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a mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução - Garamond

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sexuali<strong>da</strong>de e gênero nas ciências sociais<br />

A MULHER NO CORPO:<br />

UMA ANÁLISE CULTURAL DA REPRODUÇÃO<br />

Emily Martin<br />

tradução: Júlio Bandeira<br />

revisão técnica: Fabíola Rohden


Copyright © dos autores<br />

Editora <strong>Garamond</strong> Lt<strong>da</strong><br />

Caixa Postal: 16.230 Cep: 20.251-021<br />

Rio de Janeiro – Brasil<br />

Telefax: (21) 2504-9211<br />

e-mail: editora@garamond.com.br<br />

Coordenação editorial<br />

Julieta Roitman<br />

Projeto Gráfi co de Capa e Miolo<br />

Anna Amendola<br />

Revisão<br />

Argemiro Figueiredo<br />

Shirley Lima<br />

Editoração Eletrônica<br />

Letra & Imagem<br />

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />

DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.<br />

M922m<br />

Martin, Emily<br />

A <strong>mulher</strong> <strong>no</strong> <strong>corpo</strong> : <strong>uma</strong> <strong>análise</strong> <strong>cultural</strong> <strong>da</strong> <strong>reprodução</strong> / Emily Martin ;<br />

tradução Júlio Bandeira ;<br />

revisão técnica Fabíola Rohden. - Rio de Janeiro : <strong>Garamond</strong>, 2006<br />

384p. : . -(Sexuali<strong>da</strong>de, gênero e socie<strong>da</strong>de)<br />

Tradução de: The woman in the body : a <strong>cultural</strong> analysis of reproduction<br />

Anexos<br />

Inclui bibliografi a<br />

ISBN 85-7617-099-X<br />

1. Mulheres - Fisiologia. 2. Mulheres - Psicologia. 3. Mulheres - Saúde<br />

e higiene. I. Título.<br />

06-2445 CDD 612.62<br />

CDU 612.62<br />

Apoio:


Para Jenny e Ariel


AGRADECIMENTOS<br />

Este estudo dependeu do esforço de muitas pessoas além de mim. Antes<br />

de tudo, <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es que permitiram ser entrevista<strong>da</strong>s, cedendo seu<br />

tempo, derramando suas lágrimas, compartilhando seus insights e abrindo<br />

seus corações e mentes. A soma desses esforços é a alma deste livro e<br />

é o que lhe dá maior chance de crescer <strong>no</strong> coração de outras <strong>mulher</strong>es.<br />

Não me<strong>no</strong>s importantes são as <strong>mulher</strong>es que conduziram muitas <strong>da</strong>s<br />

entrevistas: Sarah Begus, Betsy Getaz, Ewa Hauser, Jane Sewell, Susanne<br />

Siskel e Andrea Taylor. Por terem passado pela difi cul<strong>da</strong>de de ter de se<br />

aproximar de estranhos, a afl ição de procurar por endereços em locais<br />

que não conheciam, o receio de fi car diante de um grupo e pedir aju<strong>da</strong><br />

e por acreditarem na possibili<strong>da</strong>de de <strong>mulher</strong>es comuns terem sabedoria<br />

– por tudo isso, sou-lhes grata. Por me terem oferecido seus insights a<br />

respeito do que foi dito pelas <strong>mulher</strong>es durante as entrevistas e escutado<br />

as entrevista<strong>da</strong>s de forma aberta, receptiva e sem julgamentos, não há<br />

como lhes agradecer o sufi ciente.<br />

As <strong>mulher</strong>es entrevista<strong>da</strong>s precisam permanecer anônimas, mas aqueles<br />

que <strong>no</strong>s aju<strong>da</strong>ram a encontrá-las, oferecendo-<strong>no</strong>s a oportuni<strong>da</strong>de de<br />

apresentar o projeto a grupos de <strong>mulher</strong>es em seus centros ou organizações<br />

podem ser revelados. Agradeço especialmente a Tom Culotta, Beverly


Daniels, Dusan Doering, Marcia Hettinger, May Jane Lyman, Elea<strong>no</strong>r<br />

Mann, Cindy Monshower, Elizabeth Reiley, Phillip Schmandt, Jane<br />

Szczepaniak e Anita Wormley. O trabalho mais árduo foi feito por vários<br />

alu<strong>no</strong>s <strong>da</strong> graduação, que transcreveram as gravações, pesquisaram referências<br />

e realizaram muitas tarefas editoriais. Por esse trabalho, agradeço<br />

a Soccoro Alcaden, Sharon Crockett, Lora Holmberg, Jonathan Lewis,<br />

Carol Lundquist e Lesli Nuñez. Os bibliotecários capazes e efi cientes do<br />

Departamento de Empréstimos entre Bibliotecas <strong>da</strong> Biblioteca Milton<br />

Eisenhower, juntamente com os velozes mensageiros do Eisenhower<br />

Express, colocaram centenas de livros e artigos sobre minha mesa, desde<br />

textos médicos obscuros e raros até os mais recentes tratados populares.<br />

Agradeço também a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong><strong>da</strong> pelos bibliotecários <strong>da</strong>s Bibliotecas E<strong>no</strong>ch<br />

Pratt e Welch de Medicina e por Doris Thibideau, bibliotecária <strong>da</strong><br />

seção de obras raras do Institute of the History of Medicine. O generoso<br />

apoio fi nanceiro, que me possibilitou ter assistência na pesquisa e dedicar<br />

um a<strong>no</strong> a escrever o livro, veio de <strong>uma</strong> bolsa do American Council of<br />

Learned Societies e do subsídio BRSG So7RRo7o41, concedido pelo<br />

Biomedical Research Support Grant Program, Divisão dos Fundos de<br />

Pesquisa do National Institutes of Health. Trechos do capítulo 5 foram<br />

publicados num artigo <strong>da</strong> revista Social Science and Medicine, 19(11):<br />

1201-6, 1984.<br />

Nos últimos a<strong>no</strong>s, muitas pessoas que conheci em Baltimore em<br />

grupos de estudo de feminismo, marxismo e ciência me apresentaram<br />

a <strong>uma</strong> literatura que eu não teria conhecido de outra forma e a<br />

perspectivas críticas de outras disciplinas que não a minha. Entre elas,<br />

destacam-se Sarah Begus, Toby Ditz, Elizabeth Fee, Sandra Harding,<br />

Nancy Hartsock, David Harvey, Sharon Kingsland, Karen Mashke,<br />

Vicent Navarro, Kathy Peiss, Joann Pillardi, Kathy Ryan, Jane Sewell,<br />

Marylynn Salmon, Dan Todes e Karen Olson.<br />

Tenho <strong>uma</strong> dívi<strong>da</strong> especial com meus colegas do Departamento de<br />

Antropologia <strong>da</strong> Johns Hopkins University – Gillian Feeley-Harnik,<br />

Ashraf Ghani, Sidney Mintz e Katherine Verdery –, pelo entusiasmo<br />

caloroso para com este projeto e pela aju<strong>da</strong> em relacionar minhas<br />

conclusões a questões antropológicas. Várias pessoas leram versões preliminares<br />

de trechos do manuscrito, e eu lhes agradeço pela crítica e pelo<br />

encorajamento: Carol Browner, Elizabeth Fee, Alma Gotlieb, Sandra


Harding, Ruth Hubbard, Judith Leavitt, Leith Mullings, Lucile Newman,<br />

Rayna Rapp, Barbara Katz Rothman, Carroll Smith-Rosenberg,<br />

Michael Taussig e Lin<strong>da</strong> Whiteford. Meus agradecimentos também a<br />

Joanne Wycoff, <strong>da</strong> Beacon Press, pelo encorajamento desde as etapas<br />

preliminares deste projeto e pelos conselhos editoriais criteriosos; a<br />

Barbara Flanagan, pelo excelente copidesque; e à minha fi lha de 11<br />

a<strong>no</strong>s, Jenny, por ter criado o título.<br />

Àqueles que não somente me aju<strong>da</strong>ram com o conteúdo do livro, mas<br />

fortaleceram também meu espírito com apoio emocional, especialmente<br />

durante o último a<strong>no</strong> em que me dediquei a escrever, sou profun<strong>da</strong>mente<br />

grata: Sarah Begus, Jane Eliot Sewell, Lorna Amara Singham<br />

Rhodes e Richard Cone. Sem o apoio de meu marido, Richard, este<br />

livro, sinceramente, não poderia ter sido escrito. Com alma generosa, ele<br />

me ofereceu não apenas incansável coragem e afetuosa aprovação, mas<br />

também – um presente que poucos são capazes de <strong>da</strong>r – a disposição de<br />

submeter sua própria expertise científi ca ao questionamento, não apenas<br />

como ciência, mas também como cultura. Ao prestarem seus serviços<br />

carinhosos e confi áveis cui<strong>da</strong>ndo <strong>da</strong>s crianças, Virginia Miller e Jane e<br />

Mike Sewell deram-me paz de espírito. Minhas fi lhas me ofereceram seus<br />

abraços calorosos quando eu voltava para casa e esperança <strong>no</strong> futuro. E<br />

é esperançosa que dedico a elas este livro.


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO 13<br />

INTRODUÇÃO À EDIÇÃO DE 1992 19<br />

PROBLEMAS E MÉTODOS<br />

O FAMILIAR E O EXÓTICO _35<br />

FRAGMENTAÇÃO E GÊNERO 51<br />

A CIÊNCIA COMO SISTEMA CULTURAL<br />

METÁFORAS MÉDICAS DO CORPO DA MULHER: MENSTRUA-<br />

ÇÃO E MENOPAUSA 67<br />

METÁFORAS MÉDICAS DO CORPO DA MULHER: PARTO 105<br />

O PONTO DE VISTA DA MULHER<br />

A IMAGEM DO EU E DO CORPO 127<br />

MENSTRUAÇÃO, TRABALHO E CLASSE SOCIAL 153<br />

SÍNDROME PRÉ-MENSTRUAL, DIS-<br />

CIPLINA NO TRABALHO E RAIVA 181<br />

PARTO, RESISTÊNCIA, RAÇA E CLASSE SOCIAL 219<br />

A CRIAÇÃO DE UM NOVO IMAGINÁRIO DO PARTO 245<br />

MENOPAUSA, PODER E CALOR 257


CONSCIENTIZAÇÃO E IDEOLOGIA<br />

CLASSE E RESISTÊNCIA 279<br />

A INCORPORAÇÃO DAS OPOSIÇÕES 299<br />

ANEXO 1: AS PERGUNTAS DAS ENTREVISTAS 313<br />

ANEXO 2: PERFIS BIOGRÁFICOS 319<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 341<br />

ÍNDICE REMISSIVO 363


APRESENTAÇÃO<br />

Fabíola Rohden 1<br />

O livro <strong>da</strong> antropóloga Emily Martin é reconhecido tanto <strong>no</strong> campo<br />

feminista como na academia como um estudo i<strong>no</strong>vador <strong>no</strong> que se refere<br />

à medicina e à sua capaci<strong>da</strong>de de intervenção <strong>no</strong>s <strong>corpo</strong>s <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es.<br />

Tendo como foco de <strong>análise</strong> os pressupostos culturais subjacentes ao<br />

discurso e à prática médica contemporâneos, a autora navega na articulação<br />

entre passado e presente, antropologia e história e empreende<br />

<strong>uma</strong> difícil busca pela desnaturalização dos objetos por meio do estranhamento<br />

do familiar em <strong>no</strong>ssa cultura.<br />

Publicado inicialmente em 1987, o livro vem sendo reeditado <strong>no</strong>s<br />

Estados Unidos e merecendo versões em outros países, como Alemanha<br />

e Inglaterra. A <strong>mulher</strong> <strong>no</strong> <strong>corpo</strong> foi vencedor do Eileen Basker Memorial<br />

Prize de 1988, concedido pela Socie<strong>da</strong>de de Antropologia Médica<br />

<strong>no</strong>rte-americana, e objeto de um encontro realizado pela American<br />

Anthropological Association, em 1989, de<strong>no</strong>minado “Author meets<br />

critics: Emily Martin and the <strong>cultural</strong> construction of scientifi c k<strong>no</strong>wledge”<br />

em que estavam presentes Donna Haraway e Karen Sacks, entre<br />

outros. Além disso, a repercussão inicial do livro pode ser vista <strong>no</strong>s<br />

1<br />

Professora do Instituto de Medicina Social <strong>da</strong> UERJ e pesquisadora do Centro Lati<strong>no</strong>-America<strong>no</strong> em<br />

Sexuali<strong>da</strong>de e Direitos H<strong>uma</strong><strong>no</strong>s.<br />

13


14<br />

sexuali<strong>da</strong>de e gênero nas ciências sociais<br />

comentários que mereceu de Strathern (1992: 68; 76), MacDonald<br />

(1990) e Behar (1990).<br />

O objetivo do trabalho é estu<strong>da</strong>r os processos culturais que afetam<br />

as <strong>mulher</strong>es e que podem ser observados nas concepções que elas próprias<br />

têm de seus <strong>corpo</strong>s. Martin trabalhou com entrevistas de 165<br />

<strong>mulher</strong>es de Baltimore (EUA), que viviam em diferentes “comuni<strong>da</strong>des”<br />

com distinções étnicas, de i<strong>da</strong>de e de classe. Considerando que as suas<br />

representações sobre o <strong>corpo</strong> passavam pela remissão aos discursos e<br />

práticas de ginecologistas e obstetras, também explorou depoimentos<br />

e, principalmente, manuais médicos. Sua proposta era, então, investigar<br />

o que pessoas comuns e especialistas dizem quando estão descrevendo<br />

objetos como hormônios, útero, fl uxo menstrual. Ou, em outros<br />

termos, qual a suposição <strong>cultural</strong> implícita a respeito <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong><br />

<strong>mulher</strong> e do homem. A cultura médica seria um sistema <strong>cultural</strong> cujas<br />

idéias e práticas perpassam a cultura popular. Isto poderia ser visto por<br />

meio <strong>da</strong> utilização do conceito de metáfora. Tanto os textos médicos<br />

quanto os depoimentos <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es estariam expressando, por meio<br />

de metáforas, concepções mais gerais sobre a socie<strong>da</strong>de. E concepções<br />

que têm fun<strong>da</strong>mento <strong>no</strong>s processos econômicos, sociais e políticos em<br />

curso em um <strong>da</strong>do momento.<br />

O livro demonstra um uso do conceito de metáfora bastante efi caz,<br />

principalmente <strong>no</strong> que concerne à questão <strong>da</strong> circulação de discursos.<br />

Martin consegue mostrar que opiniões e representações <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es<br />

sobre seus <strong>corpo</strong>s têm referência, ou, pelo me<strong>no</strong>s, combinam com<br />

idéias mais gerais correntes na socie<strong>da</strong>de — metáforas abrangentes e<br />

importantes em um determinado contexto social. É o que ocorre <strong>no</strong>s<br />

exemplos <strong>da</strong> menstruação e me<strong>no</strong>pausa.<br />

A partir do século XIX, a ideologia <strong>da</strong> produção, concretiza<strong>da</strong> nas<br />

fábricas, é tão abrangente que chega aos <strong>corpo</strong>s. Os <strong>corpo</strong>s <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es<br />

passam a ser pensados, <strong>no</strong>s textos médicos principalmente, como<br />

fábricas para a produção de crianças. Mais especifi camente, o <strong>corpo</strong><br />

é pensado, assim como a socie<strong>da</strong>de, em termos de <strong>uma</strong> organização<br />

hierárquica: são vários elementos ocupando posições de valor diferente<br />

<strong>no</strong> conjunto do sistema. No caso do <strong>corpo</strong> femini<strong>no</strong>, este sistema<br />

funcionaria a partir <strong>da</strong> seqüência cérebro-hormônios-ovários que se


A MULHER NO CORPO<br />

comunicam hierarquicamente. O bom an<strong>da</strong>mento deste sistema teria<br />

como resultado a produção de <strong>no</strong>vos seres h<strong>uma</strong><strong>no</strong>s. E qualquer evento<br />

que fugisse a este objetivo implicaria <strong>uma</strong> desvalorização. É o caso <strong>da</strong><br />

menstruação e <strong>da</strong> me<strong>no</strong>pausa. Segundo Martin, tal como é descrita<br />

<strong>no</strong>s textos médicos e em livros populares, a menstruação aparece como<br />

<strong>uma</strong> falha na produção. Todo o sistema estava preparado para gerar<br />

um <strong>no</strong>vo produto e se isto não aconteceu é devido a algum tipo de<br />

falha. Já a me<strong>no</strong>pausa é defi ni<strong>da</strong> como o momento do térmi<strong>no</strong> <strong>da</strong><br />

produção, quando as máquinas já estão cansa<strong>da</strong>s e começam a ter<br />

defeitos até que fi nalmente cessam de funcionar. Com referência à<br />

concepção hierárquica, pode-se acrescentar o fato de que as falhas<br />

acontecem porque algum elemento deixou de obedecer aos sinais de<br />

comunicação enviados pelo órgão superior. No caso <strong>da</strong> me<strong>no</strong>pausa,<br />

os ovários é que deixariam de responder, quebrando a hierarquia <strong>da</strong><br />

produção (capítulo 3).<br />

As citações e encadeamentos que Martin faz em tor<strong>no</strong> desta questão,<br />

aqui resumi<strong>da</strong>, são interessantes. Levam a pensar sobre a comunicação<br />

que pode haver entre eventos sociais mais abrangentes, como o advento<br />

<strong>da</strong> industrialização, e ações mais cotidianas, como o tipo de tratamento<br />

e as concepções médicas em relação às <strong>mulher</strong>es e à <strong>reprodução</strong>. Com<br />

base <strong>no</strong>s exemplos que a autora traz, fi ca difícil pensar que a menção à<br />

idéia <strong>da</strong> fábrica <strong>no</strong>s textos sobre <strong>reprodução</strong> seja <strong>uma</strong> mera coincidência<br />

com o sistema socioeconômico que se desenvolvia. É claro que por tras<br />

disso deve estar algo como um conjunto de referências proeminentes<br />

em um <strong>da</strong>do momento e que se reproduz em <strong>uma</strong> série de níveis.<br />

O livro tem <strong>uma</strong> outra característica forte e bastante polêmica<br />

que é sua inspiração feminista na interpretação de alguns fenôme<strong>no</strong>s.<br />

Como exemplo, podemos citar o caso <strong>da</strong> tensão pré-menstrual (TPM),<br />

categoria desenvolvi<strong>da</strong> pela medicina só recentemente e que, de modo<br />

surpreendente, ofereceria um espaço para que as <strong>mulher</strong>es pudessem<br />

expressar certos descontentamentos. Segundo Martin, os sintomas que<br />

as <strong>mulher</strong>es descrevem na tensão pré-menstrual podem ser entendidos<br />

como indicativos de um processo de liberação. Os depoimentos de<br />

suas entrevista<strong>da</strong>s que falam deste período como um momento em que<br />

sentem raiva, e por vezes até se sentem “possuí<strong>da</strong>s” por alg<strong>uma</strong> força<br />

15


16<br />

sexuali<strong>da</strong>de e gênero nas ciências sociais<br />

estranha, são usados para fazer prognósticos feministas. A autora acredita<br />

que estas descrições podem ser pensa<strong>da</strong>s como instantes de manifestação<br />

<strong>da</strong> revolta <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es quanto à sua condição de subordina<strong>da</strong>s na<br />

socie<strong>da</strong>de. E vai mais longe ao afi rmar que essa experiência comum <strong>da</strong>s<br />

<strong>mulher</strong>es pode de fato se converter em <strong>uma</strong> base positiva para que se<br />

identifi quem como um grupo oprimido e busquem estratégias de fuga.<br />

Segundo ela, o problema é que até agora as <strong>mulher</strong>es identifi cam essa<br />

raiva muito mais com causas biológicas do que com a sua real condição<br />

de opressão. Se isso fosse reavaliado, as perspectivas de conscientização<br />

seriam promissoras (capítulo 7).<br />

O destaque <strong>da</strong>do a <strong>uma</strong> experiência comum às <strong>mulher</strong>es de determina<strong>da</strong><br />

cultura e seu possível poder transformador é ain<strong>da</strong> maior nas<br />

conclusões do livro, em que Martin, após sugerir que a ciência médica<br />

é liga<strong>da</strong> a <strong>uma</strong> forma particular de hierarquia e controle, afi rma que<br />

as <strong>mulher</strong>es podem usar a sua experiência comum para confrontar as<br />

concepções <strong>da</strong> medicina. É interessante que, embora diga que não se<br />

trata de <strong>uma</strong> volta à natureza mas de um outro tipo de cultura, ela<br />

concebe esta <strong>no</strong>ção de experiência a partir do <strong>corpo</strong>. Em função de vivenciarem<br />

processos <strong>corpo</strong>rais particulares, as <strong>mulher</strong>es conseguem ter<br />

a capaci<strong>da</strong>de de articular melhor dimensões ideologiza<strong>da</strong>s em domínios<br />

separados, como casa e trabalho, natureza e cultura, amor e contrato.<br />

Sendo assim, <strong>uma</strong> vez que se tornassem conscientes desse processo ou<br />

característica comum, poderiam ser capazes de perceber o problema<br />

destas dicotomias e propor <strong>uma</strong> <strong>no</strong>va ordem social.<br />

Talvez pelo fato de operar exatamente nesse terre<strong>no</strong> delicado <strong>da</strong> articulação<br />

entre ciência e feminismo, a autora consegue ser tão provocativa.<br />

E isso se refl ete na conformação do seu objeto e nas <strong>análise</strong>s que produz.<br />

É <strong>no</strong>tável como Martin se propõe a trabalhar <strong>no</strong>s marcos do construcionismo<br />

social ao mesmo tempo em que concede um valor particular ao<br />

<strong>corpo</strong> e às experiências vivencia<strong>da</strong>s em função de determinados constrangimentos<br />

<strong>corpo</strong>rais, o que não é comum em boa parte dos trabalhos que<br />

se coadunam com essa perspectiva.<br />

Além disso, o livro tem <strong>uma</strong> característica peculiar que é um certo<br />

tom de <strong>no</strong>vi<strong>da</strong>de <strong>no</strong> tipo de <strong>análise</strong> e na descoberta do impacto que o<br />

estranhamento <strong>da</strong>s concepções científi cas é capaz. Esse tom é responsável


A MULHER NO CORPO<br />

por <strong>uma</strong> abertura possível a <strong>no</strong>vas <strong>análise</strong>s. Temos <strong>uma</strong> pesquisa extremamente<br />

rica e rigorosa cujas interpretações ain<strong>da</strong> estão se forjando.<br />

A partir de um recorte i<strong>no</strong>vador e de um material valioso, a obra de<br />

Martin aju<strong>da</strong> a inaugurar um fértil campo de discussões. Pode-se ter<br />

<strong>uma</strong> idéia desse processo ao ler a introdução à edição de 1992, publica<strong>da</strong><br />

também neste volume, na qual a autora responde às críticas feitas ao<br />

livro de forma corajosa, problematizando alg<strong>uma</strong>s formas de tratamento<br />

dos <strong>da</strong>dos e conclusões. Têm destaque <strong>uma</strong> reavaliação <strong>da</strong> relação <strong>da</strong>s<br />

<strong>mulher</strong>es com a tec<strong>no</strong>logia médica <strong>no</strong> parto e auto<strong>no</strong>mia feminina e os<br />

usos <strong>da</strong> categoria raça/etnia <strong>no</strong> decorrer <strong>da</strong> <strong>análise</strong>. O debate provocado<br />

pelo livro, em virtude dos desafi os que estava inaugurando, evidencia<br />

a sua atuali<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> hoje.<br />

Especialmente em função do impacto que <strong>uma</strong> potente crítica <strong>da</strong><br />

ciência pode ter, essa obra merece ser li<strong>da</strong> não apenas por cientistas<br />

sociais e historiadores, ou por ativistas do campo dos direitos sexuais<br />

e reprodutivos, mas também por todos aqueles comprometidos com<br />

o universo <strong>da</strong> saúde e <strong>da</strong> pesquisa médica, como cientistas, clínicos e<br />

estu<strong>da</strong>ntes. Os leitores certamente em muito se benefi ciarão ao encarar<br />

a <strong>análise</strong> séria e provocativa que faz Martin do efeito de prerrogativas<br />

culturais mais amplas <strong>no</strong> saber e na prática <strong>da</strong> medicina e dos usos políticos,<br />

por vezes bastante inusitados, que as <strong>mulher</strong>es fazem <strong>da</strong> produção<br />

científi ca a respeito dos seus <strong>corpo</strong>s.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BEHAR, Ruth. The body in the woman, the story in the woman: a book review and<br />

a personal essay. Michigan Quarterly Review 29: 695-738, 1990.<br />

MACDONALD, Maryon. Review of the woman in the body: a <strong>cultural</strong> analysis of<br />

reproduction. Sociological Review 38: 588-591, 1990.<br />

STRATHERN, Marilyn. Reproducing the future. Essays on anthropology, kinship and the<br />

new reproductive tech<strong>no</strong>logies. Manchester: Manchester University Press, 1992.<br />

17

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