheceu Vinícius de<br />

Moraes, com o qual escreveu as 13 canções “dor-de-cotovelo”.<br />

17. SANTORO, Cláudio, in The New Grove Dictionary of Music and<br />

Musicians, editado por Stanley Sadie, vol. 16, pg. 483-5,<br />

Londres, Macmillan Publishers Limited, 1980.<br />

18. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 61.<br />

19. BÉHAGUE, op. cit.<br />

20. Na Alemanha, Santoro pôde, ainda, dedicar-se a outra de suas<br />

paixões, a pintura. “É também desse estágio em Berlim<br />

a composição de quadros sonoros. Finalmente, teve um pouco<br />

de tempo para se dedicar à pintura, realizando então quadros<br />

musicais que utilizam aparelhagem fotoelétrica, a qual,<br />

automaticamente, toca trinta segundos de música abstrata<br />

eletroacústica, quando uma pessoa se aproxima. Dessa série<br />

teve duas litografias impressas em Paris e gostaria de ter<br />

prosseguido tais experiências, caso houvesse encontrado um<br />

DISCOGRAFIA<br />

SONATAS PARA VIOLINO E PIANO DE CLÁUDIO SANTORO.<br />

Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano.<br />

JHO Music, 1995<br />

<strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />

(Inclui o Trio de 1973) Jerzy Milewski, violino;<br />

Márcio Malard, violoncelo; Aleida Schweitzer, piano<br />

Rio Arte Digital, 1996<br />

CLÁUDIO SANTORO – UM CONCERTO, TRÊS SONATAS, UMA SONATINA,<br />

UM CANTO, UM VOCALISE E UMA <strong>MÚSICA</strong> PARA ORQUESTRA DE CORDAS<br />

Vários intérpretes<br />

Soarmec, 1998<br />

PRELÚDIOS E CANÇÕES DE AMOR. Aldo Baldin, canto;<br />

Lílian Barreto, piano. Sonata, 1998<br />

DUO HADELICH SALGADO – BRASILIAN COMPOSERS<br />

(inclui a Fantasia Sul América, Elegia nº 1 e Elegia nº 3).<br />

Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano. Vox, 1998<br />

5 SONATAS DE CLÁUDIO SANTORO PARA VIOLINO E PIANO<br />

Mariana Salles, violino; Laís de Souza Brasil, piano<br />

ABM Digital, 1999<br />

SANTORO - SINFONIA Nº 5<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira/regência Cláudio Santoro.<br />

Festa, 1999<br />

GRANDES PIANISTAS BRASILEIROS<br />

(inclui as Paulistanas 1-7). Fritz Jank, piano.<br />

Master Class, 2000<br />

ORQUESTRA FILARMÔNICA NORTE NORDESTE<br />

(inclui o Mini-Concerto Grosso). Aylton Escobar, regente.<br />

CPC-Umes, 2000<br />

BRASILIANA: THREE CENTURIES OF BRAZILIAN MUSIC<br />

(inclui as Paulistanas 1 e 4). Arnaldo Cohen, piano.<br />

BIS, 2000<br />

CONVERGENCES – BRAZILIAN MUSIC FOR STRINGS<br />

(inclui o Ponteio). Camerata Fukuda/Celso Antunes, regente.<br />

Paulus, 2001<br />

O PIANO DE CLÁUDIO SANTORO. Gilda Oswaldo Cruz, piano. Biscoito<br />

Fino, 2001<br />

CANÇÕES DE AMOR E PRELÚDIOS. José Hue, canto; Heitor Alimonda,<br />

piano. Produção independente, sem data<br />

técnico em eletrônica que resolvesse os problemas de<br />

apresentação simultânea desses quadros musicais”. MARIZ,<br />

Vasco, op. cit., pg. 45.<br />

21. CORDERO, Roque, Vigencia del músico culto, pg. 165,<br />

in “América Latina en su música”, relatora Isabel Aretz,<br />

Unesco/Siglo Veintiuno Editores, México, 1997.<br />

22. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 56.<br />

IRINEU FRANCO PERPETUO<br />

Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona)<br />

e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).<br />

119


120<br />

OS EVENTOS PARA DIVULGAÇÃO DA<br />

<strong>MÚSICA</strong><br />

CONTEMPORÂNEA<br />

NO BRASIL<br />

Os eventos para divulgação da música brasileira<br />

contemporânea tiveram a importante função de<br />

colocar a produção da nova música de concerto<br />

em contato com um público amplo, além das<br />

fronteiras do meio universitário. A idéia de realizar<br />

esses festivais teve início na década de 60 em três<br />

núcleos principais: Salvador, no Estado da Bahia, no<br />

Rio de Janeiro, na época Estado da Guanabara e em<br />

Santos, no Estado de São Paulo. A realização desses<br />

EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES<br />

eventos sempre esteve subordinada ao apoio<br />

institucional dos órgãos governamentais de promoção<br />

da cultura e muitas vezes a continuidade, ou não,<br />

desses eventos, dependeu do interesse e da vontade<br />

política das autoridades que chefiavam essas<br />

instituições. A persistência na realização desses<br />

festivais, sua continuidade, foi resultado de um<br />

engajamento pessoal de alguns compositores que<br />

levaram adiante esse ideal de difundir a música nova


e promover o encontro das mais diversas tendências<br />

musicais e estéticas do país. Cada festival teve também<br />

algumas características próprias ao lidar com os vários<br />

aspectos e enfoques na divulgação da produção musical<br />

contemporânea. Atualmente, os únicos festivais que<br />

mantém sua programação, apesar das dificuldades<br />

financeiras, da falta de apoio quase total das<br />

instituições que deveriam promover a música<br />

de concerto brasileira e com algumas interrupções,<br />

são a Bienal de Música Brasileira Contemporânea<br />

no Rio de Janeiro e o Festival Música Nova em Santos.<br />

A época áurea desses festivais, nos anos 60 e 70,<br />

coincidiu com um dos momentos mais tensos da vida<br />

cultural do país, quando a ditadura militar usou do veto<br />

da censura para tentar controlar as idéias<br />

e as produções artísticas dos mais variados seguimentos<br />

da comunidade cultural e artística do país. As intenções<br />

desses músicos se confundiam entre o interesse da<br />

renovação e revitalização da linguagem musical,<br />

a necessidade da livre expressão das idéias e o direito<br />

de protestar perante tamanho abuso de autoridade<br />

dos que estavam ilicitamente no poder.<br />

Nesse artigo descrevo sinteticamente as atividades<br />

realizadas pelos principais eventos que mantiveram<br />

uma programação regular exclusivamente voltada<br />

para a divulgação da música contemporânea no Brasil,<br />

mas é necessário ressaltar que outros festivais também<br />

esporadicamente criaram espaços para a música nova,<br />

dos quais cito o Festival de Inverno de Campos<br />

do Jordão, o Festival de Inverno da Universidade<br />

Federal de Minas Gerais, Cursos de Verão<br />

de Curitiba e os Seminários Internacionais<br />

de Música da Bahia entre outros.<br />

GRUPO DE COMPOSITORES DA BAHIA<br />

A divulgação da nova música em Salvador na Bahia foi<br />

resultado direto da atuação do Grupo de Compositores<br />

da Bahia liderados pelo compositor Ernst Widmer.<br />

Esse grupo de compositores contou em sua formação<br />

com os nomes de Lindembergue Cardoso, Fernando<br />

Cerqueira, Nicolau Kokron, Milton Gomes, Jamary<br />

Oliveira, Rinaldo Rossi, Antonio José Santana Martins<br />

(Tom Zé) e Jamary Oliveira. Ernst Widmer, que teve<br />

atuação decisiva na formação musical e ideológica<br />

desse grupo de compositores, assim se expressa sobre<br />

sua intenção de reorganizar os meios formais da<br />

construção musical: “... procuro sempre estimular<br />

a composição ‘livre’, paralela e anterior ao estudo<br />

da teoria, da harmonia, da análise, do contraponto,<br />

da fuga, do cânone, do prelúdiocoral, dos<br />

ricercarsonatavariaçãorondos, para evitar aquela música<br />

fictícia, geralmente produzida alheia à vivência,<br />

em cursos acadêmicos demasiadamente teóricos<br />

e restritos”. Widmer, nascido na Suíça, pátria<br />

do Dadaísmo, e atuante no meio cultural baiano desde<br />

1956, assina com outros componentes do grupo<br />

a provocante Declaração de Princípios dos Compositores<br />

da Bahia em 30 de novembro 1966:<br />

“Artigo único – principalmente estamos contra<br />

todo e qualquer princípio declarado”. E dando<br />

prosseguimento ao documento: “1) Qualquer aplauso<br />

ou manifestação... (censurado) é considerado<br />

subversão; 2)Manifestações permitidas: vaias, assobios,<br />

tomates e ovos podres; 3) Com referência aos<br />

intérpretes, faz-se necessário salientar que são<br />

inocentes. Convém poupá-los para poderem atuar nos<br />

próximos concertos; 4) Aconselha-se aguardar o final<br />

onde haverá uma pequena demonstração de civilização<br />

– explosão de instintos...(censurado); 5) O que ocorrer<br />

de normal não será de nossa responsabilidade; 6) Não<br />

se revoguem indisposições ao contrário”.<br />

As primeiras apresentações de obras desse grupo<br />

se dão em abril de 1966 durante o evento Semana<br />

Santa na Bahia, cujas obras tinham tema ou texto de<br />

caráter religioso, e em novembro do mesmo ano em<br />

um Concerto Popular com a participação da Orquestra<br />

Sinfônica da Universidade Federal da Bahia (UFBA).<br />

A partir de 1967 o evento é denominado Apresentação<br />

121


122<br />

de Compositores da Bahia e segue sendo realizado<br />

até o ano de 2000. A partir de 1983 o evento torna-se<br />

bienal. Como esclarece o título, o evento visava<br />

difundir a produção dos compositores do grupo baiano,<br />

mas algumas peças de outros compositores brasileiros<br />

eventualmente eram incluídas no festival. Além da<br />

apresentação das obras era realizado um concurso que<br />

premiava as peças mais representativas por um júri<br />

formado por diversos compositores brasileiros e uma<br />

das obras recebia um prêmio do público participante.<br />

O grande benefício que o evento proporcionava aos<br />

compositores era permitir uma “constelação criadorintérprete-público,<br />

ou seja, uma escola-extensão, uma<br />

prática de auto-educação: o compositor reconhece seus<br />

erros e tentos somente através da execução ao vivo de<br />

suas obras” (Widmer). Com essa proposta, o grupo da<br />

Bahia se destacava no plano musical do país, dando<br />

oportunidade aos compositores de se apresentarem<br />

num concurso ao vivo, como comenta Cidinha Mahle<br />

no “Jornal de Piracicaba” em dezembro de 1967:<br />

“Chama a atenção o fato de que a Bahia está sendo<br />

Iº Festival de Música da Guanabara. O Globo. 24.05.69.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

praticamente o único Estado da federação a estimular<br />

o jovem artista compositor de música erudita”.<br />

O compositor Bruno Kiefer também comenta em um<br />

artigo de o “Correio do Povo” de Porto Alegre em<br />

novembro do mesmo ano: “ Encerrou-se no dia 19<br />

de novembro um concurso singular, realizado na Bahia<br />

(...) A singularidade reside no fato de terem sido unidos<br />

um concurso de composição erudita e outro de música<br />

popular. Uma conseqüência básica dessa união foi esta:<br />

gente de música popular assistindo aos concertos de<br />

música erudita e vice-versa. (...) Os concorrentes foram<br />

quase todos jovens de vinte e poucos anos, educados<br />

musicalmente nos Seminários de Música da<br />

Universidade. Impressionou a solidez do artesanato.<br />

Esteticamente avançados. Mas o conceito de avançado<br />

merece uma posição crítica. Costuma ser considerado<br />

avançado, ou de vanguarda, aquilo que corresponde<br />

a um modo de pensar europeu. Tendo em conta que<br />

a arte nasce da necessidade de expressar e estruturar<br />

a realidade em que vive o artista, é singular que<br />

um grupo de compositores jovens da Bahia, salvo um,<br />

expresse algo que, basicamente, não<br />

é nosso. Mesmo levando em conta<br />

o pensamento europeu, essa influência<br />

em nossa cultura, ainda incipiente, não<br />

vemos razão nenhuma para ignorar<br />

o que é especificamente nosso.<br />

E isso justamente na Bahia, o coração<br />

do Brasil. (...)”<br />

Entre os vários intérpretes<br />

e conjuntos encarregados da execução<br />

de tantas obras inéditas e cúmplices das<br />

propostas estéticas do grupo baiano,<br />

podemos destacar: Orquestra Sinfônica<br />

da UFBA, Conjunto de Metais<br />

da UFBA, Grupo Experimental<br />

de Percussão da UFBA, Madrigal da<br />

UFBA, Trio da Universidade da Bahia<br />

(Moysés Mandel, Piero Bastianelli e<br />

Pierre Kose), Afrânio Lacerda, Quinteto


de Sopros da UFBA, Erick Vasconcelos, Fernando<br />

Lopes, Quarteto de Cordas da Bahia e Conjunto<br />

Música Nova da UFBA (depois Bahia “Ensemble”) sob<br />

direção de Piero Bastianelle. Além dos compositores<br />

fundadores do grupo, há de se destacar a atuação<br />

do inventor de instrumentos e novíssimas sonoridades<br />

Walter Smetack, que com suas inéditas propostas<br />

de luteria incentivou a criação de novas obras<br />

especialmente escritas para singulares fontes sonoras.<br />

Entre os compositores que se destacaram na<br />

programação desse núcleo baiano, podemos citar Paulo<br />

Costa Lima, Wellington Gomes, Agnaldo Ribeiro,<br />

Lucemar Ferreira, Ricardo Bordini, Ângelo Castro,<br />

Pedro Kröger, Pedro Augusto Dias e Fernando Burgos.<br />

O compositor Paulo Costa Lima idealizou e coordenou<br />

a partir de 1986 até 1992, a Semana da Música<br />

Contemporânea, evento realizado dentro<br />

da programação dos Seminários Internacionais<br />

de Música da Bahia e depois incorporado a esse último<br />

a partir de 1993.<br />

FESTIVAL DE <strong>MÚSICA</strong> DA GUANABARA<br />

E BIENAL DE <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> CONTEMPORÂNEA.<br />

Edino Krieger é um dos compositores mais atuantes<br />

na criação e realização dos eventos para a divulgação<br />

da música brasileira contemporânea. Sua atuação<br />

frente ao MIS (Museu da Imagem e do Som) e do<br />

Instituto Nacional de Música, órgão ligado a Funarte<br />

(Fundação Nacional de Arte) foi decisiva para a criação<br />

dos Festivais de Música da Guanabara, das Bienais<br />

de Música Brasileira Contemporânea e no apoio<br />

à promoção de outros eventos tais como os Ciclos<br />

de Música Contemporânea de Belo Horizonte, as<br />

Apresentações de Compositores da Bahia e o Encontro<br />

de Compositores Latino Americano (Encompor) em<br />

Porto Alegre. O I Festival de Música da Guanabara foi<br />

realizado em 1969 com a participação e apoio do<br />

Secretário da Educação e Cultura do então Estado<br />

da Guanabara Gonzaga da Gama Filho. O formato<br />

do evento era de um festival-concurso que revelou ao<br />

público uma nova geração de compositores. As obras<br />

foram executadas pelo Coro e Orquestra do Teatro<br />

Municipal do Rio de Janeiro, com grande sucesso de<br />

público, e foram selecionadas por um júri formado por<br />

renomados compositores: Fedele D’Amico da Itália<br />

(presidente), Franco Autori dos EUA, Fernando Lopes<br />

Graça de Portugal, Hector Tosar do Uruguai, Roque<br />

Cordero do Panamá, e maestros brasileiros<br />

e estrangeiros. Nesse primeiro festival das 14 obras<br />

finalistas, cinco foram premiadas: Pequenos Funerais<br />

Cantantes, de Almeida Prado; Concerto Breve, para piano<br />

de Marlos Nobre, Procissão das Carpideiras, de<br />

Lindembergue Cardoso, Heterofonia do Tempo,<br />

de Fernando Cerqueira e Primevos e Postrídios, de Milton<br />

Gomes. Na execução das obras se destacaram<br />

os solistas Maria Lúcia Godoy, Nelson Portela, Arnaldo<br />

Estrela e Eládio Perez-Gonzales. As obras foram<br />

regidas por Mário Tavares, Henrique Morelenbaum<br />

e Armando Krieger. O II Festival de Música da<br />

Guanabara, realizado em 1970 recebeu 126 inscrições<br />

de toda a América Latina. O júri foi presidido por<br />

Francisco Mignone e integrado por Guillermo<br />

Espinoza, Colômbia; Franco Autori, USA; Tadeusz<br />

Baird, Polônia; Vaclav Smetacek, Tchecoslováquia;<br />

Jorge Peixinho, Portugal; Garcia Morillo, Argentina;<br />

Domingo Santa Cruz e Gustavo Becerra, Chile; Hector<br />

Tosar, Uruguai; e Roque Cordero, Panamá. Os<br />

premiados nas categorias música de câmara e sinfônica<br />

foram: Sinopsis, de Ernst Widmer; Mosaico, de Marlos<br />

Nobre; Espectros, de Lindembergue Cardoso; Pequeño<br />

Tríptico, de José Ramon Maranzano, da Argentina;<br />

Ludus II de Hilda Dianda, da Argentina e Missa Breve,<br />

de Aylton Escobar. Com a morte de Gama Filho logo<br />

após a realização do segundo evento, o projeto<br />

do terceiro festival foi encaminhado ao seu sucessor na<br />

Secretaria de Educação e Cultura, Vieira de Mello, que<br />

na época da realização dos dois primeiros era diretor<br />

do Teatro Municipal, que sob alegação de falta de<br />

recursos, o arquivou. Edino Krieger elaborou então<br />

o projeto das Bienais de Música Brasileira<br />

123


124<br />

Contemporânea só realizado em 1975 graças<br />

à colaboração de Myriam Dauelsberg que dirigia<br />

à época a Sala Cecília Meireles. As Bienais se tornaram<br />

o mais importante espaço aberto para a mostragem<br />

periódica da produção musical brasileira mais recente.<br />

Um amplo painel democrático das mais variadas<br />

tendências da música brasileira de concerto atual que<br />

vem promovendo o intercâmbio de compositores e<br />

intérpretes de todas as partes do país, divulgando obras<br />

de autores consagrados e revelando os novos valores1 .<br />

Ao promover o encontro das diversas gerações<br />

de compositores as Bienais, permitiram que as mais<br />

diversas tendências fossem confrontadas revelando<br />

o imenso pluralismo das tendências estéticas da música<br />

brasileira contemporânea. Além dos concertos que<br />

consolidaram um caráter festivo, de confraternização<br />

do evento, uma programação paralela constituída<br />

de debates, mesas redondas, mostra de filmes<br />

e lançamentos de gravações, partituras e livros,<br />

permitiu que uma ampla troca de informações entre<br />

intérpretes e compositores fosse vinculada pelos meios<br />

de comunicação, tornando-se espaço privilegiado<br />

da produção musical brasileira.<br />

Disco da I Bienal Brasileira de Música<br />

Contemporânea. (1975)<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

1. Citar todos os nomes dos compositores e intérpretes<br />

aqui, será impossível, mas de forma bastante resumida podemos<br />

destacar: I Bienal (1975, 35 compositores participantes): José<br />

Siqueira, Radamés Gnattalli, Francisco Mignone, Souza Lima,<br />

Camargo Guarnieri, Edino Krieger, Cláudio Santoro, Guerra-<br />

Peixe, Bruno Kiefer, Ernst Widmer, Jocy de Oliveira, Fernando<br />

Cerqueira, Lindembergue Cardoso, Jamary Oliveira, Ayton<br />

Escobar, Jorge Antunes, Guilherme Bauer, Cirley de Hollanda,<br />

Jaceguay Lins, Ronaldo Miranda, Roseana Yampolschi, Paulo<br />

Chagas, Dawid Korenchendler e Marco Antonio Guimarães.<br />

II Bienal (1977, 42 compositores participantes): Gilberto<br />

Mendes, Agnaldo Ribeiro e Luiz Carlos Vinholes. III Bienal<br />

(1979, 48 compositores participantes): Eunice Katunda,<br />

Fructuoso Vianna, Luís Cosme, Brasílio Itiberê, Heitor<br />

Alimonda, entre outros compositores ligados ao Movimento<br />

Música Viva, destaque na programação, sob a tutela de<br />

H. J. Koellreuter. VI Bienal (1981, 52 compositores<br />

participantes): Tim Rescala e Tato Taborda dirigindo o Grupo<br />

Juntos – Música Nova. V Bienal (1983): Mário Ficarelli,<br />

Ricardo Tacuchian, Osvaldo Lacerda, Ernst Mahle, Odemar<br />

Brígido, Ernani Aguiar e uma exposição dedicada a Ester Scliar.<br />

VI Bienal (1985; 67 compositores participantes): Eli-Eri Moura,<br />

José Alberto Kaplan, Arthur Kampela, Nestor de Hollanda<br />

Cavalcanti, Mariza Rezende, Pauxy Nunes, Luiz Carlos Csëko,<br />

Rodolfo Caesar, Eduardo Guimarães Álvares, Roberto Victorio,<br />

Willy Correa de Oliveira e Marcos Lavigne. VII Bienal (1987,<br />

79 compositores participantes): Rodrigo Cicchelli, Luigi<br />

Irlandini, Wellington Gomes, Paulo Costa Lima e Leonardo Sá.<br />

VIII Bienal (1989; 86 compositores participantes): Destaque da<br />

programação concerto de abertura em homenagem aos 20 anos<br />

do I Festival de Música da Guanabara, Edmundo Villani-<br />

Cortes, Harry Crowl, Grupo Multimedia de Belo Horizonte,<br />

João Guilherme Ripper e homenagem póstumas a<br />

Lindembergue Cardoso, Cláudio Santoro e Paulo Libânio.<br />

IX Bienal (1991): Oiliam Lana e grupo de compositores<br />

mineiros. X Bienal (1993, 85 compositores participantes):<br />

Flô Menezes, Sílvio Ferraz, Eduardo Seincman, Lelo Nazário,<br />

Dalga Larondo e Silvia de Lucca. XI Bienal (1995; 92<br />

compositores participantes): Fernando Iazzetta, Sergio Igor<br />

Schnee. XII Bienal (1997). XIII Bienal (1999) Curadoria de<br />

Cirlei Hollanda. Retrospecção da programação de anos<br />

anteriores. XIV Bienal (2001). Concurso de composição para<br />

várias categorias. Alexandre Schubert, Caio Senna, Bruno<br />

Ruviaro. XV Bienal (2003). Curadoria de Flávio Silva e Maria<br />

José de Queiroz Ferreira. Calimério Soares, Dimitri Cervo,<br />

Chico Melo, Marcos Lacerda, Sérgio Freire, Pedro Kröger,<br />

Marcus Siqueira, Antônio Ribeiro e Silvia Berg.


FESTIVAL <strong>MÚSICA</strong> NOVA DE SANTOS E SÃO PAULO<br />

O Festival Música Nova de Santos foi realizado pela<br />

primeira vez em 1962. Foi uma conseqüência direta das<br />

idéias e propostas contidas no Manifesto Música Nova<br />

que deu suporte teórico e ideológico ao Movimento<br />

Música Nova, cujas atividades na época giravam em<br />

torno da Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida<br />

por George Olivier Toni; do Madrigal Ars Viva<br />

de Santos, dirigido por Klaus Dieter Wolf;<br />

e do movimento do Grupo Noigrandes dos poetas<br />

concretistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos<br />

e Décio Pignatari. O Festival Música Nova nasceu<br />

sob a luz das diretrizes européias do “Neue Musik”,<br />

marcada por uma posição internacionalista que visava<br />

liberar a cultura brasileira “das travas infra-estruturais<br />

e das super-estruturas ideológico-culturais então<br />

dominantes”, conforme declara José Maria Neves em<br />

seu livro Música Contemporânea Brasileira de 1977.<br />

A programação do evento, sob direção artística<br />

do compositor santista Gilberto Mendes, privilegiou<br />

o intercâmbio com as várias correntes estéticas<br />

da música contemporânea mundial, dando<br />

continuidade às atividades desenvolvidas desde<br />

a década de 40 pelo grupo Música Viva dirigido por<br />

H. J. Koellreutter. A história da realização do festival<br />

pode ser dividida em três momentos distintos: de 1962<br />

a 1964 marcada pelas proposições estéticas<br />

e ideológicas contidas no Manifesto Música Nova<br />

e da “Neue Musik” alemã, com ênfase na divulgação<br />

das obras de Gilberto Mendes e Willy Correa<br />

de Oliveira, signatários do documento, interrompida<br />

pelo golpe militar de 1964. Nesse primeiro momento<br />

o evento ainda era denominado Semana de Música de<br />

Vanguarda. Um segundo momento teria início a partir<br />

da continuidade do festival em 1968, quando é dada<br />

ênfase à música ibero-americana. Entre 1970 e 1980,<br />

tendo os compositores esgotado as propostas da<br />

“Neue Musik”, voltam-se à criação de uma música mais<br />

comunicativa, mais politicamente engajada. No entanto<br />

essa intenção em escrever uma música mais<br />

Programa do 1º Ciclo de Música Contemporânea<br />

de Belo Horizonte, 1984.<br />

comunicativa, de certa forma se contrapunha à idéia de<br />

produzir um festival para um público restrito, como nas<br />

primeiras edições do evento. Essa mudança de rumos,<br />

que seria um terceiro momento do percurso, faz<br />

a ideologia do festival se aproximar estilisticamente<br />

das idéias pós-modernas do movimento europeu Nova<br />

Consonância, principalmente das idéias difundidas<br />

pelo compositor belga Boudewijin Buckninx.<br />

A realização do Festival Música Nova sempre esteve<br />

vinculada ao apoio dos órgãos de promoção cultural da<br />

Prefeitura Municipal de Santos, da Secretaria de Estado<br />

da Cultura de São Paulo e recebendo patrocínio<br />

eventual de outras instituições. A partir de 1997<br />

até 1999, a realização do festival foi amplamente<br />

revitalizada pelo apoio cultural e patrocínio<br />

do Instituto <strong>Cultural</strong> Itaú, depois Itaú <strong>Cultural</strong>,<br />

que permitiu que as dificuldades financeiras fossem<br />

superadas, obtendo uma maior repercussão na mídia e<br />

a participação da nova Orquestra Sinfônica do Estado<br />

de São Paulo em sua programação, sob direção de John<br />

125


126<br />

Neschling. O festival contou também com<br />

a colaboração de outros compositores que dividiram<br />

as funções de coordenação artística e produção com<br />

Gilberto Mendes: Rodolfo Coelho de Souza, Conrado<br />

Silva, José Augusto Mannis, Eduardo Guimarães<br />

Álvares e Rubens Ricciardi e atualmente o musicólogo<br />

Lorenzo Mami, diretor do Centro Universitário Maria<br />

Antônia da Universidade de São Paulo.<br />

CICLOS DE <strong>MÚSICA</strong> CONTEMPORÂNEA DE BELO<br />

HORIZONTE E FESTIVAL ARTICULAÇÕES<br />

O Ciclo de Música Contemporânea de Belo Horizonte<br />

Programa da Bienal Brasileira de<br />

Música Contemporânea de 2003 (XV Bienal).<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

foi idealizado pelo pianista Paulo Álvares, coordenador<br />

do Núcleo de Música Contemporânea de Belo<br />

Horizonte. A realização do primeiro evento, ocorrido<br />

em março e abril de 1984, foi possível graças ao<br />

patrocínio do Instituto Goethe de Belo Horizonte e do<br />

apoio institucional da Fundação de Educação Artística<br />

ao qual o Núcleo estava vinculado. O que marcou<br />

a trajetória do Ciclo na programação cultural de Belo<br />

Horizonte foi uma ampla participação do público que<br />

lotava as salas de concerto, graças ao apoio dos meios<br />

de comunicação, principalmente dos jornais “A Tribuna<br />

de Minas” e do “Estado de Minas” e mais tarde da TV<br />

Minas, ligados à Secretaria de Estado da<br />

Cultura. Essa ampla participação do público<br />

se deu também devido à realização de<br />

concertos-debates, mostras de filmes e vídeos,<br />

performances no meio universitário, em teatros<br />

e outros locais, como uma programação prévia<br />

e preparatória ao acontecimento do evento.<br />

O apoio e patrocínio do Instituto Nacional de<br />

Música da FUNARTE foram decisivos para que<br />

o evento continuasse a ser realizado a partir<br />

da segunda edição, permitiu a expansão<br />

da programação, do número de participantes<br />

locais e convidados, e deu projeção nacional às<br />

atividades realizadas pelos compositores de Belo<br />

Horizonte. A partir do III Ciclo a coordenação<br />

foi assumida pelo compositor Eduardo<br />

Guimarães Álvares, então professor da<br />

Fundação de Educação Artística.<br />

A programação do evento era constituída na sua<br />

maior parte por concertos que difundiam:<br />

1) as obras chaves referenciais de autores<br />

consagrados que determinaram as novas<br />

maneiras de pensar a música; 2) obras do século<br />

XX pouco executadas em concertos;<br />

3)obras comprometidas com a experimentação<br />

incluindo as linguagens da música em interface<br />

com as artes visuais e cênicas; 4)obras de<br />

compositores brasileiros e de Belo Horizonte,


tais como João Francisco de Paula Gelape, Gilberto<br />

Machado, Oiliam Lana, Guilherme Paoliello, Rogério<br />

Vasconcelos, Robson Santos, Harry Crowl, Sergio<br />

Canedo, Nelson Salomé, Bruno Pataro, Sérgio Freire,<br />

Eduardo Campos, Lourival Silvestre, Eduardo<br />

Campolina, Fanuel Lima, Antonio Celso Ribeiro,<br />

Rogério Vieira, Bruno Drumond Afi, Avelar Junior,<br />

Marcus Viana, Marco Antonio Guimarães com grupo<br />

Uakti e Ione Medeiros dirigindo a Officina<br />

Multimédia. O compositor Ernst Widmer durante<br />

a realização do V e VI Ciclos, teve uma atuação<br />

importante na consolidação do evento escrevendo<br />

uma série de artigos e críticas para os jornais de Belo<br />

Horizonte, assim como notas para o programa<br />

do VI Ciclo onde declara: “Ai de nós se as escolas<br />

de arte relegarem a criação ao segundo plano. Daí<br />

a importância do Ciclo. Traz lufadas novas, oxigênio,<br />

debate para valer e à flor da pele”. No entanto essa<br />

predisposição ao debate e à polêmica não foi muito<br />

bem recebida ou entendida por um grupo de músicos<br />

de Belo Horizonte, ligados à Fundação de Educação<br />

Artística e à Escola de Música da Universidade Federal<br />

de Minas Gerais, que assumiram a coordenação<br />

do evento em 1990. O Ciclo quase correu o risco de se<br />

tornar mais um evento ligado à vida acadêmica dessas<br />

instituições. Por negociação do criador do evento,<br />

Paulo Álvares, os Ciclos continuaram a ser realizados<br />

pelo Núcleo de Música Contemporânea de Belo<br />

Horizonte, agora desvinculado da Fundação<br />

de Educação Artística. Uma importante iniciativa<br />

realizada pelo Ciclo de Música Contemporânea<br />

de Belo Horizonte foi a realização em 1991 do<br />

Encontro Nacional dos Organizadores de Eventos para<br />

Divulgação da Música Nova que teve a intenção de<br />

sincronizar as atividades de programação entre todos<br />

os festivais que ocorriam na época, com o objetivo<br />

de criar um circuito musical nacional. Desse encontro<br />

participaram: Conrado Silva e Gilberto Mendes<br />

(Festival Música Nova), Cristina Caparelli Gerling<br />

e Fred Gerling (UFRS), Jamary Oliveira e Piero<br />

Bastianelli (Encontro de Compositores da Bahia), João<br />

Guilherme Ripper e Ricardo Tacuchian (Panorama<br />

da Música Brasileira ) e José Augusto Mannis do<br />

Centro de Documentação de Música Contemporânea<br />

da Unicamp. O Ciclo também foi responsável pela<br />

execução de obras raramente executadas no país<br />

dos compositores Edgard Varèse (Octandre, Offrandes<br />

e Hyperprism), Stockhausen, Luciano Berio, Leos<br />

Janácek, Radulesco, Maurizio Kagel, Nancarrow, entre<br />

outros. Uma versão realizada a partir dos fragmentos<br />

deixados por Debussy da ópera La Chute de La Maison<br />

Usher foi estreada no IV Ciclo em 1987. Em 1995<br />

e 1996 o Ciclo passou a ser realizado com o apoio<br />

da Fundação Clóvis Salgado no Palácio das Artes<br />

dentro do Festival Articulações. Pela primeira<br />

e única vez tomou parte da programação a Orquestra<br />

Sinfônica de Minas Gerais sob regência de Henrique<br />

Morelenbaum.<br />

ENCOMPOR – ENCONTRO DE COMPOSITORES<br />

LATINO-AMERICANO (1987 –2001)<br />

O Encontro de Compositores Latino-Americanos foi<br />

o mais importante evento realizado na região sul<br />

do Brasil, em Porto Alegre, capital do Estado do Rio<br />

Grande do Sul. De certa forma foi a concretização<br />

das idéias de dois grandes compositores gaúchos muito<br />

atuantes e que formaram toda uma geração de novos<br />

criadores: Bruno Kiefer e Armando Albuquerque. Já<br />

no início da década de 60 eram realizados na capital<br />

gaúcha os Seminários Livres de Música (SELIM),<br />

compostos de painéis, conferências e concertos com a<br />

participação dos dois compositores mencionados, e que<br />

contou com o importante incentivo do crítico literário<br />

Carlos Jorge Appel, ligado à Universidade Federal do<br />

Rio Grande do Sul. Nesses encontros eram discutidas<br />

e divulgadas as inovações musicais recentes que<br />

chegavam da Europa. Quando Appell assumiu<br />

o Conselho Estadual de Desenvolvimento <strong>Cultural</strong><br />

do Rio Grande do Sul em 1988, começou a esboçar<br />

o projeto do Encompor com a participação de pessoas<br />

127


128<br />

ligadas à vida musical de Porto Alegre. Coube a Hélvia<br />

Miotto Juchen, ligada ao Instituto Estadual de Música,<br />

ser a primeira coordenadora desse evento e sua<br />

participação se estendeu até o ano de 1998.<br />

A programação dos festivais constava de concertos,<br />

painéis e debates visando o estudo e a divulgação<br />

da produção de compositores locais, fortalecer<br />

o intercâmbio entre compositores e intérpretes<br />

e democraticamente garantir um espaço para as mais<br />

diversas tendências da linguagem musical<br />

contemporânea. Em cada ano o evento escolhia um<br />

Programa do 33º Festival Música Nova realizado<br />

no Itaú <strong>Cultural</strong> em São Paulo, 1997.<br />

compositor para ser homenageado, sendo que<br />

no primeiro o destaque foi Armando Albuquerque.<br />

Esse primeiro evento, realizado em setembro de 1988<br />

contou também com a importante participação de dois<br />

outros compositores da região sul do Brasil: Henrique<br />

de Curitiba e Padre Penalva. Nos painéis que<br />

discutiram a formação dos compositores<br />

contemporâneos, seu papel na educação musical<br />

e a identidade da música brasileira tomaram parte os<br />

compositores Flávio de Oliveira, José Alberto Kaplan,<br />

Ernst Widmer, Henrique Morozowicz e Edino Krieger.<br />

A orquestra Sinfônica de Porto Alegre encerrou<br />

a programação do evento tocando obras de Armando<br />

Albuquerque, Padre José Maurício, Lorenzo Fernandes,<br />

Bruno Kiefer, Oswaldo Lacerda, Francisco Mignone,<br />

Villa-Lobos e Paulo Moura. No II Encompor, realizado<br />

em 1989, o espaço de divulgação e intercâmbio foi<br />

estendido a outros países latino-americanos do cone sul<br />

tais como Argentina e Uruguai. O homenageado foi<br />

Bruno Kiefer. O III Encompor só foi realizado em<br />

1990 e convidou compositores de outros estados<br />

brasileiros além dos compositores latino americanos.<br />

Para homenagear Ernst Widmer, que veio a falecer<br />

meses antes do evento se realizar, participou do evento<br />

o Bahia Ensemble que apresentou obras de sua autoria.<br />

Devido às mudanças de governo e alteração<br />

das políticas culturais dos órgãos gerenciadores das<br />

atividades culturais do Estado, o festival foi<br />

interrompido por quatro anos. As atividades foram<br />

retomadas com a volta de Carlos Jorge Appel ao cargo<br />

de Secretário da Cultura do Rio Grande do Sul e em<br />

1997 foi realizado o IV Encompor, que contou também<br />

com a participação do Instituto Goethe de Porto<br />

Alegre, graças ao interesse de seu diretor Hartmut<br />

Becher e da equipe da Discoteca Pública Natho Henn.<br />

A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA)<br />

participou do evento cuja programação constava de<br />

cinco concertos, dois painéis e duas conferências. Os<br />

compositores gaúchos Celso Loureiro Chaves, Antonio


Carlos Cunha Borges, James Correa e Flávio de<br />

Oliveira também tiveram uma participação mais ativa<br />

na realização do evento, que contou ainda com<br />

a presença de Graziela Paraskevaidis, do Uruguai. Esse<br />

evento ficou marcado pelo embate que ocorreu<br />

durante os ensaios entre os integrantes da OSPA e do<br />

regente convidado J. H. Kollreutter que estava sendo<br />

homenageado no encontro. Em 1996 o V Encompor<br />

criou uma comissão encarregada da direção artística<br />

e produção formada pelos compositores Antonio<br />

Carlos Borges da Cunha, Celso Loureiro Chaves,<br />

Flávio de Oliveira, Liane Hentschke e do<br />

percussionista Ney Rosauro. O homenageado dessa<br />

edição do encontro foi o compositor Edino Krieger,<br />

grande incentivador da realização do evento.<br />

O <strong>Departamento</strong> de Música da Universidade Federal<br />

do Rio Grande do Sul teve uma participação efetiva.<br />

O Compositor Antonio Carlos Borges Cunha<br />

idealizou e dirigiu o Ensemble Cantus Firmus, conjunto<br />

criado como resultado da efetiva ebulição das<br />

atividades musicais contemporâneas na cidade.<br />

O VI Encompor foi realizado em 1998. No concerto<br />

de abertura foram executadas obras de todos<br />

os compositores homenageados nos eventos anteriores,<br />

incluindo na programação obras da compositora<br />

carioca Esther Scliar, destaque do encontro.<br />

Participaram também o Amazônia Jazz Ensemble<br />

e o Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Obras<br />

de compositores consagrados como Ligeti e Xenakis<br />

constaram ao lado de outras de compositores<br />

brasileiros e latino americanos, tais como: Ney<br />

Rosauro, Almeida Prado, Sergio Igor Schnee, Ricardo<br />

Tacuchian, Antonio Carlos Costa, Iuri Correa, Antonio<br />

Carlos Cunha Borges, João Guilherme Ripper,<br />

Fernando Cerqueira, Dimitri Cervo, Dante Grella,<br />

Caio Senna, Celso Mojola, Felipe Adami, Leonardo<br />

Boff, Thiago Holl Curi, Arthur Barbosa, Celso Loureiro<br />

Chaves, James Correa, Fernando Mattos, Christian<br />

Benvenutti, Edson Zampronha, entre outros. O evento<br />

teve ainda a participação do George Crumb Trio<br />

interpretando obras de Guilherme Bauer e Harry<br />

Crowl. O grupo Ex-Machina, formado pelos jovens<br />

compositores Yanto Laitano, Antônio Nunes,<br />

Alexandre Birnfeld, Martinêz Nunes e Adolfo Almeida,<br />

apresentou obras de uma nova vertente da criação<br />

musical local, integrando recursos eletroacústicos aos<br />

instrumentos tradicionais, eletrodomésticos e recursos<br />

cênico-musicais. O VII Encompor foi realizado<br />

em 2001 com a coordenação dos compositores Flávio<br />

de Oliveira e Ricardo Mitidieri e homenageou<br />

o compositor Walter Schultz Porto Alegre. Participaram<br />

59 compositores de todo o Brasil e da América Latina.<br />

As notas de programa são assinadas por Ricardo<br />

Mitidieri: “ (...) o Encompor prossegue desempenhando<br />

o importante papel de dar visibilidade a uma atividade<br />

artística que definitivamente não está integrada ao<br />

‘mercado’. Por essa razão, o evento parece ser índice de<br />

um critério alternativo ou, ao menos, contraposto a<br />

critérios que levam à instrumentalização da cultura<br />

artística como, por exemplo, o critério econômico único<br />

vigente”. Um próximo evento está previsto para 2005.<br />

Finalizando, agradeço a todos que me forneceram<br />

importantes informações e documentos que<br />

muito ajudaram na elaboração do artigo: Edino<br />

Krieger (Festivais da Guanabara e Bienais),<br />

Piero Bastianelli, Paulo Costa Lima, Wellington Gomes<br />

(Encontro de Compositores da Bahia),<br />

Antonio Eduardo Santos (Festival Música Nova),<br />

Hélvia Miotto Juchen, Ricardo Mitidieri<br />

e Antonio Carlos Cunha (Encompor).<br />

EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES<br />

Compositor e organizador de vários eventos para divulgação da música contemporânea. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes em<br />

Belo Horizonte e coordenador musical da Orquestra Sinfônica da Rádio e TV Cultura de São Paulo.<br />

129


130<br />

Pluralidade<br />

Estética<br />

PRODUÇÃO MUSICAL<br />

<strong>ERUDITA</strong> NO BRASIL<br />

A PARTIR DE 1980<br />

HARRY CROWL


Adécada de 80 marcou o início de uma fase de<br />

profundas transformações na música erudita brasileira<br />

que ainda se encontram em pleno desenvolvimento.<br />

Neste momento em que surge toda uma nova<br />

geração de compositores, encontramos ainda alguns<br />

dos mais importantes nomes da música erudita<br />

brasileira deste século no auge de suas produções.<br />

Outros que foram radicais transformadores nos anos<br />

60 e 70 praticamente abandonam a composição<br />

na década de 80. Os históricos nomes de Francisco<br />

Mignone (1897-1986), Camargo Guarnieri (1907-1993),<br />

Cláudio Santoro (1919-1989), Guerra-Peixe (1914-1993)<br />

e Radamés Gnattali (1907-1988) estão associados a uma<br />

produção musical viva e fiel a seus credos.<br />

As vanguardas que tanto combateram as estéticas<br />

destes compositores nas décadas anteriores, depuseram<br />

as armas diante da convicção e reputação dos decanos.<br />

Isto não quer dizer que estes compositores mais velhos<br />

escrevessem dentro de uma mesma estética, mas que<br />

todos eles continuavam a produzir incessantemente,<br />

ao contrário dos mais novos.<br />

Guerra Peixe e Camargo Guarnieri foram também<br />

importantes mestres e deixaram uma quantidade<br />

grande de discípulos. Dos de Guarnieri, podemos<br />

destacar Osvaldo Lacerda (1927), Sérgio Vasconcelos<br />

Correia (1934) e Almeida Prado (1943). Lacerda<br />

é muito prolífico. Mantendo-se fiel aos cânones<br />

nacionalistas, goza ainda de algum prestígio<br />

especialmente nas escolas de música. A obra de Sérgio<br />

Vasconcelos Correia demonstra algumas tentativas<br />

de avanço sobre terrenos mais ousados, como podemos<br />

perceber na composição Potyron (1970), para piano<br />

e percussão. De Guerra-Peixe, talvez os discípulos mais<br />

importantes tenham sido Guilherme Bauer e Ernani<br />

Aguiar, dos quais falaremos mais adiante.<br />

De todos os compositores acima mencionados,<br />

nenhum foi mais prolífico, intenso e atuante que<br />

Cláudio Santoro. Porém, sua obra tem sido muito mais<br />

tocada na Europa que no Brasil. De qualquer maneira,<br />

ele teve um papel importante dentro da Universidade<br />

de Brasília e no desenvolvimento da vida musical<br />

daquela cidade.<br />

As universidades públicas têm sido o espaço que,<br />

de fato, permaneceu aberto à criação musical no Brasil<br />

nestes últimos decênios. Nestas, onde quase todos os<br />

compositores lecionaram ou ainda lecionam, é que<br />

surgiram alguns grupos camerísticos esporádicos<br />

ou mesmo alguns intérpretes de alto nível interessados<br />

na produção erudita nacional. Surgem, também, vários<br />

festivais de música contemporânea em várias regiões<br />

do Brasil. Percebe-se uma clara expansão da atividade.<br />

Rio e São Paulo deixam de ser redutos exclusivos.<br />

Outras capitais, como Salvador, Belo Horizonte,<br />

Brasília, Porto Alegre e Curitiba, começam a se impor<br />

como centros alternativos de referência a partir de suas<br />

universidades federais na década de 80. Muitos dos<br />

“vanguardistas” das décadas de 60 e 70, como Aylton<br />

Escobar, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat,<br />

Damiano Cozzella, Luís Carlos Vinholes e Jaceguay<br />

Lins, entre outros, diminuirão ou cessarão suas<br />

produções. Alguns por insatisfação com a pouca<br />

qualidade do meio musical brasileiro, outros por opção<br />

política, e outros ainda, por desacordo com<br />

os caminhos estéticos da atualidade. O movimento<br />

de ruptura mais conseqüente que aconteceu<br />

na segunda metade do séc.XX no Brasil foi, sem<br />

dúvida, o “Manifesto Música Nova”, assinado em São<br />

Paulo em 1962 por vários músicos e intelectuais, entre<br />

eles Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio<br />

Pignatari, Damiano Cozzella, Gilberto Mendes (1922),<br />

Willy Correa de Oliveira (1938) e Rogério Duprat.<br />

Dos compositores deste grupo apenas Gilberto Mendes<br />

e Willy Correa de Oliveira destacaram-se como<br />

criadores eruditos de maior amplitude. Ambos<br />

estiveram ligados à Universidade de São Paulo.<br />

Os compositores deste grupo foram freqüentadores dos<br />

festivais de Darmstadt e Donaueschingen, na<br />

Alemanha, na década de 60. Conviveram com Boulez,<br />

Stockhausen, Nono, Ligeti e, principalmente, com John<br />

Cage. Foi seguindo, em parte, as idéias deste último<br />

compositor que desenvolveram um discurso de ruptura<br />

com o nacionalismo estanque e posicionaram-se numa<br />

“vanguarda” independente. Deste grupo, somente<br />

Gilberto Mendes continuaria na ativa, não somente<br />

produzindo, mas também dirigindo o festival de<br />

música contemporânea mais antigo do país, o “Festival<br />

Música Nova de Santos”, sua cidade natal. Sua música<br />

é permeada por um humor muito crítico. Vários<br />

131


132<br />

elementos da sociedade de consumo são destilados<br />

pelo compositor, especialmente os “jingles” comerciais.<br />

Um compositor relativamente independente desta<br />

geração em São Paulo é Mário Ficarelli (1937).<br />

Também professor da USP, Ficarelli é autor de uma<br />

obra não muito extensa, porém de forte expressão.<br />

Uma das composições de maior impacto da década<br />

de 80 foi sua obra Transfigurationis, de 81. É autor de 3<br />

sinfonias onde podemos perceber uma preferência<br />

pelos modelos sinfônicos do finlandês Jean Sibelius.<br />

Outro compositor paulista ativo também desde<br />

a década de 70 é José Antônio de Almeida Prado<br />

(1943). Durante grande parte de sua vida esteve<br />

vinculado ao departamento de música da Universidade<br />

de Campinas. Este compositor foi um dos primeiros<br />

brasileiros desta geração a conseguir uma reputação<br />

internacional permanente. Sua música foi muito<br />

influenciada por seus mestres Olivier Messiaen<br />

e Camargo Guarnieri. Sua produção é gigantesca,<br />

incluindo mais de 500 obras para piano solo além<br />

de música de câmera, orquestral, vocal e dramática.<br />

Voltando ao Rio e à Escola de Música da UFRJ,<br />

Ronaldo Miranda (1948), Ricardo Tacuchian (1939),<br />

David Korenchendler (1948) e Marisa Resende (1944)<br />

são os principais nomes de compositores desta geração<br />

que atingem a maturidade nos anos 80. Todos com<br />

formação acadêmica muito semelhante. Tacuchian<br />

e Marisa Resende realizaram cursos de doutoramento<br />

nos EUA. Ronaldo Miranda, que na década de 70<br />

escreveu obras experimentais de grande importância,<br />

como Trajetórias, para soprano e conjunto de câmera,<br />

vem se expressando num discurso acadêmico<br />

intencional. Da década de 80 para cá, sua linguagem<br />

tornou-se mais acessível e romântica. No caso de David<br />

Korenchendler, encontramos uma inquietação que<br />

oscila entre este romantismo tradicional alemão e um<br />

uso mais livre da linguagem. Há neste compositor uma<br />

atração pelo jazz, pela música de Erik Satie e por<br />

elementos da cultura judaica. Toda sua obra apresenta<br />

uma construção formal precisa, muito embora ele não<br />

se preocupe com qualquer fidelidade estilística. De sua<br />

intensa e constante produção destacamos a Sinfonia<br />

de nº 3 Salmos – Tehilim, para coro, solistas, 2 violões<br />

e pequena orquestra. Ricardo Tacuchian qualifica sua<br />

música de pós-moderna. Há também em sua obra,<br />

uma questão ideológica. Não são raras as criações que<br />

denunciam a miséria e as desigualdades sociais. De sua<br />

produção mais recente destacamos a Cantata de Natal,<br />

Hayastan e Terra Aberta, sobre poema de D. Pedro<br />

Casaldáliga. Este compositor desenvolveu uma técnica<br />

própria a qual denominou de sistema “T”.<br />

Marisa Resende desenvolveu um intenso trabalho<br />

junto à pós-graduação em composição na UFRJ,<br />

revelando uma série de jovens compositores.<br />

Sua obra é pequena e não se prende a qualquer<br />

tendência estética pré-determinada.<br />

Cidade com um maior número de instituições<br />

de nível superior com cursos de música no país<br />

e de instituições estatais dedicadas à música,<br />

o Rio de Janeiro tem atraído um grande número<br />

de profissionais da música através dos tempos.<br />

Outros compositores, de certa maneira<br />

independentes desta geração que lá atuam, são Edino<br />

Krieger (1928), Ernani Aguiar (1950), Guilherme Bauer<br />

(1940) e os polêmicos H. J. Koellreutter (1917-2005)<br />

e Marlos Nobre (1939).<br />

Edino Krieger, catarinense de origem, é decano<br />

dos compositores atuantes no Rio. Dividiu sua carreira<br />

de compositor com a de administrador. Durante vários<br />

anos foi diretor de Música da FUNARTE. Sua carreira<br />

criativa, em muitos momentos ficou em segundo plano.<br />

Muitas de suas obras mais recentes causam-nos<br />

a impressão de que foram escritas muito rapidamente.<br />

O compositor oscilou entre vários estilos durante sua<br />

longa trajetória. Podemos destacar de sua produção<br />

recente as obras Sonâncias II (1981), para violino<br />

e piano; Três Imagens de Nova Friburgo (1988), para<br />

orquestra de cordas e cravo; e Te Deum Puerorum<br />

Brasiliae (1997), para coro infantil, coro juvenil, coro<br />

gregoriano, orquestra de metais e percussão.<br />

Atualmente, é presidente da Academia Brasileira<br />

de Música e Diretor do Museu da Imagem e do Som<br />

do Rio de Janeiro.<br />

Outro compositor que ainda segue uma linha<br />

nacionalista neoclássica é Ernani Aguiar. Discípulo de<br />

Guerra-Peixe, tem uma produção já bem vasta. Escreve<br />

numa linguagem neoclássica simples e direta, o que faz<br />

com que sua música seja freqüentemente executada


Guilherme Bauer ao lado do quadro inspirado na obra<br />

do compositor e intitulado Trêmolo, de Ana Maria Bauer.<br />

Acrílico sobre tela.<br />

COLEÇÃO PARTICULAR – GUILHERME BAUER<br />

em várias partes do país e do exterior.<br />

O mais importante discípulo de Guerra-Peixe<br />

é Guilherme Bauer. De produção reduzida e muito<br />

conseqüente, Bauer já foi premiado em vários<br />

concursos. Vem desenvolvendo um estilo próprio<br />

a partir de uma sintaxe derivada de uma estética<br />

nacionalista. Sua música instrumental é concisa<br />

e equilibrada. Nos últimos 20 anos, escreveu, entre<br />

outras obras, 2 quartetos de cordas (1983 e 1997), um<br />

trio para violino, violoncelo e piano (1980), Cadências<br />

(1982) para violino e orquestra, as Sugestões de Inúbias<br />

para 2 flautas (1991), Reflexos (1999) para flauta,<br />

violoncelo e piano, e Partita Brasileira (1994/2001) para<br />

violino solo. Foi recentemente produtor artístico de<br />

duas importantes séries de concertos e gravações<br />

em CD de música brasileira: o selo “RioArte Digital”<br />

e a série “Estréias Brasileiras”.<br />

Marlos Nobre já esteve muito em voga junto<br />

às várias entidades musicais do país e no exterior,<br />

tendo inclusive presidido algumas delas. Seu prestígio,<br />

no entanto, vem diminuindo nos últimos anos.<br />

Ele tem tido obras encomendadas por algumas<br />

entidades internacionais.<br />

Hans Joachim Koellreutter, por sua vez,<br />

desempenhou um importante trabalho pedagógico<br />

em várias regiões do país. Se por um lado, ele foi<br />

responsável pela iniciação de vários jovens músicos nos<br />

“mistérios” da música do século XX, por outro, suas<br />

idéias, vistas como muito originais pelos seus<br />

seguidores, são muitas vezes compilações de vários<br />

autores e compositores daquele século. Este músico<br />

alemão, radicado no Brasil há mais de meio século, já<br />

esteve no centro de várias polêmicas. Na década de 50,<br />

foi alvo de ataques violentos por parte de compositores<br />

nacionalistas conservadores, liderados por Camargo<br />

Guarnieri. Esteve fora do Brasil por um longo período<br />

(1962/75), quando viveu na Índia e no Japão, a serviço<br />

do governo alemão. Figura carismática numa época<br />

onde os debates apaixonantes já perdiam lugar, fez-se<br />

“mestre” de muitos já sedentos por alguma informação<br />

do mundo exterior. Havia uma razão óbvia para isto:<br />

a grande maioria dos velhos compositores não era de<br />

grandes erudições acadêmicas. Quase todos vinham<br />

de uma formação de instrumentistas nos padrões<br />

oitocentistas. Muitos viam com insegurança as<br />

mudanças recentes que vinham do exterior. Pensar<br />

a música como conceito cultural, ou algo diferente<br />

de fazer instrumentos tocarem ou vozes cantarem, era<br />

talvez uma coisa por demais abstrata para aqueles que<br />

estavam preocupados somente em fazer uma arte que<br />

pudesse ser identificada com a sua origem nacional.<br />

Neste aspecto, a figura de Koellreutter foi fundamental<br />

para aqueles que não tinham tido a oportunidade<br />

de sair do país para estudar, ou simplesmente ver<br />

diferentes maneiras de pensar.<br />

Poucos compositores brasileiros têm conseguido<br />

um maior destaque internacional. Jorge Antunes (1942)<br />

talvez seja aquele que mais tenha tido oportunidades<br />

fora do país nos últimos anos. Atuante em Brasília,<br />

onde foi professor da UnB, e natural do Rio, Jorge<br />

Antunes obteve sua formação tanto na área da física<br />

quanto da música. Foi o primeiro compositor brasileiro<br />

a dedicar-se mais intensamente à música eletroacústica.<br />

Suas obras seguem uma linha mais livre. É um<br />

compositor coerente do ponto de vista da sintaxe<br />

133


134<br />

musical e sempre defendeu o uso de uma notação<br />

especial para a música nova. Esta defesa está baseada<br />

em uma corrente internacional muito em voga nos<br />

anos 70.<br />

Amaral Vieira (1952) é um compositor e pianista<br />

atuante em São Paulo. Sua música apresenta uma<br />

linguagem de negação de todas as estéticas do séc. XX,<br />

muito apreciada em círculos mais conservadores. Foi<br />

presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />

Contemporânea até 2002. Situação semelhante é a do<br />

compositor carioca João Guilherme Ripper (1959), que<br />

foi Diretor da Escola de Música da UFRJ até 2004.<br />

Jocy de Oliveira (1936), natural de Curitiba, vive<br />

no Rio e tem sido uma grande divulgadora da música<br />

contemporânea no Brasil. Exímia pianista, gravou todo<br />

o “Catalogue des Oiseaux”, de Messiaen, com<br />

a aprovação do compositor. Como criadora, sua música<br />

tem um forte apelo cênico. Já produziu algumas<br />

“óperas” onde elementos improvisatórios se misturam<br />

a sons eletrônicos. Sua produção é uma demonstração<br />

de que não é o conservadorismo acadêmico que atrai<br />

o público. O período em questão também apresenta<br />

uma novidade histórica importante: a descentralização<br />

definitiva da produção musical. Embora Rio de Janeiro<br />

e São Paulo continuem a ser as cidades mais<br />

importantes do país, outros centros vão despontando<br />

gradualmente. Em Salvador, desde finais da década<br />

de 50, há um movimento renovador ligado à arte<br />

contemporânea e às raízes afro-brasileiras. A partir<br />

de 1969, quando aconteceu o 1º Festival de Música<br />

da Guanabara, um grupo de compositores baianos<br />

chamava a atenção. Eles pareciam ter conseguido fazer<br />

uma conciliação entre a cultura popular baiana<br />

e a música contemporânea de tradição ocidental.<br />

Nos últimos 20 anos, este grupo diminuiu muito sua<br />

produção e parece ter perdido a capacidade de<br />

renovação. Os compositores mais importantes deste<br />

movimento foram o suiço-brasileiro Ernst Widmer<br />

(1927-1990) e Lindembergue Cardoso (1938-1989).<br />

Widmer foi o iniciador de tudo. Foi o mestre. Chegou<br />

à Bahia com menos de 30 anos e envolveu-se com um<br />

mundo colorido e sincrético. Sua produção foi enorme<br />

e ininterrupta. Inicialmente, procurou fundir elementos<br />

onde predominava de uma certa forma a linguagem do<br />

Harry-Crowl. Aethra III. Goldberg Edições Musicais. Porto Alegre, 2001.<br />

COLEÇÃO PARTICULAR – HARRY CROWL<br />

compositor alemão Paul Hindemith com<br />

a aleatoriedade controlada da escola Polonesa dos anos<br />

60. Posteriormente, seu estilo foi transformando-se em<br />

dois gêneros bem diferenciados. Em suas 3 sinfonias,<br />

utilizou material folclórico abundante da região do rio<br />

São Francisco, no interior da Bahia. Sua última<br />

composição foi uma ópera sobre Aleijadinho, que<br />

estava escrevendo para a Bolsa de Criação VITAE,<br />

de São Paulo. Infelizmente, faleceu precocemente<br />

numa viagem à sua terra natal, a Suíça, onde fora tratar<br />

da criação da Fundação Ernst Widmer, que continua<br />

a divulgar sua obra. Com isto, a ópera ficou incompleta<br />

faltando o terceiro ato. O discípulo mais notável de<br />

Widmer foi, sem dúvida, Lindembergue Cardoso. Este<br />

compositor tinha uma incrível facilidade para escrever<br />

música. Fazia-o em qualquer lugar e a qualquer<br />

momento. Estava sempre querendo terminar alguma<br />

coisa para começar outra. Nas décadas anteriores<br />

escreveu obras notáveis como A Procissão das<br />

Carpideiras, de 69, para vozes femininas e orquestra,<br />

Reflexões II, de 74, para orquestra, Sedimentos, de 72,


para quarteto de cordas e Réquiem para o Sol, de 76,<br />

para conjunto de câmera. Fernando Cerqueira (1941)<br />

é também um importante compositor do grupo baiano.<br />

Sua obra, bem menos numerosa que a de<br />

Lindembergue Cardoso, foi num período mais<br />

profunda e refletida. Em 1970, sua Heterofonia do Tempo<br />

ganhou um prêmio do Festival da Guanabara.<br />

Na década de 70 produziu obras significativas como<br />

Quanta e Parábola. Sua obra de maior impacto nos anos<br />

80 foi a peça Expressões Cibernéticas, para soprano<br />

e conjunto de percussão, sobre textos de Haroldo<br />

e Augusto de Campos.<br />

Dois jovens compositores baianos vêm se<br />

destacando apesar da diminuição da atividade musical<br />

erudita no estado. São eles Paulo Costa Lima (1954)<br />

e Wellington Gomes (1960). Ambos vêm tentando<br />

achar um caminho que contemple uma retórica<br />

musical onde o sincretismo cultural e uma sólida<br />

técnica composicional estejam presentes. A peça<br />

Übábá, o que diria Bach, para orquestra de câmera,<br />

é um ótimo exemplo de sua linguagem. Wellington<br />

Gomes vem se afirmando como um dos mais<br />

importantes compositores da geração que surge nos<br />

anos 80. Sua Fantasia para violoncelo e orquestra<br />

de câmara, de 1992, é uma peça que demonstra uma<br />

técnica refinada. Todos estes compositores estão<br />

ou estiveram ligados ao departamento de música<br />

da UFBA, onde são professores de carreira.<br />

Situação diferente ocorre no Rio Grande do Sul.<br />

Este estado é o único além de São Paulo, que possui<br />

mais de um centro produtor de música de concerto.<br />

Além da capital Porto Alegre, que conta com uma boa<br />

orquestra sinfônica para os padrões brasileiros e mais<br />

4 orquestras de cordas, Santa Maria mantém uma boa<br />

universidade com um importante departamento de<br />

música. Além das duas universidades federais (UFRGS<br />

e UFSM), há no Rio Grande do Sul uma tradição<br />

musical recente bem mais forte que na maioria dos<br />

estados brasileiros. Alguns importantes compositores<br />

brasileiros eram originários do Rio Grande. O mais<br />

famoso sem dúvida, foi Radamés Gnattali. Outros<br />

preferiram continuar atuando no estado como foi<br />

o caso de Armando Albuquerque (1901-1986) e Bruno<br />

Kiefer (1923-1987). Armando Albuquerque foi um<br />

compositor muito original e produziu algumas obras<br />

muito curiosas por suas influências do jazz e da música<br />

de Erik Satie, na década de 20. Sua produção foi muito<br />

reduzida e ficou basicamente confinada ao piano, com<br />

poucos vôos noutros gêneros. Foi um professor<br />

e produtor de rádio muito atuante. Já Bruno Kiefer foi<br />

autor de vasta e variada obra. Interessou-se pelo<br />

dodecafonismo de Schönberg e foi praticamente<br />

autodidata. Era também formado em Física. Às vezes<br />

compunha num estilo quase nacionalista,<br />

eventualmente tentando incorporar elementos da<br />

técnica dos 12 sons. Foi professor de composição<br />

da UFRGS. Alguns compositores gaúchos mais jovens<br />

vêm se destacando no cenário nacional e internacional.<br />

Frederico Richter (1932), que adotou o apelido<br />

de “Frerídio”, é um compositor também muito ativo,<br />

tendo escrito música eletroacústica, instrumental<br />

e vocal de toda espécie. Recentemente, aposentou-se<br />

da Universidade de Santa Maria, onde foi professor<br />

e criador da Orquestra Sinfônica. Com uma formação<br />

realizada na Universidade MacGill, no Canadá, sua<br />

obra não se prende a qualquer estilo definido, sendo<br />

ora tonal ora atonal.<br />

Ainda no sul do Brasil, o Paraná vem também<br />

se destacando no cenário nacional, porém numa<br />

proporção muito mais modesta que o Rio Grande<br />

do Sul. Os compositores decanos de Curitiba são<br />

Henrique de Curitiba (Morozowicz) (1934), atualmente<br />

residente em Londrina, e Padre José Penalva (1924-<br />

2002). Henrique tem uma produção pequena. A quase<br />

totalidade de sua produção é tonal dentro do espírito<br />

da chamada “nova simplicidade”. Estudou na Polônia,<br />

terra de seus antepassados e nos EUA, com o tcheco<br />

Karel Husa. Por outro lado, Pe. Penalva foi um dos<br />

mais refinados e sofisticados compositores brasileiros<br />

atuais, especialmente no que diz respeito à música<br />

coral e de inspiração religiosa católica tradicional.<br />

A maior parte de sua produção constitui-se de obras<br />

para coro a capella e obras vocais-sinfônicas.<br />

Os oratórios Ágape I, Salmo 90, Os quatro Cavaleiros<br />

do Apocalipse e Ágape II são algumas das melhores obras<br />

no gênero produzidas no Brasil nos últimos tempos.<br />

Outra capital que teve uma quase inigualável<br />

atividade de música contemporânea nas décadas de 80<br />

135


e 90, especificamente até 96, foi Belo Horizonte, capital<br />

de Minas Gerais. Dos compositores que passaram por<br />

lá, o único que obteve um certo destaque nacional foi<br />

Eduardo Guimarães Álvares (1959). Hoje radicado em<br />

São Paulo, continua seu trabalho voltado para música<br />

vocal e teatro musical. Sua obra apresenta<br />

características muito originais, sempre com um toque<br />

humorístico. O ciclo de canções Pétala Petulância, de<br />

1990, foi composto especialmente para o “Grupo Novo<br />

Horizonte de São Paulo”. Concluiu em 2004 a ópera<br />

O Enigma de Caim, com o apoio da bolsa VITAE, sobre<br />

libreto do dramaturgo Luís Fernando Ramos, professor<br />

da ECA/USP.<br />

Dois outros compositores, com expressão nacional,<br />

também se radicaram em<br />

BH, Rufo Herrera (1935),<br />

argentino que atuou junto<br />

ao grupo da Bahia, e o<br />

também argentino, Eduardo<br />

Bértola (1939-1996). Rufo<br />

Herrera, que foi<br />

originalmente músico<br />

popular, escreveu vários<br />

espetáculos de multimeios,<br />

inclusive a ópera Balada<br />

para Matraga, inspirada em<br />

Roberto Victorio.<br />

FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – Guimarães Rosa.<br />

DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />

Em 1989, foi<br />

inaugurada em Campinas, na biblioteca central da<br />

UNICAMP, a sede latino-americana do “CDMC”<br />

(Centre de Documentation de la Musique<br />

Contemporaine). Dirigido pelo compositor José<br />

Augusto Mannis, este centro tem sido de grande<br />

utilidade para contatos e intercâmbios nacionais e<br />

internacionais. Seu diretor é um importante compositor<br />

de música eletroacústica e instrumental, embora a<br />

administração do centro não lhe deixe muito tempo<br />

para a criação.<br />

Quanto aos grupos, vale ressaltar três deles, todos<br />

de São Paulo. O “Duo Diálogos”, de percussão, o<br />

“PIAP”, orquestra de percussão do Instituto de Artes<br />

do Planalto (IAP/UNESP) e, finalmente, o “Grupo<br />

Novo Horizonte de São Paulo”, criado em 1989 pelo<br />

regente e musicólogo inglês Graham Griffiths. Apesar<br />

136<br />

de todos eles terem tido um excelente trabalho de<br />

divulgação de compositores brasileiros, o “Grupo Novo<br />

Horizonte” foi o responsável pelo estabelecimento<br />

de uma geração bem identificada de compositores.<br />

Os nomes de Roberto Victorio (1959), Sílvio Ferraz<br />

(1959), Harry Crowl (1958) e Edson Zampronha (1963)<br />

têm forte relação com este grupo, que gravou 4 Cds<br />

exclusivamente dedicados à música contemporânea<br />

brasileira da década de 90. Roberto Victório é carioca<br />

de origem. Sua formação como compositor<br />

é praticamente autodidata. Fez mestrado em<br />

composição na UFRJ, sob a orientação de Marisa<br />

Resende. Sua obra é fortemente caracterizada pelo uso<br />

de um acentuado pontilhismo e por uma certa<br />

inspiração mística. Atualmente, o compositor vive<br />

em Cuiabá, Mato Grosso, onde é professor<br />

da Universidade Federal. Além de ter praticamente<br />

inserido o seu estado de adoção no cenário musical<br />

brasileiro, tem realizado uma série de eventos<br />

utilizando as características da região, como<br />

as grutas, os instrumentos regionais e as culturas<br />

indígenas. Paralelamente, criou um grupo<br />

de música contemporânea em Cuiabá, o “Grupo<br />

Sextante”, que tem apresentado além de suas<br />

obras, obras de seus alunos, os primeiros<br />

compositores mato-grossenses.<br />

Sílvio Ferraz é outro compositor independente com<br />

grande projeção inclusive internacional. Sua formação<br />

foi realizada na USP e mais tarde concluiu<br />

doutoramento no programa de Comunicação<br />

e Semiótica da PUC/SP. Seu estilo é na maioria das<br />

vezes bem transparente e original. Há um sutil trabalho<br />

de modulação e timbrístico que dá a esta música uma<br />

cor muito especial. Outro compositor de destaque do<br />

grupo de São Paulo é Edson Zampronha. Suas<br />

composições recentes consistem numa série de obras<br />

com o título de Modelagem. A produção de Zampronha<br />

é aliada a um intenso trabalho de pesquisa dos recursos<br />

sonoros e timbrísticos.<br />

Há ainda, evidentemente, uma série de outros<br />

compositores atuantes no Brasil, alguns certamente<br />

com mais destaque que outros. Porém, estes quatro<br />

compositores, Victorio, Ferraz, Crowl e Zampronha,<br />

têm se destacado pela busca de uma linguagem musical


independente e obtido um razoável reconhecimento<br />

no Brasil e no exterior em relação aos demais<br />

compositores de sua geração. Poderíamos citar ainda<br />

os nomes de Celso Mojola (1960), Flo Menezes (1962)<br />

em São Paulo, e de Luiz Carlos Csekö (1955) e Chico<br />

Mello (1957) no Rio.<br />

Flo(rivaldo) Menezes (Filho) estudou na USP, na<br />

Itália e na Alemanha. Sua música envolve processos<br />

computacionais e instrumentos acústicos. Promove<br />

anualmente um concurso internacional de música<br />

eletroacústica. Os outros compositores mencionados<br />

dedicam-se principalmente ao teatro musical. Há uma<br />

crescente produção de música eletroacústica por<br />

computador, especialmente entre compositores mais<br />

DISCOGRAFIA<br />

GILBERTO MENDES<br />

Qualquer Música<br />

Saudades do Parque Balneário Hotel<br />

Claro Clarone<br />

Ulysses em Copacabana<br />

Um Estudo?<br />

Longhorn Trio<br />

Motetos à Feição de Lobo de<br />

Mesquita<br />

The Sentimental Gentleman<br />

Revisited<br />

The Spectra Ensemble – Philip Rathé<br />

VOX TEMPORIS CD92 030 –<br />

Bélgica<br />

16 Peças para piano<br />

Für Annette<br />

Pour Eliane<br />

5 Prelúdios<br />

Terão Chebl, piano<br />

Rimsky<br />

Quarteto de Cordas da Cidade<br />

de São Paulo<br />

Lidia Bazarian, piano<br />

LAMI 003 – Brasil<br />

ERNST WIDMER<br />

A Última Flor<br />

Altenberg Trio<br />

VANGUARD CLASSICS 99135 –<br />

Holanda – 1996<br />

Marujadas, Reisado e Toada<br />

do Médio São Francisco<br />

Divertimento VI<br />

É Doce Morrer no Mar<br />

Concerto para Fagote, Orquestra<br />

de Cordas e Percussão<br />

Toadas dos Remeiros do Rio São<br />

Francisco<br />

Música para Orquestra de Câmara<br />

Regência: Eduardo Torres<br />

Cláudia Ribeiro Sales, fagote<br />

PAULUS 004512 – Brasil – 1999<br />

Ondina<br />

Bahia Ensemble<br />

PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />

E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />

Lindembergue Cardoso<br />

Soterofonia<br />

Minisuite<br />

O Vôo do Colibri<br />

Procissão das Carpideiras<br />

Oniçá-Orê<br />

Vários intérpretes<br />

PRÊMIO COPENE CULTURA<br />

E ARTE 2001, Salvador – Brasil<br />

Monódica<br />

Bahia Ensemble<br />

PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />

E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />

ALMEIDA PRADO<br />

Cartas Celestes I<br />

Luís Senise, piano<br />

O Rosário de Medjugorjie<br />

Elizabete Aparecida, piano<br />

Sonata nº 3 para Violino e Piano<br />

Constança Almeida Prado, violino<br />

Helenice Audi, piano<br />

ILUSTRARE MR0423 – Brasil<br />

Modinha nº 1<br />

Trem de Ferro<br />

A Minha Voz é Nobre<br />

jovens. Ainda são poucos os compositores que se<br />

dedicam somente a este gênero e que têm a mesma<br />

notoriedade daqueles envolvidos com os meios<br />

acústicos tradicionais. Podemos citar os nomes dos<br />

cariocas Rodolfo Caesar (1950) e Rodrigo Cichelli<br />

Veloso (1966) como os mais importantes nesse aspecto.<br />

Já Tim Rescala (1961), também carioca, atua<br />

intensamente na música eletroacústica, no teatro<br />

musical e também tem obtido grande visibilidade com<br />

seus trabalhos para a televisão e o teatro tradicional.<br />

Sua música quase sempre faz paródias do cotidiano.<br />

Tato Taborda (1960), que é curitibano e também atua no<br />

Rio de Janeiro, tem se dedicado igualmente tanto<br />

ao teatro musical quanto à música eletroacústica.<br />

Rosamor<br />

Lembranças do Coração<br />

Três Canções<br />

Três Episódios Animais<br />

Portrait de Nadia Boulanger<br />

Livro Brasileiro – II Caderno<br />

Victoria Kerbauy, soprano<br />

Almeida Prado, piano<br />

SPY ARTES DIGITAIS MS43-0700<br />

Maranduba<br />

Grupo de Percussão do Instituto<br />

de Artes da UNESP<br />

GRUPO PIAP 199.004.470 - Brasil<br />

Fantasia para Violino e Orquestra<br />

Constança Audi Almeida Prado,<br />

violino<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira.<br />

Regência, Roberto Tibiriçá<br />

RIOARTE DIGITAL 018 - Brasil<br />

Oré-Jacytatá, Cartas Celestes nº 8<br />

“O Céu da Bandeira Brasileira”<br />

Constança Audi Almeida Prado,<br />

violino<br />

Orquestra Sinfônica do Teatro<br />

Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />

Regência, Sílvio Barbato<br />

BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />

02 - Brasil<br />

MÁRIO FICARELLI<br />

Quinteto para Trompa e Quarteto<br />

de Cordas<br />

Quinteto para Oboé e Quarteto<br />

de Cordas<br />

Quinteto para Dois Violinos, Duas<br />

Violas e violoncelo<br />

André Ficarelli, trompa<br />

Alexandre Ficarelli, oboé<br />

Horácio Schaefer, viola<br />

Quarteto de Cordas da Cidade<br />

de São Paulo<br />

LAMI – 004 Brasil – 2004<br />

Tempestade Óssea<br />

Grupo de Percussão do Instituto<br />

de Artes da UNESP<br />

GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil<br />

MARLOS NOBRE<br />

In Memoriam<br />

Mosaico<br />

Convergências<br />

Biosfera<br />

O Canto Multiplicado<br />

Ukrinmakrinkrin<br />

Rythmetron<br />

Divertimento<br />

Concerto Breve<br />

Variações Rítmicas<br />

Música Nova Philharmonia<br />

Música Nova Ensemble<br />

Regência: Marlos Nobre<br />

Ensemble de Percussion de<br />

Geneve<br />

Ensemble Bartok<br />

Maria Lucia Godoy, soprano<br />

Amalia Bazan, soprano<br />

Luiz de Moura Castro, piano<br />

Marlos Nobre, piano<br />

LEMAN CLASSICS – LC44100/<br />

2CD set – Suíça<br />

RICARDO TACUCHIAN<br />

Terra Aberta<br />

137


138<br />

DISCOGRAFIA (continuação)<br />

Ruth Staerke, soprano<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira.<br />

Regência, Roberto Tibiriçá<br />

RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />

Estruturas Simbólicas<br />

Estruturas Gêmeas<br />

Estruturas Primitivas<br />

Estruturas Obstinadas<br />

Estruturas Verdes<br />

Estruturas Divergentes<br />

Vários Intérpretes<br />

RIOARTE DIGITAL 022 − Brasil<br />

RONALDO MIRANDA<br />

Suite Festiva<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Regência, Roberto Tibiriçá<br />

RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />

Tango<br />

Lúdica I<br />

Variações Sérias<br />

Três Canções Simples<br />

Prólogo, Discurso e Reflexão<br />

Trajetória<br />

Appassionata<br />

Alternâncias<br />

Vários intérpretes<br />

RIOARTE DIGITAL − 020 − Brasil<br />

Sinfonia 2000<br />

Orquestra Sinfônica do Teatro<br />

Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />

Regência, Sílvio Barbato<br />

BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01<br />

− 02 − Brasil<br />

EDINO KRIEGER<br />

Te Deum Puerorum Brasiliae<br />

Coro Infantil do Rio de Janeiro<br />

(mestre de coro: Elza Lakschevitz)<br />

Polifonia Carioca (mestre do<br />

coro: Eduardo Lakschevitz)<br />

Coro Gregoriano do Rio de<br />

Janeiro, direção: Dom Féliz Ferrá,<br />

Ordem de São Bento<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Regência, Roberto Tibiriçá<br />

RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />

Sinfonia Terra Brasilis<br />

Orquestra Sinfônica do Teatro<br />

Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />

Regência, Sílvio Barbato<br />

BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />

02 – Brasil<br />

Suite para Cordas<br />

Orquestra de Câmara da Rádio<br />

MEC. Regência, Mário Tavares<br />

Divertimento para Cordas<br />

Orquestra de Câmara da Rádio<br />

MEC. Regência, Roberto<br />

Schnorrenberg<br />

Ludus Symphonicus<br />

Orquestra Sinfônica Nacional da<br />

Rádio MEC. Regência: Rinaldo Rossi<br />

Estro Armônico<br />

Orquestra Sinfônica Nacional<br />

da Rádio MEC<br />

Regência: Edino Krieger<br />

Canticum Naturale<br />

Orquestra Sinfônica Nacional<br />

da Rádio MEC<br />

Regência: Eleazar de Carvalho<br />

Maria Lúcia Godoy, soprano<br />

RIOARTE DIGITAL 110001 − Brasil<br />

Suite para Cordas<br />

Orquestra de Câmara da Cidade<br />

de Curitiba<br />

Fundação <strong>Cultural</strong> de Curitiba<br />

ETU102 − Brasil − 2000<br />

Três Imagens de Nova Friburgo<br />

Orquestra de Câmara de Blumenau<br />

Regência: Norton Morozowicz<br />

Martina Graf, piano<br />

COMEP CD6470-0 − Brasil – 1991<br />

GUILHERME BAUER<br />

Sugestões de Inúbias<br />

Trio para Violino, Violoncelo e Piano<br />

Partita Brasileira<br />

Duas Peças Brasileiras<br />

Quarteto de cordas nº 2<br />

Cadências para Violino e Orquestra<br />

Eduardo Monteiro e Alexandre<br />

Eisenberg, flautas<br />

Trio Fibonacci (Montreal, Canadá)<br />

Quarteto Moyzes (Eslováquia)<br />

Andreas Pozlberger, violoncelo<br />

Sven Birch, piano<br />

Erich Leninger, violino<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Regência: Henrique Morelembaum<br />

RIOARTE DIGITAL − 031 − Brasil<br />

– 2002<br />

Quarteto de Cordas nº 1 “Petrópolis”<br />

Quarteto de Cordas nº 2 Quarteto<br />

Moyzes<br />

PAULUS – 004000 – Brasil – 1998<br />

JOCY DE OLIVEIRA<br />

As malibrans<br />

ACADEMIA <strong>BRASILEIRA</strong> DE<br />

<strong>MÚSICA</strong> – Brasil<br />

Ilud Tempus<br />

RIOARTE DIGITAL/ ABM – Brasil<br />

DAWID KORENCHENDLER<br />

Sinfonia nº 3 (Psalmi-Tehilim)<br />

Coro Canto em Canto<br />

Maria Haro e Nicolas de Souza<br />

Barros, violões<br />

Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

Regência, Roberto Tibiriçá<br />

RIOARTE DIGITAL 018 – Brasil<br />

Abertura<br />

Orquestra Sinfonia Cultura da RTV<br />

Cultura de São Paulo.<br />

Regência: Lutero Rodrigues<br />

Memórias (Variações sobre o<br />

Bambalalão)<br />

Dawid Korenchendler, piano<br />

Sonata nº 6 “Sonata do Jubileu”<br />

Ruth Serrão, piano<br />

“Ballade des Pendus”<br />

Coro de Câmara “Sacra Vox”<br />

RIOARTE DIGITAL − 023 – Brasil<br />

MARISA REZENDE<br />

Volante<br />

Sintagma<br />

Variações<br />

Elos<br />

Ressonâncias<br />

Mutações<br />

Contrastes<br />

Vórtice<br />

Cismas<br />

Cássia Carrascoza, flauta<br />

Luís Eugênio Montanha, clarineta<br />

Dimos Goudarolis, violoncelo<br />

Ana Valéria Poles, contrabaixo<br />

Lídia Bazarian, piano<br />

Marisa Rezende, piano<br />

Marcelo Fagerlande, cravo<br />

Carlos Tarcha, percussão<br />

Eduardo Gianesella, percussão<br />

Quarteto de Cordas da Cidade de<br />

São Paulo<br />

LAMI − 005 Brasil – 2004<br />

JORGE ANTUNES<br />

Sinfonia em cinco movimentos<br />

Orquestra Sinfônica do Teatro<br />

Nacional Cláudio Santoro, Brasília.<br />

Regência, Sílvio Barbato<br />

BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />

02 − Brasil – 2001<br />

Flautaualf<br />

Trio em lá pis<br />

Source<br />

Vivaldia MCMLXXV<br />

Vários Intérpretes<br />

EDITORA UNIVERSIDADE DE<br />

BRASÍLIA<br />

CD 350010 − 2002 − Brasil<br />

FLÁVIO OLIVEIRA<br />

Tudo Muda<br />

Uruguay<br />

Mistérios<br />

Aos que partiram<br />

Ao homem Chê<br />

To a certain cantatrice<br />

Ein musikalisher brief<br />

Peça para piano<br />

Round about Debussy<br />

...Quando Olhos e Mãos...<br />

Movimentos: Variações<br />

Intradução de Ravel<br />

Round about Debussy (2a versão)<br />

Nênia<br />

Vários intérpretes<br />

FUNPROARTE BP 21660 – Brasil<br />

BRUNO KIEFER<br />

Poemas da Terra<br />

Música sem incidentes<br />

Música pra gente miúda<br />

Ventos incertos<br />

Querência<br />

Quarteto de Flautas Doces<br />

“Poemas da Terra”<br />

Dunia Elias Carneiro, piano<br />

Fredi Gerling, violino<br />

Márcio de Sousa, violão<br />

FUNPROARTE Poet 100 – Brasil<br />

Sonata I<br />

Lamentos da terra<br />

Duas Peças Sérias<br />

Tríptico<br />

Sonata II<br />

Seis Pequenos Quadros<br />

Toccata<br />

Ares de Moleque<br />

Em poucas Notas<br />

Alternâncias<br />

Poema para ti<br />

Cristina Capparelli, piano<br />

FUNPROARTE BK001 – Brasil<br />

Música sem Incidentes<br />

Terra Sofrida<br />

Canção para uma valsa lenta<br />

Momento de ternura<br />

Música sem nome<br />

Situação<br />

Sons perdidos<br />

Canção da garoa<br />

Quiçá...<br />

Brincando<br />

Faz de conta...<br />

Márcio de Souza e Flávia<br />

Domingues Alves, violões<br />

Ademir Schmidt, flauta transversal<br />

Eliana Van Huber, flautas doces<br />

Coro Porto Alegre


DISCOGRAFIA (continuação)<br />

Cristiano Hansen, narração<br />

FUNPROARTE MS011969 −<br />

Brasil<br />

ARMANDO ALBUQUERQUE<br />

Suite Bárbara Infantil<br />

Outono<br />

Uma Idéia de Café<br />

Motivação<br />

Tocata<br />

Suite (Infantil)<br />

Evocação de Augusto Meyer<br />

Sonho III<br />

Peça para piano 1964<br />

Celso Loureiro Chaves, piano<br />

Independente – Celso Loureiro<br />

Chaves, Porto Alegre – Brasil<br />

ANTÔNIO CARLOS BORGES CUNHA<br />

Ancient Rhythm<br />

Pedra Mística<br />

Fonocromia<br />

InstalaSom<br />

SONOR Ensemble, direção:<br />

Harvey Sollberger<br />

Orquestra Sinfônica de Porto<br />

Alegre<br />

Coral Sinfônico da OSPA<br />

e solistas<br />

Regência: Manfred Schmiedt<br />

Coral da UFRGS<br />

Regência: Cláudio Ribeiro<br />

Grupo InstalaSom<br />

Regência: Antônio Carlos Borges<br />

Cunha<br />

UFRGS 199.009.991 – Brasil<br />

PE. JOSÉ PENALVA<br />

Ágape II<br />

Le Regard de Dieu<br />

Casinha Pequenina<br />

Cantiga por Luciana<br />

Carinhoso<br />

Mini Suite: Mania das Pessoas<br />

Mini Suite: Arlequim<br />

Madrigal Vocale e convidados<br />

TRILHAS URBANAS ETU124-<br />

AA0001000 – Brasil<br />

FLO MENEZES<br />

On the other hand...<br />

Grupo de Percussão do Instituto<br />

de Artes da UNESP<br />

GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil<br />

Parcours de l’Éntité<br />

Contextures I (Hommage à Berio)<br />

Contesture III<br />

PAN; Laceramento della Parola<br />

Profils écartelés<br />

Words in Transgress<br />

<strong>MÚSICA</strong> MAXIMALISTA VOL.1<br />

PANAROMA 199.000.926 – Brasil<br />

− 1996<br />

SÍLVIO FERRAZ<br />

Conferência – versão para<br />

instrumentos e fita<br />

Conferência – versão instrumental<br />

Grupo Novo Horizonte de São<br />

Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />

VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />

Brasil – 1996<br />

No Encalço do Boi<br />

Luís Eugênio Montanha, clarone<br />

Carlos Tarcha, percussão<br />

LAMI 002 – Brasil − 2004<br />

EDSON ZAMPRONHA<br />

Modelagem VII<br />

Grupo Novo Horizonte de São<br />

Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />

VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />

Brasil – 1996<br />

Modelagem XII<br />

Modelagem II<br />

O Crescimento da Árvore Sobre a<br />

Montanha<br />

Modelagem III<br />

Mármore<br />

Modelagem VIII<br />

Fragmentation<br />

Orquestra Sinfonia Cultura<br />

Regência: Lutero Rodrigues<br />

Beatriz Balzi, piano<br />

Celina Charlier, flauta<br />

Eduardo Gianesella, percussão<br />

ANNABLUME – 199.016.320 –<br />

Brasil<br />

Modelagem XIII<br />

Lídia Bazarian, piano<br />

Eduardo Gianesella, percussão<br />

LAMI 002 – Brasil - 2004<br />

ROBERTO VICTÓRIO<br />

Codex Troano<br />

Heptaparaparshinokh<br />

Cruzar e Bifurcações<br />

Archeus<br />

Grupo de Percussão da UNES.<br />

Regência: John Boudler<br />

Coro de Câmara da Pró-Arte.<br />

Regência: Carlos Alberto<br />

Figueiredo<br />

Grupo Música Nova da UFRJ.<br />

Regência: Roberto Victório<br />

Grupo Metal Transformação Rio de<br />

Janeiro.<br />

Regência: Zdenek Svab<br />

Rose Vic, soprano<br />

Ronaldo Victório, tenor<br />

Marcelo Coutinho, barítono<br />

ROBERTO VICTORIO RV001 –<br />

Brasil – 1996<br />

Planalto Central<br />

Sentinelas de Pedra<br />

Grupo Sextante<br />

ROBERTO VICTORIO RV 002 –<br />

Brasil<br />

PAULO COSTA LIMA<br />

Ibejis<br />

Apanhe o jegue<br />

Pega essa nêga e chêra<br />

Imikaiá<br />

Ponteio<br />

Atotô do L’homme armé<br />

Saruê de dois<br />

Bahia Ensemble.<br />

Regência: Piero Bastianelli<br />

PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />

E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />

WELLINGTON GOMES<br />

Fantasia<br />

Reminiscências<br />

Frevinho<br />

Bahia Ensemble<br />

Regência: Piero Bastianelli<br />

PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />

E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />

HARRY CROWL<br />

Finismundo<br />

Simone Foltran, soprano<br />

Grupo Novo Horizonte de São<br />

Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />

VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />

Brasil – 1996<br />

Revoada<br />

Helle Kristensen, flauta doce<br />

PAULA CD 97 – Dinamarca –<br />

1996<br />

Na Perfurada Luz, em Plano Austero<br />

(Quarteto de cordas nº 1)<br />

Quarteto Moyzes<br />

PAULUS 004000 – Brasil – 1998<br />

Sonata I<br />

Canto para violino solo<br />

Aluminium Sonata<br />

Assimetrias<br />

Sonata II<br />

Austrais – 4 Canções<br />

Concerto para Clarone, Percussão<br />

e Piano<br />

Concerto para Piano e Orquestra<br />

No Silêncio das Noites Estreladas<br />

Leilah Paiva, piano<br />

Carlos Assis, piano<br />

Atli Ellendersen, violino<br />

Mário da Silva, violão<br />

Ana Toledo, soprano<br />

Otinilo Pacheco, clarone<br />

Grupo Novo Horizonte de São<br />

Paulo<br />

Orquestra Sinfônica do Paraná<br />

Regência: Roberto Duarte<br />

PIAP, Grupo de Percussão da<br />

Universidade Estadual Paulista<br />

UFPR/SECRETARIA DE<br />

CULTURA DO ESTADO DO<br />

PARANÁ CD 3584 1-2 Brasil –<br />

2002<br />

HARRY CROWL<br />

Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />

Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná UFPR. Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná<br />

e da Rádio MEC. Presidente da Sociedada Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />

139


140<br />

<strong>MÚSICA</strong> DE CONCERTO<br />

NA TERRA DO SAMBA<br />

PRODUÇÃO E PERFORMANCE<br />

Presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />

Contemporânea, Harry Crowl é um compositor cujo<br />

catálogo beira 80 obras, contabilizando execuções em<br />

uma plêiade de países que vai do Chile às Ilhas Faroe,<br />

passando por Alemanha, França, Reino Unido,<br />

Holanda e Suécia, entre muitos outros, tendo atraído<br />

a atenção de grupos como o Quarteto Moyzes,<br />

da Eslováquia, o Ensemble Nord, da Dinamarca,<br />

o George Crumb Trio, da Áustria, e o Trio Fibonacci,<br />

do Canadá.<br />

ENTREVISTA<br />

Além disso, o autor, nascido em 1958, vem<br />

atuando consistentemente como musicólogo, tendo<br />

sido responsável pela descoberta e restauração<br />

de várias partituras de compositores brasileiros<br />

do período colonial. Harry Crowl é ainda produtor de<br />

programas da rádio Paraná Educativa, professor da<br />

Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP)<br />

e diretor artístico da Orquestra Filarmônica<br />

Juvenil da Universidade Federal do Paraná (UFPR).<br />

Como se vê, uma atuação multifacetada, que vai


Harry-Crowl<br />

FOTO: SIMONE TRISTÃO<br />

141


142<br />

A música brasileira ainda é muito pouco<br />

conhecida no exterior de um modo geral.<br />

Porém, quase sempre provoca surpresas.<br />

Causa espanto saber que existe uma produção<br />

ininterrupta de música erudita no nosso país<br />

desde o século XVIII até os dias de hoje.<br />

desde a pesquisa até a criação de música de concerto,<br />

passando por seu ensino, performance e difusão<br />

(maiores detalhes podem ser obtidos em<br />

http://sites.uol.com.br/harrycrowl). Pela<br />

representatividade de seu trabalho como compositor,<br />

bem como pelo caráter abrangente de suas atividades,<br />

Harry Crowl foi escolhido por Textos do Brasil<br />

para dar um depoimento sobre os desafios<br />

e perspectivas de escrever, investigar, ensinar,<br />

tocar e difundir música “clássica” em um país<br />

dominado, reconhecido e aclamado pelo vigor<br />

de sua música popular.<br />

IRINEU FRANCO PERPÉTUO: É evidente a predominância<br />

de difusão da música popular sobre a música de concerto<br />

no mundo inteiro. No Brasil, a música “clássica” parece estar<br />

ainda mais deslocada, porque a música popular, além<br />

da ampla aceitação do público, goza de prestígio junto<br />

à intelectualidade. Qual a real inserção da música erudita em<br />

geral na sociedade brasileira? Como aumentá-la? Toca-se<br />

música de concerto no Brasil? O quanto se toca? E o quanto<br />

se toca de música escrita por autores brasileiros?<br />

HARRY CROWL: A difusão da música no Brasil está<br />

diretamente ligada ao lado puramente comercial. Tanto<br />

a música popular de qualidade quanto a música de<br />

concerto estão relegadas a um segundo plano. No caso<br />

da música de concerto, creio que há um reflexo direto<br />

da inexistência até o momento, de políticas culturais<br />

mais direcionadas no país. Nos últimos anos, pode-se<br />

perceber um certo aumento de orquestras em diversas<br />

regiões. Porém, ainda carecemos de políticas que<br />

estimulem a formação de pequenos grupos estáveis,<br />

como quartetos de cordas, quintetos de sopro, grupos<br />

de música contemporânea, etc. A resposta do público<br />

a este tipo de música tem sido cada vez mais favorável.<br />

A única atitude que pode aumentar o público é a<br />

constância de concertos e o aumento da programação<br />

do repertório nas rádios oficiais e comerciais. Toca-se<br />

música de concerto no Brasil com certa freqüência,<br />

porém com pouca variedade de repertório. Há uma<br />

certa insistência num repetitivo repertório clássicoromântico<br />

europeu. Música de compositores brasileiros<br />

só é tocada quando há um trabalho de divulgação feito<br />

pelos próprios compositores, associados ao eventual<br />

espírito magnânimo dos músicos e regentes. É claro<br />

que há exceções. Há intérpretes que primam por fazer<br />

somente o repertório brasileiro.<br />

IFP: O que é a SBMC? Como ela atua? Quais suas maiores<br />

dificuldades e projetos? Qual a real inserção internacional da<br />

música erudita brasileira, quer antiga, quer contemporânea?<br />

Como ampliá-la?<br />

CROWL: A Sociedade Brasileira de Música<br />

Contemporânea foi criada com o objetivo de divulgar<br />

e promover a música de concerto de compositores<br />

brasileiros no exterior e também, divulgar a música<br />

contemporânea internacional no Brasil. Todas as ações<br />

realizadas até hoje pela SBMC foram iniciativas<br />

vinculadas aos seus dirigentes, com exceção da<br />

indicação de obras para os “Dias Mundiais da Música”<br />

(World Music Days). Este evento acontece desde a<br />

década de 1920, e desde a década de 70, a SBMC vem<br />

indicando obras brasileiras para o festival. Talvez,<br />

este seja o maior evento mundial de música<br />

contemporânea. Nele, todos os países afiliados têm<br />

direito a pelo menos uma obra executada. Estamos nos<br />

esforçando para aumentar a participação do Brasil<br />

e da América Latina neste grande evento. Em 2002,<br />

o festival aconteceu em Hong Kong e teve a obra<br />

Circunsonantis, para quarteto de cordas, de Eli-Eri<br />

de Moura, da Paraíba, apresentada. Em 2003, já na<br />

Eslovênia, onde estive presente, foi a vez da obra<br />

A Vision of Sulis, para conjunto de câmera, do carioca<br />

Marcos Lucas. Em 2004, o festival aconteceu na Suíça


e, em 2005, na Croácia. O contato com<br />

as nossas sociedades irmãs tem sido muito proveitoso.<br />

Temos enviado informações e materiais gravados<br />

a várias delas, assim como temos recebido muitos<br />

CDs principalmente, para os programas de rádio<br />

que produzimos em Curitiba divulgando a música atual<br />

do Brasil e do mundo. Os primeiros frutos desses<br />

contatos começam a aparecer. Em março e abril<br />

de 2004, o programa “Geografia dos Sons”, da Rádio<br />

Portuguesa, Antena 2, produzido pelo compositor<br />

português Luís Tinoco, apresentou oito programas<br />

dedicados exclusivamente à música contemporânea<br />

brasileira, com material inteiramente fornecido por<br />

nós. A música brasileira ainda é muito pouco<br />

conhecida no exterior de um modo geral. Porém, quase<br />

sempre provoca surpresas. Causa espanto saber que<br />

existe uma produção ininterrupta de música erudita<br />

no nosso país desde o século XVIII até os dias de hoje.<br />

Nos outros países não europeus essa tradição apresenta<br />

vácuos. Tanto na América de língua espanhola quanto<br />

inglesa, as práticas musicais cultas tendem a ter um<br />

grande declínio após a independência dos países.<br />

Somente no século XX é que há um renascimento<br />

dessa música nos outros países.<br />

A SBMC não conta com qualquer subsídio.<br />

Os únicos recursos são provenientes do pagamento<br />

das anuidades dos associados. Praticamente, todo esse<br />

recurso é utilizado para o pagamento da anuidade<br />

da ISCM/SIMC (Sociedade Internacional de Música<br />

Contemporânea). Se a nossa sociedade tivesse algum<br />

subsídio, poderia produzir CDs de divulgação dos<br />

nossos compositores e até mesmo eventos.<br />

IFP: Você é a favor do ensino musical obrigatório em todas<br />

as escolas? Por quê? No que tange ao ensino musical<br />

profissionalizante, qual seu estágio atual no Brasil?<br />

Houve uma evolução? É possível ter uma boa formação<br />

musical profissional no Brasil sem ter que sair do país?<br />

CROWL: Claro que sim. Além de desenvolver<br />

habilidades básicas como coordenação, concentração e<br />

raciocínio abstrato, a música passa a fazer parte efetiva<br />

da vida dos cidadãos, permitindo que interajam com<br />

mais um riquíssimo aspecto da produção humana. O<br />

ensino musical no Brasil está ainda num estágio muito<br />

amador do ponto de vista prático. Algumas escolas<br />

particulares oferecem formação musical de acordo com<br />

as suas conveniências, mas a maioria dos interessados<br />

em estudar música tem que procurar ensino específico.<br />

Em grande parte dos cursos superiores de música,<br />

principalmente aqueles oferecidos pelas universidades<br />

públicas, há cursos preparatórios, pois não há como ter<br />

um indivíduo preparado para a formação superior<br />

(de música) fora destes cursos. Mesmo em regiões onde<br />

há conservatórios desvinculados de universidades,<br />

como no estado de São Paulo, o modelo é o mesmo, ou<br />

seja, os interessados têm que entrar para um curso fora<br />

da escola regular e desenvolver um estudo paralelo até<br />

estar mais ou menos apto a freqüentar um curso<br />

superior. Os nossos cursos superiores estão diretamente<br />

ligados ao prestígio dos professores que atuam nas<br />

faculdades. Não conheço nenhuma instituição no<br />

Brasil, que ofereça uma boa preparação para todos<br />

os instrumentos e igualmente dê uma boa base teórica.<br />

Não me parece que tenha havido qualquer evolução.<br />

Quando Villa-Lobos criou o método do Canto<br />

Orfeônico, durante o Estado-Novo, parecia que<br />

um caminho inédito e promissor seria aberto. Havia<br />

problemas com este tipo de educação musical, sem<br />

dúvida. Villa-Lobos era um intuitivo, e não um teórico.<br />

Porém, o que deveria ter sido feito era aperfeiçoar o<br />

sistema, e não simplesmente extinguí-lo, como foi feito<br />

por uma dessas leis de diretrizes e bases da década<br />

de 60. Hoje, ainda é possível se obter uma formação de<br />

alto nível sem sair do país. Porém, o custo disto é muito<br />

alto. É preciso um esforço hercúleo e uma grande força<br />

de vontade para correr atrás de vários professores.<br />

Os festivais e oficinas de música que acontecem no país<br />

durante os meses de janeiro e julho são uma boa ajuda,<br />

mas não são suficientes. A formação nos países mais<br />

desenvolvidos nesta área é muito menos penosa.<br />

Há no Brasil hoje, uma série de estudos muito<br />

importantes realizados através das pós-graduações<br />

das universidades públicas sobre a situação do ensino<br />

e até mesmo soluções muito bem elaboradas. Porém,<br />

falta que estas sejam de fato colocadas em prática.<br />

IFP: Qual o estado das orquestras e teatros de ópera no<br />

Brasil? Estão concentrados geograficamente ou difundidos?<br />

143


144<br />

Para que as orquestras no Brasil passem a fazer<br />

música brasileira regularmente será necessário<br />

um esforço político. Será necessário<br />

que os principais interessados pela questão,<br />

os compositores, pressionem de alguma forma<br />

as instituições que estão por trás das orquestras.<br />

As orquestras estão majoritariamente em crise ou dá para<br />

falar em um “renascimento” (ou nascimento) sinfônico<br />

no Brasil? Qual o papel dos intérpretes em geral<br />

e, especificamente, das orquestras, na difusão da música<br />

brasileira, quer no Exterior, quer aqui? Poderia haver um<br />

apoio maior das orquestras/teatros aos compositores brasileiros<br />

contemporâneos? Como isso funcionaria?<br />

CROWL: As orquestras são mantidas por órgãos<br />

públicos estaduais ou municipais, ou mesmo<br />

universidades federais. Por um lado, estão sempre<br />

às voltas com os mesmos problemas do funcionalismo<br />

público de um modo geral: salários e estabilidade. Por<br />

outro, como não há qualquer política de divulgação de<br />

um repertório mais amplo, os programas tendem a ser<br />

sempre os mesmos. Em alguns casos, como o da<br />

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP),<br />

um novo paradigma foi implantado. A orquestra vem<br />

se pautando pela excelência e pela diversidade do<br />

repertório. A Orquestra Petrobrás Pró-Música, no Rio,<br />

parece estar seguindo um caminho semelhante.<br />

Existem hoje, orquestras espalhadas por todo o país,<br />

principalmente nas capitais. Já os teatros de ópera<br />

há muito perderam a razão do nome. Não há mais<br />

temporadas no Brasil, com exceção do Festival de<br />

Ópera de Manaus. Há apenas montagens esporádicas<br />

de algumas mesmas óperas tradicionais. Considerando<br />

que o Brasil já teve temporadas internacionais ao longo<br />

de mais de um século, o retrocesso foi enorme.<br />

Do ponto de vista da criação musical, percebe-se<br />

nitidamente as conseqüências desta situação.<br />

Os compositores mais jovens escrevem cada vez menos<br />

para orquestra e raramente escrevem ópera.<br />

A música de câmara e com recursos eletroacústicos<br />

tende a atraí-los mais.<br />

Alguns regentes fazem um bom trabalho de<br />

divulgação da música brasileira, de maneira isolada<br />

quase sempre. Não há estímulo para que isso aconteça.<br />

Neste caso da música para orquestra, não existe no<br />

Brasil ainda a figura do compositor-residente, como nas<br />

orquestras de grande parte dos países desenvolvidos.<br />

Acredito que as orquestras deveriam trabalhar com<br />

compositores em caráter permanente, não somente<br />

para executar as suas obras, mas também para montar<br />

o repertório. Recentemente, em turnê pela Europa,<br />

a OSESP apresentou obras de compositores brasileiros.<br />

A última vez que isto aconteceu, que eu saiba, foi na<br />

década de 70, quando a Orquestra Sinfônica Brasileira<br />

fez uma turnê pelos Estados Unidos e pela Europa,<br />

inclusive gravando dois discos LP. Creio que já que<br />

as orquestras são mantidas com dinheiro público, elas<br />

teriam a obrigação de encomendar e fazer obras de<br />

compositores brasileiros. Lembro-me de uma história<br />

contada pelo compositor português Amílcar Vasques<br />

Dias sobre o que fizeram os compositores holandeses<br />

para conseguir que as orquestras de seu país tocassem<br />

suas obras, especialmente a Concertgebouw. Ele relatou<br />

que, em algum momento da década de 70, numa<br />

apresentação do balé Quebra-Nozes, os compositores<br />

organizaram uma algazarra com brinquedos musicais<br />

no meio da platéia. Todas as vezes que o maestro<br />

tentava começar a música, um grupo de quase<br />

cem pessoas punha-se a fazer um barulho infernal.<br />

A confusão acabou com a chegada da polícia, pois<br />

o público pagante queria linchar os compositores<br />

e seus simpatizantes. Em seguida, todos queriam saber<br />

o porquê daquela atitude. A resposta foi simples:<br />

“somos compositores, é a nossa profissão, portanto<br />

queremos que as orquestras holandesas, que subsistem<br />

à custa dos impostos dos cidadãos, toquem a nossa<br />

música”. Não quero aqui fazer qualquer proselitismo de<br />

arruaças, mas dizer que sem luta não se consegue nada.<br />

Para que as orquestras no Brasil passem a fazer música<br />

brasileira regularmente será necessário um esforço<br />

político. Será necessário que os principais interessados<br />

pela questão, os compositores, pressionem de alguma<br />

forma as instituições que estão por trás das orquestras.


IFP: Fale um pouco sobre as relações entre suas experiências de<br />

compositor e musicólogo, e sobre como uma influencia a outra.<br />

CROWL: O meu interesse pela musicologia veio como<br />

uma necessidade de conhecer aquilo que havia sido<br />

produzido no Brasil em épocas passadas. De uma certa<br />

maneira queria buscar modelos para a minha própria<br />

criação a partir da observação de procedimentos<br />

originais de compositores brasileiros. Acrescento a isso<br />

também o fato de sempre ter tido um grande interesse<br />

em História de modo geral e na História da Música<br />

e das Artes. Quando estudava nos Estados Unidos,<br />

na década de 70, tomei conhecimento das vanguardas<br />

européias e americanas. Ouvia tudo que podia.<br />

Conheci melhor a música do século XX. Cheguei a me<br />

identificar com os compositores da Escola de Viena,<br />

especialmente Schönberg e com os compositores<br />

poloneses atuais, em particular Penderecki<br />

e Lutoslawski. Um dia, achei que não tinha nada a ver<br />

comigo escrever música como aqueles compositores.<br />

Comecei então a ouvir com mais atenção compositores<br />

brasileiros, hispano-americanos e alguns norteamericanos.<br />

Descobri um mundo novo através da<br />

música de Villa-Lobos, que não suportava quando vivia<br />

antes no Brasil, por puro preconceito; dos americanos<br />

Charles Ives, Charles Ruggles, do argentino Alberto<br />

Ginastera, e dos mexicanos Silvestre Revueltas<br />

e Carlos Chavez. A partir daí, comecei a pesquisar<br />

obsessivamente a música erudita brasileira<br />

e a de outros países não-europeus com tradições<br />

ocidentais. Como não existia quase nenhuma gravação<br />

disponível, especialmente de música de compositores<br />

brasileiros, comecei a correr atrás de colecionadores e<br />

a gravar em fitas cassete tudo que encontrava. Quando<br />

achava também as partituras das obras gravadas,<br />

estudava-as a fundo. Fui voltando no tempo histórico<br />

até chegar no período colonial. Percebi logo que esta<br />

era uma matéria da qual muitos falavam a respeito,<br />

mas poucos de fato conheciam alguma coisa. Quase<br />

nada havia de gravações ou partituras dessas obras.<br />

Interessei-me profundamente pela questão e comecei<br />

a estudar tudo que cercava a matéria: História do Brasil<br />

na época colonial, Atuação da Igreja Católica no Brasil,<br />

Processos de colonização, História das Artes na<br />

Colônia, História de Portugal, as Práticas Musicais nos<br />

Países Católicos, etc. Trabalhei com este assunto junto<br />

à Universidade Federal de Ouro Preto por mais<br />

de 10 anos. Fiz a reconstrução de aproximadamente<br />

20 obras de compositores da época colonial. Acabei<br />

encontrando alguns procedimentos em compositores<br />

como Lobo de Mesquita, João de Deus de Castro<br />

Lobo, Manuel Dias de Oliveira, que diferiam dos<br />

modelos europeus mais conhecidos. Havia nesses<br />

compositores uma mistura de procedimentos da<br />

1 ª metade do século XVIII com o operismo do início<br />

do século XIX. Mais tarde, percebi que os portugueses<br />

já tinham feito coisa parecida anteriormente, quando<br />

misturavam o estilo napolitano com o romano. Como<br />

compositor, isto foi para mim uma grande descoberta.<br />

Percebi que poderia usar estruturas formais observadas<br />

nas obras destes vários compositores e inventar o que<br />

quisesse. A primeira obra em que utilizei um modelo<br />

antigo foi a Aluminium Sonata (1985) para violino<br />

e piano, onde usei como referência a Sonata em Sol maior<br />

para piano e violino “obrigado”, do compositor<br />

português Francisco Xavier Baptista (morto em 1797).<br />

Mais adiante, criei uma obra mais ousada que foi<br />

o oratório Memento Mori (1987) para vozes e conjunto<br />

de música antiga, sobre o texto “Barrocolagens”,<br />

de Affonso Ávila. Nesta composição, utilizei-me<br />

da Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal,<br />

de Ignácio Parreiras Neves (Vila Rica, 1734?-1794?).<br />

Daí em diante, várias foram as obras nas quais parti<br />

de “modelos” de música antiga brasileira ou afim.<br />

Devo acrescentar, porém, que as referências mais<br />

contemporâneas anteriores permaneceram, pois toda<br />

a minha obra está construída sobre uma sintaxe atonal<br />

livre, derivada do serialismo. O que mais me marcou<br />

foi a possibilidade de criar um mundo em labirinto<br />

não linear encontrado tanto na música de Villa-Lobos<br />

ou Ives, assim como nos compositores coloniais,<br />

principalmente nos mineiros. Um discurso musical<br />

totalmente avesso a um neo-classicismo racional<br />

ou a um neo-romantismo ultra sentimental,<br />

ou mesmo um expressionismo exagerado.<br />

IFP: É possível falar em uma única linguagem<br />

“contemporânea” para a música de concerto, ou estamos<br />

em um período em que todas as linguagens são possíveis?<br />

145


146<br />

Na música popular, é absolutamente natural<br />

identificarmos uma música autenticamente<br />

brasileira. Mas na música de concerto, para mim,<br />

isto sempre teve um “quê” de artificialidade.<br />

Os termos “vanguarda” e “nacionalismo” ainda fazem sentido<br />

ou são duas faces de uma moeda já fora de circulação?<br />

Existe “brasilidade” em música ? Se existe, o que é isso?<br />

Faz sentido cobrar de um compositor que seja “nacional”? Dá<br />

para falar em uma tendência hegemônica nacional (ou, até,<br />

internacionalmente) “retrô”, de volta a uma música “simples,<br />

tonal, acessível”? Como você vê esse tipo de tendência?<br />

CROWL: Vivemos uma época de pluralidade absoluta.<br />

Falar tanto em “vanguarda” como em “nacionalismo”<br />

é muito saudosismo. Há correntes estéticas que<br />

predominam em regiões do mundo. Mas isto é muito<br />

mutável. A facilidade com a qual as informações<br />

viajam hoje em dia faz com que a música de qualquer<br />

lugar seja conhecida em qualquer outra parte. O que<br />

se percebe é que as linguagens mais elaboradas<br />

e herméticas como a “super complexidade”,<br />

do Brian Ferneyhough, por exemplo, ou mesmo<br />

os remanescentes do serialismo integral, subsistam<br />

somente dentro de instituições acadêmicas.<br />

O “minimalismo” americano está confinado<br />

a uns poucos compositores, porém com forte apelo<br />

comercial. Há vários movimentos “neo” alguma coisa.<br />

Uns retomando a estética do antigo realismo socialista<br />

soviético, como a atual fase de Krysztof Penderecki,<br />

outros escrevendo no estilo de Tchaikovski, como<br />

alguns colegas nossos aqui no Brasil. Há também um<br />

certo ecletismo por parte dos compositores nórdicos<br />

e do leste europeu. E, finalmente, há uma escola<br />

engraçadinha, ou seja, que vive de fazer piadinhas<br />

musicais e que se autodenomina de pós-modernismo<br />

holandês e flamengo, além da “nova simplicidade” dos<br />

seguidores do italiano Giacinto Scelsi. Em países como<br />

os EUA, Alemanha e França encontra-se de tudo,<br />

porém nos EUA predominam a criação tonal neoromântica;<br />

na Alemanha, talvez predomine um<br />

neo-expressionismo remanescente de Schönberg;<br />

e, na França, a música espectral. O que mais vem<br />

chamando a atenção, porém, é o surgimento cada vez<br />

maior de compositores orientais. A grande maioria<br />

deles faz música como os ocidentais, mas no caso<br />

de alguns japoneses, e do chinês Ju Jian-er, há uma feliz<br />

tentativa de combinação das tradições do oriente<br />

com o ocidente. Não creio, como a maioria, acho eu,<br />

em “brasilidade”. Este termo, aliás, tem forte conotação<br />

ideológica. Se não estou enganado, foi amplamente<br />

difundido por Plínio Salgado, nos tempos<br />

do Integralismo. Na música popular, é absolutamente<br />

natural identificarmos uma música autenticamente<br />

brasileira. Mas na música de concerto, para mim, isto<br />

sempre teve um “quê” de artificialidade. Com exceção<br />

de Villa-Lobos, que fez um uso um tanto intuitivo de<br />

ritmos e melodias de origem popular, todos os outros<br />

compositores nacionalistas o fizeram consciente<br />

e calculadamente. A criação musical, hoje em dia, está<br />

mais ligada a universos culturais genéricos do que<br />

a fronteiras territoriais. Haja vista a diversidade<br />

da música dos nossos compositores.<br />

IFP: Diz-se que o maior desafio dos compositores, hoje,<br />

é a busca de uma linguagem própria. É isso mesmo?<br />

Como você encontrou a sua, e como a define? Entrevistas com<br />

compositores brasileiros sempre terminam com uma nota triste,<br />

com queixas de abandono, de falta de apoio... Contudo, você<br />

parece não subscrever esse pessimismo conformista e está<br />

sempre trabalhando pela difusão de suas obras. Que caminho<br />

você aponta para a novíssima geração de compositores que está<br />

surgindo no Brasil? Você acompanha suas obras? Apontaria<br />

nomes de destaque? Que conselhos daria a eles?<br />

CROWL: Muitos compositores não consideram isso<br />

importante. Contentam-se em ser epígonos de<br />

“escolas” estabelecidas, ou escrevem cada vez num<br />

estilo diferente. Particularmente, sempre tive horror<br />

a isso. Acho que cada compositor deveria achar a sua<br />

própria linguagem. Busquei isso desde o início. Não<br />

sosseguei enquanto não comecei a identificar o que era<br />

meu e o que era dos outros na minha própria música.<br />

Comecei a colocar os epígonos de lado. Como já


mencionei antes, tomei por modelo aqueles<br />

compositores que se adequavam àquilo que buscavam.<br />

Embora não goste da definição de pós-modernista, pois<br />

acho que não quer dizer muita coisa, vejo-me numa<br />

situação onde o resultado final do discurso musical<br />

é o que interessa, e não como ele foi construído.<br />

Importa-me como a música soa e estimula a<br />

imaginação do ouvinte, não como está escrita.<br />

Acho muito cômodo ficar reclamando e não fazer<br />

nada. Há no Brasil, ainda, um sonho romântico<br />

do gênio incompreendido que um dia será descoberto.<br />

Os compositores adoram se esconder atrás disso, em<br />

vez de procurarem espaço para a sua música. A música<br />

de concerto nunca vai ocupar um lugar semelhante<br />

ao da música popular. Nem aqui nem em nenhum<br />

lugar do mundo. Mais uma vez repito, as orquestras<br />

e intérpretes individuais só executarão obras<br />

de compositores brasileiros vivos se tiverem acesso<br />

ou forem obrigados num primeiro momento. Tenho<br />

conseguido muito espaço junto a intérpretes e algumas<br />

orquestras. Mantenho contato com grupos no exterior<br />

também. Procuro acompanhar tudo que acontece com<br />

a minha música. Não acho as coisas no Brasil tão<br />

impossíveis. Tenho excelentes intérpretes aqui em<br />

Curitiba, como as pianistas Leilah Paiva e Clenice<br />

Ortigara, o violinista Atli Ellendersen, o clarinetista<br />

Jairo Wilkens, o saxofonista Rodrigo Capistrano, além<br />

de outros em várias partes do Brasil, como no Rio,<br />

Porto Alegre, Manaus e São Paulo, como no caso<br />

do regente Roberto Duarte.<br />

Acho que apontar caminhos seria um pouco<br />

pretensioso, mas creio que buscar a própria linguagem<br />

é caminho interessante. Isso só se consegue<br />

naturalmente, com muita prática e pesquisa. É preciso<br />

compor sempre, ouvir muita música, interessar-se por<br />

outras artes. Enfim, fazer parte do mundo<br />

contemporâneo, com todas as suas benesses e mazelas.<br />

Sinto na maioria dos compositores entre 20 e 40<br />

anos, uma atitude muito conservadora em relação<br />

à criação. Tudo que tenho ouvido é repetição de velhos<br />

modelos acadêmicos, sejam eles românticos ou<br />

modernos (século XX). Pois, considero que compor<br />

como Webern, Schönberg, Stravinsky, Boulez, Ligeti<br />

ou Berio, tão acadêmico quanto fazê-lo à maneira<br />

de Tchaikovski, Franck, Brahms, ou mesmo Prokofiev<br />

ou Debussy.<br />

Prefiro não citar nomes de jovens compositores,<br />

mas diria para eles que compor é mais importante<br />

do que lecionar composição. Sei que a sobrevivência<br />

só é possível no Brasil através do magistério, mas<br />

a criação deve vir sempre em primeiro lugar, como<br />

uma religião. Porque senão, ensinar o quê?<br />

IRINEU FRANCO PERPÉTUO<br />

Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona)<br />

e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).<br />

147


Fernando Velloso e a<br />

poética da matéria<br />

“Pintar é tornar sensível uma superfície que se limitou”<br />

Desta maneira, e bem no centro do turbilhão do<br />

movimento de renovação das artes plásticas no Paraná,<br />

assim se exprimia o pintor Fernando Velloso, artista<br />

e crítico, homem de grande sensibilidade e de<br />

conhecimentos teóricos e técnicos, que liderou o início<br />

da vanguarda curitibana, principalmente daquela que<br />

vai se interessar pela problemática da matéria que<br />

é a substância sensível da arte contemporânea.<br />

Fernando Velloso é curitibano de família<br />

tradicional da capital do Estado do Paraná e de quem<br />

se esperava fosse um sucessor do pai político<br />

e advogado. Mas seus cadernos de escola, quando<br />

ainda criança, não lhe deram outra opção; a vontade<br />

de ser artista estava nele desde a tenra idade.<br />

Ultrapassando uma tendência inicial<br />

expressionista, importante na sua formação pictórica,<br />

pois é ela que corresponde às suas inquietudes de<br />

jovem estudante da Escola de Belas Artes do Paraná,<br />

FERNANDO VELLOSO, 1963<br />

na cidade de Curitiba, como aluno do italiano Guido<br />

Viaro, a continuidade de sua formação se deu na<br />

Europa, na França precisamente, quando freqüentou<br />

as aulas e as discussões teóricas em torno da arte<br />

contemporânea na Academia de André Lhote.<br />

É o próprio Lhote quem define sua tendência matérica:<br />

mon ami le pâtissier brésilien (“meu amigo confeiteiro<br />

brasileiro”, isto é, aquele que faz de tudo com a massa),<br />

o artista da Poética da Matéria, usando um termo<br />

de Argan.<br />

Em Paris, após a Segunda Guerra Mundial, vivia-se<br />

os momentos de retomada do Cubismo, Picasso era<br />

o líder da “jovem arte européia” e o movimento<br />

cubista passava por suas revisões. Sem esquecermos<br />

a influência do existencialismo de Sartre, a<br />

decomposição cubista era mais explosiva que analítica,<br />

a realidade que ela queria mostrar fluía de uma<br />

consciência dilacerada e, em idéia, já era abstrata.<br />

149


A sua abstração possibilita o fazer artesanal,<br />

150<br />

Lhote havia participado da Exposição Section d’Or<br />

em 1912, e estava engajado nas discussões<br />

da especificidade da pintura francesa, essencialista<br />

e cartesiana dentro do conceito de uma “volta<br />

à ordem”, e estas concepções, aliadas à lógica<br />

e ao rigor do fazer artístico, é que determinavam<br />

o método de sua Academia fundada em 1922 e pela<br />

qual passaram vários artistas brasileiros.<br />

Do conhecimento técnico de preparo dos materiais<br />

pictóricos (a “cozinha” da pintura, como Velloso<br />

a chama), apreendido entre os acadêmicos no Paraná,<br />

foi reelaborado nessa reinvenção pós-cubista,<br />

ao mesmo tempo material e formal da pintura,<br />

e com um aprofundamento sobre o “métier” do pintor.<br />

Ser pintor, esta era a vontade do artista; e ser<br />

pintor é saber manusear com autoridade os materiais<br />

pictóricos, dominá-los, dominar a matéria, dominar<br />

o espaço compositivo do quadro: sensibilizar<br />

a superfície escolhida.<br />

Fernando Velloso tem a consciência clara<br />

que o espaço da tela não é um espaço de ilusão, ele<br />

é espaço de inscrição, de linguagem, de transformação<br />

da natureza vivida e sentida em pintura. Pintura para<br />

ele não é fazer o efêmero, o perecível; pintura deve ter<br />

qualidade e durabilidade e também muito trabalho,<br />

para possibilitar que todas as suas sensações<br />

(uma herança de Cézanne) possam entrar no quadro<br />

em forma de luz, de cor e de espaço e, com<br />

inteligência e sensibilidade, tentar o absoluto: “que<br />

o quadro seja bem pintado”, dirá Lhote nas suas<br />

“lnvariantes plásticas”.<br />

O que lhe interessou de Lhote não foi o “cubificar”<br />

as aparências, mas a lição de que o cubismo é espaço,<br />

que é espaço complexo, descontínuo e a materialização<br />

de um espaço novo que foi sentido por Braque<br />

e Picasso. É subversão do sistema perspectivo, mas não<br />

deixando de confirmar que este espaço que o artista<br />

quer planificar é oval, é côncavo, é barroco.<br />

Da herança racional do pós-cubismo lhe resta<br />

a estrutura do quadro, o espaço plano onde figura<br />

e fundo têm uma mesma importância; do trabalho<br />

sobre a matéria é que proporciona esta linguagem<br />

dúctil, plástica, impressionável, suscetível de todas<br />

as transformações e metamorfoses, na busca de<br />

materiais e texturas, onde o volume é real e não uma<br />

ilusão, resultado da manipulação das tintas e cores,<br />

e que conta também com apropriações de fragmentos<br />

do universo do pintor, estranhos à pintura mesma.<br />

Diferente do cubismo que se apropriava de<br />

porções de realidade, momentos do cotidiano, e colava<br />

no quadro, as apropriações do Fernando Velloso<br />

são plásticas, são texturas, são massas pictóricas, que<br />

se, por um lado, nos atraem pela sua sensualidade,<br />

estão ali também para exaltar um desenho que<br />

descreve analiticamente objetos, arquiteturas<br />

e volumes do quadro.<br />

As rendas, escolhidas criteriosamente, não<br />

lembram tempos passados, mas texturas sentidas,<br />

rugosidade que se opõe ao liso, sentidos no toque dos<br />

dedos sobre as diversas superfícies da própria natureza,<br />

uma natureza não somente ótica, mas também háptica<br />

(em Riegl, espaço dominado pelos corpos, sensível),<br />

e que às vezes levam também ao observador esta<br />

vontade de tocar na obra como se ela fosse a própria<br />

natureza. O não figurativismo de suas colagens<br />

não elimina a emotividade naturalista da forma,<br />

da textura e da cor.<br />

Não há perspectiva, pois o quadro é plano, mas<br />

há espaço determinado pela matéria e pela cor. Tempo<br />

e espaço são duas grandes conquistas da arte moderna;<br />

o tempo para Fernando é estável, duradouro,<br />

é o tempo necessário para se ler o quadro, para<br />

atravessá-lo com o olhar de um lado para o outro,<br />

perscrutar todos os detalhes, nuanças de cores<br />

e volumes, mas jamais para tentar atingir o objeto.<br />

O objeto, se ele existe, está preso, ou mesmo<br />

transformado, no espaço. São suas obsessões formais.<br />

Não há objetos aparentes na obra do Velloso;


sem a precisão requerida pelo objeto<br />

como nos explica Klee, eles podem ser recordações,<br />

reminiscências, fragmentos da natureza que ficaram<br />

guardados na memória do pintor e que ele<br />

retransforma em pintura. “Matéria é memória”,<br />

escreveu Henri Bergson. Suas pinturas são abstrações,<br />

pois a decepção com o ritual cubista de Lhote, com<br />

o seu dogmatismo pseudo-cientificista, o fez cair na<br />

abstração, mas não numa abstração hermética.<br />

A sua figura nunca está muito longe − mas ele não<br />

é figurativo em forma alguma. Pode ser figural<br />

conforme a concepção de Lyotard − com esforço,<br />

podemos ver a natureza do Paraná, as construções<br />

no espaço, os planos que se entrecortam, a cor,<br />

o dinamismo das formas transpassadas pelos elementos<br />

geométricos. Há tempos ele mesmo as denominou<br />

(por influências externas) de Florestas petrificadas,<br />

Espectros da floresta, mas agora suas composições<br />

se aproximam do que disse Klee, das reminiscências:<br />

Imagens resgatadas no tempo, Enigmas decorrentes, Formas<br />

em relação e confronto, Fragmentos colhidos no caminho...<br />

A sua abstração possibilita o fazer artesanal, sem<br />

a precisão requerida pelo objeto; ele acentua o prazer<br />

do fazer manual como que negando Duchamp na sua<br />

impossibilidade da pintura. Com Fernando Velloso<br />

se afirma de novo que é possível ser pintor de tela<br />

e tinta, de manipulação de materiais e instrumentos,<br />

da exaltação da vontade de pintar.<br />

As sua formas sensíveis, definidas como exercícios<br />

de racionalização na bidimensionalidade da tela, são<br />

barrocas, como é barroco também o tratamento<br />

matérico dessas formas; um atavismo brasileiro ou<br />

o resultado do processamento da forma pela matéria?<br />

Quando Kandinsky, rompendo com a perspectiva<br />

renascentista, ovalisou o espaço de suas pinturas, ele<br />

saiu da figuração. O barroco moderno de Fernando<br />

FERNANDO A. R. BINI<br />

Professor de História da Arte.<br />

Velloso é definido por esta espacialidade indefinida<br />

que é, ao mesmo tempo, resultado da ação do artista,<br />

da gestualidade dramática do pintor a caminho<br />

da abstração.<br />

Velloso é ainda o grande pintor, e quer ser<br />

considerado como tal. Sua obra é densa, pensada,<br />

produzida lentamente com a reflexão do teórico e do<br />

crítico que ele é; nada está ali por puro acaso, tudo foi<br />

analisado e confirma a sua direção, a de continuar<br />

a sua busca da idéia de abstração; abstração enquanto<br />

organização do espaço, de sensação da dimensão.<br />

O que está em suas telas é a cor e a textura da nossa<br />

matéria, é a cor e a textura de nossa vegetação, de<br />

nossa terra e de nosso céu, mas, antes de mais nada,<br />

o que está na tela é matéria pictórica, é a solução de um<br />

problema dado para e pelo pintor. As fantasmagorias<br />

desses seres-naturezas são frutos de nossa imaginação.<br />

151

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