MÚSICA ERUDITA BRASILEIRA - Departamento Cultural
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<strong>MÚSICA</strong><br />
<strong>ERUDITA</strong><br />
<strong>BRASILEIRA</strong>
Escrever um panorama da História da Música<br />
Erudita ou de Concerto no Brasil é um<br />
desafio há muito acalentado. Diferente<br />
de outras produções artísticas brasileiras,<br />
a música ainda carece de estudos<br />
organizados com o objetivo de contar sua<br />
história e, principalmente, contextualizá-la<br />
perante o repertório consagrado da música<br />
ocidental. Essa vertente da produção musical<br />
brasileira por muitos é considerada como<br />
o último tesouro ainda por ser descoberto<br />
e verdadeiramente explorado da cultura<br />
do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,<br />
e também de Camargo Guarnieri, pouco<br />
se conhece a respeito dessa imensa produção<br />
musical. Isso se dá tanto nos meios<br />
internacionais como, espantosamente, entre<br />
os próprios músicos brasileiros, que bastante<br />
sabem e executam Mozart, Beethoven<br />
e Brahms, mas que pouca informação<br />
têm de compositores brasileiros<br />
contemporâneos e mesmo de outros períodos.<br />
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6<br />
Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou<br />
Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios<br />
de comunicação e conhecida internacionalmente como<br />
símbolo da produção musical do Brasil do século XX,<br />
a música erudita ou de concerto ainda é um território<br />
inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos<br />
próprios músicos brasileiros. Diferentemente<br />
da produção de MPB, que abrange dos últimos anos<br />
do século XIX aos dias atuais, a música “clássica”<br />
no Brasil está ligada diretamente ao início da<br />
colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco<br />
séculos de transformações e adaptações culturais<br />
ocorridas no país.<br />
A respeito de como interagem na cultura brasileira<br />
essas duas realidades musicais complementares,<br />
citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação:<br />
“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar<br />
de música brasileira corresponde a falar de música<br />
“popular” brasileira. Claro que a supremacia, em<br />
termos de difusão, da música popular sobre a música<br />
de concerto é um fenômeno mundial. O que torna<br />
o caso do Brasil específico é que os principais autores<br />
e intérpretes de nossa música popular desfrutam<br />
do status não apenas do carinho das massas, mas o afago<br />
da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica”<br />
da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para<br />
o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos<br />
brasileiros, na área de música, são gente como Chico<br />
Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não<br />
Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes,<br />
por mais que possamos admirar e respeitar o talento<br />
desses compositores. As idéias dos astros da MPB é<br />
que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos<br />
formadores de opinião pública. Quando acontece um<br />
fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber<br />
a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para<br />
o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição<br />
presidencial é sempre repercutida pela imprensa com<br />
estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem<br />
Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar.<br />
Não se trata aqui de atacar a música popular<br />
brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido<br />
pela música brasileira de concerto.”<br />
Ao procurarmos os vários fatores a que se deve<br />
a atual situação de desconhecimento da história e da<br />
produção da música de concerto no Brasil, deparamonos<br />
com dois principais, que são a falta de programas<br />
editorais eficazes para a publicação de obras compostas<br />
no Brasil desde o século XVIII e o próprio<br />
desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações<br />
musicais em conhecer e programar esse repertório em<br />
seus concertos. Diante desse quadro, nada mais<br />
oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,<br />
esta História da Música Erudita no Brasil, de modo<br />
multidisciplinar e em formato de revista.<br />
Para esta publicação elaboramos uma pauta onde<br />
subdividimos os assuntos em três grandes períodos<br />
históricos: do Descobrimento à Independência, do<br />
Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias<br />
atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada<br />
por artigos de diferentes características. Há os artigos<br />
contextualizantes de um período histórico e que vêem<br />
a produção musical no âmbito sociológico, e há os que<br />
exploram a biografia dos principais compositores de<br />
cada período, tornando-se importantes verbetes para<br />
uma compreensão mais objetiva da biografia e<br />
produção de cada compositor ou período estético<br />
abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma<br />
revista de divulgação de cultura brasileira no exterior,<br />
tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que<br />
jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos<br />
abordados, possa ter uma ambientação histórica<br />
e social na qual essa música foi produzida.<br />
Acessíveis e interessantes para músicos,<br />
ou somente interessados em saber mais sobre essa<br />
produção musical, os artigos foram escritos por alguns<br />
dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do<br />
assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.<br />
A presença do CD anexo, assim como as bibliografias<br />
e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada<br />
assunto abordado nos artigos. Desse modo,<br />
pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,<br />
possibilitando que a mesma possa ser utilizada como<br />
um guia referencial para aqueles que pretendem<br />
começar a se enveredar pelo tema, e até servir como<br />
base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.<br />
Dentre as publicações mais importantes de História
da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por<br />
somente um autor, podemos citar as de Vicente<br />
Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade,<br />
ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz<br />
Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer<br />
nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.<br />
Nesta Textos do Brasil, por sua característica<br />
multidisciplinar unindo conhecimentos específicos<br />
para cada assunto abordado, pretendemos contribuir<br />
para incrementar e dar nova visão sobre essa não<br />
vasta, porém importante, bibliografia existente<br />
a respeito do tema.<br />
O primeiro texto da revista, “Música e sociedade<br />
no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata<br />
inicialmente da música composta e utilizada pelos<br />
jesuítas com o objetivo de catequizar os povos<br />
indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos<br />
da colonização. Apesar de não existir documentação<br />
musical remanescente do período, o pesquisador faz<br />
uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse<br />
processo, tendo como fonte o trabalho realizado<br />
pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando<br />
em suas notas as informações necessárias para<br />
a reconstituição provável desse material. No mesmo<br />
artigo, Budasz trata da produção musical para os versos<br />
do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século<br />
XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das<br />
primeiras informações a respeito de uma prática de<br />
música não-litúrgica ou profana em nosso território.<br />
Desta também não restou documentação musical<br />
específica, porém é também possível realizar um<br />
processo comparativo e de reconstituição baseado<br />
em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que<br />
são feitas referências em documentos da época.<br />
Ainda no século XVII e início do XVIII temos,<br />
para não deixar de citar, o caso da música composta<br />
na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis −<br />
hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul<br />
do país, mas que no período pertenciam à Coroa<br />
espanhola −, sendo sua produção artística e musical<br />
mais diretamente ligada à arte barroca praticada<br />
em países como Argentina, Paraguai e Bolívia.<br />
Para conhecermos mais a respeito desta produção,<br />
basta que conheçamos os trabalhos editoriais<br />
A música “clássica”<br />
no Brasil está ligada<br />
diretamente ao início da<br />
colonização pelos portugueses e<br />
perpassa pelos cinco séculos de<br />
transformações e adaptações<br />
culturais ocorridos no país<br />
e de partituras, assim como os registros musicais em<br />
discos e sobre música barroca hispano-americana.<br />
Tratando a pauta com respeito a uma ordem<br />
cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da<br />
música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade<br />
do século XVIII e primeira metade do XIX.<br />
Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia<br />
anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado<br />
por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais<br />
difundido, porém também pouco conhecido da<br />
produção musical do Brasil colônia, que é a música<br />
sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de<br />
Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades<br />
leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São<br />
Paulo, Bahia e Pernambuco.<br />
Esse artigo trata justamente da música a partir<br />
do primeiro documento musical encontrado, que é um<br />
recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza<br />
as produções nordestinas do mesmo período para,<br />
aí sim, dar total ênfase à mais importante escola<br />
de compositores do período colonial, que é a das Minas<br />
Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto<br />
bastante completo, que contempla a produção de vários<br />
nomes importantes do período, como Emerico Lobo de<br />
Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho<br />
Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.<br />
Nesta nossa introdução não podemos deixar<br />
de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo<br />
musical se estabeleceu no Brasil colonial,<br />
principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa<br />
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linguagem musical eminentemente italiana tem uma<br />
trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir<br />
da década de 1710, manda jovens compositores<br />
portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo<br />
em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical<br />
italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo<br />
para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos<br />
como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para<br />
dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como<br />
a mais importante colônia do império português<br />
do período, o Brasil tem uma grande atividade musical<br />
e está em estreito contato com as novidades vindas<br />
da metrópole, passando também a ter sua produção<br />
musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a<br />
descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas<br />
Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila<br />
Rica surgem para, além das tradicionais grandes<br />
cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem<br />
intensa atividade musical, que caracterizará um dos<br />
mais profícuos momentos da história musical brasileira.<br />
No entanto, não há parâmetro para as<br />
transformações nas atividades culturais e mesmo sociais<br />
do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI<br />
de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de<br />
salvaguardar a alta administração portuguesa da<br />
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808.<br />
O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil:<br />
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo<br />
musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa<br />
justamente a falar das grandes mudanças sociológicas<br />
e estilístico-musicais que se seguem após este<br />
importante momento da História do Brasil.<br />
Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão,<br />
segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais<br />
representativo compositor desse período colonial<br />
brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia<br />
(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes<br />
Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio<br />
de Janeiro”, trata de sua interessante biografia<br />
e de como suas obras sobreviveram através do tempo.<br />
Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio<br />
de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783<br />
e a última de 1826, sua música também reflete<br />
as transformações que essa cidade, como capital<br />
da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.<br />
Esses anos foram intensos também para as artes<br />
plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística<br />
Francesa de 1817 e de músicos como o compositor<br />
austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão<br />
diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço<br />
de Luís XVIII de França – e que permaneceu no<br />
Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção<br />
de música instrumental na corte como música para<br />
piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças<br />
à presença desse compositor, os músicos atuantes na<br />
cidade puderam travar contato com o que havia de<br />
mais relevante da produção musical centro-européia,<br />
como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José<br />
Maurício em 1819, e os oratórios As Estações<br />
e A Criação de Joseph Haydn, este último também<br />
comprovadamente regido por José Maurício em 1821.<br />
Nos anos que seguiram ao processo de<br />
Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em<br />
1822, as atividades culturais sofreram um grande<br />
declínio em comparação aos faustos anos da presença<br />
da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma<br />
longa reestruturação se inicia com a criação do<br />
Imperial Conservatório de Música, atual Escola de<br />
Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que<br />
teve como seu primeiro diretor o autor do Hino<br />
Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,<br />
que durante o tempo de José Maurício esteve entre<br />
seus alunos diletos.<br />
Esse período se caracterizou por uma certa<br />
desestruturação da Real Capela de Música,<br />
transformada em Imperial Capela, e seus músicos –<br />
entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes<br />
Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades<br />
financeiras. Essa época coincidiu também com<br />
a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,<br />
passando a ser um novo parâmetro para a produção<br />
operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto<br />
sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei<br />
D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas<br />
foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di<br />
Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de<br />
poucos meses em relação às estréias européias. Essa<br />
modificação no gosto serviu de modelo para a criação
e mesmo para a vida musical do Brasil independente.<br />
A música das óperas de Rossini foi muitas vezes<br />
adaptada para a realidade da música sacra, criando<br />
curiosidades como a Missa da Gazza Ladra, de Pedro<br />
Teixeira de Seixas, em que a música da ópera foi<br />
transcrita quase literalmente para o texto litúrgico.<br />
Ainda nesse período inicia-se o interesse pela música<br />
instrumental.<br />
O início de um período romântico brasileiro pode<br />
ser caracterizado sobretudo pela figura de Antonio<br />
Carlos Gomes (1836 – 1896), que se tornou símbolo<br />
da vida musical do Segundo Império compondo óperas<br />
em língua portuguesa, como A Noite do Castelo (1861)<br />
e Joana de Flandres (1863), e tendo conquistado êxitos<br />
relevantes na Europa com suas óperas, como Il Guarany<br />
(1870) e Salvator Rosa (1874). Contudo, outros<br />
compositores, como Elias Álvares Lobo, autor da ópera<br />
A Louca, também foram importantes para a criação,<br />
mesmo que temporária, de uma produção de óperas<br />
em língua portuguesa. Essas obras em língua nacional<br />
eram em estética musical italiana, profundamente<br />
baseada no “bel canto” de Bellini e posteriormente<br />
Verdi. Artigo a respeito de Carlos Gomes,<br />
“Considerações sobre Carlos Gomes”, é escrito pelo<br />
Maestro Luiz Aguiar, profundo conhecedor do assunto,<br />
responsável por vários trabalhos de resgate e edições<br />
desse importante compositor.<br />
No último quartel do século XIX, vários<br />
compositores brasileiros começam a se destacar<br />
na produção de música instrumental de forte influência<br />
alemã, como Alberto Nepomuceno (que foi aluno<br />
de Grieg na Noruega), Leopoldo Miguez e Alexandre<br />
Levy, e de linguagem francesa, como Henrique<br />
Oswald. Essa é uma importante geração de<br />
compositores que atuam num conturbado período<br />
de fins do Império e do início do período republicano<br />
brasileiro, quando começam a ser esboçados<br />
importantes conceitos nacionalistas em música. Nessa<br />
mesma época, o antigo Conservatório Imperial<br />
de Música passa a ser o Instituto Nacional de Música,<br />
tendo Alberto Nepomuceno como seu diretor.<br />
A música instrumental de câmara e sinfônica passa<br />
a ter papel predominante na vida musical brasileira.<br />
A respeito desse período e de seus principais<br />
No entanto, não há parâmetro<br />
para as transformações<br />
nas atividades culturais<br />
e mesmo sociais do Brasil<br />
como o deslocamento da<br />
Corte de D. João VI de Portugal<br />
para o Rio de Janeiro<br />
compositores foram escritos os artigos intitulados<br />
“O Modernismo Musical Brasileiro”, por Guilherme<br />
Goldberg, e “Henrique Oswald e os Românticos<br />
Brasileiros: em busca do tempo perdido”, por Eduardo<br />
Monteiro. Esses artigos contextualizam os compositores<br />
e suas obras em relação à produção européia e sua<br />
importância para a formação de uma nova<br />
e sólida linguagem na música brasileira.<br />
Nesse mesmo contexto, temos a figura fascinante<br />
e ambígua de Ernesto Nazareth, que circulou entre<br />
o meio da música de concerto, sendo ardoroso<br />
seguidor de Chopin, e a nascente música popular,<br />
por ter se tornado grande compositor de música<br />
de salão no Rio de Janeiro de fins do século XIX.<br />
O jornalista Alexandre Pavan, em seu artigo<br />
“Chopin Carioca”, aborda dados pitorescos da vida<br />
e obra desse compositor.<br />
Durante as primeiras décadas do século XX,<br />
questionou-se arduamente o que seriam características<br />
verdadeiras ou tipicamente brasileiras em nossa<br />
produção cultural e musical. Isso é completamente<br />
justificável dentro do pensamento de afirmação<br />
nacionalista de uma jovem nação que se consolidava<br />
como uma república e que, definitivamente, rompia<br />
seus laços com a antiga metrópole. Vale lembrar o dado<br />
histórico de que, mesmo após a independência do<br />
Brasil como nação em 1822, tivemos dois imperadores<br />
que pertenciam à linhagem portuguesa dos Bragança,<br />
respectivos filho e neto do último rei português a<br />
governar o Brasil enquanto colônia, D. João VI.<br />
9
10<br />
Com a proclamação da<br />
República em 1889, um novo<br />
país surge querendo romper<br />
com toda e qualquer<br />
influência do antigo regime.<br />
Principia o pensamento<br />
de afirmação nacional<br />
que perdura até meados<br />
do século XX, acalentado<br />
principalmente na Semana<br />
de Arte Moderna de 1922<br />
e no surgimento do<br />
ainda se discutia e mesmo impunha-se uma série<br />
de normas e conceitos do que seria genuinamente<br />
brasileiro. Nesse ínterim muitos intelectuais do período<br />
passaram a valorizar a influência dos povos africanos e<br />
seus descendentes, assim como a das nações indígenas<br />
pré-existentes à chegada do europeu nestas terras, na<br />
formação da cultura nacional. Apesar de justificado,<br />
esse pensamento deu margem a muitas injustiças<br />
e falhas nos critérios de avaliação do que conteria ou<br />
não tais características. A produção musical anterior<br />
a esse pensamento nacional, como as óperas de Carlos<br />
Gomes e a já citada música sacra colonial, foi posta de<br />
lado, visto como uma arte decadente que desprezava<br />
os batuques africanos e a influência indígena e que,<br />
portanto, estava fadada a ser avaliada como arte<br />
submissa aos valores do colonizador2 pensamento chamado<br />
Ricardo Bernardes.<br />
FOTO: AUGUSTO VIX<br />
de Antropofagismo, quando<br />
. Mesmo depois<br />
do arrefecimento desse ideário, ainda hoje perdura<br />
o conceito ou o questionamento do que seja música<br />
tipicamente brasileira. Compositores como Villa-Lobos<br />
tiveram que se afirmar duplamente como brasileiros<br />
e universais, com obras que ainda são assim divididas<br />
por muitos músicos e estudiosos do assunto.<br />
Há o Villa-Lobos ombreado a Stravisnky, de música<br />
afrancesada e de instrumentação sofisticada e ousada,<br />
e há aquele que utilizou pretensos cantos indígenas<br />
e de negros, dando sabor nacional a sua música,<br />
abusando de recursos rítmicos e conclamando a pátria<br />
ao reconhecimento de seus valores.<br />
Como outros nomes importantíssimos que<br />
escreveram na recém-estruturada linguagem<br />
nacionalista, citamos o ítalo-paulistano Francisco<br />
Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez,<br />
Guerra-Peixe e até mesmo, em uma fase,<br />
Cláudio Santoro.<br />
A idéia aqui não é criticar ou desconstruir<br />
o pensamento nacionalista, mas sim contextualizá-lo<br />
como um importante conjunto de idéias que se<br />
justificaram no período em que foram criadas e usadas<br />
como padrão, mas que já se tornam ultrapassadas<br />
e restritivas de uma avaliação mais ampla do que seria<br />
o universo musical no Brasil ao longo de praticamente<br />
cinco séculos. A respeito desse longo período, que vai<br />
das primeiras décadas do século XX até tardiamente,<br />
em alguns compositores ainda atuantes na década de<br />
60, foram escritos os seguintes artigos: “Villa-Lobos<br />
Moderno e Nacional”, de Jorge Coli; “Francisco<br />
Mignone e Lorenzo Fernandez”, pelo Maestro Lutero<br />
Rodrigues; e “Guerra-Peixe, compositor multifário”,<br />
pelo compositor e regente Ernani Aguiar.<br />
Um dos principais instrumentos a entrar em<br />
ascensão no século XX, tanto na música de concerto<br />
quanto na popular, foi o violão. Emblemático da cultura<br />
vista como genuinamente brasileira, esse instrumento<br />
teve em Villa-Lobos um dos principais compositores<br />
e entusiastas. Especificamente sobre esse aspecto da<br />
obra de Villa-Lobos, e de sua atuação para enriquecer<br />
o repertório do violão e a posterior trajetória desse<br />
instrumento na criação brasileira, é que temos o artigo<br />
“A Música Brasileira para Violão depois de Villa-<br />
Lobos”, escrito pelo consagrado violonista Fábio Zanon.<br />
Ainda na década de 30, paralelamente ao ideário<br />
nacionalista, outro movimento se configura quase<br />
numa antítese a esse pensamento. O Movimento<br />
Música Viva, liderado por Koellreutter – falecido em<br />
2005 –, teve entre seus seguidores vários compositores<br />
que transitaram entre essas duas linguagens, como os<br />
jovens compositores Cláudio Santoro e César Guerra-<br />
Peixe. Tal movimento, como diz o autor do artigo<br />
“Música Viva”, Carlos Kater, não foi apenas<br />
responsável pela primeira fase da composição atonal e<br />
dodecafônica da música brasileira. Coube a esse<br />
movimento, mais precisamente, a criação de uma nova<br />
perspectiva da produção musical, imbricada numa<br />
concepção contemporânea da função social do artista.
Para tratar especificamente de Camargo Guarnieri,<br />
compositor de carreira brilhante e formador de muitos<br />
discípulos, temos o artigo da Profa . Flávia Toni, uma<br />
das principais especialistas no assunto, “Camargo<br />
Guarnieri”.<br />
Para tratar da produção de Claúdio Santoro,<br />
compositor profícuo e de múltiplas linguagens – com<br />
importante carreira internacional também como<br />
professor – temos o artigo “Cláudio Santoro – uma<br />
trajetória”, pelo jornalista Irineu Franco Perpétuo.<br />
Mais recentemente, nas últimas décadas do<br />
século XX, grandes movimentos de música<br />
de vanguarda surgiram de forma organizada, criando<br />
festivais de música contemporânea, como bem atesta<br />
o artigo “Os Eventos para Divulgação da Música<br />
Contemporânea no Brasil”, do compositor Eduardo<br />
Guimarães Álvares.<br />
Finalmente, chegamos ao século XXI, aos<br />
compositores hoje atuantes e suas diretrizes para<br />
a fixação de suas linguagens e participações no mundo<br />
musical brasileiro bem como as relações com as demais<br />
produções ao redor do planeta. Para abordar esse tema<br />
1. PERPÉTUO, Irineu. Revista eletrônica. São Paulo: Imagem, 2000.<br />
2. Se num momento fomos colônia portuguesa, não havendo<br />
ainda, como em qualquer outra parte no mundo, um<br />
questionamento e definições de cultura nacional, hoje vemos que<br />
aquele momento pertenceu a um universo cultural luso que aos<br />
poucos foi adquirindo características singulares que poderiam<br />
diferenciar-nos em alguns aspectos da metrópole, mesmo que<br />
essa intenção não fosse proposital. É lícito dizer que a produção<br />
de música sacra no Brasil do período colonial, sobretudo no<br />
século XVIII, tem características que a diferenciam da praticada<br />
em Portugal, mesmo que sutis. Isso se dá da mesma forma como<br />
ao dizer que a produção de ópera italiana nos países germânicos<br />
por compositores também germânicos possam ter singularidades<br />
em relação à dos italianos natos, sem deixar de ser ópera italiana<br />
e ao mesmo tempo germânica. Essa ainda é uma discussão<br />
polêmica, mas que abre caminho para vários questionamentos<br />
sobre os conceitos de estilos nacionais. Baseado nesse mesmo<br />
princípio, ainda que bastante criticado pelo pensamento<br />
nacionalista, a música de características estritamente européias<br />
escrita por brasileiros – principalmente se escrita antes do<br />
surgimento dessa noção de nacionalismo cultural – pode conter<br />
elementos provindos da adaptação dessa linguagem musical<br />
Mais recentemente, nas últimas<br />
décadas do século XX,<br />
grandes movimentos de música<br />
de vanguarda surgiram de<br />
forma organizada, criando<br />
festivais de música<br />
contemporânea<br />
contamos com artigo “Produção Musical Erudita<br />
no Brasil a partir de 1980 – Pluralidade Estética”,<br />
do atual presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />
Contemporânea, Harry Crowl, que discorre sobre<br />
as principais tendências atuais e os nomes mais<br />
representativos e atuantes desde a década de 1980<br />
até os dias de hoje.<br />
à realidade local, tornando-se também brasileira.<br />
Com esse princípio, tais adaptação e transformação são<br />
de grande valia para a compreensão da formação de uma cultura<br />
e produção musicais brasileiras, sem que necessariamente se<br />
procure encontrar características “brasileiras” tais como muitas<br />
vezes forjadas durante o auge do pensamento nacionalista. Do<br />
mesmo modo, em relação àquela que faz a quase totalidade da<br />
produção musical do Brasil colônia, a música sacra do rito<br />
católico é uma música de linguagem efetivamente européia,<br />
tipicamente italiana como praticamente em todo o Ocidente, mas<br />
que contém sua importância e singularidades em como essa<br />
linguagem foi aqui absorvida e sutilmente transformada.<br />
Para não alongar essa discussão, citamos ainda um interessante<br />
exemplo de como a circulação da produção musical vinda da<br />
metrópole se adaptou ao gosto e possibilidades locais. Chamamos<br />
a atenção para a tradição de representações de óperas barrocas<br />
portuguesas – de linguagem musical italiana – na então longínqua<br />
Pirenópolis, no sertão da província de Goiás, situada no coração do<br />
continente sul-americano. Essas óperas foram constantemente<br />
representadas e até adaptadas por várias gerações, assim como<br />
várias óperas de autores italianos que foram adaptadas para a<br />
língua portuguesa para serem compreendidas pela população local.<br />
RICARDO BERNARDES<br />
Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />
Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />
11
14<br />
Música<br />
e sociedade<br />
no Brasil<br />
colonial<br />
ROGÉRIO BUDASZ<br />
Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra<br />
na Festa de Reis. Aquarela colorida<br />
do livro “Riscos illuminados de figurinos<br />
de brancos e negros dos uzos<br />
do Rio de Janeiro e Serro Frio”.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
Sem levar em conta alguns casos isolados de portugueses<br />
e franceses fixando-se na costa brasileira, por livre<br />
vontade ou não, durante as primeiras décadas do século<br />
XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa<br />
região por europeus e seus descendentes tiveram início<br />
apenas na década de 1530. Missionários religiosos<br />
também começaram a se estabelecer nessa época,<br />
sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus,<br />
que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo<br />
da costa brasileira.<br />
O povoamento da costa brasileira nos dois<br />
primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses<br />
foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil<br />
e da cana-de-açúcar, esse último marcando também<br />
o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram<br />
invariavelmente homens que estabeleciam<br />
propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se<br />
com as nativas, originando um novo tipo étnico,<br />
o mameluco, que se tornaria o principal responsável<br />
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi<br />
marcada por iniciativas e regulamentações<br />
contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda<br />
de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma<br />
identidade brasileira por proibir o surgimento de casas<br />
impressoras, periódicos e universidades.<br />
Para o colono, a única forma de literatura era<br />
muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos<br />
romances populares ibéricos de teor histórico ou<br />
moral. Muitos desses romances, geralmente cantados<br />
sobre melodias simples para não dificultar<br />
a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até<br />
hoje na tradição popular tanto em Portugal como<br />
no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses<br />
quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,<br />
A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.<br />
Além desses, o repertório musical dos primeiros<br />
colonos e seus descendentes incluiria também cantos<br />
de trabalho para acompanhar ações rotineiras,<br />
15
16<br />
acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi.<br />
A primeira geração de brasileiros crescia, assim,<br />
ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados<br />
e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada<br />
pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse<br />
pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua<br />
associação com os cultos nativos, algumas daquelas<br />
cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram<br />
os missionários, induzindo-os a comporem versões<br />
pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre<br />
nessa transmutação e ensinava também as doutrinas,<br />
orações e hinos católicos no idioma tupi.<br />
Fora do contexto missionário, também eram<br />
comuns as bandas de corporações militares ou de<br />
escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados<br />
como aparato de ostentação e demonstração de poder,<br />
ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos<br />
clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas<br />
pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas,<br />
como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa<br />
Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo<br />
alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros.<br />
Para o acompanhamento costumavam ser usados<br />
tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos<br />
e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto<br />
instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica,<br />
quanto instrumentos de bocal, como as cornetas,<br />
sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas<br />
e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos,<br />
tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas,<br />
numa tradição que remonta aos segréis<br />
da Idade Média.<br />
Tais festas e procissões, tal qual em Portugal,<br />
muitas vezes funcionavam como pretexto para<br />
a socialização e diversão, como satirizaria o poeta<br />
Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,<br />
a despeito de várias regulamentações repressoras e das<br />
opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre<br />
escravos era geralmente tolerado “para evitar males<br />
maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças<br />
também dificultava a identificação étnica de escravos<br />
de várias nações e crenças, diminuindo o perigo<br />
de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era<br />
insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso<br />
até o início do século XX —, o que não parece jamais<br />
ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não<br />
só as descrições de viajantes como também o fato<br />
de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos<br />
séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos<br />
e escravos nas festas.<br />
Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,<br />
nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir<br />
em miniatura o estabelecimento musical português.<br />
Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais<br />
que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo<br />
em que moldavam novas maneiras de fazer e usar<br />
a música: se Portugal era pequeno e densamente<br />
povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois<br />
sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis<br />
certas práticas musicais e inúteis outras.<br />
<strong>MÚSICA</strong> NO ESPAÇO DOMÉSTICO<br />
A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro<br />
século da colonização formava-se ao redor de alguns<br />
fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,<br />
o grosso da população habitava as propriedades rurais,<br />
que cresceram muito — em número e tamanho — nas<br />
últimas décadas do século XVI, passando<br />
a especializar-se no cultivo da cana de açúcar<br />
e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,<br />
assim como no cultivo da mandioca e na produção<br />
da farinha.<br />
Distante dos centros urbanos — numa época em<br />
que eram poucos os que se destacavam —, o engenho<br />
ficava assim definido como a principal unidade de<br />
produção e povoamento, enquanto a Casa Grande<br />
era o seu centro administrativo e religioso, na verdade<br />
o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida
a educação civil e religiosa, bem<br />
como os encontros sociais, por<br />
ocasião de batizados, de casamentos,<br />
e da hospedagem de visitantes.<br />
Nesse contexto, a música era<br />
cultivada como auxiliar no fluir<br />
das atividades sociais, como<br />
passatempo na intimidade<br />
do lar, acompanhando momentos<br />
de devoção religiosa ou como<br />
demonstração de civilidade e poder<br />
para os olhos e ouvidos externos.<br />
E era por isso que a prática musical também fazia<br />
parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor<br />
de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas<br />
diferentes, teriam os músicos escravos — cantores<br />
e charameleiros — que participariam do aparato<br />
de propaganda e demonstração de poder do senhor<br />
de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas<br />
e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.<br />
Os primeiros que se dedicaram ao ensino<br />
da música foram os missionários, que, a princípio,<br />
concentravam-se nos nativos e usavam a música como<br />
instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois<br />
deles, representando oficialmente o estabelecimento<br />
musical da Igreja, aparecem os mestres de capela,<br />
enviados de Portugal para organizar a atividade<br />
musical de determinada região mas que também<br />
exerciam a função de instrutores da arte da música<br />
para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam<br />
a exercer essa função, embora de forma limitada,<br />
os cantores e instrumentistas mais destacados<br />
dentre os índios, negros e mulatos instruídos<br />
na música européia pelos missionários e mestres<br />
de capela, com o objetivo principal de interpretarem<br />
Alexadre Rodrigues Ferreira.<br />
Desenho aquarelado.<br />
Viola que tocam os pretos.<br />
Desenho aquarelado do livro<br />
Viagem filosófica às Capitanias<br />
do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO<br />
DE ICONOGRAFIA<br />
as composições por eles preparadas.<br />
Evidentemente, o filho de um senhor de engenho<br />
não entraria numa relação mestre-aprendiz com o<br />
mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta<br />
dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou<br />
seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último<br />
caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira<br />
mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não<br />
profissional era bastante comum entre a aristocracia e<br />
burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários<br />
nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se<br />
compositores competentes.<br />
Sendo o profissionalismo musical indicativo de<br />
baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da<br />
quase inexistência de compositores brancos nas Minas<br />
Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses<br />
enviados com a expressa finalidade de servirem como<br />
mestres-de-capela), numa época em que, após a<br />
descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros<br />
urbanos no interior da colônia, multiplicando-se<br />
também as oportunidades de trabalho de cantores,<br />
instrumentistas e compositores.<br />
Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII<br />
e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo<br />
musical, o diletantismo na música era qualidade<br />
apreciável. A habilidade como compositor é colocada<br />
por historiógrafos e bibliógrafos portugueses<br />
e brasileiros em pé de igualdade com a produção<br />
literária, e a proficiência na execução à viola<br />
ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução<br />
nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários<br />
17
18<br />
da época comprovam que o mobiliário das casas<br />
grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além<br />
de dispor de aposentos usados como escolas, onde<br />
os filhos eram instruídos em aritmética, gramática,<br />
retórica, religião e música.<br />
Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de<br />
Almeida Prado menciona, entre a aristocracia<br />
paulistana de séculos passados, além de harpistas<br />
e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores<br />
de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger<br />
viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para<br />
o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues<br />
Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo”<br />
na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi<br />
convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides<br />
a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu<br />
filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando<br />
das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais<br />
não poderiam ser utilizados como forma permanente<br />
de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo<br />
da música como profissão ou como “elemento de<br />
civilidade”, usando a expressão da época. À época<br />
do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se<br />
desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna<br />
paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto<br />
buscava formas mais nobres de aquisição de capital,<br />
seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso<br />
brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois,<br />
Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se<br />
com a filha de um latifundiário.<br />
Fora do contexto religioso, além da citação de<br />
Almeida Prado, a harpa aparece também em um<br />
poema de Gregório de Mattos, animando uma festa.<br />
Mesmo utilizada como principal acompanhante das<br />
funções religiosas pelo interior do Brasil até as<br />
primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece<br />
ter-se difundido muito como instrumento doméstico.<br />
Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função<br />
em larga escala, permanecendo neste papel a viola<br />
até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.<br />
Principal acompanhador dos romances, cantigas,<br />
tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música<br />
solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade<br />
incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam<br />
um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra<br />
renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha<br />
como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens<br />
(muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último<br />
instrumento originaria mais tarde a viola caipira<br />
brasileira, as diversas violas regionais portuguesas,<br />
e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores<br />
que se especializaram na viola de cinco ordens, como<br />
Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho<br />
e João de Lima aparecem com destaque na obra de<br />
Domingos do Loreto Couto, historiógrafo<br />
pernambucano do século XVIII.<br />
Além de chantre da catedral de Salvador por<br />
vários anos, João de Lima — conhecido do poeta<br />
Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,<br />
deixando obras de música sacra e profana<br />
e dominando a execução musical em vários<br />
instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou<br />
vários anos em Portugal, protegido do patriarca<br />
de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto<br />
atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria<br />
composto “sonatas e tocatas tanto para viola como<br />
para cravo”, além de música de salão, como<br />
minuetes e tonos.<br />
Forma de canção erudita bastante difundida na<br />
Península Ibérica e América Latina, o tono humano<br />
geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica<br />
com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas<br />
contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral<br />
da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,<br />
talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo<br />
português Antônio Marques Lésbio, com<br />
acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça<br />
Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos
de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos<br />
novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson<br />
Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto<br />
a se esta peça é um tono humano, como sugerido<br />
por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme<br />
estudo de Paulo Castagna.<br />
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência<br />
de peças compostas por aqueles violistas<br />
pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia<br />
bastante aproximada do que tocavam, através das<br />
fontes portuguesas do início do século XVIII, para<br />
a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão<br />
para a formação do instrumentista luso-brasileiro<br />
daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas<br />
e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão,<br />
o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas<br />
fantasias e rojões.<br />
É importante lembrar que o repertório popular<br />
ibérico e latino-americano era muito menos<br />
heterogêneo no século XVII do que em nossos dias.<br />
Portugal havia reconquistado sua independência da<br />
Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante<br />
a infância e juventude de Gregório de Mattos, os<br />
elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas<br />
começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no<br />
Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol,<br />
e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram<br />
representadas em Salvador, autores brasileiros também<br />
escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente,<br />
a música desse período também pareceria a nossos<br />
ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma<br />
influência nacional específica do que da evidência de<br />
um estilo compartilhado e generalizado por toda<br />
a Península Ibérica e América Latina, como o atestam,<br />
por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar<br />
Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como<br />
o repertório português para viola e teclado.<br />
Na ausência de documentos musicais, uma ótima<br />
fonte de informações sobre a música não-religiosa<br />
tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética<br />
de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever<br />
funções musicais e teatrais, de mencionar<br />
instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais<br />
comuns tanto em Portugal como na Espanha e América<br />
Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis<br />
como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em<br />
outros casos, Mattos usa modas profanas em português,<br />
ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”<br />
cantavam. Religiosos e moralistas continuavam<br />
encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre<br />
a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo<br />
aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta<br />
Pereira, era exímio tocador de viola.<br />
Na segunda metade do século XVIII, o repertório<br />
musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um<br />
lado, o de danças afrancesadas como o minuete<br />
e a contradança — as principais coreografias de salão no<br />
Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as<br />
canções simples — as modas — agora influenciadas pelo<br />
estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com<br />
melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,<br />
despretensiosamente denominadas “modinhas”.<br />
Se a princípio estas apresentavam uma temática<br />
pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,<br />
o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto<br />
afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos<br />
ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto<br />
escandalizou viajantes do norte da Europa —<br />
originando assim a modinha brasileira, que acabaria<br />
voltando para Portugal nas obras de poetas<br />
e compositores como Domingos Caldas Barbosa<br />
e Joaquim Manuel da Câmara.<br />
Felizmente, foi preservada muita música desse<br />
período, sendo notáveis as peças coletadas pelos<br />
viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas<br />
brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda<br />
e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças<br />
instrumentais contidas no livro de saltério<br />
de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início<br />
19
20<br />
do século XIX. Há ainda uma única peça para<br />
teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará,<br />
cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas.<br />
Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos<br />
de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda<br />
década do século XIX, nos dão uma idéia<br />
do estiloda música de câmara para cordas<br />
composta nos últimos tempos do Brasil-colônia.<br />
DISCOGRAFIA<br />
Romances Populares:<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta<br />
DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.<br />
Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta<br />
José de Anchieta:<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero<br />
A <strong>MÚSICA</strong> NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6: Venid a sospirar<br />
con Jesu amado (Companhia Papagalia)<br />
Marinícolas:<br />
HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixa 2<br />
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron<br />
Discos; faixa 12<br />
Matais de Incêndios:<br />
HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixa 36<br />
A <strong>MÚSICA</strong> NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura<br />
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)<br />
Sonata ‘Sabará’:<br />
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod.<br />
independente, faixa 5<br />
Modinhas:<br />
MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />
Nogueira. Estúdio Eldorado.<br />
MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais<br />
e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração;<br />
faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que<br />
tem?<br />
Coleção de Spix e Martius:<br />
VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela<br />
Nogueira. Estúdio Eldorado<br />
Recitativo e Ária:<br />
HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong>: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.<br />
Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12<br />
Duetos concertantes:<br />
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester<br />
Brandão, Koiti Watanabe. Paulus<br />
CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS<br />
Uma espécie de teatro moral com intervenções<br />
musicais já se encontra presente no primeiro século<br />
da colonização, nos autos preparados por José<br />
de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como<br />
na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico<br />
era óbvia, e os números musicais cumpriam a função<br />
de tornar mais atraente a mensagem de submissão<br />
à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse<br />
teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial<br />
os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves<br />
e cômicos com danças, canções e romances populares.<br />
Nos séculos seguintes, os modelos passariam<br />
a ser Lope de Vega e Calderón.<br />
São bastante numerosos os relatos sobre<br />
a representação de comédias musicadas nas casas<br />
abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como<br />
aquelas para as quais o pernambucano Antônio da<br />
Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase<br />
certo que tais comédias — a grande maioria escrita em<br />
idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de<br />
Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros<br />
e alguns recitados alternando com diálogos falados.<br />
Durante o século XVII, não se tem notícia na<br />
colônia da apresentação de óperas no sentido moderno<br />
do termo, ou seja, a encenação de um enredo<br />
integralmente posto em música. Mesmo no século<br />
XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da<br />
Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,<br />
não era incomum encenarem-se libretos operísticos<br />
sem qualquer emprego da música, funções que eram<br />
mesmo assim denominadas “óperas”.<br />
Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas<br />
acepções — desde cedo explorados no Brasil como<br />
instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam<br />
a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas<br />
especificamente destinadas à representação de dramas,<br />
comédias e entremezes em música — as casas de ópera<br />
— que visavam promover uma educação cívica paralela<br />
à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século<br />
XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,<br />
além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo<br />
as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha<br />
de povoamento do interior que se sucede à descoberta
do ouro, encontramos casas de ópera em várias<br />
localidades das Minas Gerais, de Goiás<br />
e tão longe quanto em Cuiabá, no centro<br />
geográfico da América do Sul.<br />
O repertório das casas de ópera no século XVIII<br />
e boa parte do XIX incluía principalmente dramas<br />
de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata,<br />
que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam<br />
o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas<br />
usando de disciplina quando necessário. Os libretos<br />
escolhidos eram bastante convenientes para<br />
a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente<br />
identificaria o herói com o soberano português.<br />
Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha<br />
compilado uma lista impressionante de óperas<br />
representadas no Brasil durante o século XVIII,<br />
apenas algumas páginas de partituras sobreviveram,<br />
impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição.<br />
Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza<br />
Queiroz a música de cena para uma peça teatral<br />
de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta<br />
no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns<br />
números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa<br />
de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser<br />
realizada sobre as óperas de autores europeus —<br />
Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para<br />
citar os mais importantes — representadas em casas<br />
de ópera brasileiras.<br />
Por volta do final do século XVIII, devido<br />
à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as<br />
casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas<br />
mais e mais como espaços daqueles que podem pagar<br />
e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um<br />
lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores<br />
e instrumentistas sempre foram na sua maior parte<br />
mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida<br />
ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais<br />
informal, pelos diretores musicais dos regimentos<br />
militares ou das bandas de músicos dos engenhos<br />
e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem<br />
além da casa de ópera local, como foi o caso da<br />
cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,<br />
que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.<br />
Não se colocando na posição subserviente de<br />
músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam<br />
restritas possibilidades de demonstração de suas<br />
habilidades performáticas, fossem elas de poeta,<br />
intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço<br />
doméstico, havia a academia, um misto de clube<br />
literário e sociedade secreta que se difundiria pelos<br />
principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda<br />
metade do século XVIII. É no contexto das academias,<br />
ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os<br />
de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois<br />
musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília<br />
de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador<br />
da modinha brasileira), e de obras como a cantata<br />
Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como<br />
Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta<br />
em Salvador em 1759.<br />
Não sobreviveu até nossos dias o repertório<br />
de música de câmara que talvez fizesse parte das<br />
reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam<br />
instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos<br />
de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,<br />
comprovando a prática da música de câmara européia<br />
no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,<br />
sobre um mineiro que intercepta os viajantes<br />
no interior da mata e os convida a irem à sua casa,<br />
onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo<br />
anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.<br />
ROGÉRIO BUDASZ<br />
Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo<br />
e professor da Universidade Federal do Paraná.<br />
21
22<br />
A música no<br />
Brasil Colonial<br />
anterior à<br />
chegada da<br />
Corte de<br />
D. João VI<br />
HARRY CROWL
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS<br />
ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA <strong>MÚSICA</strong> PRODUZIDA<br />
NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA, TÊM APONTADO<br />
SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE<br />
IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A <strong>MÚSICA</strong><br />
PRODUZIDA EM TERRAS <strong>BRASILEIRA</strong>S EM PERÍODO<br />
ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.<br />
ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR<br />
PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE<br />
E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.<br />
23
Oconjunto da produção musical encontrado na capitaniageral<br />
das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,<br />
tornou-se a referência mais antiga da produção musical<br />
artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos<br />
isolados de manuscritos encontrados em outras regiões<br />
do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro<br />
grande conjunto de obras musicais disponíveis para<br />
o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado<br />
sobre a expressão musical no país.<br />
Apesar do deslocamento do eixo econômico para<br />
a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da<br />
Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />
Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes<br />
na década de 1980 apontam para as práticas<br />
polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII,<br />
somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia,<br />
Salvador, como ponto de partida para qualquer<br />
consideração que queiramos fazer sobre a música<br />
exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior<br />
à independência política. Sendo a região por onde<br />
iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa<br />
época uma sociedade já relativamente sedimentada,<br />
se comparada com as demais regiões da Colônia.<br />
Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco<br />
como a segunda região mais importante do ponto<br />
de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido,<br />
o achado mais importante até agora é uma obra<br />
de caráter profano, anônima, composta em 1759,<br />
denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para<br />
soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de<br />
2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco<br />
Pereira de Mello, um importante magistrado da<br />
“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça<br />
de Portugal, na época. Essa composição, que está<br />
baseada num texto vernáculo, também de autoria<br />
desconhecida, é uma laudatória em homenagem<br />
ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia<br />
Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual<br />
semelhante à “Arcádia Romana”. O referido<br />
magistrado estava recém-restabelecido de uma longa<br />
enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária<br />
foi composto especialmente para recebê-lo numa<br />
das reuniões da “Academia”.<br />
24<br />
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares<br />
Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e<br />
professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde<br />
estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da<br />
catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.<br />
Na época em que viveu na capital portuguesa, ele<br />
compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia<br />
cópias de música e dava aulas em casas de nobres.<br />
Na relação de músicos portugueses publicada por<br />
José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre<br />
esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural<br />
de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,<br />
muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;<br />
acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio<br />
a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da<br />
Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto<br />
principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas<br />
exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro<br />
a quatro coros, e ainda em composições profanas tem<br />
escrito com muito aserto” (sic).<br />
Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,<br />
profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu<br />
a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se<br />
na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável<br />
pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.<br />
L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente<br />
de capitão do regimento de milícia confirmada<br />
também em 1766.<br />
Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros<br />
comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em<br />
três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.<br />
Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja<br />
de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função<br />
de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde<br />
1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.<br />
De suas poucas composições que alcançaram<br />
os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,<br />
cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três<br />
vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta<br />
ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da<br />
Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino<br />
a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,<br />
matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,<br />
novenas, ladainhas e sonatas.
Apesar do deslocamento do eixo econômico<br />
para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais<br />
da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências<br />
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.<br />
Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor<br />
nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar<br />
em Lisboa — de acordo com a documentação<br />
conhecida até o momento —, por outro lado,<br />
o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 —<br />
São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela<br />
metrópole, no século XVIII, para ocupar a função<br />
de mestre-de-capela numa vila importante da colônia.<br />
Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que<br />
foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 —<br />
1801?), compositor português aluno do napolitano<br />
David Perez (1711 — 1778), importante músico que<br />
sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras<br />
foram amplamente difundidas inclusive no Brasil.<br />
André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e<br />
veio para o Brasil em março de 1774. Assim que<br />
chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestrede-capela<br />
da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto<br />
ocupante da função. Suas atividades foram intensas,<br />
pois, ao que parece, havia uma necessidade<br />
de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde<br />
sua chegada até 1801, foi também o responsável pela<br />
música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.<br />
Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre<br />
eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi<br />
o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado<br />
em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo<br />
de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário<br />
de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.<br />
Como já acontecia nas demais partes da colônia,<br />
o compositor precisou atuar em outras profissões para<br />
poder sobreviver. Após requerer algumas funções que<br />
lhe permitiriam independência econômica em relação<br />
à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,<br />
em 1797, para o cargo de professor régio de gramática<br />
latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por<br />
D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.<br />
André da Silva Gomes abandonou todos os serviços<br />
J. J. Emerico Lobo<br />
de Mesquita.<br />
Tércio (1783).<br />
Fotografia<br />
do original<br />
autógrafo.<br />
FUNARTE<br />
25
26<br />
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão<br />
em benefício da capela de música da catedral, que não<br />
deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras<br />
composições de A. da Silva Gomes, datadas e<br />
assinadas, remontam ao ano de sua chegada<br />
a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas<br />
aqui por ele, existem diversas obras de compositores<br />
portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs<br />
mais de uma centena de obras. Muitas delas foram<br />
recopiadas posteriormente por outros, sem que se<br />
transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições<br />
mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos<br />
e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma<br />
Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na<br />
Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que<br />
parece, uma adaptação de outra obra bem anterior.<br />
No último quartel do século XVIII aparece ainda<br />
o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-decapela<br />
na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de<br />
nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador,<br />
e é também o primeiro compositor a atuar na região<br />
do qual encontramos exemplos musicais concretos.<br />
Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766,<br />
Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação<br />
musical no Seminário Patriarcal em Lisboa,<br />
provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos<br />
Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde<br />
assumiria a função de mestre-de-capela, com<br />
o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como<br />
ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo.<br />
A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter<br />
gozado de considerável reputação em toda a região,<br />
pois sua única composição encontrada no Brasil até<br />
o momento, os Motetos para os passos da Procissão do<br />
Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada<br />
em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção<br />
de música para a Semana Santa, anônima, proveniente<br />
de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição<br />
por Alexandre Bispo.<br />
<strong>MÚSICA</strong> NAS MINAS GERAIS<br />
O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim<br />
como o próprio afastamento geográfico da região da<br />
Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a<br />
organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa<br />
parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,<br />
assim, de critérios específicos para sua avaliação.<br />
A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios<br />
para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir<br />
de 1696, a grande movimentação humana em direção<br />
ao interior do continente fez com que as autoridades<br />
portuguesas regulamentassem a ocupação dessas<br />
regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,<br />
a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens<br />
monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido<br />
ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica<br />
formavam uma espécie de unidade corporativa desde<br />
o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros<br />
e conventos era uma realidade aparentemente<br />
irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que<br />
a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela<br />
também possibilitava o contrabando de ouro e pedras<br />
preciosas diante das autoridades civis, sem que essas<br />
pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,<br />
muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,<br />
determinou-se que toda a vida religiosa na região<br />
das minas fosse organizada por ordens leigas,<br />
ou irmandades formadas por homens comuns,<br />
que deveriam contratar todos os serviços relativos<br />
ao “bom desempenho das funções religiosas”.<br />
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado<br />
pelos portugueses para não haver distinção entre<br />
negros forros, mulatos ou mesmo brancos<br />
nativos sem posses ou posição social.
Essas irmandades eram denominadas também<br />
como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,<br />
de acordo com sua importância na comunidade.<br />
Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,<br />
pardos ou negros. O Estado colonial incentivava<br />
a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam<br />
de desde a construção da igreja até a contratação<br />
de artistas para a realização da decoração interna,<br />
talha, escultura e pintura, assim como a contratação<br />
de músicos para a criação e interpretação da música<br />
que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte<br />
dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”,<br />
ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros.<br />
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos<br />
portugueses para não haver distinção entre negros<br />
forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses<br />
ou posição social.<br />
A informação mais antiga que temos a respeito<br />
de um compositor ou regente ou organista, na antiga<br />
Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu<br />
a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual<br />
de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e<br />
despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na<br />
primeira metade do século XVIII, encontramos os<br />
nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza<br />
Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio<br />
do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias<br />
relativas à música em Minas no século XVIII estão<br />
restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas<br />
das irmandades. Não há registros de nomeações<br />
ou informações impressas sobre os compositores, pois<br />
a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-decapela<br />
era um privilégio das sedes de bispado, portanto<br />
somente a vila de Mariana contava com nomeações<br />
para essa função. Nas demais vilas encontramos<br />
a denominação de “responsável pela música”, o que<br />
não implicava um cargo permanente, pois um músico<br />
responsável pelo serviço em um ano determinado<br />
poderia ser substituído no ano seguinte.<br />
A documentação musical propriamente dita<br />
encontrada até o momento concentra-se numa<br />
produção posterior a 1770. Na condição de capital<br />
da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local<br />
de atividade mais intensa durante o período de final<br />
Luís Álvares<br />
de Azevedo Pinto.<br />
Te Deum Laudamus.<br />
Secretaria<br />
de Educação<br />
e Cultura de<br />
Pernambuco, 1968.<br />
Restauração<br />
do Padre Jaime Diniz.<br />
FUNARTE<br />
do século XVIII até por volta de 1850.<br />
O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente<br />
conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).<br />
A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso<br />
na Irmandade de São José dos Homens Pardos,<br />
em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como<br />
regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões<br />
até 1793, atuante em quase todas as Irmandades<br />
e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos<br />
apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:<br />
o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve<br />
Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.<br />
Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa<br />
de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição<br />
sobre texto vernáculo em português. É a única<br />
do gênero encontrada até agora no Brasil. No período<br />
em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros<br />
músicos importantes foram seus colegas no conjunto<br />
vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio<br />
José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que<br />
esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos<br />
por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois<br />
tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer<br />
indicação de como esses músicos que viveram na<br />
região das minas aprenderam a arte da solfa. Não<br />
há menção em qualquer documento da existência<br />
de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais<br />
razoável seria a de que eles se desenvolveram num<br />
processo de iniciação que seguia o modelo de relação<br />
mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,<br />
27
28<br />
DISCOGRAFIA<br />
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />
MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT<br />
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA<br />
Negro Spirituals au Brésil Baroque<br />
Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França<br />
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM<br />
Camerata Antiqua de Curitiba<br />
Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil<br />
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES:<br />
ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes.<br />
AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil<br />
ANDRÉ DA SILVA GOMES:<br />
MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS<br />
Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 14º Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
VENI SANCTE SPIRITU<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes<br />
AMERICANTIGA, Vol. I PLCD51837 - Brasil<br />
JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:<br />
MISSA EM MI BEMOL MAIOR<br />
Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 12º Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA<br />
Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música<br />
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora<br />
Direção: Luís Otávio Santos<br />
CD 11o.Festival - PRÓ-<strong>MÚSICA</strong>/ Juiz de Fora, MG - Brasil<br />
MATINAS DE SÁBADO SANTO<br />
Calíope<br />
Direção: Júlio Moretzsohn<br />
Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -<br />
Brasil<br />
MISSA PARA 4 a FEIRA DE CINZAS<br />
Calíope<br />
Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil<br />
PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO:<br />
MATINAS DE NATAL<br />
Coral Porto Alegre e Orquestra<br />
Regência: Ernani Aguiar<br />
CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,<br />
RS - Brasil<br />
como já pode ser constatado.<br />
Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou<br />
na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa<br />
Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,<br />
em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos<br />
homens Pardos, em junho de 1768.<br />
Em todas essas confrarias, ocupou cargos<br />
importantes, como o de escrivão e tesoureiro.<br />
Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras<br />
festividades, durante longo período da segunda metade<br />
do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de<br />
linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo<br />
recenseamento consta que Gomes da Rocha contava<br />
com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,<br />
nascido em 1754. De sua produção, conhecemos<br />
apenas uma parte mínima, que são as obras<br />
Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I<br />
e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,<br />
de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola<br />
e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para<br />
2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo<br />
contínuo. Há ainda uma obra incompleta,<br />
as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.<br />
Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi<br />
regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento<br />
de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado<br />
com a contratação para a realização do serviço anual<br />
das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.<br />
Em 1770, entrou para a Irmandade de São José<br />
dos Homens Pardos, que lhe registrou<br />
o falecimento em 10/06/1820.<br />
Outros três compositores de Vila Rica que<br />
mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—<br />
1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)<br />
e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,<br />
1794 — Mariana, 1832).<br />
Coelho Neto, que era trompista, clarinista<br />
(trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além<br />
de compositor e regente, exerceu ainda, segundo<br />
documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro<br />
Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de<br />
alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral<br />
Luís da Cunha Menezes para reger a música de três<br />
óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte<br />
da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação<br />
do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão<br />
Arp Schnitger mais importante fora da Europa.<br />
do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória.<br />
Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica,<br />
o compositor declara contar com 58 anos, tendo<br />
nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar<br />
o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina<br />
de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada<br />
em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas.<br />
Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto,<br />
foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento.<br />
Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823.<br />
Acreditamos que as obras que levam o nome<br />
de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois<br />
apresentam características formais muito semelhantes<br />
entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando<br />
o hino Maria Mater Gratiae foi composto.<br />
Jerônimo de Souza Queiroz foi organista<br />
e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza<br />
Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra.<br />
Seu nome tem sido freqüentemente confundido com<br />
o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um<br />
importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou<br />
na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre<br />
1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo<br />
a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data<br />
exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o<br />
seu nome aparecido em qualquer referência após 1826.<br />
De sua obra, dispomos hoje de uma coleção<br />
aproximada de 20 manuscritos. Suas composições<br />
mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo<br />
a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae<br />
(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício<br />
de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa).<br />
O último grande compositor ativo em Vila Rica<br />
foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo<br />
(1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical<br />
do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome<br />
aparece como o responsável pela regência da<br />
temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,<br />
atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,<br />
alternadamente, a partir de 1819, com sua formação<br />
sacerdotal no Seminário de Mariana, que se<br />
completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante<br />
jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos<br />
compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo<br />
obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes<br />
quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou<br />
variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,<br />
que é o único exemplar de música puramente<br />
instrumental encontrado em Minas pelo autor<br />
do presente texto.<br />
Suas principais composições são: Missa e Credo<br />
a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas<br />
de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum<br />
(1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).<br />
O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos<br />
de idade, em 1832.<br />
Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como<br />
sede do bispado, foi um centro musical de grande<br />
importância, sendo que a função de mestre-de-capela<br />
foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.<br />
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana<br />
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,<br />
no norte da Alemanha, originalmente para servir<br />
em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei<br />
ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp<br />
Schnitger mais importante fora da Europa.<br />
29
30<br />
Outro compositor importante que provavelmente<br />
atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão,<br />
procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras<br />
encontram-se em manuscritos, no Museu da Música<br />
de Mariana.<br />
Da avaliação que se pode fazer até o momento<br />
da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora<br />
da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará,<br />
percebemos que a produção musical de lá foi<br />
igualmente intensa, porém a perda da documentação<br />
musical foi ainda maior que em outros lugares.<br />
Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em<br />
Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos<br />
(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis<br />
Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece<br />
exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP,<br />
em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está<br />
bem próxima da dos demais compositores.<br />
As Vilas de São José e São João del-Rei<br />
desempenharam também um importante papel na<br />
produção musical do período. O compositor de maior<br />
destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias<br />
de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse<br />
compositor jamais atuou fora de sua região, onde<br />
foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José<br />
del-Rei (atual Tiradentes).<br />
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa<br />
parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.<br />
Em São João del-Rei, os compositores mais<br />
importantes são Antônio dos Santos Cunha,<br />
Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco<br />
Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José<br />
Fernandes Braziel.<br />
Santos Cunha representa, juntamente como<br />
Pe. João de Deus, o início das influências românticas<br />
na música produzida na região das minas. Esse<br />
compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;<br />
ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.<br />
A primeira notícia escrita de atividade musical<br />
em São João del-Rei data de 1717, quando o<br />
Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro<br />
de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma<br />
visita à antiga vila.<br />
O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata<br />
minuciosamente a recepção, descrevendo desde<br />
a marcha de entrada da comitiva na vila até a<br />
solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música<br />
organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja<br />
foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo<br />
o clero e música”, o que provavelmente indica uma<br />
forma alternada de canto em polifonia com os padres<br />
cantando um verso gregoriano e o conjunto musical<br />
respondendo com um verso musical, tal como se faz,<br />
ainda hoje, na cidade.<br />
Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo<br />
responsabiliza-se pela parte musical de importantes<br />
festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na<br />
solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos<br />
depois, organizou a música para a festa de São João<br />
Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em<br />
1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes<br />
Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser<br />
o compositor mais antigo do qual conhecemos algum<br />
exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:<br />
Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou<br />
em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que<br />
o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante<br />
ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos<br />
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias<br />
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes<br />
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida<br />
boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
compositores mineiros da época. João José das Chagas<br />
e Francisco Martiniano de Paula Miranda são<br />
compositores também representativos da música<br />
do início do século XIX.<br />
Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece<br />
o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles<br />
como músico. Em época ignorada, esse compositor<br />
transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade<br />
(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga<br />
que temos é uma página de rosto existente no Museu<br />
da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona<br />
de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida.<br />
Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona<br />
Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas<br />
são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira<br />
de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira<br />
“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas.<br />
Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange,<br />
em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu<br />
ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte,<br />
a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815.<br />
Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto,<br />
uma Trezena de Santo Antônio e um Domine<br />
ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles.<br />
Outro importante compositor é Joaquim de Paula<br />
Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma<br />
Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região<br />
diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro<br />
do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual<br />
Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo<br />
de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha<br />
(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo<br />
(século XVIII/XIX).<br />
Lobo de Mesquita atuou como organista<br />
e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775,<br />
quando se transferiu por motivos desconhecidos para<br />
o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que<br />
conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas,<br />
de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão<br />
(baixo contínuo), o que mostra que o compositor,<br />
muito provavelmente, já atuava como organista<br />
nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um<br />
Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.<br />
Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial<br />
do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se<br />
em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com<br />
a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração<br />
para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona<br />
Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na<br />
Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.<br />
A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas<br />
missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio<br />
de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor<br />
faleceu em 1805. Como todos os outros compositores<br />
de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.<br />
Algo em torno de 60 manuscritos chegaram<br />
até os nossos dias.<br />
José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do<br />
Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo<br />
estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo<br />
de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco<br />
podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do<br />
Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para<br />
compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807<br />
e 1808, e que seu nome figura numa relação de<br />
músicos da Irmandade de Santa Cecília no período<br />
de 1817 a 1838.<br />
O nome de Alberto Fernandes de Azevedo<br />
aparece no período de 1804−1805 na Capela das<br />
Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,<br />
segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819<br />
foi encarregado de compor a música para cravo para<br />
a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo<br />
Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.<br />
Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:<br />
Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino<br />
I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação<br />
para quatro vozes e baixo.<br />
HARRY CROWL<br />
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.<br />
Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />
31
<strong>MÚSICA</strong> NA CORTE DO BRASIL
Entre<br />
Apolo e Dionísio<br />
Os projetos de transferência da Corte somente se<br />
concretizaram no período em que as incursões<br />
napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal<br />
e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios<br />
do século XIX, diante do medo e das ameaças que<br />
levariam à perda do poder e de partes do território<br />
Na página ao lado: Henrique Bernardelli.<br />
José Maurício tocando para D. João VI.<br />
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL<br />
1808-1821<br />
PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO<br />
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real<br />
e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.<br />
Para alguns se tratava de uma traição; para outros,<br />
estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto<br />
o abandono do povo e do trono, como o único recurso<br />
capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as<br />
ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia<br />
alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para<br />
os perigos de permanência da Corte em Portugal, na<br />
iminência do ataque francês, e para os benefícios que<br />
33
34<br />
essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para<br />
o marquês de Alorna, foi estratégica e importante<br />
a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil,<br />
porque daqui, como um imperador em um vasto<br />
território, os domínios poderiam expandir-se<br />
e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias<br />
espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as<br />
potências da Europa” 1 . As recomendações do marquês<br />
de Alorna não foram novidades nos inícios do século<br />
XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que<br />
os franceses incomodaram a monarquia portuguesa,<br />
e muito menos era nova a aliança com os ingleses.<br />
Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados<br />
de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia<br />
já admitia um projeto de se instalar fora das mediações<br />
de Portugal e se estabelecer em algum lugar<br />
do ultramar. Ou porque temia as interferências dos<br />
estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira<br />
metade do século XVII e na derradeira expansão<br />
napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque<br />
realmente confiavam no potencial econômico<br />
do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante<br />
quatro séculos, retirar-se de Portugal2 . Se pensarmos<br />
como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com<br />
que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha,<br />
a retirada da Família Real para o Brasil era necessária<br />
havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças<br />
de Junot. Não bastava somente uma retirada nem<br />
as lembranças de uma terra promissora, que por direito<br />
de conquista deveria acolher o príncipe e sua família.<br />
Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como<br />
um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia<br />
e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.<br />
Como estratégia política ou como reação que<br />
previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua<br />
mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus<br />
filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por<br />
13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira<br />
mudança foi acolher um número estimado de reinóis<br />
entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já<br />
no plano das perdas e da autoridade, começou nos<br />
despejos. Para toda população que tinha uma das<br />
residências “das mais excelentes”, ou pelo menos<br />
habitável, estaria sujeita, mais por obrigação<br />
que por espontaneidade, a ceder sua residência<br />
aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram<br />
marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas<br />
portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,<br />
para outros, “Ponha-se na Rua” 3 . Com a instalação<br />
da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as<br />
relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.<br />
Spix e Martius mostram que vários países vendiam<br />
produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,<br />
chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,<br />
vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,<br />
móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,<br />
cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,<br />
relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos<br />
da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,<br />
Moçambique, Angola e Bengala4 . O produto interno,<br />
a manufatura e a indústria, que ainda começavam<br />
a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem<br />
em termos de gosto nem em termos de tecnologia<br />
da civilização, com os da Europa. Os hábitos<br />
estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos<br />
cariocas, seja pela observação do outro, seja pela<br />
imitação de seu comportamento.<br />
Durante todo o período joanino, houve no Rio<br />
de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída<br />
basicamente em dois setores, o da Corte, onde<br />
a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,<br />
em que a funcionalidade era festiva e mítica. É<br />
importante pensar nisto, numa complexidade que<br />
surge no momento em que negros e mestiços são<br />
Os músicos diletantes ou<br />
amadores dividiam-se entre<br />
os negros e mestiços, com seus<br />
lundus, modinhas e batuques, e<br />
brancos pobres que normalmente<br />
tinham uma outra ocupação,<br />
que lhes assegurava o sustento.
chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes<br />
com seus instrumentos típicos e com suas próprias<br />
interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros<br />
artífices para algum trabalho ou para abrilhantar<br />
alguma festa em caráter de urgência foi uma medida<br />
comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era<br />
necessário atender um desejo de manter a pompa,<br />
a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso<br />
era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente.<br />
Muitas vezes não era possível. Em algumas situações,<br />
criava-se, literalmente, o artífice e artesão,<br />
normalmente uma maioria de negros, mestiços<br />
e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram<br />
formulados pela ordem e obediência. Em algumas<br />
circunstâncias, para atender à demanda musical,<br />
ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder<br />
de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres,<br />
dos diletantes que estavam à mercê dessas relações<br />
de poder, não foi diferente. Robert Southey chega<br />
a falar de “devotos músicos” que eram chamados<br />
para as festas das igrejas “muitas vezes por água” 5 .<br />
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre<br />
os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas<br />
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham<br />
uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.<br />
Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns<br />
professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.<br />
No Rio de Janeiro já existia uma vida musical<br />
significativa para aqueles tempos históricos, com<br />
compositores ativos e importantes, como Lobo<br />
de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto<br />
em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-decapela,<br />
compositor e organista que se tornou uma<br />
das maiores expressões da História da Música no<br />
Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista<br />
e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da<br />
Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se<br />
ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da<br />
Família Real para o Brasil, juntamente com alguns<br />
dos compositores e intérpretes portugueses que<br />
serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo<br />
e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”<br />
uma nova percepção do gosto e uma nova maneira<br />
de observar o mundo das artes. O surgimento de<br />
instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,<br />
favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais<br />
35
36<br />
oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia<br />
entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram<br />
com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele,<br />
contribuíram com seus comportamentos e hábitos<br />
de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo<br />
isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes<br />
e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que<br />
as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção<br />
do Real Teatro de São João, palco ideal para<br />
as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm,<br />
com eles circulam também as idéias.<br />
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de<br />
Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento<br />
de uma prática de corte, para sustentar a demanda de<br />
música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto,<br />
baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores<br />
castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em<br />
seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos<br />
importantes que transformaram a idéia da criação e da<br />
recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos<br />
níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo,<br />
mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma<br />
de audiência das obras no período joanino. Classicismo<br />
e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund<br />
Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse<br />
período em que a Família Real esteve no Brasil foi<br />
exatamente uma articulação desses estilos. Se a música<br />
vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música<br />
instrumental se baseou nos modelos do classicismo<br />
vienense. As relações da Casa de Bragança com<br />
as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,<br />
se reforçavam cada vez mais, através de questões<br />
políticas e conveniências matrimoniais.<br />
Acontecimentos como a vinda da Missão Artística<br />
em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina<br />
com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos<br />
costumes e hábitos europeus.<br />
O que aqui denominamos por “classicismo”<br />
conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”.<br />
Um se refere à estilística tipicamente germânica<br />
e austríaca; outro, como diz o próprio termo que<br />
o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar<br />
em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,<br />
uma situação político-administrativa, o “colonialismo”<br />
português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse<br />
último termo tem significado histórico e prático. Na<br />
verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência<br />
do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação<br />
da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do<br />
Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou<br />
muito nas suas relações externas. Classicismo, com<br />
Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda<br />
de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo<br />
operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David<br />
Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de<br />
Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por<br />
José Maurício. Essas relações são importantes para<br />
a compreensão de uma estilística resultante de práticas<br />
coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com<br />
a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi<br />
sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica<br />
era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo<br />
pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido<br />
de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera<br />
italiana do final do século XVIII e da primeira metade<br />
do século seguinte reservava o caráter virtuosístico<br />
predominantemente aos cantores castratti. Como uma<br />
extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda<br />
desses cantores para a colônia, transportando,<br />
da melhor maneira possível, o cenário da prática<br />
musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.<br />
A circulação de músicos<br />
estrangeiros no Rio de Janeiro<br />
joanino foi importante para<br />
o estabelecimento de uma prática<br />
de corte, para sustentar a<br />
demanda de música e, sobretudo,<br />
ajudar a construir um novo gosto,<br />
baseado em práticas cortesãs.
Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.<br />
A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
A imaginação individual era canalizada<br />
estritamente de acordo com o gosto dos patronos.<br />
No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades,<br />
e por vezes o poder político, através dos Senados e das<br />
Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres,<br />
ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse<br />
como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida<br />
correspondência com os aspectos morais e espirituais<br />
permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação<br />
social do músico e a conseqüente estilística tomaram,<br />
a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho:<br />
o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo<br />
e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética<br />
e o artista, agora com nome, endereço e personalidade.<br />
Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço<br />
de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua<br />
liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com<br />
que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm<br />
desapontou a todos, aristocráticos e burgueses,<br />
e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de<br />
Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.<br />
No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era<br />
uma situação favorável, por três motivos básicos:<br />
melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar<br />
contato com músicos estrangeiros e linguagens<br />
modernas e, por fim, de garantir um status social<br />
e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.<br />
A música praticada fora do círculo cortesão foi tão<br />
multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda<br />
mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição<br />
e novidade. Costumes e práticas de várias culturas<br />
conviveram no Brasil joanino. Negros e índios<br />
compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura<br />
do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns<br />
momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de<br />
D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,<br />
os europeus tiveram de articular seus costumes<br />
e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se<br />
estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de<br />
colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento<br />
de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo<br />
de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu<br />
37
38<br />
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso,<br />
mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos<br />
aqui de formas culturais, cada uma com sua força e<br />
tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes,<br />
entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno<br />
pensar em um mundo apolíneo nos domínios<br />
de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita,<br />
normatizada, programada e cheia de sanções morais<br />
em um ambiente onde ela era mais espontânea.<br />
As concepções de Nietzsche sobre os mitos de<br />
Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir<br />
temas de culturas variadas nesses espaços comuns6 .<br />
Numa outra dimensão da idéia que caracteriza<br />
os personagens, a música de Apolo é européia,<br />
encontra-se cultivada fora das camadas populares,<br />
levada para o ultramar como pressuposto<br />
de modernidade e civilização, como um dispositivo<br />
importante de uma cultura que cristianizou e sustentou<br />
o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música<br />
de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia;<br />
encontra-se nas manifestações das culturas de tradição<br />
oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio<br />
DISCOGRAFIA<br />
O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.<br />
Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)<br />
MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM<br />
Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone<br />
(fortepiano). Luiza Sawaya (canto)<br />
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES<br />
São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão<br />
e Koiti Watanabe (violinos)<br />
<strong>MÚSICA</strong> PORTUGUESA E <strong>BRASILEIRA</strong> DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO<br />
Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)<br />
MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />
Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto<br />
Coral. Direção: Cleofe Person de Matos<br />
MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA<br />
Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v<br />
VENENO DE AGRADAR. MODINHAS<br />
Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto)<br />
Achille Picchi (piano)<br />
MUSICA BARROCA <strong>BRASILEIRA</strong><br />
Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440<br />
Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios<br />
se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,<br />
práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.<br />
Entretanto, em alguns momentos da vida social<br />
da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por<br />
algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se<br />
tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos<br />
e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma<br />
data ou reverenciar algum nobre ou príncipe<br />
e, de forma estratégica, esses encontros de todos<br />
serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar<br />
as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,<br />
que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,<br />
que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,<br />
compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito<br />
a ponderações muitas vezes preconceituosas.<br />
Ao contrário das práticas de corte, as manifestações<br />
de características populares ou étnicas, como aquelas<br />
encontradas entre os brancos pobres, africanos<br />
e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo<br />
de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,<br />
no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas<br />
a cultos de deidades negras e a rituais animistas.<br />
A dos brancos pobres, os excluídos do processo<br />
de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui<br />
de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas<br />
absorveram elementos de todas as outras, em menor<br />
escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,<br />
através do catolicismo, formas miscigenadas<br />
das práticas européias e deram uma outra roupagem<br />
às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com<br />
que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que<br />
procurava se impor7 .<br />
Tudo isso era um espetáculo, uma mistura<br />
de catolicismo com atividades autóctones, própria<br />
de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte<br />
daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,<br />
nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto<br />
de sincrético quanto de propriedade. A palavra<br />
sincretismo vem designar não a simples e inevitável<br />
mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como<br />
uma forma em que as culturas não européias deveriam<br />
aceitar a cultura do outro. Em propostas mais<br />
abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira<br />
de preservar a própria cultura em detrimento das
interferências e das imposições das culturas européias.<br />
Nessa forma de observar o sincretismo, os negros,<br />
sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas<br />
raízes e a absorção inevitável da cultura do branco<br />
se tornou um matiz para a preservação de sua própria<br />
cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa<br />
em tudo, esse sincretismo era a única forma possível<br />
de preservar o que é seu sem cair nas malhas da<br />
vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram<br />
nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas<br />
tribos e nas regiões rurais que as manifestações se<br />
tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas<br />
áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da<br />
cultura européia. Preservar a cultura afro-americana<br />
ou indígena, assim como impor por meios diversos<br />
a cultura européia, era uma articulação viável que,<br />
ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra.<br />
Surgem dois territórios onde as formas de cultura<br />
se contracenam: um público e outro privado.<br />
Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte<br />
vinha de uma observação que era inversa à de um<br />
mundo proposto em um mundo diferente. Em toda<br />
essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas<br />
onde as trocas com elementos externos aconteciam<br />
primeiro, era de se esperar que existissem formas<br />
de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que<br />
existiram momentos em que as diversas formas<br />
1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa<br />
os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se<br />
acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus<br />
filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada<br />
de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo<br />
nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias<br />
padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,<br />
Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatálas,<br />
mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional<br />
as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que<br />
aconselha tudo isto a Vossa Alteza”.<br />
Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801.<br />
Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo,<br />
Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54.<br />
2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa:<br />
Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.<br />
de culturas – as autóctones, as européias e africanas<br />
– manifestaram-se isoladamente, e em outras<br />
oportunidades fundiram-se numa só, permitindo<br />
a existência de vários elementos se entrecruzando.<br />
Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços<br />
originais, na sua própria origem, como no caso dos<br />
índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato<br />
dos rituais, do entretenimento ou da demonstração<br />
de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,<br />
ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,<br />
flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,<br />
existiu a convivência com negros que andavam<br />
pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.<br />
Os índios, talvez por estarem menos expostos<br />
à cultura urbana, participaram em menor escala desse<br />
processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades<br />
e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível<br />
também imaginar os índios descritos pelo príncipe<br />
Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus<br />
ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu<br />
nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,<br />
e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou<br />
uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,<br />
D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço<br />
de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam<br />
as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações<br />
e um espaço de tolerâncias.<br />
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições<br />
Afrontamento, 1993, p. 837.<br />
3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de<br />
Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.<br />
4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.<br />
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.<br />
5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:<br />
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.<br />
6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.<br />
Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,<br />
p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que<br />
é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio<br />
é africano e indígena, e em certa medida, colonial.<br />
7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina<br />
e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />
MAURÍCIO MONTEIRO<br />
Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.<br />
39
José Maurício Nunes Garcia<br />
e a Real Capela<br />
de D. João VI<br />
no Rio de Janeiro<br />
RICARDO BERNARDES
José Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais<br />
significativos compositores da América colonial no que<br />
diz respeito à quantidade de composições, à qualidade<br />
estética e à definição de uma linguagem própria,<br />
facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza<br />
e o destaca dos compositores mineiros ou hispanoamericanos<br />
do século XVIII, que podemos identificar,<br />
respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo<br />
comum de composição. É também o único compositor<br />
colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas<br />
ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos<br />
defensores, desde seus contemporâneos Manuel<br />
de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até<br />
o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,<br />
em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse<br />
as principais obras de José Maurício, reunidas<br />
e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1 ,<br />
e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,<br />
o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para<br />
canto e piano ou órgão2 .<br />
Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,<br />
reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício<br />
e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous<br />
Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes” 3 ,<br />
contribuindo assim para a imagem que o século XX<br />
tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que<br />
o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante<br />
os primórdios da República, quando se buscava criar<br />
a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente<br />
ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma<br />
identidade nacional.<br />
Ainda, durante o século XIX e o início do XX,<br />
outras iniciativas foram tomadas, por compositores<br />
como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,<br />
visando recuperar a obra do padre mestre, através de<br />
sua restauração e execução, como no caso da<br />
reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,<br />
ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol<br />
de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.<br />
Louis Claude Desausles Freycinet.<br />
Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris<br />
par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane<br />
et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.<br />
Paris, Pillet Ainé, 1824.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />
41
42<br />
Foi a partir da década de 1940,<br />
porém, que a vida e a obra de José<br />
Maurício Nunes Garcia contaram<br />
com um estudo bastante sério<br />
e profundo, realizado pela regente<br />
e musicóloga Cleofe Person de<br />
Mattos, que, além de transcrever<br />
e promover a execução de suas<br />
obras, editou o “Catálogo temático<br />
das obras do padre José Maurício<br />
Nunes Garcia” 4 , obra fundamental<br />
para o conhecimento da produção<br />
mauriciana. Na década de 1980,<br />
a pesquisadora editou ainda 10<br />
partituras, reunidas em 8 volumes5 ;<br />
em 1994, o Réquiem de 1816, na<br />
versão completa de orquestra6 , e sua<br />
biografia mauriciana7 .<br />
A 22 de setembro de 1767, nasce<br />
José Maurício Nunes Garcia, filho<br />
de Apolinário Nunes Garcia,<br />
(segundo registros) de raça branca,<br />
e de Victória Maria da Cruz, de<br />
ascendentes imediatos “da Guiné”,<br />
o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia<br />
Júnior, único filho legitimado de José Maurício,<br />
descreve seus avós paternos como mulatos claros<br />
“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto<br />
Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras<br />
do Padre J. M. N. G.” 8 , indica a freguesia de Nossa<br />
Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador,<br />
Rio de Janeiro, como local de seu nascimento.<br />
José Maurício tem sua formação musical com<br />
Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo<br />
da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde<br />
os doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16<br />
anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria.<br />
É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado<br />
para assumir a função de mestre-de-capela9 da Sé<br />
do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja<br />
da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto,<br />
José Maurício já compunha para essa instituição<br />
mesmo antes de sua nomeação, como comprovam<br />
os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,<br />
Pe. José Maurício Nunes Garcia.<br />
Litogravura.<br />
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO<br />
O tempo de José<br />
Maurício à frente<br />
da Real Capela<br />
é claramente um<br />
período de transição<br />
estilística entre suas<br />
duas práticas<br />
dedicados ao conjunto da Sé.<br />
Em 1808, fugindo das tropas<br />
napoleônicas sob o comando de<br />
Junot, D. Maria I, o príncipe regente<br />
D. João, a real família, parte da<br />
Corte e da alta administração do<br />
reino português deslocam-se para<br />
a capital da colônia com o objetivo,<br />
ímpar na história da colonização<br />
do Brasil e das Américas, de lá<br />
se instalarem e fazerem da cidade<br />
a nova capital do reino,<br />
aproximando-se da metrópole sob<br />
todos os aspectos.<br />
Um choque de urbanidade<br />
então se impõe sobre o Rio de<br />
Janeiro, que – por esforços pessoais<br />
do ainda príncipe regente, a ser<br />
coroado D. João VI apenas em 1818<br />
– vai gradualmente se tornando uma<br />
capital nos moldes europeus, com<br />
a vinda da imprensa, a abertura dos<br />
portos ao livre comércio, a criação<br />
também se reflete sobre a vida musical da cidade,<br />
através da construção de um Teatro de Ópera<br />
e, principalmente, da criação de uma Real Capela de<br />
Música, nos moldes da Real Capela lisboeta. 10<br />
da Biblioteca Real. A modernização<br />
Quando do desembarque da Corte, a 8 de março<br />
de 1808, todas as festividades de recepção estavam<br />
preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do<br />
Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.<br />
Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,<br />
em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,<br />
cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,<br />
contava com um grupo vocal formado por cantores<br />
meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,<br />
como tenores e baixos. Contava ainda com um<br />
pequeno grupo de instrumentistas, que segundo<br />
a prática de orquestração de suas obras até então,<br />
provavelmente consistiam em: cordas, flautas,<br />
ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,<br />
realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este<br />
é o primeiro contato que o príncipe regente trava com
a música do compositor carioca.<br />
No mesmo mês, D. João terá ainda<br />
várias oportunidades de avaliar<br />
a qualificação musical do conjunto<br />
da Sé e, especificamente,<br />
a qualidade do nível de criação<br />
de seu mestre-de-capela, o padre<br />
José Maurício.<br />
O claro objetivo de D. João era<br />
montar uma capela musical no Rio<br />
de Janeiro nos moldes daquela que<br />
havia em Lisboa, tanto no formato<br />
quanto na fixação de um estilo<br />
musical para as obras que para<br />
lá seriam compostas. Designa<br />
então José Maurício para dirigir<br />
as atividades da recém-criada<br />
instituição, formada por músicos já<br />
atuantes na cidade e alguns vindos<br />
com D. João. Numa demonstração<br />
de apreço e admiração por seus<br />
talentos musicais, D. João<br />
concede-lhe o Hábito da Ordem<br />
A partir desse ano começam a chegar<br />
ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real<br />
de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas.<br />
Os músicos são atraídos pelas possibilidades<br />
de trabalho propiciadas pela instalação permanente<br />
da Corte na cidade e pela construção, em andamento,<br />
do Teatro de Ópera.<br />
Todos esses acontecimentos, que propiciam um<br />
meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas<br />
obras que começam a circular na colônia, trazidas por<br />
D. João11 de Cristo, em 1809.<br />
, serão os responsáveis pelas transformações<br />
na linguagem musical de José Maurício.<br />
O tempo de José Maurício à frente da Real Capela<br />
é claramente um período de transição estilística entre<br />
suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos<br />
pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada<br />
da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e<br />
possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado,<br />
a partir de então, a escrever uma música mais brilhante<br />
e virtuosística, com o objetivo de se aproximar<br />
Marcos Portugal.<br />
Litogravura assinada por Rodrigues.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E<br />
ARQUIVO SONORO<br />
José Maurício tem<br />
a oportunidade<br />
de estrear obras como<br />
o Réquiem de Mozart,<br />
em dezembro de 1819,<br />
e o oratório A Criação<br />
de Haydn, em 1821.<br />
do “estilo da Capela Real”.<br />
O que justamente caracteriza<br />
esse período como de transição<br />
é a síntese através da qual José<br />
Maurício adapta sua música<br />
e sua linguagem, obtendo um estilo<br />
híbrido em sua criação, ainda com<br />
resquícios fortes da primeira fase,<br />
mas já alçando vôos em direção<br />
ao estilo que iria caracterizar<br />
sua segunda fase: mais madura<br />
e moderna.<br />
O período de 1808 a 1811<br />
é extremamente fecundo: José<br />
Maurício compõe cerca de setenta<br />
obras visando atender à extensa<br />
série de solenidades. Entre as mais<br />
importantes, comprovadamente<br />
do período e que sobreviveram até<br />
nossos tempos, destacam-se: a Missa<br />
São Pedro de Alcântara de 1808,<br />
e outra Missa São Pedro de Alcântara<br />
de 1809, um Te Deum para as Matinas<br />
de São Pedro, um Stabat Mater,<br />
arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o<br />
moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.<br />
Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes<br />
e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa<br />
Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para<br />
coro e órgão e um Te Deum em dó maior.<br />
No entanto, a grande obra do período de José<br />
Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa<br />
Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.<br />
É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente<br />
das que havia composto até então e uma das mais<br />
sofisticadas de toda a sua carreira, composta num<br />
momento de plena maturidade: José Maurício tinha,<br />
então, 43 anos.<br />
Era um momento cheio de esperanças e alegrias<br />
para o compositor – por passar a trabalhar à frente de<br />
um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas<br />
potencialidades como músico e artista –, mas também<br />
de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua<br />
condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma<br />
43
44<br />
formação musical, em muitos<br />
em 1816, no intuito de retomar<br />
aspectos, autodidata.<br />
relações diplomáticas com a Corte<br />
A composição da Missa<br />
portuguesa –, José Maurício tem<br />
da Conceição para 8 de dezembro<br />
a oportunidade de estrear obras<br />
daquele ano pode ter sido uma<br />
como o Réquiem de Mozart, em<br />
comprovação aos músicos e ao<br />
dezembro de 1819, e o oratório<br />
príncipe de que José Maurício podia<br />
A Criação de Haydn, em 1821.<br />
se adaptar ao novo gosto. Essa missa<br />
O padre mestre compõe, no mesmo<br />
figura entre suas obras mais<br />
ano, dois salmos, Laudate Dominum<br />
importantes, ao lado do Ofício e<br />
e Laudate Puerum, que, segundo o<br />
Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de<br />
punho do próprio compositor, foram<br />
Nossa Senhora do Carmo, de 1818,<br />
“arranjados sobre temas da Creação<br />
e da Missa de Santa Cecília, de 1826.<br />
do Mundo do immortal Haydn”<br />
Em 1811, a chegada de Marcos<br />
Portugal, o mais afamado<br />
compositor português de sua época,<br />
encerra o período de Nunes Garcia<br />
como diretor e compositor da Real<br />
Capela. De renome internacional,<br />
Portugal vem assumir na cidade<br />
as funções de Diretor do Teatro<br />
14 .<br />
Podem ser observadas, ainda,<br />
citações do oratório As estações,<br />
do mesmo Haydn, em obras mais<br />
tardias, como no Qui Tollis da Missa<br />
Abreviada, de 1823.<br />
Sua última obra e legado<br />
é a Missa de Santa Cecília,<br />
encomendada pela ordem<br />
de Ópera de São João e de mestre compositor<br />
da Real Capela. José Maurício continua, todavia,<br />
compondo ocasionalmente para a instituição<br />
a pedido de D. João, que o tem em grande estima. 13<br />
Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro<br />
Voyage pitoresque et historique au Brésil.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode<br />
ser posta ao lado das grandes obras, compostas<br />
durante o mesmo período, dentro da história<br />
da música ocidental.<br />
Através da amizade com o compositor austríaco<br />
Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,<br />
Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo<br />
Haydn – que veio ao Brasil em uma missão<br />
e interesse por músicos e pesquisadores<br />
diplomática promovida por Luís XVIII de França brasileiros e estrangeiros.<br />
1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto<br />
Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ.<br />
2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816.<br />
Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897.<br />
3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício<br />
e Carlos GomesI. São Paulo: Companhia Melhoramentos/<br />
Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930.<br />
4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre<br />
José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de<br />
Cultura/MEC, 1970.<br />
5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/<br />
INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro:<br />
Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio<br />
de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para<br />
Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />
1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,<br />
1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/<br />
INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.<br />
Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.<br />
6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,<br />
edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.<br />
7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –<br />
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/<br />
<strong>Departamento</strong> Nacional do Livro, 1994.<br />
8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos<br />
mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.<br />
9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação<br />
das músicas destinadas às cerimônias religiosas.<br />
10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos<br />
de excelência na criação e execução musical para as festividades
eligiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às<br />
grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em<br />
Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da<br />
Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém<br />
estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana,<br />
principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo<br />
período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa,<br />
importante centro de formação de músicos portugueses em todo<br />
o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar<br />
em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,<br />
destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João<br />
Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio<br />
de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I,<br />
mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa<br />
Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio<br />
Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo<br />
(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José<br />
manteve contato com importantes compositores italianos da<br />
época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò<br />
Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa,<br />
tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras<br />
religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.<br />
“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,<br />
à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical,<br />
iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos<br />
principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles<br />
e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do<br />
compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela<br />
Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.<br />
Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também<br />
serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais<br />
importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do<br />
século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.<br />
“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação<br />
entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,<br />
nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,<br />
setembro de 1990, p. 662-669).<br />
11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808<br />
pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a<br />
capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico.<br />
12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma<br />
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional /<br />
<strong>Departamento</strong> Nacional do Livro, 1997, p. 67.<br />
13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da<br />
Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra<br />
à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores<br />
brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam<br />
na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim,<br />
músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua<br />
glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra<br />
na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de<br />
real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de<br />
Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808<br />
e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um<br />
DISCOGRAFIA<br />
OFFICIUM 1816<br />
Camerata Novo Horizonte de São Paulo<br />
Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil<br />
LAUDATE DOMINUM<br />
DOMINE JESU<br />
TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS<br />
TE DEUM (1799?)<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil<br />
TE DEUM (1801)<br />
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara<br />
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações<br />
Musicais, Vol.II - Brasil<br />
MOTETOS PARA SEMANA SANTA<br />
CALÍOPE<br />
Direção: Júlio Moretzohn<br />
CALÍOPE<br />
MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL<br />
LAUDATE DOMINUM<br />
DIES SANCTIFICATUS<br />
JUSTUS CUM CECIDERIT<br />
LAUDATE PUERI<br />
Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França<br />
orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a<br />
abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por<br />
cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.<br />
Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre<br />
José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa<br />
palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante<br />
os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o<br />
Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou<br />
reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.<br />
Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não<br />
afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que<br />
um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em<br />
Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o<br />
autor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atração<br />
segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,<br />
de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo<br />
plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma<br />
injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.<br />
14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um<br />
estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:<br />
Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth<br />
Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação <strong>Cultural</strong><br />
de Curitiba, 1999, p. 397.<br />
RICARDO BERNARDES<br />
Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.<br />
Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.<br />
45
A MODINHA<br />
E O LUNDU<br />
NO BRASIL<br />
Com crescimento populacional que vinha se acentuando<br />
46<br />
As primeiras manifestações da<br />
música popular urbana no Brasil<br />
desde o início do século XVIII e a formação de centros<br />
urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio<br />
de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo<br />
tipo de entretenimento por parte de uma classe média<br />
emergente era condição imperiosa para a manutenção<br />
de um modelo de cultura que a metrópole, no caso<br />
Portugal, vinha impondo à colônia.<br />
Antes dos concertos públicos, que só viriam<br />
a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,<br />
1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era<br />
praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto<br />
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;<br />
as festas profanas, tais como aniversários de cidades,<br />
membros da família real ou alguma figura importante<br />
pertencente à classe dominante; as festas religiosas,<br />
que também tinham funções sociais.<br />
EDILSON VICENTE DE LIMA<br />
Uma outra forma de entretenimento que vinha<br />
sendo praticada no Brasil desde meados do século<br />
XVIII era a música patrocinada por proprietários<br />
de posses, que mantinham orquestra formada por<br />
escravos negros especialmente treinados para<br />
executarem os mais diversos instrumentos (violinos,<br />
viola, teclado, charamelas, dentre outros).<br />
As músicas que interpretavam eram os sucessos<br />
europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).<br />
Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados<br />
e para convidados especiais.<br />
Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.<br />
1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.<br />
Na Officina Nunesiana.<br />
Anno 1798.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
48<br />
Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos<br />
XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por<br />
conseguinte, de divulgação da música cultivada pela<br />
classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde<br />
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,<br />
tocando ou cantando suas peças preferidas.<br />
Era também a oportunidade para as moças das finas<br />
famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua<br />
encantadora voz acompanhada pela delicadeza<br />
do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).<br />
Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,<br />
pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos<br />
europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez<br />
e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou<br />
a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos<br />
ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças<br />
públicas. Desta forma, sem querer adentrar<br />
as discussões sociológicas quanto às condições sociais<br />
das diversas camadas que residiam no Brasil<br />
em meados do século XVIII, ainda que altamente<br />
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo<br />
seu próprio caminho musical à medida que as vilas<br />
se desenvolviam.<br />
É nesse ambiente e condições sociais que, nos<br />
últimos anos do século XVIII, surge a modinha,<br />
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em<br />
Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de<br />
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta<br />
para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra<br />
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais<br />
abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse,<br />
pouco a pouco, um veículo para a expressividade<br />
musical, tanto portuguesa quanto brasileira.<br />
As discussões pela definição da paternidade da<br />
modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua<br />
origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas<br />
pátrias como filha legítima. Mais do que o local<br />
de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma<br />
determinada nação que definem uma nacionalidade.<br />
Porém, a origem da modinha está intimamente<br />
relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,<br />
que em meados do século XVIII, designava,<br />
genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada<br />
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas<br />
Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão<br />
de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,<br />
de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas<br />
acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em<br />
Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito<br />
praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).<br />
Ao absorver dessa última as características formais<br />
e melódicas, a modinha se configura de maneira muito<br />
rica, não assumindo uma forma específica.<br />
Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais<br />
singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.<br />
Mário de Andrade, no texto introdutório de sua<br />
antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,<br />
defende que o diminutivo “modinha” está intimamente<br />
relacionado com as características “acarinhantes” tão<br />
presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe<br />
Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta<br />
característica, por sua vez, é descrita com muita graça<br />
no refrão da modinha “Quando a gente está com<br />
a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou<br />
em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no<br />
Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta
doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que<br />
vi me fazem babar”.<br />
No final do setecentos, literatos e cronistas<br />
portugueses diferenciavam a modinha portuguesa<br />
da brasileira e atribuíam a esta características próprias<br />
advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador<br />
português Manuel Morais descreve algumas delas:<br />
melodia ondulante, cromatismos melódicos<br />
e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos<br />
acrescentar: melodias entrecortadas e compostas<br />
de motivos sincopados, ora em retardo, ora em<br />
antecipação, abuso de cadências femininas, porém,<br />
sempre primando por uma certa delicadeza<br />
(Lima, 2001).<br />
O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu<br />
pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,<br />
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa<br />
(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que<br />
considera característicos do estilo brasileiro<br />
e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois<br />
poemas utilizados nas modinhas desta coleção como<br />
sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens<br />
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,<br />
também conhecido pelo nome árcade de Lereno<br />
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio<br />
improvisador e, naturalmente, tangia sua própria<br />
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu<br />
no último quartel do século XVIII até sua morte.<br />
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação<br />
como poeta e cantor de modinhas.<br />
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea<br />
de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas<br />
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações<br />
em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.<br />
Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa<br />
utilizou em seus poemas e que muito se assemelham<br />
ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito<br />
Modinhas do Brasil acima citado: neologismos<br />
afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além<br />
de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;<br />
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento<br />
que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas<br />
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular<br />
praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande<br />
sucesso no período em que viveu na corte onde era<br />
muito comum apresentar-se acompanhado por sua<br />
viola e cantando modinhas.<br />
Com base na análise poético-musical efetuada no<br />
manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas<br />
Barbosa, Béhague sugere que, se não todas<br />
as modinhas da coleção, grande parte delas é de<br />
Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características<br />
musicais consideradas brasileiras presentes em muitas<br />
modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase<br />
sincopada, que no caso dessas peças, aparece<br />
totalmente incorporada ao estilo musical, indicando<br />
uma prática adquirida naturalmente, ou seja,<br />
pela convivência, e não pelo resultado de estudos<br />
técnico-analíticos.<br />
No estágio em que se encontram as pesquisas<br />
sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto<br />
em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos<br />
Caldas Barbosa musicados por compositores de<br />
renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),<br />
compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil<br />
em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;<br />
e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico<br />
português de renome em Lisboa no final do século<br />
XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas<br />
modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura<br />
do compositor da melodia, porém é muito provável<br />
que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,<br />
e por isso não tivesse o hábito de assinar suas<br />
composições, pois consta que não era iniciado<br />
nos cânones musicais (Sandroni, 2001).<br />
Fato é que, na documentação pesquisada até<br />
o presente momento, há uma grande quantidade<br />
de modinhas que se destacam por possuir uma<br />
musicalidade muito própria: melodias sinuosas de<br />
poucos compassos e compostas por pequenos motivos,<br />
a presença da síncopa melódica, o acompanhamento<br />
em arpejos de quatro colcheias, parafraseando<br />
as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto<br />
nestas características pois elas serão associadas<br />
ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros<br />
como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).<br />
Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil<br />
é de fundamental importância, pois, das trinta<br />
49
50<br />
Domingos Caldas Barbosa.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS<br />
modinhas que compõem a coleção, várias trazem<br />
marcadamente estas características (Lima, 2001).<br />
Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira<br />
se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,<br />
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida<br />
pelos portugueses e todas as influências italianas<br />
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,<br />
certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta<br />
em várias modinhas desse manuscrito, associada<br />
ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere<br />
a elas um caráter muito particular, antecipando em<br />
aproximadamente um século as características musicais<br />
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe<br />
e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.<br />
A partir dessas afirmações, podemos concluir que,<br />
apesar de nossa dependência política, certas<br />
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,<br />
inclusive por portugueses já no último quartel do<br />
setecentos, apontam para um direcionamento próprio,<br />
pelo menos no que tange à produção musical.<br />
Neste momento não podemos deixar de falar<br />
do lundu, dança popular brasileira introduzida<br />
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,<br />
muito popular em meados do século XVIII (Andrade,<br />
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança<br />
já como um resultado da confluência de elementos<br />
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada<br />
por negros e mestiços no decorrer do século XVIII<br />
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito<br />
por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores<br />
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,<br />
atestando ainda mais a sua popularidade na época.<br />
O lundu era dançado, tendo como<br />
acompanhamento o batuque dos negros e<br />
instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se<br />
popular por seus elementos coreográficos: a famosa<br />
umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos<br />
das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão<br />
associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).<br />
A convivência entre negros livres e cativos, a classe<br />
média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos<br />
emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da<br />
modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez<br />
com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do<br />
batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas<br />
musicais da recatada modinha, dando origem ao<br />
lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas<br />
modinhas quase lundus, como destaca Mozart de<br />
Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha<br />
e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo<br />
da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos<br />
da cultura da classe média européia e da cultura<br />
popular afro-brasileira.<br />
É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,<br />
já no século XVIII, em espetáculos para divertir<br />
cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil<br />
quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,<br />
apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam<br />
alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,<br />
mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,<br />
e, certamente, influenciou músicos e poetas que não<br />
poderiam ficar imunes aos seus feitiços.<br />
Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,<br />
doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário<br />
simples, predominância da tonalidade maior, linha<br />
melódica sincopada e geralmente composta por<br />
fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com<br />
relação ao texto, há predominância do uso da quadra<br />
com versos em redondilha maior e uso de refrão<br />
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua<br />
amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência<br />
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).<br />
No século XIX, encontramos lundus estilizados,<br />
escritos em compasso binário composto, antecipando,<br />
ou já dentro de uma tradição romântica.<br />
Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já<br />
autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se<br />
verdadeiros meios da expressividade musical tanto<br />
popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos<br />
como José Maurício e Marcos Portugal; também por<br />
Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-<br />
Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras<br />
décadas do século XX. Na vertente popular, serviram<br />
de suporte para músicos como Xisto Bahia<br />
e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,<br />
de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,<br />
incorporaram-se ao repertório de espetáculos<br />
populares e serviram de crônicas à sociedade<br />
de então, como no famoso lundu Lá no largo da<br />
sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte:<br />
Itatiania, 1989.<br />
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,<br />
1980.<br />
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:<br />
Ricordi Brasileira, 1963<br />
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:<br />
two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,<br />
Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,<br />
1968.<br />
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início<br />
do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.<br />
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular<br />
DISCOGRAFIA<br />
MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.<br />
CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989<br />
COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,<br />
Américantiga, 2003<br />
MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d<br />
MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d<br />
MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997<br />
<strong>MÚSICA</strong> DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994<br />
1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d<br />
HISTÓRIA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> (II). São Paulo: Eldorado, s/d<br />
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d<br />
VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d<br />
20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.<br />
São Paulo: BIEM, 1998<br />
e aos desmandos econômicos da época.<br />
Finalizando, não obstante a origem aristocrática<br />
da modinha, praticada, inicialmente, nos salões<br />
cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,<br />
aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,<br />
foi absorvendo características musicais e poéticas<br />
das manifestações advindas das classes<br />
econômicas menos privilegiadas, irmanando-se<br />
ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse<br />
caminho rumo a aceitação de todos, ambos,<br />
a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último<br />
passo para diluir-se na alma!<br />
brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.<br />
LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.<br />
MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa<br />
Nacional – Casa da Moeda, 2000.<br />
NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa<br />
Nacional – Casa da Moeda, 1991.<br />
NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.<br />
Lisboa: Movieplay, 1994.<br />
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio<br />
de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:<br />
Ed. UFRJ 2001.<br />
TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:<br />
Art. Editora, 1991.<br />
EDILSON VICENTE DE LIMA<br />
Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.<br />
Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.<br />
51
CONSIDERAÇÕES SOBRE<br />
Fora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de<br />
54<br />
Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um<br />
estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.<br />
Apesar da existência de uma série de livros, biografias<br />
e citações em diversas enciclopédias universais, o que<br />
se tem visto e lido é um amontoado de informações<br />
baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas<br />
mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante<br />
de equívocos que vão se sedimentando...<br />
Esses equívocos vão desde a data do nascimento<br />
de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas<br />
informações se baseiam no livro escrito por sua filha,<br />
Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente,<br />
descreve seu pai como de origem espanhola,<br />
descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai...<br />
Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não<br />
com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por<br />
sua vez era filho de português com negra. A mãe<br />
de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era<br />
filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol,<br />
pois, em sua descendência.<br />
Outro equívoco que se perpetua e continua sendo<br />
divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador<br />
de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito.<br />
Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande<br />
LUIZ AGUIAR<br />
veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração<br />
artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em<br />
seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava<br />
Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua<br />
família. Neste particular é bastante conhecida<br />
a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira<br />
grande emoção que a música de Verdi provocou<br />
no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história<br />
de seu primeiro contato com um “spartito” de<br />
Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após<br />
a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição<br />
da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para<br />
banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,<br />
revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,<br />
em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,<br />
compõe para os instrumentos que dispunha na Banda<br />
em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do<br />
próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em<br />
seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale<br />
amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte<br />
placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.<br />
Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em<br />
compasso ternário, quase uma valsa.<br />
Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos<br />
Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos
esquecer – isto é muito importante – da influência<br />
francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito<br />
especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência<br />
da “Grand Opera”.<br />
Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte<br />
de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam<br />
falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel<br />
canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.<br />
Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da<br />
cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!<br />
Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro<br />
Alla Scala”:<br />
02/janeiro – I Lombardi – Verdi<br />
19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota<br />
02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi<br />
23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer<br />
(em italiano, bem se vê)<br />
10/março – Le Aquille Romane – Chélard<br />
26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella<br />
31/dezembro – Norma – Bellini<br />
A temporada prossegue pelo ano de 1865 com<br />
Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –<br />
Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),<br />
do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio<br />
Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,<br />
somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874<br />
(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,<br />
Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava<br />
suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon<br />
Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo<br />
tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta<br />
à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.<br />
Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar<br />
escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que<br />
a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.<br />
Paralelamente a este momento, a este auto-exílio<br />
de quase 17 anos, eclode o movimento dos<br />
“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um<br />
“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático<br />
ao movimento de renovação da ópera e das artes em<br />
geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio,<br />
Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa<br />
Carlos Gomes.<br />
Figurinos da ópera Lo Schiavo.<br />
Assinado por Luigi Bartezago.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />
– DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
55
Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas.<br />
É possível que Carlos Gomes tenha influenciado,<br />
com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade<br />
melódica, harmônica e rítmica, aos compositores<br />
contemporâneos daquele movimento.<br />
Na verdade, a noite de 19 de março de 1870<br />
(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca<br />
uma época na história da ópera. O autor, jovem<br />
maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido.<br />
O libreto, baseado em romance de outro brasileiro<br />
desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor<br />
de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais,<br />
presença de um cacique aimoré, antropófago e que,<br />
também, se apaixona pela moça branca, filha de um<br />
fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo<br />
bastante estranho; e o 3 º ato – Campo dos Aimorés –<br />
com suas danças, evocações a Tupã, utilização de<br />
instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás...<br />
Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava<br />
novos caminhos: tendência à melodia infinita;<br />
abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios,<br />
quartetos, alternando com recitativos; música mais<br />
adequada ao texto, num desenvolvimento natural<br />
e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,<br />
uma forte tendência na criação de situações dramáticas<br />
com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes<br />
de uma determinada personagem ou situação; temas<br />
musicais com grandes saltos melódicos ascendentes<br />
e descendentes realçando uma certa virilidade em seus<br />
meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada<br />
ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de<br />
quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta<br />
aumentada e sétima diminuída, modulando com<br />
elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas<br />
o grande progresso, rumo à personalíssima<br />
caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos<br />
Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira<br />
obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet<br />
(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),<br />
a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova<br />
tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,<br />
Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio<br />
de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA<br />
Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem<br />
uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em<br />
dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para<br />
a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo<br />
que havia se evidenciado, de forma discreta,<br />
em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com<br />
o enriquecimento de novas combinações tímbricas<br />
na orquestra, resultando uma instrumentação plena<br />
de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente<br />
por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações<br />
e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir<br />
da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos<br />
mais belos momentos líricos de toda a história da<br />
ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,<br />
conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.<br />
É muito importante realçar que Carlos Gomes não<br />
é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam<br />
ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,<br />
impropriamente chamada de protofonia. Por que não<br />
nos referimos a esta abertura com o seu título original –<br />
sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como<br />
Carlos Gomes.<br />
Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA<br />
57
58<br />
era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio<br />
primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma<br />
outra história.<br />
Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos<br />
Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe?<br />
com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de<br />
mim distante...”). Mas param por aí.<br />
Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil,<br />
a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas<br />
sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva<br />
confundir conscientização com engajamento.<br />
Monarquista convicto e declarado, grande admirador<br />
DISCOGRAFIA<br />
IL GUARANY<br />
Plácido Domingo<br />
Verónica Villarroel<br />
Carlos Álvarez<br />
Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn<br />
Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling<br />
Sony SK66273 / 2 CDs<br />
COLOMBO<br />
Inacio de Nonno<br />
Carol Mc Davit<br />
Fernando Portari<br />
Maurício Luz<br />
Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar<br />
UFRJ MUSICA - emufrj - 004<br />
ABERTURAS E PRELÚDIOS<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98<br />
SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”<br />
Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112<br />
Videos VHS e CDs<br />
FOSCA<br />
Gail Gilmore<br />
Krassimira Stoyanova<br />
Roumen Doykov<br />
Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />
Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />
FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997<br />
MARIA TUDOR<br />
Eliane Coelho<br />
Kostadin Andreev<br />
Elena Chavdarova-Isa<br />
Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia<br />
Reg.: Luís Fernando Malheiro<br />
FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998<br />
de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,<br />
a favor da causa abolicionista. Possuidor de um<br />
temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista<br />
(que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.<br />
Jamais um mesquinho.<br />
Romântico por natureza, mas suas óperas estão<br />
apoiadas no realismo, na corrente naturalista que<br />
desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).<br />
As personagens das óperas de Carlos Gomes são<br />
humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,<br />
mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção<br />
a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)<br />
e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),<br />
de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de<br />
“crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não<br />
era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,<br />
volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental.<br />
É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se<br />
banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,<br />
em última análise, é um quarteto de cordas com<br />
o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma<br />
sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas<br />
é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu<br />
último movimento – “vivace” leva o sub-título de<br />
Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.<br />
O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,<br />
sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito<br />
Batista Filho chega a afirmar que “genialidade<br />
é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o<br />
desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:<br />
De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa<br />
fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.<br />
De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância<br />
considerável por terra e mar. A chegada na corte<br />
imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro<br />
II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino<br />
Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial<br />
de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).<br />
Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...<br />
As duas primeiras composições importantes,<br />
as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora<br />
do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março<br />
e 16 de agosto, respectivamente.<br />
Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em
Funerais do<br />
maestro Carlos<br />
Gomes.<br />
Fotografia<br />
assinada por<br />
Fidanza. 1896.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />
NACIONAL – DIVISÃO DE<br />
<strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO<br />
SONORO<br />
Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,<br />
que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:<br />
1) Óperas completas, estreadas e muitas<br />
vezes apresentadas: 9<br />
a) em português – A Noite do Castelo –<br />
1861<br />
Joana de Flandres – 1863<br />
b) em italiano – Il Guarany –1870<br />
Fosca –1873<br />
Salvator Rosa –1874<br />
Maria Tudor –1879<br />
Lo Schiavo –1889<br />
Condor –1891<br />
Colombo –1892 (na verdade um poema<br />
vocal – sinfônico mas claramente<br />
pensado como ópera)<br />
2) Revistas musicais (vizinhas das<br />
operetas), estreadas e inúmeras vezes<br />
encenadas: 2<br />
Se sa minga –1867<br />
Nella luna –1868<br />
3) música vocal de câmara: 47 (5 em<br />
português, 2 em francês, 1 em dialeto<br />
veneziano e 39 em italiano)<br />
4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1)<br />
a) São Sebastião – 1856<br />
b) Nossa Senhora da Conceição – 1859<br />
c) Sem título específico – 1852<br />
5) Partes avulsas de missas (inacabadas<br />
(?) - perdidas as demais partes (?)<br />
a) Kyrie – 1865<br />
b) Qui tollis – ?<br />
c) Credo – ?<br />
6) Música instrumental de câmara: 4<br />
a) Aria para clarineta e piano – 1857<br />
b) Al chiaro di luna (para bandolim ou<br />
violino e piano) – ?<br />
c) Sonata para quinteto de cordas<br />
(Burrico de Pau) – 1894<br />
d) Variações para bandolim (Vem cá,<br />
Bitu) – ?<br />
7) Música para piano: 36 (32 para piono<br />
solo e 4 para piano a 4 mãos)<br />
8) Cantatas para coro masculino: 2<br />
a) La fanciulla delle Asturie – 1866<br />
(coro e piano)<br />
b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano)<br />
9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4<br />
a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui<br />
nesta cidade) – 1855<br />
b) Aria do alfaiate (Senhor mestre,<br />
veja lá) – ? (na verdade um dueto)<br />
c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni<br />
rumor) 1872<br />
d) Mama dice (anteriormente composta<br />
para canto e piano – 1882<br />
e em 1892 orquestrada pelo próprio<br />
compositor)<br />
10) Coro “a capella” : 6<br />
a) Fugas tonais – 1866<br />
b) Fugas reais – 1866<br />
11) Música orquestral: 3<br />
a) Variações sobre o tema do romance<br />
Alta Noite – 1859<br />
b) Lalalayu (anteriormente compsota<br />
para piano – 1866 e em 1867<br />
português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres<br />
(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)<br />
a Milão (1864), passando por Portugal e França, em<br />
busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe<br />
trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de<br />
luminosidade crescente, com momentos de escuridão,<br />
depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,<br />
certamente, constitui uma página das mais belas<br />
da História do Brasil.<br />
LUIZ AGUIAR<br />
Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.<br />
orquestrada pelo prórpio autor)<br />
c) Eva (valsa) – 1871<br />
12) Música para banda: 4<br />
a) Parada e dobrado sobre motivo da<br />
ópera “O Trovador”- 1856<br />
b) “L’Oriuolo” (galope) composta em<br />
1888, posteriormente instrumentada<br />
para banda por Giuseppe Mariani –<br />
1891<br />
c) Ao Ceará Livre – 1884<br />
d) Cruzador Escola “Benjamin<br />
Constant” – 1893<br />
13) Música para coro e banda: 2<br />
a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)<br />
– 1883<br />
b) A Camões ( O teu dia irromperá da<br />
história) – 1880<br />
14) Música para coro, banda e orquestra: 3<br />
a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso<br />
suol) – 1876<br />
b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884<br />
c) Coro triunfal – também conhecido<br />
como Hino Progresso (Pela estrada de<br />
flores repleta) – 1885<br />
15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?<br />
16) Óperas inacabadas: 2<br />
a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −<br />
1871 (2 atos completos somente para<br />
canto e piano)<br />
b) Morena – 1887 (idem)<br />
59
CHOPIN CARIOCA<br />
Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento<br />
técnico da música de concerto com elementos populares<br />
Todas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram<br />
60<br />
escritas para piano. Porém, ele só foi ter um<br />
instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos<br />
de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.<br />
Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos<br />
ou de lojas de música onde trabalhava.<br />
Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,<br />
em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um<br />
despachante aduaneiro e de uma pianista amadora,<br />
de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelo<br />
virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade,<br />
ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma<br />
queda que provocou hemorragia no ouvido direito,<br />
causando problemas auditivos que o acompanhariam<br />
pelo resto da vida.<br />
Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição,<br />
a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande<br />
interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica<br />
da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante,<br />
Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção<br />
do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar<br />
ALEXANDRE PAVAN<br />
os estudos pianísticos, mas por falta de recursos<br />
o projeto foi cancelado.<br />
A falta de dinheiro foi constante na vida de<br />
Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias<br />
mais virtuosas que suas peças musicais para poder<br />
sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava<br />
em clubes que detestava e acabou arriscando até<br />
mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser<br />
nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi<br />
efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.<br />
Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth<br />
continuava compondo. Mesmo sem o merecido<br />
reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana<br />
da música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmica<br />
incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,<br />
sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande<br />
variedade de fórmulas, empregou nas suas<br />
composições uma ciência rítmica, uma beleza<br />
harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica<br />
que o tornam de fato o expoente máximo da<br />
música popular brasileira e um autêntico precursor<br />
Ernesto Nazareth em<br />
São Paulo em 1926.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA<br />
NACIONAL – DIVISÃO<br />
DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO
da nossa música erudita de caráter<br />
tenha sido apresentado aos ilustres<br />
nacional”, escreveu o musicólogo<br />
autores brasileiros da época,<br />
Brasílio Itiberê.<br />
Milhaud surpreendeu-se mais com<br />
Essa característica da obra<br />
os sons da rua do que com aqueles<br />
de Ernesto Nazareth trouxe mais<br />
das salas de concerto. “Seria de<br />
problemas do que dividendos ao<br />
desejar que os músicos brasileiros<br />
autor: o povo não gostava muito<br />
de suas composições, porque não<br />
eram dançáveis, e os estudiosos<br />
Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.<br />
Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d).<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
compreendessem a importância<br />
dos compositores de tangos,<br />
de maxixes, de sambas<br />
torciam o nariz por considerarem<br />
DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
e de cateretês, como (Marcelo)<br />
as peças com pouco valor como obras de concerto. Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.<br />
Durante um bom período, garantiu o aluguel<br />
Realmente, o pianista carioca deve tê-lo<br />
como pianista da sala de espera do Cine Odeon, impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos<br />
na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam<br />
os espectadores se dirigiam ao cinema cerca<br />
aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur<br />
de uma hora antes do filme começar para ouvirem Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de<br />
os instrumentistas tocarem. No Odeon, também<br />
mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais<br />
se apresentava a pequena orquestra do maestro<br />
uma vez não lucrou nada com a história.<br />
Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos<br />
Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve<br />
era violoncelista.<br />
o problema de audição agravado, mas, por motivos<br />
Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se<br />
peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre<br />
de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe<br />
e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,<br />
choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios<br />
da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos<br />
classificadas desta forma nada têm a ver com a música de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,<br />
portenha. Era apenas uma denominação mais<br />
escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.<br />
aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades Foi encontrado morto – por afogamento – próximo<br />
de sua obra com os gêneros populares – como<br />
o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando<br />
a uma cachoeira.<br />
as chances de ela ser editada. Alguns tangos de<br />
DISCOGRAFIA<br />
Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer SEMPRE NAZARETH (Kuarup),<br />
que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo<br />
de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)<br />
a praxe da época, quando as editoras compravam<br />
ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres<br />
as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro<br />
das vendas para os compositores.<br />
Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana<br />
(violino) e Sebastião Vianna (flauta)<br />
ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES<br />
Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão<br />
(Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)<br />
da escultora Camille Claudel) transferiu-se para<br />
RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),<br />
a embaixada francesa no Brasil e trouxe como<br />
de Radamés e Aída Gnattali (piano)<br />
acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora Inclui obras de Radamés Ganattali<br />
ALEXANDRE PAVAN<br />
Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.<br />
61
62<br />
O Modernismo
Musical Brasileiro<br />
Oobjetivo deste artigo é retratar a geração<br />
de compositores brasileiros ativos durante a Primeira<br />
República até o limiar da década de 1920.<br />
Tradicionalmente considerados românticos − como<br />
Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald<br />
(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,<br />
alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo<br />
musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha<br />
(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto<br />
Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863-<br />
1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de<br />
referência: a Semana de Arte Moderna. Esse<br />
acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17<br />
de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São<br />
Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como<br />
evento que inaugura simbolicamente o modernismo”.<br />
(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras,<br />
a (des)qualificação desses compositores se dava pela<br />
maior ou menor proximidade de suas obras com<br />
os ideais desse marco zero, dividindo os períodos<br />
históricos em antes e depois da Semana.<br />
Os critérios utilizados para as definições<br />
de modernidade foram “a ênfase na atualização estética<br />
e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso<br />
modo pelo romantismo, na música, e pelo<br />
parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19)<br />
e no modernismo nacionalista.<br />
Com base nesses critérios, os escritos tratavam<br />
de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista<br />
e o ultrapassado, entre o independente e o<br />
Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno<br />
por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.<br />
COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO<br />
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />
subserviente. Em suma, entre o nativo original<br />
e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.<br />
De acordo com essa concepção, os artistas<br />
da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir<br />
mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,<br />
levando a frente um projeto estético e ideológico cujo<br />
objetivo era transfigurar a identidade e o centro<br />
ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como<br />
o centro irradiador.<br />
Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),<br />
um dos ideólogos e porta-voz do movimento<br />
modernista de 1922:<br />
“Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,<br />
entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo<br />
continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.<br />
(Picchia apud Brito, 1971; 171)<br />
Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-<br />
1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de<br />
conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da<br />
libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).<br />
Como resultado, aos compositores da geração<br />
anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,<br />
tributários a uma estética que não mais representaria<br />
a sociedade de então, colaboradores na perpetuação<br />
de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,<br />
alguns mereceram a qualificação de precursores, já que<br />
não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos<br />
demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na<br />
melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.<br />
Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas<br />
e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino<br />
bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram<br />
a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”<br />
(Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.<br />
63
64<br />
No entanto, por mais significativos e escandalosos<br />
que tenham sido os resultados obtidos no evento<br />
paulista, os programas musicais apresentados não<br />
se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se<br />
manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria<br />
“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas)<br />
e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de<br />
a própria formação desses modernistas estar vinculada<br />
ao “passado”.<br />
Em outras palavras, os resultados apresentados<br />
durante a Semana de 22 não se deram por um processo<br />
de “geração espontânea”, e sim já eram gestados<br />
e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê<br />
da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno,<br />
Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre<br />
outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram<br />
os “bandeirantes” que abriram o caminho para<br />
os artistas da Semana, que sobre seus ombros<br />
Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão<br />
Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,<br />
1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.<br />
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e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.<br />
Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana<br />
de 22 manifestavam uma “preocupação febril<br />
de atualização com referência às vanguardas européias<br />
e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;<br />
66), de onde se interpreta que um compositor como<br />
Nepomuceno estava comprometido com a tradição,<br />
cabendo aos “novos modernos” os louros<br />
da atualização e do progresso.<br />
Tal afirmação pode ser contestada por artigo<br />
de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio<br />
de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicale<br />
e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,<br />
Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham<br />
a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada<br />
com partituras de música contemporânea. Entretanto,<br />
cita somente os compositores e associações francesas,<br />
como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,<br />
a Société Musical Independante e a Schola Cantorum,<br />
entre outros.<br />
A atualização do meio musical carioca era tal que,<br />
ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo<br />
e Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satie<br />
que eu conhecia até então muito imperfeitamente<br />
e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente<br />
bem toda a música contemporânea” (Milhaud apud<br />
Wisnik, 1977; 40).<br />
Dois outros relatos se referem a essa ênfase<br />
contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se<br />
da série de 26 concertos realizados durante a Exposição<br />
Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da<br />
abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.<br />
Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se<br />
dizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial no<br />
século XX” (Azevedo, 1956; 171).<br />
De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve<br />
um momento em que as circunstâncias permitiram<br />
a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos<br />
sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos<br />
nossos compositores e uma série luminosa da mais<br />
moderna literatura musical estrangeira”.<br />
(Barbosa, 1940; 28).<br />
A abrangência do repertório apresentado<br />
demonstrou que a relação de compositores estrangeiros
dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia<br />
aos franceses, como descrito por Milhaud alguns<br />
anos mais tarde, mas também incluía russos<br />
e alemães, além de brasileiros.<br />
Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas<br />
(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander<br />
Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),<br />
Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.<br />
Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna<br />
(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto<br />
Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),<br />
Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),<br />
Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros.<br />
Com base na relação de compositores<br />
apresentados durante os concertos da Exposição<br />
Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento<br />
onde a intolerância estética não teria espaço. Assim,<br />
Carlos Gomes, compositor representativo do período<br />
imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava<br />
ao lado de republicanos românticos e modernos,<br />
adeptos das escolas germânica e francesa. Daí<br />
vislumbra-se, também, que a formação do público<br />
de concerto estava entre os seus objetivos.<br />
Reforça essa conclusão a respeito da atualização<br />
do modo de recepção o relato do pianista português<br />
José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de<br />
Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos<br />
por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram<br />
“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic)<br />
de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela<br />
música [...]”. (Melo, 1947; 290).<br />
A modernização pretendida no meio musical<br />
carioca se refletiu também na formação musical. Coube<br />
a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das<br />
principais escolas de música européias, culminando<br />
com a publicação do relatório Organização dos<br />
Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo<br />
de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu<br />
pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890.<br />
A qualidade e o grau de seriedade de seus professores<br />
e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da<br />
Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos<br />
artísticos de que dispõe o Rio é que a associação<br />
[de Concertos Populares] não tem dificuldade<br />
Luciano Gallet.<br />
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nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.<br />
(Melo, 1947; 291).<br />
Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns<br />
exemplos da música de Alberto Nepomuceno<br />
mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência<br />
modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original<br />
op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,<br />
escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros<br />
procedimentos modernos. Também seguem a mesma<br />
trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções<br />
Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista<br />
Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle).<br />
Merecem citação à parte as considerações<br />
a respeito do Trio em fá sustenido menor,<br />
de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que<br />
“Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino<br />
e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino<br />
Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal<br />
do Commercio o Trio em fá sustenido menor de<br />
Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical<br />
e saudada por Luiz de Castro como o produto<br />
de um compositor que se tornou completamente moderno”<br />
[grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).<br />
Pereira ainda relata o fato de que os compositores<br />
franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux<br />
(1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,<br />
compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,<br />
ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno<br />
declarando Vous avez débuté par un coup de maître!<br />
(Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de<br />
65
66<br />
Nepomuceno, Messager declarou<br />
a música brasileira da escola alemã,<br />
que a obra colocava o autor entre os<br />
considerada moderna, afastando-a do<br />
melhores da música moderna (Pereira,<br />
lirismo excessivo da escola italiana.<br />
op. cit.; 305). Darius Milhaud<br />
Assim, Brahms e Wagner foram<br />
concordava com essas considerações<br />
modelos em detrimento de Rossini<br />
e estava desejoso da publicação do<br />
e Verdi. No entanto, os programas<br />
Trio para levá-lo para a Europa<br />
musicais se mantiveram ecléticos.<br />
(Pereira, op. cit.; 308).<br />
Em um futuro não distante, Debussy,<br />
Após essas considerações, pode-<br />
Fauré, Sant-Säens, entre outros,<br />
se questionar a pretensão<br />
seriam somados a esse grupo.<br />
atualizadora, anti-passadista, dos<br />
As trocas com a Europa também<br />
“novos modernos”. A geração de<br />
moldaram o crescente nacionalismo<br />
compositores da Primeira República<br />
Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos<br />
já se ocupava em manter-se<br />
atualizada, já que as trocas com<br />
Edição da Sociedade Brasileira<br />
de Musicologia. São Paulo.<br />
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perder de vista que, na época, a visão<br />
européia sobre o Brasil afirmava<br />
a Europa eram freqüentes, além<br />
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a “impossibilidade de uma nação<br />
de a formação de muitos desses compositores<br />
civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.<br />
brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural<br />
na maioria das vezes, escolas progressistas.<br />
que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus<br />
Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto,<br />
compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes<br />
Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas<br />
Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.<br />
e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos<br />
a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. com roupagem européia. O exemplo clássico são<br />
(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode<br />
as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos<br />
ser encontrada no artigo Compositores românticos<br />
Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da música<br />
brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). popular urbana, eventualmente da popular rural<br />
Para se ter em conta o espírito<br />
ou folclórica, representada pela Série<br />
desbravador desses compositores, vale<br />
Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,<br />
lembrar que até por volta de 1880,<br />
de Alberto Nepomuceno e pelos<br />
ópera e bel canto eram sinônimos<br />
Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto<br />
de música no Brasil – e no restante<br />
Nazareth. Um grande passo nesse<br />
da América. Foi a partir dessa década<br />
caminho nacionalista foi a odisséia<br />
que se deu efetivamente a introdução<br />
nepomucena de escrever canções<br />
da música sinfônica e camerística nos<br />
sobre poemas em português, feito que<br />
eventos musicais brasileiros, tendo<br />
ainda sequer havia se concretizado em<br />
Miguez, Oswald e Nepomuceno<br />
Portugal, segundo Viana da Mota.<br />
como grandes divulgadores.<br />
Continuando a migração dos pólos,<br />
As mudanças de meios de<br />
chega-se ao extremo oposto, onde<br />
expressão e gosto pretendidos não<br />
a música brasileira se vestiria de<br />
visaram a substituição da ópera pela Leopoldo Miguez. Desenho assinado acordo com a sua sonoridade nativa,<br />
música sinfônica ou de câmera.<br />
Tinham como objetivo aproximar<br />
por Henrique Bernardelli em 1903.<br />
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independente da citação folclórica.<br />
Foi um dos caminhos trilhados por
Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para<br />
orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas.<br />
Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se<br />
coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão<br />
comum nas categorizações. São simplesmente visões<br />
distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido<br />
pelas dinâmicas sociais de cada período histórico.<br />
Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”,<br />
para os compositores do período aqui tratado,<br />
apresentarem-se plenas de preconceito e presas<br />
ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22.<br />
Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à<br />
Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior<br />
intimidade com a música brasileira mostra-se<br />
não procedente.<br />
Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão<br />
parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes,<br />
desajeitadas as realizações musicais desses<br />
compositores brasileiros, mais acadêmicas do que<br />
revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam<br />
perturbadoramente, eram objeto de discussão<br />
e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através<br />
delas, que novas perspectivas puderam ser abertas<br />
e processos mais amplos para a expressão musical<br />
foram conquistados.<br />
Portanto, o período da Primeira República, mostra-<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil.<br />
Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956.<br />
BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira<br />
de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39.<br />
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro:<br />
antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1971.<br />
CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da<br />
Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000.<br />
MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniais<br />
até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa<br />
Nacional, 1947.<br />
PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:<br />
DISCOGRAFIA<br />
NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,<br />
PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995<br />
Sony Music Entertainment<br />
NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE <strong>BRASILEIRA</strong>. Orquestra Sinfônica<br />
Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981<br />
MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO. VL. −<br />
Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998<br />
OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9. VL<br />
Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo<br />
Martins. FUNARTE. 1998<br />
LEVY, Alexandre − SUÍTE <strong>BRASILEIRA</strong>. Orquestra Sinfônica Brasileira/<br />
Souza Lima. Festa<br />
BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />
Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus<br />
se uma época muito rica para a música brasileira.<br />
A eterna atualização estética junto com a afirmação<br />
da identidade brasileira, pelo auto-conhecimento<br />
de suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletem<br />
um “período mágico”, onde “reside a essência do<br />
verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.<br />
(Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de<br />
Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical<br />
brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se<br />
e virou Nacionalismo Musical Brasileiro.<br />
Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-<br />
1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de<br />
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de<br />
Janeiro, 1995.<br />
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.<br />
5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.<br />
TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />
VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na<br />
Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/<br />
95. p.51-76<br />
WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno<br />
da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.<br />
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG<br />
Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).<br />
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />
67
Henrique Oswald e os Românticos Brasileiros<br />
Em Busca do Tempo Perdido<br />
Talvez não haja melhor expressão do que garimpo<br />
68<br />
musical para descrever os primórdios das pesquisas<br />
musicológicas no final da década de 1940 no estado<br />
de Minas Gerais. Isto porque foi necessário muita<br />
paciência, perseverança, uma boa dose de sorte<br />
e um olhar clínico para se começar a descobrir<br />
as verdadeiras preciosidades que jaziam nos porões<br />
das cidades históricas em meio a antigos manuscritos<br />
musicais, até então considerados “papel velho, bom<br />
para queimar”.<br />
As mesmas montanhas que no século XVIII<br />
haviam presenciado a corrida do ouro – que fez<br />
florescer subitamente toda a região, produzindo uma<br />
cultura musical importante, soterrada pela ação<br />
do tempo – foram, no século XX, testemunhas de um<br />
novo rush, este mais discreto, protagonizado por<br />
musicólogos que se debruçaram sobre esse patrimônio<br />
da cultura brasileira, até então ignorado.<br />
Quase espremidos entre a produção surpreendente<br />
dos antigos mestres da música colonial mineira e os<br />
feitos merecidamente louvados de Villa-Lobos (1887-<br />
1959) e demais membros do nacionalismo musical<br />
pós-semana de 1922, encontra-se toda uma geração de<br />
autores que encarnam o romantismo brasileiro.<br />
São eles Carlos Gomes (1839-1896), Leopoldo Miguez<br />
(1850-1902), Henrique Oswald (1852-1931), Alberto<br />
Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Braga<br />
(1868-1945), para citar os mais representativos.<br />
EDUARDO MONTEIRO<br />
Diferentemente dos autores mineiros, a produção<br />
dos românticos nunca chegou a ser de fato esquecida,<br />
mas por outro lado, também não teve a sorte<br />
de ser plenamente “redescoberta” e assim repercutir<br />
com seu real valor. Parece, ao contrário, aguardar<br />
pacientemente o dia em que finalmente será<br />
reconhecida em sua magnitude. Quanto mais<br />
se estuda e conhece o conjunto da obra desses<br />
compositores, torna-se evidente sua excelência<br />
técnica e profunda inspiração.<br />
Não obstante, sua obra sofre uma espécie de<br />
preconceito latente na historiografia musical brasileira,<br />
ainda fortemente baseada na tradição fundada<br />
por Renato Almeida e Mário de Andrade. Na maior<br />
parte da literatura especializada, encontra-se uma<br />
tendência a qualificar esses autores segundo<br />
seu grau de envolvimento com a construção do mito<br />
do nacionalismo musical. Chegou-se assim, de forma<br />
velada, a uma equação simplista, na qual a importância<br />
do compositor é determinada pelo índice<br />
de características nacionais de sua obra.<br />
O distanciamento no tempo preservou os mestres<br />
mineiros desse tipo de julgamento, mas o mesmo não<br />
aconteceu com os românticos. Esses carregam até hoje<br />
o injusto fardo de serem autores supostamente<br />
influenciados em demasia pela cultura européia.<br />
O destino acabou sendo um pouco mais<br />
complacente com Alberto Nepomuceno e Carlos
Henrique Oswald. Il neige. Obra premiada no concurso promovido por “Le Figaro”:<br />
“1 er . Concours de morceaux pour piano”. 8 de novembro de 1902.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Gomes. Mesmo estando Nepomuceno, musicalmente,<br />
mais próximo do velho continente que de Villa-Lobos,<br />
este autor é freqüentemente evocado na literatura<br />
tradicional como sendo o “pai” do nacionalismo,<br />
devido à sua batalha pela valorização do canto em<br />
português. Quanto a Carlos Gomes, sua importância<br />
como operista para o Brasil jamais poderia ser negada.<br />
Felizmente, a temática indianista de Il Guarany, mesmo<br />
que cantada em italiano, forneceu elementos concretos<br />
para serem louvados pelos defensores do nacionalismo.<br />
A sorte foi mais madrasta com Leopoldo Miguez<br />
e Henrique Oswald. É comum encontrar nos livros<br />
de história da música brasileira uma censura mais ou<br />
menos explícita a estes autores em função da ausência<br />
de características nativas em suas peças. Miguez<br />
é invariavelmente acusado de wagneriano. A Oswald<br />
cabe normalmente o termo “afrancesado”.<br />
Apenas duas considerações deveriam ser<br />
necessárias para refutar este olhar preconceituoso.<br />
Inicialmente, é preciso ter consciência que embora haja<br />
um sentimento pátrio desde o século XIX que se<br />
manifesta esporadicamente na produção dos<br />
românticos, o nacionalismo musical só se organizou<br />
efetivamente como movimento em fins da década<br />
de 1920, quando esses autores ou já haviam morrido,<br />
ou composto boa parte de sua obra. Em segundo lugar,<br />
deve-se constatar que a sociedade brasileira da virada<br />
do século XX sofria de fato forte influência da cultura<br />
européia. Era portanto de se esperar que a música<br />
desses compositores refletisse essa realidade.<br />
No caso específico de Oswald, a identificação com<br />
a Europa é inerente a seu histórico de vida.<br />
O autor de Il neige!... – sua obra mais célebre, para<br />
piano solo – nasceu no Rio de Janeiro em 1852<br />
e, como boa parte dos compositores da época, era filho<br />
de europeus. A vinda de seus pais para o Brasil em<br />
69
70<br />
1850 insere-se no amplo movimento migratório<br />
verificado no século XIX. Entretanto, os Oswald nunca<br />
pretenderam trabalhar na lavoura, como era o objetivo<br />
da maior parte deste contingente. O pai, Jean-Jacques,<br />
suiço-alemão, possuía um ofício – era comerciante –<br />
e algum capital. Homem empreendedor, depois de um<br />
início difícil no Brasil, quando teve negócios<br />
malogrados e chegou mesmo, por razões ideológicas,<br />
a ser perseguido por membros da oligarquia cafeeira<br />
paulista, acabou prosperando com seu negócio de<br />
pianos na pacata São Paulo dos anos 1850-60. A mãe,<br />
Carlotta Cantagalli, uma italiana com boa formação<br />
intelectual, era uma mulher de fibra que assumiu,<br />
quando foi preciso, as despesas da casa com suas aulas<br />
de piano, francês e italiano.<br />
O retorno da família à Europa, mais<br />
especificamente a Florença, aconteceu em 1868, e teve<br />
como objetivo principal o aprimoramento musical<br />
de Oswald, que se deu junto aos excelentes mestres do<br />
DISCOGRAFIA<br />
Discos Compactos:<br />
CARDOSO, André, MONTEIRO Eduardo. “En Rêve”; “Andante<br />
con Variazioni para piano e orquestra”. In: Leopoldo Miguez e<br />
Henrique Oswald – Orquestra Sinfônica da Escola de Música da<br />
UFRJ., Rio de Janeiro: UFRJ/Música, 2004<br />
DUARTE, Roberto Ricardo. “Elegia”. In: Música Brasileira Vol. I -<br />
Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ.. Rio de Janeiro:<br />
UFRJ, 1991<br />
KLINCK, Paul, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald.<br />
Music for violin and piano. Ghent: PKP, 1995<br />
GUIMARÃES, Maria Inês. Henrique Oswald. Piano Music. Munique:<br />
Marco Polo, 1995<br />
RUBIO, Quarteto, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –<br />
Quarteto para piano e cordas op. 26; Sonata-Fantasia op. 44;<br />
Concerto para piano e orquestra op. 10. São Paulo: Revista<br />
Concerto, Série Música de Concerto / USP / De Rode Pomp,<br />
2002<br />
Discos de vinil:<br />
DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald –<br />
Obras para piano e violoncelo e piano. Rio de Janeiro: Funarte,<br />
1982<br />
FUKUDA, Elisa, DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo.<br />
Henrique Oswald – Trio em sol menor op. 9, Sonata em Mi maior<br />
op. 36. Rio de Janeiro: Funarte, 1988<br />
SILVA, Honorina. Documentos da Música Brasileira Vol. 11 - Honorina<br />
Silva interpreta Henrique Oswald. Rio de Janeiro: Funarte /<br />
Promemus, 1979<br />
Regio Istituto Musicale di Firenze, destacando-se Giuseppe<br />
Buonamici e Reginaldo Grazzini.<br />
Na Itália, Oswald casou-se com Laudomia<br />
Gasperini, teve quatro filhos e por 35 anos atuou como<br />
pianista, professor e compositor de prestígio no meio<br />
musical florentino. Mas os vínculos com a pátria jamais<br />
foram desfeitos. A partir de 1879 foi bolsista do<br />
Imperador D. Pedro II; entre 1896 e 1900 veio quatro<br />
vezes ao Brasil para realizar concertos, obtendo grande<br />
projeção; e finalmente ocupou o cargo de Chanceler<br />
no Consulado Brasileiro no Havre por um curto espaço<br />
de tempo entre 1900 e 1901.<br />
1902 é o ano que marca a grande reviravolta<br />
em sua vida. Contando 50 anos de idade, obtém<br />
o primeiro lugar em um concurso de composição<br />
organizado pelo jornal Le Figaro de Paris. No júri,<br />
ninguém menos que os ilustres compositores Gabriel<br />
Fauré e Camille Saint-Saëns, além do grande pianista<br />
Louis Diémer. Cabe a ressalva que os segundo<br />
e terceiro lugares foram atribuídos aos hoje renomados<br />
Alfredo Casella e Florent Schmitt. Essa premiação abre<br />
uma possibilidade de penetração na vida musical<br />
parisiense, a grande vitrine da época. Por outro lado,<br />
esta vitória também projeta fortemente o nome do<br />
compositor em terras brasileiras. Em conseqüência,<br />
no ano seguinte, Oswald é convidado para ser diretor<br />
do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro,<br />
a instituição musical de maior prestígio da República.<br />
O convite era irresistível e Oswald acaba por aceitá-lo.<br />
No entanto, o compositor foi hostilizado como um<br />
“estrangeiro” na direção da Instituição, cargo político<br />
para o qual não possuía nenhuma vocação. A demissão<br />
é finalmente aceita após 3 longos e sofridos anos.<br />
Entre 1906 e 1911, Oswald passa por um momento<br />
de crise e indecisão, envolvendo seu retorno à Europa,<br />
onde deveria tudo recomeçar, ou sua permanência no<br />
Brasil, onde ainda havia muito por se fazer. Mas, por<br />
fim, sua nomeação para a cátedra de piano no Instituto<br />
e a vinda de toda a família em 1911 deixam claro que<br />
a opção pelo Brasil era irreversível.<br />
Em seus últimos 20 anos no Rio de Janeiro,<br />
Oswald goza de grande reputação e prestígio como<br />
compositor e professor de piano. Sua morte, aos 79<br />
anos de idade, se dá em meio a homenagens e pleno
econhecimento como um<br />
dos maiores compositores<br />
brasileiros de todos<br />
os tempos.<br />
Itália e Brasil, os dois<br />
países nos quais o<br />
compositor viveu, tinham<br />
em comum um meio<br />
musical que privilegiava<br />
a ópera e no qual a música<br />
instrumental – solo, de<br />
câmera e sinfônica – estava<br />
Henrique Oswald.<br />
ainda em florescimento<br />
e por esta razão era fortemente calcada nas tradições<br />
alemã e, posteriormente, francesa. Embora tenha<br />
composto três óperas – uma delas um trabalho<br />
de juventude – Oswald foi predominantemente um<br />
compositor de música instrumental, e desta forma<br />
sofreu influência dos quatro países acima mencionados.<br />
Esta multiplicidade de fontes de inspiração, que<br />
proporcionou o desenvolvimento de uma escrita<br />
altamente refinada, deveria ser vista como um fator<br />
de riqueza e não como uma justificativa para a falta<br />
de interesse pela música nacionalista.<br />
Há outros aspectos muito mais relevantes que<br />
a questão do sentimento nativista a serem abordados<br />
em sua obra, como por exemplo a importância da<br />
contribuição para os gêneros sinfônico e camerístico<br />
aportados por sua produção à música do país. Oswald<br />
não foi o primeiro brasileiro a escrever obras deste<br />
tipo, mas é, no que tange a música de câmera, um dos<br />
autores nacionais mais significativos. A qualidade<br />
e o volume de sua produção são a prova disso: Sonata<br />
para violino e piano, duas Sonatas para violoncelo e<br />
piano, cinco Trios para violino, violoncelo e piano, dois<br />
Quartetos e um Quinteto para piano e cordas, quatro<br />
SUGESTÕES DE LEITURA:<br />
MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald, músico de uma saga<br />
romântica. São Paulo: EDUSP, 1995.<br />
Quartetos de Cordas, um Octeto para cordas, além de<br />
várias pequenas peças para violino e violoncelo com<br />
acompanhamento de piano.<br />
O Trio op. 9, obra-prima de sua primeira fase que<br />
testemunha ainda a influência do romantismo alemão,<br />
seria uma composição digna de figurar no catálogo de<br />
Felix Mendelssohn. A Sonata para violino e piano op. 36,<br />
que marca sua aproximação da escola francesa, poderia<br />
eventualmente ser tomada por uma peça de Fauré ou<br />
César Franck. Já a 2me Berceuse para violino e piano vai<br />
mais longe e se avizinha do universo de Ravel. Porém,<br />
infelizmente, este repertório é praticamente ignorado<br />
por nossos músicos.<br />
Mas a herança de Oswald é ainda muito mais<br />
ampla, abrange uma grande quantidade de peças para<br />
piano, Prelúdios e Fugas para órgão, duas sinfonias e<br />
várias transcrições de obras pianísticas para orquestra<br />
sinfônica e de cordas, três concertos para instrumento<br />
solista e orquestra, obras para canto e piano, canto<br />
e orquestra, coro, incluindo duas Missas, coro<br />
e orquestra, além das três óperas já mencionadas.<br />
Embora possa-se observar que é crescente o<br />
número de pesquisadores nas universidades brasileiras<br />
que se debruçam sobre seu legado, o que mostra que<br />
há um processo de revalorização em andamento,<br />
a passagem praticamente em branco do<br />
sesquicentenário do compositor no ano de 2002, indica<br />
que Oswald está longe de ocupar o lugar que lhe cabe<br />
como um dos maiores compositores brasileiros de<br />
todos os tempos. A cultura nacional seria a principal<br />
beneficiada se fosse abandonado o tom<br />
predominantemente condescendente com que<br />
o compositor é abordado em favor de um verdadeiro<br />
reconhecimento de seu valor e, sobretudo, se Oswald<br />
fosse mais executado em nossas salas de concerto.<br />
É necessário recuperar o tempo perdido!<br />
MONTEIRO, Eduardo. Henrique Oswald (1852-1931), un<br />
compositeur brésilien au-delà du nationalisme musical. L´Exemple<br />
de sa musique de chambre avec piano. Doutorado em Musicologia.<br />
Paris: Sorbonne, 2000.<br />
EDUARDO MONTEIRO<br />
Prof. Dr. do <strong>Departamento</strong> de Música da ECA-USP, é Dr. em Musicologia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne,<br />
com tese sobre a música de câmera com piano de Henrique Oswald.<br />
71
Heitor<br />
Villa-Lobos<br />
M O D E R N O E N A C I O N A L<br />
JORGE COLI
A SEMANA DE ARTE MODERNA, EM FEVEREIRO DE 1922, OCORREU EM S.<br />
PAULO. ELA PROVOCOU GRANDE ESCÂNDALO E POLÊMICA, APRESENTANDO<br />
NOVIDADES QUE, NO MEIO ACANHADO DAS ARTES PAULISTAS, PARECIAM<br />
RADICALISMOS DE VANGUARDA. AS NOVIDADES EM <strong>MÚSICA</strong> FORAM<br />
TRAZIDAS POR UM JOVEM COMPOSITOR, HEITOR VILLA-LOBOS. ALÉM DE SEUS<br />
PROPÓSITOS DE RUPTURA ESTÉTICA E ARTÍSTICA, PAIRAVA, DURANTE A<br />
SEMANA, UM VAGO TOM NACIONALISTA, E RONALD DE CARVALHO<br />
RECONHECIA, EM VILLA-LOBOS, UMA AFIRMAÇÃO DE ARTE “NACIONAL”.<br />
1922 foi o centenário da independência do<br />
Brasil, momento de carga simbólica, que sugeria uma<br />
equivalente autonomia cultural do país. No entanto,<br />
é no correr dos anos de 1920 que o modernismo<br />
brasileiro tomará, de fato, cores nacionalistas. É por<br />
volta de 1930 que esse projeto, moderno e nacional, vai<br />
se encontrar afirmado, com o romance “Macunaíma”, de<br />
Mário de Andrade, com o movimento Antropofágico,<br />
de Oswald de Andrade. Mário de Andrade teorizará<br />
a questão musical a partir desse enfoque em seu<br />
“Ensaio sobre a música brasileira”, de 1928.<br />
No entanto, vista de perto, a musicalidade<br />
profundamente brasileira, que revestiu-se de um<br />
aspecto de mito com a música de Villa-Lobos, parece<br />
bem mais ambígua. Trabalhar sobre Villa-Lobos<br />
é, de qualquer forma, delicado. Existem, está claro,<br />
algumas boas biografias e estudos, e um arrolamento<br />
catalográfico de suas obras. Mas eles são insuficientes,<br />
e seu catálogo crítico não foi ainda estabelecido.<br />
É preciso desejar muita paciência para quem decidir<br />
organizá-lo, porque o próprio Villa-Lobos<br />
encarregava-se de falsificar dados com uma ousadia<br />
e uma impudência ímpar.<br />
Como descobrir a data exata de várias de suas<br />
composições se Villa-Lobos empregava um critério<br />
cronológico “espiritual” ou “espírita”, como diz Mário<br />
de Andrade em “O mundo musical”? Villa-Lobos fazia<br />
recuar várias composições em vários anos. Uma das<br />
intenções esperadas era demonstrar que o caráter<br />
brasileiro de sua música existia desde cedo, mesmo<br />
quando ele compunha, de fato, num espírito<br />
inteiramente francês e internacional. Era uma<br />
legitimação de precocidade nacionalista.<br />
Assim, uma atitude necessária para, no mínimo,<br />
qualquer precaução metodológica no que concerne<br />
ao estudo da obra do compositor, é levar a todas as<br />
conseqüências as observações de Lisa Peppercorn<br />
em seu artigo publicado em “The Music Review”, de<br />
fevereiro 19431 , referentes a antedatação de suas peças.<br />
Mário de Andrade retoma essas indicações em<br />
“O mundo musical” 2 . Essas conseqüências impõem<br />
a precaução prévia de não se poder confiar nas<br />
informações de Villa-Lobos. É preciso, no que<br />
concerne às datas, que provas documentais realmente<br />
insuspeitas venham garantir a referência. E isto, como<br />
veremos, é capital – entre outras coisas − para se<br />
73
74<br />
UMA DAS INTENÇÕES ESPERADAS ERA DEMONSTRAR QUE O CARÁTER BRASILEIRO<br />
DE SUA <strong>MÚSICA</strong> EXISTIA DESDE CEDO, MESMO QUANDO ELE COMPUNHA,<br />
DE FATO, NUM ESPÍRITO INTEIRAMENTE FRANCÊS E INTERNACIONAL.<br />
ERA UMA LEGITIMAÇÃO DE PRECOCIDADE NACIONALISTA.<br />
compreender a célebre “alma brasileira”, que seria<br />
própria a Villa-Lobos.<br />
Mário de Andrade raciocina: “Inquieta com esses<br />
arranjos muitas vezes feitos sobre obras... ainda não<br />
escritas, e visivelmente informada pelo próprio<br />
compositor, a crítica (Lisa Peppercorn) nos conta que<br />
‘Villa-Lobos chama isso reescrever uma obra, sendo<br />
interessante também que essas músicas são datadas do<br />
ano em que foram espiritualmente concebidas, e não<br />
do momento em que foram realmente compostas’.<br />
Eu tenho a idéia de que essa foi a explicação inventada<br />
por Villa-Lobos no momento, para justificar as suas<br />
audácias, mas desde muito me sinto na obrigação<br />
de duvidar das datas com que o grande compositor<br />
antedata muitas de suas obras, na presunção<br />
de se tornar genial pioneiro em tudo.<br />
No número de Música Viva3 dedicado a Villa-Lobos<br />
a que o autor do Amazonas forneceu a relação de suas<br />
obras, estas vêm acompanhadas cuidadosamente das<br />
datas em que foram, digamos, “espiritualmente”<br />
ou “espiritistamente” concebidas... Por desgraça, nem<br />
isso é verdade, e custa a crer que o artista se arrojasse<br />
a semelhantes ilusões. Aí Villa-Lobos coloca certas<br />
obras brasileiras dele nas décadas de 1910 e 20, como<br />
as Cirandas e as Cirandinhas, que foram muito<br />
posteriormente tanto compostas quanto concebidas”. 4<br />
Mário de Andrade revela então a história das<br />
Cirandas, que ele estimulara e acompanhara a criação,<br />
testemunhando assim sobre o caráter fantasioso das<br />
afirmações do compositor.<br />
É legítimo ainda indagar o que significam,<br />
realmente, as viagens iniciáticas e míticas da juventude<br />
de Villa-Lobos pelo Brasil afora, enquanto contribuição<br />
para sua brasilidade compositiva, tal como ele<br />
as propalava? Marcel Beaufils, através do testemunho<br />
de Casadesus e Vasco Mariz, num artigo de Lucie<br />
Delarue-Mardrus, narra histórias inverossímeis<br />
contadas por Villa-Lobos em Paris: ele teria sido feito<br />
prisioneiro dos índios. Aproveitava então para<br />
aprender de cor os belos cantos dos selvagens que<br />
o torturavam. A alguém que lhe perguntava se, por<br />
acaso, teria, nessas ocasiões, praticado a antropofagia,<br />
ele confessa ter comido carne de criança com os índios.<br />
Teria tocado, num fonógrafo, música ocidental:<br />
enfurecidos, os índios precipitavam-se para destruir<br />
o aparelho. Mas, substituindo a gravação, a máquina<br />
transmitia canções indígenas e se transformava<br />
imediatamente em divindade: diante dela, toda a taba<br />
se prosterna em adoração. Ironia, imaginário, blague<br />
e impostura se mesclam. Até onde pode, de fato,<br />
ir nossa confiança nos testemunhos do compositor<br />
a respeito de seu período de formação, enquanto todas<br />
as fontes não forem controladas?<br />
Mário de Andrade lembra, em “Villa-Lobos I<br />
e II” 5 , o caráter altamente internacional das peças<br />
apresentadas pelo compositor na Semana de Arte<br />
Moderna, e isso porque Villa-Lobos não devia ter<br />
muita coisa “brasileira” para mostrar. É fato que suas<br />
composições anteriores a 1922 são, em sua esmagadora<br />
maioria, de um galicismo indiscutível: da admirável<br />
sonata para violino e piano Desespérance (em francês no<br />
título!) – onde a presença de Franck e Chausson talvez<br />
seja menos superficial que a de Debussy, esta última<br />
lembrada por Eurico Nogueira França6 ; ao Naufrágio<br />
do Kleónicos, onde o cisne negro que sobreviveu canta<br />
como o de Saint-Saëns; passando por Izaht, cujo libreto,<br />
escrito pelo compositor, coloca em cena apaches de<br />
Montmartre; ou pelas sinfonias de guerra (a sinfonia<br />
Vitória comporta uma citação da Marselhesa e é<br />
composta sobre o modelo cíclico de Vincent d’Indy);<br />
e chegando à Prole do bebê, de insofismável debussysmo.<br />
Como já foi assinalado, as Cirandas e cirandinhas
com Villa-Lobos, todas as fraudes eram<br />
“cuidadosamente” possíveis, mesmo a de inscrever<br />
uma data muito anterior sobre uma partitura –<br />
com o álibi de ali assinalar uma primeiríssima<br />
proto-concepção da obra. Mário de Andrade não<br />
acreditava muito, também, na data de origem<br />
de Amazonas. Neste caso, seja como for, existe uma<br />
primeira composição, de 1916, executada em 1918,<br />
baseada num conto do pai de Villa-Lobos, Myremis;<br />
em Amazonas, Villa-Lobos meramente substitui nomes<br />
e personagens. A “bela virgem grega, abençoada pelos<br />
deuses da mitologia” torna-se “bela virgem, abençoada<br />
pelos deuses das florestas do Amazonas”, assim como<br />
o rio se transmuta de Archeló em Amazonas. A trama<br />
é sensivelmente a mesma8 aparecem como desse período na relação<br />
de obras oferecida pelo compositor – Mário<br />
de Andrade denuncia a fraude – e hoje<br />
nenhuma cronologia séria aceita tal datação.<br />
O caso de Uirapuru, desse ponto de vista,<br />
é particularmente interessante. Com Amazonas,<br />
é considerada a primeira franca irrupção<br />
de “brasilidade” dentro da obra do compositor.<br />
Ora, Uirapuru foi estreado em Buenos Aires,<br />
em 1935. Bruno Kieffer, em seu Villa-Lobos<br />
e o modernismo da música brasileira<br />
expressão de nacionalidade autenticamente brasileira...<br />
No que concerne a Uirapuru, resta o fato, até prova<br />
do contrário, de que não existe notícia da obra anterior<br />
a 1934, quando é dedicada a Serge Lifar. Com as<br />
chaves que Mário de Andrade nos fornece, é possível<br />
compreender o fenômeno. Basta assumirmos que, bel<br />
et bien, Villa-Lobos simplesmente pré-datou as obras.<br />
Isto é fundamental, porque permite derrubar por<br />
terra o mito, a crença numa brasilidade autenticamente<br />
surgida da personalidade de Villa-Lobos, impregnada<br />
de um ser “nacional” desde sua gênese infanto-juvenil.<br />
Ao invés do mito prodigioso, teríamos o “constructor”,<br />
a posteriori, muito mais plausível. Pois é preciso lembrar<br />
, ou seja, bastou uma<br />
que, de todos os modos, apenas com os Choros,<br />
mudança rápida e superficial de nomes e lugares, num nos anos de 1920, o caráter francamente brasileiro<br />
tema originalmente clássico, grego, que lhe inspira de Villa-Lobos se afirma. Isto é, no momento de suas<br />
a música, para que a obra se transformasse numa longas e freqüentes estadas em Paris.<br />
7 , a partir<br />
de Peppercorn, assinala que Villa-Lobos,<br />
“em 1917, teria apenas composto o projeto<br />
para piano de Uirapuru, elaborando somente<br />
em 1934 a partitura para orquestra”.<br />
Kieffer examinou os originais autógrafos<br />
da partitura para piano e orquestra: “Ambas<br />
têm a assinatura de Villa-Lobos no cabeçalho<br />
e a indicação: ‘Rio 1917’. No fim da partitura<br />
para orquestra consta: “Fim Rio, 1917,<br />
reformado em 1934”. Segue a rubrica<br />
do compositor. Cremos que também do ponto<br />
de vista grafológico há identidade entre<br />
os cabeçalhos da partitura para a orquestra<br />
e a redução para piano.”<br />
Mas, o episódio das Cirandas indica que, Villa-Lobos. Caricatura assinada por Mendez em 1974.<br />
MUSEU VILLA-LOBOS<br />
75
76<br />
76<br />
Villa-Lobos. Quarteto symbolico. Original manuscrito autógrafo. Obra executada na Semana de Arte Moderna.<br />
MUSEU VILLA-LOBOS<br />
“Ao visitar Paris e o restante da Europa na década<br />
de 20” – escreve o musicólogo finlandês Eero Taarasti9 – “Villa-Lobos compreendeu qual a posição social<br />
do compositor na Europa naquele momento: ele<br />
interessava ao mundo musical europeu acima de tudo<br />
como um intérprete de brasilidade, com os ritmos<br />
de força primitiva de suas composições, harmonias<br />
próprias, melodias folclóricas que refletem a variedade<br />
das cores do trópico.”<br />
Parece bem claro que Villa-Lobos fazia “render”<br />
o exotismo. Villa-Lobos sabia que os europeus<br />
desejavam “les saveurs et les accents de sensuel<br />
exotisme”, na imagem que Cortot, em seu La musique<br />
française de piano10 , criou para caracterizá-lo e a Darius<br />
Milhaud. Genialidade à parte, Villa-Lobos escrevia<br />
então música brasileira na Europa, garantindo, assim,<br />
seu lugar de compositor “tropical”. Eram os mesmos<br />
tempos em que Paulo Prado dizia que Oswald<br />
de Andrade descobrira o Brasil na Place Clichy,<br />
inventando a Antropofagia em Paris.<br />
Portanto, Villa-Lobos fazia música brasileira na<br />
Europa, assegurando assim seu lugar de compositor<br />
tropical. Quando Henri Prunnières exalta o caráter<br />
exótico das obras que Villa-Lobos apresenta<br />
na Europa, Mário de Andrade se escandaliza, porque<br />
Prunnières se atém ao pitoresco e faz dele a grande<br />
virtude dessas composições.<br />
Mário de Andrade não demonstra consciência
de quanto Villa-Lobos é cúmplice desse estado de<br />
coisas e se revolta, porque seu projeto é alguma coisa<br />
de “profundo” e de “sério”: nada de brasileirismos<br />
para francês ouvir, mas a construção consciente<br />
de um inconsciente artístico, coletivo e brasileiro.<br />
Sobre Villa-Lobos, no “Ensaio sobre a música<br />
brasileira”, Mário de Andrade afirma: “Mesmo antes<br />
da pseudo-música indígena de agora, Villa-Lobos era<br />
um grande compositor”.<br />
Florent Schmitt dizia que Villa-Lobos era um<br />
“neo-selvagem” e, na época, convergiam para a Europa<br />
as selvagerias do mundo inteiro: isto, está claro, porque<br />
elas eram solicitadas.<br />
A ditadura Vargas fez de Villa-Lobos seu aliado<br />
oficial. A conseqüência foi a modificação profunda,<br />
a partir dos anos de 1930, na produção artística do<br />
compositor. A associação de Villa-Lobos com o Estado<br />
Novo, além de um programa de músicas de<br />
propaganda e um outro pedagógico, nas escolas,<br />
tornou o compositor menos “ousado”. Sua música<br />
perde o caráter “moderno” que possuía nos anos<br />
de 1920, quando dialogava estreitamente com<br />
as experiências de vanguarda do tempo. Villa-Lobos,<br />
músico oficial, ou quase, passou a produzir<br />
composições que se queriam brasileiras, mas que se<br />
queriam também “grandes obras”: é a partir de 1930<br />
que renascem os quartetos de cordas – quintessência<br />
das formas “clássicas” – abandonados desde 1917,<br />
e as sinfonias. É quando, também, Villa-Lobos inicia<br />
o belíssimo ciclo das Bachianas Brasileiras – no entanto<br />
1. PEPPERCORN, Lisa M. “Some aspects of Villa-Lobos’<br />
Principles of Composition, The Music Review, vol IV, nº1,<br />
fevereiro de 1943.<br />
2. Apud COLI, Jorge. Música final, Editora da Unicamp, 1998,<br />
pgs. 169 e segs.<br />
3. O texto ao qual Mário de Andrade se refere aqui é “Casos<br />
e fatos importantes sobre H. Villa-Lobos numa biografia<br />
autêntica e resumida”, in Música Viva, Ano 1, 7/8, janeirofevereiro<br />
1941, pg. 13-15.<br />
4. Apud COLI, Jorge. Op. cit., pgs 169 e segs, pg. 383.<br />
5. In “Mundo Musical”, apud COLI, Jorge – Música Final, op. cit.,<br />
pg. 169 e segs.<br />
DISCOGRAFIA<br />
VILLA-LOBOS PAR LUI MÊME (EMI): 6 discos que reúnem a quintessência<br />
do compositor, dirigindo ele próprio os coros e Orchestre<br />
National de la Radiodifusion Française, nos anos de 1950.<br />
Contém as 9 Bachianas, com a mítica gravação da nº 5, cujo<br />
solo é feito por Victoria de los Angeles, vários Chôros, a Suite<br />
Descoberta do Brasil, o Momoprecoce, com Magda Tagliaferro,<br />
o Concerto nº 5, com Felicia Blumental, e a Sinfonia nº 4<br />
HEITOR V ILLA-LOBOS − OEUVRE POUR PIANO (DISQUE DU SOLSTICE):<br />
monumento da discografia pianística, são 7 cds com todas<br />
as composições para piano solo, interpretadas por<br />
Anna Stella Schic<br />
VILLA-LOBOS − 5 PIANO CONCERTOS (Decca) − Cristina Ortiz, Royal<br />
Philarmonic Orchestra, dir Gómez-Martínez (2 CD)<br />
CHÔROS DE CÂMARA (ed. brasileira: Kuarup, ed. internacional<br />
Harmonia Mundi) - esplêndido disco por um conjunto<br />
de músicos brasileiros, que tocam os 9 choros camerísticos<br />
de Villa-Lobos<br />
QUARTETOS DE CORDA (Kuarup), pelo Quarteto Bessler-Reis, numa<br />
caixa de 6 CDs<br />
MAGDALENA, A MUSICAL ADVENTURE − Gravação completa do musical<br />
composto por Villa-Lobos para a Broadway, em 1948, com Judy<br />
Kaye, George Rose, Faith Esham, Orchestra New England,<br />
sob a direção de Robert Sher<br />
muito mais bem comportadas que os Choros e outras<br />
produções feitas na Europa, durante o período<br />
precedente. Após a Segunda Guerra Mundial,<br />
no final de sua vida Villa-Lobos se aproxima dos<br />
Estados Unidos. Tende, então, a afastar-se dos projetos<br />
nacionais de seu passado. O musical Madalena<br />
joga com uma certa ironia sobre seus temas<br />
de colorido brasileiro.<br />
6. FRANÇA, Eurico Nogueira. A evolução de Villa-Lobos na música<br />
de câmara, SEAC-MEC-Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro,<br />
1979<br />
7. KIEFFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira,<br />
Movimento, Porto-Alegre, 1981, pg. 47.<br />
8. Cf., particularmente, a análise de WRIGHT, Simon – Villa-<br />
Lobos, Oxford University Press, Oxford, 1992, pg. 13.<br />
9. TAARASTI, Eero. “Villa-Lobos – ser sinfônico dos trópicos”,<br />
in Presença de Villa-Lobos nº 9, MEC-SEAC-Museu Villa-<br />
Lobos, Rio de Janeiro, 1980, pg. 56.<br />
10. CORTOT, Alfred. La musique française de piano, PUF, Paris,<br />
1991.<br />
JORGE COLI<br />
Prof. Dr. titular em História da Arte e da Cultura. <strong>Departamento</strong> de História.<br />
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas UNICAMP.<br />
77
O violão no Brasil<br />
depois de<br />
Villa-Lobos<br />
FÁBIO ZANON
Como o café e o futebol, o violão está<br />
indissociavelmente ligado a uma visão sóciocultural<br />
do Brasil, e nossa identidade musical<br />
é impensável sem a sua presença. E não é para<br />
menos. Instrumentos da família do violão foram<br />
já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José<br />
Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de<br />
cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do<br />
século XVI revelam em comum o acompanhamento<br />
ao som de viola”.<br />
Dessa forma, desde o primeiro encontro que define<br />
nossa identidade cultural, o violão está presente.<br />
Mas sua trajetória é tortuosa. O violão em seu<br />
formato atual é, na verdade, um desenvolvimento<br />
organológico do séc. XIX. Os instrumentos trazidos<br />
pelos jesuítas provavelmente foram as vihuelas, alaúdes<br />
e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras<br />
barrocas – que, levadas ao interior do país pelos<br />
bandeirantes, foram adotadas como o instrumento<br />
folclórico nacional por excelência: a viola caipira. Isto,<br />
conjugado à marcada diferença cultural entre as classes<br />
sociais no período imperial, estigmatizou o violão –<br />
como acontecia na Espanha – como o instrumento<br />
do populacho, dos capadócios e da marginalidade, em<br />
oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom<br />
das famílias urbanas mais abastadas.<br />
Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão,<br />
como atestam as “Memórias de um Sargento de<br />
Milícias”, entre a viola e o violão, mas depois de 1850<br />
já fica clara a diferença entre a viola, um instrumento<br />
tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa<br />
(como era chamada nos métodos à venda no Rio de<br />
Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento<br />
do cancioneiro popular de tradição urbana. Até este<br />
momento, não há uma literatura específica para<br />
o instrumento publicada no país; os exemplos<br />
existentes são escritos para piano, sem dúvida pelo fato<br />
de não haver violonistas capazes de ler música.<br />
O violão também foi adotado como baixocontínuo<br />
dos incipientes grupos de choro, e a má fama<br />
decorrente é festejada nos romances de Lima Barreto.<br />
Os primeiros defensores sérios do violão como<br />
instrumento de concerto, como o engenheiro<br />
Clementino Lisboa, o desembargador Itabaiana e o<br />
professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram<br />
ao ridículo público ao se apresentarem, por exemplo,<br />
no Clube Mozart, centro musical da elite carioca.<br />
Os primeiros concertos de violão solo<br />
documentados no país foram oferecidos pelo violonista<br />
cubano Gil Orozco em 1904 e não chegaram a atrair<br />
muita atenção, mas supõe-se que já houvesse um<br />
ensino sério de violão clássico nessa época, já que<br />
Villa-Lobos admitiu haver aprendido violão pelos<br />
métodos do espanhol Dionísio Aguado (1784-1849).<br />
Entretanto, aquele que podemos apontar como<br />
o primeiro concertista brasileiro não sabia ler música<br />
e tocava com o violão invertido, mas com as cordas<br />
em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto”<br />
(1889-1928). Canhoto era filho de italianos, o que<br />
ilustra uma nova tendência de popularização do violão:<br />
a sua adoção pela classe operária imigrante. Não é um<br />
mero acidente os luthiers Di Giorgio, Del Vecchio<br />
e Giannini terem se estabelecido no Brasil<br />
e transformado sua atividade artesanal em linha de<br />
produção de instrumentos dentro de poucas décadas.<br />
Mas o violão continuava sendo ridicularizado na<br />
imprensa, como alvo de charges derrogatórias, apesar<br />
do enorme sucesso popular de violonistas-compositores<br />
como João Pernambuco (1883-1947).<br />
O ano da “virada da casaca” é 1916, quando<br />
o crítico do jornal “O Estado de São Paulo” ouviu e se<br />
rendeu à arte do virtuose e compositor paraguaio<br />
Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em<br />
decorrência de seu sucesso. No mesmo ano, Canhoto<br />
apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical<br />
com extraordinário êxito.<br />
“É através deste concerto que Américo Jacomino<br />
conquista a elite paulistana e assim, possibilita o início<br />
da dissolução do preconceito que freava<br />
o desenvolvimento da música para violão”.<br />
A partir de então, a imprensa de São Paulo<br />
e do Rio de Janeiro passou a considerar o violão como<br />
instrumento de concerto e até a elogiar Barrios,<br />
Canhoto e a espanhola Josefina Robledo, aluna de<br />
Tarrega que também residiu no Brasil por vários anos.<br />
Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão<br />
como instrumento de concerto ainda não completou<br />
100 anos no Brasil, o que faz da vulcânica<br />
79
80<br />
De todos os compositores que<br />
escreveram inspirados pela arte<br />
de Segovia, Villa-Lobos<br />
é o único que parte de um<br />
conhecimento em primeira mão<br />
do arcabouço técnico do<br />
instrumento para a realização<br />
de uma linguagem individual.<br />
personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um<br />
fenômeno ainda mais singular. As contingências sócioculturais<br />
fizeram com que seu instrumento público<br />
fosse o violoncelo e que o violão fosse somente um<br />
laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para<br />
penetrar nas rodas de choro. A maior parte das obras<br />
que escreveu antes de 1920 perdeu-se, e a Suíte Popular<br />
Brasileira (1912-23) só foi publicada décadas mais tarde<br />
– à sua revelia – na França. É uma obra característica<br />
do período, onde a fronteira entre o idioma clássico<br />
e as formas de dança popular não é muito nítida.<br />
Por mais original e promissora que possa parecer<br />
a produção da primeira fase de Villa-Lobos, até 1922,<br />
há uma nítida mudança de marcha em sua estética que<br />
coincide com a residência em Paris nos anos 20,<br />
um fenômeno observado em outros compositores<br />
de orientação nacionalista. Parece que a distância<br />
e a receptividade do novo ambiente lhe permitiram<br />
realizar uma síntese entre uma visão pragmática,<br />
que aceita a superposição de influências externas<br />
como uma profecia auto-realizada em uma cultura<br />
colonizada, e uma visão idealizada, derivada de<br />
Rousseau, em que o compositor se via como um bom<br />
selvagem, corrompido por estas mesmas influências.<br />
A formidável série de Choros, as maiores obras para<br />
piano e os 12 Estudos para violão, compostos em 1929,<br />
são os frutos mais suculentos dessa síntese.<br />
Seria absolutamente impensável a realização desta<br />
obra dentro do contexto acanhado do violão clássico<br />
no Brasil dos anos 20. Por mais divergências que<br />
Villa-Lobos possa ter tido com o dedicatário, Andrés<br />
Segovia, a personagem dominante do violão no século<br />
XX, foi, sem dúvida, o vislumbre das possibilidades<br />
latentes do violão, permitido pelo extraordinário poder<br />
persuasivo de Segovia, que estimulou Villa-Lobos<br />
a escrever uma coleção comparável às grandes séries<br />
de estudos para piano ou violino. Não é exagero dizer<br />
que os 12 Estudos são um divisor de águas dentro<br />
da história do violão. De todos os compositores<br />
que escreveram inspirados pela arte de Segovia,<br />
Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento<br />
em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento<br />
para a realização de uma linguagem individual, que<br />
incorpora uma luxuriante paleta harmônica e um<br />
compromisso com a inovação no discurso musical.<br />
Prova da qualidade visionária destas obras é a espera,<br />
até 1947, para que Segovia as incluísse em seus<br />
programas e até 1953 para que fossem publicados.<br />
Neste hiato, Villa-Lobos já havia retornado<br />
definitivamente ao Brasil, e sua linguagem havia dado<br />
uma guinada na direção de um certo conservadorismo<br />
positivista e neo-clássico que pode ser detectado na sua<br />
série de 5 Prelúdios (1940).<br />
O legado de Villa-Lobos é tanto uma benção como<br />
um peso para os compositores da geração posterior.<br />
Seus Prelúdios e Estudos são as obras mais populares<br />
do violão no séc. XX, tocados por todos os violonistas<br />
de qualquer nível de excelência, e gravados centenas<br />
de vezes. Seu Concerto para violão e orquestra de 1951<br />
é uma das poucas obras brasileiras, talvez a única,<br />
com lugar assegurado no repertório internacional<br />
do gênero. As possibilidades de reconhecimento<br />
internacional, assim abertas para um compositor<br />
brasileiro, podem ser um tremendo fator de inibição,<br />
pelo temor à epigonia.<br />
Some-se a isso o fato de que uma sólida cultura<br />
clássica para o violão ainda tardou algumas décadas<br />
para cristalizar-se no Brasil. O perfil de Barrios<br />
ou Canhoto não era suficientemente “clássico” para<br />
o projeto artístico de Villa-Lobos, e a importante
contribuição de professores como Attilio Bernardini<br />
(1888-1975) teve conseqüências mais visíveis no campo<br />
do violão popular. A distinção entre o violão de<br />
concerto e o violão popular foi gradualmente se<br />
acentuando nos anos 1930, 40 e 50 e alguns dos<br />
músicos de maior visibilidade, como Dilermando Reis<br />
(1916-1977), Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto”<br />
(1915-1955), e Laurindo de Almeida (1917-1995),<br />
construíram quase que a totalidade de suas carreiras<br />
à sombra da Era do Rádio, criando um vasto repertório<br />
seresteiro no caso de Dilermando, incorporando alguns<br />
elementos impressionistas que apontam para<br />
a bossa-nova no caso de Garoto, ou simplesmente<br />
estabelecendo-se nos EUA como um músico de jazz<br />
no caso de Laurindo.<br />
Não obstante as limitações destes grandes artistas<br />
na esfera do violão clássico, eles estabeleceram uma<br />
relação próxima e estrearam algumas obras do<br />
compositor que mais se esforçou em enfraquecer as<br />
barreiras entre a música clássica e a música popular<br />
de qualidade: Radamés Gnatalli (1906-1988), que assim<br />
tornou-se o autor da obra violonística mais significativa<br />
e numerosa a partir dos anos 50, incluindo 5 concertos<br />
para violão e orquestra (1952, 53, 55, 61 e 68).<br />
A advocacia de sua obra, ministrada mais tarde por<br />
violonistas da esfera clássica, estimulou-o a compor<br />
extensivamente e criar obras de considerável interesse,<br />
como a Brasiliana nº 13, a Suíte, os 10 Estudos,<br />
os 3 Estudos de Concerto e Alma Brasileira; seu<br />
legado se estende à música de câmara com a suíte<br />
Retratos para 2 violões, a Sonatina para flauta e violão,<br />
uma Sonata para violoncelo e violão e outra para<br />
violoncelo e 2 violões, além de inúmeros arranjos que<br />
incluem o violão num contexto semi-orquestral. A obra<br />
de violão de Gnatalli traz todas as melhores qualidades<br />
e os mais evidentes problemas de sua produção como<br />
um todo: a excelente escrita instrumental,<br />
as inesperadas soluções harmônicas e o verdor<br />
da inspiração, mas também a notória falta de paciência<br />
com o acabamento e um caráter sonambulístico<br />
e quase-improvisatório que, sob um certo ponto de<br />
vista, pode ser uma qualidade. Depois de Villa-Lobos,<br />
a obra de violão de Gnatalli é a mais apreciada<br />
e freqüentemente tocada no exterior.<br />
Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções<br />
de classe através do gosto musical e transformou-as numa<br />
massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir<br />
o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo<br />
instrumento é vasto o suficiente para o surgimento<br />
de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. Por outro,<br />
ainda faltava uma metodologia que permitisse<br />
o surgimento de um número significativo de concertistas<br />
de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente<br />
quebrado por raras visitas de artistas internacionais como<br />
Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir<br />
de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos 40).<br />
O desenvolvimento desta metodologia veio com<br />
o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu<br />
em São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de<br />
modestos recursos, mas um devotado professor e autor<br />
de mais de 100 peças originais para violão, algumas das<br />
quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perduram<br />
no repertório. Ele teve um papel considerável na<br />
promoção do violão dentro do establishment musical do<br />
país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou<br />
gerações de violonistas que prontamente se<br />
estabeleceram como professores em outras capitais,<br />
com destaque para Antonio Rebello (1902-1965)<br />
no Rio de Janeiro. A Sávio também devemos a criação<br />
do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco<br />
antes de falecer, nas universidades. Ele teve<br />
a sensibilidade de não sufocar a natural vocação do<br />
violão brasileiro para o cross-over e, entre seus alunos,<br />
podemos contar tanto um Luís Bonfá ou um Toquinho<br />
quanto um Carlos Barbosa Lima.<br />
A relação de Sávio com os compositores<br />
“sinfônicos” foi algo tímida; a instrução dos<br />
compositores custou a incorporar a técnica de escrita<br />
para violão – uma novidade que Segovia havia imposto<br />
a compositores como Ponce e Turina nos anos 20 –,<br />
o exemplo de Villa-Lobos provou-se um ideal alto<br />
demais para se alcançar, e a falta de seriedade com que<br />
se encarava o violão no início do século ainda criou<br />
reverberações nos anos 40 e 50. Some-se a isso<br />
o desfavor em que a estética nacionalista caiu após<br />
a revolução de 1964 e temos um desconfortável e algo<br />
vergonhoso hiato na incorporação da obra de Camargo<br />
Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone ao<br />
81
82<br />
Almeida Prado.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
repertório internacional de violão.<br />
Camargo Guarnieri (1907-1993) seria, levando-se<br />
em conta seu implacável artesanato e concisão, o<br />
compositor ideal para dar continuação ao fio condutor<br />
de Villa-Lobos, mas na prática isso não aconteceu. Ele<br />
se exasperava com as dificuldades de se escrever bem<br />
para o instrumento, e seu único Ponteio (1944, dedicado<br />
a Carlevaro) para violão não tem o mesmo carisma dos<br />
homônimos pianísticos. Seus 3 Estudos (nº 1: 1958,<br />
nos 2 e 3: 1982), apesar de extraordinários como<br />
composições, apresentam um caráter torturado<br />
e esotérico que apela somente aos intérpretes mais<br />
intelectualmente inclinados. As 2 Valsas-choro (1954,<br />
1986) são obras bem mais simpáticas, mas, como de<br />
praxe em Guarnieri, a 2a delas ainda não está sequer<br />
editada. Lorenzo Fernandez (1897-1948) foi ainda<br />
menos generoso: deixou somente um pequeno Prelúdio<br />
(1942) de parco interesse e um arranjo da Velha<br />
Modinha (1938, original para piano como parte da<br />
Segunda Suite Brasileira) dedicado a Segovia, que<br />
freqüentemente é tocado como bis.<br />
Se a contribuição destes compositores magnos de<br />
nosso nacionalismo é numericamente decepcionante,<br />
o mesmo não se pode dizer de Francisco Mignone<br />
(1897-1986). Suas primeiras tentativas de escrever para<br />
o violão foram bem modestas, mas em 1970 ele<br />
produziu a série de 12 Valsas, em todos os tons<br />
menores, e 12 Estudos que, sem manifestarem o ímpeto<br />
renovador de Villa-Lobos, ocupam uma posição quase<br />
tão alta quanto a dele no repertório brasileiro pela<br />
precisão de escrita, inventividade no tratamento<br />
instrumental e variedade de expressão. Seu quase total<br />
desaparecimento do repertório internacional é um<br />
acidente de percurso, e nenhuma outra obra da escola<br />
nacionalista merece maior atenção. O mesmo deve ser<br />
dito do Concerto para violão e orquestra (1976),<br />
possivelmente a mais bem-concebida obra brasileira<br />
do gênero, mas que ainda não teve a chance de ser<br />
plenamente avaliada devido ao seu quase-ineditismo.<br />
Duas peças curtas, Canção Brasileira (1970) e Lenda<br />
Sertaneja (1982) completam um corpus de obras para<br />
violão de máximo interesse.<br />
A paixão de Mignone pelo violão em seu último<br />
período criativo foi causada em grande parte pelos<br />
frutos colhidos da profissionalização do ensino de<br />
violão no país. Os anos 60 e 70 marcam não só uma<br />
extraordinária expansão do ensino do violão popular<br />
com o advento da bossa-nova, mas também a<br />
consolidação da carreira internacional de uma geração:<br />
Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos (n.1940),<br />
Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio<br />
(n.1952) e Odair Assad (n.1956) e, mas tarde, Marcelo<br />
Kayath (n.1964). A percepção do Brasil como o país<br />
do violão deve muito a estes dois eventos conjugados.<br />
O cenário nacional também se beneficiou desse<br />
arranque e uma nova geração de didatas se estabeleceu<br />
neste período, com destaque para Henrique Pinto<br />
(n.1941) e Jodacil Damasceno (n.1929).<br />
Junto com Isaías Sávio, esses violonistas foram<br />
o ponto de referência para toda uma geração de<br />
compositores nacionalistas que deixaram itens isolados<br />
de considerável interesse, como José Vieira Brandão<br />
(1911-2002) com o Mosaico, Walter Burle-Marx (1902-<br />
1991), autor de Bach-Rex e Homenagem a Villa-Lobos,<br />
Souza Lima (1898-1982) com seu Cortejo e Divertimento,<br />
e Lina Pires de Campos (1918-2003), autora de<br />
4 Prelúdios e Ponteio e Toccatina. Três compositores<br />
já falecidos merecem uma menção particular pela sua<br />
importância dentro da vida musical brasileira: Cláudio<br />
Santoro (1919-1989), autor de um Estudo, um Prelúdio<br />
e da Fantasia Sul América; Theodoro Nogueira<br />
(1913-2002), autor de extensa obra que inclui 6<br />
Brasilianas, 5 Valsas-Choro, 4 Serestas, 12 Improvisos e um
Concertino para violão e orquestra; e César<br />
Guerra-Peixe (1914-1993) autor de 6 Breves, 10 Lúdicas,<br />
4 Prelúdios e da primeira Sonata brasileira para violão,<br />
de 1969, uma obra extremamente engenhosa da sua<br />
fase nacionalista.<br />
Os anos da ditadura militar provocaram uma<br />
dramática re-configuração da vida musical do país.<br />
A considerável repressão da liberdade de expressão<br />
forçou artistas e intelectuais a tomarem posições<br />
drásticas. Compositores de tendência governista não<br />
tiveram sucesso em persuadir as autoridades<br />
da necessidade de um desenvolvimento contínuo<br />
da educação musical, e tiveram de responder por isso<br />
depois da abertura nos anos 80. Uma maioria de<br />
compositores opostos ao regime refugiou-se na rotina<br />
do ensino universitário e, seguindo o modelo<br />
americano, cristalizou um sistema de ensino acadêmico<br />
que prescinde da atuação no dia-a-dia do compositor<br />
profissional e encoraja o surgimento de “processos”<br />
composicionais que muitas vezes só podem ser<br />
decodificados por colegas. Ao mesmo tempo,<br />
a participação ativa dos cantores/compositores de<br />
MPB no processo de abertura política relegou os<br />
compositores clássicos a uma posição secundária<br />
dentro do meio cultural e a um recrudescimento<br />
do interesse da imprensa pela produção de concerto,<br />
uma situação que não parece passível de reversão<br />
num futuro próximo.<br />
O violão, como um natural mediador, no Brasil,<br />
entre o universo da música clássica e da popular,<br />
encontrou-se subitamente numa posição privilegiada.<br />
Intérpretes como Barbosa Lima, Turíbio Santos e o duo<br />
Assad, inicialmente escolados na tradição clássica<br />
do violão, hoje atuam numa tênue linha divisória em<br />
que a fronteira entre o que é clássico e o que é música<br />
instrumental brasileira não é muito clara.<br />
Os compositores ativos criaram seus nichos estéticos,<br />
muitas vezes opostos, e foram seduzidos pela<br />
garantia de inclusão de suas obras para violão<br />
no repertório regular.<br />
Os compositores de orientação pós-nacionalista<br />
que mais contribuíram para o repertório brasileiro são<br />
Marlos Nobre (n.1939) e Edino Krieger (n.1928).<br />
A obra de Marlos Nobre é extensa e de incalculável<br />
alcance artístico. Os Momentos I-IV, a Homenagem<br />
a Villa-Lobos, as Reminiscências, o Prólogo e Toccata,<br />
a Entrada e Tango, as Rememórias e o Concerto para<br />
2 violões e orquestra cobrem 30 anos de produção<br />
artística, atestam sua imaginação poderosa e o colocam<br />
como um verdadeiro herdeiro de Villa-Lobos, em sua<br />
escrita detalhada, robusta realização instrumental<br />
e perfeito equilíbrio entre a cor local e as necessidades<br />
de um argumento formal de maiores proporções.<br />
A considerável dificuldade técnica de suas obras tem<br />
se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano<br />
internacional, mais respeitado que tocado, mas este<br />
é um fator que deve ser superado em favor de obras<br />
de qualidade superlativa que merecem atenção<br />
incondicional. Já Edino Krieger obteve considerável<br />
sucesso com sua Ritmata de 1974, e suas obras mais<br />
recentes, Passacaglia in Memorian Fred Schneiter e seu<br />
Concerto para 2 violões e orquestra parecem prontas a<br />
seguir o mesmo caminho. Um compositor de produção<br />
mais mirrada, mas de sumo interesse, é Osvaldo<br />
Lacerda (n.1927), autor de três encantadoras peças,<br />
Moda Paulista, Ponteio e Valsa Choro. Um item isolado<br />
de Ronaldo Miranda (1941), Appassionata, tem<br />
merecido uma calorosa acolhida internacional;<br />
a Sonatina de José Alberto Kaplan (n.1935) e a peça<br />
de mesmo título de Sérgio Vasconcelos Corrêa<br />
(n.1934), também autor de um Concerto, demonstram<br />
grande profissionalismo de fatura.<br />
A produção dos compositores independentes,<br />
seguindo a esfera de interesse dos intérpretes a quem<br />
é dirigida, cobre um amplo espectro de possibilidades<br />
estéticas. Almeida Prado (n.1943) realizou<br />
experimentos com a sonoridade, comparáveis às suas<br />
Cartas Celestes para piano, em Livre pour Six Cordes<br />
e Portrait de Dagoberto, dedicado ao violonista paulista<br />
radicado na Suíça, Dagoberto Linhares, mas sua Sonata<br />
oscila entre uma energia “prokofieviana” e um<br />
nacionalismo desbragado. Outro prolífico compositor<br />
de música para violão é Ricardo Tacuchian (n.1939),<br />
cuja produção pende entre o nacionalismo urbano<br />
da Série Rio de Janeiro e da Imagem Carioca para<br />
4 violões e o experimentalismo sonoro das duas Lúdicas<br />
e dos dois Impulsos para dois violões.<br />
A exploração de técnicas pouco convencionais<br />
83
84<br />
encontra em Sighs de Jorge Antunes (n.1942) e no<br />
Estudo nº1 para violão e narrador de Rodolfo Coelho<br />
de Souza (n.1952) o seu canal de vazão. A polissemia<br />
produziu ao menos uma obra de interesse<br />
permanente, Que Trata de España de Willy Corrêa<br />
de Oliveira (n.1938).<br />
A proliferação de concertistas de atuação local<br />
e as óbvias vantagens da colaboração entre eles e<br />
compositores ainda não plenamente estabelecidos têm<br />
criado espaço para uma atividade extensa, frenética e<br />
difícil de avaliar, mas eu apontaria os nomes de quatro<br />
compositores nascidos depois de 1960 que apresentam<br />
todas as condições para uma plena aceitação<br />
no repertório internacional: Alexandre de Faria<br />
(n.1972), cuja Entoada foi agraciada com o primeiro<br />
prêmio no Concurso Internacional “Andrés Segovia”<br />
de composição em 1997, e que desde então tem escrito<br />
obras de extrema intensidade teatral, que absorvem<br />
alguns elementos do minimalismo, informadas por<br />
um raciocínio harmônico personalíssimo e de total<br />
intransigência de expressão: o Prelúdio nº1 - Olhos de<br />
uma Lembrança”e nº2 Death of Desire, além de dois<br />
concertos para violão e orquestra, o segundo dos quais,<br />
Mikulov , foi estreado com sucesso sem precedentes<br />
na República Tcheca; Artur Kampela (n.1960), cujas<br />
Danças Percussivas, também premiadas num concurso<br />
internacional na Venezuela, incorporam elementos<br />
DISCOGRAFIA<br />
A OBRA PARA VIOLÃO DE AMÉRICO JACOMINO “CANHOTO”; Gilson<br />
Antunes, violão - independente<br />
VILLA-LOBOS - OBRA INTEGRAL PARA VIOLÃO SOLO; Paulo Pedrassoli,<br />
violão - UERJ clássica<br />
ALMA <strong>BRASILEIRA</strong>; Duo Assad - Nonesuch<br />
CONCERTO À BRASILERA; Daniel Wolff, Orq. de Câmara da ULBRA,<br />
Tiago Flores, reg. – independente<br />
GAROTO - O GÊNIO DAS CORDAS - gravações originais - EMI<br />
OBRAS DE CAMERON, AMARAL VIEIRA, CORTES, HOLLANDA CAVALCANTI E<br />
LINA PIRES DE CAMPOS; Sérgio Assad, violão- Acervo Funarte<br />
<strong>MÚSICA</strong> NOVA <strong>BRASILEIRA</strong>; Mário da Silva Jr, violão - independente<br />
MANHÃ DE CARNAVAL; Graham Devine, violão – Naxos<br />
LPs<br />
12 ESTUDOS DE FRANCISCO MIGNONE; Carlos Barbosa Lima, violão<br />
MARLOS NOBRE: Yanomami, 3 Ciclos Nordestinos, 4 momentos; duo<br />
Assad, Dagoberto Linhares, violão<br />
RAFAEL RABELLO INTERPRETA RADAMÉS GNATALLI; Rafael Rabello, violão<br />
de modulação rítmica; Alexandre Eisenberg (n.1966),<br />
autor de ambiciosos projetos formais de caráter mais<br />
tradicional como o Prelúdio, Coral e Fuga e a Pentalogia;<br />
e Marcus Siqueira (n.1974), dono de um refinado<br />
ouvido para colorido instrumental, que é ilustrado pelo<br />
Impromptu Fragile, Impromptu Móbile e Elegia e Vivo; seu<br />
concerto para violão, harpa, celeste e 2 orquestras de<br />
câmara Hoquetus, Ecos, Espelhos ainda aguarda estréia.<br />
Há também autores de itens isolados de alta qualidade,<br />
como Mikhail Malt (n.1957) e seu Lambda 3.99 para<br />
violão e sons gerados por computador; Achille Picchi<br />
(b.1957), de feição algo mais convencional e<br />
bartokiana, com seu Prelúdio, Valsa e Finale e 3 Momentos<br />
Poéticos para violão e orquestra; Harry Crowl (n.1958),<br />
de genuína erudição, autor de Assimetrias; e Roberto<br />
Victorio (n.1959), com seu Tetraktis e um Concerto para<br />
violão, flauta e orquestra. Todos estes compositores,<br />
com a provável exceção de Faria e Eisenberg, têm<br />
de conviver com a nova ordem: dificuldades para<br />
publicação, distribuição e registro fonográfico destas<br />
obras levam-nos à tábua de salvação das universidades<br />
e das sociedades e festivais de música contemporânea;<br />
uma aceitação menos circunscrita à sua área de atuação<br />
será obra do acaso e do interesse continuado dos<br />
intérpretes.<br />
Mais afortunados são aqueles que transitam na<br />
tênue linha entre o clássico, o jazz e o instrumental<br />
brasileiro. No mundo, e cada vez mais no Brasil, hoje,<br />
há uma verdadeira indústria de sociedades, festivais,<br />
editoras e companhias discográficas dedicadas<br />
exclusivamente ao violão “clássico”, e entenda-se por<br />
clássico não uma categorização estética, mas tão<br />
somente de técnica instrumental. Uma parcela<br />
significativa do público para estes eventos e produtos<br />
carece de uma ampla cultura musical e certamente não<br />
dispõe de elementos para uma apreciação crítica da<br />
produção contemporânea; normalmente são estudantes<br />
ou amadores sérios que travaram seu primeiro contato<br />
com o violão através do pop ou do jazz. O perfil deste<br />
púbico determina a aceitação internacional de<br />
compositores-violonistas como Sérgio Assad (n.1952)<br />
que, além de ser um dos integrantes do renomado duo<br />
Assad, tem intensificado sua produção nos últimos<br />
15 anos; obras como Aquarelle, sua Sonata, a série
de Jobinianas, e várias peças para duo de violões como<br />
Vitória Régia, Pinote e Recife dos Corais já fazem<br />
parte do repertório regular de estudantes do mundo<br />
todo. A extensa, variada e instrumentalmente eficiente<br />
obra de Paulo Porto Alegre (n.1956), Daniel Wolff<br />
(n.1967) e Maurício Orosco (n.1976) parece destinada<br />
ao mesmo êxito.<br />
O traço que distingue estes compositores daqueles<br />
chamados violonistas “populares” é uma evidente<br />
ambição formal decorrente de sua atividade como<br />
concertistas. Compositores-violonistas cuja principal<br />
atuação é na área dos shows amplificados ou como<br />
acompanhantes de cantores ou solistas de jazz tendem<br />
a se encarar como herdeiros da tradição de Canhoto,<br />
Garoto, Dilermando Reis ou Baden Powell, e suas<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
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de Milícias, 11a ed. São Paulo: Ática, 1980.<br />
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Martins, 1928.<br />
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CHIAFARELLI, Liddy, MIGNONE, Francisco. A parte<br />
do anjo. São Paulo: Editora Mangione, 1947.<br />
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Movimento, 1983.<br />
MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil, 5a Ed. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 2000.<br />
_________ (coord.). Francisco Mignone, o homem e a obra. Rio de<br />
Janeiro, FUNARTE - EDUERJ, 1997.<br />
NEVES, José Maria. Música brasileira contemporânea. São Paulo:<br />
Editora Ricordi, 1981.<br />
PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos, the music. London: Khan &<br />
Averill, 1990.<br />
obras são, conseqüentemente, restritas às formas de<br />
canção e dança, o que não as impede de serem<br />
adotadas amplamente como material de concerto<br />
mundo afora. Êxito incondicional tem obtido a obra de<br />
Paulo Bellinati (n.1950), cujo Jongo já foi gravado pelos<br />
mais destacados solistas internacionais e que já<br />
produziu centenas de obras na mesma veia, mas Marco<br />
Pereira (n.1955), Celso Machado (n.1953) e Guinga<br />
(n.1950) também têm uma ampla base de admiradores.<br />
Um caso singular encontramos em Egberto<br />
Gismonti (n.1944), celebrado internacionalmente como<br />
um dos maiores instrumentistas do jazz<br />
contemporâneo, mas cujas obras Central Guitar<br />
e Variations: Hommage à Webern se alinham à produção<br />
experimental de concerto.<br />
SANTOS, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro:<br />
Museu Villa-Lobos, 1975.<br />
SUMMERFIELD, Maurice J., The Classical Guitar, its evolution,<br />
players and personalities since 1800, 5a ed. Blaydon-on-Tyne:<br />
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TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos, the life and works. London:<br />
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Brasileira, São Paulo: 34, 1998.<br />
TONI, Flávia. Mário de Andrade e Villa-Lobos. São Paulo: Centro<br />
<strong>Cultural</strong> São Paulo, 1987.<br />
VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri Expressões de Uma<br />
Vida. São Paulo, EDUSP, 2001.<br />
WRIGHT, Simon. Villa-Lobos. New York: Oxford University<br />
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Enciclopédia da Música Brasileira. 2a ed. São Paulo, Art Editora<br />
Ltda., 1998.<br />
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Arte in Ver.<br />
Cultura Vozes, nº 1, jan/fev/1994, p. 37.<br />
SIMÕES, Ronoel, O Violão em São Paulo in Violões & Mestres,<br />
Direção Nelson.<br />
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WANDERLEY, Saulo, O dia em que o violão deixou de ser bandido<br />
in www.cafemusic.com, 1998.<br />
FÁBIO ZANON<br />
Concertista, mestre pela Universidade de Londres e membro da “Royal Academy of Music” de Londres.<br />
85
Música Viva<br />
CARLOS KATER
Omovimento Música Viva foi criado no Brasil em 1938,<br />
por obra de H. J. Koellreutter, sendo suas primeiras<br />
realizações e atividades efetivamente concretizadas no<br />
ano seguinte. 1 Assim, desde 1939 e ao longo de toda<br />
a década de 40, vemos desenvolver-se um movimento<br />
pioneiro de renovação, tendo por meta instaurar uma<br />
nova ordem no meio musical, inicialmente no Rio<br />
de Janeiro e após em São Paulo. Suas principais<br />
características definem-se pelo ineditismo de propostas<br />
na área cultural, atualidade do pensamento musical,<br />
convergência com tendências estéticas, filosóficas<br />
e políticas da vanguarda internacional e assim gerador<br />
de dinamismo junto ao ambiente da época. 2<br />
De maneira geral, a importância do movimento<br />
Música Viva é ainda hoje sub-avaliada. Os jovens<br />
compositores Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe,<br />
Eunice Katunda e Edino Krieger, entre outros músicos,<br />
liderados por Koellreutter, são não apenas responsáveis<br />
pela primeira fase da composição atonal<br />
e dodecafônica da música brasileira. Cabe a eles mais<br />
precisamente a criação de uma nova perspectiva<br />
da produção musical, imbricada numa concepção<br />
contemporânea da função social do artista. Enquanto<br />
movimento que foi, Música Viva gerou intensa dinâmica<br />
cultural, agregando ao amplo conjunto de atividades<br />
promovidas - concertos, audições experimentais,<br />
conferências, cursos, programas de rádio, edição<br />
de boletins e de partituras, etc – temas contemporâneos<br />
para reflexão e oportunidades instigantes para debates.<br />
Todas essas iniciativas ofereceram-se como ricas<br />
alternativas de participação, provocando um<br />
aceleramento na compreensão da arte, do músico<br />
e de seus respectivos papéis na sociedade de sua época.<br />
Música Viva foi um movimento musical concebido<br />
sob o tríplice enfoque: Educação (formação) – Criação<br />
(composição) – Divulgação (interpretação,<br />
apresentações públicas, edições, transmissões<br />
radiofônicas), que integrados tiveram intensidades<br />
proporcionais ao longo de sua existência. Podemos<br />
distinguir três fases em sua evolução, cada qual<br />
correspondendo a momentos ideológicos relativamente<br />
distintos. Elas refletem as posturas adotadas por seus<br />
Página ao lado: Hans-Joachim Koellreutter.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
principais representantes, determinando diretamente<br />
o percurso do movimento, tanto do ponto de vista<br />
histórico quanto estético. Isto porém em quase nada<br />
descaracterizará o impulso educacional e formador que<br />
tão fortemente impregnou o conjunto das atividades<br />
desenvolvidas.<br />
MOMENTO I<br />
A primeira fase, integradora por excelência, é marcada<br />
pela coexistência interna de tendências estéticas<br />
e ideológicas bastante dessemelhantes, representadas<br />
pelos membros que constituem o grupo em sua<br />
formação original. Luiz Heitor Correa de Azevedo<br />
(musicólogo), Egydio de Castro e Silva (pianista e<br />
compositor), Brasílio Itiberê (compositor e professor),<br />
Octávio Bevilácqua (crítico musical do “O Globo”)<br />
e Andrade Muricy (escritor e crítico musical do “Jornal<br />
do Comércio”) são algumas das personalidades mais<br />
atuantes e conhecidas no ambiente musical carioca,<br />
que compõem o movimento nesta primeira fase. 3<br />
Essa tendência integradora se expressa igualmente<br />
na elaboração dos programas de concerto, nos quais<br />
mesclam-se músicas de Villa-Lobos e Camargo<br />
Guarnieri com aquelas de Koellreutter e Cláudio<br />
Santoro, acrescidas nos anos seguintes pelas de vários<br />
outros compositores, muito distantes tanto estética<br />
quanto ideologicamente.<br />
Mesmo que aparentando uma postura tradicional<br />
em razão desta constituição inicial, Música Viva<br />
reivindica já uma meta original: “divulgar o compositor<br />
e sua obra, principalmente a contemporânea”,<br />
diferentemente das sociedades musicais existentes no<br />
meio carioca da época que visavam realçar “o virtuose<br />
e o concerto”. Desde junho de 1939 têm início as<br />
“Audições Música Viva”, que inauguram publicamente<br />
o movimento, seguindo-se meses após os Concertos de<br />
mesmo nome. A primeira edição da série dos boletins<br />
Música Viva é lançada em maio de 1940, veiculando um<br />
balanço detalhado das atividades realizadas pelo grupo<br />
no ano anterior, entre textos de autores diversos,<br />
enfocando temas da atualidade, problemáticas<br />
da música contemporânea brasileira e, como<br />
suplemento, a modinha Sem fim, para canto e piano,<br />
de Fructuoso Vianna. 4<br />
89
90<br />
A divulgação musical, sob diferentes formas, passa<br />
a recobrir um vasto espectro de tendências estilísticas,<br />
gêneros e períodos históricos, integrando ao panorama<br />
musical internacional tanto a frente nacionalista quanto<br />
a nova escola composicional brasileira, ainda<br />
incipiente. Proposta inusitada para o período, ela<br />
se tornará uma característica constante ao longo da<br />
trajetória do movimento, atendendo aos objetivos de<br />
acesso ao patrimônio musical já constituído e daquele<br />
em processo de consolidação, em vista da meta de<br />
revitalizar o ambiente artístico-cultural perseguida pelo<br />
Música Viva. Isto explica melhor as transformações<br />
operadas nos momentos seguintes, quando as músicas<br />
compostas pelo grupo de compositores, instaurando<br />
tendência experimental e maior maturação<br />
de inovações compositivas, suscitam um estilo crítico<br />
combativo particular nas comunicações do grupo.<br />
MOMENTO II<br />
A segunda fase do movimento é inaugurada pelo<br />
lançamento de um importante documento, seu<br />
primeiro manifesto. Em 1º de Maio de 1944 −<br />
significativamente “dia do trabalho”−, o grupo Música<br />
Viva divulga um dos mais concisos e brilhantes<br />
manifestos brasileiros, o “Manifesto 1944”.<br />
Manifesto:<br />
O grupo Música Viva surge como uma porta que se abre<br />
à produção musical contemporânea, participando ativamente<br />
da evolução do espírito.<br />
A obra musical, como a mais elevada organização do<br />
pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa<br />
encarnação da vida, está em primeiro plano no trabalho<br />
artístico do Grupo Música Viva.<br />
Música Viva, divulgando, por meio de concertos,<br />
irradiações, conferências e edições a criação musical hodierna<br />
de todas as tendências, em especial do continente americano,<br />
pretende mostrar que em nossa época também existe música<br />
como expressão do tempo, de um novo estado de inteligência.<br />
A revolução espiritual, que o mundo atualmente<br />
atravessa, não deixará de influenciar a produção<br />
contemporânea. Essa transformação radical que se faz notar<br />
também nos meios sonoros, é a causa da incompreensão<br />
momentânea frente à música nova.<br />
Idéias, porém, são mais fortes do que preconceitos!<br />
Assim o Grupo Música Viva lutará pelas idéias de um<br />
mundo novo, crendo na força criadora do espírito humano<br />
e na arte do futuro.<br />
Aldo Parisot, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Egydio de Castro e Silva,<br />
João Breitinger, Mirella Vita, Oriano de Almeida, H. J. Koellreutter<br />
O lançamento deste documento ilustra a<br />
intensificação das atividades do movimento no Rio de<br />
Janeiro e também a fundação de seu núcleo paulista.<br />
No início deste ano, Koellreutter havia começado a dar<br />
aulas de composição para Guerra-Peixe e logo após a<br />
Edino Krieger. Santoro, seu aluno desde 1940, obtém<br />
mais um prêmio: uma significativa “Menção Honrosa”<br />
no Chamber Music Guild, com o “Primeiro Quarteto”,<br />
composto em 1943. Ao mesmo tempo em que<br />
reorganiza a constituição do grupo5 , Koellreutter<br />
implanta a bem sucedida série de programas<br />
radiofônicos levados ao ar junto à Rádio Ministério<br />
da Educação e Saúde (PRA-2), a partir de 13/05/1944. 6<br />
No entanto, o significado desse breve manifesto<br />
vai muito além do que habitualmente se considera.<br />
Ele é o reflexo inaugural do que hoje chamamos<br />
“música moderna brasileira”. Isto porque ao mesmo<br />
tempo em que através dele se busca a afirmação<br />
e a representatividade do movimento como um todo,<br />
coloca-se em primeiro plano uma criação musical<br />
de viva atualidade (original mas também em sintonia<br />
com correntes da vanguarda internacional), que passa<br />
agora a se beneficiar fertilmente das produções atonais<br />
nacionais, compostas por Cláudio Santoro7 , Guerra<br />
Peixe8 e pelo próprio Koellreutter. Em fértil<br />
contraponto com a produção nacionalista do período,<br />
estas músicas novas contam com eficazes suportes<br />
de divulgação e têm sua qualidade artística quase<br />
unanimemente reconhecida pelos críticos. Embora<br />
com estilos próprios, elas possuem em comum um<br />
modelo estético definido, representando a nova escola<br />
de composição brasileira, frente única da vanguarda<br />
de seu tempo. 9<br />
A partir desse momento Música Viva se coloca em<br />
posição ofensiva, conquistando ainda mais espaço nos<br />
meios de comunicação. Nos depoimentos públicos,<br />
procurando explicar pontos de vista e justificar
Periódico Música Viva. Ano 1. Novembro 1940. Artigo assinado por Luís Heitor.<br />
FUNDAÇÃO BILIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
91
92<br />
a importância do trabalho do grupo frente à “realidade<br />
em transformação”, Koellreutter denuncia a estagnação<br />
do meio artístico e do ensino de música no Brasil. 10<br />
Esse segundo momento ideológico é caracterizado pela<br />
substituição do conceito corrente de “indivíduo” − nos<br />
assuntos musicais elevado à categoria mítica e idealista<br />
−, pelo contemporâneo e recém-introduzido valor:<br />
“capacidade coletiva de uma geração”.<br />
MOMENTO III<br />
O segundo documento significativo produzido pelo<br />
Música Viva é o Manifesto 1946 ou Declaração<br />
de Princípios, levando os nomes de Egydio de Castro<br />
e Silva, Gení Marcondes, Heitor Alimonda, Santino<br />
Parpinelli, Eunice Katunda, Guerra Peixe, Cláudio<br />
Santoro, Koellreutter. Uma simples leitura deste<br />
documento, que se tornará referência oficial<br />
do movimento, torna evidente o grau de complexidade<br />
com que é tratado o fato musical, mediante os enfoques<br />
estético, social e econômico, refletindo, antes de uma<br />
coerência propriamente, um mosaico de flashes<br />
intensos de consciência. Reproduzimos a seguir alguns<br />
fragmentos:<br />
A música, traduzindo idéias e sentimentos na linguagem<br />
dos sons, é um meio de expressão; portanto, produto da vida<br />
social.<br />
/.../ A arte musical é o reflexo do essencial na realidade.<br />
A produção intelectual, servindo-se dos meios de expressão<br />
artística, é função da produção material e sujeita, portanto,<br />
como esta, a uma constante transformação, a lei da evolução.<br />
Música é movimento. / Música é vida.<br />
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” compreendendo este fato combate pela<br />
música que revela o eternamente novo, isto é: por uma arte<br />
musical que seja a expressão real da época e da sociedade.<br />
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” refuta a assim chamada arte<br />
acadêmica, negação da própria arte.<br />
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, baseada nesse princípio fundamental,<br />
apoia tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo,<br />
escolhendo a revolução e repelindo a reação.<br />
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, compreendendo que o artista é<br />
produto do meio e que a arte só pode florescer quando as forças<br />
produtivas tiverem atingido um certo nível de desenvolvimento,<br />
apoiará qualquer iniciativa em prol de uma educação não<br />
somente artística, como também ideológica; pois, não há arte<br />
sem ideologia.<br />
/.../ “<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, adotando os princípios<br />
de arte-acão, abandona como ideal a preocupação exclusiva<br />
de beleza; pois, toda a arte de nossa época não organizada<br />
diretamente sobre o princípio da utilidade será desligada<br />
do real.<br />
/.../ “<strong>MÚSICA</strong> VIVA” acredita na função socializadora<br />
da música que é a de unir os homens, humanizando-os<br />
e universalizando-os.<br />
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, compreendendo a importância social<br />
e artística da música popular, apoiará qualquer iniciativa no<br />
sentido de desenvolver e estimular a criação e divulgação<br />
da boa música popular, combatendo a produção de obras<br />
prejudiciais à educação artístico-social do povo.<br />
/.../ Consciente da missão da arte contemporânea em face<br />
da sociedade humana, o grupo “<strong>MÚSICA</strong> VIVA”, acompanha<br />
o presente no seu caminho de descoberta e de conquista,<br />
lutando pelas idéias novas de um mundo novo, crendo na força<br />
criadora do espírito humano e na arte do futuro. 11<br />
Este grande painel de idéias, verdadeiro mural de<br />
intenções da modernidade musical brasileira, retrata<br />
com perfeição o papel revolucionário assumido pelo<br />
movimento e o engajamento visceral com que os<br />
membros do grupo se lançam às questões fundamentais<br />
da realidade social de seu tempo. No entanto, contém<br />
já em seu bojo as contradições essenciais que<br />
provocarão abalos consecutivos até sua ruptura<br />
definitiva.<br />
Santoro, que desde Agosto de 1947 estava fora<br />
do país, participa do “II Congresso Internacional de<br />
Compositores e Críticos Musicais”, realizado em Praga<br />
de 20 a 29 de Maio de 1948. O contato direto com os<br />
músicos progressistas e suas teses o levarão a compartilhar<br />
fervorosamente dos ideais do “realismo socialista”.<br />
Serão justamente as “Resoluções” e o “Apelo”<br />
elaborados nesse congresso – e editados em seguida no<br />
Música Viva nº16 (Agosto/1948), boletim que encerra a<br />
série de publicações –, que conferirão substrato formal<br />
para a polarização das divergências ideológicas entre<br />
Koellreutter e Santoro, notadamente, deflagrando<br />
no grupo o processo efetivo de dissolvência.<br />
Assim, se por um lado o movimento Música Viva
“<strong>MÚSICA</strong> VIVA” acredita na função socializadora<br />
da música que é a de unir os homens,<br />
humanizando-os e universalizando-os.<br />
demonstrava amplo desenvolvimento em sua empresa<br />
de divulgação e de formação musical, tanto no Rio de<br />
Janeiro quanto em São Paulo, por outro lado o grupo<br />
integrado pelos compositores − até então seu carrochefe<br />
−, rumava a caminho da implosão.<br />
O MOVIMENTO EM SÃO PAULO<br />
A inauguração do movimento Música Viva paulista<br />
se dá em meados de 1944, como mencionamos.<br />
O primeiro grupo que se constituiu foi a célula base<br />
de um tímido movimento, sediado na residência de um<br />
de seus participantes onde ocorriam aulas,<br />
apresentações musicais e palestras de Koellreutter.<br />
Afora seus alunos Gení Marcondes, Ruy Coelho,<br />
Álvaro Bittencourt, Ducks Simon, Ulla Simon-Wolf,<br />
Eva Kovach, Lídia Alimonda, Jenny Pereira<br />
e Magdalena Nicoll, integravam também o grupo<br />
vários outros artistas e intelectuais.<br />
Após breve interrupção, Koellreutter retomará no<br />
ano seguinte suas aulas. Nininha Gregori, Damiano<br />
Cozzella, Roberto Schnorrenberg, Hans Trostli, Jorge<br />
Wilheim e Eunice Katunda12 , são alguns dos alunosparticipantes<br />
que darão vigor a essa segunda e mais<br />
autêntica fase do movimento. Música Viva paulista<br />
é lançado oficialmente no auditório da Biblioteca<br />
Municipal em 05/07/1947, sendo o evento ilustrado<br />
com a conferência “Fundamentos de uma estética<br />
materialista da música”, pronunciada pelo líder<br />
do Música Viva e seguida, como de praxe, por debate<br />
público. Desde esta data tem início uma profícua<br />
atuação junto ao Museu de Arte de São Paulo, mediante<br />
a realização de série de cursos, conferências e dos<br />
“Concertos Música Viva”, que prolongaram-se até 1951.<br />
No entanto, apesar da dinâmica que o movimento<br />
paulista imprimiu no meio musical local, suas<br />
atividades não chegaram a alcançar a mesma<br />
magnitude verificada no Rio de Janeiro. Tampouco<br />
emergiu de seus participantes um grupo autêntico de<br />
compositores, do porte de um Santoro ou Guerra Peixe<br />
(Roberto Schnorrenberg é uma das poucas exceções),<br />
fato que em parte justifica a importância minimizada<br />
que a ele correntemente se atribui. O grupo que se<br />
formou foi composto em grande parte por musicistas,<br />
muitos dos quais jovens alunos de Koellreutter<br />
desejosos em redinamizar o ambiente da época e<br />
bastante atuantes na promoção de conferências, cursos,<br />
audições e concertos. Contudo, os núcleos paulistas de<br />
renovação, que vieram posteriormente a desempenhar<br />
um relevante papel no desenvolvimento da música<br />
brasileira desde o início da década de 60, permitem<br />
observar na base de suas iniciativas, músicos ativos<br />
formados num terreno já fertilizado pelas realizações<br />
Música Viva, seja enquanto participantes diretos do<br />
movimento, seja enquanto alunos de Koellreutter<br />
(de suas aulas particulares de composição e estética,<br />
bem como das classes por ele ministradas na “Escola<br />
Livre de Música” de São Paulo). 13<br />
TRANSCENDÊNCIA DO MOVIMENTO<br />
Em 7 de Novembro de 1950 o compositor Camargo<br />
Guarnieri, natural de Tietê/SP, publica sua “Carta<br />
Aberta”, responsável por uma das maiores polêmicas já<br />
observadas na vida musical e artística brasileira. Texto<br />
de combate, com conteúdo fortemente polêmico,<br />
acabou por representar um golpe direto no trabalho<br />
de formação musical desenvolvido por Koellreutter,<br />
93
94<br />
impondo sérias limitações à atuação do movimento<br />
na capital paulista. 14 Envolveram-se na celeuma<br />
as facções pró e contra a música dodecafônica,<br />
reavivando questões políticas e estéticas já colocadas<br />
anos antes pertinentemente pelo próprio grupo Música<br />
Viva. Como desdobramento final desse processo,<br />
deu-se um mês após no Museu de Arte um<br />
efervescente debate, que levou à desarticulação<br />
o movimento em São Paulo e após no Rio de Janeiro.<br />
Os eventos musicais até então ali desenvolvidos com<br />
sucesso reduzem-se de maneira expressiva, deixando<br />
de ter qualquer relação com o movimento logo<br />
no ano seguinte.<br />
Assim como a divulgação dos manifestos<br />
de 1944 e de 1946 havia provocado fortes reações<br />
na comunidade musical, a concepção destes<br />
documentos implicou em rupturas internas no grupo<br />
de compositores. Muito embora o progressivo<br />
engajamento partidário de alguns de seus membros<br />
acrescido de dificuldades relacionais internas tenham<br />
comprometido uma continuidade coerente<br />
e harmoniosa dos princípios do movimento, deve-se<br />
no entanto mais substancialmente à questão política<br />
e de preservação de territórios em São Paulo<br />
o esvaziamento do Música Viva brasileiro.<br />
Os produtos engendrados pelos movimentos<br />
paulista e carioca rarefazem-se entre 51 e 52,<br />
praticamente nenhuma menção à Música Viva<br />
subsistindo após estas respectivas datas. Da mesma<br />
maneira que os movimentos, o grupo de compositores,<br />
a partir de sua re-orientação estética e ideológica em<br />
1948-49, não chegou na realidade a ter um final<br />
estanque. Deu-se sim uma desarticulação, uma<br />
1. Hans-Joachim Koellreutter nasceu em Freiburg, na Alemanha,<br />
a 02/09/1915 e chegou ao Rio de Janeiro em 1937. Com 22 anos,<br />
o jovem flautista e compositor, que havia estudado com o<br />
renomado regente Hermann Scherchen, mestre de toda uma<br />
geração, traz vivo o desejo de dar continuidade no Brasil às<br />
participações que havia tido na Europa em grupos com certo<br />
ineditismo de propostas (“Círculo de Música Nova”, Berlim 1935<br />
e “Círculo de Música Contemporânea”, Genebra 1936).<br />
2. A expressão Musica Viva foi originalmente cunhada pelo<br />
músico e regente alemão Hermann Scherchen (1891-1966),<br />
dissolvência intensa e progressiva, em razão da falta<br />
interna de consenso. No entanto, o impulso dinâmico<br />
de reformular, de pôr abaixo valores acadêmicos<br />
e tradicionais, de combater preconceitos, de estimular<br />
a criatividade e a participação se mantém vivo no líder<br />
do Música Viva.<br />
De fato já antes do encerramento completo dos<br />
movimentos, Koellreutter implanta novos projetos que<br />
mesmo conferindo à ideologia Música Viva formas<br />
diferenciadas, privilegiam sempre, de maneira<br />
característica, a educação musical, a criação e o<br />
“sentido coletivista da música”. Assim, entre algumas<br />
de suas iniciativas, teremos a bem sucedida série dos<br />
“Cursos Internacionais de Férias Pró-Arte” de<br />
Teresópolis/RJ, que inaugurou a tradição dos eventos<br />
de férias no Brasil, com início em janeiro de 1950<br />
(portanto quase um ano antes da Carta Aberta);<br />
a “Escola Livre de Música” de São Paulo, a partir de<br />
1952, apresentando um projeto de formação musical<br />
inusitado e introduzindo nas salas de aula o estudo do<br />
jazz e da música popular, por exemplo; os “Seminários<br />
Internacionais de Música” de Salvador/Bahia, lançados<br />
em 1954, e que, logo nos anos seguintes, acabou por<br />
transformar a capital baiana num dos mais importantes<br />
e inovadores centros de formação de músicos<br />
e de educadores musicais do país. 15<br />
Grande parte dos músicos de relevo no cenário<br />
artístico brasileiro, bem como dos grupos corais e/ou<br />
instrumentais, espelham em sua formação uma simples<br />
influência que seja ou, mais freqüentemente, uma<br />
filiação direta com a dinâmica empresa pedagógica<br />
instalada pioneiramente pelo movimento Música Viva<br />
e por H. J. Koellreutter entre nós.<br />
inaugurando um movimento musical e nomeando assim um<br />
periódico musical, editado em Bruxelas de 1933 a 1936.<br />
Os esforços desse reconhecido mestre foram consagrados à<br />
divulgação e à melhor compreensão da música nova, cabendolhe<br />
as primeiras audições de obras de compositores modernos,<br />
hoje indiscutivelmente incorporados à história do século XX:<br />
P.Hindemith, A.Schoenberg, A.Berg, A.Webern, S.Prokofiev,<br />
I.Stravinsky, L.Dallapiccola, L.Nono, H.-W.Henze, bem como<br />
Koellreutter, Guerra Peixe, Eunice Katunda, entre outros mais.<br />
3. Diferentemente das seguintes fases nas quais os participantes
mais ativos serão jovens alunos ou ex-alunos de Koellreutter.<br />
4. A primeira fase de publicação dos boletins estende-se<br />
do nº1 de Maio/1940 ao nº 10/11 de Maio/1941. Cada um dos<br />
exemplares dessa fase oferecem em suplemento a partitura<br />
de uma composição contemporânea, de pequeno porte, quase<br />
sempre de autor nacional. A retomada das publicações se dará<br />
apenas em 1946, porém em outro formato e com nova política<br />
editorial.<br />
5. Por essa ocasião são membros do Música Viva no Rio de<br />
Janeiro: Jaioleno dos Santos, Marcos Nissensson, Santino<br />
Parpinelli e Loris Pinheiro, afora os signatários do manifesto.<br />
6. Eram irradiados semanalmente programas com música ao vivo<br />
e gravações, contando com a participação de membros do Música<br />
Viva e de artistas convidados, intérpretes que, em sua maioria,<br />
desde então impuseram-se no ambiente musical. De fato, não<br />
apenas a modernidade mas várias outras épocas foram<br />
representadas e comentadas nos programas. As estréias mundiais,<br />
nacionais ou regionais cobriram então vasta gama, incidindo<br />
sobre produções ocidentais desde a Idade Média até<br />
a contemporaneidade e, evidentemente, obras do próprio grupo.<br />
Esses programas estenderam-se até cerca de 1952.<br />
7. Aluno de Koellreutter a partir de 1940 e até por volta de<br />
meados de 41, Santoro já havia efetuado em diversas obras a<br />
passagem do atonalismo simples ao dodecafônico, encontrandose<br />
nessa ocasião em plena maturidade composicional.<br />
8. Seu colega desde inícios de 1944, este músico experiente passa<br />
rapidamente a conceber seus mais significativos frutos nessa<br />
mesma direção.<br />
9. Vale observar que raras foram as músicas compostas<br />
rigorosamente sob o método atonal-dodecafônico, tal como<br />
concebido por A.Schoenberg, praticado por seus discípulos<br />
A. Berg, A. Webern e muitos dos principais seguidores, mesmo<br />
um latinoamericano como Juan Carlos Paz. As produções dos<br />
compositores brasileiros foram em sua quase totalidade bem mais<br />
livres do ponto de vista técnico e particularmente criativas na<br />
incorporação de ritmos e padrões musicais regionais brasileiros,<br />
resultando assim em fatura fortemente original.<br />
10. Em seu texto “A música e o sentido coletivista do compositor<br />
moderno” (Diretrizes, 11/05/44, p.5) ele critica as deficiências do<br />
curso de composição da Escola Nacional de Música (RJ), gerando<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
KATER, Carlos. Catálogo de Obras de H. J. Koellreutter. Belo<br />
Horizonte: FEA / FAPEMIG − Fundação de Amparo à<br />
Pesquisa de Minas Gerais, 1997.<br />
———. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à modernidade.<br />
São Paulo: Atravez & Musa, 2001.<br />
———. Eunice Katunda, musicista brasileira. São Paulo: Annablume/<br />
FAPESP, 2001.<br />
DISCOGRAFIA<br />
KOELLREUTTER PLURAL - Centro Experimental de Música do SESC<br />
(SP,1995) (CD); “Koellreutter”, série Música Nova da América<br />
Latina - TACAPE (T0012,1983); “III Bienal de Música<br />
Contemporânea”, Vol.II. FUNARTE, LP nº 3.56.404.031; “Beatriz<br />
Balzi – Compositores Latino-Americanos 1, 2, 3”, série Música<br />
Nova de América Latina – TACAPE (CD), entre vários outros<br />
editados, sobretudo, pela FUNARTE (RJ)<br />
profunda incompatibilização não apenas com a própria escola,<br />
mas com todo o meio musical conservador carioca.<br />
11. Cf. boletim Música Viva, nº12, Jan./1947. Este documento,<br />
finalizado em 1 de Novembro 1946, foi também publicado, sob<br />
o título “Manifesto Música Viva / Declaração de Princípios”, na<br />
revista Paralelos, nº5 (SP, Jun./1947), p.49-51. Para sua transcrição<br />
integral, bem como a dos demais manifestos (1944 e 1945), ver:<br />
KATER, C. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à<br />
modernidade (2001).<br />
12. Que em seguida irá integrar o grupo de compositores no Rio<br />
de Janeiro junto com Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Edino<br />
Krieger.<br />
13. Fundada em 15 de Março de 1952, a “Escola Livre de Música<br />
de São Paulo Pró-Arte” passará a chamar-se, quatro anos após,<br />
“Pró-Arte Seminários de Música” e estende suas atividades até<br />
1958.<br />
14. Este documento foi muito provavelmente originado pelo forte<br />
incômodo causado no compositor nacionalista diante do<br />
progressivo espaço que vinha sendo ocupado em São Paulo pelo<br />
movimento Música Viva, sob a coordenação do carismático<br />
Koellreutter, de quem aliás tinha sido amigo havia quase uma<br />
década.<br />
15. A partir desses Seminários é que se originou a Escola de<br />
Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia<br />
(UFBa). Para uma apresentação das principais realizações e<br />
atividades de Koellreutter, ver: KATER, C. “H. J. Koellreutter:<br />
música e educação em movimento”, in: Cadernos de<br />
Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH: Atravez/EM-UFMG/FEA,<br />
Fev/1997, p.6-25.<br />
———. (Edit.) Cadernos de Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH:<br />
Atravez/UFMG, Fev. 1997 (contendo coletânea comentada de<br />
textos produzidos por H.J.Koellreutter em diferentes épocas).<br />
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. SP: Ricordi,<br />
1981.<br />
MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2000 (5ªed.).<br />
CARLOS KATER<br />
Doutor em História da Música e Musicologia pela Universidade de Paris IV (Sorbonne) e Professor Titular concursado pela UFMG, é atualmente docente<br />
da UFSCar - Universidade Federal de São Carlos e do Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade São Marcos (SP).<br />
95
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Francisco Mignone
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Lorenzo Fernandez
Não tivessem nascido no mesmo ano, 1897, Francisco<br />
Mignone e Oscar Lorenzo Fernandez não estariam<br />
freqüentemente associados, mesmo levando em conta<br />
as várias similaridades entre suas características<br />
e vivências pessoais, compreendendo desde a comum<br />
escolha de suas profissões, a atuação no mesmo espaço<br />
físico-cultural, até a adesão, na condição de<br />
compositores, a propostas estéticas semelhantes.<br />
Porém, se olharmos de forma mais acurada, veremos<br />
que suas trajetórias foram desiguais, o que reputamos<br />
a três razões fundamentais: suas origens, as diferentes<br />
personalidades e a fatalidade que interrompeu de<br />
maneira prematura a vida de Lorenzo Fernandez,<br />
estabelecendo uma grande distinção entre os períodos<br />
de tempo que ambos dispuseram para atuar e produzir.<br />
Francisco Mignone nasceu em São Paulo, no dia<br />
3 de setembro de 1897, filho do jovem músico italiano<br />
Alferio Mignone, flautista que havia emigrado para<br />
o Brasil no ano anterior. A provinciana São Paulo não<br />
oferecia muitas oportunidades de trabalho a um<br />
instrumentista de orquestra, entidade musical até então<br />
inexistente na cidade, a não ser na forma de<br />
agrupamentos musicais heterogêneos arregimentados<br />
ocasionalmente. Entretanto, a cidade crescia<br />
e desenvolvia-se rapidamente: em 1906, começaram<br />
as atividades do Conservatório Dramático e Musical<br />
de São Paulo, do qual Alferio Mignone tornou-se<br />
professor; em 1911, inaugurou-se o Teatro Municipal<br />
de São Paulo e no ano seguinte, foi criada a Sociedade<br />
de Cultura Artística; finalmente, em 1921, foi fundada<br />
a Sociedade de Concertos Sinfônicos de São Paulo,<br />
entidade que congregou uma orquestra com quadro<br />
regular de instrumentistas, entre eles Alferio Mignone.<br />
Ser filho de um músico italiano – profissão mal<br />
vista na época – vivendo fora do grande centro dos<br />
acontecimentos e das principais instituições musicais<br />
do país, o Rio de Janeiro, era uma origem<br />
desfavorável, a não ser para quem estava também<br />
98<br />
LUTERO RODRIGUES<br />
destinado a ser músico. Desde muito cedo, Francisco<br />
Mignone recebeu uma esmerada formação musical<br />
estudando flauta e piano; aos 15 anos, ingressou no<br />
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo onde<br />
passou a ser orientado pelos melhores professores que<br />
havia na cidade: seu próprio pai (flauta) e o célebre<br />
mestre italiano Agostino Cantú (piano, harmonia,<br />
contraponto e composição). Aos 19 anos, recebeu os<br />
diplomas de flauta, composição e piano, três vertentes<br />
que lhe foram úteis em diferentes momentos da vida.<br />
Quando terminou o Conservatório, o jovem<br />
Mignone já era conhecido no ambiente musical<br />
paulista. Desde os 13 anos de idade, tocava piano<br />
em pequenas orquestras para ajudar nas despesas com<br />
seus próprios estudos e eventualmente atuava também<br />
como flautista, não só em orquestras, mas também<br />
em conjuntos de “chorinhos” pelas ruas de São Paulo.<br />
Começava também a revelar o seu talento para<br />
a composição criando peças de cunho popular, com<br />
o pseudônimo de “Chico Bororó”.<br />
Para o público erudito paulistano, a estréia oficial<br />
de Mignone deu-se em 16 de dezembro de 1918 e foi<br />
um grande sucesso. Ele atuou como pianista, solando<br />
o 1º movimento do Concerto de Grieg, e compositor,<br />
pois duas de suas obras sinfônicas foram também<br />
ouvidas em primeira audição: o poema sinfônico<br />
Caramuru (1917) e a Suíte Campestre (1918). São Paulo<br />
tinha uma lei singular, o chamado Pensionato Artístico<br />
do Governo do Estado, que concedia bolsas de estudo<br />
no exterior para jovens artistas, desde que seus nomes<br />
fossem aprovados por uma comissão presidida pelo<br />
então deputado Freitas Valle, um admirador do talento<br />
de Mignone. Após o sucesso do concerto, a obtenção<br />
da bolsa por Mignone foi uma conseqüência natural,<br />
como também foi natural o seu destino, a Itália. Além<br />
da facilidade da língua e sua própria origem, a cultura<br />
musical italiana dominava a vida musical paulistana,<br />
onde atuavam muitos músicos originários daquele país,
embora a influência francesa preponderasse em todos<br />
os outros ramos culturais, como de resto acontecia<br />
em todo o Brasil.<br />
Não resistindo à digressão, qual não teria sido<br />
o impulso inicial na carreira do jovem compositor<br />
e seu destino após diplomar-se, se tivesse mostrado<br />
suas qualidades excepcionais de músico, cursando,<br />
não o conservatório paulistano, mas o Instituto<br />
Nacional de Música, no Rio de Janeiro, de muito<br />
maior visibilidade?<br />
Em 1920, Mignone chegou a Milão e só retornaria<br />
ao Brasil, definitivamente, em 1929. Durante este<br />
período, voltou ao nosso país algumas vezes, por curtas<br />
temporadas, geralmente para acompanhar a execução<br />
de algumas de suas principais composições da década.<br />
Na Itália, estudou harmonia, contraponto, fuga<br />
e composição com o célebre mestre Vincenzo Ferroni,<br />
que tivera formação francesa como discípulo de<br />
Massenet. Seu nome estava ligado à história da música<br />
brasileira, pois havia sido colega de Francisco Braga<br />
e professor de Alexandre Levy. Mignone solidificou<br />
e ampliou seus conhecimentos, inclusive em<br />
orquestração, arte para a qual já demonstrava<br />
especial aptidão.<br />
Em São Paulo, a orquestra da Sociedade de<br />
Concertos Sinfônicos que se responsabilizava pela<br />
execução de suas novas obras, também promovia<br />
concursos de composição, duas vezes vencidos por<br />
Mignone, em 1923 e 1926. As principais obras do<br />
compositor, durante o período, foram duas óperas:<br />
O Contratador de Diamantes (1921) e L’innocente (1927),<br />
ambas com texto em italiano, na época considerado<br />
quase uma linguagem oficial da ópera. Uma dança<br />
sinfônica do Contratador, a conhecida Congada, obteve<br />
grande sucesso ao ser incluída na programação da<br />
Orquestra Filarmônica de Viena, sob a regência de<br />
Richard Strauss, em sua passagem pelo Brasil, em<br />
1923, antecipando o sucesso que a ópera alcançaria no<br />
ano seguinte, ao ser estreada no Rio de Janeiro.<br />
Maior sucesso ainda obteria sua segunda ópera,<br />
L’innocente, em sua estréia, no Rio de Janeiro, em 1928,<br />
e algumas lideranças da vida cultural brasileira, em<br />
conjunto com setores da imprensa, passaram a<br />
vaticinar que Mignone seria o sucessor de Carlos<br />
Francisco Mignone. Festa das Igrejas. Partitura manuscrita autógrafa.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Gomes. Entretanto, nem Carlos Gomes tinha uma<br />
reputação inatacável entre as diversas facções<br />
modernistas, nem Mignone, que começou a ver<br />
questionadas suas óperas italianas através dos mesmos<br />
setores da nossa intelectualidade. Um deles era um<br />
velho conhecido seu, Mário de Andrade, antigo colega<br />
do Conservatório, que escreveu:<br />
“Mas que valor nacional tem O inocente?<br />
Absolutamente nenhum. Em música italiana, Francisco<br />
Mignone será mais um, numa escola brilhante, rica,<br />
numerosa, que ele não aumenta. Aqui ele será um<br />
valor imprescindível.” (Mariz,1997:13)<br />
Porém, Mário não havia feito apenas este elegante<br />
apelo a Mignone; em outra ocasião, dirigindo-se aos<br />
compositores brasileiros em geral, dissera:<br />
“Todo artista brasileiro que no momento atual fizer<br />
arte brasileira é um ser eficiente com valor humano.<br />
O que fizer arte internacional ou estrangeira,<br />
se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma<br />
99
100<br />
reverendíssima besta”. (Andrade, s/d.:19)<br />
Voltando ao Brasil, em 1929, Mignone tomou<br />
a decisão que gerou profundas mudanças em sua<br />
música, aderindo ao nacionalismo. Muitos anos mais<br />
tarde, ao completar 70 anos, em uma entrevista bem<br />
humorada concedida ao Jornal do Brasil, o compositor<br />
afirmou que tomara a decisão para “não ser<br />
considerado…uma reverendíssima besta”.<br />
Sob a influência de Mário de Andrade, de quem<br />
tornou-se um grande amigo, Mignone compôs, a partir<br />
de 1929, a série das 4 Fantasias Brasileiras para Piano<br />
e Orquestra, de inequívoca tendência nacionalista.<br />
Em 1933, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade<br />
onde viveria até a morte e iniciou um ciclo de obras,<br />
sobretudo sinfônicas, baseadas em elementos<br />
característicos da cultura negra do Brasil: Maracatú<br />
do Chico Rei (1933), Babaloxá e Batucajé (1936), Leilão<br />
(1941). O chamado “ciclo negro” de sua música<br />
provocou questionamentos, inclusive de Mário<br />
de Andrade, fazendo com que o compositor buscasse<br />
outros rumos. Porém, estas não foram suas únicas obras<br />
do período; também compôs o célebre ciclo das 12<br />
Valsas de Esquina (1938-1943), obras que nos remetem<br />
para a vivência seresteira do “Chico Bororó” nas ruas<br />
de São Paulo. De todos os compositores influenciados<br />
por Mário de Andrade, foi ele quem mais deixou<br />
transparecer, em sua música, os ideais socialistas da<br />
fase final da vida de Mário, através de obras como<br />
Sinfonia do Trabalho (1939) e Festa das Igrejas (1940).<br />
Crises eventuais de auto-questionamento faziam<br />
parte da personalidade de Mignone, tornando-se<br />
responsáveis por várias mudanças de rumo em<br />
sua vida. Em uma delas, a composição foi<br />
temporariamente preterida pela regência, atividade que<br />
seu múltiplo talento musical permitia exercer com<br />
perfeição, lembrando que desde 1934, Mignone<br />
assumira a cadeira de Regência do Instituto Nacional<br />
de Música e tivera a oportunidade de reger grandes<br />
orquestras da Europa, como a Filarmônica de Berlin.<br />
Em outro destes momentos de reflexão, exatamente<br />
quando completava seus 50 anos, deixou-nos um<br />
importante depoimento através do livro A parte do anjo,<br />
externando os conflitos consigo mesmo gerados por<br />
sua “facilidade natural” em relação à música.<br />
A continuação de seu trabalho de compositor pode<br />
ser definida por suas próprias palavras:<br />
“Depois de dobrar o cabo das boas resoluções, aos<br />
sessenta e mais anos, entreguei-me a escrever música<br />
pela música. Agrado a mim mesmo e é quanto basta.<br />
Aceito e emprego todos os processos de composição<br />
conhecidos.” (Mariz,1997:46)<br />
Eventualmente, o compositor criou peças<br />
de linguagem mais moderna, mas a partir da década<br />
de 60, fez experiências com a técnica dodecafônica e<br />
a música atonal, voltando em seguida à sua linguagem<br />
anterior baseada no credo nacionalista. Apesar das<br />
crises ocasionais que dificultavam seu trabalho,<br />
a produção musical de Mignone pouco a pouco tornouse<br />
muito numerosa, abrangente e diversificada,<br />
compreendendo variados gêneros e as mais diversas<br />
formações instrumentais e vocais, desde a música para<br />
piano, canto e piano, música de câmara, até aquela<br />
destinada às grandes formações de coro e orquestra<br />
sinfônica. Sua produção tem algumas particularidades<br />
que o diferenciam no cenário brasileiro, entre elas<br />
o ecletismo: compôs mais de uma dezena de bailados,<br />
número equivalente de músicas para filmes<br />
cinematográficos, mas também dois oratórios e sete<br />
missas, fato surpreendente para um compositor que<br />
se declarava não-católico.<br />
Observando a obra de Mignone como um todo,<br />
pode-se perceber que ele preferia compor a partir de<br />
motivações exteriores, geralmente literárias, e seu<br />
instrumento preferido era a orquestra sinfônica, fato<br />
que o tornou, depois de Villa-Lobos, o compositor<br />
brasileiro que mais obras escreveu para esta formação<br />
instrumental. A ópera, excluída de sua vida por uma<br />
opção consciente, voltou a fazer parte dela já perto<br />
de seu final. Escolhendo assuntos ligados ao passado<br />
histórico brasileiro, compôs O Chalaça (1976)<br />
e O Sargento de Milícias (1978).<br />
Mignone morreu no dia 19 de fevereiro de 1986,<br />
aos 88 anos de idade, e concluímos da maneira que<br />
começa quase toda a bibliografia existente sobre<br />
Mignone, afirmando que foi ele o músico mais<br />
completo entre todos os nossos compositores.<br />
Também brasileiro de primeira geração, Oscar<br />
Lorenzo Fernandez nasceu no Rio de Janeiro, 2 meses
após Mignone, no dia 4 de novembro, filho de um<br />
comerciante espanhol de boa situação econômica, Don<br />
Cassiano Fernandez Alvarez. Desde cedo, sua família<br />
destinou-o à medicina e ele demonstrava aptidão pela<br />
pesquisa científica. Aos 15 anos, começou a tocar piano<br />
de ouvido, apresentando especial interesse por acordes<br />
e harmonizações, enquanto sua irmã Amália, que<br />
estudava piano com Henrique Oswald, passou a darlhe<br />
noções de teoria musical. Preparando-se para cursar<br />
a Faculdade Nacional de Medicina, em 1916, sofreu um<br />
distúrbio nervoso que o impediu de estudar por algum<br />
tempo, dedicando-se, porém, à música como forma<br />
de relaxamento. Tendo já feito algumas incursões pela<br />
composição de peças de cunho popular, passou a ter<br />
aulas regulares de piano e no ano seguinte,<br />
matriculou-se no Instituto Nacional de Música.<br />
A partir deste momento, a vida de Lorenzo<br />
Fernandez transformou-se em um dos maiores<br />
exemplos da história da música brasileira, senão<br />
o maior, de determinação e dedicação ao objetivo<br />
de tornar-se músico, tendo plena consciência que<br />
começara mais tarde do que a prática normal<br />
recomendava e portanto deveria fazê-lo com muito<br />
maior empenho pessoal. Tal dedicação foi muito bem<br />
recebida pelos competentes mestres do Instituto,<br />
com os quais passou a estudar: J. Octaviano (teoria<br />
a solfejo), Henrique Oswald (piano), Francisco Braga<br />
(composição, contraponto e fuga) e sobretudo<br />
Frederico Nascimento (harmonia), que tornar-se-á seu<br />
mentor e amigo.<br />
Em 1923, com o agravamento dos problemas<br />
de saúde do mestre Frederico Nascimento, Lorenzo<br />
Fernandez foi nomeado professor substituto da cadeira<br />
de Harmonia Superior, tornando-se o mais jovem<br />
membro do corpo docente da instituição, posto no qual<br />
foi efetivado, em 1925, após a morte do mestre.<br />
Além desta vertiginosa carreira acadêmica, desde 1919,<br />
Lorenzo Fernandez produzia, anualmente, várias<br />
composições para piano, canto e piano, e música<br />
de câmara, incluindo o Trio nº 1, que recebeu sua<br />
estréia em 1923, num concerto inteiramente dedicado<br />
às suas obras, no Instituto Nacional de Música.<br />
Até 1924, suas composições gravitavam em torno<br />
das soluções estéticas românticas e impressionistas,<br />
Lorenzo Fernandez. Fotografia assinada por Nicolas.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
embora o compositor não se mantivesse avesso<br />
às novas propostas modernistas. Havia estado presente<br />
à Semana de Arte Moderna, de São Paulo, e passou a<br />
desenvolver, com Graça Aranha, um dos participantes<br />
da Semana, o projeto de composição de uma ópera<br />
baseada no texto de Malazarte, daquele autor,<br />
ao mesmo tempo em que iniciava uma amizade com<br />
Mário de Andrade que se tornaria sólida. 1<br />
A partir de 1924, Lorenzo Fernandez passou<br />
a evidenciar sua adesão ao nacionalismo musical<br />
brasileiro com a composição da Canção Sertaneja e do<br />
Trio nº 2, denominado Trio Brasileiro. No ano seguinte,<br />
produziu sua primeira obra orquestral, a Suíte Sinfônica<br />
sobre Três Temas Populares Brasileiros, revelando um<br />
interesse que seria sempre crescente pela arte da<br />
orquestração e pela música sinfônica. O poema<br />
sinfônico Imbapára (1928) já foi uma obra de maior<br />
fôlego e sua sucessora, Reisado do Pastoreio (1930),<br />
terminava com um Batuque que se tornaria célebre<br />
na década de 30. Após ser editado pela Ricordi italiana<br />
101
102<br />
102<br />
COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA<br />
DISCOGRAFIA o esforço sobre-humano de Lorenzo Fernandez foi<br />
Música de Francisco Mignone<br />
aquele despendido na atividade pedagógica,<br />
1 – ESTE BRASIL QUE EU AMO<br />
Intérprete: Eudóxia de Barros, pianista<br />
No fundo do meu quintal<br />
Editora Paulinas Comep – São Paulo CD 6673-7<br />
acumulando atividades nas principais instituições<br />
de ensino musical do Rio de Janeiro da sua época:<br />
professor de harmonia, mais tarde também de<br />
2 – PIANO BRASILEIRO (2CDs)<br />
contraponto e fuga da Escola (ex-Instituto) Nacional<br />
Intérprete: Francisco Mignone, pianista<br />
de Música (desde 1923), fundador e diretor do<br />
Lendas Sertanejas nº 6,7,8<br />
Conservatório Brasileiro de Música (desde 1936),<br />
Funarte – Fun 004-5M/95<br />
3 – FRANCISCO MIGNONE – 17 CHOROS PARA PIANO<br />
Intérprete: Maria Josephina Mignone, pianista<br />
17 Choros para Piano<br />
professor e diretor interino (quando Villa-Lobos<br />
viajava) do Conservatório Nacional de Canto<br />
Orfeônico (desde 1943).<br />
Funarte – ATR 32034<br />
Interrompendo esta insana atividade por cerca<br />
4 – PANORAMA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA PIANO<br />
de sete meses, em 1938, o compositor foi comissionado<br />
Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista<br />
pelo governo brasileiro para representar o país no<br />
Valsa Elegante / Lenda Sertaneja nº 8<br />
Festival Ibero-Americano de Música, na Colômbia,<br />
Universidade Federal de Goiás ADD 99129<br />
5 – FRANCISCO MIGNONE – UM CONCERTO E 19 CANÇÕES<br />
Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista<br />
e aproveitando a ocasião realizou extensa tournée<br />
artística por sete países latino-americanos: Colômbia,<br />
Orquestra Sinfônica Nacional, regente: Alceo Bocchino<br />
Panamá, Cuba, Peru, Chile, Argentina e Uruguai.<br />
Glória Queiroz, meio-soprano<br />
Nesta oportunidade, atuou como conferencista<br />
Francisco Mignone, pianista<br />
e regente, interpretando obras dos nossos maiores<br />
Concerto para Piano e Orquestra e 19 Canções<br />
compositores e obtendo grande sucesso não apenas<br />
Soarmec – Rádio MEC S003<br />
6 – FRANCISCO MIGNONE<br />
Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista<br />
Noel Devos, fagotista<br />
artístico como também pessoal, pois expressava-se<br />
perfeitamente em espanhol, a língua de seus pais.<br />
Durante a década de 30, Lorenzo Fernandez<br />
Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, regente:<br />
continuou a trabalhar na composição de sua ópera,<br />
Francisco Mignone<br />
Malazarte, e finalmente, em 1941, dirigiu sua estréia<br />
Fantasia Brasileira nº 3, para Piano e Orquestra/Leilão – Bailado/ no Rio de Janeiro com grande sucesso. A ópera foi<br />
Concertino para Fagote e Orquestra/Música nº 1, para Orquestra<br />
Funarte – ATR 32036<br />
cantada em italiano, o que era comum nas décadas<br />
anteriores, como aconteceu com as óperas de Mignone,<br />
nos anos 20 – ambas, entretanto, compostas na Itália –<br />
(1936), foi executado por grandes regentes e orquestras mas curioso para os anos 40. Anos antes, já havia<br />
de vários países do mundo, sendo também gravado; apresentado trechos da obra na forma de suíte<br />
acabou por tornar-se a obra de maior êxito de toda sinfônica, inclusive em sua viagem latino-americana.<br />
a carreira do compositor.<br />
Em relação ao conteúdo musical de suas obras,<br />
Entretanto, Lorenzo Fernandez não via limites para Luiz Heitor observou que:<br />
suas atividades, assumindo cada vez mais tarefas.<br />
“Ao contrário de outros autores nossos que, bem<br />
Desde a década de 20, atuava como crítico musical ou mal, têm pago seu tributo às grandes formas<br />
e colaborador de revistas especializadas em música, musicais, escrevendo Sonatas, Sinfonias ou Concertos,<br />
chegando a ter ainda maiores responsabilidades desta Lorenzo Fernandez evitou-as, em sua obra, que tende<br />
natureza, tais como a de redator e até fundador<br />
francamente para a interpretação pictórica da sugestão<br />
de periódicos do gênero. Tornou-se também auxiliar musical, apondo títulos de intenção descritiva a quase<br />
de Villa-Lobos nos projetos de educação musical todas as suas composições.” (Azevedo, 1950:307)<br />
implantados pelo governo Vargas, o que os aproximou Se esta afirmação era verdadeira para a produção<br />
ao ponto de tornarem-se grandes amigos. Porém,<br />
inicial do compositor, já na década de 30 começaram
a surgir obras que iriam contrariá-la, pelo menos em<br />
parte, naquilo que se refere à ausência de grandes<br />
formas musicais, como os dois Concertos para Piano e<br />
Orquestra (de 1935 e 1936, respectivamente). Na década<br />
de 40, o compositor prosseguiu em sua nova tendência:<br />
Concerto para Violino e Orquestra (1941/42), Sinfonia nº1<br />
(1945), Quarteto nº 2 (1946), Sinfonia nº 2 “O Caçador de<br />
Esmeraldas” (1946/47) e Sonata Breve, para Piano (1947).<br />
Tal como vários outros compositores da história da<br />
música ocidental, Lorenzo Fernandez esperou até<br />
sentir-se maduro o suficiente para lançar-se às grandes<br />
formas musicais. Entretanto, nem chegou a ouvir suas<br />
últimas obras, pois na manhã do dia 27 de agosto de<br />
1948, tendo regido um concerto na noite anterior, foi<br />
encontrado morto em seu próprio leito, pouco antes<br />
de completar 51 anos de idade.<br />
A obra musical deixada por Lorenzo Fernandez<br />
não é numerosa como a de seus colegas<br />
contemporâneos que, no entanto, viveram muito mais<br />
que ele. É, sim, uma obra de qualidade, sobretudo<br />
a música sinfônica e as canções, de harmonia muito<br />
rica chegando a ser ousada, freqüente textura<br />
polifônica com elaborado tratamento temático<br />
e maestria na orquestração.<br />
A distribuição de suas poucas obras em numerosos<br />
e variados gêneros, formas e formações instrumentais<br />
e vocais, dá-nos a impressão de que elas correspondem<br />
ao objetivo e gradual cumprimento de etapas<br />
evolutivas metodicamente preestabelecidas, sob<br />
o comando de uma consciência superior. A avidez com<br />
que se dedicou à vida e suas atividades parece indicar<br />
que pressentia a brevidade de sua existência.<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ANDRADE, M.de.Ensaio Sobre a Música Brasileira. São Paulo:<br />
Martins Editora, s/d.<br />
ANDRADE, M.de.Pequena História da Música. São Paulo: Martins<br />
Editora, 1981.<br />
AZEVEDO, L.H.C.Música e Músicos do Brasil. Rio de Janeiro:<br />
Casa do Estudante do Brasil,1950.<br />
AZEVEDO, L.H.C.150 Anos de Música no Brasil. Rio de Janeiro:<br />
José Olympio Editora,1956.<br />
DISCOGRAFIA<br />
Música de Lorenzo Fernandez<br />
1 – PIANO BRASILEIRO (2CDs)<br />
Intérprete: Maria Romelita, pianista<br />
Triste Modinha/ Valsa Suburbana<br />
Funarte – Fun 004-5M/95<br />
2 – PANORAMA DA <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA PIANO<br />
Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista<br />
Valsa Suburbana/Três Estudos em Forma de Sonatina<br />
Universidade Federal de Goiás ADD 99129<br />
3 – LORENZO FERNANDEZ vol.1<br />
Intérpretes: Quinteto de Sopros da Rádio Mec<br />
Anna Cândida, pianista<br />
Quarteto de Cordas da Rádio MEC<br />
Lenir Siqueira, flautista/José Botelho, clarinetista/Angelo<br />
Pestana, fagotista<br />
Miguel Proença, pianista<br />
Margarida Martins Maia, soprano/Leonora Gondim, pianista<br />
Suíte para Quinteto de Sopros/Noturno para Piano/<br />
Quarteto nº 1/Duas Invenções Seresteiras / Suíte Brasileira nº 3,<br />
para Piano/7 Canções<br />
Soarmec – Rádio MEC S 011<br />
4 – LORENZO FERNANDEZ vol.2<br />
Intérpretes: Orquestra Sinfônica Brasileira, regente: Alceo<br />
Bocchino<br />
Leonor de Macedo Costa, pianista<br />
Maria de Lourdes Cruz Lopes, soprano/Gerardo Parente,<br />
pianista<br />
Sinfonia nº 2 / Valsa Suburbana, Sonata Breve e Três Estudos<br />
em Forma de Sonatina, para Piano/7 Canções<br />
Soarmec – Rádio MEC S 012<br />
1. Há controvérsias sobre a época em que Lorenzo Fernandez<br />
teria entrado em contato com Graça Aranha. Para Sérgio<br />
Nepomuceno Alvim Corrêa, teria ocorrido logo após a Semana<br />
de Arte Moderna. Para Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Vasco<br />
Mariz, isto teria acontecido mais tarde, em 1930.<br />
CORRÊA, S. N. A. Lorenzo Fernandez Catálogo Geral.Rio de<br />
Janeiro: Rioarte,1992.<br />
KIEFER, B. História da Música Brasileira.Porto Alegre:Editora<br />
Movimento, 1982<br />
KIEFER, B. Mignone Vida e Obra. Porto Alegre: Editora<br />
Movimento, 1983.<br />
MARIZ, V.Vida Musical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.<br />
MARIZ, V. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Editora<br />
Nova Fronteira, 2000.<br />
LUTERO RODRIGUES<br />
Regente e coordenador musical da Sinfonia Cultura − Orquestra da Rádio e TV Cultura de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Música.<br />
103
Guerra Peixe<br />
compositor multifário<br />
Édifícil, principalmente para um ex-aluno, resumir uma<br />
104<br />
vida de múltiplas e intensas atividades ligadas<br />
à cultura, como foi a vida do compositor César Guerra-<br />
Peixe (1914-1993): compositor erudito, compositor<br />
popular, professor, pesquisador, arranjador, violinista,<br />
regente, articulista, produtor radiofônico com<br />
aproximações à pintura e à poesia.<br />
Iniciado por seu pai nas rodas de “choro” aos oito<br />
anos, aos dez já tocava violino pelas ruas de sua<br />
Petrópolis nos dias de carnaval em companhia de dois<br />
amigos. Daí por diante, afirmando-se a decisão de<br />
seguir a carreira musical, a presença da música popular<br />
é perene em toda a sua atividade musical,<br />
especialmente a da criação. E Guerra-Peixe começou<br />
a compor tão logo iniciou seus estudos na Escola de<br />
Música Santa Cecília de Petrópolis, sendo a primeira<br />
peça o Tango Nº 1 Otília, dedicado à sua primeira<br />
namorada seguindo-se uma série de danças, até mesmo<br />
não brasileiras que estavam na moda.<br />
A primeira composição de caráter erudito foi uma<br />
Abertura, escrita para a pequena orquestra<br />
da referida Escola de Música. Ocorreu então um<br />
incidente: o diretor da Escola e regente da orquestra<br />
recusou-se a experimentar a peça. Mas o presidente da<br />
sociedade mantenedora da entidade, Reynaldo Chaves,<br />
interveio energicamente e a obra foi executada. Sobre<br />
o fato, que marcou profundamente sua vida, escreveu<br />
Guerra-Peixe na sua relação de obras para canto, que<br />
organizou para servir à dissertação de mestrado do<br />
barítono Inácio de Nonno:<br />
ERNANI AGUIAR<br />
Reynaldo Chaves (violoncelista, industrial, teatrólogo<br />
e poeta) avô do compositor e regente Ernani Chaves (sic),<br />
foi o responsável por Guerra-Peixe haver se tornado<br />
compositor, animando-o insistentemente, após G.Peixe<br />
haver-se aborrecido com a composição em virtude<br />
de ciúmes demonstrados pelo diretor e professor (sic)<br />
da Escola de Música Santa Cecília, dos idos de mais<br />
ou menos 1930.<br />
Em 1931 foi estudar no Rio de Janeiro, onde<br />
se fixou definitivamente em 1934, freqüentando<br />
inicialmente aulas particulares com a grande mestra<br />
Paulina d’Ambrosio e ingressou no ano seguinte no<br />
Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música<br />
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguindo<br />
os estudos regulares e se diplomando posteriormente.<br />
Na mesma Escola terminou sua carreira de professor<br />
universitário em 1990.<br />
A vivência de Guerra-Peixe na música popular<br />
continuou com suas atuações tocando em cafés, casas<br />
de chope e bailes, tocando também nos últimos<br />
cinemas-mudos. Porém intensos estudos de matérias<br />
teórico-musicais prosseguiram sob a orientação<br />
do renomado Mestre Newton Padua.<br />
1938 foi um ano decisivo para suas idéias musicais,<br />
após a leitura do “Ensaio sobre a Música Brasileira” de<br />
Mário de Andrade, que até o fim de sua vida considerou<br />
seu Mestre, apesar de nunca ter tido a oportunidade<br />
de conhecê-lo pessoalmente. Foi realmente a partir<br />
dessa leitura que Guerra-Peixe norteou sua busca<br />
a um caminho pessoal na música brasileira.
O curso de composição foi concluído em 1943,<br />
no Conservatório Brasileiro de Música, sempre com<br />
Pádua. Criou, nesse período um grande número<br />
de composições, desde experiências sinfônicas até<br />
pequenas peças para instrumento só, porém,<br />
extremamente crítico consigo, colocou-as num “index”<br />
de composições proibidas de serem tocadas, com<br />
poucas exceções. Mas compôs também música<br />
popular.<br />
A primeira peça que mereceu entrar no “Catálogo<br />
de Obras” (por ele chamado de “cata logo”),<br />
manuscrito precioso onde anotou todas as obras até<br />
a última, várias vezes expressando idéias, foi<br />
a Sonatina 1944 para flauta e clarinete.<br />
“Convertido” ao dodecafonismo, após seu<br />
encontro com Hans Joachin Koellreutter, com quem<br />
passou a estudar, seguiu esta linha estética durante seis<br />
anos (1944-1950), na verdade dividido em dois: o cada<br />
vez mais solicitado e dedicado arranjador e compositor<br />
de música popular e o compositor erudito, segundo ele<br />
próprio “sem a menor preocupação nacionalizante”.<br />
Integrando o Grupo Música Viva, dos seguidores<br />
de Koellreutter, onde teve como colegas os notáveis<br />
compositores Cláudio Santoro, Edino Krieger e Eunice<br />
Katunda, foi que suas obras ganharam projeção<br />
internacional e a admiração de personalidades como<br />
Juan Carlos Paz e Hermann Scherchen, que regeram<br />
obras suas respectivamente em Buenos Aires e Zurich.<br />
Mas as origens do compositor eram muito fortes<br />
e as “linhas cosmopolitas” começaram a fraquejar<br />
quando, Guerra-Peixe buscou um possível encontro<br />
entre dodecafonismo e música brasileira. As idéias<br />
de Mário de Andrade estavam vivas em seu<br />
pensamento, fazendo-o sentir a necessidade de uma<br />
saída para a música brasileira chamada erudita,<br />
até então baseada num discutível folclore. Também<br />
colocou-se o problema da comunicação da nova<br />
música com o público, tão descurado no Século XX.<br />
Tiveram início suas discussões com Mozart<br />
de Araújo que culminaram em sua primeira visita ao<br />
Recife em 1949 onde teve contacto com uma música<br />
viva, nacional, sem manipulação alguma. O resultado<br />
foi a ruptura com o dodecafonismo. Em seguida<br />
ocorreu uma coincidência: Scherchen passou pelo Rio<br />
de Janeiro e convidou Guerra-Peixe para ir estudar<br />
com ele em Zurich, sendo seu hóspede e trabalhando<br />
na rádio local. Ao mesmo tempo recebeu também um<br />
convite de Recife para trabalhar também em rádio.<br />
Guerra preferiu o Recife e sempre disse que foi<br />
a melhor coisa que fez na vida. Foi um dos períodos<br />
mais férteis de sua vida quando, além de compositor<br />
erudito, seguindo novas linhas estéticas, e orquestrador,<br />
iniciou suas atividades de professor, articulista<br />
e a grande obra de pesquisador.<br />
Pesquisou Maracatu, Xangô, Catimbó, Côco, Pastoril,<br />
Zabumba (conjunto instrumental), Cabocolinhos, Reza-dedefunto,<br />
Frevo, Pregões, toques de vendedores ambulantes,<br />
manifestações culturais religiosas ou não, folguedos,<br />
atividades sociais, todas com músicas próprias, em dez<br />
cidades pernambucanas.<br />
Na época foram seus alunos: Clóvis Pereira, Jarbas<br />
Maciel, Guedes Peixoto, Lourenço da Fonseca Barbosa<br />
(“Capiba”) e Severino Dias de Oliveira (“Sivuca”).<br />
A permanência em Recife foi de três anos, quando<br />
novas obras importantes foram criadas e surgiu seu<br />
mais importante<br />
trabalho de pesquisa:<br />
o ensaio “Maracatus do<br />
Recife”, que décadas<br />
mais tarde serviu para<br />
salvar tal manifestação<br />
do desaparecimento.<br />
Imediatamente após<br />
o período recifense,<br />
seguiu-se outro maior<br />
e tão proveitoso quanto<br />
o nordestino: oito anos<br />
em S. Paulo, quando,<br />
com o apoio de Rossini<br />
Tavares de Lima,<br />
secretário da Comissão<br />
Paulista de Folclore<br />
iniciou naquele Estado<br />
outra grande pesquisa,<br />
incluindo Jongo, Tambú,<br />
Cateretê, Cururu, Dança<br />
de Santa Cruz, Dança de Guerra-Peixe.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL<br />
São Gonçalo, Folia de Reis, – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
105
106<br />
Moçambique, Congada, Caiapós, Moda-de-viola e<br />
Samba-lenço em seis cidades paulistas, concluindo pelas<br />
semelhanças e contrastes entre o folclore<br />
pernambucano e o paulista. Em S. Paulo (1955)<br />
compôs as duas Suítes Sinfônicas Paulista nº 1<br />
e Pernambucana nº 2.<br />
No fim da década de 50, seu catálogo de<br />
composições já estava bastante enriquecido com dois<br />
quartetos, duas suítes, uma sonata e uma sonatina para<br />
piano, música de câmara diversificada, o Pequeno<br />
Concerto para piano e grande parte do elenco de mais<br />
de trinta partituras para cinema. Continuava a compor<br />
música popular e já era detentor de numerosos<br />
prêmios.<br />
A fundação da nova capital e a instituição de um<br />
“Concurso Sinfonia Brasília”, levou-o à composição de<br />
uma obra de grandes proporções, notável pela forma<br />
e pela orquestração, capaz de empolgar qualquer<br />
platéia. Obra totalmente descritiva, inclui um trecho<br />
do discurso de Kubitschek na inauguração da Cidade.<br />
Esta obra e outras atividades concorreram para que<br />
Guerra-Peixe fosse, às vezes veladamente, às vezes<br />
explicitamente perseguido por alguns esbirros<br />
da ditadura militar (1964-1984).<br />
DISCOGRAFIA<br />
CD GUERRA PEIXE – <strong>MÚSICA</strong> POPULAR<br />
Orquestra de salão “Tira o dedo do pudim” – OSTDP9798 -<br />
Produção independente<br />
CD SEBASTIÃO TAPAJÓS INTERPRETA RADAMÉS GNATTALI & GUERRA PEIXE<br />
Sebastião Tapajós, violão – Tapajós Produções - 1998<br />
CD GUERRA-PEIXE – MUSICA DE CÂMARA<br />
Ricardo Amado, violino; David Chew, violoncelo; Ruth Serrão,<br />
piano; Pauxy Gentil, flauta; José Botelho, clarineta; Noel Devos,<br />
fagote; Inácio de Nonno, barítono; Rildo Hora, harmônica<br />
de boca. RioArte – RD 005 – 1996 – Rio de Janeiro<br />
CD A RETIRADA DA LAGUNA<br />
Orquestra Sinfônica Nacional – César Guerra-Peixe, regente<br />
Acervo FUNARTE de Música Brasileira<br />
CD TRIBUTO A GUERRA-PEIXE<br />
Incluindo: Tributo a Portinari e Sinfonia Nº 2 “Brasília” de C.<br />
Guerra-Peixe<br />
Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e Coral da OSPA – Ernani<br />
Aguiar, regente<br />
ACIT Comercial e Fonográfica – 1994<br />
Com a criação da Sinfonia nº 2 Brasília, encerrou-se<br />
a segunda fase da obra composicional do Mestre.<br />
Se a primeira, segundo ele, foi a “dodecafônica”<br />
(1944-1950), a segunda foi a “nacionalista” (1950-1960).<br />
Entre a segunda e a terceira fase, que chamo de<br />
“síntese nacional” (1967-1993) (ou seria a inconsciência<br />
nacional preconizada por Mário de Andrade?)<br />
o compositor ficou seis anos sem criar nenhuma obra.<br />
Voltou para o Rio de Janeiro em 196l e, em 1963,<br />
voltou ao seu instrumento, o violino. Passou a tocar na<br />
Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, onde<br />
permaneceu até a aposentadoria e na mesma Rádio<br />
criou programas de música brasileira. Continuou ainda<br />
mais atuante como arranjador para emissoras<br />
de televisão e foi professor nos Seminários de Música<br />
da Pró Arte e depois no Seminário de Música do<br />
Museu da Imagem e do Som (MIS). Pouco a pouco,<br />
essas aulas foram se transformando no seu Curso<br />
de Composição que se tornou um dos mais famosos<br />
do País. Passaram por suas aulas Antonio Guerreiro,<br />
Ayrton Barbosa, Felícia Wang, Guilherme Bauer,<br />
Haroldo Mauro Jr., Heitor Alimonda, Jards Macalé,<br />
Jorge Antunes, José Maria Neves, Maria Aparecida<br />
Ferreira, Marlene Fernandes, Nélio Rodrigues, Nestor<br />
de Holanda Cavalcanti, Rildo Hora, todos seguindo<br />
caminhos diversos. Eu fiz o curso completo entre<br />
1969 e 1972.<br />
Já em plena maturidade, ampla experiência e total<br />
domínio da técnica composicional, iniciou a “terceira<br />
fase” com mais uma sonata e uma sonatina para piano,<br />
seguindo-se toda a obra para violão que inclui<br />
a primeira sonata brasileira para o instrumento, novas<br />
obras para canto e piano, as quatro composições para<br />
coro a capela, a segunda Sonata para violino, dezenas<br />
de obras diversas e, no elenco de obras sinfônicas,<br />
quatro importantes criações: Museu da Inconfidência,<br />
Retirada da Laguna, Assimilações e Tributo a Portinari, sua<br />
penúltima obra.<br />
Aos quarenta e sete anos foi eleito para<br />
a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira<br />
nº 34, cujo Patrono é Araújo Vianna, sucedendo seu<br />
Mestre Newton Pádua. Quem o sucedeu foi seu colega<br />
e amigo Edino Krieger, atualmente (2004) ocupando<br />
a Presidência do Sodalício.
Participou, ainda que à distância, do famoso<br />
Movimento Armorial, liderado por seu amigo Ariano<br />
Suassuna, compondo para a Orquestra do Movimento<br />
seu celebrado Concertino para violino e pequena orquestra<br />
além do Duo Característico para violino e violão (“peça<br />
singelíssima”, segundo ele) e da peça, hoje obrigatória<br />
em todas as orquestras de cordas do País, Mourão,<br />
na versão do seu ex-aluno Clóvis Pereira.<br />
Em dezembro de 1983, recebeu um telefonema<br />
de Recife, informando que no carnaval do ano<br />
seguinte, daquela Cidade, voltaria a sair um Maracatu,<br />
reconstituído graças a seu livro “Maracatus do Recife”.<br />
O Mestre considerou seu melhor presente, antecipado,<br />
dos 70 anos e disse:<br />
“Já se viu? Eu, sem outro meio de comunicação,<br />
a não ser um livrinho de 171 páginas, a 2500<br />
quilômetros do Recife, indo de raro em raro a essa<br />
Cidade, influir no seu carnaval? Chorei de emoção.<br />
Setuagenário, com uma vida agitadíssima, passou<br />
a pesquisar “Dança de Salão” e “Gafieira” e freqüentou<br />
(e dançou) assiduamente a “Estudantina” no Rio<br />
de Janeiro. Ainda foi professor na Escola de Música da<br />
Universidade Federal de Minas Gerais, onde teve como<br />
alunos Alina Sidney, Francisco Gelape (prematuramente<br />
falecido), Harry Crowl, Lucas Raposo e Nelson Salomé.<br />
O cansaço da idade levou a que alguns amigos<br />
obtivessem sua transferência para a UFRJ.<br />
Existe ainda um elenco de musicistas seus amigos<br />
que, assim como ele, considerava Mário de Andrade<br />
seu Mestre. Entre eles Rogério Rossini, Ruth Serrão,<br />
Sonia Vieira e o compositor David Korenchendler.<br />
O Mestre aproximava-se dos oitenta anos,<br />
reconhecido, verdadeiro ícone vivo da música<br />
brasileira, “colecionando” merecidos prêmios<br />
e reconhecimentos públicos (foi o único músico<br />
a ganhar três vezes o “Golfinho de Ouro” do MIS),<br />
culminando com o primeiro Prêmio Nacional<br />
da Música, concedido pelo Ministério da Cultura<br />
e escolhido por um júri formado por cinqüenta<br />
musicistas com esmagadora maioria de votos.<br />
O prêmio foi entregue a 15 de outubro de 1993,<br />
durante o concerto de abertura da X Bienal de Música<br />
Brasileira Contemporânea, perante uma platéia que<br />
lotou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro<br />
e que o aclamou numa consagração... e despedida.<br />
Cercado pelo carinho de amigos e admiradores,<br />
mas especialmente de sua sobrinha-neta Jane Guerra-<br />
Peixe e de seus alunos Antonio Guerreiro e Randolf<br />
Miguel, viveu seus últimos dias, falecendo ao cair<br />
da tarde de 26 de novembro na casa de sua ex-esposa<br />
Célia Guerra Peixe, deixando um imenso legado<br />
à música e à cultura brasileira.<br />
A figura humana do compositor foi singular.<br />
Polêmico, brigão, intempestivo, defensor de causas<br />
justas. Capaz de passar em segundos da raiva<br />
aterradora à gargalhada sonora, alegre, relaxada.<br />
Ao contrário de outros que preferiram toda a vida estar<br />
ao lado de poderosos, políticos e influentes, Guerra-<br />
Peixe sempre preferiu o lado oposto, ainda que essa<br />
posição lhe trouxesse só prejuízos.<br />
Professor exigentíssimo, selecionador, incapaz<br />
de interferir nas preferências estéticas de cada aluno,<br />
respeitador das idéias dos jovens, incentivador.<br />
Quantos não tiveram suas aulas a preços reduzidos<br />
ou... grátis?<br />
Amigo leal de seus amigos, não se furtava em<br />
apoiá-los, auxiliá-los até mesmo pecuniariamente,<br />
o que lhe valeu uma série de ingratidões. Admirador<br />
das pessoas que o cercavam, não hesitou em escrever<br />
um hino para o colégio onde estudava o filho de uma<br />
empregada sua, simplesmente por verificar o esforço<br />
que a mãe fazia para educá-lo.<br />
Este foi César Guerra-Peixe, que se auto-definiu<br />
em uma entrevista ao ex-aluno Lucas Raposo: “Queira<br />
ou não, apesar do verniz artístico, eu sou mesmo é do povão.<br />
Não fora eu filho de um humilde ferrador.”<br />
ERNANI AGUIAR<br />
Ex-aluno de César Guerra-Peixe. Compositor e Regente. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).<br />
Membro da Academia Brasileira de Música.<br />
107
Camargo<br />
Guarnieri<br />
108
Camargo Guarnieri nasce em 1907, em Tietê<br />
(SP), primogênito de uma família pobre que<br />
faz música nas horas vagas. O casal Miguel e<br />
Gécia – flautista e pianista, respectivamente –<br />
terá mais oito filhos, sendo três homens: Belline,<br />
Rossine e Verdi. Camargo é o pequeno “Mozart”<br />
de Miguel que, ao perceber a grande vocação do filho,<br />
muda-se para a capital para proporcionar melhor<br />
formação musical para o menino que compõe desde<br />
cedo. Na cidade grande sua atenção maior é para o<br />
piano, até conhecer o maestro italiano Lamberto Baldi,<br />
em 1927, com quem trabalha composição e regência.<br />
Integrado a um ambiente onde circulam idéias sobre<br />
o compromisso dos artistas com uma arte que se queira<br />
brasileira e universal, busca uma nova roupagem para<br />
suas idéias musicais: decide não usar mais o nome<br />
Mozart, por extenso, presunçoso e anacrônico para um<br />
compositor do século XX, e adota o ano de 1928 para<br />
inaugurar seu catálogo de obras. O “passado musical”<br />
fica guardado em pastas, algumas peças apelidadas de<br />
“obra interdita” – título que aguça a curiosidade dos<br />
estudiosos – e passa a assinar “M. Camargo Guarnieri”.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
FLÁVIA CAMARGO TONI<br />
Guarnieri tem pressa em fazer conhecer sua obra<br />
e escreve para piano e canto acompanhado, música<br />
de câmara e sinfônica, amadurece o projeto para uma<br />
ópera, e passa a ser ouvido nas salas de concertos<br />
de São Paulo e Rio de Janeiro. A vida profissional<br />
vai tomando corpo. Em meados da década de 30,<br />
compositor e regente ativo, vê sua produção acrescida<br />
de títulos para várias formações instrumentais, embora<br />
aguarde o momento para escrever uma Sinfonia.<br />
As obras para grande orquestra nascerão, de fato,<br />
na década seguinte o que faz supor que ele talvez<br />
almejasse uma segurança maior para escrevê-las,<br />
segurança conquistada após estudar, na França, com<br />
Charles Koechlin, o mestre que conhecia através<br />
da obra teórica bem como das composições. O nome<br />
não é escolhido ao acaso, pois o músico francês<br />
alimentava, como Guarnieri, grande afeição pela<br />
polifonia e contraponto elaborados. Para a regência,<br />
professor e aluno combinam que o melhor nome<br />
é o de François Rühlmann, à frente da Orquestra<br />
da Ópera de Paris durante aquele 1938.<br />
O breve tempo de permanência na Europa vale,<br />
109
110<br />
sobretudo, como vivência musical adquirida com<br />
a possibilidade de fazer executar sua música de<br />
câmara, além da oportunidade de escutar música nova<br />
regida por grandes nomes do momento. A Sonata para<br />
dois pianos e percussão, pelo casal Bela Bartok, Le Nouvel<br />
Âge, de Igor Markewitch, sob a batuta de Herman<br />
Scherchen, um concerto dirigido por A. Toscanini,<br />
outro, por Charles Münch, são memoráveis para<br />
o brasileiro que deve encurtar a viagem por causa da<br />
II Guerra. Regressa cheio de idéias e projetos musicais,<br />
encontrando, no entanto, um cenário profissional nada<br />
favorável, assim permanecendo até a experiência<br />
norte-americana. Mas a produção musical de Camargo<br />
Guarnieri – obra uniforme – não denota influência<br />
desta ou daquela nação onde viveu.<br />
Entre dezembro de 42 e maio de 43 Guarnieri<br />
visita os Estados<br />
Unidos a convite<br />
do <strong>Departamento</strong> de<br />
Estado e da União<br />
Pan-Americana e na<br />
oportunidade recebe<br />
pessoalmente o<br />
prêmio da Fleischer<br />
Music Collection<br />
para o Concerto nº 1<br />
Camargo Guarnieri. Trilha sonora para violino e orquestra,<br />
do filme Rebelião em Vila Rica. Edições concurso da Free<br />
Musicais Ricordi Brasileira S/A. Library da Filadélfia.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Mas quem é<br />
Camargo Guarnieri, em 1942? Com a palavra, Aaron<br />
Copland, que conhecera a música do brasileiro, no ano<br />
anterior, no Rio de Janeiro:<br />
“Camargo Guarnieri, que agora está pelos trinta<br />
e cinco anos de idade, é na minha opinião o mais<br />
sensacional dos talentos ‘desconhecidos’ da América<br />
do Sul. Suas composições já bem numerosas deveriam<br />
ser muito mais conhecidas do que o são. Guarnieri<br />
é um compositor de verdade. Tem tudo o que é preciso<br />
– personalidade própria, uma técnica acabada<br />
e imaginação fecunda. Sua inspiração é mais ordenada<br />
que a de Villa-Lobos, mas não menos brasileira...<br />
O que mais me agrada na sua música é a sua expressão<br />
emotiva sadia – é uma exposição sincera do que um<br />
homem sente... Sabe como modelar uma forma, como<br />
orquestrar bem, como tratar eficientemente o baixo.<br />
O que atrai na música de Guarnieri é o seu calor<br />
e a imaginação que vibra com uma sensibilidade<br />
profundamente brasileira. É, na sua expressão mais<br />
apurada, a música de um continente ‘novo’, cheia<br />
de sabor e de frescura.”<br />
A estada é muito proveitosa: a premiação de<br />
Guarnieri recebe boa cobertura da imprensa; ele tem<br />
a oportunidade de ver e ouvir novamente Toscanini<br />
à frente da NBC, regendo a Leningrado, de<br />
Shostakowich e um ciclo Brahms; através de Copland<br />
ele é apresentado a Sergei Koussevitzky, que o convida<br />
para reger a Abertura Concertante à frente da Sinfônica<br />
de Boston; a American League of Composers<br />
programa um recital de suas obras, no MoMA,<br />
e Leonard Bernstein está entre os pianistas da noite<br />
acompanhando o violoncelista Joseph Schuster<br />
na Sonata nº 1. Anos mais tarde Bernstein gravará<br />
a Dança brasileira regendo a Filarmônica de Nova York<br />
e ganhará a dedicatória da Sinfonia nº 4, “Brasília”,<br />
escrita em 1963.<br />
A estréia brasileira da Abertura concertante se dá no<br />
mesmo ano da composição, em 1942, com boa<br />
receptividade da crítica especializada. Dentre<br />
as manifestações destaca-se a do musicólogo Mário de<br />
Andrade, mentor artístico e amigo pessoal de Camargo<br />
Guarnieri, afirmando que pela primeira vez um autor<br />
encontrava a solução para o “allegro” brasileiro, ou<br />
seja, nas peças de movimento vivo, conseguia fugir às<br />
soluções coreográficas valendo-se de ritmos de danças<br />
populares. Assim, o crítico introduz um dos temas mais<br />
discutidos naquele momento, ou seja, o dos excessos<br />
das soluções exóticas nas composições de certos<br />
autores que se valiam, sobretudo, do uso de melodias<br />
folclóricas – temas com grande incidência de síncopas<br />
que restringiam o próprio trabalho de desenvolvimento<br />
das obras – além de percussão popular acrescentada<br />
à orquestra tradicional.<br />
No catálogo do autor há uma outra abertura para<br />
orquestra, a Festiva, e sete sinfonias, compostas entre<br />
1944 e 1985. Camargo Guarnieri já pode ser<br />
considerado um compositor maduro quando coloca no<br />
papel o material da sua Sinfonia número 1. No início de
1940 decidira que no allegro final evitaria o “caráter<br />
coreográfico” construindo uma melodia característica,<br />
“sem as síncopas sistematizadas”, como confessa a um<br />
amigo. Assim, três anos depois, quando em Nova York,<br />
a invenção chega fácil e ele deixa pronto o “Radioso”<br />
enquanto soluciona questões relativas ao<br />
desenvolvimento do primeiro movimento. Uma vez<br />
no Brasil, é possível que todo o esboço da Sinfonia<br />
pronta tenha passado por certa reestruturação tendo<br />
em vista a adequação do trabalho para as normas<br />
do Concurso Luís Roberto Penteado de Rezende.<br />
Para homenagear a memória do jovem compositor,<br />
o regulamento do Concurso determinava que<br />
o trabalho vencedor deveria ser eivado de motivos<br />
característicos nacionais. De fato, a obra foi premiada<br />
em 1944 dedicada a Sergei Koussevitzky, regente<br />
da Boston Symphony Orchestra.<br />
A Sinfonia nº 2, a Uirapuru nasce em 1945, em<br />
trajetória de sucesso, pois, no ano seguinte, antes de<br />
sua estréia, obtém o segundo lugar (Prêmio Reichold)<br />
no Concurso Sinfonia das Américas, promovido pela<br />
Orquestra de Detroit (EUA). Dedicada a Heitor Villa-<br />
Lobos, foi apelidada de “Uirapuru”, nome do pássaro<br />
amazônico tão caro a ele que até compusera um poema<br />
sinfônico (1917) e uma peça coral (1944) com o mesmo<br />
título. Ao compositor carioca, tempos depois Guarnieri<br />
fará outra dedicatória, mais explícita, com a Homenagem<br />
a Villa-Lobos (1966), para sopros e percussão.<br />
Quando o maestro paulista anuncia que está<br />
escrevendo a Sinfonia nº 3, em 1952, há certa<br />
expectativa por parte do meio musical. Alguns meses<br />
antes ele redigira e fizera publicar uma “Carta aberta<br />
aos músicos e críticos do Brasil”, quase um manifesto<br />
político contra as ingerências estéticas externas, vale<br />
dizer, contra o emprego dos princípios do<br />
dodecafonismo. Alunos de composição, leitores,<br />
ouvintes e jornalistas manifestaram-se, a favor ou<br />
contra, gerando a polêmica musical mais criativa que<br />
o Brasil jamais teve. Camargo Guarnieri instigou. Fez<br />
com que se falasse e se fizesse música. Assim, a sinfonia<br />
– não por acaso dedicada a Lamberto Baldi,<br />
o professor que acompanhou os primeiros passos do<br />
compositor em vias de amadurecer – deveria apontar<br />
para os rumos a se encaminhar uma escola de<br />
composição brasileira e contemporânea. Também não<br />
deve ter sido por acaso a escolha do primeiro tema,<br />
Teiru, canto dos índios Parecis, do Mato Grosso,<br />
celebrando a morte acidental de um cacique da tribo.<br />
A melodia, encontrada no relato de viagem do<br />
pesquisador Roquete Pinto, permeia toda a obra<br />
e dá origem a todos os motivos usados à exceção de<br />
um, o segundo tema do primeiro movimento, inspirado<br />
no canto de um pássaro da região onde nasceu<br />
o compositor. A Sinfonia nº 3 obteve o primeiro lugar<br />
no Concurso IV Centenário da Cidade de S. Paulo,<br />
em 1954.<br />
A quarta sinfonia de Camargo Guarnieri, como a<br />
de número 1, tem, como pano de fundo, duas cidades,<br />
São Paulo e Nova York, e dois concursos, num espaço<br />
cronológico de 20 anos. Na cidade norte-americana,<br />
como foi visto, ele<br />
inicia a primeira, em<br />
1943, e conclui a<br />
quarta, em 1963.<br />
Muita coisa mudara<br />
na vida do músico.<br />
Na casa dos 50 anos<br />
de idade Camargo<br />
Guarnieri ocupa<br />
postos administrativos<br />
importantes e tem Camargo Guarnieri. Prêmio Shell para a<br />
muita disposição para música brasileira. 1984.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
o trabalho.<br />
DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Personalidade de<br />
relevo, desde 1956 era assessor artístico musical do<br />
Ministério da Educação e em 1959 recebe a Medalha<br />
Valor Cívico do Governo do Estado de São Paulo.<br />
Motivada pela divulgação do Concurso “Sinfonia<br />
Brasília” – instituído para celebrar a fundação da nova<br />
Capital do país – a Sinfonia número 4 será elaborada ao<br />
longo de vários meses, dividindo a atenção do músico<br />
com a Direção do Conservatório Dramático e Musical<br />
de São Paulo e as composições do Concertino para piano,<br />
o Choro para violoncelo e o terceiro Quarteto para cordas.<br />
Guarnieri viaja bastante representando o país em<br />
Concursos e Encontros Internacionais de Composição.<br />
Assim, no final de 1961 só conseguira concluir<br />
o primeiro movimento da Sinfonia e começar o<br />
111
112<br />
movimento seguinte. Em março de 1963 a número<br />
quatro será colocada na bagagem que o acompanha<br />
aos Estados Unidos onde pretende dividir o tempo<br />
entre as atividades do Concurso “Mitropoulos”,<br />
os últimos retoques da partitura e o projeto para uma<br />
cantata. A sinfonia, aliás, será dedicada ao Presidente<br />
do júri, Leonard Bernstein.<br />
A partir de 1959, ano em que iniciava a sua<br />
Sinfonia nº 4, o compositor começa a pensar num efeito<br />
musical que só será empregado muitos anos depois,<br />
usando “canto no centro do 2º movimento e coro<br />
no final, cantando a mesma melodia do centro”, como<br />
relatou ao amigo e ex-professor Lamberto Baldi.<br />
Apesar de ser um voraz consumidor de poesia, o<br />
projeto foi postergado por não ter encontrado texto<br />
apropriado para o efeito pretendido. Aliás, a família<br />
Guarnieri era muito afeita à Literatura e o compositor,<br />
além de ter escrito sobre versos dos principais autores<br />
brasileiros de todos os tempos, já fizera parcerias com<br />
Alice e Rossine, dois de seus oito irmãos. Assim, após<br />
longo período sem dedicar-se a obras de proporções<br />
tão grandes, em 1977 – ano de seu 70º aniversário –<br />
aceita a encomenda da Secretaria de Cultura do Estado<br />
de S. Paulo para escrever a quinta sinfonia de sua<br />
carreira encomendando um texto para Rossine.<br />
Rio teimoso, poema cantado no terceiro movimento<br />
da Sinfonia nº 5 homenageia ao mesmo tempo o estado<br />
de São Paulo e a cidade de Tietê, onde Camargo<br />
Guarnieri nasceu. Tietê também dá nome ao rio que<br />
os indígenas chamavam de Anhembi, um rio “teimoso”<br />
porque não corre para o mar e deságua no Paraná<br />
facilitando a comunicação entre os dois estados<br />
vizinhos: “Tiê…/Tiê…/Ti – e – tê. //Bravo Anhembi,/<br />
rio de pássaros,/que nasce na serra/e foge do mar/<br />
para voltar ao coração da terra.//Volteia!/Volteia!/Arco<br />
da aliança/desenhado no chão do Brasil!/semente<br />
da União,/caminho da Paz…”<br />
Nova encomenda leva o compositor a compor<br />
a Sinfonia nº 6, desta vez para comemorar o aniversário<br />
de 70 anos do Teatro Municipal de São Paulo e<br />
dedicada ao músico português Filipe de Souza. Escrita<br />
entre 31 de janeiro e 17 de março de 1981, nela o autor<br />
desenvolve uma nova maneira de estruturar o primeiro<br />
movimento, adotando um único motivo melódico<br />
configurado de duas formas distintas.<br />
Só na Sinfonia nº 7, de 1985, o autor se valeria<br />
de apenas dois movimentos em obra densa e bastante<br />
curta, se comparada às primeiras peças sinfônicas.<br />
No final de sua vida, o compositor que celebrara sua<br />
terra agora escreve obra intimista, encomendada<br />
por um amigo e a ele dedicada.<br />
Camargo Guarnieri faleceu em 1993 e teve longa<br />
vida produtiva. Em suas obras visitou todas as formas<br />
consagradas, da fuga ao ballet, passando pelo prelúdio,<br />
variação, sonata, concerto e prelúdio; da canção<br />
à ópera, passando pelo madrigal, cantata e missa. Seu<br />
catálogo, grande e variado, apresenta um perfil que<br />
acompanha as múltiplas atividades exercidas, bem<br />
como as preferências pessoais. Amante da literatura,<br />
escreveu canções para várias formações; regente<br />
de coro, no início da carreira, tem obras a capella;<br />
maestro de grupos sinfônicos, tem sinfonias e concertos<br />
para instrumentos solistas; bom pianista, tem obra<br />
vasta e cultuada para teclado; diretor artístico de um<br />
grupo de cordas, produziu atendendo às características<br />
desse grupo, também. De todos os títulos ainda<br />
há muito a se conhecer, obras que vêm confirmando<br />
sempre a fatura requintada de um autor que dominava<br />
com perfeição todos os meios da escrita musical. Mas,<br />
dentre os títulos inéditos, surpreende, particularmente,<br />
a fatura de seu vasto repertório de canções, fatura que<br />
já despertara o grande interesse de Mário de Andrade.<br />
Quando, no início da década de 1940,<br />
o musicólogo paulista escuta a gravação das 13 canções<br />
pela Discoteca Pública, tenciona escrever um ensaio<br />
e reúne notas e lembretes não logrando, contudo,<br />
concluí-lo. No esboço do trabalho que permanece<br />
inédito em seu arquivo o texto de Mário de Andrade<br />
traduz tão bem a destreza do compositor que faz valer<br />
a transcrição de um trecho:<br />
“[Guarnieri] nunca é descritivo, mesmo no sentido<br />
psicológico. É realmente um valor muito curioso.<br />
Em geral C.G. cria um movimento único, de função<br />
acompanhante, que se repete infindavelmente em cada<br />
compasso. É um valor de música pura, mas que não<br />
deixa, por isso, de ser ambientador do sentimento geral<br />
melódico da canção. A esse valor, de firme caráter<br />
rítmico-harmônico de acompanhamento, ele ajunta
elementos de estrito caráter musical, de música pura<br />
(o que não quer dizer inexpressivo, mas mais<br />
ambientador que descritivamente psicológico), linhas<br />
de polifonia livre, às vezes e não raro inspiradas<br />
no contracanto do violão acompanhante ou da flauta<br />
em variação dos choros. Ou elementos imitativos.<br />
Na estética da canção de C.G., essa forma de<br />
contribuição do piano é bem nítida, e a meu ver<br />
admirabilíssima, aproximando-o conceptivamente<br />
dos melhores representantes do Lied na sua maior<br />
expressão: Schumann e Brahms. O conceito da canção<br />
(canto solista acompanhado por instrumento solista)<br />
ao mesmo tempo que se mantém em toda a sua nitidez,<br />
alcança no entanto as mais elevadas e delicadas formas<br />
de música erudita, individualista, mas pura;<br />
individualismo a que repugna atribuir ao instrumento<br />
um valor romântico de descritor de paisagens<br />
e psicologias. O piano concertante da voz, em<br />
C.G. se mantém sempre dentro das ordens gerais<br />
da expressividade estritamente sonora. Difícil<br />
e tecnicamente muito pianístico, ele é sutilmente<br />
sempre acompanhante, sem ser exatamente subalterno.<br />
É um valor puramente musical que ambienta<br />
a melodia nascida expressivamente do texto,<br />
sem se incomodar com este. De forma que se o texto<br />
amoroso se refere a seios ou luares, o piano<br />
de Camargo Guarnieri jamais se esperdiçará em efeitos<br />
de sinos ou chatices de lunaridades descritivas, mas<br />
bordará com musicalidade exclusiva a linha<br />
cancioneira vertida do texto de amor.” 1<br />
Em Camargo Guarnieri impressiona, ainda,<br />
a liderança daquele que se mantém como o grande<br />
mestre brasileiro de composição, professor que preparou<br />
vários dos compositores atuantes hoje em dia.<br />
Personalidade reconhecida e respeitada no meio<br />
DISCOGRAFIA<br />
SINFONIAS 1 - 6<br />
ABERTURA CONCERTANTE<br />
ABERTURA FESTIVA<br />
SUITE VILA RICA<br />
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo<br />
Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo<br />
Regência: John Neschling. BIS CDs 1220/1290/1320 - Suécia<br />
CHÔRO PARA PIANO E ORQUESTRA<br />
SONATINA Nº 4 PARA PIANO<br />
Czech National Symphony Orchestra<br />
Regência: Paul Freeman<br />
Piano: Caio Pagano<br />
Hallmark Classics 350712 - Canadá<br />
VALSAS E SONATA PARA PIANO<br />
Belkiss Carneiro de Mendonça, piano<br />
PAULUS 000477 - Brasil<br />
CHÔRO PARA VIOLONCELO E ORQUESTRA<br />
Orquesta de las Américas<br />
Regência: Carlos Miguel Prieto<br />
Carlos Prieto, violoncelo. URTEXT JBCC023 - México<br />
50 PONTEIOS PARA PIANO<br />
Laís de Sousa Brasil, piano. FUNARTE/EMI 532931-2 - Brasil<br />
CONCERTOS N OS 3, 4 E 5 PARA PIANO E ORQUESTRA<br />
Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC<br />
Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo<br />
Regência: Camargo Guarnieri<br />
Laís de Sousa Brasil, piano<br />
musical, M. Camargo Guarnieri foi homenageado<br />
e homenageou intérpretes, brasileiros ou não, tendo<br />
seu nome associado ao repertório de grandes artistas<br />
do século XX.<br />
1. A Canção de Camargo Guarnieri, 2 fls. de papel jornal dobradas<br />
ao meio no sentido do comprimento, ms. lápis preto,<br />
4 faces ocupadas, título grifado a lápis vermelho, In: Camargo<br />
Guarnieri: notas de pesquisa ms. lápis, 18 fls., vários formatos<br />
(Arquivo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros,<br />
Universidade de São Paulo).<br />
FLÁVIA CAMARGO TONI<br />
Musicóloga, é pesquisadora na área de Música do Instituto de Estudos Brasileiros<br />
da Universidade de São Paulo e curadora do Arquivo Camargo Guarnieri.<br />
113
Cláudio Santoro foi um típico compositor brasileiro<br />
do século XX: foi ativo, prolífico, teve uma vida<br />
movimentada, daquelas que talvez merecessem até<br />
filme, e uma produção das mais ricas, com um<br />
catálogo1 de mais de 500 itens que abrangeu as mais<br />
diversas áreas, da ópera à música de câmera, incluindo<br />
música sinfônica, vocal, instrumental e eletroacústica.<br />
Contudo, Santoro também é típico em ter sua<br />
produção largamente desconhecida, mesmo em seu<br />
país2 . Com muita sorte, o freqüentador assíduo de<br />
concertos brasileiros terá ouvido, no máximo, o seu<br />
114<br />
CLÁUDIO SANTORO<br />
UMA TRAJETÓRIA<br />
IRINEU FRANCO PERPETUO<br />
Ponteio, para orquestra de cordas, de 1953. Trata-se,<br />
realmente, de uma peça vigorosa, de apelo<br />
nacionalista, que cai bem como item de bis em<br />
qualquer programa sinfônico; agora, convenhamos,<br />
é muita injustiça a reputação de um autor de nada<br />
menos que 14 sinfonias (um número especialmente<br />
expressivo em um país carente de sinfonistas como<br />
o Brasil, já que, durante o auge da forma sinfônica<br />
na Europa, ou seja, nos períodos cronologicamente<br />
correspondentes ao Classicismo e ao Romantismo<br />
europeus, nossos compositores dedicavam-se
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
115
116<br />
essencialmente à música sacra e à ópera) repousar<br />
sobre uma pecinha de cinco minutos de duração...<br />
Fala-se muito em um “renascimento” sinfônico<br />
no Brasil, e realmente as orquestras parecem estar<br />
passando por um salto artístico importante no país;<br />
se nem elas, contudo, executarem o legado sinfônico<br />
de compositores como Santoro, como esperar, então<br />
que a música brasileira tenha a difusão internacional<br />
com que todos sonham?<br />
Isso para não tocar no fato de que muitas vezes se<br />
toca música brasileira, por aqui, para “cumprir tabela”,<br />
como se fosse uma desagradável obrigação do<br />
intérprete. Leia-se, por exemplo, a crônica da estréia<br />
de Alma, ópera de Cláudio Santoro baseada em<br />
Oswald de Andrade, escrita em 1984 e que só veio<br />
a merecer première póstuma, no Segundo Festival de<br />
Ópera de Manaus, em 1998. Mesmo ressaltando os<br />
méritos artísticos intrínsecos da obra, Márcio Páscoa3 afirma que Alma foi reduzida a um “monturo musical”:<br />
ele fala de “inépcia dramática”, orquestra e cantores<br />
“visivelmente mal ensaiados”, uma protagonista,<br />
Rosana Lamosa, “inconvincente, e com a dicção pouco<br />
clara”, e por aí vai. Contudo, ressalta: “ficou a certeza<br />
de que Alma, melhor montada e ensaiada, terá<br />
seguramente outro impacto, e pode vir a se tornar uma<br />
peça bem mais apreciável”.<br />
Parece que somos um país de um só compositor,<br />
Villa-Lobos, admitido no “clube” não apenas por seu<br />
evidente talento e inserção internacional, mas também<br />
por ser visto como uma espécie de compositor<br />
“popular” também, um precursor dos balangandãs<br />
de Carmen Miranda e dos experimentos harmônicos<br />
da bossa nova... 4 E o resultado é que fica muito difícil<br />
colocar em pauta a música de outros autores “eruditos”<br />
brasileiros: paira sobre eles sempre a “sombra” de<br />
Villa-Lobos. Acontece com Villa-Lobos, no Brasil,<br />
o que Wilde denunciou sobre um certo uso perverso<br />
dos nomes dos grandes autores clássicos na arte em<br />
geral; ele é “degradado à função de autoridade”,<br />
e apropriado como “porrete para impedir a expressão<br />
livre da arte em formas novas” 5 . Não é “maior” (como<br />
se houvesse critérios objetivos para mensurar esse tipo<br />
de coisa) do que Villa-Lobos? Então não serve.<br />
Imagine se esse tipo de critério fosse aplicado em<br />
outros países... Se a Áustria só se importasse com<br />
compositores “maiores” que Mozart, será que alguém<br />
conheceria a música de Mahler e Bruckner?<br />
À sombra da música popular, e do nome de Villa-<br />
Lobos, Santoro na verdade brilhou bastante em vida.<br />
“Foi um dos raros compositores a conseguir um certo<br />
destaque na imprensa de um modo geral”, afirma<br />
Harry Crowl. “Foram vários os prêmios e homenagens<br />
recebidos por Santoro nesta época”, continua Crowl,<br />
referindo-se aos seus anos finais de vida. “O Brasil<br />
começava a reconhecer, ainda que palidamente,<br />
a importância deste compositor erudito. Porém, sua<br />
obra foi muito mais tocada na Europa. Os países<br />
do leste sempre receberam muito bem a sua música,<br />
especialmente a Bulgária, a Romênia, a então<br />
Tchecoslováquia e a União Soviética. De qualquer<br />
maneira, nenhum outro país foi tão generoso com<br />
Santoro como a República Federal da Alemanha.<br />
Lá, ele foi professor da Musikhochschule<br />
Heildelberg-Mannheim, nos anos de exílio e foi<br />
constantemente homenageado e tocado, tendo sido<br />
convidado para compor na Casa de Brahms por três<br />
ocasiões”, conclui Crowl.<br />
Filho de um oficial bersagliere italiano, Santoro<br />
começa os estudos musicais aos 11 anos de idade,<br />
ganhando um violino de um tio. 6 Menino-prodígio,<br />
logo obtém bolsa do governo de seu estado natal para<br />
estudar no Rio de Janeiro, ingressando, em 1933, aos<br />
14 anos, no Conservatório de Música da então capital<br />
federal, instituição na qual principia a dar aulas<br />
de violino e harmonia assim que conclui o curso. 7<br />
Ativíssimo, Santoro começa a compor em 1938, e<br />
participa da fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
e do grupo Música Viva, que gravitou em torno do<br />
compositor alemão radicado no Rio Hans Joachim<br />
Koellreuter, trabalhando pela divulgação das técnicas<br />
composicionais de vanguarda no Brasil. Santoro, por<br />
sinal, ainda que instintivamente, foi o primeiro autor<br />
a empregar a técnica dos doze sons por aqui8 . Com<br />
o talento e a importância reconhecidos antes de<br />
completar 30 anos de idade9 , começou a ser laureado<br />
em concursos de composição, até ganhar, em 1946,<br />
bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, de Nova<br />
York. Mas estávamos na Guerra Fria, e sua ligação com
idéias não estão à venda”, teria dito11 .<br />
Bolsa, Santoro acabou ganhando, mas do governo<br />
francês, para estudar em Paris com Nadia Boulanger<br />
(composição) e Eugène Bigot (regência), além de fazer<br />
curso de cinema na Sorbonne12 . Existe quase<br />
unanimidade entre os pesquisadores13 de que sua<br />
participação no II Congresso Internacional de<br />
Compositores Progressistas de Praga, em 1948,<br />
levou-o a abjurar o serialismo e abraçar o<br />
nacionalismo, em concordância com os princípios<br />
defendidos por Andrei Jdanov, comissário de cultura<br />
de Stálin, e que podem ser resumidos sob o rótulo<br />
genérico de “realismo socialista”: agora a música tinha<br />
que ser feita “para as massas” 14 bem-sucedidos corpus de lied em língua portuguesa.<br />
O tom em geral melancólico, a poesia de Vinícius<br />
e a linguagem harmônica já fizeram com que<br />
essas obras fossem associadas ao universo estético<br />
da bossa-nova.<br />
Os musicólogos gostam de dividir a produção<br />
de Santoro em fases. Gerard Béhague<br />
.<br />
E já estava o Santoro de volta ao Brasil; em<br />
princípio, sem emprego, proibido de voltar à OSB,<br />
17 o Partido Comunista acabou<br />
inviabilizando a viagem: “bastaria<br />
que assinasse um termo negando<br />
vínculo com o PC, mas ele<br />
se recusou alegando que não era um<br />
agitador e que o partido estava na O Brasil começava<br />
legalidade. O visto lhe foi negado, a reconhecer, ainda<br />
o que quebrou suas finanças, pois já<br />
tinha inclusive alugado apartamento que palidamente,<br />
em Nova York”, afirma a pesquisadora<br />
Iracele Vera Lívero de Souza a importância deste<br />
compositor erudito.<br />
Porém, sua obra foi muito<br />
mais tocada na Europa<br />
identifica, entre<br />
1939 e 1947, uma fase “orientada na direção da<br />
atonalidade”, começando com a aplicação da técnica<br />
dos 12 tons até um uso mais flexível deste mesmo<br />
idioma. Um lirismo nacionalista começa a entrar em<br />
campo por volta de 1945, com peças como a Sinfonia<br />
nº 2 e a Música para cordas; o compositor “começou<br />
estudos sérios de música folclórica e popular brasileira”<br />
em 1949-50, e “abraçou um estilo nacionalista”, com<br />
afinidades com a escrita sinfônica de Prokofiev<br />
10 sofrendo retaliações políticas; depois,<br />
trabalhando em rádios, também sob<br />
pressão política<br />
.<br />
Não foi a primeira tentativa de<br />
cooptação do compositor, que,<br />
posteriormente, teria aberto mão do<br />
mecenato da família Guinle ao ser<br />
sabatinado ideologicamente: “minhas<br />
15 . Ao longo dos anos<br />
50, começa a fazer uma série<br />
de aparições públicas na Europa,<br />
especialmente (mas não<br />
exclusivamente) em países do bloco<br />
soviético, regendo suas obras<br />
sinfônicas, em geral grandiloqüentes,<br />
e dotadas de grande energia. Mas<br />
há espaço para o intimismo: na Paris<br />
de 195716 Cláudio Santoro<br />
, Santoro e o poeta Vinícius<br />
de Moraes começam uma série<br />
de dez Canções de Amor que, juntas<br />
às Três Canções Populares, dos mesmos<br />
autores, constituem um dos mais<br />
117
118<br />
e Chostakovitch, entre 1948 e 1960 – época do Canto<br />
de Amor e Paz e das sinfonias de nº 4, 5 e 6.<br />
A década de 60 marca um breve retorno do<br />
compositor ao Brasil, em 1962, sob convite de Darcy<br />
Ribeiro, para coordenar o <strong>Departamento</strong> de Música da<br />
Universidade de Brasília. Com o golpe militar de 1964,<br />
Santoro, “o vermelho”, ficou visado; e o compositor<br />
acabou se transferindo para a então Alemanha<br />
Ocidental, com bolsa da Fundação Ford para Berlim.<br />
No novo país, seu trabalho culminou com<br />
a permanência em Heidelberg-Mannheim, como<br />
professor de regência e composição na Hochschule<br />
local (1970-78). 18<br />
O período a partir dos anos 60 também é tido<br />
como o “último”, esteticamente falando, de sua<br />
produção: o do “retorno a um serialismo qualificado<br />
e uso da aleatoriedade e outras técnicas novas” 19 .<br />
É a época das Mutationen, que empregam recursos<br />
eletroacústicos, das Interações assintóticas, do sofisticado<br />
Ciclo Brecht, com obras para canto que se afastam<br />
significativamente do idioma das parcerias com<br />
Vinícius, e da Cantata elegíaca, encomendada pela<br />
Fundação Gulbenkian, e que traz passagens corais<br />
e instrumentais improvisadas20 . “Este ir e vir<br />
1. O catálogo de obras de Claudio Santoro está disponível no site<br />
http://www.claudiosantoro.art.br, cujas informações foram<br />
de grande utilidade para a elaboração deste texto.<br />
2. Os intérpretes “quixotescos” que gravaram a música de<br />
Santoro estão listados na discografia que aparece ao final do<br />
artigo. Nela, optou-se não por fazer uma lista completa de<br />
todos os fonogramas de Santoro, nem de cada CD gravado<br />
(essas listas também estão disponíveis no site. Ver nota 1),<br />
mas por elencar os discos disponíveis comercialmente no<br />
momento da publicação deste texto.<br />
3. PÁSCOA, Márcio. Cronologia Lírica de Manaus, pg. 425-7,<br />
Governo do Estado/Editora Valer, Manaus, 2000.<br />
4. APPLEBY, David P.. Heitor Villa-Lobos – A Life (1887-1959),<br />
pg. 179-80, The Scarecrow Press, Boston, 2002.<br />
5. WILDE, Oscar. The Soul of Man under Socialism, pg. 37, in De<br />
Profundis and Other Writings, Penguin Classics, Londres, 1986.<br />
6. MARIZ, Vasco. Cláudio Santoro, pg. 15, Civilização Brasileira,<br />
Rio de Janeiro, 1994.<br />
7. Enciclopédia da Música Brasileira, pg. 710-12, Art Editora/<br />
Publifolha, São Paulo, 1998.<br />
8. No seu “Música Viva e H. J. Koellreuter – movimentos em<br />
estilisticamente de um lado a outro se pode notar<br />
também em alguns compositores da geração de<br />
Santoro ou da geração imediatamente seguinte”, afirma<br />
Roque Cordero21 .<br />
Em 1978, a ditadura militar brasileira começava<br />
a se abrandar, e Santoro finalmente pôde retornar<br />
à pátria, trabalhando novamente em Brasília, na<br />
Universidade, e organizando a Orquestra Sinfônica<br />
do Teatro Nacional. O compositor continua recebendo<br />
convites do Exterior para reger e encomendas<br />
periódicas de obras da Europa; por aqui, junto com<br />
as honrarias, havia os dissabores burocráticos da<br />
direção do Teatro Nacional22 . E foi neste palco, em<br />
meio ao ensaio do primeiro concerto da temporada<br />
de 1989 – um ano em que estava programada uma<br />
série de homenagens por seu 70º aniversário – que<br />
ele sofreu o enfarte fulminante que lhe tirou a vida.<br />
Para Santoro, estar vivo e estar ativo sempre<br />
significou a mesma coisa. Talvez o que falte, agora para<br />
que sua música mereça o reconhecimento devido, seja<br />
um novo Cláudio Santoro – não um clone estético seu,<br />
mas uma personalidade musical com a mesma energia<br />
e desenvoltura, para defender suas obras e levá-las<br />
adiante no século XXI.<br />
direção à modernidade” (Musa Editora/Atravez, São Paulo,<br />
2001), Carlos Kater, conta, à pg. 107, que Koellreuter tinha<br />
mais afinidade estética com Hindemith do que com<br />
Schönberg, até que foi levado a trabalhar com o serialismo<br />
“devido ao fato de um de seus primeiros alunos de<br />
composição, Cláudio Santoro, ter elaborado em sua Sinfonia<br />
para duas orquestras de cordas, de 1940, algumas passagens<br />
organizadas de forma serial. Como Santoro ignorasse até<br />
aquela data tudo o que se referisse à técnica dodecafônica,<br />
Koellreuter inseriu em suas aulas o estudo do assunto,<br />
encontrando aí estímulo para escrever sua primeira peça<br />
baseada no método de composição com doze notas: Invenção”.<br />
9. Em seus 150 anos de música no Brasil – 1800-1950 ( José Olympio<br />
Editora, Rio de Janeiro, 1956), Luiz Heitor já o destaca como<br />
um dos nomes mais proeminentes de sua geração e, embora<br />
ainda não consiga ver com clareza que tipo de caminho<br />
estético o autor amazonense trilharia, vaticina, sem pestanejar:<br />
“Mas de uma coisa está certo: que ela [sua música] continuará<br />
sendo música de qualidade invulgar, pois não importa qual seja<br />
a linguagem empregada para sua exteriorização, a fina<br />
sensibilidade de Santoro impõe sempre a tudo o que ele<br />
escreve um nível a que só os compositores de grande raça têm<br />
acesso” (pg. 365).
10. SUGIMOTO, Luiz. Santoro, uma vida contada ao piano, in<br />
Jornal da Unicamp, edição 224. Souza defendeu a dissertação<br />
de mestrado “Santoro: Uma história em miniaturas. Estudo<br />
analítico interpretativo dos prelúdios para piano de Cláudio<br />
Santoro” em agosto de 2003, na Unicamp, pesquisando<br />
largamente a correspondência do compositor com<br />
o musicólogo Francisco Curt Lange, amigo e incentivador<br />
de Santoro.<br />
11. PORTO, Regina. “A herança utópica”, pg. 72, in Revista<br />
Bravo, São Paulo, março de 1999.<br />
12. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 20.<br />
13. Uma exceção de peso é Flávio Silva, que sustenta, com<br />
argumentação convincente, que “a conversão de Santoro ao<br />
nacionalismo musical deve ter ocorrido antes de o compositor<br />
participar do Congresso de Praga, em maio de 1948. O corte<br />
com o dodecafonismo parece ter sido radical, sem o<br />
gradualismo com que Guerra-Peixe se afastou dessa corrente”.<br />
A argumentação é desenvolvida em “Abrindo uma carta<br />
aberta”, in “Camargo Guarnieri – o tempo e a música”,<br />
org. Flávio Silva, Funarte/Imprensa Oficial do Estado,<br />
Rio de Janeiro, 2001.<br />
14. “Se a sociedade socialista constituiu um progresso sobre<br />
a capitalista, se a classe proletária é a classe revolucionária,<br />
é necessário que a arte reflita os anseios da nova classe para<br />
que seja uma arte progressista. A arte feita nos países<br />
capitalistas reflete a classe dominante, portanto é decadente”;<br />
trecho de artigo de Cláudio Santoro na revista Fundamentos,<br />
em 1948/9, citado por Silva, Flávio, op. cit.<br />
15.“Foi deposto do cargo de diretor musical da Rádio Clube –<br />
emissora montada por Samuel Wainer- por pressão de Carlos<br />
Lacerda”. Porto, Regina, op. cit., pg. 71.<br />
16. Conta Iracele Vera Lívero de Souza (in Sugimoto, Luiz, op.<br />
cit.) que Santoro enamorara-se de Lia, a tradutora russa que<br />
o acompanhara na turnê russa de 1957. Mulher de “olhos<br />
profundos, melancólicos e cheios de ternura”, Lia era casada<br />
com um funcionário do KGB, o que fez com que o<br />
compositor tivesse que deixar a URSS. Refugiado na<br />
embaixada brasileira em Paris, lá conheceu Vinícius de<br />
Moraes, com o qual escreveu as 13 canções “dor-de-cotovelo”.<br />
17. SANTORO, Cláudio, in The New Grove Dictionary of Music and<br />
Musicians, editado por Stanley Sadie, vol. 16, pg. 483-5,<br />
Londres, Macmillan Publishers Limited, 1980.<br />
18. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 61.<br />
19. BÉHAGUE, op. cit.<br />
20. Na Alemanha, Santoro pôde, ainda, dedicar-se a outra de suas<br />
paixões, a pintura. “É também desse estágio em Berlim<br />
a composição de quadros sonoros. Finalmente, teve um pouco<br />
de tempo para se dedicar à pintura, realizando então quadros<br />
musicais que utilizam aparelhagem fotoelétrica, a qual,<br />
automaticamente, toca trinta segundos de música abstrata<br />
eletroacústica, quando uma pessoa se aproxima. Dessa série<br />
teve duas litografias impressas em Paris e gostaria de ter<br />
prosseguido tais experiências, caso houvesse encontrado um<br />
DISCOGRAFIA<br />
SONATAS PARA VIOLINO E PIANO DE CLÁUDIO SANTORO.<br />
Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano.<br />
JHO Music, 1995<br />
<strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO<br />
(Inclui o Trio de 1973) Jerzy Milewski, violino;<br />
Márcio Malard, violoncelo; Aleida Schweitzer, piano<br />
Rio Arte Digital, 1996<br />
CLÁUDIO SANTORO – UM CONCERTO, TRÊS SONATAS, UMA SONATINA,<br />
UM CANTO, UM VOCALISE E UMA <strong>MÚSICA</strong> PARA ORQUESTRA DE CORDAS<br />
Vários intérpretes<br />
Soarmec, 1998<br />
PRELÚDIOS E CANÇÕES DE AMOR. Aldo Baldin, canto;<br />
Lílian Barreto, piano. Sonata, 1998<br />
DUO HADELICH SALGADO – BRASILIAN COMPOSERS<br />
(inclui a Fantasia Sul América, Elegia nº 1 e Elegia nº 3).<br />
Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano. Vox, 1998<br />
5 SONATAS DE CLÁUDIO SANTORO PARA VIOLINO E PIANO<br />
Mariana Salles, violino; Laís de Souza Brasil, piano<br />
ABM Digital, 1999<br />
SANTORO - SINFONIA Nº 5<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira/regência Cláudio Santoro.<br />
Festa, 1999<br />
GRANDES PIANISTAS BRASILEIROS<br />
(inclui as Paulistanas 1-7). Fritz Jank, piano.<br />
Master Class, 2000<br />
ORQUESTRA FILARMÔNICA NORTE NORDESTE<br />
(inclui o Mini-Concerto Grosso). Aylton Escobar, regente.<br />
CPC-Umes, 2000<br />
BRASILIANA: THREE CENTURIES OF BRAZILIAN MUSIC<br />
(inclui as Paulistanas 1 e 4). Arnaldo Cohen, piano.<br />
BIS, 2000<br />
CONVERGENCES – BRAZILIAN MUSIC FOR STRINGS<br />
(inclui o Ponteio). Camerata Fukuda/Celso Antunes, regente.<br />
Paulus, 2001<br />
O PIANO DE CLÁUDIO SANTORO. Gilda Oswaldo Cruz, piano. Biscoito<br />
Fino, 2001<br />
CANÇÕES DE AMOR E PRELÚDIOS. José Hue, canto; Heitor Alimonda,<br />
piano. Produção independente, sem data<br />
técnico em eletrônica que resolvesse os problemas de<br />
apresentação simultânea desses quadros musicais”. MARIZ,<br />
Vasco, op. cit., pg. 45.<br />
21. CORDERO, Roque, Vigencia del músico culto, pg. 165,<br />
in “América Latina en su música”, relatora Isabel Aretz,<br />
Unesco/Siglo Veintiuno Editores, México, 1997.<br />
22. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 56.<br />
IRINEU FRANCO PERPETUO<br />
Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona)<br />
e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).<br />
119
120<br />
OS EVENTOS PARA DIVULGAÇÃO DA<br />
<strong>MÚSICA</strong><br />
CONTEMPORÂNEA<br />
NO BRASIL<br />
Os eventos para divulgação da música brasileira<br />
contemporânea tiveram a importante função de<br />
colocar a produção da nova música de concerto<br />
em contato com um público amplo, além das<br />
fronteiras do meio universitário. A idéia de realizar<br />
esses festivais teve início na década de 60 em três<br />
núcleos principais: Salvador, no Estado da Bahia, no<br />
Rio de Janeiro, na época Estado da Guanabara e em<br />
Santos, no Estado de São Paulo. A realização desses<br />
EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES<br />
eventos sempre esteve subordinada ao apoio<br />
institucional dos órgãos governamentais de promoção<br />
da cultura e muitas vezes a continuidade, ou não,<br />
desses eventos, dependeu do interesse e da vontade<br />
política das autoridades que chefiavam essas<br />
instituições. A persistência na realização desses<br />
festivais, sua continuidade, foi resultado de um<br />
engajamento pessoal de alguns compositores que<br />
levaram adiante esse ideal de difundir a música nova
e promover o encontro das mais diversas tendências<br />
musicais e estéticas do país. Cada festival teve também<br />
algumas características próprias ao lidar com os vários<br />
aspectos e enfoques na divulgação da produção musical<br />
contemporânea. Atualmente, os únicos festivais que<br />
mantém sua programação, apesar das dificuldades<br />
financeiras, da falta de apoio quase total das<br />
instituições que deveriam promover a música<br />
de concerto brasileira e com algumas interrupções,<br />
são a Bienal de Música Brasileira Contemporânea<br />
no Rio de Janeiro e o Festival Música Nova em Santos.<br />
A época áurea desses festivais, nos anos 60 e 70,<br />
coincidiu com um dos momentos mais tensos da vida<br />
cultural do país, quando a ditadura militar usou do veto<br />
da censura para tentar controlar as idéias<br />
e as produções artísticas dos mais variados seguimentos<br />
da comunidade cultural e artística do país. As intenções<br />
desses músicos se confundiam entre o interesse da<br />
renovação e revitalização da linguagem musical,<br />
a necessidade da livre expressão das idéias e o direito<br />
de protestar perante tamanho abuso de autoridade<br />
dos que estavam ilicitamente no poder.<br />
Nesse artigo descrevo sinteticamente as atividades<br />
realizadas pelos principais eventos que mantiveram<br />
uma programação regular exclusivamente voltada<br />
para a divulgação da música contemporânea no Brasil,<br />
mas é necessário ressaltar que outros festivais também<br />
esporadicamente criaram espaços para a música nova,<br />
dos quais cito o Festival de Inverno de Campos<br />
do Jordão, o Festival de Inverno da Universidade<br />
Federal de Minas Gerais, Cursos de Verão<br />
de Curitiba e os Seminários Internacionais<br />
de Música da Bahia entre outros.<br />
GRUPO DE COMPOSITORES DA BAHIA<br />
A divulgação da nova música em Salvador na Bahia foi<br />
resultado direto da atuação do Grupo de Compositores<br />
da Bahia liderados pelo compositor Ernst Widmer.<br />
Esse grupo de compositores contou em sua formação<br />
com os nomes de Lindembergue Cardoso, Fernando<br />
Cerqueira, Nicolau Kokron, Milton Gomes, Jamary<br />
Oliveira, Rinaldo Rossi, Antonio José Santana Martins<br />
(Tom Zé) e Jamary Oliveira. Ernst Widmer, que teve<br />
atuação decisiva na formação musical e ideológica<br />
desse grupo de compositores, assim se expressa sobre<br />
sua intenção de reorganizar os meios formais da<br />
construção musical: “... procuro sempre estimular<br />
a composição ‘livre’, paralela e anterior ao estudo<br />
da teoria, da harmonia, da análise, do contraponto,<br />
da fuga, do cânone, do prelúdiocoral, dos<br />
ricercarsonatavariaçãorondos, para evitar aquela música<br />
fictícia, geralmente produzida alheia à vivência,<br />
em cursos acadêmicos demasiadamente teóricos<br />
e restritos”. Widmer, nascido na Suíça, pátria<br />
do Dadaísmo, e atuante no meio cultural baiano desde<br />
1956, assina com outros componentes do grupo<br />
a provocante Declaração de Princípios dos Compositores<br />
da Bahia em 30 de novembro 1966:<br />
“Artigo único – principalmente estamos contra<br />
todo e qualquer princípio declarado”. E dando<br />
prosseguimento ao documento: “1) Qualquer aplauso<br />
ou manifestação... (censurado) é considerado<br />
subversão; 2)Manifestações permitidas: vaias, assobios,<br />
tomates e ovos podres; 3) Com referência aos<br />
intérpretes, faz-se necessário salientar que são<br />
inocentes. Convém poupá-los para poderem atuar nos<br />
próximos concertos; 4) Aconselha-se aguardar o final<br />
onde haverá uma pequena demonstração de civilização<br />
– explosão de instintos...(censurado); 5) O que ocorrer<br />
de normal não será de nossa responsabilidade; 6) Não<br />
se revoguem indisposições ao contrário”.<br />
As primeiras apresentações de obras desse grupo<br />
se dão em abril de 1966 durante o evento Semana<br />
Santa na Bahia, cujas obras tinham tema ou texto de<br />
caráter religioso, e em novembro do mesmo ano em<br />
um Concerto Popular com a participação da Orquestra<br />
Sinfônica da Universidade Federal da Bahia (UFBA).<br />
A partir de 1967 o evento é denominado Apresentação<br />
121
122<br />
de Compositores da Bahia e segue sendo realizado<br />
até o ano de 2000. A partir de 1983 o evento torna-se<br />
bienal. Como esclarece o título, o evento visava<br />
difundir a produção dos compositores do grupo baiano,<br />
mas algumas peças de outros compositores brasileiros<br />
eventualmente eram incluídas no festival. Além da<br />
apresentação das obras era realizado um concurso que<br />
premiava as peças mais representativas por um júri<br />
formado por diversos compositores brasileiros e uma<br />
das obras recebia um prêmio do público participante.<br />
O grande benefício que o evento proporcionava aos<br />
compositores era permitir uma “constelação criadorintérprete-público,<br />
ou seja, uma escola-extensão, uma<br />
prática de auto-educação: o compositor reconhece seus<br />
erros e tentos somente através da execução ao vivo de<br />
suas obras” (Widmer). Com essa proposta, o grupo da<br />
Bahia se destacava no plano musical do país, dando<br />
oportunidade aos compositores de se apresentarem<br />
num concurso ao vivo, como comenta Cidinha Mahle<br />
no “Jornal de Piracicaba” em dezembro de 1967:<br />
“Chama a atenção o fato de que a Bahia está sendo<br />
Iº Festival de Música da Guanabara. O Globo. 24.05.69.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
praticamente o único Estado da federação a estimular<br />
o jovem artista compositor de música erudita”.<br />
O compositor Bruno Kiefer também comenta em um<br />
artigo de o “Correio do Povo” de Porto Alegre em<br />
novembro do mesmo ano: “ Encerrou-se no dia 19<br />
de novembro um concurso singular, realizado na Bahia<br />
(...) A singularidade reside no fato de terem sido unidos<br />
um concurso de composição erudita e outro de música<br />
popular. Uma conseqüência básica dessa união foi esta:<br />
gente de música popular assistindo aos concertos de<br />
música erudita e vice-versa. (...) Os concorrentes foram<br />
quase todos jovens de vinte e poucos anos, educados<br />
musicalmente nos Seminários de Música da<br />
Universidade. Impressionou a solidez do artesanato.<br />
Esteticamente avançados. Mas o conceito de avançado<br />
merece uma posição crítica. Costuma ser considerado<br />
avançado, ou de vanguarda, aquilo que corresponde<br />
a um modo de pensar europeu. Tendo em conta que<br />
a arte nasce da necessidade de expressar e estruturar<br />
a realidade em que vive o artista, é singular que<br />
um grupo de compositores jovens da Bahia, salvo um,<br />
expresse algo que, basicamente, não<br />
é nosso. Mesmo levando em conta<br />
o pensamento europeu, essa influência<br />
em nossa cultura, ainda incipiente, não<br />
vemos razão nenhuma para ignorar<br />
o que é especificamente nosso.<br />
E isso justamente na Bahia, o coração<br />
do Brasil. (...)”<br />
Entre os vários intérpretes<br />
e conjuntos encarregados da execução<br />
de tantas obras inéditas e cúmplices das<br />
propostas estéticas do grupo baiano,<br />
podemos destacar: Orquestra Sinfônica<br />
da UFBA, Conjunto de Metais<br />
da UFBA, Grupo Experimental<br />
de Percussão da UFBA, Madrigal da<br />
UFBA, Trio da Universidade da Bahia<br />
(Moysés Mandel, Piero Bastianelli e<br />
Pierre Kose), Afrânio Lacerda, Quinteto
de Sopros da UFBA, Erick Vasconcelos, Fernando<br />
Lopes, Quarteto de Cordas da Bahia e Conjunto<br />
Música Nova da UFBA (depois Bahia “Ensemble”) sob<br />
direção de Piero Bastianelle. Além dos compositores<br />
fundadores do grupo, há de se destacar a atuação<br />
do inventor de instrumentos e novíssimas sonoridades<br />
Walter Smetack, que com suas inéditas propostas<br />
de luteria incentivou a criação de novas obras<br />
especialmente escritas para singulares fontes sonoras.<br />
Entre os compositores que se destacaram na<br />
programação desse núcleo baiano, podemos citar Paulo<br />
Costa Lima, Wellington Gomes, Agnaldo Ribeiro,<br />
Lucemar Ferreira, Ricardo Bordini, Ângelo Castro,<br />
Pedro Kröger, Pedro Augusto Dias e Fernando Burgos.<br />
O compositor Paulo Costa Lima idealizou e coordenou<br />
a partir de 1986 até 1992, a Semana da Música<br />
Contemporânea, evento realizado dentro<br />
da programação dos Seminários Internacionais<br />
de Música da Bahia e depois incorporado a esse último<br />
a partir de 1993.<br />
FESTIVAL DE <strong>MÚSICA</strong> DA GUANABARA<br />
E BIENAL DE <strong>MÚSICA</strong> <strong>BRASILEIRA</strong> CONTEMPORÂNEA.<br />
Edino Krieger é um dos compositores mais atuantes<br />
na criação e realização dos eventos para a divulgação<br />
da música brasileira contemporânea. Sua atuação<br />
frente ao MIS (Museu da Imagem e do Som) e do<br />
Instituto Nacional de Música, órgão ligado a Funarte<br />
(Fundação Nacional de Arte) foi decisiva para a criação<br />
dos Festivais de Música da Guanabara, das Bienais<br />
de Música Brasileira Contemporânea e no apoio<br />
à promoção de outros eventos tais como os Ciclos<br />
de Música Contemporânea de Belo Horizonte, as<br />
Apresentações de Compositores da Bahia e o Encontro<br />
de Compositores Latino Americano (Encompor) em<br />
Porto Alegre. O I Festival de Música da Guanabara foi<br />
realizado em 1969 com a participação e apoio do<br />
Secretário da Educação e Cultura do então Estado<br />
da Guanabara Gonzaga da Gama Filho. O formato<br />
do evento era de um festival-concurso que revelou ao<br />
público uma nova geração de compositores. As obras<br />
foram executadas pelo Coro e Orquestra do Teatro<br />
Municipal do Rio de Janeiro, com grande sucesso de<br />
público, e foram selecionadas por um júri formado por<br />
renomados compositores: Fedele D’Amico da Itália<br />
(presidente), Franco Autori dos EUA, Fernando Lopes<br />
Graça de Portugal, Hector Tosar do Uruguai, Roque<br />
Cordero do Panamá, e maestros brasileiros<br />
e estrangeiros. Nesse primeiro festival das 14 obras<br />
finalistas, cinco foram premiadas: Pequenos Funerais<br />
Cantantes, de Almeida Prado; Concerto Breve, para piano<br />
de Marlos Nobre, Procissão das Carpideiras, de<br />
Lindembergue Cardoso, Heterofonia do Tempo,<br />
de Fernando Cerqueira e Primevos e Postrídios, de Milton<br />
Gomes. Na execução das obras se destacaram<br />
os solistas Maria Lúcia Godoy, Nelson Portela, Arnaldo<br />
Estrela e Eládio Perez-Gonzales. As obras foram<br />
regidas por Mário Tavares, Henrique Morelenbaum<br />
e Armando Krieger. O II Festival de Música da<br />
Guanabara, realizado em 1970 recebeu 126 inscrições<br />
de toda a América Latina. O júri foi presidido por<br />
Francisco Mignone e integrado por Guillermo<br />
Espinoza, Colômbia; Franco Autori, USA; Tadeusz<br />
Baird, Polônia; Vaclav Smetacek, Tchecoslováquia;<br />
Jorge Peixinho, Portugal; Garcia Morillo, Argentina;<br />
Domingo Santa Cruz e Gustavo Becerra, Chile; Hector<br />
Tosar, Uruguai; e Roque Cordero, Panamá. Os<br />
premiados nas categorias música de câmara e sinfônica<br />
foram: Sinopsis, de Ernst Widmer; Mosaico, de Marlos<br />
Nobre; Espectros, de Lindembergue Cardoso; Pequeño<br />
Tríptico, de José Ramon Maranzano, da Argentina;<br />
Ludus II de Hilda Dianda, da Argentina e Missa Breve,<br />
de Aylton Escobar. Com a morte de Gama Filho logo<br />
após a realização do segundo evento, o projeto<br />
do terceiro festival foi encaminhado ao seu sucessor na<br />
Secretaria de Educação e Cultura, Vieira de Mello, que<br />
na época da realização dos dois primeiros era diretor<br />
do Teatro Municipal, que sob alegação de falta de<br />
recursos, o arquivou. Edino Krieger elaborou então<br />
o projeto das Bienais de Música Brasileira<br />
123
124<br />
Contemporânea só realizado em 1975 graças<br />
à colaboração de Myriam Dauelsberg que dirigia<br />
à época a Sala Cecília Meireles. As Bienais se tornaram<br />
o mais importante espaço aberto para a mostragem<br />
periódica da produção musical brasileira mais recente.<br />
Um amplo painel democrático das mais variadas<br />
tendências da música brasileira de concerto atual que<br />
vem promovendo o intercâmbio de compositores e<br />
intérpretes de todas as partes do país, divulgando obras<br />
de autores consagrados e revelando os novos valores1 .<br />
Ao promover o encontro das diversas gerações<br />
de compositores as Bienais, permitiram que as mais<br />
diversas tendências fossem confrontadas revelando<br />
o imenso pluralismo das tendências estéticas da música<br />
brasileira contemporânea. Além dos concertos que<br />
consolidaram um caráter festivo, de confraternização<br />
do evento, uma programação paralela constituída<br />
de debates, mesas redondas, mostra de filmes<br />
e lançamentos de gravações, partituras e livros,<br />
permitiu que uma ampla troca de informações entre<br />
intérpretes e compositores fosse vinculada pelos meios<br />
de comunicação, tornando-se espaço privilegiado<br />
da produção musical brasileira.<br />
Disco da I Bienal Brasileira de Música<br />
Contemporânea. (1975)<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –<br />
DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
1. Citar todos os nomes dos compositores e intérpretes<br />
aqui, será impossível, mas de forma bastante resumida podemos<br />
destacar: I Bienal (1975, 35 compositores participantes): José<br />
Siqueira, Radamés Gnattalli, Francisco Mignone, Souza Lima,<br />
Camargo Guarnieri, Edino Krieger, Cláudio Santoro, Guerra-<br />
Peixe, Bruno Kiefer, Ernst Widmer, Jocy de Oliveira, Fernando<br />
Cerqueira, Lindembergue Cardoso, Jamary Oliveira, Ayton<br />
Escobar, Jorge Antunes, Guilherme Bauer, Cirley de Hollanda,<br />
Jaceguay Lins, Ronaldo Miranda, Roseana Yampolschi, Paulo<br />
Chagas, Dawid Korenchendler e Marco Antonio Guimarães.<br />
II Bienal (1977, 42 compositores participantes): Gilberto<br />
Mendes, Agnaldo Ribeiro e Luiz Carlos Vinholes. III Bienal<br />
(1979, 48 compositores participantes): Eunice Katunda,<br />
Fructuoso Vianna, Luís Cosme, Brasílio Itiberê, Heitor<br />
Alimonda, entre outros compositores ligados ao Movimento<br />
Música Viva, destaque na programação, sob a tutela de<br />
H. J. Koellreuter. VI Bienal (1981, 52 compositores<br />
participantes): Tim Rescala e Tato Taborda dirigindo o Grupo<br />
Juntos – Música Nova. V Bienal (1983): Mário Ficarelli,<br />
Ricardo Tacuchian, Osvaldo Lacerda, Ernst Mahle, Odemar<br />
Brígido, Ernani Aguiar e uma exposição dedicada a Ester Scliar.<br />
VI Bienal (1985; 67 compositores participantes): Eli-Eri Moura,<br />
José Alberto Kaplan, Arthur Kampela, Nestor de Hollanda<br />
Cavalcanti, Mariza Rezende, Pauxy Nunes, Luiz Carlos Csëko,<br />
Rodolfo Caesar, Eduardo Guimarães Álvares, Roberto Victorio,<br />
Willy Correa de Oliveira e Marcos Lavigne. VII Bienal (1987,<br />
79 compositores participantes): Rodrigo Cicchelli, Luigi<br />
Irlandini, Wellington Gomes, Paulo Costa Lima e Leonardo Sá.<br />
VIII Bienal (1989; 86 compositores participantes): Destaque da<br />
programação concerto de abertura em homenagem aos 20 anos<br />
do I Festival de Música da Guanabara, Edmundo Villani-<br />
Cortes, Harry Crowl, Grupo Multimedia de Belo Horizonte,<br />
João Guilherme Ripper e homenagem póstumas a<br />
Lindembergue Cardoso, Cláudio Santoro e Paulo Libânio.<br />
IX Bienal (1991): Oiliam Lana e grupo de compositores<br />
mineiros. X Bienal (1993, 85 compositores participantes):<br />
Flô Menezes, Sílvio Ferraz, Eduardo Seincman, Lelo Nazário,<br />
Dalga Larondo e Silvia de Lucca. XI Bienal (1995; 92<br />
compositores participantes): Fernando Iazzetta, Sergio Igor<br />
Schnee. XII Bienal (1997). XIII Bienal (1999) Curadoria de<br />
Cirlei Hollanda. Retrospecção da programação de anos<br />
anteriores. XIV Bienal (2001). Concurso de composição para<br />
várias categorias. Alexandre Schubert, Caio Senna, Bruno<br />
Ruviaro. XV Bienal (2003). Curadoria de Flávio Silva e Maria<br />
José de Queiroz Ferreira. Calimério Soares, Dimitri Cervo,<br />
Chico Melo, Marcos Lacerda, Sérgio Freire, Pedro Kröger,<br />
Marcus Siqueira, Antônio Ribeiro e Silvia Berg.
FESTIVAL <strong>MÚSICA</strong> NOVA DE SANTOS E SÃO PAULO<br />
O Festival Música Nova de Santos foi realizado pela<br />
primeira vez em 1962. Foi uma conseqüência direta das<br />
idéias e propostas contidas no Manifesto Música Nova<br />
que deu suporte teórico e ideológico ao Movimento<br />
Música Nova, cujas atividades na época giravam em<br />
torno da Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida<br />
por George Olivier Toni; do Madrigal Ars Viva<br />
de Santos, dirigido por Klaus Dieter Wolf;<br />
e do movimento do Grupo Noigrandes dos poetas<br />
concretistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos<br />
e Décio Pignatari. O Festival Música Nova nasceu<br />
sob a luz das diretrizes européias do “Neue Musik”,<br />
marcada por uma posição internacionalista que visava<br />
liberar a cultura brasileira “das travas infra-estruturais<br />
e das super-estruturas ideológico-culturais então<br />
dominantes”, conforme declara José Maria Neves em<br />
seu livro Música Contemporânea Brasileira de 1977.<br />
A programação do evento, sob direção artística<br />
do compositor santista Gilberto Mendes, privilegiou<br />
o intercâmbio com as várias correntes estéticas<br />
da música contemporânea mundial, dando<br />
continuidade às atividades desenvolvidas desde<br />
a década de 40 pelo grupo Música Viva dirigido por<br />
H. J. Koellreutter. A história da realização do festival<br />
pode ser dividida em três momentos distintos: de 1962<br />
a 1964 marcada pelas proposições estéticas<br />
e ideológicas contidas no Manifesto Música Nova<br />
e da “Neue Musik” alemã, com ênfase na divulgação<br />
das obras de Gilberto Mendes e Willy Correa<br />
de Oliveira, signatários do documento, interrompida<br />
pelo golpe militar de 1964. Nesse primeiro momento<br />
o evento ainda era denominado Semana de Música de<br />
Vanguarda. Um segundo momento teria início a partir<br />
da continuidade do festival em 1968, quando é dada<br />
ênfase à música ibero-americana. Entre 1970 e 1980,<br />
tendo os compositores esgotado as propostas da<br />
“Neue Musik”, voltam-se à criação de uma música mais<br />
comunicativa, mais politicamente engajada. No entanto<br />
essa intenção em escrever uma música mais<br />
Programa do 1º Ciclo de Música Contemporânea<br />
de Belo Horizonte, 1984.<br />
comunicativa, de certa forma se contrapunha à idéia de<br />
produzir um festival para um público restrito, como nas<br />
primeiras edições do evento. Essa mudança de rumos,<br />
que seria um terceiro momento do percurso, faz<br />
a ideologia do festival se aproximar estilisticamente<br />
das idéias pós-modernas do movimento europeu Nova<br />
Consonância, principalmente das idéias difundidas<br />
pelo compositor belga Boudewijin Buckninx.<br />
A realização do Festival Música Nova sempre esteve<br />
vinculada ao apoio dos órgãos de promoção cultural da<br />
Prefeitura Municipal de Santos, da Secretaria de Estado<br />
da Cultura de São Paulo e recebendo patrocínio<br />
eventual de outras instituições. A partir de 1997<br />
até 1999, a realização do festival foi amplamente<br />
revitalizada pelo apoio cultural e patrocínio<br />
do Instituto <strong>Cultural</strong> Itaú, depois Itaú <strong>Cultural</strong>,<br />
que permitiu que as dificuldades financeiras fossem<br />
superadas, obtendo uma maior repercussão na mídia e<br />
a participação da nova Orquestra Sinfônica do Estado<br />
de São Paulo em sua programação, sob direção de John<br />
125
126<br />
Neschling. O festival contou também com<br />
a colaboração de outros compositores que dividiram<br />
as funções de coordenação artística e produção com<br />
Gilberto Mendes: Rodolfo Coelho de Souza, Conrado<br />
Silva, José Augusto Mannis, Eduardo Guimarães<br />
Álvares e Rubens Ricciardi e atualmente o musicólogo<br />
Lorenzo Mami, diretor do Centro Universitário Maria<br />
Antônia da Universidade de São Paulo.<br />
CICLOS DE <strong>MÚSICA</strong> CONTEMPORÂNEA DE BELO<br />
HORIZONTE E FESTIVAL ARTICULAÇÕES<br />
O Ciclo de Música Contemporânea de Belo Horizonte<br />
Programa da Bienal Brasileira de<br />
Música Contemporânea de 2003 (XV Bienal).<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
foi idealizado pelo pianista Paulo Álvares, coordenador<br />
do Núcleo de Música Contemporânea de Belo<br />
Horizonte. A realização do primeiro evento, ocorrido<br />
em março e abril de 1984, foi possível graças ao<br />
patrocínio do Instituto Goethe de Belo Horizonte e do<br />
apoio institucional da Fundação de Educação Artística<br />
ao qual o Núcleo estava vinculado. O que marcou<br />
a trajetória do Ciclo na programação cultural de Belo<br />
Horizonte foi uma ampla participação do público que<br />
lotava as salas de concerto, graças ao apoio dos meios<br />
de comunicação, principalmente dos jornais “A Tribuna<br />
de Minas” e do “Estado de Minas” e mais tarde da TV<br />
Minas, ligados à Secretaria de Estado da<br />
Cultura. Essa ampla participação do público<br />
se deu também devido à realização de<br />
concertos-debates, mostras de filmes e vídeos,<br />
performances no meio universitário, em teatros<br />
e outros locais, como uma programação prévia<br />
e preparatória ao acontecimento do evento.<br />
O apoio e patrocínio do Instituto Nacional de<br />
Música da FUNARTE foram decisivos para que<br />
o evento continuasse a ser realizado a partir<br />
da segunda edição, permitiu a expansão<br />
da programação, do número de participantes<br />
locais e convidados, e deu projeção nacional às<br />
atividades realizadas pelos compositores de Belo<br />
Horizonte. A partir do III Ciclo a coordenação<br />
foi assumida pelo compositor Eduardo<br />
Guimarães Álvares, então professor da<br />
Fundação de Educação Artística.<br />
A programação do evento era constituída na sua<br />
maior parte por concertos que difundiam:<br />
1) as obras chaves referenciais de autores<br />
consagrados que determinaram as novas<br />
maneiras de pensar a música; 2) obras do século<br />
XX pouco executadas em concertos;<br />
3)obras comprometidas com a experimentação<br />
incluindo as linguagens da música em interface<br />
com as artes visuais e cênicas; 4)obras de<br />
compositores brasileiros e de Belo Horizonte,
tais como João Francisco de Paula Gelape, Gilberto<br />
Machado, Oiliam Lana, Guilherme Paoliello, Rogério<br />
Vasconcelos, Robson Santos, Harry Crowl, Sergio<br />
Canedo, Nelson Salomé, Bruno Pataro, Sérgio Freire,<br />
Eduardo Campos, Lourival Silvestre, Eduardo<br />
Campolina, Fanuel Lima, Antonio Celso Ribeiro,<br />
Rogério Vieira, Bruno Drumond Afi, Avelar Junior,<br />
Marcus Viana, Marco Antonio Guimarães com grupo<br />
Uakti e Ione Medeiros dirigindo a Officina<br />
Multimédia. O compositor Ernst Widmer durante<br />
a realização do V e VI Ciclos, teve uma atuação<br />
importante na consolidação do evento escrevendo<br />
uma série de artigos e críticas para os jornais de Belo<br />
Horizonte, assim como notas para o programa<br />
do VI Ciclo onde declara: “Ai de nós se as escolas<br />
de arte relegarem a criação ao segundo plano. Daí<br />
a importância do Ciclo. Traz lufadas novas, oxigênio,<br />
debate para valer e à flor da pele”. No entanto essa<br />
predisposição ao debate e à polêmica não foi muito<br />
bem recebida ou entendida por um grupo de músicos<br />
de Belo Horizonte, ligados à Fundação de Educação<br />
Artística e à Escola de Música da Universidade Federal<br />
de Minas Gerais, que assumiram a coordenação<br />
do evento em 1990. O Ciclo quase correu o risco de se<br />
tornar mais um evento ligado à vida acadêmica dessas<br />
instituições. Por negociação do criador do evento,<br />
Paulo Álvares, os Ciclos continuaram a ser realizados<br />
pelo Núcleo de Música Contemporânea de Belo<br />
Horizonte, agora desvinculado da Fundação<br />
de Educação Artística. Uma importante iniciativa<br />
realizada pelo Ciclo de Música Contemporânea<br />
de Belo Horizonte foi a realização em 1991 do<br />
Encontro Nacional dos Organizadores de Eventos para<br />
Divulgação da Música Nova que teve a intenção de<br />
sincronizar as atividades de programação entre todos<br />
os festivais que ocorriam na época, com o objetivo<br />
de criar um circuito musical nacional. Desse encontro<br />
participaram: Conrado Silva e Gilberto Mendes<br />
(Festival Música Nova), Cristina Caparelli Gerling<br />
e Fred Gerling (UFRS), Jamary Oliveira e Piero<br />
Bastianelli (Encontro de Compositores da Bahia), João<br />
Guilherme Ripper e Ricardo Tacuchian (Panorama<br />
da Música Brasileira ) e José Augusto Mannis do<br />
Centro de Documentação de Música Contemporânea<br />
da Unicamp. O Ciclo também foi responsável pela<br />
execução de obras raramente executadas no país<br />
dos compositores Edgard Varèse (Octandre, Offrandes<br />
e Hyperprism), Stockhausen, Luciano Berio, Leos<br />
Janácek, Radulesco, Maurizio Kagel, Nancarrow, entre<br />
outros. Uma versão realizada a partir dos fragmentos<br />
deixados por Debussy da ópera La Chute de La Maison<br />
Usher foi estreada no IV Ciclo em 1987. Em 1995<br />
e 1996 o Ciclo passou a ser realizado com o apoio<br />
da Fundação Clóvis Salgado no Palácio das Artes<br />
dentro do Festival Articulações. Pela primeira<br />
e única vez tomou parte da programação a Orquestra<br />
Sinfônica de Minas Gerais sob regência de Henrique<br />
Morelenbaum.<br />
ENCOMPOR – ENCONTRO DE COMPOSITORES<br />
LATINO-AMERICANO (1987 –2001)<br />
O Encontro de Compositores Latino-Americanos foi<br />
o mais importante evento realizado na região sul<br />
do Brasil, em Porto Alegre, capital do Estado do Rio<br />
Grande do Sul. De certa forma foi a concretização<br />
das idéias de dois grandes compositores gaúchos muito<br />
atuantes e que formaram toda uma geração de novos<br />
criadores: Bruno Kiefer e Armando Albuquerque. Já<br />
no início da década de 60 eram realizados na capital<br />
gaúcha os Seminários Livres de Música (SELIM),<br />
compostos de painéis, conferências e concertos com a<br />
participação dos dois compositores mencionados, e que<br />
contou com o importante incentivo do crítico literário<br />
Carlos Jorge Appel, ligado à Universidade Federal do<br />
Rio Grande do Sul. Nesses encontros eram discutidas<br />
e divulgadas as inovações musicais recentes que<br />
chegavam da Europa. Quando Appell assumiu<br />
o Conselho Estadual de Desenvolvimento <strong>Cultural</strong><br />
do Rio Grande do Sul em 1988, começou a esboçar<br />
o projeto do Encompor com a participação de pessoas<br />
127
128<br />
ligadas à vida musical de Porto Alegre. Coube a Hélvia<br />
Miotto Juchen, ligada ao Instituto Estadual de Música,<br />
ser a primeira coordenadora desse evento e sua<br />
participação se estendeu até o ano de 1998.<br />
A programação dos festivais constava de concertos,<br />
painéis e debates visando o estudo e a divulgação<br />
da produção de compositores locais, fortalecer<br />
o intercâmbio entre compositores e intérpretes<br />
e democraticamente garantir um espaço para as mais<br />
diversas tendências da linguagem musical<br />
contemporânea. Em cada ano o evento escolhia um<br />
Programa do 33º Festival Música Nova realizado<br />
no Itaú <strong>Cultural</strong> em São Paulo, 1997.<br />
compositor para ser homenageado, sendo que<br />
no primeiro o destaque foi Armando Albuquerque.<br />
Esse primeiro evento, realizado em setembro de 1988<br />
contou também com a importante participação de dois<br />
outros compositores da região sul do Brasil: Henrique<br />
de Curitiba e Padre Penalva. Nos painéis que<br />
discutiram a formação dos compositores<br />
contemporâneos, seu papel na educação musical<br />
e a identidade da música brasileira tomaram parte os<br />
compositores Flávio de Oliveira, José Alberto Kaplan,<br />
Ernst Widmer, Henrique Morozowicz e Edino Krieger.<br />
A orquestra Sinfônica de Porto Alegre encerrou<br />
a programação do evento tocando obras de Armando<br />
Albuquerque, Padre José Maurício, Lorenzo Fernandes,<br />
Bruno Kiefer, Oswaldo Lacerda, Francisco Mignone,<br />
Villa-Lobos e Paulo Moura. No II Encompor, realizado<br />
em 1989, o espaço de divulgação e intercâmbio foi<br />
estendido a outros países latino-americanos do cone sul<br />
tais como Argentina e Uruguai. O homenageado foi<br />
Bruno Kiefer. O III Encompor só foi realizado em<br />
1990 e convidou compositores de outros estados<br />
brasileiros além dos compositores latino americanos.<br />
Para homenagear Ernst Widmer, que veio a falecer<br />
meses antes do evento se realizar, participou do evento<br />
o Bahia Ensemble que apresentou obras de sua autoria.<br />
Devido às mudanças de governo e alteração<br />
das políticas culturais dos órgãos gerenciadores das<br />
atividades culturais do Estado, o festival foi<br />
interrompido por quatro anos. As atividades foram<br />
retomadas com a volta de Carlos Jorge Appel ao cargo<br />
de Secretário da Cultura do Rio Grande do Sul e em<br />
1997 foi realizado o IV Encompor, que contou também<br />
com a participação do Instituto Goethe de Porto<br />
Alegre, graças ao interesse de seu diretor Hartmut<br />
Becher e da equipe da Discoteca Pública Natho Henn.<br />
A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA)<br />
participou do evento cuja programação constava de<br />
cinco concertos, dois painéis e duas conferências. Os<br />
compositores gaúchos Celso Loureiro Chaves, Antonio
Carlos Cunha Borges, James Correa e Flávio de<br />
Oliveira também tiveram uma participação mais ativa<br />
na realização do evento, que contou ainda com<br />
a presença de Graziela Paraskevaidis, do Uruguai. Esse<br />
evento ficou marcado pelo embate que ocorreu<br />
durante os ensaios entre os integrantes da OSPA e do<br />
regente convidado J. H. Kollreutter que estava sendo<br />
homenageado no encontro. Em 1996 o V Encompor<br />
criou uma comissão encarregada da direção artística<br />
e produção formada pelos compositores Antonio<br />
Carlos Borges da Cunha, Celso Loureiro Chaves,<br />
Flávio de Oliveira, Liane Hentschke e do<br />
percussionista Ney Rosauro. O homenageado dessa<br />
edição do encontro foi o compositor Edino Krieger,<br />
grande incentivador da realização do evento.<br />
O <strong>Departamento</strong> de Música da Universidade Federal<br />
do Rio Grande do Sul teve uma participação efetiva.<br />
O Compositor Antonio Carlos Borges Cunha<br />
idealizou e dirigiu o Ensemble Cantus Firmus, conjunto<br />
criado como resultado da efetiva ebulição das<br />
atividades musicais contemporâneas na cidade.<br />
O VI Encompor foi realizado em 1998. No concerto<br />
de abertura foram executadas obras de todos<br />
os compositores homenageados nos eventos anteriores,<br />
incluindo na programação obras da compositora<br />
carioca Esther Scliar, destaque do encontro.<br />
Participaram também o Amazônia Jazz Ensemble<br />
e o Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Obras<br />
de compositores consagrados como Ligeti e Xenakis<br />
constaram ao lado de outras de compositores<br />
brasileiros e latino americanos, tais como: Ney<br />
Rosauro, Almeida Prado, Sergio Igor Schnee, Ricardo<br />
Tacuchian, Antonio Carlos Costa, Iuri Correa, Antonio<br />
Carlos Cunha Borges, João Guilherme Ripper,<br />
Fernando Cerqueira, Dimitri Cervo, Dante Grella,<br />
Caio Senna, Celso Mojola, Felipe Adami, Leonardo<br />
Boff, Thiago Holl Curi, Arthur Barbosa, Celso Loureiro<br />
Chaves, James Correa, Fernando Mattos, Christian<br />
Benvenutti, Edson Zampronha, entre outros. O evento<br />
teve ainda a participação do George Crumb Trio<br />
interpretando obras de Guilherme Bauer e Harry<br />
Crowl. O grupo Ex-Machina, formado pelos jovens<br />
compositores Yanto Laitano, Antônio Nunes,<br />
Alexandre Birnfeld, Martinêz Nunes e Adolfo Almeida,<br />
apresentou obras de uma nova vertente da criação<br />
musical local, integrando recursos eletroacústicos aos<br />
instrumentos tradicionais, eletrodomésticos e recursos<br />
cênico-musicais. O VII Encompor foi realizado<br />
em 2001 com a coordenação dos compositores Flávio<br />
de Oliveira e Ricardo Mitidieri e homenageou<br />
o compositor Walter Schultz Porto Alegre. Participaram<br />
59 compositores de todo o Brasil e da América Latina.<br />
As notas de programa são assinadas por Ricardo<br />
Mitidieri: “ (...) o Encompor prossegue desempenhando<br />
o importante papel de dar visibilidade a uma atividade<br />
artística que definitivamente não está integrada ao<br />
‘mercado’. Por essa razão, o evento parece ser índice de<br />
um critério alternativo ou, ao menos, contraposto a<br />
critérios que levam à instrumentalização da cultura<br />
artística como, por exemplo, o critério econômico único<br />
vigente”. Um próximo evento está previsto para 2005.<br />
Finalizando, agradeço a todos que me forneceram<br />
importantes informações e documentos que<br />
muito ajudaram na elaboração do artigo: Edino<br />
Krieger (Festivais da Guanabara e Bienais),<br />
Piero Bastianelli, Paulo Costa Lima, Wellington Gomes<br />
(Encontro de Compositores da Bahia),<br />
Antonio Eduardo Santos (Festival Música Nova),<br />
Hélvia Miotto Juchen, Ricardo Mitidieri<br />
e Antonio Carlos Cunha (Encompor).<br />
EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES<br />
Compositor e organizador de vários eventos para divulgação da música contemporânea. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes em<br />
Belo Horizonte e coordenador musical da Orquestra Sinfônica da Rádio e TV Cultura de São Paulo.<br />
129
130<br />
Pluralidade<br />
Estética<br />
PRODUÇÃO MUSICAL<br />
<strong>ERUDITA</strong> NO BRASIL<br />
A PARTIR DE 1980<br />
HARRY CROWL
Adécada de 80 marcou o início de uma fase de<br />
profundas transformações na música erudita brasileira<br />
que ainda se encontram em pleno desenvolvimento.<br />
Neste momento em que surge toda uma nova<br />
geração de compositores, encontramos ainda alguns<br />
dos mais importantes nomes da música erudita<br />
brasileira deste século no auge de suas produções.<br />
Outros que foram radicais transformadores nos anos<br />
60 e 70 praticamente abandonam a composição<br />
na década de 80. Os históricos nomes de Francisco<br />
Mignone (1897-1986), Camargo Guarnieri (1907-1993),<br />
Cláudio Santoro (1919-1989), Guerra-Peixe (1914-1993)<br />
e Radamés Gnattali (1907-1988) estão associados a uma<br />
produção musical viva e fiel a seus credos.<br />
As vanguardas que tanto combateram as estéticas<br />
destes compositores nas décadas anteriores, depuseram<br />
as armas diante da convicção e reputação dos decanos.<br />
Isto não quer dizer que estes compositores mais velhos<br />
escrevessem dentro de uma mesma estética, mas que<br />
todos eles continuavam a produzir incessantemente,<br />
ao contrário dos mais novos.<br />
Guerra Peixe e Camargo Guarnieri foram também<br />
importantes mestres e deixaram uma quantidade<br />
grande de discípulos. Dos de Guarnieri, podemos<br />
destacar Osvaldo Lacerda (1927), Sérgio Vasconcelos<br />
Correia (1934) e Almeida Prado (1943). Lacerda<br />
é muito prolífico. Mantendo-se fiel aos cânones<br />
nacionalistas, goza ainda de algum prestígio<br />
especialmente nas escolas de música. A obra de Sérgio<br />
Vasconcelos Correia demonstra algumas tentativas<br />
de avanço sobre terrenos mais ousados, como podemos<br />
perceber na composição Potyron (1970), para piano<br />
e percussão. De Guerra-Peixe, talvez os discípulos mais<br />
importantes tenham sido Guilherme Bauer e Ernani<br />
Aguiar, dos quais falaremos mais adiante.<br />
De todos os compositores acima mencionados,<br />
nenhum foi mais prolífico, intenso e atuante que<br />
Cláudio Santoro. Porém, sua obra tem sido muito mais<br />
tocada na Europa que no Brasil. De qualquer maneira,<br />
ele teve um papel importante dentro da Universidade<br />
de Brasília e no desenvolvimento da vida musical<br />
daquela cidade.<br />
As universidades públicas têm sido o espaço que,<br />
de fato, permaneceu aberto à criação musical no Brasil<br />
nestes últimos decênios. Nestas, onde quase todos os<br />
compositores lecionaram ou ainda lecionam, é que<br />
surgiram alguns grupos camerísticos esporádicos<br />
ou mesmo alguns intérpretes de alto nível interessados<br />
na produção erudita nacional. Surgem, também, vários<br />
festivais de música contemporânea em várias regiões<br />
do Brasil. Percebe-se uma clara expansão da atividade.<br />
Rio e São Paulo deixam de ser redutos exclusivos.<br />
Outras capitais, como Salvador, Belo Horizonte,<br />
Brasília, Porto Alegre e Curitiba, começam a se impor<br />
como centros alternativos de referência a partir de suas<br />
universidades federais na década de 80. Muitos dos<br />
“vanguardistas” das décadas de 60 e 70, como Aylton<br />
Escobar, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat,<br />
Damiano Cozzella, Luís Carlos Vinholes e Jaceguay<br />
Lins, entre outros, diminuirão ou cessarão suas<br />
produções. Alguns por insatisfação com a pouca<br />
qualidade do meio musical brasileiro, outros por opção<br />
política, e outros ainda, por desacordo com<br />
os caminhos estéticos da atualidade. O movimento<br />
de ruptura mais conseqüente que aconteceu<br />
na segunda metade do séc.XX no Brasil foi, sem<br />
dúvida, o “Manifesto Música Nova”, assinado em São<br />
Paulo em 1962 por vários músicos e intelectuais, entre<br />
eles Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio<br />
Pignatari, Damiano Cozzella, Gilberto Mendes (1922),<br />
Willy Correa de Oliveira (1938) e Rogério Duprat.<br />
Dos compositores deste grupo apenas Gilberto Mendes<br />
e Willy Correa de Oliveira destacaram-se como<br />
criadores eruditos de maior amplitude. Ambos<br />
estiveram ligados à Universidade de São Paulo.<br />
Os compositores deste grupo foram freqüentadores dos<br />
festivais de Darmstadt e Donaueschingen, na<br />
Alemanha, na década de 60. Conviveram com Boulez,<br />
Stockhausen, Nono, Ligeti e, principalmente, com John<br />
Cage. Foi seguindo, em parte, as idéias deste último<br />
compositor que desenvolveram um discurso de ruptura<br />
com o nacionalismo estanque e posicionaram-se numa<br />
“vanguarda” independente. Deste grupo, somente<br />
Gilberto Mendes continuaria na ativa, não somente<br />
produzindo, mas também dirigindo o festival de<br />
música contemporânea mais antigo do país, o “Festival<br />
Música Nova de Santos”, sua cidade natal. Sua música<br />
é permeada por um humor muito crítico. Vários<br />
131
132<br />
elementos da sociedade de consumo são destilados<br />
pelo compositor, especialmente os “jingles” comerciais.<br />
Um compositor relativamente independente desta<br />
geração em São Paulo é Mário Ficarelli (1937).<br />
Também professor da USP, Ficarelli é autor de uma<br />
obra não muito extensa, porém de forte expressão.<br />
Uma das composições de maior impacto da década<br />
de 80 foi sua obra Transfigurationis, de 81. É autor de 3<br />
sinfonias onde podemos perceber uma preferência<br />
pelos modelos sinfônicos do finlandês Jean Sibelius.<br />
Outro compositor paulista ativo também desde<br />
a década de 70 é José Antônio de Almeida Prado<br />
(1943). Durante grande parte de sua vida esteve<br />
vinculado ao departamento de música da Universidade<br />
de Campinas. Este compositor foi um dos primeiros<br />
brasileiros desta geração a conseguir uma reputação<br />
internacional permanente. Sua música foi muito<br />
influenciada por seus mestres Olivier Messiaen<br />
e Camargo Guarnieri. Sua produção é gigantesca,<br />
incluindo mais de 500 obras para piano solo além<br />
de música de câmera, orquestral, vocal e dramática.<br />
Voltando ao Rio e à Escola de Música da UFRJ,<br />
Ronaldo Miranda (1948), Ricardo Tacuchian (1939),<br />
David Korenchendler (1948) e Marisa Resende (1944)<br />
são os principais nomes de compositores desta geração<br />
que atingem a maturidade nos anos 80. Todos com<br />
formação acadêmica muito semelhante. Tacuchian<br />
e Marisa Resende realizaram cursos de doutoramento<br />
nos EUA. Ronaldo Miranda, que na década de 70<br />
escreveu obras experimentais de grande importância,<br />
como Trajetórias, para soprano e conjunto de câmera,<br />
vem se expressando num discurso acadêmico<br />
intencional. Da década de 80 para cá, sua linguagem<br />
tornou-se mais acessível e romântica. No caso de David<br />
Korenchendler, encontramos uma inquietação que<br />
oscila entre este romantismo tradicional alemão e um<br />
uso mais livre da linguagem. Há neste compositor uma<br />
atração pelo jazz, pela música de Erik Satie e por<br />
elementos da cultura judaica. Toda sua obra apresenta<br />
uma construção formal precisa, muito embora ele não<br />
se preocupe com qualquer fidelidade estilística. De sua<br />
intensa e constante produção destacamos a Sinfonia<br />
de nº 3 Salmos – Tehilim, para coro, solistas, 2 violões<br />
e pequena orquestra. Ricardo Tacuchian qualifica sua<br />
música de pós-moderna. Há também em sua obra,<br />
uma questão ideológica. Não são raras as criações que<br />
denunciam a miséria e as desigualdades sociais. De sua<br />
produção mais recente destacamos a Cantata de Natal,<br />
Hayastan e Terra Aberta, sobre poema de D. Pedro<br />
Casaldáliga. Este compositor desenvolveu uma técnica<br />
própria a qual denominou de sistema “T”.<br />
Marisa Resende desenvolveu um intenso trabalho<br />
junto à pós-graduação em composição na UFRJ,<br />
revelando uma série de jovens compositores.<br />
Sua obra é pequena e não se prende a qualquer<br />
tendência estética pré-determinada.<br />
Cidade com um maior número de instituições<br />
de nível superior com cursos de música no país<br />
e de instituições estatais dedicadas à música,<br />
o Rio de Janeiro tem atraído um grande número<br />
de profissionais da música através dos tempos.<br />
Outros compositores, de certa maneira<br />
independentes desta geração que lá atuam, são Edino<br />
Krieger (1928), Ernani Aguiar (1950), Guilherme Bauer<br />
(1940) e os polêmicos H. J. Koellreutter (1917-2005)<br />
e Marlos Nobre (1939).<br />
Edino Krieger, catarinense de origem, é decano<br />
dos compositores atuantes no Rio. Dividiu sua carreira<br />
de compositor com a de administrador. Durante vários<br />
anos foi diretor de Música da FUNARTE. Sua carreira<br />
criativa, em muitos momentos ficou em segundo plano.<br />
Muitas de suas obras mais recentes causam-nos<br />
a impressão de que foram escritas muito rapidamente.<br />
O compositor oscilou entre vários estilos durante sua<br />
longa trajetória. Podemos destacar de sua produção<br />
recente as obras Sonâncias II (1981), para violino<br />
e piano; Três Imagens de Nova Friburgo (1988), para<br />
orquestra de cordas e cravo; e Te Deum Puerorum<br />
Brasiliae (1997), para coro infantil, coro juvenil, coro<br />
gregoriano, orquestra de metais e percussão.<br />
Atualmente, é presidente da Academia Brasileira<br />
de Música e Diretor do Museu da Imagem e do Som<br />
do Rio de Janeiro.<br />
Outro compositor que ainda segue uma linha<br />
nacionalista neoclássica é Ernani Aguiar. Discípulo de<br />
Guerra-Peixe, tem uma produção já bem vasta. Escreve<br />
numa linguagem neoclássica simples e direta, o que faz<br />
com que sua música seja freqüentemente executada
Guilherme Bauer ao lado do quadro inspirado na obra<br />
do compositor e intitulado Trêmolo, de Ana Maria Bauer.<br />
Acrílico sobre tela.<br />
COLEÇÃO PARTICULAR – GUILHERME BAUER<br />
em várias partes do país e do exterior.<br />
O mais importante discípulo de Guerra-Peixe<br />
é Guilherme Bauer. De produção reduzida e muito<br />
conseqüente, Bauer já foi premiado em vários<br />
concursos. Vem desenvolvendo um estilo próprio<br />
a partir de uma sintaxe derivada de uma estética<br />
nacionalista. Sua música instrumental é concisa<br />
e equilibrada. Nos últimos 20 anos, escreveu, entre<br />
outras obras, 2 quartetos de cordas (1983 e 1997), um<br />
trio para violino, violoncelo e piano (1980), Cadências<br />
(1982) para violino e orquestra, as Sugestões de Inúbias<br />
para 2 flautas (1991), Reflexos (1999) para flauta,<br />
violoncelo e piano, e Partita Brasileira (1994/2001) para<br />
violino solo. Foi recentemente produtor artístico de<br />
duas importantes séries de concertos e gravações<br />
em CD de música brasileira: o selo “RioArte Digital”<br />
e a série “Estréias Brasileiras”.<br />
Marlos Nobre já esteve muito em voga junto<br />
às várias entidades musicais do país e no exterior,<br />
tendo inclusive presidido algumas delas. Seu prestígio,<br />
no entanto, vem diminuindo nos últimos anos.<br />
Ele tem tido obras encomendadas por algumas<br />
entidades internacionais.<br />
Hans Joachim Koellreutter, por sua vez,<br />
desempenhou um importante trabalho pedagógico<br />
em várias regiões do país. Se por um lado, ele foi<br />
responsável pela iniciação de vários jovens músicos nos<br />
“mistérios” da música do século XX, por outro, suas<br />
idéias, vistas como muito originais pelos seus<br />
seguidores, são muitas vezes compilações de vários<br />
autores e compositores daquele século. Este músico<br />
alemão, radicado no Brasil há mais de meio século, já<br />
esteve no centro de várias polêmicas. Na década de 50,<br />
foi alvo de ataques violentos por parte de compositores<br />
nacionalistas conservadores, liderados por Camargo<br />
Guarnieri. Esteve fora do Brasil por um longo período<br />
(1962/75), quando viveu na Índia e no Japão, a serviço<br />
do governo alemão. Figura carismática numa época<br />
onde os debates apaixonantes já perdiam lugar, fez-se<br />
“mestre” de muitos já sedentos por alguma informação<br />
do mundo exterior. Havia uma razão óbvia para isto:<br />
a grande maioria dos velhos compositores não era de<br />
grandes erudições acadêmicas. Quase todos vinham<br />
de uma formação de instrumentistas nos padrões<br />
oitocentistas. Muitos viam com insegurança as<br />
mudanças recentes que vinham do exterior. Pensar<br />
a música como conceito cultural, ou algo diferente<br />
de fazer instrumentos tocarem ou vozes cantarem, era<br />
talvez uma coisa por demais abstrata para aqueles que<br />
estavam preocupados somente em fazer uma arte que<br />
pudesse ser identificada com a sua origem nacional.<br />
Neste aspecto, a figura de Koellreutter foi fundamental<br />
para aqueles que não tinham tido a oportunidade<br />
de sair do país para estudar, ou simplesmente ver<br />
diferentes maneiras de pensar.<br />
Poucos compositores brasileiros têm conseguido<br />
um maior destaque internacional. Jorge Antunes (1942)<br />
talvez seja aquele que mais tenha tido oportunidades<br />
fora do país nos últimos anos. Atuante em Brasília,<br />
onde foi professor da UnB, e natural do Rio, Jorge<br />
Antunes obteve sua formação tanto na área da física<br />
quanto da música. Foi o primeiro compositor brasileiro<br />
a dedicar-se mais intensamente à música eletroacústica.<br />
Suas obras seguem uma linha mais livre. É um<br />
compositor coerente do ponto de vista da sintaxe<br />
133
134<br />
musical e sempre defendeu o uso de uma notação<br />
especial para a música nova. Esta defesa está baseada<br />
em uma corrente internacional muito em voga nos<br />
anos 70.<br />
Amaral Vieira (1952) é um compositor e pianista<br />
atuante em São Paulo. Sua música apresenta uma<br />
linguagem de negação de todas as estéticas do séc. XX,<br />
muito apreciada em círculos mais conservadores. Foi<br />
presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />
Contemporânea até 2002. Situação semelhante é a do<br />
compositor carioca João Guilherme Ripper (1959), que<br />
foi Diretor da Escola de Música da UFRJ até 2004.<br />
Jocy de Oliveira (1936), natural de Curitiba, vive<br />
no Rio e tem sido uma grande divulgadora da música<br />
contemporânea no Brasil. Exímia pianista, gravou todo<br />
o “Catalogue des Oiseaux”, de Messiaen, com<br />
a aprovação do compositor. Como criadora, sua música<br />
tem um forte apelo cênico. Já produziu algumas<br />
“óperas” onde elementos improvisatórios se misturam<br />
a sons eletrônicos. Sua produção é uma demonstração<br />
de que não é o conservadorismo acadêmico que atrai<br />
o público. O período em questão também apresenta<br />
uma novidade histórica importante: a descentralização<br />
definitiva da produção musical. Embora Rio de Janeiro<br />
e São Paulo continuem a ser as cidades mais<br />
importantes do país, outros centros vão despontando<br />
gradualmente. Em Salvador, desde finais da década<br />
de 50, há um movimento renovador ligado à arte<br />
contemporânea e às raízes afro-brasileiras. A partir<br />
de 1969, quando aconteceu o 1º Festival de Música<br />
da Guanabara, um grupo de compositores baianos<br />
chamava a atenção. Eles pareciam ter conseguido fazer<br />
uma conciliação entre a cultura popular baiana<br />
e a música contemporânea de tradição ocidental.<br />
Nos últimos 20 anos, este grupo diminuiu muito sua<br />
produção e parece ter perdido a capacidade de<br />
renovação. Os compositores mais importantes deste<br />
movimento foram o suiço-brasileiro Ernst Widmer<br />
(1927-1990) e Lindembergue Cardoso (1938-1989).<br />
Widmer foi o iniciador de tudo. Foi o mestre. Chegou<br />
à Bahia com menos de 30 anos e envolveu-se com um<br />
mundo colorido e sincrético. Sua produção foi enorme<br />
e ininterrupta. Inicialmente, procurou fundir elementos<br />
onde predominava de uma certa forma a linguagem do<br />
Harry-Crowl. Aethra III. Goldberg Edições Musicais. Porto Alegre, 2001.<br />
COLEÇÃO PARTICULAR – HARRY CROWL<br />
compositor alemão Paul Hindemith com<br />
a aleatoriedade controlada da escola Polonesa dos anos<br />
60. Posteriormente, seu estilo foi transformando-se em<br />
dois gêneros bem diferenciados. Em suas 3 sinfonias,<br />
utilizou material folclórico abundante da região do rio<br />
São Francisco, no interior da Bahia. Sua última<br />
composição foi uma ópera sobre Aleijadinho, que<br />
estava escrevendo para a Bolsa de Criação VITAE,<br />
de São Paulo. Infelizmente, faleceu precocemente<br />
numa viagem à sua terra natal, a Suíça, onde fora tratar<br />
da criação da Fundação Ernst Widmer, que continua<br />
a divulgar sua obra. Com isto, a ópera ficou incompleta<br />
faltando o terceiro ato. O discípulo mais notável de<br />
Widmer foi, sem dúvida, Lindembergue Cardoso. Este<br />
compositor tinha uma incrível facilidade para escrever<br />
música. Fazia-o em qualquer lugar e a qualquer<br />
momento. Estava sempre querendo terminar alguma<br />
coisa para começar outra. Nas décadas anteriores<br />
escreveu obras notáveis como A Procissão das<br />
Carpideiras, de 69, para vozes femininas e orquestra,<br />
Reflexões II, de 74, para orquestra, Sedimentos, de 72,
para quarteto de cordas e Réquiem para o Sol, de 76,<br />
para conjunto de câmera. Fernando Cerqueira (1941)<br />
é também um importante compositor do grupo baiano.<br />
Sua obra, bem menos numerosa que a de<br />
Lindembergue Cardoso, foi num período mais<br />
profunda e refletida. Em 1970, sua Heterofonia do Tempo<br />
ganhou um prêmio do Festival da Guanabara.<br />
Na década de 70 produziu obras significativas como<br />
Quanta e Parábola. Sua obra de maior impacto nos anos<br />
80 foi a peça Expressões Cibernéticas, para soprano<br />
e conjunto de percussão, sobre textos de Haroldo<br />
e Augusto de Campos.<br />
Dois jovens compositores baianos vêm se<br />
destacando apesar da diminuição da atividade musical<br />
erudita no estado. São eles Paulo Costa Lima (1954)<br />
e Wellington Gomes (1960). Ambos vêm tentando<br />
achar um caminho que contemple uma retórica<br />
musical onde o sincretismo cultural e uma sólida<br />
técnica composicional estejam presentes. A peça<br />
Übábá, o que diria Bach, para orquestra de câmera,<br />
é um ótimo exemplo de sua linguagem. Wellington<br />
Gomes vem se afirmando como um dos mais<br />
importantes compositores da geração que surge nos<br />
anos 80. Sua Fantasia para violoncelo e orquestra<br />
de câmara, de 1992, é uma peça que demonstra uma<br />
técnica refinada. Todos estes compositores estão<br />
ou estiveram ligados ao departamento de música<br />
da UFBA, onde são professores de carreira.<br />
Situação diferente ocorre no Rio Grande do Sul.<br />
Este estado é o único além de São Paulo, que possui<br />
mais de um centro produtor de música de concerto.<br />
Além da capital Porto Alegre, que conta com uma boa<br />
orquestra sinfônica para os padrões brasileiros e mais<br />
4 orquestras de cordas, Santa Maria mantém uma boa<br />
universidade com um importante departamento de<br />
música. Além das duas universidades federais (UFRGS<br />
e UFSM), há no Rio Grande do Sul uma tradição<br />
musical recente bem mais forte que na maioria dos<br />
estados brasileiros. Alguns importantes compositores<br />
brasileiros eram originários do Rio Grande. O mais<br />
famoso sem dúvida, foi Radamés Gnattali. Outros<br />
preferiram continuar atuando no estado como foi<br />
o caso de Armando Albuquerque (1901-1986) e Bruno<br />
Kiefer (1923-1987). Armando Albuquerque foi um<br />
compositor muito original e produziu algumas obras<br />
muito curiosas por suas influências do jazz e da música<br />
de Erik Satie, na década de 20. Sua produção foi muito<br />
reduzida e ficou basicamente confinada ao piano, com<br />
poucos vôos noutros gêneros. Foi um professor<br />
e produtor de rádio muito atuante. Já Bruno Kiefer foi<br />
autor de vasta e variada obra. Interessou-se pelo<br />
dodecafonismo de Schönberg e foi praticamente<br />
autodidata. Era também formado em Física. Às vezes<br />
compunha num estilo quase nacionalista,<br />
eventualmente tentando incorporar elementos da<br />
técnica dos 12 sons. Foi professor de composição<br />
da UFRGS. Alguns compositores gaúchos mais jovens<br />
vêm se destacando no cenário nacional e internacional.<br />
Frederico Richter (1932), que adotou o apelido<br />
de “Frerídio”, é um compositor também muito ativo,<br />
tendo escrito música eletroacústica, instrumental<br />
e vocal de toda espécie. Recentemente, aposentou-se<br />
da Universidade de Santa Maria, onde foi professor<br />
e criador da Orquestra Sinfônica. Com uma formação<br />
realizada na Universidade MacGill, no Canadá, sua<br />
obra não se prende a qualquer estilo definido, sendo<br />
ora tonal ora atonal.<br />
Ainda no sul do Brasil, o Paraná vem também<br />
se destacando no cenário nacional, porém numa<br />
proporção muito mais modesta que o Rio Grande<br />
do Sul. Os compositores decanos de Curitiba são<br />
Henrique de Curitiba (Morozowicz) (1934), atualmente<br />
residente em Londrina, e Padre José Penalva (1924-<br />
2002). Henrique tem uma produção pequena. A quase<br />
totalidade de sua produção é tonal dentro do espírito<br />
da chamada “nova simplicidade”. Estudou na Polônia,<br />
terra de seus antepassados e nos EUA, com o tcheco<br />
Karel Husa. Por outro lado, Pe. Penalva foi um dos<br />
mais refinados e sofisticados compositores brasileiros<br />
atuais, especialmente no que diz respeito à música<br />
coral e de inspiração religiosa católica tradicional.<br />
A maior parte de sua produção constitui-se de obras<br />
para coro a capella e obras vocais-sinfônicas.<br />
Os oratórios Ágape I, Salmo 90, Os quatro Cavaleiros<br />
do Apocalipse e Ágape II são algumas das melhores obras<br />
no gênero produzidas no Brasil nos últimos tempos.<br />
Outra capital que teve uma quase inigualável<br />
atividade de música contemporânea nas décadas de 80<br />
135
e 90, especificamente até 96, foi Belo Horizonte, capital<br />
de Minas Gerais. Dos compositores que passaram por<br />
lá, o único que obteve um certo destaque nacional foi<br />
Eduardo Guimarães Álvares (1959). Hoje radicado em<br />
São Paulo, continua seu trabalho voltado para música<br />
vocal e teatro musical. Sua obra apresenta<br />
características muito originais, sempre com um toque<br />
humorístico. O ciclo de canções Pétala Petulância, de<br />
1990, foi composto especialmente para o “Grupo Novo<br />
Horizonte de São Paulo”. Concluiu em 2004 a ópera<br />
O Enigma de Caim, com o apoio da bolsa VITAE, sobre<br />
libreto do dramaturgo Luís Fernando Ramos, professor<br />
da ECA/USP.<br />
Dois outros compositores, com expressão nacional,<br />
também se radicaram em<br />
BH, Rufo Herrera (1935),<br />
argentino que atuou junto<br />
ao grupo da Bahia, e o<br />
também argentino, Eduardo<br />
Bértola (1939-1996). Rufo<br />
Herrera, que foi<br />
originalmente músico<br />
popular, escreveu vários<br />
espetáculos de multimeios,<br />
inclusive a ópera Balada<br />
para Matraga, inspirada em<br />
Roberto Victorio.<br />
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – Guimarães Rosa.<br />
DIVISÃO DE <strong>MÚSICA</strong> E ARQUIVO SONORO<br />
Em 1989, foi<br />
inaugurada em Campinas, na biblioteca central da<br />
UNICAMP, a sede latino-americana do “CDMC”<br />
(Centre de Documentation de la Musique<br />
Contemporaine). Dirigido pelo compositor José<br />
Augusto Mannis, este centro tem sido de grande<br />
utilidade para contatos e intercâmbios nacionais e<br />
internacionais. Seu diretor é um importante compositor<br />
de música eletroacústica e instrumental, embora a<br />
administração do centro não lhe deixe muito tempo<br />
para a criação.<br />
Quanto aos grupos, vale ressaltar três deles, todos<br />
de São Paulo. O “Duo Diálogos”, de percussão, o<br />
“PIAP”, orquestra de percussão do Instituto de Artes<br />
do Planalto (IAP/UNESP) e, finalmente, o “Grupo<br />
Novo Horizonte de São Paulo”, criado em 1989 pelo<br />
regente e musicólogo inglês Graham Griffiths. Apesar<br />
136<br />
de todos eles terem tido um excelente trabalho de<br />
divulgação de compositores brasileiros, o “Grupo Novo<br />
Horizonte” foi o responsável pelo estabelecimento<br />
de uma geração bem identificada de compositores.<br />
Os nomes de Roberto Victorio (1959), Sílvio Ferraz<br />
(1959), Harry Crowl (1958) e Edson Zampronha (1963)<br />
têm forte relação com este grupo, que gravou 4 Cds<br />
exclusivamente dedicados à música contemporânea<br />
brasileira da década de 90. Roberto Victório é carioca<br />
de origem. Sua formação como compositor<br />
é praticamente autodidata. Fez mestrado em<br />
composição na UFRJ, sob a orientação de Marisa<br />
Resende. Sua obra é fortemente caracterizada pelo uso<br />
de um acentuado pontilhismo e por uma certa<br />
inspiração mística. Atualmente, o compositor vive<br />
em Cuiabá, Mato Grosso, onde é professor<br />
da Universidade Federal. Além de ter praticamente<br />
inserido o seu estado de adoção no cenário musical<br />
brasileiro, tem realizado uma série de eventos<br />
utilizando as características da região, como<br />
as grutas, os instrumentos regionais e as culturas<br />
indígenas. Paralelamente, criou um grupo<br />
de música contemporânea em Cuiabá, o “Grupo<br />
Sextante”, que tem apresentado além de suas<br />
obras, obras de seus alunos, os primeiros<br />
compositores mato-grossenses.<br />
Sílvio Ferraz é outro compositor independente com<br />
grande projeção inclusive internacional. Sua formação<br />
foi realizada na USP e mais tarde concluiu<br />
doutoramento no programa de Comunicação<br />
e Semiótica da PUC/SP. Seu estilo é na maioria das<br />
vezes bem transparente e original. Há um sutil trabalho<br />
de modulação e timbrístico que dá a esta música uma<br />
cor muito especial. Outro compositor de destaque do<br />
grupo de São Paulo é Edson Zampronha. Suas<br />
composições recentes consistem numa série de obras<br />
com o título de Modelagem. A produção de Zampronha<br />
é aliada a um intenso trabalho de pesquisa dos recursos<br />
sonoros e timbrísticos.<br />
Há ainda, evidentemente, uma série de outros<br />
compositores atuantes no Brasil, alguns certamente<br />
com mais destaque que outros. Porém, estes quatro<br />
compositores, Victorio, Ferraz, Crowl e Zampronha,<br />
têm se destacado pela busca de uma linguagem musical
independente e obtido um razoável reconhecimento<br />
no Brasil e no exterior em relação aos demais<br />
compositores de sua geração. Poderíamos citar ainda<br />
os nomes de Celso Mojola (1960), Flo Menezes (1962)<br />
em São Paulo, e de Luiz Carlos Csekö (1955) e Chico<br />
Mello (1957) no Rio.<br />
Flo(rivaldo) Menezes (Filho) estudou na USP, na<br />
Itália e na Alemanha. Sua música envolve processos<br />
computacionais e instrumentos acústicos. Promove<br />
anualmente um concurso internacional de música<br />
eletroacústica. Os outros compositores mencionados<br />
dedicam-se principalmente ao teatro musical. Há uma<br />
crescente produção de música eletroacústica por<br />
computador, especialmente entre compositores mais<br />
DISCOGRAFIA<br />
GILBERTO MENDES<br />
Qualquer Música<br />
Saudades do Parque Balneário Hotel<br />
Claro Clarone<br />
Ulysses em Copacabana<br />
Um Estudo?<br />
Longhorn Trio<br />
Motetos à Feição de Lobo de<br />
Mesquita<br />
The Sentimental Gentleman<br />
Revisited<br />
The Spectra Ensemble – Philip Rathé<br />
VOX TEMPORIS CD92 030 –<br />
Bélgica<br />
16 Peças para piano<br />
Für Annette<br />
Pour Eliane<br />
5 Prelúdios<br />
Terão Chebl, piano<br />
Rimsky<br />
Quarteto de Cordas da Cidade<br />
de São Paulo<br />
Lidia Bazarian, piano<br />
LAMI 003 – Brasil<br />
ERNST WIDMER<br />
A Última Flor<br />
Altenberg Trio<br />
VANGUARD CLASSICS 99135 –<br />
Holanda – 1996<br />
Marujadas, Reisado e Toada<br />
do Médio São Francisco<br />
Divertimento VI<br />
É Doce Morrer no Mar<br />
Concerto para Fagote, Orquestra<br />
de Cordas e Percussão<br />
Toadas dos Remeiros do Rio São<br />
Francisco<br />
Música para Orquestra de Câmara<br />
Regência: Eduardo Torres<br />
Cláudia Ribeiro Sales, fagote<br />
PAULUS 004512 – Brasil – 1999<br />
Ondina<br />
Bahia Ensemble<br />
PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />
E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />
Lindembergue Cardoso<br />
Soterofonia<br />
Minisuite<br />
O Vôo do Colibri<br />
Procissão das Carpideiras<br />
Oniçá-Orê<br />
Vários intérpretes<br />
PRÊMIO COPENE CULTURA<br />
E ARTE 2001, Salvador – Brasil<br />
Monódica<br />
Bahia Ensemble<br />
PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />
E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />
ALMEIDA PRADO<br />
Cartas Celestes I<br />
Luís Senise, piano<br />
O Rosário de Medjugorjie<br />
Elizabete Aparecida, piano<br />
Sonata nº 3 para Violino e Piano<br />
Constança Almeida Prado, violino<br />
Helenice Audi, piano<br />
ILUSTRARE MR0423 – Brasil<br />
Modinha nº 1<br />
Trem de Ferro<br />
A Minha Voz é Nobre<br />
jovens. Ainda são poucos os compositores que se<br />
dedicam somente a este gênero e que têm a mesma<br />
notoriedade daqueles envolvidos com os meios<br />
acústicos tradicionais. Podemos citar os nomes dos<br />
cariocas Rodolfo Caesar (1950) e Rodrigo Cichelli<br />
Veloso (1966) como os mais importantes nesse aspecto.<br />
Já Tim Rescala (1961), também carioca, atua<br />
intensamente na música eletroacústica, no teatro<br />
musical e também tem obtido grande visibilidade com<br />
seus trabalhos para a televisão e o teatro tradicional.<br />
Sua música quase sempre faz paródias do cotidiano.<br />
Tato Taborda (1960), que é curitibano e também atua no<br />
Rio de Janeiro, tem se dedicado igualmente tanto<br />
ao teatro musical quanto à música eletroacústica.<br />
Rosamor<br />
Lembranças do Coração<br />
Três Canções<br />
Três Episódios Animais<br />
Portrait de Nadia Boulanger<br />
Livro Brasileiro – II Caderno<br />
Victoria Kerbauy, soprano<br />
Almeida Prado, piano<br />
SPY ARTES DIGITAIS MS43-0700<br />
Maranduba<br />
Grupo de Percussão do Instituto<br />
de Artes da UNESP<br />
GRUPO PIAP 199.004.470 - Brasil<br />
Fantasia para Violino e Orquestra<br />
Constança Audi Almeida Prado,<br />
violino<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira.<br />
Regência, Roberto Tibiriçá<br />
RIOARTE DIGITAL 018 - Brasil<br />
Oré-Jacytatá, Cartas Celestes nº 8<br />
“O Céu da Bandeira Brasileira”<br />
Constança Audi Almeida Prado,<br />
violino<br />
Orquestra Sinfônica do Teatro<br />
Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />
Regência, Sílvio Barbato<br />
BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />
02 - Brasil<br />
MÁRIO FICARELLI<br />
Quinteto para Trompa e Quarteto<br />
de Cordas<br />
Quinteto para Oboé e Quarteto<br />
de Cordas<br />
Quinteto para Dois Violinos, Duas<br />
Violas e violoncelo<br />
André Ficarelli, trompa<br />
Alexandre Ficarelli, oboé<br />
Horácio Schaefer, viola<br />
Quarteto de Cordas da Cidade<br />
de São Paulo<br />
LAMI – 004 Brasil – 2004<br />
Tempestade Óssea<br />
Grupo de Percussão do Instituto<br />
de Artes da UNESP<br />
GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil<br />
MARLOS NOBRE<br />
In Memoriam<br />
Mosaico<br />
Convergências<br />
Biosfera<br />
O Canto Multiplicado<br />
Ukrinmakrinkrin<br />
Rythmetron<br />
Divertimento<br />
Concerto Breve<br />
Variações Rítmicas<br />
Música Nova Philharmonia<br />
Música Nova Ensemble<br />
Regência: Marlos Nobre<br />
Ensemble de Percussion de<br />
Geneve<br />
Ensemble Bartok<br />
Maria Lucia Godoy, soprano<br />
Amalia Bazan, soprano<br />
Luiz de Moura Castro, piano<br />
Marlos Nobre, piano<br />
LEMAN CLASSICS – LC44100/<br />
2CD set – Suíça<br />
RICARDO TACUCHIAN<br />
Terra Aberta<br />
137
138<br />
DISCOGRAFIA (continuação)<br />
Ruth Staerke, soprano<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira.<br />
Regência, Roberto Tibiriçá<br />
RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />
Estruturas Simbólicas<br />
Estruturas Gêmeas<br />
Estruturas Primitivas<br />
Estruturas Obstinadas<br />
Estruturas Verdes<br />
Estruturas Divergentes<br />
Vários Intérpretes<br />
RIOARTE DIGITAL 022 − Brasil<br />
RONALDO MIRANDA<br />
Suite Festiva<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Regência, Roberto Tibiriçá<br />
RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />
Tango<br />
Lúdica I<br />
Variações Sérias<br />
Três Canções Simples<br />
Prólogo, Discurso e Reflexão<br />
Trajetória<br />
Appassionata<br />
Alternâncias<br />
Vários intérpretes<br />
RIOARTE DIGITAL − 020 − Brasil<br />
Sinfonia 2000<br />
Orquestra Sinfônica do Teatro<br />
Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />
Regência, Sílvio Barbato<br />
BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01<br />
− 02 − Brasil<br />
EDINO KRIEGER<br />
Te Deum Puerorum Brasiliae<br />
Coro Infantil do Rio de Janeiro<br />
(mestre de coro: Elza Lakschevitz)<br />
Polifonia Carioca (mestre do<br />
coro: Eduardo Lakschevitz)<br />
Coro Gregoriano do Rio de<br />
Janeiro, direção: Dom Féliz Ferrá,<br />
Ordem de São Bento<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Regência, Roberto Tibiriçá<br />
RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil<br />
Sinfonia Terra Brasilis<br />
Orquestra Sinfônica do Teatro<br />
Nacional Cláudio Santoro, Brasília<br />
Regência, Sílvio Barbato<br />
BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />
02 – Brasil<br />
Suite para Cordas<br />
Orquestra de Câmara da Rádio<br />
MEC. Regência, Mário Tavares<br />
Divertimento para Cordas<br />
Orquestra de Câmara da Rádio<br />
MEC. Regência, Roberto<br />
Schnorrenberg<br />
Ludus Symphonicus<br />
Orquestra Sinfônica Nacional da<br />
Rádio MEC. Regência: Rinaldo Rossi<br />
Estro Armônico<br />
Orquestra Sinfônica Nacional<br />
da Rádio MEC<br />
Regência: Edino Krieger<br />
Canticum Naturale<br />
Orquestra Sinfônica Nacional<br />
da Rádio MEC<br />
Regência: Eleazar de Carvalho<br />
Maria Lúcia Godoy, soprano<br />
RIOARTE DIGITAL 110001 − Brasil<br />
Suite para Cordas<br />
Orquestra de Câmara da Cidade<br />
de Curitiba<br />
Fundação <strong>Cultural</strong> de Curitiba<br />
ETU102 − Brasil − 2000<br />
Três Imagens de Nova Friburgo<br />
Orquestra de Câmara de Blumenau<br />
Regência: Norton Morozowicz<br />
Martina Graf, piano<br />
COMEP CD6470-0 − Brasil – 1991<br />
GUILHERME BAUER<br />
Sugestões de Inúbias<br />
Trio para Violino, Violoncelo e Piano<br />
Partita Brasileira<br />
Duas Peças Brasileiras<br />
Quarteto de cordas nº 2<br />
Cadências para Violino e Orquestra<br />
Eduardo Monteiro e Alexandre<br />
Eisenberg, flautas<br />
Trio Fibonacci (Montreal, Canadá)<br />
Quarteto Moyzes (Eslováquia)<br />
Andreas Pozlberger, violoncelo<br />
Sven Birch, piano<br />
Erich Leninger, violino<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Regência: Henrique Morelembaum<br />
RIOARTE DIGITAL − 031 − Brasil<br />
– 2002<br />
Quarteto de Cordas nº 1 “Petrópolis”<br />
Quarteto de Cordas nº 2 Quarteto<br />
Moyzes<br />
PAULUS – 004000 – Brasil – 1998<br />
JOCY DE OLIVEIRA<br />
As malibrans<br />
ACADEMIA <strong>BRASILEIRA</strong> DE<br />
<strong>MÚSICA</strong> – Brasil<br />
Ilud Tempus<br />
RIOARTE DIGITAL/ ABM – Brasil<br />
DAWID KORENCHENDLER<br />
Sinfonia nº 3 (Psalmi-Tehilim)<br />
Coro Canto em Canto<br />
Maria Haro e Nicolas de Souza<br />
Barros, violões<br />
Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
Regência, Roberto Tibiriçá<br />
RIOARTE DIGITAL 018 – Brasil<br />
Abertura<br />
Orquestra Sinfonia Cultura da RTV<br />
Cultura de São Paulo.<br />
Regência: Lutero Rodrigues<br />
Memórias (Variações sobre o<br />
Bambalalão)<br />
Dawid Korenchendler, piano<br />
Sonata nº 6 “Sonata do Jubileu”<br />
Ruth Serrão, piano<br />
“Ballade des Pendus”<br />
Coro de Câmara “Sacra Vox”<br />
RIOARTE DIGITAL − 023 – Brasil<br />
MARISA REZENDE<br />
Volante<br />
Sintagma<br />
Variações<br />
Elos<br />
Ressonâncias<br />
Mutações<br />
Contrastes<br />
Vórtice<br />
Cismas<br />
Cássia Carrascoza, flauta<br />
Luís Eugênio Montanha, clarineta<br />
Dimos Goudarolis, violoncelo<br />
Ana Valéria Poles, contrabaixo<br />
Lídia Bazarian, piano<br />
Marisa Rezende, piano<br />
Marcelo Fagerlande, cravo<br />
Carlos Tarcha, percussão<br />
Eduardo Gianesella, percussão<br />
Quarteto de Cordas da Cidade de<br />
São Paulo<br />
LAMI − 005 Brasil – 2004<br />
JORGE ANTUNES<br />
Sinfonia em cinco movimentos<br />
Orquestra Sinfônica do Teatro<br />
Nacional Cláudio Santoro, Brasília.<br />
Regência, Sílvio Barbato<br />
BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01-<br />
02 − Brasil – 2001<br />
Flautaualf<br />
Trio em lá pis<br />
Source<br />
Vivaldia MCMLXXV<br />
Vários Intérpretes<br />
EDITORA UNIVERSIDADE DE<br />
BRASÍLIA<br />
CD 350010 − 2002 − Brasil<br />
FLÁVIO OLIVEIRA<br />
Tudo Muda<br />
Uruguay<br />
Mistérios<br />
Aos que partiram<br />
Ao homem Chê<br />
To a certain cantatrice<br />
Ein musikalisher brief<br />
Peça para piano<br />
Round about Debussy<br />
...Quando Olhos e Mãos...<br />
Movimentos: Variações<br />
Intradução de Ravel<br />
Round about Debussy (2a versão)<br />
Nênia<br />
Vários intérpretes<br />
FUNPROARTE BP 21660 – Brasil<br />
BRUNO KIEFER<br />
Poemas da Terra<br />
Música sem incidentes<br />
Música pra gente miúda<br />
Ventos incertos<br />
Querência<br />
Quarteto de Flautas Doces<br />
“Poemas da Terra”<br />
Dunia Elias Carneiro, piano<br />
Fredi Gerling, violino<br />
Márcio de Sousa, violão<br />
FUNPROARTE Poet 100 – Brasil<br />
Sonata I<br />
Lamentos da terra<br />
Duas Peças Sérias<br />
Tríptico<br />
Sonata II<br />
Seis Pequenos Quadros<br />
Toccata<br />
Ares de Moleque<br />
Em poucas Notas<br />
Alternâncias<br />
Poema para ti<br />
Cristina Capparelli, piano<br />
FUNPROARTE BK001 – Brasil<br />
Música sem Incidentes<br />
Terra Sofrida<br />
Canção para uma valsa lenta<br />
Momento de ternura<br />
Música sem nome<br />
Situação<br />
Sons perdidos<br />
Canção da garoa<br />
Quiçá...<br />
Brincando<br />
Faz de conta...<br />
Márcio de Souza e Flávia<br />
Domingues Alves, violões<br />
Ademir Schmidt, flauta transversal<br />
Eliana Van Huber, flautas doces<br />
Coro Porto Alegre
DISCOGRAFIA (continuação)<br />
Cristiano Hansen, narração<br />
FUNPROARTE MS011969 −<br />
Brasil<br />
ARMANDO ALBUQUERQUE<br />
Suite Bárbara Infantil<br />
Outono<br />
Uma Idéia de Café<br />
Motivação<br />
Tocata<br />
Suite (Infantil)<br />
Evocação de Augusto Meyer<br />
Sonho III<br />
Peça para piano 1964<br />
Celso Loureiro Chaves, piano<br />
Independente – Celso Loureiro<br />
Chaves, Porto Alegre – Brasil<br />
ANTÔNIO CARLOS BORGES CUNHA<br />
Ancient Rhythm<br />
Pedra Mística<br />
Fonocromia<br />
InstalaSom<br />
SONOR Ensemble, direção:<br />
Harvey Sollberger<br />
Orquestra Sinfônica de Porto<br />
Alegre<br />
Coral Sinfônico da OSPA<br />
e solistas<br />
Regência: Manfred Schmiedt<br />
Coral da UFRGS<br />
Regência: Cláudio Ribeiro<br />
Grupo InstalaSom<br />
Regência: Antônio Carlos Borges<br />
Cunha<br />
UFRGS 199.009.991 – Brasil<br />
PE. JOSÉ PENALVA<br />
Ágape II<br />
Le Regard de Dieu<br />
Casinha Pequenina<br />
Cantiga por Luciana<br />
Carinhoso<br />
Mini Suite: Mania das Pessoas<br />
Mini Suite: Arlequim<br />
Madrigal Vocale e convidados<br />
TRILHAS URBANAS ETU124-<br />
AA0001000 – Brasil<br />
FLO MENEZES<br />
On the other hand...<br />
Grupo de Percussão do Instituto<br />
de Artes da UNESP<br />
GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil<br />
Parcours de l’Éntité<br />
Contextures I (Hommage à Berio)<br />
Contesture III<br />
PAN; Laceramento della Parola<br />
Profils écartelés<br />
Words in Transgress<br />
<strong>MÚSICA</strong> MAXIMALISTA VOL.1<br />
PANAROMA 199.000.926 – Brasil<br />
− 1996<br />
SÍLVIO FERRAZ<br />
Conferência – versão para<br />
instrumentos e fita<br />
Conferência – versão instrumental<br />
Grupo Novo Horizonte de São<br />
Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />
VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />
Brasil – 1996<br />
No Encalço do Boi<br />
Luís Eugênio Montanha, clarone<br />
Carlos Tarcha, percussão<br />
LAMI 002 – Brasil − 2004<br />
EDSON ZAMPRONHA<br />
Modelagem VII<br />
Grupo Novo Horizonte de São<br />
Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />
VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />
Brasil – 1996<br />
Modelagem XII<br />
Modelagem II<br />
O Crescimento da Árvore Sobre a<br />
Montanha<br />
Modelagem III<br />
Mármore<br />
Modelagem VIII<br />
Fragmentation<br />
Orquestra Sinfonia Cultura<br />
Regência: Lutero Rodrigues<br />
Beatriz Balzi, piano<br />
Celina Charlier, flauta<br />
Eduardo Gianesella, percussão<br />
ANNABLUME – 199.016.320 –<br />
Brasil<br />
Modelagem XIII<br />
Lídia Bazarian, piano<br />
Eduardo Gianesella, percussão<br />
LAMI 002 – Brasil - 2004<br />
ROBERTO VICTÓRIO<br />
Codex Troano<br />
Heptaparaparshinokh<br />
Cruzar e Bifurcações<br />
Archeus<br />
Grupo de Percussão da UNES.<br />
Regência: John Boudler<br />
Coro de Câmara da Pró-Arte.<br />
Regência: Carlos Alberto<br />
Figueiredo<br />
Grupo Música Nova da UFRJ.<br />
Regência: Roberto Victório<br />
Grupo Metal Transformação Rio de<br />
Janeiro.<br />
Regência: Zdenek Svab<br />
Rose Vic, soprano<br />
Ronaldo Victório, tenor<br />
Marcelo Coutinho, barítono<br />
ROBERTO VICTORIO RV001 –<br />
Brasil – 1996<br />
Planalto Central<br />
Sentinelas de Pedra<br />
Grupo Sextante<br />
ROBERTO VICTORIO RV 002 –<br />
Brasil<br />
PAULO COSTA LIMA<br />
Ibejis<br />
Apanhe o jegue<br />
Pega essa nêga e chêra<br />
Imikaiá<br />
Ponteio<br />
Atotô do L’homme armé<br />
Saruê de dois<br />
Bahia Ensemble.<br />
Regência: Piero Bastianelli<br />
PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />
E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />
WELLINGTON GOMES<br />
Fantasia<br />
Reminiscências<br />
Frevinho<br />
Bahia Ensemble<br />
Regência: Piero Bastianelli<br />
PRÊMIO COPENE DE CULTURA<br />
E ARTE, Salvador – Brasil – 1997<br />
HARRY CROWL<br />
Finismundo<br />
Simone Foltran, soprano<br />
Grupo Novo Horizonte de São<br />
Paulo. Regência: Graham Griffiths<br />
VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI –<br />
Brasil – 1996<br />
Revoada<br />
Helle Kristensen, flauta doce<br />
PAULA CD 97 – Dinamarca –<br />
1996<br />
Na Perfurada Luz, em Plano Austero<br />
(Quarteto de cordas nº 1)<br />
Quarteto Moyzes<br />
PAULUS 004000 – Brasil – 1998<br />
Sonata I<br />
Canto para violino solo<br />
Aluminium Sonata<br />
Assimetrias<br />
Sonata II<br />
Austrais – 4 Canções<br />
Concerto para Clarone, Percussão<br />
e Piano<br />
Concerto para Piano e Orquestra<br />
No Silêncio das Noites Estreladas<br />
Leilah Paiva, piano<br />
Carlos Assis, piano<br />
Atli Ellendersen, violino<br />
Mário da Silva, violão<br />
Ana Toledo, soprano<br />
Otinilo Pacheco, clarone<br />
Grupo Novo Horizonte de São<br />
Paulo<br />
Orquestra Sinfônica do Paraná<br />
Regência: Roberto Duarte<br />
PIAP, Grupo de Percussão da<br />
Universidade Estadual Paulista<br />
UFPR/SECRETARIA DE<br />
CULTURA DO ESTADO DO<br />
PARANÁ CD 3584 1-2 Brasil –<br />
2002<br />
HARRY CROWL<br />
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.<br />
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná UFPR. Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná<br />
e da Rádio MEC. Presidente da Sociedada Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).<br />
139
140<br />
<strong>MÚSICA</strong> DE CONCERTO<br />
NA TERRA DO SAMBA<br />
PRODUÇÃO E PERFORMANCE<br />
Presidente da Sociedade Brasileira de Música<br />
Contemporânea, Harry Crowl é um compositor cujo<br />
catálogo beira 80 obras, contabilizando execuções em<br />
uma plêiade de países que vai do Chile às Ilhas Faroe,<br />
passando por Alemanha, França, Reino Unido,<br />
Holanda e Suécia, entre muitos outros, tendo atraído<br />
a atenção de grupos como o Quarteto Moyzes,<br />
da Eslováquia, o Ensemble Nord, da Dinamarca,<br />
o George Crumb Trio, da Áustria, e o Trio Fibonacci,<br />
do Canadá.<br />
ENTREVISTA<br />
Além disso, o autor, nascido em 1958, vem<br />
atuando consistentemente como musicólogo, tendo<br />
sido responsável pela descoberta e restauração<br />
de várias partituras de compositores brasileiros<br />
do período colonial. Harry Crowl é ainda produtor de<br />
programas da rádio Paraná Educativa, professor da<br />
Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP)<br />
e diretor artístico da Orquestra Filarmônica<br />
Juvenil da Universidade Federal do Paraná (UFPR).<br />
Como se vê, uma atuação multifacetada, que vai
Harry-Crowl<br />
FOTO: SIMONE TRISTÃO<br />
141
142<br />
A música brasileira ainda é muito pouco<br />
conhecida no exterior de um modo geral.<br />
Porém, quase sempre provoca surpresas.<br />
Causa espanto saber que existe uma produção<br />
ininterrupta de música erudita no nosso país<br />
desde o século XVIII até os dias de hoje.<br />
desde a pesquisa até a criação de música de concerto,<br />
passando por seu ensino, performance e difusão<br />
(maiores detalhes podem ser obtidos em<br />
http://sites.uol.com.br/harrycrowl). Pela<br />
representatividade de seu trabalho como compositor,<br />
bem como pelo caráter abrangente de suas atividades,<br />
Harry Crowl foi escolhido por Textos do Brasil<br />
para dar um depoimento sobre os desafios<br />
e perspectivas de escrever, investigar, ensinar,<br />
tocar e difundir música “clássica” em um país<br />
dominado, reconhecido e aclamado pelo vigor<br />
de sua música popular.<br />
IRINEU FRANCO PERPÉTUO: É evidente a predominância<br />
de difusão da música popular sobre a música de concerto<br />
no mundo inteiro. No Brasil, a música “clássica” parece estar<br />
ainda mais deslocada, porque a música popular, além<br />
da ampla aceitação do público, goza de prestígio junto<br />
à intelectualidade. Qual a real inserção da música erudita em<br />
geral na sociedade brasileira? Como aumentá-la? Toca-se<br />
música de concerto no Brasil? O quanto se toca? E o quanto<br />
se toca de música escrita por autores brasileiros?<br />
HARRY CROWL: A difusão da música no Brasil está<br />
diretamente ligada ao lado puramente comercial. Tanto<br />
a música popular de qualidade quanto a música de<br />
concerto estão relegadas a um segundo plano. No caso<br />
da música de concerto, creio que há um reflexo direto<br />
da inexistência até o momento, de políticas culturais<br />
mais direcionadas no país. Nos últimos anos, pode-se<br />
perceber um certo aumento de orquestras em diversas<br />
regiões. Porém, ainda carecemos de políticas que<br />
estimulem a formação de pequenos grupos estáveis,<br />
como quartetos de cordas, quintetos de sopro, grupos<br />
de música contemporânea, etc. A resposta do público<br />
a este tipo de música tem sido cada vez mais favorável.<br />
A única atitude que pode aumentar o público é a<br />
constância de concertos e o aumento da programação<br />
do repertório nas rádios oficiais e comerciais. Toca-se<br />
música de concerto no Brasil com certa freqüência,<br />
porém com pouca variedade de repertório. Há uma<br />
certa insistência num repetitivo repertório clássicoromântico<br />
europeu. Música de compositores brasileiros<br />
só é tocada quando há um trabalho de divulgação feito<br />
pelos próprios compositores, associados ao eventual<br />
espírito magnânimo dos músicos e regentes. É claro<br />
que há exceções. Há intérpretes que primam por fazer<br />
somente o repertório brasileiro.<br />
IFP: O que é a SBMC? Como ela atua? Quais suas maiores<br />
dificuldades e projetos? Qual a real inserção internacional da<br />
música erudita brasileira, quer antiga, quer contemporânea?<br />
Como ampliá-la?<br />
CROWL: A Sociedade Brasileira de Música<br />
Contemporânea foi criada com o objetivo de divulgar<br />
e promover a música de concerto de compositores<br />
brasileiros no exterior e também, divulgar a música<br />
contemporânea internacional no Brasil. Todas as ações<br />
realizadas até hoje pela SBMC foram iniciativas<br />
vinculadas aos seus dirigentes, com exceção da<br />
indicação de obras para os “Dias Mundiais da Música”<br />
(World Music Days). Este evento acontece desde a<br />
década de 1920, e desde a década de 70, a SBMC vem<br />
indicando obras brasileiras para o festival. Talvez,<br />
este seja o maior evento mundial de música<br />
contemporânea. Nele, todos os países afiliados têm<br />
direito a pelo menos uma obra executada. Estamos nos<br />
esforçando para aumentar a participação do Brasil<br />
e da América Latina neste grande evento. Em 2002,<br />
o festival aconteceu em Hong Kong e teve a obra<br />
Circunsonantis, para quarteto de cordas, de Eli-Eri<br />
de Moura, da Paraíba, apresentada. Em 2003, já na<br />
Eslovênia, onde estive presente, foi a vez da obra<br />
A Vision of Sulis, para conjunto de câmera, do carioca<br />
Marcos Lucas. Em 2004, o festival aconteceu na Suíça
e, em 2005, na Croácia. O contato com<br />
as nossas sociedades irmãs tem sido muito proveitoso.<br />
Temos enviado informações e materiais gravados<br />
a várias delas, assim como temos recebido muitos<br />
CDs principalmente, para os programas de rádio<br />
que produzimos em Curitiba divulgando a música atual<br />
do Brasil e do mundo. Os primeiros frutos desses<br />
contatos começam a aparecer. Em março e abril<br />
de 2004, o programa “Geografia dos Sons”, da Rádio<br />
Portuguesa, Antena 2, produzido pelo compositor<br />
português Luís Tinoco, apresentou oito programas<br />
dedicados exclusivamente à música contemporânea<br />
brasileira, com material inteiramente fornecido por<br />
nós. A música brasileira ainda é muito pouco<br />
conhecida no exterior de um modo geral. Porém, quase<br />
sempre provoca surpresas. Causa espanto saber que<br />
existe uma produção ininterrupta de música erudita<br />
no nosso país desde o século XVIII até os dias de hoje.<br />
Nos outros países não europeus essa tradição apresenta<br />
vácuos. Tanto na América de língua espanhola quanto<br />
inglesa, as práticas musicais cultas tendem a ter um<br />
grande declínio após a independência dos países.<br />
Somente no século XX é que há um renascimento<br />
dessa música nos outros países.<br />
A SBMC não conta com qualquer subsídio.<br />
Os únicos recursos são provenientes do pagamento<br />
das anuidades dos associados. Praticamente, todo esse<br />
recurso é utilizado para o pagamento da anuidade<br />
da ISCM/SIMC (Sociedade Internacional de Música<br />
Contemporânea). Se a nossa sociedade tivesse algum<br />
subsídio, poderia produzir CDs de divulgação dos<br />
nossos compositores e até mesmo eventos.<br />
IFP: Você é a favor do ensino musical obrigatório em todas<br />
as escolas? Por quê? No que tange ao ensino musical<br />
profissionalizante, qual seu estágio atual no Brasil?<br />
Houve uma evolução? É possível ter uma boa formação<br />
musical profissional no Brasil sem ter que sair do país?<br />
CROWL: Claro que sim. Além de desenvolver<br />
habilidades básicas como coordenação, concentração e<br />
raciocínio abstrato, a música passa a fazer parte efetiva<br />
da vida dos cidadãos, permitindo que interajam com<br />
mais um riquíssimo aspecto da produção humana. O<br />
ensino musical no Brasil está ainda num estágio muito<br />
amador do ponto de vista prático. Algumas escolas<br />
particulares oferecem formação musical de acordo com<br />
as suas conveniências, mas a maioria dos interessados<br />
em estudar música tem que procurar ensino específico.<br />
Em grande parte dos cursos superiores de música,<br />
principalmente aqueles oferecidos pelas universidades<br />
públicas, há cursos preparatórios, pois não há como ter<br />
um indivíduo preparado para a formação superior<br />
(de música) fora destes cursos. Mesmo em regiões onde<br />
há conservatórios desvinculados de universidades,<br />
como no estado de São Paulo, o modelo é o mesmo, ou<br />
seja, os interessados têm que entrar para um curso fora<br />
da escola regular e desenvolver um estudo paralelo até<br />
estar mais ou menos apto a freqüentar um curso<br />
superior. Os nossos cursos superiores estão diretamente<br />
ligados ao prestígio dos professores que atuam nas<br />
faculdades. Não conheço nenhuma instituição no<br />
Brasil, que ofereça uma boa preparação para todos<br />
os instrumentos e igualmente dê uma boa base teórica.<br />
Não me parece que tenha havido qualquer evolução.<br />
Quando Villa-Lobos criou o método do Canto<br />
Orfeônico, durante o Estado-Novo, parecia que<br />
um caminho inédito e promissor seria aberto. Havia<br />
problemas com este tipo de educação musical, sem<br />
dúvida. Villa-Lobos era um intuitivo, e não um teórico.<br />
Porém, o que deveria ter sido feito era aperfeiçoar o<br />
sistema, e não simplesmente extinguí-lo, como foi feito<br />
por uma dessas leis de diretrizes e bases da década<br />
de 60. Hoje, ainda é possível se obter uma formação de<br />
alto nível sem sair do país. Porém, o custo disto é muito<br />
alto. É preciso um esforço hercúleo e uma grande força<br />
de vontade para correr atrás de vários professores.<br />
Os festivais e oficinas de música que acontecem no país<br />
durante os meses de janeiro e julho são uma boa ajuda,<br />
mas não são suficientes. A formação nos países mais<br />
desenvolvidos nesta área é muito menos penosa.<br />
Há no Brasil hoje, uma série de estudos muito<br />
importantes realizados através das pós-graduações<br />
das universidades públicas sobre a situação do ensino<br />
e até mesmo soluções muito bem elaboradas. Porém,<br />
falta que estas sejam de fato colocadas em prática.<br />
IFP: Qual o estado das orquestras e teatros de ópera no<br />
Brasil? Estão concentrados geograficamente ou difundidos?<br />
143
144<br />
Para que as orquestras no Brasil passem a fazer<br />
música brasileira regularmente será necessário<br />
um esforço político. Será necessário<br />
que os principais interessados pela questão,<br />
os compositores, pressionem de alguma forma<br />
as instituições que estão por trás das orquestras.<br />
As orquestras estão majoritariamente em crise ou dá para<br />
falar em um “renascimento” (ou nascimento) sinfônico<br />
no Brasil? Qual o papel dos intérpretes em geral<br />
e, especificamente, das orquestras, na difusão da música<br />
brasileira, quer no Exterior, quer aqui? Poderia haver um<br />
apoio maior das orquestras/teatros aos compositores brasileiros<br />
contemporâneos? Como isso funcionaria?<br />
CROWL: As orquestras são mantidas por órgãos<br />
públicos estaduais ou municipais, ou mesmo<br />
universidades federais. Por um lado, estão sempre<br />
às voltas com os mesmos problemas do funcionalismo<br />
público de um modo geral: salários e estabilidade. Por<br />
outro, como não há qualquer política de divulgação de<br />
um repertório mais amplo, os programas tendem a ser<br />
sempre os mesmos. Em alguns casos, como o da<br />
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP),<br />
um novo paradigma foi implantado. A orquestra vem<br />
se pautando pela excelência e pela diversidade do<br />
repertório. A Orquestra Petrobrás Pró-Música, no Rio,<br />
parece estar seguindo um caminho semelhante.<br />
Existem hoje, orquestras espalhadas por todo o país,<br />
principalmente nas capitais. Já os teatros de ópera<br />
há muito perderam a razão do nome. Não há mais<br />
temporadas no Brasil, com exceção do Festival de<br />
Ópera de Manaus. Há apenas montagens esporádicas<br />
de algumas mesmas óperas tradicionais. Considerando<br />
que o Brasil já teve temporadas internacionais ao longo<br />
de mais de um século, o retrocesso foi enorme.<br />
Do ponto de vista da criação musical, percebe-se<br />
nitidamente as conseqüências desta situação.<br />
Os compositores mais jovens escrevem cada vez menos<br />
para orquestra e raramente escrevem ópera.<br />
A música de câmara e com recursos eletroacústicos<br />
tende a atraí-los mais.<br />
Alguns regentes fazem um bom trabalho de<br />
divulgação da música brasileira, de maneira isolada<br />
quase sempre. Não há estímulo para que isso aconteça.<br />
Neste caso da música para orquestra, não existe no<br />
Brasil ainda a figura do compositor-residente, como nas<br />
orquestras de grande parte dos países desenvolvidos.<br />
Acredito que as orquestras deveriam trabalhar com<br />
compositores em caráter permanente, não somente<br />
para executar as suas obras, mas também para montar<br />
o repertório. Recentemente, em turnê pela Europa,<br />
a OSESP apresentou obras de compositores brasileiros.<br />
A última vez que isto aconteceu, que eu saiba, foi na<br />
década de 70, quando a Orquestra Sinfônica Brasileira<br />
fez uma turnê pelos Estados Unidos e pela Europa,<br />
inclusive gravando dois discos LP. Creio que já que<br />
as orquestras são mantidas com dinheiro público, elas<br />
teriam a obrigação de encomendar e fazer obras de<br />
compositores brasileiros. Lembro-me de uma história<br />
contada pelo compositor português Amílcar Vasques<br />
Dias sobre o que fizeram os compositores holandeses<br />
para conseguir que as orquestras de seu país tocassem<br />
suas obras, especialmente a Concertgebouw. Ele relatou<br />
que, em algum momento da década de 70, numa<br />
apresentação do balé Quebra-Nozes, os compositores<br />
organizaram uma algazarra com brinquedos musicais<br />
no meio da platéia. Todas as vezes que o maestro<br />
tentava começar a música, um grupo de quase<br />
cem pessoas punha-se a fazer um barulho infernal.<br />
A confusão acabou com a chegada da polícia, pois<br />
o público pagante queria linchar os compositores<br />
e seus simpatizantes. Em seguida, todos queriam saber<br />
o porquê daquela atitude. A resposta foi simples:<br />
“somos compositores, é a nossa profissão, portanto<br />
queremos que as orquestras holandesas, que subsistem<br />
à custa dos impostos dos cidadãos, toquem a nossa<br />
música”. Não quero aqui fazer qualquer proselitismo de<br />
arruaças, mas dizer que sem luta não se consegue nada.<br />
Para que as orquestras no Brasil passem a fazer música<br />
brasileira regularmente será necessário um esforço<br />
político. Será necessário que os principais interessados<br />
pela questão, os compositores, pressionem de alguma<br />
forma as instituições que estão por trás das orquestras.
IFP: Fale um pouco sobre as relações entre suas experiências de<br />
compositor e musicólogo, e sobre como uma influencia a outra.<br />
CROWL: O meu interesse pela musicologia veio como<br />
uma necessidade de conhecer aquilo que havia sido<br />
produzido no Brasil em épocas passadas. De uma certa<br />
maneira queria buscar modelos para a minha própria<br />
criação a partir da observação de procedimentos<br />
originais de compositores brasileiros. Acrescento a isso<br />
também o fato de sempre ter tido um grande interesse<br />
em História de modo geral e na História da Música<br />
e das Artes. Quando estudava nos Estados Unidos,<br />
na década de 70, tomei conhecimento das vanguardas<br />
européias e americanas. Ouvia tudo que podia.<br />
Conheci melhor a música do século XX. Cheguei a me<br />
identificar com os compositores da Escola de Viena,<br />
especialmente Schönberg e com os compositores<br />
poloneses atuais, em particular Penderecki<br />
e Lutoslawski. Um dia, achei que não tinha nada a ver<br />
comigo escrever música como aqueles compositores.<br />
Comecei então a ouvir com mais atenção compositores<br />
brasileiros, hispano-americanos e alguns norteamericanos.<br />
Descobri um mundo novo através da<br />
música de Villa-Lobos, que não suportava quando vivia<br />
antes no Brasil, por puro preconceito; dos americanos<br />
Charles Ives, Charles Ruggles, do argentino Alberto<br />
Ginastera, e dos mexicanos Silvestre Revueltas<br />
e Carlos Chavez. A partir daí, comecei a pesquisar<br />
obsessivamente a música erudita brasileira<br />
e a de outros países não-europeus com tradições<br />
ocidentais. Como não existia quase nenhuma gravação<br />
disponível, especialmente de música de compositores<br />
brasileiros, comecei a correr atrás de colecionadores e<br />
a gravar em fitas cassete tudo que encontrava. Quando<br />
achava também as partituras das obras gravadas,<br />
estudava-as a fundo. Fui voltando no tempo histórico<br />
até chegar no período colonial. Percebi logo que esta<br />
era uma matéria da qual muitos falavam a respeito,<br />
mas poucos de fato conheciam alguma coisa. Quase<br />
nada havia de gravações ou partituras dessas obras.<br />
Interessei-me profundamente pela questão e comecei<br />
a estudar tudo que cercava a matéria: História do Brasil<br />
na época colonial, Atuação da Igreja Católica no Brasil,<br />
Processos de colonização, História das Artes na<br />
Colônia, História de Portugal, as Práticas Musicais nos<br />
Países Católicos, etc. Trabalhei com este assunto junto<br />
à Universidade Federal de Ouro Preto por mais<br />
de 10 anos. Fiz a reconstrução de aproximadamente<br />
20 obras de compositores da época colonial. Acabei<br />
encontrando alguns procedimentos em compositores<br />
como Lobo de Mesquita, João de Deus de Castro<br />
Lobo, Manuel Dias de Oliveira, que diferiam dos<br />
modelos europeus mais conhecidos. Havia nesses<br />
compositores uma mistura de procedimentos da<br />
1 ª metade do século XVIII com o operismo do início<br />
do século XIX. Mais tarde, percebi que os portugueses<br />
já tinham feito coisa parecida anteriormente, quando<br />
misturavam o estilo napolitano com o romano. Como<br />
compositor, isto foi para mim uma grande descoberta.<br />
Percebi que poderia usar estruturas formais observadas<br />
nas obras destes vários compositores e inventar o que<br />
quisesse. A primeira obra em que utilizei um modelo<br />
antigo foi a Aluminium Sonata (1985) para violino<br />
e piano, onde usei como referência a Sonata em Sol maior<br />
para piano e violino “obrigado”, do compositor<br />
português Francisco Xavier Baptista (morto em 1797).<br />
Mais adiante, criei uma obra mais ousada que foi<br />
o oratório Memento Mori (1987) para vozes e conjunto<br />
de música antiga, sobre o texto “Barrocolagens”,<br />
de Affonso Ávila. Nesta composição, utilizei-me<br />
da Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal,<br />
de Ignácio Parreiras Neves (Vila Rica, 1734?-1794?).<br />
Daí em diante, várias foram as obras nas quais parti<br />
de “modelos” de música antiga brasileira ou afim.<br />
Devo acrescentar, porém, que as referências mais<br />
contemporâneas anteriores permaneceram, pois toda<br />
a minha obra está construída sobre uma sintaxe atonal<br />
livre, derivada do serialismo. O que mais me marcou<br />
foi a possibilidade de criar um mundo em labirinto<br />
não linear encontrado tanto na música de Villa-Lobos<br />
ou Ives, assim como nos compositores coloniais,<br />
principalmente nos mineiros. Um discurso musical<br />
totalmente avesso a um neo-classicismo racional<br />
ou a um neo-romantismo ultra sentimental,<br />
ou mesmo um expressionismo exagerado.<br />
IFP: É possível falar em uma única linguagem<br />
“contemporânea” para a música de concerto, ou estamos<br />
em um período em que todas as linguagens são possíveis?<br />
145
146<br />
Na música popular, é absolutamente natural<br />
identificarmos uma música autenticamente<br />
brasileira. Mas na música de concerto, para mim,<br />
isto sempre teve um “quê” de artificialidade.<br />
Os termos “vanguarda” e “nacionalismo” ainda fazem sentido<br />
ou são duas faces de uma moeda já fora de circulação?<br />
Existe “brasilidade” em música ? Se existe, o que é isso?<br />
Faz sentido cobrar de um compositor que seja “nacional”? Dá<br />
para falar em uma tendência hegemônica nacional (ou, até,<br />
internacionalmente) “retrô”, de volta a uma música “simples,<br />
tonal, acessível”? Como você vê esse tipo de tendência?<br />
CROWL: Vivemos uma época de pluralidade absoluta.<br />
Falar tanto em “vanguarda” como em “nacionalismo”<br />
é muito saudosismo. Há correntes estéticas que<br />
predominam em regiões do mundo. Mas isto é muito<br />
mutável. A facilidade com a qual as informações<br />
viajam hoje em dia faz com que a música de qualquer<br />
lugar seja conhecida em qualquer outra parte. O que<br />
se percebe é que as linguagens mais elaboradas<br />
e herméticas como a “super complexidade”,<br />
do Brian Ferneyhough, por exemplo, ou mesmo<br />
os remanescentes do serialismo integral, subsistam<br />
somente dentro de instituições acadêmicas.<br />
O “minimalismo” americano está confinado<br />
a uns poucos compositores, porém com forte apelo<br />
comercial. Há vários movimentos “neo” alguma coisa.<br />
Uns retomando a estética do antigo realismo socialista<br />
soviético, como a atual fase de Krysztof Penderecki,<br />
outros escrevendo no estilo de Tchaikovski, como<br />
alguns colegas nossos aqui no Brasil. Há também um<br />
certo ecletismo por parte dos compositores nórdicos<br />
e do leste europeu. E, finalmente, há uma escola<br />
engraçadinha, ou seja, que vive de fazer piadinhas<br />
musicais e que se autodenomina de pós-modernismo<br />
holandês e flamengo, além da “nova simplicidade” dos<br />
seguidores do italiano Giacinto Scelsi. Em países como<br />
os EUA, Alemanha e França encontra-se de tudo,<br />
porém nos EUA predominam a criação tonal neoromântica;<br />
na Alemanha, talvez predomine um<br />
neo-expressionismo remanescente de Schönberg;<br />
e, na França, a música espectral. O que mais vem<br />
chamando a atenção, porém, é o surgimento cada vez<br />
maior de compositores orientais. A grande maioria<br />
deles faz música como os ocidentais, mas no caso<br />
de alguns japoneses, e do chinês Ju Jian-er, há uma feliz<br />
tentativa de combinação das tradições do oriente<br />
com o ocidente. Não creio, como a maioria, acho eu,<br />
em “brasilidade”. Este termo, aliás, tem forte conotação<br />
ideológica. Se não estou enganado, foi amplamente<br />
difundido por Plínio Salgado, nos tempos<br />
do Integralismo. Na música popular, é absolutamente<br />
natural identificarmos uma música autenticamente<br />
brasileira. Mas na música de concerto, para mim, isto<br />
sempre teve um “quê” de artificialidade. Com exceção<br />
de Villa-Lobos, que fez um uso um tanto intuitivo de<br />
ritmos e melodias de origem popular, todos os outros<br />
compositores nacionalistas o fizeram consciente<br />
e calculadamente. A criação musical, hoje em dia, está<br />
mais ligada a universos culturais genéricos do que<br />
a fronteiras territoriais. Haja vista a diversidade<br />
da música dos nossos compositores.<br />
IFP: Diz-se que o maior desafio dos compositores, hoje,<br />
é a busca de uma linguagem própria. É isso mesmo?<br />
Como você encontrou a sua, e como a define? Entrevistas com<br />
compositores brasileiros sempre terminam com uma nota triste,<br />
com queixas de abandono, de falta de apoio... Contudo, você<br />
parece não subscrever esse pessimismo conformista e está<br />
sempre trabalhando pela difusão de suas obras. Que caminho<br />
você aponta para a novíssima geração de compositores que está<br />
surgindo no Brasil? Você acompanha suas obras? Apontaria<br />
nomes de destaque? Que conselhos daria a eles?<br />
CROWL: Muitos compositores não consideram isso<br />
importante. Contentam-se em ser epígonos de<br />
“escolas” estabelecidas, ou escrevem cada vez num<br />
estilo diferente. Particularmente, sempre tive horror<br />
a isso. Acho que cada compositor deveria achar a sua<br />
própria linguagem. Busquei isso desde o início. Não<br />
sosseguei enquanto não comecei a identificar o que era<br />
meu e o que era dos outros na minha própria música.<br />
Comecei a colocar os epígonos de lado. Como já
mencionei antes, tomei por modelo aqueles<br />
compositores que se adequavam àquilo que buscavam.<br />
Embora não goste da definição de pós-modernista, pois<br />
acho que não quer dizer muita coisa, vejo-me numa<br />
situação onde o resultado final do discurso musical<br />
é o que interessa, e não como ele foi construído.<br />
Importa-me como a música soa e estimula a<br />
imaginação do ouvinte, não como está escrita.<br />
Acho muito cômodo ficar reclamando e não fazer<br />
nada. Há no Brasil, ainda, um sonho romântico<br />
do gênio incompreendido que um dia será descoberto.<br />
Os compositores adoram se esconder atrás disso, em<br />
vez de procurarem espaço para a sua música. A música<br />
de concerto nunca vai ocupar um lugar semelhante<br />
ao da música popular. Nem aqui nem em nenhum<br />
lugar do mundo. Mais uma vez repito, as orquestras<br />
e intérpretes individuais só executarão obras<br />
de compositores brasileiros vivos se tiverem acesso<br />
ou forem obrigados num primeiro momento. Tenho<br />
conseguido muito espaço junto a intérpretes e algumas<br />
orquestras. Mantenho contato com grupos no exterior<br />
também. Procuro acompanhar tudo que acontece com<br />
a minha música. Não acho as coisas no Brasil tão<br />
impossíveis. Tenho excelentes intérpretes aqui em<br />
Curitiba, como as pianistas Leilah Paiva e Clenice<br />
Ortigara, o violinista Atli Ellendersen, o clarinetista<br />
Jairo Wilkens, o saxofonista Rodrigo Capistrano, além<br />
de outros em várias partes do Brasil, como no Rio,<br />
Porto Alegre, Manaus e São Paulo, como no caso<br />
do regente Roberto Duarte.<br />
Acho que apontar caminhos seria um pouco<br />
pretensioso, mas creio que buscar a própria linguagem<br />
é caminho interessante. Isso só se consegue<br />
naturalmente, com muita prática e pesquisa. É preciso<br />
compor sempre, ouvir muita música, interessar-se por<br />
outras artes. Enfim, fazer parte do mundo<br />
contemporâneo, com todas as suas benesses e mazelas.<br />
Sinto na maioria dos compositores entre 20 e 40<br />
anos, uma atitude muito conservadora em relação<br />
à criação. Tudo que tenho ouvido é repetição de velhos<br />
modelos acadêmicos, sejam eles românticos ou<br />
modernos (século XX). Pois, considero que compor<br />
como Webern, Schönberg, Stravinsky, Boulez, Ligeti<br />
ou Berio, tão acadêmico quanto fazê-lo à maneira<br />
de Tchaikovski, Franck, Brahms, ou mesmo Prokofiev<br />
ou Debussy.<br />
Prefiro não citar nomes de jovens compositores,<br />
mas diria para eles que compor é mais importante<br />
do que lecionar composição. Sei que a sobrevivência<br />
só é possível no Brasil através do magistério, mas<br />
a criação deve vir sempre em primeiro lugar, como<br />
uma religião. Porque senão, ensinar o quê?<br />
IRINEU FRANCO PERPÉTUO<br />
Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona)<br />
e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).<br />
147
Fernando Velloso e a<br />
poética da matéria<br />
“Pintar é tornar sensível uma superfície que se limitou”<br />
Desta maneira, e bem no centro do turbilhão do<br />
movimento de renovação das artes plásticas no Paraná,<br />
assim se exprimia o pintor Fernando Velloso, artista<br />
e crítico, homem de grande sensibilidade e de<br />
conhecimentos teóricos e técnicos, que liderou o início<br />
da vanguarda curitibana, principalmente daquela que<br />
vai se interessar pela problemática da matéria que<br />
é a substância sensível da arte contemporânea.<br />
Fernando Velloso é curitibano de família<br />
tradicional da capital do Estado do Paraná e de quem<br />
se esperava fosse um sucessor do pai político<br />
e advogado. Mas seus cadernos de escola, quando<br />
ainda criança, não lhe deram outra opção; a vontade<br />
de ser artista estava nele desde a tenra idade.<br />
Ultrapassando uma tendência inicial<br />
expressionista, importante na sua formação pictórica,<br />
pois é ela que corresponde às suas inquietudes de<br />
jovem estudante da Escola de Belas Artes do Paraná,<br />
FERNANDO VELLOSO, 1963<br />
na cidade de Curitiba, como aluno do italiano Guido<br />
Viaro, a continuidade de sua formação se deu na<br />
Europa, na França precisamente, quando freqüentou<br />
as aulas e as discussões teóricas em torno da arte<br />
contemporânea na Academia de André Lhote.<br />
É o próprio Lhote quem define sua tendência matérica:<br />
mon ami le pâtissier brésilien (“meu amigo confeiteiro<br />
brasileiro”, isto é, aquele que faz de tudo com a massa),<br />
o artista da Poética da Matéria, usando um termo<br />
de Argan.<br />
Em Paris, após a Segunda Guerra Mundial, vivia-se<br />
os momentos de retomada do Cubismo, Picasso era<br />
o líder da “jovem arte européia” e o movimento<br />
cubista passava por suas revisões. Sem esquecermos<br />
a influência do existencialismo de Sartre, a<br />
decomposição cubista era mais explosiva que analítica,<br />
a realidade que ela queria mostrar fluía de uma<br />
consciência dilacerada e, em idéia, já era abstrata.<br />
149
A sua abstração possibilita o fazer artesanal,<br />
150<br />
Lhote havia participado da Exposição Section d’Or<br />
em 1912, e estava engajado nas discussões<br />
da especificidade da pintura francesa, essencialista<br />
e cartesiana dentro do conceito de uma “volta<br />
à ordem”, e estas concepções, aliadas à lógica<br />
e ao rigor do fazer artístico, é que determinavam<br />
o método de sua Academia fundada em 1922 e pela<br />
qual passaram vários artistas brasileiros.<br />
Do conhecimento técnico de preparo dos materiais<br />
pictóricos (a “cozinha” da pintura, como Velloso<br />
a chama), apreendido entre os acadêmicos no Paraná,<br />
foi reelaborado nessa reinvenção pós-cubista,<br />
ao mesmo tempo material e formal da pintura,<br />
e com um aprofundamento sobre o “métier” do pintor.<br />
Ser pintor, esta era a vontade do artista; e ser<br />
pintor é saber manusear com autoridade os materiais<br />
pictóricos, dominá-los, dominar a matéria, dominar<br />
o espaço compositivo do quadro: sensibilizar<br />
a superfície escolhida.<br />
Fernando Velloso tem a consciência clara<br />
que o espaço da tela não é um espaço de ilusão, ele<br />
é espaço de inscrição, de linguagem, de transformação<br />
da natureza vivida e sentida em pintura. Pintura para<br />
ele não é fazer o efêmero, o perecível; pintura deve ter<br />
qualidade e durabilidade e também muito trabalho,<br />
para possibilitar que todas as suas sensações<br />
(uma herança de Cézanne) possam entrar no quadro<br />
em forma de luz, de cor e de espaço e, com<br />
inteligência e sensibilidade, tentar o absoluto: “que<br />
o quadro seja bem pintado”, dirá Lhote nas suas<br />
“lnvariantes plásticas”.<br />
O que lhe interessou de Lhote não foi o “cubificar”<br />
as aparências, mas a lição de que o cubismo é espaço,<br />
que é espaço complexo, descontínuo e a materialização<br />
de um espaço novo que foi sentido por Braque<br />
e Picasso. É subversão do sistema perspectivo, mas não<br />
deixando de confirmar que este espaço que o artista<br />
quer planificar é oval, é côncavo, é barroco.<br />
Da herança racional do pós-cubismo lhe resta<br />
a estrutura do quadro, o espaço plano onde figura<br />
e fundo têm uma mesma importância; do trabalho<br />
sobre a matéria é que proporciona esta linguagem<br />
dúctil, plástica, impressionável, suscetível de todas<br />
as transformações e metamorfoses, na busca de<br />
materiais e texturas, onde o volume é real e não uma<br />
ilusão, resultado da manipulação das tintas e cores,<br />
e que conta também com apropriações de fragmentos<br />
do universo do pintor, estranhos à pintura mesma.<br />
Diferente do cubismo que se apropriava de<br />
porções de realidade, momentos do cotidiano, e colava<br />
no quadro, as apropriações do Fernando Velloso<br />
são plásticas, são texturas, são massas pictóricas, que<br />
se, por um lado, nos atraem pela sua sensualidade,<br />
estão ali também para exaltar um desenho que<br />
descreve analiticamente objetos, arquiteturas<br />
e volumes do quadro.<br />
As rendas, escolhidas criteriosamente, não<br />
lembram tempos passados, mas texturas sentidas,<br />
rugosidade que se opõe ao liso, sentidos no toque dos<br />
dedos sobre as diversas superfícies da própria natureza,<br />
uma natureza não somente ótica, mas também háptica<br />
(em Riegl, espaço dominado pelos corpos, sensível),<br />
e que às vezes levam também ao observador esta<br />
vontade de tocar na obra como se ela fosse a própria<br />
natureza. O não figurativismo de suas colagens<br />
não elimina a emotividade naturalista da forma,<br />
da textura e da cor.<br />
Não há perspectiva, pois o quadro é plano, mas<br />
há espaço determinado pela matéria e pela cor. Tempo<br />
e espaço são duas grandes conquistas da arte moderna;<br />
o tempo para Fernando é estável, duradouro,<br />
é o tempo necessário para se ler o quadro, para<br />
atravessá-lo com o olhar de um lado para o outro,<br />
perscrutar todos os detalhes, nuanças de cores<br />
e volumes, mas jamais para tentar atingir o objeto.<br />
O objeto, se ele existe, está preso, ou mesmo<br />
transformado, no espaço. São suas obsessões formais.<br />
Não há objetos aparentes na obra do Velloso;
sem a precisão requerida pelo objeto<br />
como nos explica Klee, eles podem ser recordações,<br />
reminiscências, fragmentos da natureza que ficaram<br />
guardados na memória do pintor e que ele<br />
retransforma em pintura. “Matéria é memória”,<br />
escreveu Henri Bergson. Suas pinturas são abstrações,<br />
pois a decepção com o ritual cubista de Lhote, com<br />
o seu dogmatismo pseudo-cientificista, o fez cair na<br />
abstração, mas não numa abstração hermética.<br />
A sua figura nunca está muito longe − mas ele não<br />
é figurativo em forma alguma. Pode ser figural<br />
conforme a concepção de Lyotard − com esforço,<br />
podemos ver a natureza do Paraná, as construções<br />
no espaço, os planos que se entrecortam, a cor,<br />
o dinamismo das formas transpassadas pelos elementos<br />
geométricos. Há tempos ele mesmo as denominou<br />
(por influências externas) de Florestas petrificadas,<br />
Espectros da floresta, mas agora suas composições<br />
se aproximam do que disse Klee, das reminiscências:<br />
Imagens resgatadas no tempo, Enigmas decorrentes, Formas<br />
em relação e confronto, Fragmentos colhidos no caminho...<br />
A sua abstração possibilita o fazer artesanal, sem<br />
a precisão requerida pelo objeto; ele acentua o prazer<br />
do fazer manual como que negando Duchamp na sua<br />
impossibilidade da pintura. Com Fernando Velloso<br />
se afirma de novo que é possível ser pintor de tela<br />
e tinta, de manipulação de materiais e instrumentos,<br />
da exaltação da vontade de pintar.<br />
As sua formas sensíveis, definidas como exercícios<br />
de racionalização na bidimensionalidade da tela, são<br />
barrocas, como é barroco também o tratamento<br />
matérico dessas formas; um atavismo brasileiro ou<br />
o resultado do processamento da forma pela matéria?<br />
Quando Kandinsky, rompendo com a perspectiva<br />
renascentista, ovalisou o espaço de suas pinturas, ele<br />
saiu da figuração. O barroco moderno de Fernando<br />
FERNANDO A. R. BINI<br />
Professor de História da Arte.<br />
Velloso é definido por esta espacialidade indefinida<br />
que é, ao mesmo tempo, resultado da ação do artista,<br />
da gestualidade dramática do pintor a caminho<br />
da abstração.<br />
Velloso é ainda o grande pintor, e quer ser<br />
considerado como tal. Sua obra é densa, pensada,<br />
produzida lentamente com a reflexão do teórico e do<br />
crítico que ele é; nada está ali por puro acaso, tudo foi<br />
analisado e confirma a sua direção, a de continuar<br />
a sua busca da idéia de abstração; abstração enquanto<br />
organização do espaço, de sensação da dimensão.<br />
O que está em suas telas é a cor e a textura da nossa<br />
matéria, é a cor e a textura de nossa vegetação, de<br />
nossa terra e de nosso céu, mas, antes de mais nada,<br />
o que está na tela é matéria pictórica, é a solução de um<br />
problema dado para e pelo pintor. As fantasmagorias<br />
desses seres-naturezas são frutos de nossa imaginação.<br />
151