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As almas santas na arte colonial mineira e o purgatório de Dante

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<strong>As</strong> <strong>almas</strong> <strong>santas</strong> <strong>na</strong> <strong>arte</strong> <strong>colonial</strong><br />

<strong>mineira</strong> e o <strong>purgatório</strong> <strong>de</strong> <strong>Dante</strong><br />

Dra. Adalgisa Arantes Campos<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Mi<strong>na</strong>s Gerais e CNPq<br />

1. Acervo residual: veneração e iconografia<br />

das Almas Santas<br />

No acervo artístico proveniente das irmanda<strong>de</strong>s do Glorioso Arcanjo São Miguel<br />

e Almas é freqüente a representação das <strong>almas</strong> do <strong>purgatório</strong>. Mesmo se não tivéssemos<br />

outras fontes como referência, saberíamos que são as <strong>almas</strong> do <strong>purgatório</strong> e não<br />

aquelas submetidas à da<strong>na</strong>ção eter<strong>na</strong> do fogo do inferno, pois elas são representadas,<br />

a maior p<strong>arte</strong> das vezes, a orar com as mãos unidas ou cruzadas sobre o peito, numa<br />

atitu<strong>de</strong> contrita. Eleitas à salvação, portanto já saberiam da sua sentença. E, com pressa<br />

<strong>de</strong> alcançar a visão <strong>de</strong> Deus, elas rezam, aguardando a ple<strong>na</strong> remissão das culpas.<br />

Segundo a doutri<strong>na</strong> católica, é louvável recordar e apiedar-se <strong>de</strong> seus falecidos<br />

através <strong>de</strong> orações. Um dos principais fundamentos bíblicos <strong>de</strong>sta doutri<strong>na</strong> se encontra<br />

no Segundo Livro dos Macabeus (2 Mac 12, 38-46). Na época em estudo,<br />

encontra-se em sua fase aúrea a crença <strong>na</strong> comunhão dos santos ou das pessoas<br />

santificadas pelo batismo, segundo a qual o corpo místico <strong>de</strong> Jesus Cristo se divi<strong>de</strong><br />

inter<strong>na</strong>mente em três igrejas distintas, mas inter-relacio<strong>na</strong>das: o mundo dos vivos<br />

(Igreja Peregri<strong>na</strong>), dos mortos (Igreja Pa<strong>de</strong>cente) e dos santos (Igreja Triunfante). Esta<br />

doutri<strong>na</strong> conforta, dá esperança e consola, pois não admite a morte do homem bom,<br />

a solidão e o <strong>na</strong>da, ressaltando a importância da solidarieda<strong>de</strong> e unida<strong>de</strong> para se<br />

atingir a vida eter<strong>na</strong> e, por isso, o gesto piedoso, feito em qualquer uma <strong>de</strong>las, resvala<br />

<strong>na</strong>s outras. <strong>As</strong> famílias car<strong>na</strong>is ou espirituais (or<strong>de</strong>ns religiosas e irmanda<strong>de</strong>s)<br />

interce<strong>de</strong>m junto aos santos pelas <strong>almas</strong> do <strong>purgatório</strong>; estas, por sua vez, também<br />

agem em favor dos homens e, assim por diante, através <strong>de</strong> laços espirituais<br />

e afetivos que trazem progressos <strong>na</strong> rota espiritual. Nessa concepção, a morte não<br />

separa os corações unidos pelo amor e pieda<strong>de</strong>, os “<strong>de</strong>funtos não estão ausentes,<br />

mas ape<strong>na</strong>s velados e sempre junto a nós” 1 .<br />

1 PEREIRA, Mês das Almas do Purgatório, 1969, p.32.


Adalgisa Arantes Campos - 43<br />

No esquema acima <strong>de</strong>stacamos as relações recíprocas entre as diversas igrejas<br />

do corpo místico <strong>de</strong> Cristo, bem como o movimento da Igreja Pa<strong>de</strong>cente em direção<br />

aos vivos, através <strong>de</strong> pedidos, manifestação <strong>de</strong> prodígios e, sobretudo, o repertório<br />

<strong>de</strong> orações <strong>de</strong>ssas criaturas eleitas. No fi<strong>na</strong>l, perceberemos que a expiação no<br />

além também se fazia através das orações, e <strong>de</strong> maneira semelhante à roti<strong>na</strong> dos<br />

<strong>de</strong>votos <strong>na</strong> vida terre<strong>na</strong>. Com a diferença <strong>de</strong> que as <strong>almas</strong> do <strong>purgatório</strong> não po<strong>de</strong>m<br />

mais adquirir méritos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> penitências, obras <strong>de</strong> misericórdia etc. Encontram-se<br />

em um estado <strong>de</strong> impotência e, para purificar-se, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das pe<strong>na</strong>s<br />

purgatórias e da intercessão dos vivos e dos santos.<br />

A expressão “<strong>almas</strong> <strong>santas</strong>” foi usual <strong>na</strong> documentação trabalhada e, em muitos<br />

casos, chega a constituir o nome da irmanda<strong>de</strong> como, por exemplo, a Irmanda<strong>de</strong> das<br />

Almas Santas <strong>de</strong> Itatiaia e <strong>de</strong> Rio das Pedras (atual Acuruí). E, embora as fontes consultadas<br />

sejam muito convencio<strong>na</strong>is, fechadas ao relato <strong>de</strong> milagres, a produção visual<br />

revela constantemente que as <strong>almas</strong> do Purgatório eram concebidas como seres<br />

<strong>de</strong> uma santida<strong>de</strong> inconteste. No altar <strong>de</strong> São Miguel da igreja paroquial <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora da Conceição, da freguesia <strong>de</strong> Antônio Dias, em Ouro Preto, as <strong>almas</strong> são<br />

representadas no frontal do falso sacrário, lugar <strong>de</strong> forte simbolismo, pois reservado<br />

à guarda do Corpo <strong>de</strong> Cristo. Portanto, elas não se encontram estampadas ape<strong>na</strong>s em<br />

frontais das mesas <strong>de</strong> altares, numa posição inferior, assimilada ao simbolismo do<br />

“baixo”. Na Matriz <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>de</strong> Nazaré, em Cachoeira do Campo, o retábulo<br />

da irmanda<strong>de</strong> do Arcanjo Miguel traz a representação <strong>de</strong> alma femini<strong>na</strong>, bem<br />

no alto do arremate.<br />

No caso específico das <strong>almas</strong> <strong>santas</strong>, a documentação visual fala mais alto que<br />

as fontes escritas. Geralmente os livros <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong>s p<strong>arte</strong>m do pressuposto, já<br />

aceito <strong>na</strong> mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> então, da santida<strong>de</strong> das <strong>almas</strong> e, raramente, fazem menção<br />

<strong>de</strong>longada às eleitas <strong>de</strong> Deus. E, quando o fazem, também é <strong>de</strong> forma padroni-


44 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

zada como, por exemplo, nos estatutos da Irmanda<strong>de</strong> das Almas, estabelecida em<br />

1713, <strong>de</strong>ntro da matriz <strong>de</strong> Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté. Aí, alega-se<br />

“... são tantos os prodigios, que Deus tem obrado neste Mundo por meio das Almas<br />

do Purgatório em favor <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>votos...”, que era consi<strong>de</strong>rado mérito aos “olhos<br />

do mesmo Senhor a pieda<strong>de</strong> dos fiéis para com as Almas que no Purgatório estão<br />

privadas da vista <strong>de</strong> Deos...” (sic) 2 . A mesma justificativa, inclusive com texto idêntico,<br />

se encontra nos estatutos da Irmanda<strong>de</strong> das Almas <strong>de</strong> Pitangui, ereta em 1727,<br />

o que leva a constatar não ape<strong>na</strong>s a extrema repetição dos conteúdos <strong>de</strong>stes livros,<br />

fato já conhecido, outrossim, a aceitação comum dos “prodígios das <strong>almas</strong>” 3 .<br />

Outro documento raro por integrar esfera visual e a informação escrita, além<br />

<strong>de</strong> registrar a crença <strong>na</strong> comunhão dos santos, é o ex-voto, datado <strong>de</strong> 1743, existente<br />

no Museu da Inconfidência <strong>de</strong> Ouro Preto, <strong>de</strong> procedência ignorada. No<br />

precioso exemplar da <strong>arte</strong> popular do setecentos mineiro, há duas <strong>almas</strong> (uma masculi<strong>na</strong><br />

e outra femini<strong>na</strong>) <strong>na</strong>s extremida<strong>de</strong>s e quatro <strong>na</strong> p<strong>arte</strong> superior da obra. Estão<br />

em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> oração, com as mãos cruzadas sobre o peito. O texto da tarja informa<br />

que Manoel Ribeiro dos Santos encontrava-se a pedir esmolas pelas <strong>almas</strong>, quando<br />

foi surpreendido por um inimigo, que lhe <strong>de</strong>sfechou dois tiros. O <strong>de</strong>voto invocou<br />

as Almas, por intercessão <strong>de</strong>stas, Nossa Senhora <strong>de</strong> Nazaré fez o milagre e, em si<strong>na</strong>l<br />

<strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento por ter sobrevivido ao atentado, ele mandou fazer uma obrinha<br />

que <strong>de</strong>ixasse <strong>na</strong> memória aquele prodígio.<br />

Milagre que fez Nossa Senhora <strong>de</strong> Nazaré por intercessão das Almas Santas,<br />

a Manoel Ribeiro dos Santos Sereno: Vindo <strong>de</strong> pedir esmolas das Almas, a<br />

recolher para casa, lhe estava esperando no Caminho um seu Inimigo, e lhe<br />

fez dois tiros, ambos empregaram com 4 perdigotos <strong>na</strong> cabeça pelos ouvidos,<br />

pescoço, até os peitos o qual ansiado pediu socorro à dita Senhora e às Almas,<br />

e milagrosamente sarou das ditas feridas. Aos 17 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1743<br />

anos. (Texto atualizado)<br />

No contexto das Mi<strong>na</strong>s setecentistas, o gesto <strong>de</strong> Manoel Ribeiro parece constituir<br />

exceção, pois geralmente agra<strong>de</strong>ce-se às <strong>almas</strong> com sufrágios e não com exvotos.<br />

Os prodígios em <strong>de</strong>corrência da santida<strong>de</strong> das <strong>almas</strong> permaneceram, <strong>de</strong><br />

preferência, ocultados à documentação ou divulgados por fontes orais. Apesar <strong>de</strong><br />

toda a dificulda<strong>de</strong> para se estudar os milagres das <strong>almas</strong>, sublinhamos a <strong>na</strong>tureza<br />

ambígua das eleitas <strong>de</strong> Deus, que precisam <strong>de</strong> preces, pois se encontram aflitas,<br />

privadas da visão <strong>de</strong> Deus, pa<strong>de</strong>cendo inexplicáveis tormentos, simultaneamente,<br />

2 APM, Compromisso da Irmanda<strong>de</strong> das Almas <strong>de</strong> Caeté, 1713.<br />

3 “... <strong>de</strong> quanto mayor merito, será nos olhos <strong>de</strong> Deos a Pieda<strong>de</strong> dos fieis para com as Almas<br />

Santas, que no Purgatorio estão privadas da vista <strong>de</strong> Deos, e pa<strong>de</strong>cem inexplicaveis tormentos,<br />

poes são tanto os prodigios, que Deos tem obrado neste mundo por meyo das Almas<br />

do Purgatorio em favor <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>votos, para que <strong>de</strong>voção <strong>de</strong> tanto serviço <strong>de</strong> Deos vá em<br />

augmento, havendo Estatutos para a Conservação, e boa forma do governo ...” (AEAM, Compromisso<br />

da Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Miguel e Almas <strong>de</strong> Pitangui, 1727).


Adalgisa Arantes Campos - 45<br />

são dotadas <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>, em virtu<strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> purificação e ilumi<strong>na</strong>ção por<br />

que passam. Daí a expressão corrente “<strong>almas</strong> aflitas e <strong>santas</strong>”. Portanto, reza-se<br />

pelas e para as <strong>almas</strong>, pois elas também são alvo <strong>de</strong> veneração particular.<br />

A partir da <strong>de</strong>voção das “benditas do <strong>purgatório</strong>”, é construída <strong>na</strong>s Gerais a<br />

imagem pouco infer<strong>na</strong>lizada daquele lugar do além, on<strong>de</strong> as <strong>almas</strong> se ocupam em<br />

orar e se apiedar dos vivos, numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> esperança. <strong>As</strong> <strong>almas</strong> são representadas<br />

jovens, adultas ou, raramente, idosas, como no exemplo da matriz <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>l<br />

Rei. A freqüência maior das <strong>almas</strong> novas <strong>de</strong>nuncia, assim, a morte precoce <strong>na</strong>s Gerais,<br />

flagrante nos livros <strong>de</strong> óbitos paroquiais. <strong>As</strong> composições também diferenciam<br />

sexo, meio a meio. O <strong>purgatório</strong> apresenta uma população <strong>de</strong> ambos os sexos e <strong>de</strong><br />

todas as ida<strong>de</strong>s, incli<strong>na</strong>ndo-se para o adulto jovem. Lembre-se a<strong>de</strong>mais que o <strong>purgatório</strong><br />

é reservado ape<strong>na</strong>s àqueles que foram batizados.<br />

O acervo visual expressa bem o imaginário do colonizador e, assim, as <strong>almas</strong> em<br />

geral são <strong>de</strong> cor branca. Nesse tema em particular, o mundo da repre¬sentação não<br />

assimilou os negros e mulatos o mesmo não ocorre no plano mental, evi<strong>de</strong>nciado pelas<br />

missas <strong>na</strong> intenção dos cativos, que estariam no <strong>purgatório</strong>.<br />

Observando as representações <strong>de</strong> <strong>almas</strong>, verificamos através da feição suave e do<br />

olhar espiritualizado que <strong>de</strong>las ema<strong>na</strong> a graça. A bem-aventurança, portanto, não é<br />

transmitida ape<strong>na</strong>s pela incli<strong>na</strong>ção da cabeça e pelas mãos em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> oração.<br />

Em casos específicos, o artista consegue <strong>na</strong>tural¬mente traduzir o estado <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong><br />

da alma como, por exemplo, no cofrinho das <strong>almas</strong> <strong>de</strong> coleção particular<br />

proveniente da região <strong>de</strong> Piranga; em tela, já <strong>de</strong>saparecida, proce<strong>de</strong>nte do Sumidouro<br />

(atual Padre Viegas); <strong>na</strong> ilustração do livro <strong>de</strong> compromisso <strong>de</strong> Acuruí; no<br />

ex-voto existente no Museu da Inconfidência; e mesmo no frontal da mesa do altar<br />

da igreja paroquial <strong>de</strong> Furquim. A graça é proveniente <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção inter<strong>na</strong><br />

da alma e, portanto, bem sucedido é o <strong>arte</strong>são ou atelier que consegue dar forma<br />

àquele movimento espiritual em direção ao bem. Não se trata <strong>de</strong> conferir os<br />

atributos da santida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> torná-la visível.<br />

2. “Almas <strong>santas</strong> e aflitas”: progressos <strong>na</strong> via purgativa<br />

É importante frisar que a santida<strong>de</strong> não exclui o sofrimento, como tão bem<br />

esclarece Santa Catari<strong>na</strong> <strong>de</strong> Gênova (1447-1510), em seu Tratado sobre o Purgatório:<br />

“O amor divino, ao penetrar <strong>na</strong>s <strong>almas</strong> do Purgatório confere-lhes uma paz<br />

in<strong>de</strong>scritível. Tem assim gran<strong>de</strong> alegria e, ao mesmo tempo, gran<strong>de</strong> pe<strong>na</strong>. Mas uma<br />

não diminui a outra” 4 .<br />

A graça não é absoluta, pois ainda não se consumou o processo <strong>de</strong> purificação.<br />

Através das pe<strong>na</strong>s corporais, da meditação sobre o pecado e orações, próprias<br />

4 Vj. cap. XIV do Tratado do Purgatório <strong>de</strong> Santa Catari<strong>na</strong> <strong>de</strong> Gênova apud BOFF, Vida para<br />

Além da Morte, 1991, pp. 149-50.


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ou enviadas por terceiros, as <strong>almas</strong> ascen<strong>de</strong>m espiritualmente e, ao mesmo tempo,<br />

assumem e reconhecem dolorosamente a incomensurável distância em relação à<br />

santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Elas tor<strong>na</strong>m-se mais livres, porque isentas da mácula do pecado,<br />

simultaneamente, mais conscientes, com uma subjetivida<strong>de</strong> mais interiorizada.<br />

Encontram-se atraídas em direção a Deus, mas reconhecem os impedimentos pessoais:<br />

“A alma vê que Deus, pelo seu gran<strong>de</strong> amor e providência constante, jamais<br />

<strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> a atrair à sua última perfeição. Vê também que, ligada pelos restos do<br />

pecado, não po<strong>de</strong> por si mesma correspon<strong>de</strong>r a esta atração...” (cap. XI).<br />

Por essa razão, quanto mais adiantadas <strong>na</strong> via purgativa, mais <strong>santas</strong> e também<br />

mais aflitas pela visão <strong>de</strong> Deus. Daí a expressão, ainda recorrente nos meios mais<br />

populares, “<strong>almas</strong> <strong>santas</strong> e aflitas”. A aflição, portanto, emerge do estado alto da<br />

consciência que se ilumi<strong>na</strong>, e não imediatamente da pe<strong>na</strong> do fogo. Quanto mais<br />

adiantadas no processo da purgação, mais <strong>santas</strong>, mais lúcidas, “mais sabidas e<br />

entendidas” e, necessariamente, mais “aflitas”. Justamente estas <strong>almas</strong> que mais<br />

sofrem, mais carecem <strong>de</strong> sufrágios. Surpren<strong>de</strong>ntemente as “<strong>almas</strong> que mais necessitam”<br />

são precisamente aquelas que, no senso comum, precisam <strong>de</strong> menos, pois<br />

se encontram avançadas <strong>na</strong> rota espiritual. <strong>As</strong> <strong>almas</strong> iniciantes contam com uma<br />

subjetivida<strong>de</strong>, bastante tosca, porque o movimento pessoal em direção ao bem<br />

ainda é superficial e exterior. A aflição ainda é fraca, numa etapa superior, à medida<br />

que o amor cresce, vai atingir níveis insuportáveis.<br />

3. <strong>As</strong> Almas Santas e os textos doutrinários<br />

É interessante observar que nos livros da Bíblia, tidos como documentos da<br />

verda<strong>de</strong>ira doutri<strong>na</strong> e fé, não ocorre passagens esclarecedoras a respeito das <strong>almas</strong><br />

<strong>santas</strong> e seus prodígios. Em momento algum se afirma, por exemplo, que aquelas<br />

criaturas oram ou interce<strong>de</strong>m a favor dos mortais. <strong>As</strong>sim, as fontes reconhecidas<br />

como escrituras autênticas pouco contribuem.<br />

Sobre o assunto, Jacques Le Goff fornece-nos elucidação, indicando o livro<br />

apócrifo, consi<strong>de</strong>rado importantíssimo para a representação do além, o qual faz<br />

referência precisa à santida<strong>de</strong> das <strong>almas</strong> que rogam a Deus <strong>na</strong> intenção dos vivos 5 .<br />

Trata-se do Primeiro Livro <strong>de</strong> Henoque, patriarca que, segundo o Gênesis (Gn 5,<br />

18-24), teve prole numerosa e viu-se subitamente arrebatado aos céus, em ida<strong>de</strong><br />

espetacularmente avançada. Recolhido, sob o título <strong>de</strong> Primeiro livro, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong><br />

constitui um conjunto fragmentado <strong>de</strong> manuscritos provenientes <strong>de</strong> diversas épocas<br />

fundidos em volume único por autor <strong>de</strong>sconhecido, provavelmente nos começos<br />

da era cristã 6 . Embora circulasse, a obra <strong>de</strong> Henoque não foi aprovada como<br />

fonte autêntica, razão pela qual não se encontra <strong>na</strong> Bíblia, mas era lida amplamente<br />

pelas elites cultas. Em uma <strong>de</strong> suas visões, Henoque <strong>de</strong>s¬creve no capítulo 39:<br />

5 LE GOFF, La <strong>na</strong>issance du Purgatoire, 1981, pp. 48-51.<br />

6 Cf. o Primeiro Livro <strong>de</strong> Henoque IN: MACHO, 1984, t. IV, pp. 39-143.


Adalgisa Arantes Campos - 47<br />

Nesses dias me arrebatou uma tormenta <strong>de</strong> vento da face da terra e me colocou<br />

<strong>na</strong> borda dos céus. Ali tive outra visão: a morada dos santos e o leito dos justos.<br />

Ali meus olhos viram sua morada com os anjos justos e seu leito com os santos.<br />

Imploravam, rogavam e rezavam pelos filhos dos homens, e a justiça brotava<br />

como água diante <strong>de</strong>les, e a misericórdia como orvalho pela terra: assim é entre<br />

eles eter<strong>na</strong>mente (MACHO, 1984, p. 67, grifos nossos).<br />

Esta passagem tor<strong>na</strong>-se, assim, fundamental para compreen<strong>de</strong>rmos, já em uma<br />

época remota, a crença <strong>na</strong> intercessão dos santos e dos justos, que rogam junto a<br />

Deus em favor dos homens. Nesse sentido pouco interessa a chancela <strong>de</strong> apócrifo<br />

ou autêntico, pois o primordial resi<strong>de</strong> no acolhimento dado pela obra à atuação<br />

dos mortos e à comunhão dos santos. Observa¬remos, mais adiante, que <strong>Dante</strong><br />

reitera e dá voz a essa tradição, pois, em seu sistema, as <strong>almas</strong> purificam-se através<br />

da expiação física e orações, as quais também se <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>m aos vivos (PURG., XI,<br />

31). Localizamos assim, no domínio da informação escrita, a passagem primeva a<br />

respeito das súplicas das <strong>almas</strong>.<br />

A crença <strong>na</strong> intercessão das <strong>almas</strong> em favor dos vivos é revelada no poema<br />

“Alma minha gentil”, através do qual Camões home<strong>na</strong>geia a amada, cuja vida teve<br />

fim precoce, suplicando-lhe rogar a Deus para também abreviar seus dias amargos:<br />

Alma minha gentil, que te partiste<br />

tão cedo <strong>de</strong>sta vida <strong>de</strong>scontente,<br />

repousa lá no Céu eter<strong>na</strong>mente,<br />

e viva eu cá <strong>na</strong> Terra sempre triste.<br />

Se lá no assento etéreo, on<strong>de</strong> subiste,<br />

memória <strong>de</strong>sta vida se consente,<br />

não te esqueças daquele amor ar<strong>de</strong>nte<br />

que já nos olhos meus tão puro viste.<br />

E se vires que po<strong>de</strong> merecer-te<br />

alguma cousa a dor que me ficou<br />

da mágoa, sem remédio, <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r-te,<br />

roga a Deus, que teus anos encurtou,<br />

que tão cedo <strong>de</strong> cá me leve a ver-te,<br />

quão cedo <strong>de</strong> meus olhos te levou (CAMÕES, 1990, p. 123).


48 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Sobre a veneração às <strong>almas</strong> <strong>santas</strong>, o texto tri<strong>de</strong>ntino é omisso. Basicamente<br />

admite a existência do <strong>purgatório</strong> para a expiação, e recomenda as preces que<br />

ajudam as <strong>almas</strong> dos fiéis <strong>de</strong>funtos, particularmente a missa (Concílio Tri<strong>de</strong>ntino,<br />

sessão XXV, § 983). Ape<strong>na</strong>s um parágrafo reservado a esse “lugar” tão concorrido<br />

<strong>na</strong> mentalida<strong>de</strong> barroca. A Igreja reafirma, assim, a crença no <strong>purgatório</strong>, já aprovada<br />

no Concílio <strong>de</strong> Lião, em 1274, chancelando uma tradição enraizada <strong>na</strong> vida<br />

das populações evangelizadas.<br />

Na Colônia, as <strong>de</strong>liberações tri<strong>de</strong>nti<strong>na</strong>s foram sistematizadas através das Constituiçoens<br />

Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), as quais tentaram <strong>de</strong>senvolver<br />

sistemas paroquiais, com ênfase nos sacramentos, mas <strong>na</strong>da mencio<strong>na</strong>m a respeito<br />

do culto às <strong>almas</strong> <strong>santas</strong>. 7 O texto <strong>de</strong> Dom Sebastião Monteiro da Vi<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> largamente<br />

a pieda<strong>de</strong> em relação aos fiéis <strong>de</strong>funtos, mas não faz menção, conservando<br />

sua tradição culta, às benditas criaturas e seus prodígios. Nenhuma alusão!<br />

Não encontrando, <strong>na</strong>s referências próximas, o material <strong>de</strong> que precisávamos,<br />

consi<strong>de</strong>rando o estado residual e a dispersão dos acervos artísticos, procuramos<br />

apoio em uma fonte recuada no tempo 8 . A obra que cai como luva a propósito das<br />

Almas Santas é o “Purgatório”, livro <strong>de</strong> A Divi<strong>na</strong> Comédia, <strong>de</strong> <strong>Dante</strong> Alighieri, escrita<br />

entre 1308 e 1312 9 .<br />

4. A purificação através do fogo<br />

No sistema <strong>de</strong> <strong>Dante</strong>, as <strong>almas</strong> são distribuídas através dos sete ter¬raços existentes<br />

<strong>na</strong> montanha do Purgatório, em conformida<strong>de</strong> com os sete pecados capitais<br />

1º- soberba, 2º- avareza, 3º- luxúria, 4º- ira, 5º- gula, 6º- inveja, 7º- preguiça. No<br />

entanto, o autor altera a or<strong>de</strong>m vigente dos pecados capitais, no sentido <strong>de</strong> amenizar<br />

a gravida<strong>de</strong> da luxúria, consi<strong>de</strong>rada doravante uma falta mais leve. Deste modo,<br />

a divisão do Purgatório em camadas progressivas em direção ao Bem segue ao<br />

novo escalo<strong>na</strong>mento, segundo <strong>Dante</strong>: 1º orgulho, 2º inveja, 3º ira, 4º preguiça, 5º<br />

avareza, 6º gula, 7º luxúria.<br />

7 BOSSY, The counter-reformation and the people of catholic Europe IN: Past and Present,<br />

47 (1970): 51-70.<br />

8 Segundo Le Goff a maioria das <strong>na</strong>rrativas sobre viagens ao além foram feitas por clérigos que,<br />

entre os séculos VII e XIV, transcreveram as próprias visões ou <strong>de</strong>ram forma escrita à tradição<br />

oral corrente. Esse tipo <strong>de</strong> literatura, crivado <strong>de</strong> citações livrescas próprias <strong>de</strong> textos apocalípticos<br />

ju<strong>de</strong>o-cristãos, essencialmente escrita em latim, <strong>de</strong>monstra a interação entre a cultura<br />

erudita e a cultura popular. Le Goff fornece listagem com 12 títulos, entre eles <strong>de</strong>staca-se O<br />

Purgatório <strong>de</strong> São Patrício (1180-1220); A Visão <strong>de</strong> Turchill (1206) e fi<strong>na</strong>lmente A Divi<strong>na</strong> Comédia,<br />

<strong>de</strong> <strong>Dante</strong> Alighieri (inícios do século XIV) (Cf. LE GOFF. <strong>As</strong>pects savants et populaire<br />

<strong>de</strong>s voyages dans l’au-<strong>de</strong>là au Moyen Age IN: L’Imagi<strong>na</strong>ire Médievale. 1985, pp. 102-119).<br />

9 Cf. ALIGHIERI, A Divi<strong>na</strong> Comédia, 1984, v.2, pp. 9-296. Recorremos largamente a LE<br />

GOFF, Le triomphe poétique. La ‘Divi<strong>na</strong> Commedia’ IN: op. cit. 1981, pp. 449-79.


Adalgisa Arantes Campos - 49<br />

Ao pecado cometido correspon<strong>de</strong> a punição específica, essencialmente oposta,<br />

que atinge a materialida<strong>de</strong> sui generis daquelas criaturas, visando restaurar o amor que<br />

fora corrompido ou pervertido 10 . Além da purgação física por excelência, abrangendo<br />

punições variadas, as <strong>almas</strong> “meditavam sobre o pecado” que cometeram, estimuladas<br />

pela exemplarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mortos ilustres e, concomitantemente, oravam contritos (Le<br />

Goff, 1981, p. 454-8). Basicamente, o processo <strong>de</strong> purificação envolve a expiação física<br />

e espiritual. Tal processo <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>-se via purgativa, isto é, a trajetória progressiva<br />

da alma no sentido <strong>de</strong> purificar-se, santificar-se, ilumi<strong>na</strong>r-se e, portanto, caminhar em<br />

direção à restauração da bonda<strong>de</strong>.<br />

Do conjunto <strong>de</strong> punições físicas criadas por <strong>Dante</strong> interessa-nos <strong>de</strong> perto ape<strong>na</strong>s<br />

a purificação feita através do fogo, que atinge <strong>na</strong>quele sistema os pecadores da<br />

luxúria, situados no patamar fi<strong>na</strong>l da via purgativa. O que atrai a nossa atenção não<br />

é a misericórdia reservada aos pecadores da luxúria, mas a presença do fogo como<br />

elemento essencial no processo <strong>de</strong> purificação “post-mortem”.<br />

O fogo, que em <strong>Dante</strong> é uma pe<strong>na</strong> específica para os luxuriosos, <strong>na</strong> Época<br />

Mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> constitui o elemento iconográfico indispensável à representação do <strong>purgatório</strong>.<br />

A prova do fogo está presente em todas as representações sobre o <strong>purgatório</strong><br />

<strong>na</strong>s Gerais. Por sua vez, alerta-se que isto não significa, numa homologia direta<br />

e imediata, que os mineiros, em seu conjunto, incorressem <strong>na</strong> lascívia e luxúria.<br />

Até po<strong>de</strong>riam, mas não é esta a nossa via <strong>de</strong> enfoque. <strong>Dante</strong> ratifica a pe<strong>na</strong> do fogo,<br />

seguindo a tradição popular, cujos fundamentos também contam com uma <strong>na</strong>tureza<br />

escriturística 11 . A diferença é que ele a restringe aos luxuriosos, enquanto <strong>na</strong><br />

Bíblia a prova do fogo é reservada universalmente a humanida<strong>de</strong> pecadora.<br />

No Velho e no Novo Testamento são abundantes as passagens alusivas à prova<br />

do fogo, que ocorreria imediatamente após a morte e durante a consumação dos<br />

tempos. Sobre o assunto, salienta-se, a análise feita por Le Goff é sistemática, motivo<br />

pelo qual comentamos ape<strong>na</strong>s duas passagens essenciais. A primeira diz respeito<br />

à purificação feita através da água, por João Batista, e ao anúncio <strong>de</strong> uma<br />

outra, no tempo escatológico, que seria realizada por meio do fogo (Lc 3, 15-18).<br />

O fogo encerra o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> justiça vindoura, que pune os ímpios e premia os<br />

justo e, ao mesmo tempo, simboliza a purificação, tal qual o batismo.<br />

A Primeira Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios (Icor 3, 10-15), consi<strong>de</strong>rada por Le<br />

Goff a principal base escriturística sobre a qual o cristianismo medieval constrói a<br />

doutri<strong>na</strong> do <strong>purgatório</strong>, retoma o sentido divino e justiceiro do fogo, o qual experimentaria<br />

as obras feitas pelos homens, através <strong>de</strong> uma ação diferenciada. O fogo<br />

divino purga sem, no entanto, <strong>de</strong>struir e, através <strong>de</strong>le, salva-se.<br />

10 Le Goff consi<strong>de</strong>ra o pensamento <strong>de</strong> <strong>Dante</strong> uma cosmogonia e filosofia do bem, do amor<br />

e da esperança. <strong>As</strong> três formas <strong>de</strong> perversão do amor são o orgulho, a inveja, a ira. <strong>As</strong> três<br />

formas <strong>de</strong> amor corrompido são a avareza, a gula e a luxúria (Cf. op. cit. Pp. 459-60).<br />

11 Cf. LE GOFF, Imagerie pé<strong>na</strong>le. Le feu. IN: op. cit. pp. 18-23; p. 67; pp. 81-5.


50 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

<strong>Dante</strong> recorre diretamente às referidas passagens escriturísticas, ou o mais provável,<br />

dá voz, como homem do seu tempo, a uma concepção em ascensão do fogo transitório<br />

como elemento judiciário, purificador e divinizante necessário à imortalida<strong>de</strong>:<br />

Inda que tu, em meio ao fogo aceso,<br />

ficasses por <strong>de</strong>z séculos, em pranto,<br />

<strong>de</strong> um só cabelo não serias ileso. (PURG., XXVII, 25/27).<br />

Meu filho,<br />

o fogo eterno (Inferno) e o temporal (Purgatório)<br />

já contemplaste, e eis-te chegado à p<strong>arte</strong><br />

que ultrapassar não posso, por meu mal (...) (PURG., XXVII, 127/128).<br />

Determi<strong>na</strong>das passagens das escrituras cristãs herdam o sentido ambíguo do<br />

fogo sagrado que, ao mesmo tempo, pune, rejuvenesce e imortaliza, concepção básica<br />

das mitologias do mundo antigo. O fogo purgatorial é dotado <strong>de</strong>ssa <strong>na</strong>tureza<br />

complexa, assimilada no plano das realida<strong>de</strong>s simbólicas, o que explicaria, segundo<br />

Le Goff, o enorme sucesso <strong>de</strong>sse novo lugar do além. A concepção relativa ao fogo,<br />

no sistema <strong>de</strong> <strong>Dante</strong>, percorre uma via já conhecida, embora <strong>de</strong> difícil interpretação<br />

para as camadas populares do século XIV (LE GOFF, 1981, p. 22). A visão unívoca<br />

do fogo, como elemento punitivo, é mais fácil <strong>de</strong> ser compreendida pelo cristão que<br />

a passagem <strong>de</strong> São Paulo “será salvo, mas como que através do fogo” (ICor 3, 13).<br />

A representação do fogo do <strong>purgatório</strong>, difundida através dos livros <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> São Miguel e Almas e da iconografia do setecentos mineiro, privilegia o sentido<br />

purificador e divinizador. No entanto, é importante frisar que a fonte escrita não é tão<br />

elucidativa, reafirmando ape<strong>na</strong>s que as <strong>almas</strong> pa<strong>de</strong>cem inexplicáveis tormentos. Por<br />

sua vez, as imagens expressam claramente a leitura do fogo enquanto elemento <strong>de</strong><br />

purificação e santificação. Não há contorções, feições <strong>de</strong>sfiguradas ou qualquer indício<br />

da <strong>na</strong>tureza unívoca do fogo. <strong>As</strong> eleitas atingidas pelo fogo conservam a serenida<strong>de</strong>,<br />

o olhar <strong>de</strong> soslaio em si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> meditação sobre o pecado ou, então, dirigido para o<br />

alto, para expressar a esperança em Deus. Se fosse fogo infer<strong>na</strong>l, essencialmente punitivo<br />

e <strong>de</strong>strutivo, a <strong>arte</strong> barroca, afi<strong>na</strong>da com os recursos da linguagem expressionista,<br />

teria todas as habilida<strong>de</strong>s para expressá-lo com requintes veristas. Po<strong>de</strong>mos ler o Purgatório<br />

<strong>de</strong> <strong>Dante</strong>, contemplando o acervo artístico proveniente das Mi<strong>na</strong>s, como se<br />

este constituísse as pranchas ilustrativas daquela obra, tal é a afinida<strong>de</strong> entre as duas<br />

produções artísticas, diferentemente circuns¬tanciadas.<br />

O fogo re<strong>de</strong>ntor é representado em outras manifestações iconográficas do barroco<br />

das Mi<strong>na</strong>s, o que <strong>na</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>nuncia a ênfase <strong>na</strong> interpretação mais difícil e<br />

ambígua. São abundantes os exemplos provenientes do retábulo <strong>de</strong> configuração<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l-português (1700-1730) on<strong>de</strong> o pássaro-fênix, que, segundo a lenda, teria


Adalgisa Arantes Campos - 51<br />

ressurgido das cinzas, tor<strong>na</strong>-se o símbolo da humanida<strong>de</strong> convocada à ressurreição.<br />

Além <strong>de</strong>ssas figurações <strong>de</strong> pombas com foguinho nos pés, foram freqüentes,<br />

durante a segunda meta<strong>de</strong> do <strong>de</strong>zoito, as representações do Sagrado Coração <strong>de</strong><br />

Jesus e dos Santíssimos Corações <strong>de</strong> Jesus, Maria e José 12 . Os corações são cingidos<br />

pela da coroa <strong>de</strong> espinhos, simbolizando a morte-martírio <strong>de</strong> Jesus para nos salvar.<br />

Também são circundados por uma chama vigorosa que, integrada ao conjunto,<br />

representa a energia vital, o eterno amor divino.<br />

5. A expiação através das súplicas e orações<br />

Interessa-nos a penitência espiritual, particularmente quando há semelhanças<br />

com as práticas religiosas cotidia<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s Mi<strong>na</strong>s setecentistas. Extraímos das <strong>almas</strong><br />

<strong>santas</strong> <strong>de</strong> <strong>Dante</strong> aquelas súplicas, caras a religiosida<strong>de</strong> barroca, séculos e séculos<br />

<strong>de</strong>pois. <strong>As</strong>sim sendo, as <strong>almas</strong> se penitenciam no <strong>purgatório</strong>, justamente à maneira<br />

dos vivos, tendo em vista que elas conservam a memória da vida pessoal, o que<br />

lhes permite, inclusive, a contrição e, concomitantemente, a repetição das mesmas<br />

orações, o pedido <strong>de</strong> preces e a recorrência às mesmas passagens bíblicas.<br />

Inicialmente é preciso <strong>de</strong>stacar o quão importantes e esperadas são as preces<br />

feitas pelos vivos, que resultam em substantivo progresso espiritual das <strong>almas</strong>:<br />

“Que aos impulsos <strong>de</strong> lá (terra) aqui (no <strong>purgatório</strong>) se avança” (PURG., III, 145).<br />

Por essa razão, as <strong>almas</strong> do <strong>purgatório</strong> constantemente assediam <strong>Dante</strong>, solicitando-lhe<br />

enviar recados para conterrâneos, parentes ou amigos ainda vivos, sempre<br />

com o fim <strong>de</strong> obter uma prece suplementar 13 . Nenhum pedido às confrarias, quase<br />

sempre à família e amigos da região on<strong>de</strong> viveram.<br />

E, tendo em vista que ao fi<strong>na</strong>l da viagem, <strong>Dante</strong> atingiria o Paraíso, as <strong>almas</strong><br />

pe<strong>de</strong>m-lhe que interceda também junto aos santos:<br />

E quando ao Céu chegares, sem <strong>de</strong>mora,<br />

roga <strong>de</strong> lá por mim, piedosamente. (PURG., XVI, 50/51)<br />

O apelo à misericórdia <strong>de</strong> Deus não significa a negação da justeza daquela<br />

sentença:<br />

12 Cf. a difícil introdução da <strong>de</strong>voção <strong>na</strong>s Mi<strong>na</strong>s feita por Dom Frei Manoel da Cruz in: TRIN-<br />

DADE, Archidiocese <strong>de</strong> Marian<strong>na</strong>, 1929, v.2, pp. 618-22; MOTT, Rosa Egipcíaca, 1993, pp.<br />

313-32.<br />

13 <strong>As</strong> preces e a fé <strong>de</strong> Nela livraram o consorte das punições <strong>de</strong> um dos terraços do Purgatório<br />

(PURG. XXIII, 85/89). Através da permanência dos sentimentos do afeto, Nino Visconti<br />

suplica a <strong>Dante</strong> enviar recado para a filha orar por ele “pois a inocência ace<strong>de</strong> o bem”<br />

(PURG. VIII, 70/72). Grifo nosso.


52 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

À razão superior não <strong>de</strong>smerece<br />

o vir a ser aqui o mal <strong>de</strong>sfeito<br />

por força <strong>de</strong> inflamada e santa prece<br />

No ponto em que afirmei um tal conceito,<br />

não corrigia o rogo a <strong>de</strong>ficiência,<br />

por não ren<strong>de</strong>r a Deus <strong>de</strong>vido preito (...) (PURG., 37/42)<br />

Acata-se a sentença, arrepen<strong>de</strong>-se, mas recorre-se à clemência divi<strong>na</strong>. Jacques<br />

Le Goff <strong>de</strong>staca a ênfase dada à misericórdia no sistema purgatorial dantesco, on<strong>de</strong><br />

Deus é consi<strong>de</strong>rado todo ouvidos aos pedidos <strong>de</strong> seus filhos, ainda que num gesto<br />

tardio, in extremis. Na obra <strong>de</strong> <strong>Dante</strong>, o simples balbuciar do nome <strong>de</strong> Maria, <strong>na</strong><br />

iminência da morte, é suficiente para livrar do inferno uma alma arrependida<br />

(PURG., V, 100/102). Portanto, nos primórdios do século XIV já é freqüente a concentração<br />

das atenções no momento da agonia, atitu<strong>de</strong> que é levada ao extremo no<br />

catolicismo barroco.<br />

<strong>Dante</strong> ratifica a crença <strong>na</strong> eficácia das orações <strong>na</strong> intenção dos mortos, <strong>de</strong>fendida<br />

por Santo Agostinho <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século IV e que tem seu fundamento em uma<br />

breve passagem do 2Mac, alusiva ao ato <strong>de</strong> esmolar, com vistas à celebração <strong>de</strong><br />

sufrágios, visando à ressurreição dos mortos 14 .<br />

Há alusão à indulgência, ato do po<strong>de</strong>r pontifical conce<strong>de</strong>ndo perdão, no caso<br />

o Jubileu <strong>de</strong> 1300, concedido por Bonifácio VIII àqueles romeiros mortos durante<br />

a peregri<strong>na</strong>ção a Roma (PURG., II, 93/99) 15 . A salvação coloca-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,<br />

essencialmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte não só dos sacerdotes, que conce<strong>de</strong>m o perdão através<br />

da confissão auricular, mas também do po<strong>de</strong>r do Papa.<br />

Vejamos o que as <strong>almas</strong> rezam quando meditam sobre os próprios pecados e<br />

aguardam a entrada no paraíso. Na maior p<strong>arte</strong> das vezes, os versos alusivos a essa<br />

situação particular são redigidos em latim e dizem respeito a uma passagem bíblica<br />

ou cerimônia específica.<br />

<strong>As</strong> “Almas eleitas, (mas) ainda no <strong>de</strong>gredo” (PURG., III, 73), rezam a Salverainha,<br />

oração a<strong>de</strong>quada para expressar a expiação transitória, a contrição e confiança<br />

<strong>na</strong> clemência divi<strong>na</strong>:<br />

Lá <strong>de</strong>ntro em meio às flores, entoando<br />

14 No AT Judas Macabeu, após uma batalha, recolheu piedosamente doze mil dracmas e<br />

remeteu-as para Jerusalém, para que fossem oferecidos sacrifícios <strong>na</strong> intenção daqueles que<br />

pereceram no combate cf. 2Mac 12, 41-6.<br />

15 Sobre o po<strong>de</strong>r pontifical e salvação cf. LE GOFF. op. cit. pp. 442-3.


juntas a Salve-rainha, claramente,<br />

muitas <strong>almas</strong> eu vi, mais me achegando (PURG., VII, 82/84).<br />

Os pecadores da lascívia rezam a Ave-maria (Lc I, 42):<br />

Bendita sejas tu, eter<strong>na</strong>mente,<br />

entre as filhas <strong>de</strong> Adão, e abençoadas<br />

as graças <strong>de</strong> teu reino onipotente! (PURG., XXIX, 85/87)<br />

Adalgisa Arantes Campos - 53<br />

Os pecadores da soberba, carregando pesados fardos, rezam uma paráfrase do<br />

Pai-nosso (PURG., XI, 1/24), <strong>de</strong>stacando que a p<strong>arte</strong> fi<strong>na</strong>l “não nos <strong>de</strong>ixeis cair em<br />

tentação” é <strong>na</strong> intenção dos vivos, já que elas (<strong>almas</strong>) estão isentas <strong>de</strong> fraqueza:<br />

E o rogo aqui fi<strong>na</strong>l, Senhor, se faz<br />

não já por nós, que somos trespassados,<br />

mas pelos que ficaram para trás. (PURG., XI, 22/24)<br />

É interessante frisar que as <strong>almas</strong> <strong>de</strong> <strong>Dante</strong> não oravam ape<strong>na</strong>s por si, mas<br />

também <strong>na</strong> intenção dos vivos, numa edificante reciprocida<strong>de</strong>:<br />

Se ali (Purgatório) se pensa em nós tão nobremente,<br />

o que daqui (terra) por eles operar (orações)<br />

não po<strong>de</strong>m os que ao bem votam a mente,<br />

ajudando-os as nódoas a apagar,<br />

por que, livres enfim da sujida<strong>de</strong>,<br />

se lhes <strong>de</strong>scerre o páramo estelar? (PURG., XI, 31/36)<br />

A passagem acima, acrescida do “Orai por nós” (PURG., XIII, 50), aponta para<br />

a longevida<strong>de</strong> da recorrência consagrada pelo uso: “Rogai por nós que recorremos<br />

a vós” (GOFFINÉ, 1906, pp. 11-3).


54 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Em <strong>Dante</strong>, as <strong>almas</strong> dos invejosos conclamam pelo amor, numa alusão explícita<br />

ao mandamento <strong>de</strong> Jesus, para que amemos e perdoemos uns aos outros como<br />

ele faz 16 : “Ama”, bradou, “a quem te haja ofendido!” (PURG., XIII, 36)<br />

No Purgatório, há a manifestação artística essencialmente domi<strong>na</strong>da pela virtu<strong>de</strong><br />

cristã. Para isso, <strong>na</strong>da mais apropriado que trazer à memória o exemplo <strong>de</strong><br />

Davi, consi<strong>de</strong>rado o rei penitente, pois passou o resto <strong>de</strong> seus dias a se penitenciar,<br />

a fazer súplicas, em razão do assassi<strong>na</strong>to e adultério cometidos. Por essa razão, nos<br />

motivos figurativos presentes <strong>na</strong> <strong>arte</strong> do Purgatório, o rei outrora soberbo, é representado<br />

com toda humilda<strong>de</strong>, pois “era menos e mais que um rei, <strong>de</strong> fato” (PURG.,<br />

X, 64/66).<br />

Reiterando o sentido penitencial, mais referências a Davi, agora através <strong>de</strong> recorrências<br />

múltiplas ao salmo Miserere mei, Deus..., que entoado em versículos alter<strong>na</strong>dos<br />

era a<strong>de</strong>quado àquela circunstância:<br />

“Eis que a avançar um bando, <strong>de</strong> viés,<br />

notei <strong>na</strong> encosta, plácido e contido,<br />

cantando o Miserere, a dois e três”. (PURG., V, 22/24)<br />

No último terraço, reservado aos pecadores da lascívia:<br />

E ouvi cantar, já quase à riba oposta,<br />

“<strong>As</strong>perges me” em tom cuja doçura<br />

não posso <strong>de</strong>screver, mas <strong>de</strong>ixo exposta. (PURG., XXXI, 97/99)<br />

Davi, o salmista, preso aos gozos da vida terre<strong>na</strong> “Anima mea adhesit pavimento”<br />

(PURG., XIX, 73), mais tar<strong>de</strong> contrito e aberto ao exame <strong>de</strong> Deus, é conservado<br />

como mo<strong>de</strong>lo eficaz durante o catolicismo barroco. Nas Mi<strong>na</strong>s setecentistas,<br />

on<strong>de</strong> as or<strong>de</strong>ns terceiras <strong>de</strong> São Francisco se fizeram presentes, uma figura representando<br />

o rei Davi saía <strong>na</strong> procissão <strong>de</strong> Quarta-feira <strong>de</strong> Cinzas, solenida<strong>de</strong> religiosa<br />

que marca a entrada no tempo penitencial da Quaresma 17 .<br />

Os salmos <strong>de</strong>precatórios também se preservaram <strong>na</strong> vida religiosa, fazendo<br />

p<strong>arte</strong>, através <strong>de</strong> uma longa duração, dos exercícios expiatórios dos terceiros <strong>de</strong><br />

16 Cf. Mt. 19, 21-22; Jo 15, 12.<br />

17 Cf. CAMPOS, Quaresma e tríduo sacro <strong>na</strong>s Mi<strong>na</strong>s setecentistas: cultura material e liturgia<br />

IN: Barroco, 17 (1993/6): 209- 219; <strong>As</strong> or<strong>de</strong>ns Terceiras <strong>de</strong> São Francisco da Penitencia<br />

<strong>na</strong>s Mi<strong>na</strong>s Coloniais: cultura artística e Procissão <strong>de</strong> Cinzas IN: Revista do CEIB, UFMG, 1 (<br />

2001): 193-199.


Adalgisa Arantes Campos - 55<br />

São Francisco <strong>de</strong> <strong>As</strong>sis que, após as práticas penitenciais, fi<strong>na</strong>lizavam o “mesmo<br />

acto com o Miserere...”, entoado à maneira gregoria<strong>na</strong> 18 .<br />

A evocação sagrada “asperge me” foi extraída do salmo Miserere (Sl 50, 9): “<strong>As</strong>perge-me<br />

com o hissopo e serei purificado; lavar-me-ás, e me tor<strong>na</strong>rei mais branco<br />

que a neve”. Ela remete à cerimônia <strong>de</strong> aspersão <strong>de</strong> água benta com o hissopo, que,<br />

fi<strong>na</strong>lizava a missa, sob o canto da antífo<strong>na</strong> asperges. Segundo Jungmann, esse rito <strong>de</strong><br />

purificação através da água, feito <strong>na</strong> igreja primitiva antes da missa maior, era reservado<br />

ape<strong>na</strong>s aos sacerdotes 19 . Após o mesmo fazia-se procissão à luz <strong>de</strong> can<strong>de</strong>labros<br />

que, ao fi<strong>na</strong>l, eram <strong>de</strong>positados sobre o altar (JUNGMANN, 1953, p. 355). Mais tar<strong>de</strong><br />

foi vulgarizado e estendido aos fiéis. Observe-se que <strong>Dante</strong> faz alusão à “procissão dos<br />

can<strong>de</strong>labros”, feita pelos pecadores da lascívia com canto <strong>de</strong> Hosa<strong>na</strong> (PURG., XXIX,<br />

49/51). São exatamente esses os pecadores que invocam o asperge.<br />

Nas Mi<strong>na</strong>s, temos notícia <strong>de</strong> cerimônia que recorre à aspersão com água benta<br />

ao som da antífo<strong>na</strong> “asperges”, feita <strong>na</strong> Quarta-feira <strong>de</strong> Cinzas, precisamente pelos<br />

irmãos terceiros <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> <strong>As</strong>sis. Este rito também representa o coroamento<br />

da cerimônia da Bênção das Cinzas, com as quais se faz o si<strong>na</strong>l da cruz <strong>na</strong> fronte<br />

dos fiéis, em si<strong>na</strong>l <strong>de</strong> penitência pública. O rito foi feito também pelas irmanda<strong>de</strong>s do<br />

Santíssimo Sacramento, as quais realizavam a imposição das cinzas no âmbito da<br />

igreja paroquial.<br />

Mas em geral a aspersão <strong>de</strong> água benta com o hissope constitui uma linguagem<br />

religiosa cujo significado é amplamente compreendido e assimilado pelo cristão,<br />

<strong>de</strong>ntro do simbolismo da purificação, difundido reiteradas vezes, pois encerrava<br />

o gesto solene e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro em relação aos corpos dos fiéis <strong>de</strong>funtos. A expressão<br />

“<strong>As</strong>perge me” remete ao sentido <strong>de</strong> purificação e, concomitantemente, ao recru<strong>de</strong>scimento<br />

do sentimento <strong>de</strong> expiação no momento da agonia e da morte.<br />

Nas Mi<strong>na</strong>s não tivemos a figura <strong>de</strong> um <strong>Dante</strong> para informar-nos a respeito das<br />

preferências das <strong>almas</strong> no tocante às preces. Em <strong>Dante</strong>, a alma não per<strong>de</strong> sua história<br />

pessoal, a subjetivida<strong>de</strong> própria, conferida pela existência particular. Ao contrário,<br />

é a partir <strong>de</strong>sta permanência e confrontando-a com os valores da religião<br />

cristã, que seria possível a purgação consentida. O além, tal qual é representado,<br />

tem um enraizamento <strong>na</strong> experiência assumida <strong>na</strong> vida terre<strong>na</strong>. O mundo <strong>de</strong> lá é<br />

concebido, sob muitos aspectos, à semelhança da vida histórica (presente).<br />

O salmo Miserere, tão recorrente e a<strong>de</strong>quado para exter<strong>na</strong>r o sentimento <strong>de</strong><br />

arrependimento <strong>na</strong> esfera ritual, juntamente com a figura <strong>de</strong> Davi, são constantemente<br />

relembrados. Séculos <strong>de</strong>pois, visando a suscitar a contemplação do pecado<br />

e fi<strong>na</strong>lmente o arrependimento, conservam ainda eficácia exemplar. Nova alusão a<br />

Davi através do salmo “Esperei no Senhor...”:<br />

18 AEPNSC, Estatutos da or<strong>de</strong>m 3ª <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> <strong>As</strong>sis-Vila Rica, 1754; 1760; 1820, cf.<br />

cap. 4º § 2. Em Maria<strong>na</strong> ainda se faz a procissão do Miserere <strong>na</strong> Sexta-feira Santa.<br />

19 JUNGMANN, A. El sacrificio <strong>de</strong> la Misa - Tratado Histórico-Litúrgico, 1953, pp. 354-6;<br />

p. 1178.


56 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Calou-se e ouvi os Anjos a entoar<br />

“In te, Domine, speravi”, à voz unidos,<br />

mas sem a pe<strong>de</strong>s meos ultrapassar. (PURG., XXX, 82/84) 20 .<br />

O salmo musicalizado no Purgatório também é recitado <strong>na</strong>s Mi<strong>na</strong>s, conforme<br />

se po<strong>de</strong> observar através dos estatutos da or<strong>de</strong>m terceira <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Vila<br />

Rica, os quais alu<strong>de</strong>m aos exercícios espirituais dos irmãos, à maneira <strong>de</strong> Inácio <strong>de</strong><br />

Loyola, feitos a partir da meditação sobre a Paixão <strong>de</strong> Cristo e escatologia cristã “e<br />

passada meia hora <strong>de</strong> Oração mental se levanta em vós alta e inteligível o Psalmo<br />

inté Domini speravit...” (sic) (In te domine, speravi) 21 .<br />

No sistema <strong>de</strong> <strong>Dante</strong>, a invocação a São Miguel (PURG., XIII, 51) ocorre uma<br />

vez somente. Ele não tem o <strong>de</strong>staque dado, por exemplo, a Davi e salmos respectivos.<br />

Àquela época, São Miguel já gozava <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, que se <strong>de</strong>sdobrou<br />

com vigor no catolicismo barroco.<br />

<strong>As</strong> <strong>almas</strong> recorrem também à clemência <strong>de</strong> Jesus, escondido <strong>na</strong> figu¬ração<br />

simbólica dada por São João: “Eis o cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus que tira o pecado do mundo”<br />

(2Jo 1, 29). O Agnus Dei é a vítima imolada para salvar a humanida<strong>de</strong>:<br />

Uma prece escutei, que se elevava,<br />

entoada a muitas vozes, a implorar<br />

ao Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus que as manchas lava.<br />

Por agnus Dei se viam começar,<br />

em coro estas palavras modulando<br />

como os anseios seus a harmonizar.<br />

“São <strong>almas</strong>, mestre”, eu disse, “ora rezando?” (PURG., XVI, 16/22)<br />

A invocação ao “Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus que tira o pecado do mundo” ocorre em<br />

momento preciso da liturgia e constitui uma das p<strong>arte</strong>s imutáveis da missa 22 . Nas<br />

20 “Esperei, esperei no Senhor, e êle se inclinou para mim, e ouviu o meu clamor. E tirou-me<br />

da fossa da perdição, do pântano lodoso, e assentou os meus pés sôbre a pedra, <strong>de</strong>u firmeza<br />

aos meus passos. (...)” Sl 39 (Hebr. 40), 1-2.<br />

21 AEPNSC, Estatutos da Or<strong>de</strong>m 3ª <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> <strong>As</strong>sis, Vila Rica- 1754.<br />

22 Agnus Dei: Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere nobis. Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus, que<br />

tiras os pecados do mundo, tem pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> nós. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere<br />

nobis. Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus, que tiras os pecados do mundo, tem pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> nós. Agnus<br />

Dei, qui tollis peccata mundi: do<strong>na</strong> nobis pacem. Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus, que tiras os pecados<br />

do mundo, dá-nos a paz.


Adalgisa Arantes Campos - 57<br />

Mi<strong>na</strong>s, o Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus mereceu composições musicais específicas e constitui<br />

o motivo or<strong>na</strong>mental <strong>de</strong> inúmeras tampas <strong>de</strong> sacrário, as quais encerram o sentido<br />

do Jesus morto e ressuscitado 23 .<br />

Ocorrem outras passagens que po<strong>de</strong>m ser compreendidas como fragmentos <strong>de</strong><br />

uma missa cantada:<br />

“Gloria in excelsis Deo” a proclamar<br />

viam-se os vultos, a uma voz, unidos<br />

como por perto pu<strong>de</strong> averiguar. (PURG., XX, 136/138)<br />

O “Glória” correspon<strong>de</strong> a outra p<strong>arte</strong> imutável <strong>de</strong>ntro da liturgia da missa,<br />

iniciada justamente com a aclamação <strong>de</strong> alegria: “Glória a Deus <strong>na</strong>s alturas”. Mais<br />

adiante, as <strong>almas</strong> seguem em cortejo:<br />

à virtu<strong>de</strong> que da razão ema<strong>na</strong><br />

vi serem can<strong>de</strong>labros, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong>,<br />

e percebi que o canto era <strong>de</strong> Hosa<strong>na</strong>. (PURG., XXIX, 49/51)<br />

Hosa<strong>na</strong> é uma saudação <strong>de</strong> júbilo, conservada <strong>na</strong> memória dos cristãos, pois<br />

foi com aclamações <strong>de</strong> hosa<strong>na</strong> que Jesus entrou solenemente em Jerusalém, no<br />

Domingo <strong>de</strong> Ramos (Mt 21, 9).<br />

A expressão “Hosa<strong>na</strong>”, assimilada ao rito, transforma-se em passagem essencial<br />

da liturgia da missa, situada entre o Sanctus e o Benedictus 24 .<br />

Surpreen<strong>de</strong>ntemente, <strong>Dante</strong> não mencio<strong>na</strong> a missa, consi<strong>de</strong>rada a mais sublime<br />

oração que po<strong>de</strong> ser feita <strong>na</strong> intenção das <strong>almas</strong>. No entanto, verificamos que as <strong>almas</strong><br />

entoam cantos a partir <strong>de</strong> trechos alusivos com conteúdos da liturgia da missa.<br />

<strong>As</strong> <strong>almas</strong> cantam também um hino em ação <strong>de</strong> graças, pois, afi<strong>na</strong>l, são eleitas<br />

<strong>de</strong> Deus:<br />

23 Sobre o Cor<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus cf. CHEVALIER & GHEERBRANT, Dicionário <strong>de</strong> Símbolos,<br />

1989, pp. 287-8.<br />

24 “Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus, Deus Sabaoth. Pleni sunt caeli et terra gloria tua.<br />

Hosan<strong>na</strong> in excelsis. (Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos exércitos. Os céus e a terra<br />

estão cheios <strong>de</strong> tua glória. Hosa<strong>na</strong> <strong>na</strong>s alturas). “Benedictus qui venit in nomine Domini.<br />

Hosan<strong>na</strong> in excelsis” (Bendito seja o que vem em nome do Senhor. Hosa<strong>na</strong> <strong>na</strong>s alturas).


58 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Que<strong>de</strong>i-me atento ao perceber um som;<br />

e pareceu-me que o Te Deum fluía,<br />

entoado à voz, sobre o harmonioso tom. (PURG., IX, 139/141).<br />

O Te Deum Laudamus constitui um “... hino soleníssimo, que se divi<strong>de</strong> em três<br />

p<strong>arte</strong>s: louvores à SS. Trinda<strong>de</strong>, louvores ao Re<strong>de</strong>ntor, súplicas. Chama-se Te Deum<br />

pelas palavras iniciais” (ROWER, 1947, p. 219). Seu texto tem uma forma fixa, que<br />

estimula <strong>na</strong> Capitania inúmeras composições musicais, atraindo gran<strong>de</strong>s talentos<br />

do setecentos e oitocentos. O Te Deum fi<strong>na</strong>liza em gran<strong>de</strong> estilo as comemorações<br />

religiosas. Nas Mi<strong>na</strong>s foi empregado em diversas ocasiões como por exemplo, para<br />

festejar o <strong>na</strong>scimento e casamentos <strong>de</strong> membros da família real, santos padroeiros<br />

e, até mesmo, a execução <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes 25 .<br />

<strong>As</strong> <strong>almas</strong> também entoam cantos com conteúdos alusivos às bem-aventuranças:<br />

“pauperes beati spiritu” (PURG., XII, 110), “Beati misericor<strong>de</strong>s” (XV, 38), “Beati<br />

pacifici” (XVII, 68), “Qui lugent” (XIX, 50), “Beati mundo cor<strong>de</strong>” (XXVII, 8/19),<br />

“Beati quorum tecta sunt peccata” (XXIX, 3) 26 .<br />

O pensamento <strong>de</strong> <strong>Dante</strong> mostra que as <strong>almas</strong> no <strong>purgatório</strong> gozam <strong>de</strong> uma<br />

santida<strong>de</strong> em ascensão. Naquela estada compreen<strong>de</strong>m a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passar por<br />

uma punição física e contemplação sobre o pecado, construídas à imagem da expiação<br />

observada no mundo dos vivos. Os cantos, procissões expiatórias, a invocação<br />

<strong>de</strong> passagens bíblicas, as súplicas e orações formam um repertório bastante<br />

preciso em seus fundamentos que se cristalizou, surpreen<strong>de</strong>ntemente, <strong>na</strong>s manifestações<br />

religiosas posteriores. Chama a atenção o quanto as próprias <strong>almas</strong> oram,<br />

não só por si mas também pelos vivos, no intuito <strong>de</strong> alcançar o mais rápido possível<br />

a companhia <strong>de</strong> Deus. Dessa maneira, mesmo no além, os sufrágios gozam <strong>de</strong><br />

certa eficácia, o que <strong>de</strong>monstra a crença corrente <strong>na</strong> continuida<strong>de</strong> entre a vida<br />

presente e a vindoura. Da contrita consi<strong>de</strong>ração sobre o pecado, da expiação, e<br />

ainda, salienta-se, da conservação da memória dos vivos, brota o estado <strong>de</strong> beatitu<strong>de</strong><br />

e bonda<strong>de</strong> que tor<strong>na</strong> as <strong>almas</strong> alvo <strong>de</strong> veneração particular. Elas são <strong>santas</strong>!<br />

Sabem e têm sensibili¬da<strong>de</strong> para se condoer dos homens. Tendo em vista as facilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>correntes da vizi¬nhança com o paraíso interce<strong>de</strong>m junto aos santos <strong>na</strong><br />

intenção dos mortais!<br />

25 Sobre a execução <strong>de</strong> Te Deum Laudamus em razão do malogro da Conjuração Mineira,<br />

cf. CAMPOS, Execuções <strong>na</strong> Colônia: a morte <strong>de</strong> Tira<strong>de</strong>ntes e a cultura barroca IN: Tempo<br />

Brasileiro, 110 (1992): 141-67.<br />

26 “Bem-aventurados os pobres <strong>de</strong> espírito.” (Mt. 5, 3; Lc 6, 20); “Bem-aventurados os misericordiosos”<br />

(Mt. 5, 7); “Bem-aventurados os pacíficos” (Mt. 5, 9); “Bem-aventurados os que<br />

choram, porque serão consolados” (Mt. 5, 5); “Bem-aventurados os puros <strong>de</strong> coração” (Mt.<br />

5, 8); “Bem-aventurados aqueles a quem foram perdoadas suas iniqüida<strong>de</strong>s” (Sl 32 (31), 1).


Adalgisa Arantes Campos - 59<br />

Cachoeira do Campo, Igreja Matriz, <strong>de</strong>talhe do altar <strong>de</strong> São Miguel e Almas.


60 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Itaverava, Igreja Matriz, tarja do altar <strong>de</strong> São Miguel e Almas.


São João <strong>de</strong>l Rei, Igreja Matriz do Pilar, pintura <strong>de</strong> forro.<br />

Furquim, Igreja Matriz, frontal do altar <strong>de</strong> São Miguel e Almas.<br />

Adalgisa Arantes Campos - 61


62 - At<strong>As</strong> do IV Congresso InternACIonAl do BArroCo ÍBero-AmerICAno<br />

Acurui (antigo Rio das Pedras) frontispício do livro <strong>de</strong> compromisso da Irmanda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Miguel e Almas.

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