12.04.2013 Views

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA - Escola de Música da UFMG

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA - Escola de Música da UFMG

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA - Escola de Música da UFMG

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Realização Patrocínio<br />

<strong>REVISTA</strong> <strong>ACADÊMICA</strong> <strong>DE</strong> <strong>MÚSICA</strong> volume 16 julho / <strong>de</strong>zembro - 2007<br />

ISSN: 1517-7599<br />

<strong>REVISTA</strong> <strong>ACADÊMICA</strong> <strong>DE</strong> <strong>MÚSICA</strong><br />

volume 16<br />

julho / <strong>de</strong>zembro - 2007<br />

Pós-Graduação - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong>


A missão <strong>de</strong> PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

é publicar artigos científicos em português, inglês e<br />

espanhol bem estruturados e fun<strong>da</strong>mentados, que<br />

constituam contribuições relevantes para as diversas subáreas<br />

<strong>da</strong> música, incluindo as interfaces entre si e com<br />

outras áreas do conhecimento. Eventualmente, PER MUSI<br />

publica partituras, resenhas e entrevistas relaciona<strong>da</strong>s à<br />

pesquisa em música.<br />

PER MUSI está in<strong>de</strong>xa<strong>da</strong> no RILM (Répertoire International<br />

<strong>de</strong> Littérature Musicale), The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia<br />

Musical Brasileira (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>). O título<br />

abreviado PER MUSI <strong>de</strong>ve ser utilizado em citações.<br />

PER MUSI é uma publicação semestral do Programa <strong>de</strong><br />

Pós-Graduação <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong> (Conceito<br />

4 na CAPES). A submissão <strong>de</strong> artigos é contínua, ao longo<br />

<strong>de</strong> todo o ano. Downloads gratuitos po<strong>de</strong>m ser feitos no<br />

site <strong>de</strong> PER MUSI ONLINE (www.musica.ufmg.br/permusi)<br />

e a versão impressa <strong>da</strong> revista po<strong>de</strong> ser adquiri<strong>da</strong> no<br />

en<strong>de</strong>reço abaixo.<br />

Os artigos submetidos para publicação em PER MUSI são<br />

avaliados no sistema <strong>de</strong> duplo cego por dois pareceristas<br />

<strong>de</strong> região/instituição diferente(s) <strong>da</strong>quela(s) do(s)<br />

autor(es). É consi<strong>de</strong>rado aprovado o artigo aprovado<br />

por dois pareceristas. No caso <strong>de</strong> conflito entre os<br />

avaliadores, o Editor po<strong>de</strong>rá intervir e enviar o artigo a<br />

um terceiro parecerista. O(s) autor(es) do artigo aceito<br />

para publicação automaticamente transfere(m) todos os<br />

direitos <strong>de</strong> publicação para PER MUSI. O primeiro autor<br />

é responsável pelo conteúdo do artigo, pela informação<br />

<strong>de</strong> que o artigo é original e inédito e por assegurar que<br />

os <strong>de</strong>mais autores do mesmo tenham conhecimento do<br />

conteúdo do artigo aprovado e <strong>de</strong> sua cessão <strong>de</strong> direitos<br />

<strong>de</strong> publicação. PER MUSI se reserva o direito <strong>de</strong> efetuar<br />

alterações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m normativa, ortográfica e gramatical<br />

nos originais com vistas à melhor compreensão do artigo<br />

pelos leitores.<br />

Normas <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong> PER MUSI:<br />

1 - Os trabalhos <strong>de</strong>vem ser submetidos para publicação<br />

via e-mail ou em CR ROM e <strong>de</strong>verão estar em MS Word<br />

for Windows (arquivo tipo .doc ou .rtf), fonte Arial<br />

corpo 12, espaço simples em todo o artigo, sem recuo<br />

<strong>de</strong> parágrafo, com espaço entre parágrafos, justificado<br />

à esquer<strong>da</strong>, contendo <strong>de</strong> 8 a 25 páginas (exceções serão<br />

avalia<strong>da</strong>s caso a caso), incluídos aí o título/resumo/<br />

palavras-chave (em português e inglês), o nome do<br />

autor seguido <strong>de</strong> sua instituição entre parênteses e<br />

seu e-mail, o texto com exemplos musicais/figuras/<br />

tabelas, notas <strong>de</strong> ro<strong>da</strong>pé, referências bibliográficas e<br />

currículo do autor (10 a 15 linhas). As citações literais<br />

com mais <strong>de</strong> três linhas <strong>de</strong>verão vir em um parágrafo<br />

formatado em fonte Arial corpo 10 com recuo <strong>de</strong> 3<br />

cm à esquer<strong>da</strong>. Citações com até três linhas <strong>de</strong>vem ser<br />

inseri<strong>da</strong>s no corpo do texto entre aspas (Arial 12).<br />

2 - Todos os exemplos musicais, figuras ou tabelas <strong>de</strong>vem<br />

ser abreviados como Ex. Devem ser numerados, ter uma<br />

legen<strong>da</strong> sucinta e eluci<strong>da</strong>tiva <strong>de</strong> no máximo 3 linhas<br />

(Arial 10, espaço simples, inseri<strong>da</strong> acima <strong>da</strong> ilustração)<br />

e ser referenciados no texto. As imagens dos mesmos<br />

<strong>de</strong>vem ser em gra<strong>da</strong>ções <strong>de</strong> preto e enviados também<br />

em arquivos gráficos separados (arquivo tipo .tif ou<br />

. jpg com mínimo <strong>de</strong> 300 dpi). As iniciais dos nomes<br />

<strong>da</strong>s notas musicais <strong>de</strong>verão vir sempre em maiúsculas<br />

(Ex: Dó , Ré , Mi etc.). Compasso ou compassos são<br />

abreviados como c. (Ex: c.15-19). Números <strong>de</strong> páginas<br />

<strong>de</strong>vem ser indica<strong>da</strong>s no texto como p. (Ex: p.122-129).<br />

3 - Para citações no texto, utilizar referências simples com<br />

sobrenome do autor em maiúsculas, por exemplo: “...<br />

como observou GRIFFITHS (1983, p.139)”. Utilizar notas<br />

<strong>de</strong> fim (fonte Arial tamanho 10, espaço simples) apenas<br />

para informações complementares e comentários. As<br />

referências bibliográficas completas (Arial 10) <strong>de</strong>verão<br />

vir somente no final do artigo, sob o título Referências<br />

(Arial 12, negrito), <strong>de</strong> acordo com as Normas <strong>da</strong> ABNT.<br />

Fontes bibliográficas não cita<strong>da</strong>s no texto só po<strong>de</strong>rão<br />

ser incluí<strong>da</strong>s à parte sob o título Leitura recomen<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

(Arial 12, negrito). Não utilizar ibid. no texto. Não<br />

utilizar espaços <strong>de</strong>snecessários após abreviaturas.<br />

4 - O título do artigo (Arial 14, negrito), nome do autor<br />

(Arial 12, itálico), o resumo do trabalho com cerca <strong>de</strong> 6<br />

a 12 linhas (Arial 10) e até cinco palavras-chave (Arial<br />

10) <strong>de</strong>vem ser apresentados no início, em português.<br />

Logo em segui<strong>da</strong>, em inglês, <strong>de</strong>vem vir o título do artigo<br />

(Arial 12, negrito), o abstract (Arial 10) e respectivas<br />

keywords (Arial 10). Caso o artigo se subdivi<strong>da</strong> em<br />

seções, os títulos <strong>da</strong>s mesmas <strong>de</strong>verão ser em negrito,<br />

fonte arial 12. Ao final do artigo, incluir um currículo<br />

sucinto do autor (10 a 15 linhas, Arial 12). Evitar<br />

sublinhados e negritos no texto.<br />

5 - Após rigorosa revisão gramatical, ortográfica e <strong>de</strong><br />

formatação (recomen<strong>da</strong>-se enfaticamente a leitura <strong>de</strong><br />

artigos publicados anteriormente em PER MUSI ONLINE<br />

como mo<strong>de</strong>los), os trabalhos <strong>de</strong>verão ser remetidos à<br />

revista PER MUSI via e-mail ou em CD-ROM para o<br />

en<strong>de</strong>reço abaixo, acompanhados <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração via<br />

e-mail em nome <strong>de</strong> todos os autores, contendo o título do<br />

trabalho e o(s) nome(s), en<strong>de</strong>reço(s) e e-mail(s) <strong>de</strong> todos<br />

os autores, autorizando o processo editorial e conce<strong>de</strong>ndo<br />

os direitos autorais dos trabalhos à revista PER MUSI.<br />

Para informações adicionais, favor consultar o site <strong>de</strong><br />

PER MUSI ONLINE www.musica.ufmg.br/permusi ou<br />

escreva para fborem@ufmg.br ou mestrado@ufmg.br<br />

PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>UFMG</strong> - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha<br />

CEP 31-270-090 - Belo Horizonte, MG - BH<br />

The mission of PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

is to publish scholarly articles in Portuguese, Spanish and<br />

English which make relevant contributions to the several<br />

sub-areas of music, including interfaces among them<br />

and with other scientific areas. Eventually, PER MUS<br />

publishes music scores, reviews and interviews related to<br />

music research.<br />

PER MUSI is in<strong>de</strong>xed by RILM (Répertoire International<br />

<strong>de</strong> Littérature Musicale) , The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia<br />

Musical Brasileira (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>). The<br />

abbreviated title PER MUSI should be used in citations. PER<br />

MUSI is published twice a year by the Graduate Program of<br />

the Music School of the Fe<strong>de</strong>ral University of Minas Gerais<br />

(<strong>UFMG</strong>), Brazil. The submission of papers is continuous<br />

throughout the year. Previous printed issues can be acquired<br />

at the address below. Free downloads are available at<br />

PER MUSI ONLINE (www.musica.ufmg.br/permusi).<br />

Articles submitted to PER MUSI are double -blind<br />

peer-reviewed by two consultants from different area/<br />

institution than that of the author(s) and will be approved<br />

if it is approved by two consultants. In cases of reviewers’<br />

conflicts, the Editor may interfere in the review process and<br />

ask a third review. The author(s) of the articles accepted for<br />

publication automatically transfer(s) their copyrights to<br />

PER MUSI. The first author is responsible for the content<br />

of the article, for the information that the article is original<br />

and unpublished and that the other authors of the same<br />

article are informed about the content of the article and<br />

the transfer of copyright. PER MUSI holds the right to<br />

make format and grammatical changes in the article to<br />

ensure the rea<strong>de</strong>r’s best comprehension.<br />

PER MUSI ’s Editorial Gui<strong>de</strong>lines<br />

1 - The papers should be in MS Word for Windows or<br />

compatible (.doc or .rtf files), Arial font, size 12, single<br />

spaced, with 8 to 25 pages (exceptions will be evaluated<br />

by the Editorial Board) including title, author’s<br />

name (followed by the name of his/hers institution in<br />

parenthesis) and e-mail, abstract, keywords, musical<br />

examples/figures/tables, footnotes, bibliographic references<br />

and the author´s short vitae (10 to 15 lines). The<br />

paragraphs of the body of the text should be aligned to<br />

the left, with no in<strong>de</strong>ntation and separated by a single<br />

space. Literal quotations with more than 3 lines should<br />

constitute separate paragraphs (Arial10) and have a<br />

2-inch in<strong>de</strong>ntation on the left.<br />

2 - All musical examples, figures and tables must be in<br />

black and white, numbered and should be abbreviated<br />

as Ex. They should be presented (1) in the text and (2)<br />

in separate files ( .tif or .jpg, 300 dpi ), accompanied<br />

by a clear and concise heading with three lines at most<br />

(Arial 10), inserted above the figure. Within the text,<br />

measures and pages should be abbreviated as m. and p.<br />

(e.g., m.24-29 and p.213-218).<br />

3 - References to quotations should be placed in the text<br />

in abbreviated form with the author´s last name in<br />

upper case, for example, “... according to GRIFFITHS<br />

(1983, p.139)...” Or “...as aforementioned (GRIFFITHS,<br />

1983, p.139)...”. Endnotes (Arial 10) should be used only<br />

for additional information or comments. The complete<br />

bibliographical references (Arial 10) should be placed<br />

at the end of the text (e.g., GRIFFITHS, Paul. The String<br />

Quartet. New York: Thames & Hudson, 1983) un<strong>de</strong>r<br />

the heading References (Arial 12, bold). Sources not<br />

used directly in the text may be mentioned un<strong>de</strong>r the<br />

heading Suggested reading (Arial 12, bold). Avoid ibid.<br />

and unnecessary spaces within the text.<br />

4 - The title (Arial 14, bold), author’s name (Arial 12, italics),<br />

the abstract (from 6 to 12 lines, Arial 10) and keywords<br />

(up to five) should be presented at the beginning of the<br />

article. If the article is subdivi<strong>de</strong>d into sections, their titles<br />

should be in Arial, size 12, bold. A short vitae (10 to<br />

15 lines, Arial 10) should be inclu<strong>de</strong>d at the end of the<br />

paper. Avoid un<strong>de</strong>rlines and bold fonts within the text.<br />

5 - After being proofread and formatted (we strongly<br />

recommend the reading of articles previously published<br />

in PER MUSI ONLINE as mo<strong>de</strong>ls), the originals should<br />

be submitted to PER MUSI via e-mail or in CD ROM<br />

to the address below. It should be accompanied by an<br />

e-mail in the name of all authors, containing the title,<br />

the author(s)’s name(s), address(es), FAX(es), e-mail(s),<br />

agreeing with the editorial process as well as the<br />

concession of its copyright to PER MUSI.<br />

For further information, please access PER MUSI<br />

ONLINE´s site www.musica.ufmg.br/permusi or write to<br />

fborem@ufmg.br or mestrado @musica.ufmg.br<br />

PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>UFMG</strong> - <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha<br />

CEP 31.270-090 - Belo Horizonte, MG - Brazil


ISSN: 1517-7599<br />

<strong>REVISTA</strong> <strong>ACADÊMICA</strong> <strong>DE</strong> <strong>MÚSICA</strong><br />

volume 16<br />

julho/<strong>de</strong>zembro - 2007


Editorial<br />

O 1º Fórum Nacional <strong>de</strong> Editores <strong>de</strong> Periódicos <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, realizado em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2007 na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Goiás, a partir <strong>da</strong> iniciativa inédita <strong>da</strong> Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> ANPPOM (Associação Nacional <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação em<br />

<strong>Música</strong>), a Profa. Sônia Ray, foi um marco na busca <strong>de</strong> soluções para os principais problemas editoriais <strong>da</strong> música na<br />

universi<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira. Alcançar os objetivos abaixo, ou alguns <strong>de</strong>les, significará um novo patamar na nossa produção<br />

científica:<br />

1 - a criação <strong>de</strong> um portal <strong>de</strong> periódicos no site <strong>da</strong> ANPPOM;<br />

2 - a utilização <strong>de</strong> uma plataforma eletrônica comum para editoração (o SEER do IBICT);<br />

3 - a criação <strong>de</strong> um banco <strong>de</strong> paceristas <strong>da</strong> ANPPOM;<br />

4 - uma normalização específica <strong>da</strong> área <strong>de</strong> música junto à ABNT;<br />

5 - a gestão <strong>de</strong> uma política comum junto aos in<strong>de</strong>xadores nacionais e internacionais.<br />

Temos o prazer <strong>de</strong> apresentar o número 16 <strong>de</strong> Per Musi - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> com trabalhos sobre um vasto<br />

leque <strong>de</strong> práticas musicais: música popular, música antiga, música brasileira nacionalista, música brasileira do<strong>de</strong>cafônica<br />

e música brasileira pós-do<strong>de</strong>cafônica, além <strong>de</strong> uma reflexão semiológica sobre o tempo musical.<br />

No seu segundo artigo para Per Musi, Nicholas Cook propõe uma perspectiva sociológica <strong>da</strong> música, a partir do alto grau<br />

<strong>de</strong> interativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e colaboração no jazz, como alternativa à excessiva orientação dos musicólogos e dos performers pelo<br />

texto, seja ele literatura ou partitura.<br />

Aos nos apresentar as diversas vertentes conceituais <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za (wit) nos períodos barroco e clássico, Mônica Lucas<br />

analisa sua recorrência no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn, revelando, na partitura, um dos traços<br />

que nos faz reconhecer sua música como genial.<br />

Ana Cláudia <strong>de</strong> Assis abor<strong>da</strong> a corajosa iniciativa <strong>de</strong> César Guerra-Peixe <strong>de</strong> conciliar, por meio <strong>de</strong> procedimentos rítmicos<br />

e tendo como pano-<strong>de</strong>-fundo apaixonados embates <strong>da</strong> cena musical brasileira, as estéticas do do<strong>de</strong>cafonismo e do<br />

nacionalismo.<br />

Silvina Luz Mansilla vasculhou a imprensa portenha para mostrar <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> recepção musical positiva e, às vezes,<br />

reserva<strong>da</strong> ao jovem H. Villa-Lobos pelos críticos e público na sua primeira viagem à Argentina em 1925, revelando também<br />

repertório e músicos envolvidos naquela empreita<strong>da</strong> e o impacto <strong>de</strong> sua estadia nos círculos musicais <strong>de</strong> Buenos Aires.<br />

Daniel Wolff e Olin<strong>da</strong> Allessandrini analisam a linguagem idiomática dos Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-<br />

Lobos e sua recriação no piano pelo seu pupilo José Vieira Brandão.<br />

Lara Greco e Lúcia Barrenechea propõem a a<strong>da</strong>ptação, à música contemporânea, dos princípios <strong>de</strong> Duffin para<br />

interpretação <strong>da</strong> música antiga, exemplificando a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre estes estilos tão distantes em uma obra do compositor<br />

brasileiro Fre<strong>de</strong>rico Richter.<br />

Rodrigo Fonseca e Rodrigues discute a escuta musical a partir <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações sobre a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> do parâmetro<br />

tempo e <strong>da</strong>s forças envolvi<strong>da</strong>s na construção <strong>de</strong> sua imagem.<br />

Na seção <strong>de</strong> resenhas Pega na Chaleira, Carlos Palombini esmiúça o filme Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong> <strong>de</strong> Denise Garcia sobre<br />

o funk carioca e suas personagens centrais.<br />

Finalmente, lembramos que Per Musi Online disponibiliza gratuitamente seus conteúdos e capas colori<strong>da</strong>s, para download<br />

ou impressão, no en<strong>de</strong>reço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas <strong>de</strong> quase todos os números <strong>da</strong> revista<br />

ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>m ser adquiri<strong>da</strong>s através do e-mail mestrado@musica.ufmg.br.<br />

Fausto Borém<br />

Editor <strong>de</strong> Per Musi


PER MUSI - Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> é um espaço <strong>de</strong>mocrático para a reflexão intelectual na área <strong>de</strong> música, on<strong>de</strong> a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e o <strong>de</strong>bate<br />

são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião <strong>da</strong> Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está in<strong>de</strong>xa<strong>da</strong> nas bases<br />

RILM Abstracts of Music, Literature The Music In<strong>de</strong>x e Bibliografia <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Brasileira <strong>da</strong> ABM (Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>).<br />

Fun<strong>da</strong>dor e Editor Científico<br />

Fausto Borém (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Corpo Editorial Internacional<br />

Aaron Wilkinson (Royal College of Music, Londres, Inglaterra)<br />

Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA)<br />

Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra)<br />

Denise Pelusch (University of Colorado, Boul<strong>de</strong>r, EUA)<br />

Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal)<br />

Jean-Jacques Nattiez (Université <strong>de</strong> Montreal, Montreal, Canadá)<br />

João Par<strong>da</strong>l Barreiros (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Lisboa, Portugal)<br />

Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA)<br />

Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA)<br />

Lucy Green (University of London, Institute of Education, London, Inglaterra)<br />

Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica)<br />

Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. <strong>de</strong> Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina)<br />

Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)<br />

Silvina Mansilla (Universi<strong>da</strong>d Católica, Buenos Aires, Argentina)<br />

Xosé Crisanto Gán<strong>da</strong>ra (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Coruña, Corunha, Espanha)<br />

Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)<br />

Corpo Editorial no Brasil<br />

André Cavazotti (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Cecília Cavalieri (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre)<br />

Diana Santiago (UFBA, Salvador)<br />

Fernando Iazetta (USP, São Paulo)<br />

José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)<br />

Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Márcia Tabor<strong>da</strong> (UFSJR, São João <strong>de</strong>l Rey)<br />

Maurício Alves Loureiro (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Maurílio Nunes Vieira (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Norton Du<strong>de</strong>que (UFPR, Curitiba)<br />

Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)<br />

Rosane Cardoso <strong>de</strong> Araújo (UFPR, Curitiba)<br />

Salomea Gan<strong>de</strong>lman (UNIRIO, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Sônia Ray (UFG, Goiânia)<br />

Van<strong>da</strong> Freire (UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Conselho Científico<br />

Acácio Ta<strong>de</strong>u <strong>de</strong> Camargo Pie<strong>da</strong><strong>de</strong> (U<strong>DE</strong>SC, Florianópolis)<br />

Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)<br />

André Cardoso (UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

Ângelo Dias (UFG, Goiânia)<br />

Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)<br />

Beatriz Salles (UNB, Brasília)<br />

Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)<br />

Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)<br />

Fabiano Araújo (FAMES, Vitória)<br />

Flávio Apro (UNESP, São Paulo)<br />

Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)<br />

José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)<br />

Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)<br />

Lincoln Andra<strong>de</strong> (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)<br />

Manoel Câmara Rasslan (UFMTS, Campo Gran<strong>de</strong>)<br />

Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)<br />

Patrícia Furst Santiago (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Sandra Loureiro <strong>de</strong> Freitas Reis (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

Vladimir Silva (UFPI, Teresina)<br />

O Corpo <strong>de</strong> Pareceristas <strong>de</strong> Per Musi e seus pareceres são sigilosos<br />

Revisão Geral<br />

Fausto Borém (<strong>UFMG</strong>)<br />

Maria Inêz Lucas Machado (<strong>UFMG</strong>)<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

Reitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu Pena<br />

Vice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

Prof. Dr Jaime Arturo Ramirez<br />

Pró-Reitoria <strong>de</strong> Pesquisa<br />

Prof. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares<br />

<strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong><br />

Prof. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong><br />

Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coor<strong>de</strong>nador<br />

Prof. Dr. Fausto Borém, Sub-Coor<strong>de</strong>nador<br />

Planejamento e Produção<br />

Iara Veloso - CE<strong>DE</strong>COM/<strong>UFMG</strong><br />

Andréa Fernan<strong>de</strong>s (estagiária), Júlia Bragança (trainee) e Juliana<br />

Lopes (estagiária) - CE<strong>DE</strong>COM/<strong>UFMG</strong><br />

Projeto Gráfico<br />

Capa e miolo: Sérgio Lemos - CE<strong>DE</strong>COM/<strong>UFMG</strong><br />

Diagramação: Romero H. Morais - CE<strong>DE</strong>COM/<strong>UFMG</strong><br />

Tiragem<br />

250 exemplares<br />

PER MUSI: Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> - n.16, julho / <strong>de</strong>zembro, 2007 -<br />

Belo Horizonte: <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, 2007 –<br />

n.: il.; 29,7x21,5 cm.<br />

Semestral<br />

ISSN: 1517-7599<br />

ABM<br />

1. <strong>Música</strong> – Periódicos. 2. <strong>Música</strong> Brasileira – Periódicos.<br />

I. <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>


Sumário<br />

ARTIGOS CIENTÍFICOS<br />

Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros 7<br />

Making music together, or improvisation and its others<br />

Nicholas Cook<br />

Tradução <strong>de</strong> Fausto Borém<br />

Uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Joseph Haydn 21<br />

A rhetorical view of wit in Joseph Haydn´s String Quartet Op.33, N.5<br />

Mônica Lucas<br />

Compondo a “cor nacional” conciliações estéticas e culturais na 33<br />

música do<strong>de</strong>cafônica <strong>de</strong> César Guerra-Peixe<br />

Composing the Brazilian “National Colour”: aesthetic and cultural conciliations in César Guerra-Peixe’s do<strong>de</strong>caphonic music<br />

Ana Cláudia <strong>de</strong> Assis<br />

Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920: 42<br />

mo<strong>de</strong>rnismo, recepción y campo musical<br />

Heitor Villa-Lobos in Buenos Aires during the 1920s: mo<strong>de</strong>rnism, reception and musical field<br />

Silvina Luz Mansilla<br />

Os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-Lobos e a transcrição para piano <strong>de</strong> 54<br />

José Vieira Brandão: uma análise comparativa<br />

The Five Prelu<strong>de</strong>s for guitar by Heitor Villa-Lobos and José Vieira Brandão’s piano transcription: a comparative analysis<br />

Daniel Wolff e Olin<strong>da</strong> Allessandrini<br />

Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação segundo 67<br />

os parâmetros <strong>da</strong> Performance Historicamente Informa<strong>da</strong><br />

Inspiratio by Fre<strong>de</strong>rico Richter: an interpretative approach based on the principles of Historically Informed Performance<br />

Lara Greco e Lúcia Barrenechea<br />

Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>: as imagens do Tempo na escuta musical 80<br />

Sound and Sonority: the images of the Time in musical listening<br />

Rodrigo Fonseca e Rodrigues<br />

PEGA NA CHALEIRA – RESENHAS<br />

Nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Denise Garcia surpreen<strong>de</strong> uma música em construção 84<br />

Denise Garcia returns from the Rio <strong>de</strong> Janeiro slums and brings back the marvels of a music in the making<br />

Carlos Palombini


COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

Fazendo música juntos ou<br />

improvisação e seus outros<br />

Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)<br />

Nicholas.Cook@rhul.ac.uk<br />

Tradução <strong>de</strong> Fausto Borém (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

fborem@ufmg.br<br />

Resumo: Ingrid Monson, entre outros, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que falta à música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal a dimensão interativa e colaborativa<br />

do jazz. Esse artigo parte <strong>da</strong> interação no jazz e <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>gens <strong>de</strong>ste tema por seus teóricos, em direção a um mo<strong>de</strong>lo<br />

mais geral <strong>de</strong> música enquanto ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> social. Sugiro uma ampla valorização <strong>da</strong> música – qualquer música – enquanto<br />

instrumento por meio do qual apren<strong>de</strong>mos a trabalhar com os outros, a negociar caminhos <strong>de</strong> ação compartilhados <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> estruturas composicionais que são mais bem compreendi<strong>da</strong>s como pontos <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, ao invés <strong>de</strong> especificações <strong>de</strong><br />

ação. Vislumbrar a música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal nessa perspectiva e levar a sério a consi<strong>de</strong>ração sobre a dimensão social<br />

que Alfred Schutz há muito tempo enfatizou - em um artigo cujo título tomei emprestado - aju<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r uma nova<br />

roupagem à excessiva orientação pelo texto escrito que, questionavelmente, tem provido os musicólogos com uma visão<br />

<strong>de</strong>turpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> música.<br />

Palavras-chave: improvisação, performance musical, comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, musicologia, tradição oral e auditiva.<br />

Making music together, or improvisation and its others<br />

Abstract: It has often been claimed, for instance by Ingrid Monson, that Western ‘art’ music lacks the interactive,<br />

collaborative dimension of jazz. This article works from interaction in jazz, and approaches to such interaction by jazz<br />

theorists, towards a more general mo<strong>de</strong>l of music as social action: I suggest that we value music—-all music—-largely<br />

as a medium through which we learn how to work with others, how to negotiate shared courses of action within<br />

compositional frameworks that are better un<strong>de</strong>rstood as prompts to rather than specifications of action. Seeing Western<br />

‘art’ music from such a perspective, and so taking seriously the social dimension of music that Alfred Schutz long ago<br />

emphasized in the paper whose title I have borrowed, helps to redress the excessive orientation towards the written text<br />

that has arguably given musicologists such a lop-si<strong>de</strong>d view of music.<br />

Keywords: improvisation, music performance, community, musicology, aural/oral tradition.<br />

1 - <strong>Música</strong> enquanto performance<br />

Abor<strong>da</strong>rei meu assunto a partir <strong>de</strong> duas citações<br />

diametralmente opostas, ambas sobre a relação entre<br />

o jazz e a música <strong>da</strong> “arte” européia tradicional. De um<br />

lado, Ingrid MONSON (1996, p.74) diz que “a teorização<br />

<strong>de</strong> significado na improvisação nos grupos <strong>de</strong> jazz <strong>de</strong>ve<br />

consi<strong>de</strong>rar, como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, o contexto interativo<br />

e colaborativo <strong>da</strong> invenção musical. Este contexto não<br />

tem paralelo na prática dos compositores clássicos<br />

oci<strong>de</strong>ntais do período <strong>da</strong> prática comum”. Por outro lado,<br />

Alfred SCHUTZ (1964, p.177) diz que “em princípio, não há<br />

diferença entre a performance <strong>de</strong> um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s<br />

e as improvisações em uma jam session <strong>de</strong> jazzistas<br />

experts”. Uma re-conciliação entre esse dois pontos <strong>de</strong><br />

vista divergentes é impossível; na<strong>da</strong> mais apropriado do<br />

que <strong>de</strong>clarar um empate técnico.<br />

Enquanto Monson não precisa ser apresenta<strong>da</strong> (voltarei<br />

a esta autora no momento apropriado), os escritos<br />

do sociólogo Alfred Schutz são menos conhecidos do<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

que <strong>de</strong>veriam entre os musicólogos, o que se aplica<br />

particularmente ao ensaio <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tirei ambas a minha<br />

citação e a primeira parte <strong>de</strong> meu título. Making music<br />

together: a study in social relationship (Fazendo música<br />

juntos: um estudo sobre relação social) foi publicado<br />

inicialmente em 1951, e trata especificamente <strong>de</strong><br />

questões <strong>de</strong> interação e <strong>de</strong> performance em grupo em<br />

tempo real, assuntos que estão muito presentes na pauta<br />

dos estudos atuais sobre jazz (uma <strong>da</strong>s minhas posições<br />

no presente artigo é que este assunto <strong>de</strong>veria ter um<br />

espaço significativo também na agen<strong>da</strong> <strong>da</strong> musicologia<br />

volta<strong>da</strong> para a “arte erudita” oci<strong>de</strong>ntal). O objetivo <strong>de</strong><br />

Schutz neste ensaio não é tanto escrever sobre música<br />

quanto, por meio <strong>da</strong> música, escrever sobre as dinâmicas<br />

<strong>da</strong>s relações sociais e, particularmente, sobre a idéia <strong>da</strong><br />

inter-subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>: em uma surpreen<strong>de</strong>nte antecipação<br />

<strong>da</strong> linguagem do final dos anos <strong>de</strong> 1960, ele argumenta<br />

que to<strong>da</strong> comunicação é basea<strong>da</strong> no que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong><br />

“relação mútua <strong>de</strong> ajuste”, e que significa um tipo <strong>de</strong><br />

engajamento direto e inter-pessoal que acontece quando<br />

Recebido em: 12/07/2007 - Aprovado em: 25/11/2007<br />

7


8<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

“marchamos juntos, <strong>da</strong>nçamos juntos, fazemos amor<br />

juntos” - e, é claro, “fazemos música juntos” (SCHUTZ,<br />

1964, p.161-162).<br />

Schutz <strong>de</strong>fine uma relação mútua <strong>de</strong> ajuste <strong>de</strong> modo a<br />

revelar suas cre<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong> fenomenólogo (ele é autor<br />

<strong>de</strong> um dos mais extensos ensaios em fenomenologia <strong>da</strong><br />

música [SCHUTZ, 1976]): estar engajado em música tanto<br />

como performer quanto ouvinte é estar engajado no que<br />

Schutz chama <strong>de</strong> “tempo interno”, a durée <strong>de</strong> Bergson,<br />

uma temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> subjetiva não liga<strong>da</strong> ao tempo<br />

“externo” mostrado pelo relógio.<br />

Ele explica isto numa passagem que nos lembra quão<br />

longe se vai o ano <strong>de</strong> 1951 (SCHUTZ, 1964, p.171):<br />

Deixe-nos imaginar que os movimentos lento e rápido <strong>de</strong> uma<br />

sinfonia preenchem um disco <strong>de</strong> 30,48 centímetros ca<strong>da</strong>. Nossos<br />

relógios mostram que tocar qualquer uma <strong>de</strong>stas faixas leva três<br />

minutos e meio ca<strong>da</strong>. Este é um fato que po<strong>de</strong>ria interessar o programador<br />

<strong>de</strong> uma estação <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> rádio. Para o ouvinte<br />

observador, isto não significa na<strong>da</strong>. Para ele, não é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o<br />

tempo em que ele vivenciou o movimento lento teve a “mesma duração”<br />

do tempo que <strong>de</strong>dicou ao movimento rápido.<br />

Ele explica as diferentes quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>stes tempos: o<br />

“tempo externo” po<strong>de</strong> ser dividido em porções iguais, ao<br />

passo que, no “tempo interno”, não há subdivisões, medi<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong> tempo distintas do conteúdo <strong>da</strong> experiência durante<br />

aquele tempo. Para Schutz, então, fazer música juntos<br />

significa o engajamento <strong>de</strong> dois ou mais indivíduos <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> um tempo interno compartilhado: “esta comunhão do<br />

fluxo <strong>de</strong> experiências do tempo interno do outro, este<br />

vivenciar <strong>de</strong> um presente vívido comum, constituindo. .<br />

. a relação mútua <strong>de</strong> ajuste, a experiência do ‘Nós’, que<br />

está na base <strong>de</strong> qualquer possível comunicação” (SCHUTZ,<br />

1964: 173). Quando ele utiliza esta idéia como base<br />

para <strong>de</strong>screver uma performance <strong>de</strong> um instrumentista<br />

solista com acompanhamento <strong>de</strong> teclado, o resultado (se<br />

nos permitirmos uma terminologia husserliana) é quase<br />

indistinta dos relatos sobre interação em performance<br />

apresentados por Monson e outros autores <strong>de</strong> estudos<br />

sobre jazz: ca<strong>da</strong> performer “tem <strong>de</strong> prever o Outro por<br />

meio <strong>da</strong> audição, atrasos e antecipações, qualquer vira<strong>da</strong><br />

na interpretação do Outro, é estar preparado, a qualquer<br />

momento, para ser lí<strong>de</strong>r ou acompanhador” (SCHUTZ,<br />

1964, p.176). Dois parágrafos adiante, Schutz <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que, em princípio, não há diferença<br />

entre um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s e uma jam session.<br />

Neste ensaio, Schutz <strong>de</strong>senvolve suas idéias atacando<br />

parcialmente as idéias do sociólogo francês Maurice<br />

Halbwachs. Como Schutz, Halbwachs também vê<br />

música como um campo <strong>de</strong> experiências para teorias<br />

sociais mais amplo - no caso <strong>de</strong> Halbwachs, o <strong>de</strong> uma<br />

“memória coletiva” socialmente construí<strong>da</strong> – mas<br />

no caso <strong>de</strong> Schutz, para usar suas próprias palavras,<br />

Halbwachs dividiu “o campo <strong>da</strong> música em duas partes<br />

distintas: música enquanto experiência do músico com<br />

boa formação e música enquanto experiência do homem<br />

comum” (SCHUTZ, 1964, p.163). Halbwachs consi<strong>de</strong>ra<br />

que a experiência do músico com boa formação está<br />

basea<strong>da</strong> na “possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> traduzir música em símbolos<br />

visuais – ou seja, o sistema <strong>de</strong> notação musical – o qual<br />

possibilita a transmissão <strong>da</strong> música”; vista <strong>de</strong>sta maneira,<br />

a composição torna-se literalmente uma questão <strong>de</strong><br />

manipular símbolos, e a experiência do homem comum se<br />

torna, <strong>de</strong> certa maneira, parasitária <strong>da</strong> “linguagem musical<br />

socialmente condiciona<strong>da</strong>” dos músicos <strong>de</strong> boa formação.<br />

Assim, cabe a Halbwach mostrar no seu argumento<br />

que, sem o acesso à notação, os leigos são incapazes <strong>de</strong><br />

lembrar <strong>da</strong> própria música: ao contrário, se lembram <strong>de</strong><br />

uma melodia por meio <strong>da</strong> letra <strong>da</strong> canção, se lembram<br />

<strong>de</strong> como <strong>da</strong>nçar por meio <strong>da</strong>s ações físicas que estão<br />

codifica<strong>da</strong>s na <strong>da</strong>nça etc. Mas Schutz pensa diferente. Ele<br />

argumenta que isto representa uma falta <strong>de</strong> compreensão<br />

<strong>de</strong> ambas a experiência musical e a notação musical: “O<br />

símbolo musical não é na<strong>da</strong> além <strong>de</strong> instruções para o<br />

performer produzir, por meio <strong>de</strong> sua voz ou instrumento,<br />

um som <strong>de</strong> altura e duração <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s” (SCHUTZ, 1964,<br />

p.166). Segundo ele, os símbolos <strong>da</strong> notação – como<br />

outros conhecimentos discursivos musicais – existem<br />

somente no tempo externo; eles são suplantados ou<br />

apagados pelos valores prenhes <strong>de</strong> nuanças conferidos às<br />

alturas ou durações durante a performance e assimilados<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> experiência subjetiva do tempo interno.<br />

Obviamente, o que Schutz fala sobre a notação não é bem<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: quando ele diz que “O símbolo musical não é na<strong>da</strong><br />

a não ser instruções para o performer”, esta afirmação<br />

se aplicaria mais à tablatura e não à notação na pauta.<br />

Como vejo esta questão, a “arte” erudita oci<strong>de</strong>ntal vive<br />

um estranho tipo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dupla na medi<strong>da</strong> em que, por um<br />

lado, funciona como uma cultura do som experienciado<br />

(<strong>de</strong>scrito por Schutz) mas, por outro, como uma cultura<br />

<strong>de</strong> símbolos visíveis, uma forma esotérica <strong>de</strong> literatura<br />

(em meu livro Music, Imagination, and Culture me refiro<br />

a isto como “os dois lados do mesmo tecido musical” ).<br />

A diferença entre a notação na pauta e a notação na<br />

tablatura é central para esta questão, porque é através<br />

<strong>da</strong> notação na pauta – como uma maneira estiliza<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> representar padrões <strong>de</strong> som, e não simplesmente<br />

uma série <strong>de</strong> instruções para execução imediata – que<br />

a música é capaz <strong>de</strong> circular como um texto inteligível.<br />

Acrescentaria que, por razões que remontam ao século XIX<br />

e à formação <strong>da</strong> disciplina a partir do mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> filologia,<br />

a musicologia (quero dizer, a musicologia “erudita”<br />

oci<strong>de</strong>ntal) constituiu-se majoritariamente <strong>de</strong> estudos<br />

sobre textos escritos, estudos sobre apenas um lado do<br />

tecido musical, mas não sobre o outro. Um outro lado<br />

<strong>de</strong> tarefas não cumpri<strong>da</strong>s, em que a musicologia <strong>de</strong> hoje<br />

terá que se haver com a música enquanto performance<br />

– ou seja, a música que se experimenta como parte <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> diária <strong>de</strong> praticamente qualquer pessoa (exceto dos<br />

musicólogos, sou tentado a dizer).<br />

É aí que pretendo contribuir com o presente artigo. O<br />

problema <strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>senvolver uma musicologia <strong>da</strong><br />

performance é que, como a etimologia do termo sugere,<br />

ser um “musicólogo” é pensar a música enquanto texto


(o que, <strong>de</strong>sta maneira, ao contrário do meu comentário<br />

superficial na sentença anterior, está profun<strong>da</strong>mente<br />

fun<strong>da</strong>mentado em fatores disciplinares e não em uma<br />

erudição <strong>de</strong>scabi<strong>da</strong> e responsável pelo distanciamento<br />

dos musicólogos <strong>da</strong> performance). E se você pensa a<br />

música como texto, então, é quase inevitável que você<br />

pense sobre a performance como reprodução, como<br />

representação em som e no tempo <strong>de</strong> algo que tem sua<br />

existência autônoma, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>da</strong> performance<br />

(e ambos os termos “reprodução” e “representação” são<br />

utilizados aqui como sinônimos <strong>de</strong> “performance” quando<br />

se escreve sobre a tradição <strong>da</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal). Então,<br />

há aí uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se valorizar, separa<strong>da</strong>mente, as<br />

noções <strong>de</strong> música e texto. Uma <strong>da</strong>s maneiras <strong>de</strong> se fazer<br />

isto é por meio <strong>de</strong> comparação com outras tradições, nas<br />

quais a música não é i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> <strong>da</strong> mesma maneira<br />

com textos escritos, ou naquelas em que a função do<br />

texto é diferente <strong>de</strong> sua função <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong><br />

“arte” oci<strong>de</strong>ntal – ou pelo menos, <strong>da</strong> maneira com que os<br />

musicólogos a vêm agindo <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> “arte”<br />

oci<strong>de</strong>ntal. Em diversos momentos (COOK, 2003a), tenho<br />

buscado esta comparação <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> tradição do gin (ou<br />

zíter longo chinês), o qual possui uma forma altamente<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> notação – mas que funciona <strong>de</strong> uma<br />

maneira muito distinta <strong>da</strong> notação <strong>da</strong> pauta oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Nele, por contraste, <strong>de</strong>vo buscar uma comparação com<br />

uma tradição musical na qual a relação entre a notação<br />

e a prática <strong>de</strong> performance é mais solta, uma tradição<br />

que geralmente é i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> (talvez inconscientemente)<br />

com improvisação: o jazz.<br />

– o – o – o – o – o – o – o – o – o –<br />

A controvérsia entre Schutz e Halbwachs po<strong>de</strong> parecer<br />

obscura como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para um estudo <strong>de</strong>sta<br />

natureza, mas o argumento <strong>de</strong> Schutz possui ramificações<br />

muito amplas: essencialmente, ele diz que, se querermos<br />

compreen<strong>de</strong>r como as pessoas fazem música juntas – se<br />

querermos compreen<strong>de</strong>r música enquanto performance –<br />

então precisamos pensar na música como algo diferente<br />

<strong>da</strong> tradição letra<strong>da</strong>, basea<strong>da</strong> no texto. E a impermeável<br />

distinção que Halbwachs tentou erigir e à qual Schutz<br />

se opôs – entre a música letra<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> “arte” e<br />

a música puramente auditiva do ci<strong>da</strong>dão comum – está<br />

fortemente relaciona<strong>da</strong> com a distinção igualmente<br />

impermeável que se tornou lugar-comum nos textos<br />

sobre jazz: aquela entre a tradição <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte”<br />

basea<strong>da</strong> na partitura e a tradição oral e auditiva do jazz.<br />

Um exemplo recente e surpreen<strong>de</strong>nte é a contribuição <strong>de</strong><br />

Bruce JOHNSON (2002) para o Cambridge Companion to<br />

Jazz, ao qual <strong>de</strong>u o título <strong>de</strong> Jazz as cultural practice.<br />

O argumento básico <strong>de</strong> Johnson é que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

institucionaliza<strong>da</strong> <strong>de</strong> hoje é “centra<strong>da</strong> na visão”: o visual<br />

é privilegiado sobre o auditivo e o oral para “manter um<br />

regime <strong>de</strong> conhecimento-como-controle” (JOHNSON, 2002,<br />

p.100). Como uma expressão autoriza<strong>da</strong> <strong>de</strong>sta socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

institucionaliza<strong>da</strong>, a música <strong>de</strong> “arte” está centra<strong>da</strong> no texto,<br />

o qual representa “o objeto do foco visual-mental <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

músico que se dirige diretamente ou é conduzido a partir do<br />

‘altar’ central”. O programa está centrado no “opus”: é um<br />

monóculo <strong>de</strong> escopo hegemônico, um olho engajado em<br />

um ‘produto’ “(JOHNSON, 2002, p.102). Por contraste, “jazz<br />

distingue-se dos mo<strong>de</strong>los <strong>da</strong> música-<strong>de</strong>-arte por priorizar o<br />

ouvido na performance <strong>de</strong> improvisações coletivas. O jazz é<br />

um ponto auditivo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma epistemologia domina<strong>da</strong><br />

pela visão” (JOHNSON, 2002, p.104). Desta maneira, o jazz<br />

é marginalizado por uma economia <strong>de</strong> cultura orienta<strong>da</strong><br />

para a obra “acaba<strong>da</strong>” <strong>da</strong> música, e por aquilo que Johnson<br />

chama <strong>de</strong> “estética musical autoriza<strong>da</strong>” (JOHNSON,<br />

2002, p.105), o que po<strong>de</strong> ser epitomizado pelo “eminente<br />

musicólogo <strong>de</strong> Sorbonne André Pirro”, que afirmou que<br />

“nunca mais irei a concertos. Porque ouvir música? Lêla<br />

já é o bastante” (JOHNSON, 2002, p.103). Johnson,<br />

conseqüentemente, <strong>de</strong>plora qualquer reconciliação entre o<br />

jazz e a musicologia, a qual ele <strong>de</strong>screve como “um dos mais<br />

conservadores <strong>de</strong> todos os discursos críticos” (JOHNSON,<br />

2002, p.112), martelando sem pie<strong>da</strong><strong>de</strong> quando <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

que “o jazz, em aspectos muito relevantes, tem mais em<br />

comum com as práticas improvisatórias não-musicais do<br />

que com as práticas musicais não-improvisatórias e, por<br />

isto, é melhor compreendido em relação a estas últimas”<br />

(JOHNSON, 2002, p.103).<br />

A expressão <strong>de</strong> Johnson sobre esta distinção refratária entre<br />

o literato e o auditivo-oral, entre música <strong>de</strong> “arte” e o jazz<br />

po<strong>de</strong> ser extrema, mas suas preocupações estão dissemina<strong>da</strong>s<br />

na literatura sobre jazz. Duas áreas particularmente sensíveis<br />

estão relaciona<strong>da</strong>s com o que é percebido como tentativas<br />

<strong>da</strong> indústria do conhecimento institucionalizado <strong>de</strong> invadir<br />

o jazz. Uma <strong>de</strong>las é a institucionalização <strong>da</strong> educação do<br />

jazz, percebi<strong>da</strong> como uma insinuação dos valores <strong>da</strong> cultura<br />

letra<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> seu interior, produzindo, assim, músicos <strong>de</strong><br />

jazz que pensam como os músicos <strong>de</strong> “arte” – músicos para<br />

os quais o jazz é um estilo ou uma habili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao invés <strong>de</strong> um<br />

“jeito artístico particular <strong>de</strong> viver a vi<strong>da</strong>” (BERLINER, 1994,<br />

p.486). O outro, mais obscuro, mas talvez mais insidioso por<br />

esta razão, é a tentativa <strong>de</strong> abraçar o jazz <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>s práticas<br />

<strong>de</strong> análise <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte”, colocando o jazz <strong>de</strong>ntro do<br />

cânone, <strong>de</strong>monstrando como ele também é, à sua maneira,<br />

uma música <strong>de</strong> “arte” (uma inspiração que tem, claro, servido<br />

<strong>de</strong> motivação para certos músicos <strong>de</strong> jazz, a partir <strong>da</strong> época <strong>de</strong><br />

‘Duke’ Ellington). Os argumentos a respeito <strong>de</strong> como, porque<br />

e se <strong>de</strong>vemos analisar o jazz são muito antigos; alguém po<strong>de</strong><br />

recor<strong>da</strong>r, por exemplo, Sonny Rollins jurando nunca mais ler<br />

as críticas sobre suas performances <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler a análise<br />

<strong>de</strong> Gunther Schüller do Blue 7 , no qual Schuller elogia a<br />

interpretação <strong>de</strong> Rollins, mostrando como ele sintetiza os<br />

valores <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte”: integração, coesão estrutural<br />

e organici<strong>da</strong><strong>de</strong>. É difícil articular o que está sendo <strong>de</strong>batido<br />

aqui sem levantar a distinção (permeável ou não) que está<br />

por trás <strong>de</strong> tudo: raça.<br />

Talvez mais influente do que a tradição <strong>da</strong> análise<br />

representa<strong>da</strong> por Schuller (e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>le, pela adoção<br />

<strong>de</strong> métodos teóricos como conjunto <strong>de</strong> notas por Jeff<br />

Pressing Steve ou <strong>de</strong> métodos schenkerianos por Steve<br />

Larson, por exemplo) tem sido a tradição representa<strong>da</strong><br />

9


10<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

por Ben Sidran e Samuel Floyd Jr. A abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> Sidran<br />

é explicitamente basea<strong>da</strong> no mapeamento <strong>da</strong> distinção<br />

entre as tradições letra<strong>da</strong> e auditiva-oral, e aquelas entre<br />

o branco e o negro: reverbera aqui um eco <strong>de</strong> Schutz<br />

quando ele escreve que “não apenas é possível que a<br />

tradição oral do homem oral seja ‘incompreendi<strong>da</strong>’ pelo<br />

homem letrado – uma falha na comunicação – mas que<br />

o homem literato falhe mesmo em reconhecer que uma<br />

tentativa <strong>de</strong> comunicação está, <strong>de</strong> fato, em curso” (In:<br />

WALSER, ed. 1999, p.298). Algumas sentenças <strong>de</strong>pois, ele<br />

acrescenta que “assim, um <strong>de</strong>sentendimento completo está<br />

no coração <strong>da</strong> relação entre a América negra e a América<br />

branca”. Os ecos <strong>de</strong> Schutz continuam quando Sidran<br />

<strong>de</strong>screve “a abor<strong>da</strong>gem ‘negra’ peculiar do ritmo” como<br />

“em função <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem oral maior <strong>da</strong> época” (In:<br />

WALSER, ed. 1999, p.299), o que é, em si mesmo, o produto<br />

<strong>de</strong> uma “natureza <strong>de</strong> comunhão inerente à improvisação<br />

oral” (Por causa disto, ele acrescenta: “Capturar os ritmos<br />

<strong>da</strong> música africana ou afro-americana mo<strong>de</strong>rna com a<br />

notação oci<strong>de</strong>ntal é muito parecido com tentar capturar<br />

o mar com uma re<strong>de</strong>”). Floyd <strong>de</strong>senvolve a idéia <strong>de</strong> uma<br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> inerente aos negros por meio <strong>de</strong> sua evocação<br />

do amplamente difundido conceito <strong>de</strong> “Signifyin(g)” <strong>de</strong><br />

Henry Louis Gates Jr. Segundo ele, a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> central<br />

do discurso negro é a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> diferentemente<br />

figura<strong>da</strong> que, em música, dá margem para Floyd chamar<br />

<strong>de</strong> série <strong>de</strong> “<strong>de</strong>clarações, afirmações, alegações, buscas,<br />

retoma<strong>da</strong>s, implicações, simulacros e simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

musicais”, por meio <strong>da</strong>s quais os músicos referenciam a<br />

peça que estão tocando, referenciam a performance um<br />

do outro e referenciam a tradição auditiva do jazz como<br />

um repositório <strong>de</strong> performances <strong>de</strong> outros músicos – cujo<br />

resultado, Floyd afirma, é o efeito <strong>de</strong> “narrar” dos “músicos<br />

negros quando dizem que ‘contam uma história’ quando<br />

improvisam” (In: WALSER, 1999, p.409).<br />

Isto certamente teve um impacto sobre a posição dos<br />

músicos <strong>de</strong> jazz brancos (ao quais, discute-se, ten<strong>de</strong>ram<br />

a ser marginalizados na historiografia do jazz), mas<br />

não estou sugerindo que esta consi<strong>de</strong>ração racial <strong>da</strong><br />

distinção entre o literato e o auditivo-oral seja uma<br />

colocação racista, no sentido <strong>de</strong> que é basea<strong>da</strong> em valores<br />

biológicos e não culturais. Ao mesmo tempo, isto traz à<br />

tona uma forma <strong>de</strong> essencialismo, expresso, por exemplo,<br />

por meio <strong>de</strong> conceitos abstratos como “homem oral”<br />

(o qual Sidran opõe ao “homem letrado”). O resultado é<br />

um entrincheiramento <strong>de</strong>stas categorias que se opõe<br />

– e assim, porque é mapeado nelas, um entrincheiramento<br />

<strong>da</strong> oposição entre jazz e música <strong>de</strong> “arte”. Isto cria uma<br />

tendência para o pensamento estereotipado que discuti<br />

em relação ao capítulo <strong>de</strong> Johnson. Por um lado, o jazz<br />

é visto como paradigmaticamente auditivo-oral – e, por<br />

isso, puramente auditivo-oral -, apesar <strong>da</strong> evidência <strong>de</strong><br />

seu papel ubíquo <strong>de</strong>sempenhado na prática do jazz nos<br />

textos escritos, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> notações musicais até livros<br />

sobre teoria; freqüentemente tem sido apontado que a<br />

improvisação, no jazz e em diversas outras manifestações<br />

musicais, é uma <strong>da</strong>s mais mitifica<strong>da</strong>s <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as práticas<br />

culturais (STERRITT, 2000). Por outro lado, temos uma visão<br />

<strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte” que não <strong>de</strong>ixa espaço para o papel<br />

criativo do performer, no qual o ouvido não tem priori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e no qual a afirmação esnobe do musicólogo francês sobre<br />

não ir mais a concertos (certamente uma paráfrase <strong>de</strong><br />

Brahms) é apresenta<strong>da</strong> como se fosse representativa <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> cotidiana dos amantes <strong>da</strong> música clássica.<br />

Meu argumento é mais específico. O estereótipo “letrado”<br />

po<strong>de</strong> ser aplicado à música <strong>de</strong> “arte”, concebi<strong>da</strong> como<br />

um tipo <strong>de</strong> texto literato, mas não se aplica à música<br />

– qualquer música, incluindo a música <strong>de</strong> “arte” - na<br />

performance. Meu argumento é que fazer música juntos<br />

envolve precisamente aquelas características que foram<br />

<strong>de</strong>scritas como auditivas-orais, ao invés <strong>de</strong> letra<strong>da</strong>s, como<br />

negra ao invés <strong>de</strong> branca, com pertencente ao jazz ao<br />

invés <strong>de</strong> música <strong>de</strong> “arte”. A distinção real, para resumir,<br />

está entre a música enquanto texto e a música enquanto<br />

performance.<br />

2 - Performance enquanto improvisação<br />

A improvisação, elemento geralmente consi<strong>de</strong>rado como<br />

<strong>de</strong>finidor do jazz, não é apenas altamente mitifica<strong>da</strong>, mas<br />

também fortemente marca<strong>da</strong> em termos i<strong>de</strong>ológicos. O<br />

próprio termo ocupa um espaço perigoso: em diferentes<br />

culturas, a idéia <strong>de</strong> “improvisação” tem sido vista como<br />

subjacente à idéia <strong>de</strong> “obra” ou “composição”, <strong>de</strong> tal forma<br />

que a improvisação é o “outro” <strong>da</strong> composição, um termo<br />

“marcado” e, por isso, subordinado (BLUM, 1998, p.36).<br />

Paul BERLINER (1994, p.2) observa que a improvisação<br />

é geralmente <strong>de</strong>scrita “em temos do que não é, ao invés<br />

do que é”; Leo TREITLER (1991, p.66-67) a caracteriza<br />

como “a exceção <strong>de</strong> algo normal e mais consoli<strong>da</strong>do,<br />

algo com todos os atributos que faltam à improvisação:<br />

preparação, orientação, um planejamento anterior, um<br />

progredir previsto e fluente”, acrescentando “algo que, é<br />

claro, é ‘composição’ ”. Este tipo <strong>de</strong> valorização negativa<br />

foi proclama<strong>da</strong> <strong>de</strong> muito conspicuamente em um livro<br />

<strong>de</strong> 1944, com o título ameaçador <strong>de</strong> Verdict on Índia<br />

(SUTTON 1998, p.72): “A música indiana é quase que<br />

exclusivamente improvisatória. A arte não é, nem nunca<br />

foi, e nunca po<strong>de</strong>rá ser uma questão <strong>de</strong> improvisação”. Fica<br />

difícil, então, não ver traços <strong>de</strong> um, talvez não intencional,<br />

racismo na comum visão <strong>de</strong> outrora <strong>de</strong> que os músicos <strong>de</strong><br />

jazz são “iletrados em relação à expressão verbal <strong>de</strong> sua<br />

própria arte”. É particularmente assustador que visões<br />

como essa po<strong>de</strong>m ser encontra<strong>da</strong>s em contextos on<strong>de</strong><br />

uma agen<strong>da</strong> i<strong>de</strong>ológica seria menos provável, como no<br />

mo<strong>de</strong>lo computacional para improvisação bebop <strong>de</strong> Philip<br />

Johnson-Laird (cujo propósito é verificar, <strong>da</strong> maneira<br />

mais parcimoniosa possível, a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> com que os<br />

improvisadores tocam). JOHNSON-LAIRD (1991, p.292)<br />

afirma, como se isto fosse uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nte, que<br />

“A característica psicológica essencial <strong>da</strong> improvisação musical, seja ela<br />

no jazz mo<strong>de</strong>rno, na música clássica, <strong>da</strong> Índia, <strong>da</strong> África ou <strong>de</strong> qualquer<br />

outro tipo, é que os próprios músicos não tem um acesso consciente aos<br />

processos que sublinham sua produção musical. Uma pessoa comum<br />

po<strong>de</strong> achar esta afirmativa surpreen<strong>de</strong>nte, mesmo inacreditável; um<br />

psicólogo cognitivista achará isto prosaico.”


A consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> pesquisa etnográfica <strong>de</strong> BERLINER<br />

(1994) tem falseado visões como esta <strong>da</strong> maneira<br />

mais abrangente que se possa imaginar: os músicos <strong>de</strong><br />

jazz possuem uma etno-teoria elabora<strong>da</strong> e altamente<br />

articula<strong>da</strong>, e que se relaciona diretamente e em gran<strong>de</strong><br />

extensão com temas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> análise do jazz.<br />

Por exemplo, JOHNSON-LAIRD (1991, p.292-293)<br />

diz que “Um mal entendido freqüente é dizer que [a<br />

improvisação] <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> aquisição <strong>de</strong> um repertório <strong>de</strong><br />

motivos. . . que, <strong>de</strong>pois, são alinhavados um após o outro<br />

para formar uma improvisação. . . qualquer músico <strong>de</strong><br />

jazz competente sabe que é muito mais fácil criar novas<br />

frases do que tentar apren<strong>de</strong>r um vasto repertório <strong>de</strong>les<br />

e utilizá-los em solos”. É provável que o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

Johnson-Laird reflita uma estética romântica titubeante<br />

(possivelmente, na linha <strong>da</strong> crítica <strong>de</strong> Collingwood sobre<br />

“arte falsa”) e os princípios lingüísticos chomskynianos,<br />

ao invés <strong>de</strong> discussões reais com músicos <strong>de</strong> jazz,<br />

competentes ou não, uma vez que os informantes <strong>de</strong><br />

Berliner disseram justamente o contrário: “Veteranos se<br />

referem aos padrões discretos que armazenam nos seus<br />

<strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> repertório como vocabulário, idéias, licks,<br />

truques, pet patterns, crips, clichês e, na linguagem mais<br />

funcional, coisas que você consegue fazer”, ao passo que<br />

“Para alguns músicos, este é o foco total <strong>de</strong> seus primeiros<br />

programas <strong>de</strong> estudo” (BERLINER, 1994, p.102, 101). Mas<br />

é provável que a posição <strong>de</strong> negação <strong>de</strong> Johnson-Laird,<br />

enquanto consi<strong>de</strong>ração sobre o papel <strong>de</strong> elementos<br />

aprendidos na análise do jazz, também reflita uma<br />

abor<strong>da</strong>gem excessivamente redutiva <strong>da</strong> repetição: para<br />

ele, um padrão ou é repetido literalmente ou é diferente<br />

– e, <strong>de</strong>sta forma, seria difícil imaginar como músicos <strong>de</strong><br />

jazz po<strong>de</strong>riam memorizar padrões suficientes para suprir<br />

as improvisações <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> inteira.<br />

Várias características relevantes na minha argumentação<br />

estão incorpora<strong>da</strong>s no mo<strong>de</strong>lo esquemático <strong>de</strong> improvisação<br />

<strong>de</strong> Jeff PRESSING (1988), reproduzido no Ex.1.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma representação do processo por meio<br />

do qual um improvisador vai <strong>de</strong> um evento E i para um<br />

evento E i+1 ; em que o papel central é <strong>de</strong>sempenhado<br />

pelo “Gerador <strong>de</strong> Ca<strong>de</strong>ias” (array generator) central,<br />

cuja saí<strong>da</strong> (output) <strong>de</strong>termina o evento E i+1 , e para<br />

o qual tudo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> E i é uma entra<strong>da</strong> (input). De<br />

certa maneira, o mo<strong>de</strong>lo po<strong>de</strong> ser visto como um<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s implicações <strong>de</strong> Ted GIOIA (1988,<br />

p.60), quando ele caracteriza a improvisação no jazz<br />

como uma “retrospectiva”: o improvisador reage ou<br />

respon<strong>de</strong> ao evento E i , analisando-o ou “<strong>de</strong>compondoo”<br />

em um certo número <strong>de</strong> aspectos, ca<strong>da</strong> um tendo<br />

potencial para uma possível continuação. Esta<br />

<strong>de</strong>composição é um processo em várias cama<strong>da</strong>s, no<br />

qual o evento é analisado primeiro como “Acústico”,<br />

“Musical” (o que se refere à representação cognitiva),<br />

“Movimento” (gesto) e “Outros” aspectos, e no qual<br />

ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes aspectos é analisado, por sua vez, como<br />

O(bjetos), C(aracterísticas) e P(rocessos). Dentro <strong>de</strong><br />

qualquer uma <strong>de</strong>stas dimensões, a relação entre E i e E i+1<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> similari<strong>da</strong><strong>de</strong> ou contraste. Comparado com<br />

a categorização simplista do igual ou do diferente <strong>de</strong><br />

Johnson-Laird, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Pressing tem a flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

necessária para capturar todo o espectro <strong>de</strong> técnicas<br />

transformacionais que BERLINER (1994, p.186-) chama<br />

<strong>de</strong> emparelhamento (coupling), fusão, cruzamento <strong>de</strong><br />

contorno (contour crossover), recobrimento (overlap),<br />

truncamento (truncation), substituição e um tipo <strong>de</strong><br />

permutação <strong>de</strong> aspectos <strong>de</strong> um motivo para outro: como<br />

BERLINER (1994, p.146) coloca – e isso é, em essência,<br />

exatamente o que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Pressing representa<br />

– “os músicos trazem inflexões e ornamentos <strong>de</strong> frases<br />

específicas para ornamentar outras frases”, <strong>de</strong> forma<br />

que “virtualmente, todos os aspectos po<strong>de</strong>m servir como<br />

mo<strong>de</strong>los composicionais”.<br />

Mas esta abor<strong>da</strong>gem concatenacionista (para tomar<br />

um termo emprestado <strong>de</strong> Jerrold Levinson [1997] para<br />

caracterizar a natureza seqüencial <strong>da</strong> escuta cotidiana<br />

<strong>da</strong> música) representa apenas um aspecto do mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> Pressing, cujo elemento mais conhecido é o que ele<br />

chama <strong>de</strong> “referente”. De acordo com Bruno NETTL (1998,<br />

p.15), “po<strong>de</strong>-se afirmar, como um fato crível, que os<br />

improvisadores sempre têm um ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, algo que<br />

eles utilizam para improvisar”. Charles Mingus expressou<br />

a mesma idéia mais sucintamente quando disse a Timothy<br />

Leary: “Você não consegue improvisar sobre o na<strong>da</strong>, cara...<br />

você tem <strong>de</strong> improvisar sobre alguma coisa” (KERNFELD,<br />

1995, p.11). Da mesma forma, Pressing <strong>de</strong>fine o referente<br />

como um “guia subjacente e específico <strong>de</strong> uma obra ou um<br />

esquema utilizado pelo músico para facilitar a geração do<br />

comportamento improvisado” (PRESSING, 1998, p.153),<br />

uma formulação que inclui diversos princípios comumente<br />

chamados <strong>de</strong> paráfrase, improvisação motívica e fórmulas<br />

<strong>de</strong> improvisação. Ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes princípios envolve uma<br />

referência ao mo<strong>de</strong>lo abstrato em um ponto qualquer <strong>da</strong><br />

improvisação, contrário ao movimento seqüencial <strong>de</strong> E i<br />

para E i+1 , e é por esta razão que o referente é mostrado na<br />

parte <strong>de</strong> baixo do Ex.1, como uma entra<strong>da</strong> separa<strong>da</strong> para<br />

o gerador <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia. Vale a pena notar que a improvisação<br />

também envolve referência a construtos que não se<br />

qualificam como referentes no senso estrito <strong>de</strong> Pressing<br />

(pois, para ele, a referência é específica <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> peça),<br />

mas que exercem um papel comparável no processo<br />

improvisatório: refiro-me, por exemplo, a expectativas<br />

padroniza<strong>da</strong>s em relação à mol<strong>da</strong>gem temporal dos solos<br />

e ao “repertório <strong>de</strong> composições, solos clássicos e frases<br />

discretas” (BERLINER, 1994, p.493) que representam a<br />

tradição do jazz internaliza<strong>da</strong> pelo instrumentista, assim<br />

como o estoque pessoal <strong>de</strong> “licks, piruetas, pet patterns,<br />

crips, clichês. . . e coisas que você consegue fazer”, ao<br />

qual me referi anteriormente.<br />

A característica do referente que quero enfatizar neste<br />

contexto – e ao qual retornarei mais à frente – é a<br />

flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação entre o referente e a improvisação<br />

nele basea<strong>da</strong> e, por isso, <strong>da</strong> natureza do próprio referente.<br />

PRESSING (1998, p.52) diz que, no jazz, “o referente é a<br />

forma canção, que inclui melodia e acor<strong>de</strong>s”, mas que,<br />

11


12<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

En<br />

Ei + 2<br />

Ei + 1<br />

E1 Ei - 2 Ei - 1 Ei<br />

Pretendido<br />

{<br />

{<br />

Aspectos<br />

Integrado Acústicos Musicais Movimento Outros<br />

Acústicos Musicais Movimento Outros<br />

Decomposição<br />

em Ca<strong>de</strong>ias<br />

O C P O C P O C P O C P<br />

O C P O C P O C P O C P<br />

Testador<br />

<strong>de</strong> interrupção<br />

Entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> grupos<br />

<strong>de</strong> eventos anteriores<br />

Disparador<br />

<strong>de</strong> Movimento<br />

Gerador <strong>de</strong> Ca<strong>de</strong>ias<br />

Sons <strong>de</strong> outros<br />

Performers Referente Objetivos Memória<br />

Ex.1 – Mo<strong>de</strong>lo esquemático <strong>de</strong> improvisação <strong>de</strong> Jeff PRESSING<br />

(1988, p.160, Fig.7.4; Reprodução autoriza<strong>da</strong> por Clarendon Press).


claro, é muito flexível: no bebop, a forma canção po<strong>de</strong> ser<br />

representa<strong>da</strong> somente por meio <strong>da</strong> progressão harmônica e,<br />

mesmo assim, há uma enorme flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> nas disposições<br />

dos acor<strong>de</strong>s (voicings) e substituições. Ed Sarath se refere<br />

à “<strong>de</strong>sconstrução do referente” (SARATH, 1996, p.20),<br />

trazendo efetivamente a própria idéia <strong>de</strong> “<strong>de</strong>composição”<br />

<strong>de</strong> Pressing para relacionar com o referente, mas focando<br />

particularmente em aspectos <strong>da</strong> consciência do tempo,<br />

<strong>de</strong>sta maneira provendo uma ligação que nos leva <strong>de</strong> volta<br />

ao ensaio Making music together <strong>de</strong> Schutz. Correndo o<br />

risco <strong>de</strong> uma simplificação exagera<strong>da</strong>, a idéia central<br />

<strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> Sarath é que os improvisadores não<br />

trabalham em termos <strong>de</strong> notas individuais, à maneira do<br />

mo<strong>de</strong>lo computacional <strong>de</strong> Johnson-Laird, mas em termos<br />

<strong>de</strong> grupos significativos <strong>de</strong> notas – os “motivos” cuja<br />

existência Johnson-Laird negou. Somente nos pontos <strong>de</strong><br />

junção entre estes grupos é que o instrumentista seria<br />

capaz, nas palavras <strong>de</strong> Sarath, “revigorar” ou, em outras<br />

palavras, avaliar se ouve e <strong>de</strong>termina a próxima frase <strong>da</strong><br />

improvisação apropria<strong>da</strong>mente.<br />

O Ex.2 mostra o que está em questão: os fecha-parênteses<br />

indicam pontos <strong>de</strong> revigoramento, enquanto que o colchete<br />

horizontal mostra uma frase prolonga<strong>da</strong>, não interrompi<strong>da</strong><br />

por pontos <strong>de</strong> revigoramento. Uma vez embarcado nesta<br />

frase, o instrumentista está comprometido a continuar até<br />

seu final, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do que ocorra. Em suma, é<br />

um “clichê <strong>de</strong> jazz” (SARATH, 1996, p.10) e esta situação<br />

correspon<strong>de</strong> aos relatos <strong>de</strong> David SUDNOW (1978, p.32)<br />

sobre os primeiros estágios <strong>da</strong> performance do piano no<br />

jazz (“A mão posta<strong>da</strong> em uma direção, se dirigindo para o<br />

todo, primeiro, comprometi<strong>da</strong> com seu movimento <strong>de</strong> saí<strong>da</strong><br />

e, <strong>de</strong>pois, comprometi<strong>da</strong> com sua inaltera<strong>da</strong> continuação<br />

naquela direção particular”). Em contraste, o Ex.3 mostra<br />

a mesma música, concebi<strong>da</strong> diferentemente: a longa<br />

frase é quebra<strong>da</strong> em grupos menores <strong>de</strong> notas, ca<strong>da</strong> um<br />

com um ponto <strong>de</strong> revigoramento, criando, a ca<strong>da</strong> vez, a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outras continuações, outras <strong>de</strong>cisões em<br />

tempo real, basea<strong>da</strong>s no <strong>de</strong>senrolar dos eventos (ca<strong>da</strong><br />

ponto <strong>de</strong> revigoramento <strong>de</strong> Sarath po<strong>de</strong>ria ser visto<br />

como correspon<strong>de</strong>nte a um dos “eventos” do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

Pressing). Esta ligação muito mais íntima do ouvir e do<br />

tocar correspon<strong>de</strong> ao que SUDNOW (1978, p.152) chama<br />

<strong>de</strong> “cantar com os <strong>de</strong>dos”: é esta experiência que Sarath<br />

chama <strong>de</strong> “transcendência” e que Berliner evoca quando<br />

diz que “Sob os extraordinários po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> concentração<br />

do solista, as aspectos do cantar e <strong>da</strong> visualização <strong>da</strong><br />

mente atingem uma perfeita união entre concepção e<br />

corpo. . . Nenhum tempo autônomo separa concepção <strong>de</strong><br />

expressão e o hiato entre intenção e realização <strong>de</strong>saparece”<br />

(BERLINER, 1994, p.217). Neste ponto, torna-se óbvio que<br />

a concepção <strong>de</strong> Sarath po<strong>de</strong>ria ser facilmente traduzi<strong>da</strong><br />

na linguagem do tempo-consciência husserliano, <strong>da</strong>ndo<br />

origem a algo próximo <strong>da</strong> articulação do tempo interno<br />

<strong>de</strong> Schutz. Obviamente, é <strong>de</strong> Schutz a visão <strong>de</strong> que isto se<br />

aplica igualmente à performance do jazz e à performance<br />

<strong>da</strong> música “<strong>de</strong> arte” oci<strong>de</strong>ntal. Através <strong>da</strong> mesma habili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> revigorar e respon<strong>de</strong>r aos eventos correntes, os membros<br />

<strong>de</strong> um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s mantêm o an<strong>da</strong>mento entre si,<br />

a afinação entre si, o equilíbrio sonoro entre si, em suma,<br />

fazem música juntos.<br />

Mas há algo que venho ro<strong>de</strong>ando, mas que não <strong>de</strong>vo adiar<br />

mais: as implicações, segundo as quais, a improvisação<br />

no jazz po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>da</strong> tanto como um solo ou<br />

como uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva. Talvez o mais limitante dos<br />

pressupostos <strong>de</strong> Johnson-Laird seja que a improvisação<br />

no jazz é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> puramente solística; mas não há<br />

na<strong>da</strong> <strong>de</strong>le que eu possa citar diretamente neste sentido,<br />

porque ele nem mesmo levanta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

a improvisação possa ser outra coisa. PRESSING (1988,<br />

p.154) permite, <strong>de</strong>ntro do seu esquema, a influência <strong>de</strong><br />

outros instrumentistas no início <strong>da</strong> improvisação (por<br />

isso, a entra<strong>da</strong> no gerador <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> “Sons <strong>de</strong><br />

outros instrumentistas”, vi<strong>de</strong> Fig.1 acima), mas na prática,<br />

ele não dá tanta ênfase; “Para simplificar. . .” diz ele, “. . .<br />

falamos primariamente em termos <strong>de</strong> improvisação solo no<br />

que segue, acrescentando os efeitos <strong>de</strong> outros performers<br />

diretamente quando necessário, em certos pontos”. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, suspeito que faça mais sentido ver a improvisação<br />

solo como um caso especial <strong>de</strong> improvisação coletiva do<br />

que o contrário: o elemento central em ambos os mo<strong>de</strong>los<br />

Ex.2 – Frase improvisa<strong>da</strong> com pontos <strong>de</strong> revigoração<br />

(SARATH, 1996, p.10, Fig.8; Reprodução autoriza<strong>da</strong> pelo autor)<br />

Ex.3 – Frase improvisa<strong>da</strong> com mais pontos <strong>de</strong> revigoração<br />

(SARATH, 1996, p.12, Fig.12; Reprodução autoriza<strong>da</strong> pelo autor).<br />

13


14<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

<strong>de</strong> Pressing e Sarath é a resposta do improvisador à sua<br />

própria performance, como nas palavras <strong>de</strong> Lonnie Hillyer,<br />

nas quais improvisar “é realmente como um cara tendo<br />

uma conversa consigo mesmo” (BERLINER, 1994, p.192)<br />

e uma <strong>da</strong>s experiências características <strong>da</strong> improvisação<br />

fluente no jazz é que – como SUDNOW (1978, p.xiii)<br />

coloca – “os <strong>de</strong>dos fazem a música por conta própria”<br />

1 . Isto po<strong>de</strong> soar como um tipo <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong> dupla,<br />

mas po<strong>de</strong> ser mais bem compreendido nos termos <strong>da</strong><br />

referência <strong>de</strong> Schutz (a qual citei anteriormente) sobre “a<br />

mútua relação <strong>de</strong> ajuste, a experiência do ’Nós’, que está<br />

na base <strong>de</strong> to<strong>da</strong> possível comunicação”. O “Nós” intersubjetivo<br />

<strong>de</strong> Schutz, ativado por meio <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong><br />

um “tempo interno” comum, abarca não apenas o Eu e<br />

os outros instrumentistas, mas também o público. Como<br />

BERLINER (1994, p.459) coloca, “os performers e ouvintes<br />

formam um circuito <strong>de</strong> comunicação no qual as ações<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um afetam continuamente o outro”. Nessas<br />

circunstâncias, faz sentido ver a improvisação solo como<br />

um caso especial <strong>da</strong> improvisação em grupo, na qual os<br />

“outros” estão invisíveis o que, conseqüentemente, coloca<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s maiores, e não menores, para o analista.<br />

De to<strong>da</strong> forma, tanto para os que o praticam quanto<br />

para os que o comentam, o aspecto <strong>de</strong> comunhão no<br />

ato <strong>da</strong> improvisação do jazz é essencial: para Sidran, “As<br />

vantagens do modo oral se manifestam na habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

realizar atos espontâneos, geralmente improvisados, <strong>de</strong><br />

natureza grupal” (citado por WALSER ed. 1999, p.298),<br />

enquanto que para Matthew BUTTERFIELD (2000, p.3), “a<br />

performance ao vivo do jazz é uma interação social por<br />

excelência”. MONSON (1996, p.68, 84) compara tocar um<br />

groove com “an<strong>da</strong>r pela rua” com alguém, expressando<br />

a primazia do ouvido nessa interação, quando menciona<br />

que “Dizer que um músico ’não escuta’. . . é um insulto<br />

grave”. Esta autora também enfatiza a indissolubili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre o groove e o solo: “o vocabulário melódico do<br />

solista <strong>de</strong> jazz que improvisa”, diz, “<strong>de</strong>ve sempre ser<br />

visto como emergindo em um complexo diálogo entre<br />

o solista e a seção rítmica” (MONSON, 2002, p.114). A<br />

mesma idéia é expressa sem meias-palavras por Wa<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

Leo Smith, um virtuoso <strong>de</strong>bochado segundo o qual ”a<br />

maioria dos ‘analistas <strong>de</strong> música’ que, alega<strong>da</strong>mente,<br />

transcreveram as linhas <strong>de</strong> solo dos gran<strong>de</strong>s mestres. .<br />

. não os representaram bem, porque não transcreveram<br />

o todo <strong>da</strong> linha mas, ao contrário, isolaram somente<br />

um elemento <strong>da</strong> linha. Nas avaliações <strong>de</strong>sta música, a<br />

opinião corrente tem sido que a linha do solo é a criação<br />

do ‘solista’ e os outros improvisadores envolvidos são<br />

meros acompanhadores. Essa avaliação não é correta”<br />

(citado por WALSER, 1999, p.321). É previsível que<br />

JOHNSON (2002, p.106) – por quem começo a ter<br />

compaixão por se <strong>de</strong>stacar como quem não se sustenta<br />

– se agarra a esta outra divisão refratária entre jazz e<br />

música <strong>de</strong> “arte”: “A improvisação coletiva contínua é. . .<br />

um veículo para uma forma <strong>de</strong> socialização musical que<br />

é periférica à tradição do artista-indivíduo, do ‘solista’“.<br />

Então, haveria, na tradição <strong>da</strong> “arte”, isto que é a música<br />

<strong>de</strong> câmara, e música <strong>de</strong> câmara é precisamente “um<br />

veículo para uma forma <strong>de</strong> socialização musical”. Posso<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r este ponto em termos <strong>de</strong> uma performance do<br />

Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s em Sol Maior, K.387 <strong>de</strong> Mozart (como<br />

praticamente qualquer outro quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s serviria<br />

como exemplo). Os músicos po<strong>de</strong>m muito bem tocar as<br />

notas exatamente como Mozart as escreveu. Mesmo<br />

assim, eles não as tocam exatamente como Mozart as<br />

escreveu, porque ca<strong>da</strong> nota na partitura está sujeita a uma<br />

negociação contextual <strong>de</strong> afinação, <strong>de</strong> valores precisos <strong>de</strong><br />

dinâmica, <strong>de</strong> articulação, <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> tímbrica etc. Por<br />

exemplo, os performers mantêm o an<strong>da</strong>mento não porque<br />

ca<strong>da</strong> um acomo<strong>da</strong> a sua maneira <strong>de</strong> tocar a uma pulsação<br />

externa (como acontece com músicos <strong>de</strong> estúdio com o<br />

click track), mas porque ca<strong>da</strong> um está continuamente<br />

escutando o outro, acomo<strong>da</strong>ndo seu an<strong>da</strong>mento ao dos<br />

outros, resultando em uma temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> compartilha<strong>da</strong>,<br />

comunal – o “tempo interno” compartilhado <strong>da</strong> “relação<br />

mútua <strong>de</strong> ajuste” <strong>de</strong> Schutz (o que literalmente também<br />

se aplica, claro, à esfera dos ajustes <strong>da</strong> afinação<br />

dos músicos). MONSON (1996, p.186) advoga uma<br />

compreensão <strong>da</strong> estrutura musical que tenha “como uma<br />

<strong>de</strong> suas funções centrais a construção <strong>de</strong> um contexto<br />

social” e o K.387 (ou qualquer outra obra <strong>de</strong> câmara)<br />

ilustra o que isto po<strong>de</strong> significar: a partitura <strong>de</strong> Mozart<br />

coreografa uma série <strong>de</strong> envolvimentos sociais contínuos<br />

entre os músicos, formando uma estrutura ou objetivo<br />

compartilhado (uma missão compartilha<strong>da</strong>, se preferir),<br />

mas <strong>de</strong>legando <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>s a serem realiza<strong>da</strong>s<br />

em tempo real por indivíduos em <strong>de</strong>staque e à luz <strong>da</strong>s<br />

condições locais – condições a serem improvisa<strong>da</strong>s,<br />

assim como acontece na vi<strong>da</strong> cotidiana. 2 Como tudo isto<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> interação entre os performers, é também um<br />

insulto acusar um músico erudito <strong>de</strong> não estar escutando,<br />

como se faz no jazz.<br />

De acordo com SARATH (1996, p.21),<br />

“. . .mesmo as performances <strong>de</strong> repertório. . . po<strong>de</strong>m ser<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como uma espécie <strong>de</strong> improvisação. Pois, mesmo<br />

nas obras inteiramente compostas, os performers terão algumas<br />

opções criativas quanto ao volume <strong>da</strong>s dinâmicas, inflexões,<br />

an<strong>da</strong>mento, freqüência do vibrato e outras nuanças expressivas.<br />

Se os performers intérpretes não mu<strong>da</strong>m as notas ou os ritmos<br />

<strong>de</strong>lineados pelo compositor, certamente <strong>de</strong>s-constroem padrões <strong>de</strong><br />

interpretação pessoais ao buscar espontaneamente a realização <strong>de</strong><br />

peças que eles já tocaram incontáveis vezes”<br />

O argumento inicial e provocativo <strong>de</strong> Sarath não é <strong>de</strong> forma<br />

alguma único: Carol GOULD e Kenneth KEATON (2000,<br />

p.143), por exemplo, argumentam que “tanto os performers<br />

<strong>de</strong> jazz quanto os eruditos interpretam suas peças e, ao<br />

fazerem isso, improvisam”, concluindo que “as performance<br />

<strong>de</strong> jazz e eruditas diferem mais quanto ao grau do que tipo”.<br />

De fato, po<strong>de</strong>-se reclamar que Sarath não avança muito,<br />

quando diz que os perfomers intérpretes “não mu<strong>da</strong>m as<br />

notas ou os ritmos”, pois, como já expliquei, eles, <strong>de</strong> fato,<br />

mu<strong>da</strong>m (e todo o processo <strong>de</strong> ensaio são negociações<br />

para mudá-los). Ou, talvez, fosse melhor dizer que eles<br />

transformam os valores puramente indicativos <strong>da</strong> partitura<br />

(on<strong>de</strong> um Dó# está exatamente a meio caminho entre o


Dó e o Ré, e uma semínima é exatamente duas vezes mais<br />

longa do que uma colcheia) em valores com nuanças <strong>da</strong><br />

performance. Ou, para traduzir isso em termos schutzianos,<br />

as categorias abstratas <strong>de</strong> tempo externo são apaga<strong>da</strong>s ou<br />

suplanta<strong>da</strong>s pelos valores subjetivos, pessoalmente situados,<br />

do tempo interno: a partitura é <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> para trás e passa<br />

a ser não mais que uma pré-história <strong>da</strong> performance – e<br />

este é o sentido no qual, no tempo real <strong>da</strong> performance,<br />

não há diferença, em princípio, entre uma performance <strong>de</strong><br />

um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s e as improvisações em uma jam<br />

session por músicos <strong>de</strong> jazz experts. 3 MONSON (1996, p.80)<br />

expressa um pensamento quase idêntico: “No momento<br />

<strong>da</strong> performance, a improvisação no jazz simplesmente não<br />

tem na<strong>da</strong> a ver com o texto (ou seu equivalente musical,<br />

a partitura)”. MONSON (1996, p.81), entretanto, segue para<br />

marcar uma distinção com “a música clássica oci<strong>de</strong>ntal”, na<br />

qual “geralmente não é permitido aos performers alterar. . . a<br />

notação musical”: sem <strong>de</strong>sejar negar as diferenças óbvias ou<br />

aparentes entre as tradições do jazz e clássica (voltarei a isto<br />

mais à frente), espero que o argumento <strong>de</strong> Monson não mais<br />

pareça evi<strong>de</strong>nte, plausível ou, mesmo, talvez, sustentável.<br />

Po<strong>de</strong>ria ter escolhido um caminho muito menos cheio <strong>de</strong><br />

voltas para argumentar, contra a afirmação <strong>de</strong> Monson,<br />

que “o contexto interativo e cooperativo <strong>da</strong> invenção<br />

musical [no jazz]. . . não tem paralelo nas práticas dos<br />

compositores clássicos oci<strong>de</strong>ntais”: po<strong>de</strong>ria simplesmente<br />

ter justaposto duas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> músicos que combinam<br />

a carreira acadêmica com um alto nível <strong>de</strong> realização na<br />

performance. O primeiro é a própria Monson (que toca<br />

trompete <strong>de</strong> jazz). Ela relata (MONSON, 1996, p.141-143),<br />

sobre um momento particular na gravação <strong>de</strong> Bass-ment<br />

Blues pelo Jaki Byard Quartet, que<br />

Dawson antecipa e reforça as quiálteras contínuas <strong>de</strong> Tucker nos<br />

compassos 5 e 6 ao preencher, com ritmos baseados em quiáltera,<br />

os espaços entre a caixa, os tom-toms e o bumbo. . . [Dawson]<br />

reforça a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s quiálteras <strong>de</strong> colcheias do solo na linha<br />

do baixo. . . seus acentos na caixa articulam uma quiáltera <strong>de</strong><br />

semínima contra esta continui<strong>da</strong><strong>de</strong> que avança para se completar<br />

no terceiro tempo <strong>de</strong>ste compasso. Dawson não teria como saber<br />

com certeza se Tucker continuaria com colcheias no compasso<br />

6, mas corretamente antecipou que ele continuaria. . . Enquanto<br />

que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> Dawson <strong>de</strong> tocar quiálteras no compasso 6 possa<br />

ser prevista em um sentido sintático. . . não há na<strong>da</strong> com o que<br />

pudéssemos predizer as escolhas exatas feitas por este músico<br />

individualmente. Momentos tão espontâneos e fortuitos como<br />

esses, em que se chega junto ou que se vai junto, são altamente<br />

valorizados pelos músicos.”<br />

E agora, compare a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> John POTTER (1998,<br />

p.178-182) do canto <strong>de</strong> uma passagem <strong>da</strong> Missa Victimae<br />

Paschali <strong>de</strong> Antoine Brumel:<br />

O superius e o bassus entram juntos, mas têm <strong>de</strong> negociar o<br />

an<strong>da</strong>mento, uma vez que não há ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> rítmica no segundo<br />

tempo. Isso significa, imediatamente, que os dois cantores <strong>de</strong>vem<br />

estar com um contato auditivo muito próximo entre si. O altus imita<br />

o superius no meio do próximo compasso, por isso, <strong>de</strong>ve ter estado<br />

em contato semelhante com o superius, o qual lhe passou a música.<br />

Ao final do primeiro compasso, por um breve momento, os três<br />

cantores cantam um Sol, um Lá e um Si bemol simultaneamente.<br />

É apenas uma passagem momentânea, mas que cria um momento<br />

<strong>de</strong> forte prazer que, talvez, queiram prolongar. . . Há um alto grau<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

<strong>de</strong> confiança mútua à medi<strong>da</strong> que a escala sobe e <strong>de</strong>sce. . . As vozes<br />

estabelecem padrões <strong>de</strong> tensão e relaxamento com uma agu<strong>da</strong><br />

consciência do outro, tanto procurando se acomo<strong>da</strong>r aos <strong>de</strong>sejos<br />

do outro, quanto satisfazendo os próprios”.<br />

Monson e Potter po<strong>de</strong>m estar falando sobre tradições<br />

musicais bastante distintas, mas não vejo uma diferença<br />

essencial entre os tipos <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> performance que<br />

<strong>de</strong>screvem. Parece que no tempo interno <strong>de</strong> Schutz, no<br />

tempo real <strong>da</strong> performance, as distinções entre música<br />

<strong>de</strong> “arte” e jazz, entre composição e improvisação, entre<br />

o literato e o oral – e talvez, mesmo, entre o branco e o<br />

preto – são <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s para trás.<br />

3 – O som <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

No início <strong>da</strong> seção anterior, me referi à improvisação como<br />

o outro <strong>da</strong> composição. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, esta é uma relação<br />

que transita em três mãos <strong>de</strong> direção e as tentativas <strong>de</strong><br />

mostrar as conexões (e diferenças) entre improvisação,<br />

composição e performance ain<strong>da</strong> está frouxa na literatura.<br />

O potencial para confusão é eloqüentemente ilustrado por<br />

uma passagem <strong>da</strong> introdução <strong>de</strong> Bruno NETTL (1998, p.5)<br />

à sua edição <strong>de</strong> In the Course of Performance, no qual ele<br />

cita a afirmação <strong>de</strong> Derek Bailey, <strong>de</strong> que “a improvisação<br />

se <strong>de</strong>leita com a curiosa distinção <strong>de</strong> ser, ao mesmo tempo,<br />

a mais amplamente pratica<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais e a<br />

menos reconheci<strong>da</strong> e compreendi<strong>da</strong>”, ao comentar que<br />

“A afirmação <strong>de</strong> Bailey sugere a conclusão <strong>de</strong> que um paradigma<br />

a<strong>de</strong>quado do fazer musical teria a improvisação (com um nome<br />

diferente? “Composição”? – mas, afinal <strong>de</strong> conta, é performance<br />

também) como peça central, com uma divisão <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong><br />

composição (renomea<strong>da</strong> “pré-composição”?) sob a qual<br />

colocaríamos a performance não-improvisa<strong>da</strong> do pré-composto<br />

(se pu<strong>de</strong>r existir sem alguns elementos <strong>de</strong> improvisação).”<br />

Com o risco <strong>de</strong> ser reducionista, me parece que a relação<br />

entre improvisação e composição não é realmente<br />

problemática. Há muitas características em comum: como<br />

dizem Andreas LEHMANN e Reinhard KOPIEZ (2002),<br />

“ambos os processos batem no mesmo mecanismo mental<br />

e requerem pré-requisitos similares” (pré-requisitos que,<br />

eles acrescentam, explicam porque é geralmente impossível<br />

ter a certeza se um <strong>da</strong>do artefato musical foi improvisado<br />

ou composto 4 ). David STERRITT (2000, p.165) argumenta<br />

que as práticas <strong>de</strong> improvisação tipicamente envolvem<br />

elementos significativos <strong>de</strong> “planejamento, <strong>de</strong>liberação,<br />

pré-conceituação e outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mentais que não<br />

são completamente espontâneas, individualistas nem<br />

autotélicas, no sentido sugerido por discursos i<strong>de</strong>alizados<br />

<strong>de</strong> invenção extemporânea” (em outras palavras, ele diz<br />

que é a mistificação <strong>da</strong> improvisação que a faz parecer<br />

tão diferente <strong>da</strong> composição). E, por outro lado, gran<strong>de</strong><br />

parte <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> composicional po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>scrita<br />

como envolvendo a transformação do referente, ou <strong>de</strong><br />

uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> referentes, o que é muito parecido com a<br />

maneira com que Pressing <strong>de</strong>screve improvisação. Tendo<br />

dito tudo isso, há uma diferença fun<strong>da</strong>mental, que quase<br />

não admite casos limítrofes e na qual a improvisação<br />

acontece on-line (no tempo-interno schutziano),<br />

15


16<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

enquanto que a composição acontece off-line (no<br />

tempo externo). A partir <strong>de</strong>sta diferença, outras seguem.<br />

Falando <strong>de</strong> uma maneira muito geral, alguém po<strong>de</strong>ria<br />

dizer que a improvisação é amplamente caracteriza<strong>da</strong><br />

pelo processamento seqüencial e concatenacionista,<br />

mo<strong>de</strong>lado na parte superior do Ex.1 acima, no qual a<br />

composição coloca uma ênfase maior na reestruturação<br />

temporal, facilita<strong>da</strong> por um meio representacional (a<br />

notação permite repartir ou duplicar o tempo, por assim<br />

dizer, como se dobra ou <strong>de</strong>sdobra folhas <strong>de</strong> papel).<br />

Traduzido na linguagem <strong>da</strong> teoria musical, isso significa<br />

que as composições ten<strong>de</strong>m a favorecer a organização<br />

hierárquica, enquanto que a improvisação ten<strong>de</strong> a<br />

favorecer a organização heterárquica. Essa não é uma<br />

distinção cristalina: há elementos composicionais nas<br />

improvisações e há elementos improvisatórios nas<br />

composições. Mas em termos <strong>de</strong> processo, a diferença<br />

é categórica: se você improvisa off-line então, trata-se<br />

<strong>de</strong> composição; se você compõe on-line, então, é uma<br />

improvisação.<br />

Por essa razão, me parece que o outro mais significativo<br />

<strong>da</strong> improvisação é a performance, como <strong>de</strong>finido pela<br />

tradição ocularmente centra<strong>da</strong>, que Johnson <strong>de</strong>screve. Em<br />

outras palavras, é como um processo <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> um<br />

texto autônomo. Não há uma simples distinção categórica,<br />

pois ambos os processos acontecem em tempo real e<br />

ambos envolvem certo grau <strong>de</strong> referência a mo<strong>de</strong>los préexistentes,<br />

provavelmente se esten<strong>de</strong>ndo até a intenção<br />

<strong>de</strong> realizar uma obra específica (o K.387 <strong>de</strong> Mozart, o<br />

Take the “A” train ou qualquer outra coisa). Em que ponto,<br />

então, a relação essencialmente flexível nos mo<strong>de</strong>los<br />

pré-existentes encarnados no “referente” <strong>de</strong> Pressing<br />

se transformam na essencialmente inflexível relação<br />

implícita na idéia <strong>de</strong> performance enquanto reprodução?<br />

Po<strong>de</strong>mos tentar respon<strong>de</strong>r esta questão consi<strong>de</strong>rando<br />

brevemente uma série <strong>de</strong> referentes gra<strong>da</strong>tivamente<br />

mais <strong>de</strong>talhados. Na performance <strong>de</strong> um stan<strong>da</strong>rd <strong>de</strong><br />

jazz – o mais tradicional veículo para a improvisação<br />

do jazz -, uma referência para o mo<strong>de</strong>lo tipicamente<br />

envolve uma progressão harmônica (possivelmente com<br />

muita flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> em temos <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s<br />

e voicing); como disse anteriormente, po<strong>de</strong>, muito bem,<br />

haver muito pouca referência, ou nenhuma, à melodia, e a<br />

forma é repetitiva e aberta. Por contraste, a performance<br />

<strong>de</strong> um movimento lento <strong>da</strong>s Sonatas para violino Op.<br />

5 <strong>de</strong> Corelli não é tão formalmente aberta (embora as<br />

repetições <strong>de</strong> seções não sejam sempre trata<strong>da</strong>s como<br />

obrigatórias) e a parte do baixo provavelmente será<br />

toca<strong>da</strong> como está escrita (mas não teria sido no século<br />

XVIII); a progressão harmônica se mantem, mas a melodia<br />

extemporaneamente ornamenta<strong>da</strong> po<strong>de</strong> não mais guar<strong>da</strong>r<br />

uma relação evi<strong>de</strong>nte com a notação, ao passo que as<br />

práticas <strong>de</strong> realização <strong>da</strong>s vozes no basso continuo são,<br />

<strong>de</strong> várias maneiras, semelhantes àquelas do jazz (como<br />

<strong>de</strong>scrito em PRESSING, 1998, p.58-9). 5 Meu terceiro<br />

exemplo, emprestado <strong>de</strong> Ian MACKENZIE (2000, p.175),<br />

é a performance <strong>de</strong> <strong>da</strong>nças tradicionais irlan<strong>de</strong>sas, nas<br />

quais estruturas essencialmente fixas são repeti<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

uma maneira aberta, com a improvisação acontecendo <strong>de</strong><br />

forma intensa, em um nível que po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>nominado<br />

sub-notacional. Ele explica,<br />

“A fixi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>stas formas leva os não-aficionados (como minha<br />

família e vizinhos) em insistir que to<strong>da</strong> música celta soa a mesma<br />

coisa. Ain<strong>da</strong> assim, os habilidosos instrumentistas tradicionais<br />

acrescentam muitos ornamentos e firulas como sli<strong>de</strong>s, para<strong>da</strong>s<br />

súbitas, freqüentes arpejos e quiálteras <strong>de</strong> apojaturas.”<br />

No caso do meu último exemplo, uma performance<br />

previsível do K.387 <strong>de</strong> Mozart, a improvisação po<strong>de</strong><br />

ocorrer exclusivamente no nível sub-notacional – o que<br />

não é uma razão para negar o status <strong>de</strong> improvisação. A<br />

tentativa <strong>de</strong> localizar um ponto on<strong>de</strong> a improvisação dá<br />

lugar à reprodução, na medi<strong>da</strong> em que o referente tornase<br />

mais <strong>de</strong>talhado, falha porque a idéia <strong>da</strong> obra musical<br />

completamente autônoma, que não necessita <strong>de</strong> na<strong>da</strong> a não<br />

ser reprodução, é uma quimera: como Richard COCHRANE<br />

(2000, p.140) coloca, “A prática <strong>da</strong> improvisação <strong>de</strong> fato<br />

existe em to<strong>da</strong>s as performances, exceto naquelas realiza<strong>da</strong>s<br />

por máquinas”. Em outras palavras, para respon<strong>de</strong>r a Nettl,<br />

a performance do que é pré-composto nunca existirá sem<br />

algum elemento <strong>de</strong> improvisação.<br />

Mas não seria esta uma conclusão totalizadora e infrutífera?<br />

Não seria óbvio que há uma distinção fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong><br />

proporção entre a improvisação em um stan<strong>da</strong>rd <strong>de</strong> jazz<br />

e um quarteto <strong>de</strong> Mozart? De acordo com Pressing (que<br />

expan<strong>de</strong> seu próprio conceito <strong>de</strong> referente até a notação<br />

gráfica avant gar<strong>de</strong>), as notações para improvisação<br />

<strong>de</strong>vem ser “substancialmente in<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s. Deve haver<br />

certa in<strong>de</strong>finição, ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, conflito ou incompletu<strong>de</strong><br />

no conjunto <strong>de</strong> símbolos, e <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

magnitu<strong>de</strong> maior do que a in<strong>de</strong>finição associa<strong>da</strong> a<br />

qualquer tradição <strong>da</strong> notação composicional (PRESSING,<br />

1998, p.58). Po<strong>de</strong>ríamos argumentar que, se to<strong>da</strong>s as<br />

notações musicais são, em certo grau, in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s,<br />

ambíguas, conflitantes ou incompletas em relação à<br />

performance, 6 então a “or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong>’ <strong>de</strong> Pressing é<br />

crucial. Ain<strong>da</strong> assim, parece difícil <strong>de</strong> sustentar a intuição<br />

<strong>de</strong> que os stan<strong>da</strong>rds <strong>de</strong> jazz envolvem improvisação em<br />

uma escala maior do que os quartetos <strong>de</strong> Mozart. Por<br />

um lado, a escala envolvi<strong>da</strong> não é <strong>de</strong> maneira alguma<br />

temporal: os perfis <strong>de</strong> an<strong>da</strong>mento não notados na<br />

partitura típicos <strong>da</strong>s performances <strong>de</strong> Furtwängler <strong>da</strong>s<br />

Sinfonias <strong>de</strong> Beethoven (COOK, 1996) envolvem espaços<br />

estruturais os mais amplos possíveis (e FURTWÄNGLER<br />

[1991, p.13, 36], inci<strong>de</strong>ntalmente, insistia na natureza<br />

fun<strong>da</strong>mentalmente improvisatória <strong>da</strong> performance<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, <strong>de</strong>screvendo-a como um “processo <strong>de</strong> recriação”<br />

no qual o performer <strong>de</strong>veria “re-experienciar<br />

e re-viver a música <strong>de</strong> uma maneira nova a ca<strong>da</strong> vez”).<br />

Pequeno não quer dizer sem importância: Eve HARWOOD<br />

(1998, p.123) escreve sobre os jogos <strong>de</strong> cantar <strong>de</strong> garotas<br />

afro-americanas nos quais “As improvisações po<strong>de</strong>m ser<br />

miniaturas, mas são significativas <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

em que os informantes são sensíveis e altamente críticos<br />

aos menores <strong>de</strong>svios dos textos, canções e métodos <strong>de</strong><br />

brinca<strong>de</strong>iras prescritos”.


An<strong>de</strong>rson SUTTON (1998, p.73) argumenta que “se<br />

tomarmos um exemplo absoluto. . . talvez ca<strong>da</strong><br />

instrumentista, <strong>de</strong> alguma forma, improvisa” e, assim, “faz<br />

mais sentido reservar a palavra improvisação para escolhas<br />

mais substanciais feitas no momento <strong>da</strong> performance” – e<br />

“substancial” ele explica, são as escolhas que “o performer<br />

preten<strong>de</strong> que sejam apreendi<strong>da</strong>s pelo público”. 7 É claro<br />

que, com este critério, as dimensões improvisatórias <strong>da</strong><br />

performance <strong>de</strong> música <strong>de</strong> “arte” são substanciais.<br />

De fato, seria mesmo possível argumentar que o<br />

mais alto grau <strong>de</strong> flexibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />

performance musical é atingi<strong>da</strong> precisamente naquelas<br />

tradições em que os referentes abor<strong>da</strong>m a condição <strong>de</strong><br />

textos e, principalmente, quando esses textos tornamse<br />

um repertório mais ou menos fixo ou canônico.<br />

Um dos princípios básicos <strong>da</strong>s abor<strong>da</strong>gens <strong>de</strong> ambos<br />

Johnson-Laird e Pressing é a maximização <strong>de</strong> recursos<br />

cognitivos limitados: como PRESSING (1998, p.52)<br />

coloca, “Uma vez que o referente forneça material para<br />

variação, o performer precisa alocar menos capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> processamento (atenção) para a seleção e criação <strong>de</strong><br />

materiais”. Visto por este prisma, o relativamente pequeno<br />

número <strong>de</strong> obras freqüentemente toca<strong>da</strong>s que compõe o<br />

repertório oci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> concertos funciona como o que<br />

po<strong>de</strong>ria ser chamado <strong>de</strong> “super-referentes”: esquemas<br />

super-aprendidos que permitem aos performers focar<br />

sua atenção em um grau excepcional <strong>de</strong> nuanças e <strong>de</strong><br />

interação em tempo real, naqueles elementos musicais que<br />

não são capturados pelo texto notado, mas que mantêm<br />

o público ouvindo a mesma música muitas e muitas vezes<br />

(e os mesmos músicos tocando-a muitas e muitas vezes)<br />

porque, na performance, não é a mesma música. O que é<br />

geralmente <strong>de</strong>scrito em termos negativos como “museu”<br />

– como quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> cultura musical <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal<br />

<strong>de</strong> hoje – sua interminável replicação <strong>de</strong> um minguado<br />

repertório <strong>de</strong> “obras-<strong>de</strong>-arte” - po<strong>de</strong>ria ser interpretado<br />

mais positivamente como expressando a implicação na<br />

qual o foco do interesse criativo mu<strong>da</strong> <strong>da</strong> composição para<br />

a performance. Neste caso, a intuição <strong>de</strong> que o escopo <strong>da</strong><br />

improvisação na performance <strong>da</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal é muito<br />

mais restrito do que tradições como o jazz po<strong>de</strong> refletir,<br />

acima <strong>de</strong> tudo, uma i<strong>de</strong>ntificação ocularmente centra<strong>da</strong><br />

na partitura com o que é a música. Desta forma, a<br />

improvisação que ocorre nos interstícios <strong>da</strong> notação – que<br />

é audível, mas não visível – parece significar muito menos<br />

do que uma improvisação que é suscetível à transcrição,<br />

na qual a improvisação po<strong>de</strong> se tornar visível. Se este<br />

for o caso, então existe um <strong>de</strong>scompasso entre a prática<br />

musical e o discurso ocularmente centrado por meio<br />

do que é representado. Uma maneira <strong>de</strong> pensar sobre a<br />

relação entre as dimensões reprodutivas e interpretativas<br />

(ou improvisatórias) <strong>da</strong> performance <strong>da</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal,<br />

faz referência ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Erving Goffman <strong>da</strong> “interação<br />

social face-a-face” (BUTTERFIELD, 2000, p.127). Goffman,<br />

sociólogo que trabalha com a tradição <strong>de</strong> Schutz, teoriza<br />

a interação social em termos do que chama <strong>de</strong> canais <strong>de</strong><br />

atenção: o canal <strong>da</strong> “linha principal” ou canal do “enredo”<br />

contem o conteúdo explícito <strong>da</strong> interação, enquanto<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

que os canais secundários – aos quais Goffmann se<br />

refere como canais “direcionais” e canais “<strong>de</strong>satentos”<br />

(BUTTERFIELD, 2000, p.130-131) – comportam mensagens<br />

<strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s que correm paralelamente, contextualizam,<br />

modificam, qualificam ou, talvez, contradizem o conteúdo<br />

explícito (por exemplo, por meio do contato visual,<br />

movimentos <strong>de</strong> cabeça, giros <strong>de</strong> corpo ou ruídos). Se esse<br />

esquema é aplicado à performance musical, o “enredo”<br />

correspon<strong>de</strong> ao item do repertório que está sendo tocado,<br />

enquanto que o ato <strong>da</strong> performance correspon<strong>de</strong> aos<br />

canais secundários, gerando significados que correm<br />

paralelamente, contextualizam, modificam, qualificam<br />

ou, talvez, contradizem aqueles inerentes ou associa<strong>da</strong>s<br />

à composição. Visto <strong>de</strong>ssa maneira, alguém po<strong>de</strong>ria dizer<br />

que música é um meio através do qual os normalmente<br />

silenciosos canais secundários <strong>da</strong> interação social são<br />

transformados em som, em algo diretamente perceptível,<br />

e esse é realmente o caso quando uma composição – a<br />

estória – é tão familiar que a atenção do ouvinte está<br />

menos na composição do que na maneira como é toca<strong>da</strong>.<br />

Talvez o que você ouve, quando escuta o Quarteto <strong>de</strong><br />

Cor<strong>da</strong>s K.387, seja precisamente o som <strong>da</strong> interação<br />

social, o som <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> – e talvez a habili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> música <strong>de</strong> apresentar relações interpessoais <strong>de</strong> uma<br />

maneira <strong>de</strong>spoja<strong>da</strong> e abstrata repousa não apenas<br />

no coração <strong>de</strong> sua estética, mas também no seu valor<br />

educacional, no seu status como um bem social. Isso é<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> tanto para a música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal quanto<br />

para o jazz, como coloca MONSON (1996, p.26): “sempre<br />

há personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s interagindo, não apenas notas,<br />

instrumentos ou ritmos”. Mas não estaríamos agora<br />

beirando outra conclusão totalizadora e infrutífera, uma<br />

que falha em reconhecer a diferença entre grupos <strong>de</strong><br />

performers – como quartetos <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s ou quartetos <strong>de</strong><br />

jazz – nos quais sempre há personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s interagindo<br />

e aqueles grupos mais arregimentados, nos quais os<br />

performers têm um significado não em função <strong>de</strong> sua<br />

atuação, mas em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s notas ou instrumentos<br />

ou ritmos que eles tocam? (alguns exemplos incluem<br />

orquestras sinfônicas - pelo menos <strong>da</strong> época <strong>de</strong> Beethoven<br />

para cá – e big bands). SCHUTZ (1964, p.176) reconhece<br />

o problema, ao escrever que “Qualquer músico <strong>de</strong> câmara<br />

sabe o quão perturbador po<strong>de</strong> ser um arranjo que impe<strong>de</strong><br />

os co-performers <strong>de</strong> ver um ao outro”. Algumas sentenças<br />

<strong>de</strong>pois, ele acrescenta que “Esta relação face-a-face po<strong>de</strong><br />

ser estabeleci<strong>da</strong> <strong>de</strong> imediato somente entre um pequeno<br />

número <strong>de</strong> co-performers”. Uma solução óbvia seria<br />

dividir a música em duas categorias impermeavelmente<br />

distintas, uma aural e outra letra<strong>da</strong> (o que aqui, é claro,<br />

não correspon<strong>de</strong> à divisão entre jazz e música <strong>de</strong> “arte”).<br />

Mas Schutz resiste: ele vê os maestros <strong>de</strong> orquestras<br />

atuando no “mundo externo”, mas, por meio <strong>de</strong> seus<br />

gestos, estabelecendo uma relação <strong>de</strong> tempo interno com<br />

ca<strong>da</strong> músico chefe e membro <strong>de</strong> naipe, resultando em um<br />

tipo <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações face-a-face efetivas. Com base<br />

nisso, conclui (SCHUTZ, 1964, p.177) que, ”em princípio,<br />

não há diferença entre a performance <strong>de</strong> uma orquestra<br />

mo<strong>de</strong>rna ou côro e as pessoas senta<strong>da</strong>s ao redor <strong>de</strong> uma<br />

fogueira cantando ao som <strong>de</strong> um violão” (este trecho vem<br />

17


18<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

logo antes <strong>de</strong> sua comparação entre um quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s<br />

e uma jam session). Um argumento alternativo (que não é<br />

<strong>de</strong> Schutz) po<strong>de</strong>ria ser que a experiência <strong>de</strong> fazer música<br />

em uma situação face-a-face é prototípica, e seus valores<br />

são, assim, generalizados para a performance orquestral,<br />

<strong>de</strong> forma que nós escutamos a música <strong>de</strong> grupos maiores<br />

como que encarnando a interação social, mesmo quando<br />

não é literalmente o caso: música, para resumir, simboliza<br />

uma interação social mesmo quando ela realmente não<br />

acontece. Isso, inci<strong>de</strong>ntalmente, po<strong>de</strong> se relacionar<br />

aos receios que mencionei anteriormente a respeito <strong>da</strong><br />

institucionalização do ensino do jazz: os valores do fazer<br />

a música em conjunto continuaram mesmo quando os<br />

performers <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte” do século XIX migraram<br />

dos salões para os teatros <strong>de</strong> concerto, <strong>da</strong> mesma forma<br />

que os valores fun<strong>da</strong>mentais do jazz continuarão mesmo<br />

que seu treinamento migre dos já quase extintos clubes<br />

para as universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou conservatórios.<br />

E a respeito do <strong>de</strong>sencontro entre a prática musical e o<br />

discurso ocularmente centrado ao qual me referi? Embora<br />

não haja espaço aqui para tratar disto em <strong>de</strong>talhes, a<br />

terminologia recebi<strong>da</strong> <strong>da</strong> musicologia e teoria permanece<br />

basea<strong>da</strong> na idéia <strong>da</strong> performance enquanto reprodução<br />

do texto. Para dizer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, termos como ”reprodução”<br />

e “representação” não são mais comuns como eram: os<br />

analistas e os performers analiticamente inclinados <strong>de</strong><br />

hoje falam mais sobre “projetar” ou “expressar” a estrutura<br />

musical. Mas, se isso po<strong>de</strong> significar algo muito mais<br />

sofisticado do que “reprodução” no sentido <strong>de</strong> simplesmente<br />

tocar as notas (com’e scritto, nas palavras <strong>de</strong> Toscanini),<br />

ain<strong>da</strong> se apóia na idéia <strong>de</strong> que a performance significa trazer<br />

à tona algo que já está lá na partitura, composto <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>la e apenas esperando para ser liberado pelo performer.<br />

As visões sobre como enxergar a performance <strong>de</strong> forma a<br />

refletir o papel fun<strong>da</strong>mentalmente criativo do performer<br />

terão que vir <strong>de</strong> algum lugar que não seja a tradição<br />

analítica <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal. O jazz po<strong>de</strong> muito<br />

bem ser um <strong>de</strong>les. Há duas razões para se pensar assim.<br />

Uma é que, se em termos <strong>da</strong>s práticas <strong>de</strong> performance não<br />

se po<strong>de</strong> traçar claramente uma linha entre o referente<br />

do jazz e a obra musical autônoma <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> “arte”,<br />

então o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> improvisação <strong>de</strong> Pressing torna-se<br />

disponível como um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> performance em geral,<br />

articulando, por um lado, a dimensão concatenacionista<br />

que caracteriza to<strong>da</strong>s as performances e, por outro, uma<br />

dimensão referencial, que se expan<strong>de</strong> a partir <strong>da</strong>s alusões<br />

intelectuais para algo tão próximo quanto possível <strong>da</strong><br />

reprodução. A segun<strong>da</strong> é que, como sugeri, se fazer música<br />

juntos envolve precisamente as características que têm<br />

sido <strong>de</strong>scritas como auditivas-orais ao invés <strong>de</strong> letra<strong>da</strong>s,<br />

negra ao invés <strong>de</strong> branca, pertencente ao jazz ao invés<br />

<strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte”, então a linguagem <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong><br />

para caracterizar as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s performáticas do discurso<br />

negro torna-se disponível como um vocabulário para<br />

a performance em geral: citei a referência <strong>de</strong> Floyd às<br />

“<strong>de</strong>clarações, afirmações, alegações, buscas, retoma<strong>da</strong>s,<br />

implicações, simulacros e simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicais”, mas<br />

também estou pensando em outros termos como citação,<br />

comentário, crítica, paródia, ironia ou travestismo. Em suma,<br />

sugiro que se pense a performance não como reprodução,<br />

mas como Gates <strong>de</strong>fine “Signifyin(g)”: “repetição com um<br />

sinal <strong>de</strong> diferença”. 9<br />

Em um nível mais geral, minha conclusão é que, na<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> tal como ela é vivi<strong>da</strong>, as distinções<br />

binárias – como entre o literato e o auditivo-oral, entre<br />

a improvisação e a performance – raramente são tão<br />

impermeáveis quanto parecem ser. Nesse caso, a raiz do<br />

empate técnico entre as divergências do jazz e <strong>da</strong> música<br />

<strong>de</strong> “arte”, divergências epitomiza<strong>da</strong>s, diferentemente,<br />

por ambos Monson e Johnson, po<strong>de</strong> ser uma consciência<br />

insuficientemente crítica <strong>da</strong>s diferenças entre a teoria<br />

e a prática. Recentemente, Peter MARTIN (2002,<br />

p.141) fez a surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> que “Embora<br />

a literatura sobre jazz e seus músicos tenha crescido<br />

enormemente nos últimos anos, relativamente muito<br />

pouco trata <strong>de</strong> práticas musicais <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (embora<br />

ele cite o livro <strong>de</strong> Berliner como uma exceção). Apesar<br />

<strong>de</strong> uma literatura ain<strong>da</strong> maior e, talvez, com menos<br />

exceções, penso que o mesmo po<strong>de</strong>ria ser dito sobre a<br />

tradição <strong>da</strong> “arte” <strong>de</strong> hoje, particularmente em relação<br />

às práticas <strong>de</strong> performance; o resultado é uma situação<br />

na qual é muito fácil citar as prescrições <strong>da</strong> estética<br />

formal e a observação esnobe <strong>de</strong> um musicólogo francês<br />

sobre não ir mais a concertos com se representassem<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente a música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal, enquanto<br />

uma arte <strong>da</strong> performance que é. O problema é que, como<br />

disse, porque funcionam em uma tradição ocularmente<br />

centra<strong>da</strong> – porque sua disciplina se tornou uma disciplina<br />

basea<strong>da</strong> no estudo do textos notados – é muito fácil<br />

para os musicólogos esquecerem o fato <strong>de</strong> que a música<br />

é uma arte <strong>da</strong> performance (pelo menos enquanto eles<br />

estiverem fazendo musicologia). Ao final, então, me vejo<br />

concor<strong>da</strong>ndo com Johnson, apesar <strong>de</strong> tudo, exceto pelo<br />

fato <strong>de</strong> que ele dispara sua crítica aleatoriamente ao<br />

todo <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> música <strong>de</strong> “arte” oci<strong>de</strong>ntal, enquanto<br />

que penso que o alvo <strong>de</strong>veria ser menor e mais <strong>de</strong>finido,<br />

e porque não dizer altamente refratário e apenas um: as<br />

maneiras <strong>de</strong> falar sobre música que não dizem o tanto<br />

que queremos dizer e <strong>de</strong>veríamos dizer.


COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

Referências<br />

BERLINER, Paul (1994). Thinking in Jazz: The Infinite Art of Improvisation (Chicago: University of Chicago Press).<br />

BLUM, Stephen (1998). ‘Recognizing improvisation’. In Bruno Nettl with Melin<strong>da</strong> Russell (eds.), In the Course of Performance:<br />

Studies in the World of Musical Improvisation (Chicago: University of Chicago Press), p.22-45.<br />

BUTTERFIELD, Matthew (2000). ‘Jazz analysis and the production of musical community: a situational perspective’. PhD<br />

dissn., University of Pennsylvania.<br />

COCHRANE, Richard (2000). ‘Playing by the rules: a pragmatic characterization of musical performance’. Journal of<br />

Aesthetics and Art Criticism 58, p.135-141.<br />

COOK, Nicholas (1990). Music, Imagination, and Culture (Oxford: Clarendon Press).<br />

______. (1996). ‘The conductor and the theorist: Furtwängler, Schenker, and the first movement of Beethoven’s Ninth<br />

Symphony’. In John Rink (ed.), The Practice of Performance: Studies in Musical Interpretation (Cambridge: Cambridge<br />

University Press), p.105-125<br />

______. (1999). ‘At the bor<strong>de</strong>rs of musical i<strong>de</strong>ntity: Schenker, Corelli, and the Graces’. Music Analysis 18, p.179-233<br />

______. (2003a). ‘Performance writ large: <strong>de</strong>sultory remarks on furnishing the abo<strong>de</strong> of the retired scholar’. In Alison<br />

Latham (ed.), Sing, Ariel: Essays and Thoughts for Alexan<strong>de</strong>r Goehr’s 70th Birth<strong>da</strong>y (Al<strong>de</strong>rshot: Ashgate), p.193-209.<br />

______. (2003b). ‘Writing on music or axes to grind’. Music Education Research 5, p.249-261.<br />

______. (2004). ‘In Praise of Symbolic Poverty’. In Managing as Designing , ed. Fred Collopy and Richard Boland (Stanford,<br />

CA: Stanford University Press, 2004), p.85-89.<br />

FURTWÄNGLER, Wilhelm (1991). Furtwängler on Music, ed. and trans. Ronald Taylor. Al<strong>de</strong>rshot, Hants: Scolar Press.<br />

GIOIA, Ted (1988). The Imperfect Art: Reflections on Jazz and Mo<strong>de</strong>rn Culture (New York: Oxford University Press).<br />

GOULD, Carol and Keaton, Kenneth (2000). ‘The essential role of improvisation in musical performance’. Journal of<br />

Aesthetics and Art Criticism 58, p.143-148.<br />

HARWOOD, Eve (1998). ‘Go on, girl! Improvisation in African-American girls’ singing games’. In Bruno Nettl with Melin<strong>da</strong><br />

Russell (eds.), In the Course of Performance: Studies in the World of Musical Improvisation (Chicago: University of<br />

Chicago Press), p.113-125.<br />

JOHNSON, Bruce (2002). ‘Jazz as cultural practice’. In Mervyn Cooke and David Horn (eds.), The Cambridge Companion to<br />

Jazz (Cambridge: Cambridge University Press), p.96-113.<br />

JOHNSON-LAIRD, Philip (1991). ‘Jazz improvisation: a theory at the computational level’. In Peter Howell, Robert West,<br />

and Ian Cross (eds.), Representing Musical Structure (London: Aca<strong>de</strong>mic Press), p.291-325.<br />

KERNFELD, Barry (1995). What to Listen for in Jazz (New Haven: Yale University Press).<br />

LEHMANN, Adreas and Reinhard Kopiez (2002). ‘Revisiting composition and improvisation with a historical perspective’.<br />

In ‘Proceedings of “La créativité musicale”, 10th Anniversary Conference of the European Society for the Cognitive<br />

Sciences of Music, Liege (CD-ROM publication).<br />

MACKENZIE, Ian (2000). ‘Improvisation, creativity, and formulaic language’. Journal of Aesthetics and Art Criticism 58,<br />

p.173-179.<br />

MARTIN, Peter (2002). ‘Spontaneity and organization’. In Mervyn Cooke and David Horn (eds.), The Cambridge Companion<br />

to Jazz (Cambridge: Cambridge University Press), p.133-152.<br />

MONSON, Ingrid (1996). Saying Something: Jazz Improvisation and Interaction (Chicago: Chicago University Press).<br />

______. (2002). ‘Jazz improvisation’. In Mervyn Cooke and David Horn (eds.), The Cambridge Companion to Jazz (Cambridge:<br />

Cambridge University Press), p.114-132.<br />

NETTL, Bruno (1998). ‘Introduction: an art neglected in scholarship’. In Bruno Nettl with Melin<strong>da</strong> Russell (eds.), In the<br />

Course of Performance: Studies in the World of Musical Improvisation (Chicago: University of Chicago Press), p.1-23.<br />

NOOSHIN, Lau<strong>da</strong>n (2003). ‘Improvisation as “Other”: creativity, knowledge and power—the case of Iranian classical music’.<br />

Journal of the Royal Musical Association 128, p.242-296.<br />

OWENS, Thomas (2002). ‘Analysing jazz’. In Mervyn Cooke and David Horn (eds.), The Cambridge Companion to Jazz<br />

(Cambridge: Cambridge University Press), p.286-297.<br />

POTTER, John (1998). Vocal Authority: Singing Style and I<strong>de</strong>ology (Cambridge: Cambridge University Press)<br />

PRESSING, Jeff (1988). ‘Improvisation: methods and mo<strong>de</strong>ls’. In John Slobo<strong>da</strong> (ed.), Generative Processes in Music: The<br />

Psychology of Performance, Improvisation, and Composition (Oxford: Clarendon Press), p.129-178.<br />

______. (1998). ‘Psychological constraints on improvisational expertise and communication’. In Bruno Nettl with Melin<strong>da</strong><br />

Russell (eds.), In the Course of Performance: Studies in the World of Musical Improvisation (Chicago: University of<br />

Chicago Press), p.47-67.<br />

SARATH, Ed. (1996). ‘A new look at improvisation’, Journal of Music Theory 40, p.1-38.<br />

SAWYER, R. Keith (2000). ‘Improvisation and the creative process: Dewey, Collingwood, and the aesthetics of spontaneity’.<br />

Journal of Aesthetics and Art Criticism 58, p.149-161.<br />

19


20<br />

COOK, N. Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 07-20<br />

SCHULLER, Gunther (1986). Musings: The Musical Worlds of Gunther Schuller (New York: Oxford University Press).<br />

SCHUTZ, Alfred (1964). ‘Making music together: a study in social relationship’. In: Arvid Bro<strong>de</strong>rsen (ed.), Alfred Schutz:<br />

Collected papers II: Studies in Social Theory (The Hague, Nijhoff), p.159-178.<br />

______. (1976). ‘Fragments on the phenomenology of music’ (ed. F. Kersten). In F. Joseph Smith (ed.), In Search of Musical<br />

Method (London: Gordon and Breach), p.5-71.<br />

STERRITT, David (2000). ‘Revision, prevision, and the aura of improvisatory art’. Journal of Aesthetics and Art Criticism 58,<br />

p.163-172.<br />

SUDNOW, David (1978). Ways of the Hand: The Organization of Improvised Conduct (London: Routledge & Kegan Paul)<br />

[revised edn. by David Sudnow & H. Dreyfus, Ways of the Hand: A Rewritten Account, Cambridge, Mass.: MIT Press,<br />

2001].<br />

SUTTON, R. An<strong>de</strong>rson (1998). ‘Do Javenese gamelan musicians really improvise?’ In Bruno Nettl with Melin<strong>da</strong> Russell<br />

(eds.), In the Course of Performance: Studies in the World of Musical Improvisation (Chicago: University of Chicago<br />

Press), p.69-92.<br />

TREITLER, Leo (1991). ‘Medieval improvisation’. World of Music 33/3, p.66-91.<br />

WALSER, Robert (1999), ed. Keeping Time: Readings in Jazz History (New York: Oxford University Press).<br />

Nicholas Cook, eleito Membro <strong>da</strong> British Aca<strong>de</strong>my em 2001, é Pesquisador Associado e Professor no Departamento <strong>de</strong><br />

<strong>Música</strong> <strong>da</strong> Royal Holloway - University of London, on<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>na o grupo <strong>de</strong> pesquisa CHARM (Centro <strong>de</strong> História e Análise<br />

<strong>da</strong> <strong>Música</strong> Grava<strong>da</strong>). Foi editor do Journal of the Royal Musical Association, co-editor do Cambridge History of Twentieth-<br />

Century Music (2004) e, atualmente, é Editor Associado do Musicae Scientiae. Lecionou em universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Hong Kong,<br />

Sydney e Southampton. Sua produção acadêmica é interdisciplinar, incluindo livros e artigos relacionados com estética,<br />

sociologia, psicologia e análise <strong>da</strong>s músicas erudita e popular. Entre seus livros publicados pela Oxford University Press,<br />

estão A Gui<strong>de</strong> to musical analysis (1987); Music, imagination, and culture (1990); Beethoven: Symphony No. 9 (1993);<br />

Analysis through composition (1996); Analysing musical multimedia (1998); Rethinking music (1999; co-edição com<br />

Mark Everist) e Empirical musicology: aims, methods, prospects (2004; co-edição com Eric Clarke) e Music: a very short<br />

introduction (1998), este último publicado em mais <strong>de</strong> 10 idiomas. Seu mais recente livro é The Schenker project: culture,<br />

race, and music theory in fin-<strong>de</strong>-siècle Vienna. Atualmente, escreve o livro In Real Time: Music as Performance e pesquisa<br />

análise <strong>da</strong> performance em gravações <strong>da</strong>s Mazurkas <strong>de</strong> Chopin.<br />

Fausto Borém é Professor <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong> e pesquisador do CNPq. Coor<strong>de</strong>na os grupos <strong>de</strong> pesquisa<br />

ECAPMUS (Estudos em Controle e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (“Pérolas” e “Pepinos” <strong>da</strong><br />

Performance Musical), criou e edita a revista Per Musi, implantou o Mestrado em <strong>Música</strong> na <strong>UFMG</strong>. Publica trabalhos<br />

nas áreas <strong>de</strong> performance, composição, musicologia, etnomusicologia e educação musical. Como contrabaixista, recebeu<br />

diversos prêmios no Brasil e no exterior.<br />

Notas<br />

1 Para outras referências obre este fenômeno, veja BERLINER (1994, p.218-219) e MONSON (1996, p.68) e para um exemplo trans-<br />

cultural SUTTON (1998, p.82).<br />

2 Desenvolvi a analogia implícita a partir <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong> gerenciamento em COOK (2004), no qual este parágrafo foi parcialmente<br />

retirado.<br />

3 A primeira vez que apresentei este trabalho no 2003 Leeds International Jazz Festival, membros <strong>da</strong> platéia apontaram que Schutz<br />

realmente não <strong>de</strong>ve ter se referido a uma jam session: sua comparação diria respeito a um grupo <strong>de</strong> músicos <strong>de</strong> jazz acostumados a<br />

trabalhar juntos regularmente.<br />

4 Daí a distinção freqüentemente feita na literatura entre “improvisado” e “improvisatório” (veja, por exemplo, NETTL, 1998, p.3;<br />

SUTTON, 1998, p.87).<br />

5 Uma discussão mais aprofun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a natureza <strong>da</strong>s partituras <strong>de</strong> Corelli enquanto referentes (embora sem utilizar a terminologia<br />

<strong>de</strong> Pressing), basea<strong>da</strong> em notações do século XVIII, po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> em COOK (1999).<br />

6 Discuto a questão <strong>da</strong> comletu<strong>de</strong> notacional em um contexto trans-cultural em COOK (2003ª).<br />

7 Peter MARTIN (2002, p.139-140) exprime essencialmente o mesmo argumento em uma linguagem diferente: “Em certo sentido,<br />

é claro, há um elemento improvisatório em to<strong>da</strong>s as performance musicais. . . o que está em questão, então, não é o princípio <strong>da</strong><br />

improvisação, mas em que extensão os indivíduos têm autonomia <strong>de</strong>ntro do contexto <strong>de</strong> tradições <strong>de</strong> performance específicas”.<br />

8 Aprofundo esta idéia em COOK (2003b).<br />

9 Para uma discussão, com citações, sobre este assunto, veja MONSON (1996, p.103)


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

Uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no<br />

Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5<br />

<strong>de</strong> Franz Joseph Haydn<br />

Mônica Lucas (Departamento <strong>de</strong> <strong>Música</strong> ECA-USP - Extensão Cultural;<br />

Pós-doutoran<strong>da</strong> FFLCH-USP – bolsista FAPESP, São Paulo)<br />

contato@monicalucas.mus.br<br />

Resumo: O presente artigo propõe o resgate <strong>da</strong> visão setecentista <strong>da</strong> idéia retórica <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za como tradução do<br />

germânico Witz, conceito que vem sendo freqüentemente associado à produção <strong>de</strong> F. J. Haydn, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época do<br />

compositor até os dias <strong>de</strong> hoje. são apontados e discutidos alguns procedimentos agudos que Haydn utiliza em seu<br />

Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s em Sol maior Op.33, N.5 (1781). a compreensão <strong>de</strong>sses procedimentos possibilita uma leitura mais<br />

profun<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa obra, po<strong>de</strong>ndo proporcionar também uma análise e uma interpretação mais soli<strong>da</strong>mente embasa<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

obra instrumental <strong>de</strong> Haydn.<br />

Palavras-chave: agu<strong>de</strong>za, retórica musical, classicismo, Joseph Haydn, quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s.<br />

A rhetorical view of wit in Joseph Haydn´s String Quartet Op.33, N.5<br />

Abstract: This article aims to recover the 18th-century meaning of the rhetorical concept of wit (from the German Witz),<br />

that has frequently been associated with Haydn, from his own time on to to<strong>da</strong>y. It points out and discusses some witty<br />

procedures of F. J. Haydn in his string Quartet in G Major Op.33, N.5. un<strong>de</strong>rstanding these procedures may provi<strong>de</strong> a <strong>de</strong>eper<br />

comprehension of this work and a more solid analysis and interpretation of Haydn´s overall instrumental output.<br />

Keywords: wit, musical rhetoric, classicism, Joseph Haydn, string quartet<br />

1 - A idéia retórica <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za<br />

Os Quartetos <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33 foram consi<strong>de</strong>rados um<br />

ponto alto na produção <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn, já na<br />

ocasião <strong>de</strong> sua publicação, em 1782. Neles, como em<br />

muitas outras obras <strong>de</strong> Haydn, a crítica setecentista<br />

louvava a agu<strong>de</strong>za [Witz] como uma <strong>da</strong>s melhores<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> escrita <strong>de</strong>sse autor. Referindo-se ao Op.33,<br />

carl Friedrich cramer, crítico <strong>da</strong> Magazin <strong>de</strong>r Musik<br />

[Revista <strong>da</strong> <strong>Música</strong>] (1783), afirma que “essas obras não<br />

po<strong>de</strong>m ser suficientemente elogia<strong>da</strong>s, em vista do humor<br />

mais original e <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za [Witz] mais vivaz e agradável<br />

que nelas predomina” 1 (cRaMER, 1783, p.259).<br />

ao procurar compreen<strong>de</strong>r melhor o conceito germânico Witz,<br />

percebemos que o sentido em que o termo era empregado<br />

na crítica musical setecentista não correspon<strong>de</strong> exatamente<br />

à idéia <strong>de</strong> chiste, indica<strong>da</strong> pelos léxicos mo<strong>de</strong>rnos. Para<br />

enten<strong>de</strong>r mais profun<strong>da</strong>mente o significado <strong>da</strong>s críticas<br />

como aquelas <strong>da</strong> Magazin <strong>de</strong>r Musik e também certos<br />

procedimentos técnicos <strong>de</strong> Haydn, é importante ampliar<br />

a <strong>de</strong>finição que concebe o Witz simplesmente como uma<br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong> para contar coisas cômicas, passando a i<strong>de</strong>ntificálo<br />

com a categoria retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za.<br />

PER MUSI – Revista acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

O termo Witz, empregado como verbo, relacionavase,<br />

no século XIII, ao antigo teutônico wizzan (saber),<br />

ao latim vi<strong>de</strong>re (ver) e ao grego ei<strong>de</strong>nai (conhecer).<br />

como substantivo, <strong>de</strong>riva do alemão antigo wizzi<br />

(conhecimento). Foi utilizado na Inglaterra pela<br />

primeira vez, em conexão com a retórica, no século XVI,<br />

como tradução do latim ingenium (FuHRMaNN, 1992,<br />

p.32), sentido que também se disseminou na alemanha.<br />

segundo o dicionário inglês Merriam-Webster (2002), o<br />

termo wit relaciona-se tanto ao engenho, à propensão<br />

para estabelecer conexões distantes, quanto ao termo<br />

seiscentista agu<strong>de</strong>za e ao latino sal, as próprias figuras<br />

engenhosas.<br />

Emanuele Tesauro, autor do Il Cannocchiale Aristotelico<br />

o sia I<strong>de</strong>a <strong>de</strong>ll´arguta et Ingeniosa Elocutione que serve à<br />

tutta l´Arte Oratoria, Lapi<strong>da</strong>ria, et Simbolica Esaminata<br />

co´Principij <strong>de</strong>l Divino Aristotele, [“a luneta aristotélica,<br />

ou seja, idéia <strong>da</strong> elocução agu<strong>da</strong> e engenhosa que serve<br />

à arte oratória, lapidária e simbólica, examina<strong>da</strong> à luz<br />

dos princípios do divino aristóteles”] (1654), um tratado<br />

sobre a agu<strong>de</strong>za, <strong>de</strong>screve-a como<br />

Recebido em: 04/02/2007 - aprovado em: 20/09/2007<br />

21


22<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

“uma maravilhosa força do intelecto, que compreen<strong>de</strong> dois<br />

naturais talentos: perspicui<strong>da</strong><strong>de</strong> e versatili<strong>da</strong><strong>de</strong>. a perspicui<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

penetra nas mais longínquas e diminutas circunstâncias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

objeto, como substância, matéria, forma, aci<strong>de</strong>nte, proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

causas, efeitos, fins, simpatias, o semelhante, o contrário, o<br />

igual, o superior, o inferior, as insígnias, os nomes próprios e os<br />

equívocos: coisas que jazem ocultas e enovela<strong>da</strong>s em qualquer<br />

assunto [...]. a versatili<strong>da</strong><strong>de</strong> compara rapi<strong>da</strong>mente to<strong>da</strong>s essas<br />

circunstâncias entre si ou com o assunto: junta-as ou divi<strong>de</strong>-as,<br />

aumenta-as ou as diminui, <strong>de</strong>duz uma <strong>da</strong> outra, indica uma pela<br />

outra e, com maravilhosa <strong>de</strong>streza, põe uma no lugar <strong>da</strong> outra,<br />

como os jogadores. E essa é a Metáfora, mãe <strong>da</strong>s poesias, dos<br />

símbolos e <strong>da</strong>s empresas. E é mais engenhoso aquele que po<strong>de</strong><br />

conhecer e juntar circunstâncias mais distantes, como diremos”<br />

(TEsauRO, 2000, p.82) [tradução <strong>de</strong> G.cippolini].<br />

João adolfo Hansen resume a agu<strong>de</strong>za como uma<br />

“metáfora que con<strong>de</strong>nsa dois ou mais conceitos,<br />

geralmente <strong>de</strong> modo inesperado, funcionando como uma<br />

síntese <strong>da</strong> situação em que é aplica<strong>da</strong>” (HaNsEN, 1996,<br />

p.83). O jesuíta Baltazar Gracián, cujo Agu<strong>de</strong>za y Arte <strong>de</strong><br />

Ingenio (1642) foi amplamente lido no século XVII na<br />

alemanha, <strong>de</strong>fine agu<strong>de</strong>za como “uma relação engenhosa<br />

entre dois ou mais extremos cognoscíveis, representa<strong>da</strong><br />

por um ato do entendimento” (GRacIÁN, 1987, p.54).<br />

O juízo é indispensável, tanto para produzir a agu<strong>de</strong>za<br />

quanto para apreciá-la. Para autores contra-reformados,<br />

no entanto, a agu<strong>de</strong>za vai além do juízo. Gracián comprova<br />

esta idéia, afirmando que “a agu<strong>de</strong>za não se contenta<br />

simplesmente com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> [a boa conexão silogística],<br />

como o juízo, mas aspira à formosura [a beleza eficaz,<br />

capaz <strong>de</strong> persuadir à virtu<strong>de</strong>] (GRacIÁN, 1987, p.56).”<br />

Em 1690, no seu Essay Concerning Human Un<strong>de</strong>rstanding<br />

[“Ensaio sobre o Entendimento Humano”], o filósofo<br />

John Locke enuncia uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za que<br />

será amplamente cita<strong>da</strong> nas fontes inglesas e alemãs<br />

do século XVIII. Nela, diferentemente <strong>de</strong> Tesauro e<br />

Gracián, estabelece oposição entre wit (ingenium) e<br />

judgement (iudicium):<br />

“enquanto a agu<strong>de</strong>za consiste principalmente na organização<br />

<strong>de</strong> idéias, agrupando-as com rapi<strong>de</strong>z e varie<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong> divisa<br />

qualquer semelhança e congruência, construindo imagens e visões<br />

agradáveis na fantasia, o juízo, pelo contrário, situa-se no outro<br />

extremo, esmerando-se em separar as idéias entre si <strong>de</strong>vido às<br />

suas menores diferenças” 2 (LOcKE, 1983, XI,2).<br />

Locke <strong>de</strong>screve a agu<strong>de</strong>za como uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

perceber semelhanças, análoga à versatili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição<br />

<strong>de</strong> Tesauro. Porém, a visão <strong>de</strong> Locke se diferencia <strong>da</strong>quela<br />

do autor jesuíta, pois <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a perspicui<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

como elemento essencial do engenho. a dissociação<br />

entre perspicui<strong>da</strong><strong>de</strong>, objeto do juízo, e versatili<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

própria também <strong>da</strong> fantasia, permite pensar a agu<strong>de</strong>za<br />

como uma percepção, não necessariamente sujeita à<br />

razão e, portanto, às regras do <strong>de</strong>coro (a<strong>de</strong>quação entre a<br />

representação, o público e a ocasião). a mesma idéia <strong>de</strong><br />

versatili<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong> <strong>de</strong> conteúdo lógico, também<br />

serve para fun<strong>da</strong>mentar idéias benevolentes em relação<br />

ao riso, anteriormente vituperado como sendo sinal<br />

<strong>de</strong> baixeza, mas que, com autores ingleses, passa a ser<br />

<strong>de</strong>finitivamente análogo ao conceito <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za.<br />

De acordo com stuart Tave, em seu estudo sobre a<br />

comédia no século XVIII, a agu<strong>de</strong>za, influencia<strong>da</strong> pelo<br />

i<strong>de</strong>al do humor, transformou-se em uma ferramenta<br />

capaz <strong>de</strong> produzir esta disposição ou revelá-la naquele<br />

que se expressa, e <strong>da</strong>í sua relação com as teorias do<br />

cômico e do humor que estavam sendo elabora<strong>da</strong>s na<br />

época (TaVE, 1960, p.249).<br />

a noção <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za populariza<strong>da</strong> por Locke foi retoma<strong>da</strong><br />

por muitos autores do século XVIII na alemanha, entre<br />

eles Johann Georg sulzer e Emmanuel Kant. O termo Witz<br />

foi utilizado pela primeira vez com o sentido que Locke<br />

lhe atribui no Versuch einer Critischen Dichtkunst für die<br />

Deutschen [“Ensaio sobre uma Poética crítica para os<br />

alemães”] (1730), <strong>de</strong> Johann christoph Gottsched:<br />

“Essa agu<strong>de</strong>za é a potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> do espírito <strong>de</strong> perceber<br />

facilmente a semelhança entre as coisas e estabelecer uma<br />

comparação entre elas. Ele toma como premissa a perspicácia<br />

[scharfsinnigkeit], que é uma capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma <strong>de</strong> perceber<br />

coisas em um objeto que outro, com juízo mais limitado, não<br />

teria observado.” 3 (GOTTscHED, 1972, II,1)<br />

Johann Georg sulzer, investigando a origem <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za<br />

em sua enciclopédia sobre as artes (1771-1774), afirma<br />

que ela se fun<strong>da</strong>menta na imaginação: o indivíduo agudo<br />

“é mais guiado, em suas idéias, por uma fantasia vivaz<br />

que pelo juízo, no sentido propriamente filosófico <strong>de</strong>sta<br />

palavra” 4 (suLZER, 2002, p.1274).<br />

sulzer afirma que a agu<strong>de</strong>za, por não se fun<strong>da</strong>mentar no<br />

juízo, não se relaciona, em si, com a idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro, a<br />

percepção do que é a<strong>de</strong>quado a ca<strong>da</strong> indivíduo em ca<strong>da</strong><br />

ocasião. Ela é “como as crianças, que não diferenciam<br />

moe<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> moe<strong>da</strong>s <strong>de</strong> brinquedo”. Por este<br />

motivo, ele prescreve que as agu<strong>de</strong>zas estejam sempre<br />

guia<strong>da</strong>s pela razão: é necessário perspicácia [Scharfsinn],<br />

para que elas não se tornem “falsas, extravagantes e até<br />

mesmo <strong>de</strong> mau-gosto”, e também senso <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro, para<br />

que elas não sejam “ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s à ocasião, excêntricas,<br />

exagera<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>nosas” 5 (suLZER, 2002, p.1275).<br />

a preocupação <strong>de</strong> alguns autores em estabelecer regras<br />

para a utilização <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za advém <strong>de</strong> uma opinião,<br />

compartilha<strong>da</strong> por vários autores no final do século XVIII,<br />

que a agu<strong>de</strong>za fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> apenas na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

imaginativa chama atenção para o artifício, obscurecendo<br />

a inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> matéria. charles Batteux, em seu Les<br />

Beaux Arts Réduits en un même Principe [“as Belas-artes<br />

Reduzi<strong>da</strong>s a um mesmo Princípio] (Paris, 1746), editado<br />

em alemão como Einschränkung <strong>de</strong>r schönen Künste auf<br />

einen einzigen Grundsatz (Leipzig, 1752, 1759 e 1770),<br />

atribui à agu<strong>de</strong>za a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela <strong>de</strong>cadência <strong>da</strong>s<br />

belas-artes em sua época. assim, o excesso <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za<br />

teria afastado o gosto e as belas-artes <strong>da</strong> natureza:<br />

“sobrecarregamos, a natureza, po<strong>da</strong>mo-la; <strong>de</strong>coramo-la <strong>de</strong><br />

acordo com o critério <strong>de</strong> uma falsa <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, guarnecemola<br />

com pensamentos artificiosamente torcidos entre si, com<br />

chara<strong>da</strong>s enigmáticas, com pensamentos agudos; em uma<br />

palavra, caímos na afetação [gezwungene Wesen], o outro erro<br />

exterior, contrário à inépcia [Plumpheit], mas um erro do qual


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

nos livramos mais dificilmente que <strong>da</strong> própria inépcia, pois<br />

[na afetação] os artistas se admiram <strong>de</strong> seus próprios erros.” 6<br />

(BaTTEuX, 1976, I, 89).<br />

Batteux, em sua crítica, relaciona a agu<strong>de</strong>za sempre<br />

ao vício <strong>da</strong> afetação. Ele <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o critério<br />

<strong>de</strong>coroso que conforma este procedimento ao estilo e à<br />

ocasião em que é aplicado. Para ele, a agu<strong>de</strong>za é sempre<br />

afeta<strong>da</strong>, pois obscurece a matéria. E por isto não se presta<br />

para dizer coisas sérias, <strong>de</strong>vendo ficar restrita apenas aos<br />

gêneros intrinsecamente relacionados à representação do<br />

vício, como o cômico.<br />

sulzer compartilha <strong>da</strong> opinião <strong>de</strong> Batteux, quanto ao<br />

emprego <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za. ambos acreditam que ela <strong>de</strong>ve<br />

visar apenas o <strong>de</strong>leite e não as emoções eleva<strong>da</strong>s ou o<br />

ensinamento. Mas seus motivos são diferentes. Enquanto<br />

que, para Batteux, a agu<strong>de</strong>za é sempre afeta<strong>da</strong>, para<br />

sulzer, ela é censurável nos gêneros altos ou baixos, mas<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> aos estilos que busquem o <strong>de</strong>leite.<br />

“a agu<strong>de</strong>za está <strong>de</strong>scarta<strong>da</strong> nas obras em que o juízo <strong>de</strong>ve ser<br />

movido para explicar gran<strong>de</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ou naquelas em que [o<br />

indivíduo] <strong>de</strong>ve ser movido por objetos patéticos ou graciosos.<br />

Da mesma maneira que ela é imprescindível em obras que visam<br />

apenas o <strong>de</strong>leite, nas peças teatrais alegres e na sátira, que visa<br />

o escárnio, seu uso é con<strong>de</strong>nável na tragédia e em outras obras<br />

patéticas. Quanto mais refina<strong>da</strong>, mais ofensiva ao bom gosto, e<br />

[mais ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>] nos lugares nos quais o coração só quer sentir<br />

ou o juízo apenas reconhecer e julgar.” 7 (suLZER, 2002, p.1275).<br />

a associação entre a agu<strong>de</strong>za e o cômico já é clara na obra<br />

Ge<strong>da</strong>ncken von Scherzen [“Pensamentos sobre Gracejos”]<br />

<strong>de</strong> Georg Friedrich Meier (1744), a primeira obra alemã<br />

<strong>de</strong>dica<strong>da</strong> à comédia.<br />

a primeira reflexão alemã sobre o cômico na música foi<br />

publica<strong>da</strong> em 1800, por Daniel Weber, na Allgemeine<br />

Musikalische Zeitung [“Jornal Musical Geral”]. Nela,<br />

Weber trata <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za musical e a <strong>de</strong>fine <strong>da</strong> seguinte<br />

maneira:<br />

“assim como a agu<strong>de</strong>za na poesia ou na pintura consiste em<br />

encontrar semelhanças que nem todos teriam notado, e na união<br />

<strong>de</strong> duas <strong>de</strong>ssas semelhanças, assim também a agu<strong>de</strong>za musical<br />

repousa nas semelhanças inespera<strong>da</strong>s entre dois pensamentos<br />

musicais e em sua união, vista, com espanto, como a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> e<br />

necessária”. 8 (WEBER, 1800, p.141-142)<br />

É interessante notar que, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> ampla aceitação<br />

<strong>da</strong>s idéias inglesas, Weber afirma que a relação entre<br />

os termos <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za musical <strong>de</strong>va ser não apenas<br />

“espantosa”, mas “a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> e necessária”, ou seja,<br />

logicamente fun<strong>da</strong><strong>da</strong> e não oposta à razão, embora<br />

geradora <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite cortês e associa<strong>da</strong> ao veio cômico 9<br />

(WEBER, 1800, p.139). utilizando-se do lugar-comum<br />

que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII, relaciona Haydn às idéias <strong>de</strong><br />

comici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> humor e <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za, Weber apresenta o<br />

autor austríaco como o principal compositor a se servir do<br />

estilo musical cômico.<br />

apesar <strong>da</strong> vinculação com o cômico e <strong>da</strong> proibição <strong>de</strong><br />

seu uso nos gêneros altos, veremos que Haydn utiliza a<br />

agu<strong>de</strong>za como recurso retórico <strong>de</strong> <strong>de</strong>leite mesmo quando<br />

escreve obras eleva<strong>da</strong>s, como a sonata <strong>de</strong> câmara.<br />

assim, levando em consi<strong>de</strong>ração essa moldura teórica,<br />

o estudo <strong>de</strong> alguns procedimentos agudos no Quarteto<br />

<strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5, a seguir, po<strong>de</strong>rá trazer informações<br />

que auxiliem no resgate <strong>de</strong> uma visão setecentista<br />

sobre a música <strong>de</strong> Haydn e contribuam para a análise e<br />

interpretação <strong>de</strong> obras haydnianas.<br />

2 – Os Quartetos <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33<br />

O fato <strong>de</strong> o quarteto <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s ser vinculado à sonata<br />

<strong>de</strong> câmara, ou seja, um gênero <strong>de</strong>stinado a conhecedores<br />

que o apreciavam em companhia seleta e em ocasiões<br />

priva<strong>da</strong>s, aju<strong>da</strong> a compreen<strong>de</strong>r a opção <strong>de</strong> Haydn por<br />

este gênero engenhoso, quando requisitado para compor<br />

música para a visita do Grão-Duque <strong>da</strong> Rússia (futuro<br />

czar Paul) e <strong>de</strong> sua esposa Maria Feodorowna, Princesa<br />

<strong>de</strong> Württemberg, a Viena. a estréia dos Quartetos <strong>de</strong><br />

Cor<strong>da</strong>s Op.33 se <strong>de</strong>u em 25 ou 26 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1781.<br />

No auditório encontravam-se, além do Grão-Duque e <strong>da</strong><br />

Grã-Duquesa (que viajavam como con<strong>de</strong> e con<strong>de</strong>ssa von<br />

Nor<strong>de</strong>n), o Duque Friedrich Eugen <strong>de</strong> Württemberg e sua<br />

esposa (viajando como con<strong>de</strong> e con<strong>de</strong>ssa von Gröningen), o<br />

Príncipe Ferdinand e a Princesa Elizabeth <strong>de</strong> Württemberg,<br />

irmã <strong>da</strong> Grã-Duquesa e noiva do arquiduque Francisco<br />

(futuro Imperador Francisco II). O auditório contava,<br />

ain<strong>da</strong>, com a presença do poeta Maximilian Klinger, autor<br />

<strong>da</strong> obra Sturm und Drang [“Tempesta<strong>de</strong> e Ímpeto”], que<br />

<strong>de</strong>u nome ao movimento literário e musical, do qual<br />

Haydn participou. a platéia era, portanto, seleta e muito<br />

discreta. Os executantes, igualmente distintos, foram o<br />

Konzertmeister <strong>da</strong> orquestra do príncipe Esterházy, Luigi<br />

Tomasini, o violinista e compositor vienense (Franz)<br />

aspelmeyer, o violista (Thad<strong>da</strong>eus ou Pancratius) Huber<br />

e o violoncelista (Joseph Franz) Weigl, para quem Haydn<br />

já <strong>de</strong>dicara dois virtuosísticos concertos. 10 Este eram os<br />

melhores músicos <strong>de</strong> que Haydn dispunha a seu serviço<br />

na orquestra <strong>da</strong> corte Esterházy.<br />

alguns meses após, em março <strong>de</strong> 1782, os seis quartetos<br />

foram publicados pela firma vienense artaria, como Opus<br />

33. a obra foi edita<strong>da</strong>, a seguir, em amster<strong>da</strong>m, por<br />

Hummel (1805), como Gli Scherzi, em Paris, por sieber<br />

(1803), como “Quartetos Russos”, e por Pleyel (1810), na<br />

primeira coletânea dos quartetos completos <strong>de</strong> Haydn.<br />

Essas informações dão uma indicação do público que<br />

Haydn tinha em mente com a composição <strong>de</strong>ssas obras:<br />

em primeiro lugar, o círculo seleto e refinado <strong>da</strong> corte<br />

Esterházy, e, em segundo lugar, com a edição, um público<br />

mais amplo, constituído majoritariamente por amadores.<br />

O sucesso <strong>de</strong>ssas obras em âmbitos sociais tão distintos<br />

dá uma idéia <strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> com que Haydn logrou uma<br />

síntese entre um estilo agudo, certamente <strong>de</strong>stinado a<br />

seus ouvintes mais requintados, e uma escrita saborosa,<br />

capaz <strong>de</strong> seduzir o público amador. Esse equilíbrio não<br />

passou <strong>de</strong>spercebido pela crítica <strong>da</strong> época. Johann<br />

Friedrich Reichardt, autor <strong>de</strong> uma resenha referente à<br />

primeira edição do Op.33 no Musikalisches Kunstmagazin<br />

[“Revista artística Musical”] (1782) refere-se a Haydn<br />

23


24<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

<strong>da</strong> seguinte maneira: “se quiséssemos <strong>de</strong>finir o caráter<br />

<strong>da</strong>s composições haydnianas com duas palavras, seriam<br />

elas populari<strong>da</strong><strong>de</strong> artificiosa ou artificiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> popular<br />

(compreensível, penetrante)” 11 (REIcHaRDT, 1782, p.205).<br />

a mesma idéia é veicula<strong>da</strong> por Ernst Ludwig Gerber, em<br />

1810: “[Haydn sempre soube] como oferecer o astutamente<br />

inaudito sob a pintura do já conhecido e [por isso] tanto<br />

a beleza juvenil quanto o contrapontista cujos cabelos<br />

embranqueceram sobre as partituras ouvem suas obras<br />

com prazer” 12 (GERBER, 1810, p.610).<br />

com isso, é possível perceber que a agu<strong>de</strong>za em Haydn<br />

constitui uma categoria <strong>de</strong> procedimentos engenhosos,<br />

<strong>de</strong>stinados ao <strong>de</strong>leite do público conhecedor <strong>de</strong> música,<br />

mas que passam ao largo do público diletante. Esse aspecto<br />

permite pressupor diferentes cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong><br />

obra haydniana. O nível mais profundo <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za parece<br />

também ser <strong>de</strong>sconhecido <strong>de</strong> muitos ouvintes mo<strong>de</strong>rnos,<br />

que enxergam em Haydn apenas o gênio didático, criador<br />

do estilo que só floresceu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente com Mozart<br />

e Beethoven. Procuraremos, a seguir, <strong>de</strong>sfazer essa visão<br />

superficial, apontando e discutindo procedimentos agudos<br />

no Quarteto em Sol Maior Op.33, N.5, <strong>de</strong> Joseph Haydn.<br />

3- Procedimentos agudos no Quarteto <strong>de</strong><br />

Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5<br />

a or<strong>de</strong>m tradicional dos quartetos Op.33, adota<strong>da</strong> por<br />

anthony von Hoboken, no catálogo obras <strong>de</strong> Haydn,<br />

(Hob. III: 37-42) não correspon<strong>de</strong> à or<strong>de</strong>m dos mesmos<br />

na edição princeps, artaria, ou em outras edições<br />

do século XVIII, como as <strong>de</strong> sieber e Pleyel, ambas<br />

<strong>de</strong> Paris, e Hummel, <strong>de</strong> Berlim e amster<strong>da</strong>m, que<br />

apresentam or<strong>de</strong>ns varia<strong>da</strong>s. Hoboken segue a or<strong>de</strong>m<br />

proposta por Pleyel. Não se dispõe do autógrafo <strong>da</strong><br />

obra, e, dos manuscritos enviados aos mecenas a quem<br />

Haydn se dirigiu por escrito em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1781,<br />

sobrevive apenas um, incompleto, na abadia <strong>de</strong> Melk 13 .<br />

Tudo indica que a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> edição princeps, a mesma<br />

do manuscrito, é aquela pensa<strong>da</strong> originalmente por<br />

Haydn. Dessa forma, o Quarteto em Sol Maior Op.33,<br />

N.5 seria, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o primeiro <strong>da</strong> série, e algumas<br />

evidências musicais, que veremos a seguir, parecem<br />

confirmar essa teoria.<br />

Os primeiros movimentos dos quartetos Op.33 são<br />

compostos na forma que Johann christoph Koch <strong>de</strong>screve<br />

em seu método <strong>de</strong> composição como o “allegro inicial”<br />

<strong>da</strong> sinfonia (KOcH, 1969, VI,4,I,5,100). Esta forma, muito<br />

utiliza<strong>da</strong> como movimento <strong>de</strong> abertura em peças do gênero<br />

sonata, ganhou uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria no século XIX,<br />

sendo chama<strong>da</strong> pela primeira vez <strong>de</strong> forma-sonata, como<br />

é conheci<strong>da</strong> hoje, no tratado <strong>de</strong> composição <strong>de</strong> Bernhardt<br />

Marx. O primeiro autor a <strong>de</strong>screver esta estrutura, no<br />

entanto, foi Koch (BONDs, 1991, p.3). Ela consiste, em<br />

essência, numa forma ternária amplia<strong>da</strong> a – B - a. No<br />

esquema mais simples, a parte a estabelece a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inicial, modulando a seguir para a dominante; a parte<br />

B contém um <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> a, com modulações;<br />

o retorno <strong>de</strong> a restabelece firmemente a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

principal. como observa cassiano Barros (BaRROs, 2006),<br />

essa estrutura guar<strong>da</strong> semelhança com a organização<br />

retórica do discurso musical, que, em essência, também<br />

é ternária, apresentando uma proposição (propositio),<br />

refutação (confutatio) e confirmação <strong>da</strong> idéia inicial<br />

(confirmatio). Essa estrutura básica po<strong>de</strong> ser precedi<strong>da</strong><br />

por uma introdução (exordium) e sucedi<strong>da</strong> um epílogo<br />

(peroratio); a proposição inicial po<strong>de</strong> ser subdividi<strong>da</strong> em<br />

uma proposição propriamente dita (propositio) e uma<br />

narração (narratio).<br />

Para Koch, a introdução e a co<strong>da</strong> do allegro inicial<br />

não são partes estruturais essenciais do discurso. No<br />

entanto, nos movimentos mais longos, elas são muito<br />

freqüentes, servindo para especificar e reforçar o caráter<br />

do movimento. Essas partes têm função eminentemente<br />

patética e seu po<strong>de</strong>r resi<strong>de</strong> na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mover o<br />

ouvinte. Por isto, prescreve-se que o estilo <strong>da</strong> introdução<br />

e <strong>da</strong> co<strong>da</strong> seja agudo.<br />

Na retórica clássica, <strong>de</strong>vota-se muita atenção à<br />

introdução <strong>da</strong> oração, o exordium. aristóteles afirma<br />

que “a função mais necessária e própria do exordium<br />

é mostrar a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> por cuja causa se diz o discurso”<br />

(aRIsTÓTELEs, 1991, III, 1415a5) e Quintiliano diz que<br />

ele <strong>de</strong>ve captar a benevolência do público, para que<br />

este fique atento e aberto à mensagem que se seguirá<br />

(QuINTILIaNO, 1985, v.1). É principalmente nestes autores<br />

que Johann Mattheson se fun<strong>da</strong>menta, quando <strong>de</strong>screve<br />

o exordium do discurso musical. Em seu Vollkommene<br />

Capellmeister [“O Mestre <strong>de</strong> capela completo”] (1739),<br />

ele ecoa seus antecessores clássicos, ao afirmar que “o<br />

exordium é a introdução e início <strong>de</strong> uma melodia, em<br />

que ao mesmo tempo <strong>de</strong>vem ser mostrados o sentido<br />

e a intenção <strong>da</strong> peça, para que os ouvintes sejam<br />

preparados e que a sua atenção seja estimula<strong>da</strong>.” Para<br />

Mattheson, o exordium serve tanto para adornar o início<br />

do movimento quanto para realçar a confirmatio e o fim<br />

do movimento” (MaTTHEsON, 1954, I, 14,7). No exemplo<br />

que ele fornece, uma ária <strong>de</strong> Bene<strong>de</strong>tto Marcello, estas<br />

passagens são trechos instrumentais que antecipam o<br />

tema vocal principal ou finalizam o movimento. Nos<br />

allegros iniciais <strong>de</strong> Koch, o exordium antecipa a parte a<br />

e seu retorno, cumprindo ain<strong>da</strong> uma função importante<br />

na conclusão do movimento.<br />

Haydn, ciente <strong>da</strong> importância do início do discurso musical,<br />

tratou os exordia <strong>de</strong> seus quartetos <strong>de</strong> forma muito<br />

engenhosa. a introdução do Quarteto em Sol Maior (Ex.1)<br />

é indiscutivelmente surpreen<strong>de</strong>nte, por ser totalmente<br />

contrária à expectativa que gera no ouvinte conhecedor<br />

<strong>da</strong>s regras do discurso musical setecentista. Ela consiste<br />

simplesmente na menor uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do discurso tonal: uma<br />

cadência perfeita dominante-tônica, em pianíssimo.<br />

O único preenchimento <strong>de</strong>sta estrutura mínima são as<br />

semicolcheias que ornamentam a primeira voz.<br />

Esse exordium contradiz to<strong>da</strong>s as expectativas, já que neste<br />

procedimento lacônico não há tempo hábil para captar a


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

benevolência do público. além disso, a simples afirmação<br />

<strong>da</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sol maior ain<strong>da</strong> não evi<strong>de</strong>ncia “o sentido<br />

e a intenção” do discurso. No entanto, essa introdução,<br />

embora seja a mais curta <strong>de</strong> todo o Op.33, resume em<br />

si a própria essência do discurso tonal, con<strong>de</strong>nsandoa<br />

na fórmula mais elementar <strong>da</strong> linguagem musical do<br />

século XVIII: a cadência V-I. a cadência perfeita também<br />

representa o fim <strong>da</strong> música, a chega<strong>da</strong> a um ponto <strong>de</strong><br />

repouso. a <strong>de</strong>sproporção entre a expectativa eloqüente e<br />

a prática lacônica, as idéias <strong>de</strong> início e fim e o paradoxo<br />

implícito na própria idéia <strong>da</strong> cadência, que reflete tanto a<br />

menor uni<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> essencial música tonal,<br />

bastam para surpreen<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>leitar o ouvinte agudo.<br />

a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> implícita no início do movimento é<br />

explora<strong>da</strong> na repetição do exordium no c.183-184 (Ex.2),<br />

que tem seu efeito cômico reforçado pela ponte que o<br />

antece<strong>de</strong>. Nessa passagem, Haydn explora a ambivalência<br />

início/fim do motivo inicial <strong>de</strong> maneira muito engenhosa.<br />

após o término <strong>da</strong> confutatio, em Mi menor (c.170),<br />

há uma ponte (c.170-182) que retorna para sol maior,<br />

a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal do movimento. Nela, a textura<br />

se dilui, constituindo um jogo <strong>de</strong> perguntas e respostas<br />

entre violinos e viola/violoncelo em metro iâmbico ( ).<br />

˘ ˉ<br />

Nesta passagem, Haydn põe em dúvi<strong>da</strong> a direção tonal<br />

<strong>da</strong> peça, num movimento harmonicamente <strong>de</strong>nso, que é<br />

incompatível com o discurso simples e direto <strong>de</strong>ste vivace.<br />

após a resolução em mi menor, a harmonia caminha para<br />

a dominante secundária Fá# menor com sétima (ii7), e,<br />

em segui<strong>da</strong>, para sol maior com sétima (III7), que aponta<br />

para uma modulação, cuja direção, no entanto, não é<br />

bem <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>: a proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o Fá# anterior sugere<br />

uma sexta italiana (que caminharia para a dominante<br />

Fá# maior, resolvendo em si menor); outra possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

plausível seria a resolução direta em Dó maior. No entanto,<br />

Haydn mantém a solução em aberto. Ele aumenta o<br />

suspense com uma pausa no compasso seguinte. a seguir,<br />

numa passagem cromática com acor<strong>de</strong>s diminutos, ele<br />

Ex.1 - Exordium no Primeiro Movimento (vivace assai) do Op.33, N.5 <strong>de</strong> J. F. Haydn<br />

Ex.2 – Ponte para a confirmatio no Primeiro Movimento (vivace assai) do Op.33, N.5 <strong>de</strong> J. F. Haydn<br />

25


26<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

caminha por Lá menor e interrompe a seção dissonante no<br />

acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ré maior com sétima (dominante <strong>de</strong> sol maior,<br />

a tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal <strong>da</strong> peça), no c.180. O suspense<br />

gerado por este acor<strong>de</strong> é reforçado pela pausa nos dois<br />

compassos seguintes (c.181-182). a maneira como Haydn<br />

dá continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao discurso é ao mesmo tempo original e<br />

óbvia - ele reapresenta a fórmula V-I do exordium (c.183-<br />

184), que funciona simultaneamente como resolução<br />

<strong>da</strong> harmonia do c.180 e como início <strong>da</strong> confirmatio. O<br />

ouvinte se compraz, sem saber <strong>de</strong>finir com exatidão se a<br />

nova parte do discurso se inicia no exordium (c.183) ou<br />

no estabelecimento <strong>da</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal.<br />

a co<strong>da</strong> <strong>de</strong>ste movimento (c.290-305), que se inicia<br />

após uma cadência em sol maior (Ex.3), contém mais<br />

quatro cadências consecutivas na mesma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

as primeiras duas fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s na repetição do motivo do<br />

exordium na viola e no baixo, em textura polifônica,<br />

e as duas finais com a repetição do motivo inicial<br />

reduzido a sua essência, em pianissimo, primeiramente<br />

harmonizado, e, por fim, em uníssono, com a harmonia<br />

subentendi<strong>da</strong>. a ênfase exagera<strong>da</strong> no fim contrasta<br />

com o laconismo do início, e põe em dúvi<strong>da</strong> a função<br />

<strong>de</strong> encerramento implícita no movimento dominante<br />

– tônica. Haydn <strong>de</strong>leita, pondo ante os olhos do ouvinte<br />

a própria essência do discurso tonal.<br />

Os quartetos Op.33 <strong>de</strong>stacam-se por serem os primeiros<br />

em que os minuetos, tradicionalmente incluídos nas<br />

obras do gênero sonata no final do século XVIII, recebem<br />

uma nova <strong>de</strong>nominação, inventa<strong>da</strong> por Haydn: scherzo.<br />

Essa peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> levou Hummel a batizá-los como Gli<br />

Scherzi, na edição que preparou <strong>de</strong>ssas obras (amster<strong>da</strong>m,<br />

1790) apesar <strong>da</strong> <strong>de</strong>nominação distinta, conservamse<br />

nesses movimentos as características próprias do<br />

minueto, e essa mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> título tem sido objeto <strong>de</strong><br />

muitos <strong>de</strong>bates por estudiosos <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Haydn. se<br />

compreendi<strong>da</strong> no viés retórico <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za, a alteração<br />

po<strong>de</strong> ser percebi<strong>da</strong> como uma reação humorística às<br />

críticas que encontravam nos minuetos <strong>de</strong> Haydn uma<br />

falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro entre a prescrição formal <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça e<br />

procedimentos adotados pelo autor austríaco.<br />

O scherzo do quarteto em sol maior (Ex.4) contém os<br />

<strong>de</strong>svios que mais saltam aos olhos no conjunto dos scherzi<br />

do Op.33. Nele, Haydn corrompe a métrica ternária do<br />

minueto e a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> estrutura formal, como<br />

veremos a seguir.<br />

Na primeira frase, a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s três vozes mais<br />

graves se opõe ao <strong>de</strong>senho do primeiro violino. Nele,<br />

Haydn reagrupa os doze pulsos <strong>de</strong> semínima <strong>da</strong> primeira<br />

voz, produzindo, ao invés <strong>de</strong> quatro compassos ternários,<br />

seis binários. a alteração métrica do primeiro violino é<br />

imposta pelo pé dátilo ( ). a mistura gera<strong>da</strong> pelo uso<br />

ˉ ˘˘<br />

<strong>de</strong> duas métricas diferentes <strong>de</strong>sorienta o ouvinte, que<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> reconhecer a <strong>da</strong>nça (e a fórmula <strong>de</strong> compasso)<br />

neste trecho. Esta confusão é ain<strong>da</strong> mais impactante por<br />

ocorrer logo no início do movimento, e cria um suspense<br />

que só se resolve no fim <strong>da</strong> frase (c.4), com o sforzando<br />

que “corrige” a <strong>de</strong>fasagem entre os instrumentos. apesar<br />

<strong>da</strong> confusão métrica, a frase é regular, em termos <strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> compassos.<br />

a segun<strong>da</strong> frase <strong>da</strong> parte a aparenta ser mais homogênea<br />

– ao menos em termos <strong>da</strong> métrica, que é ternária. Porém,<br />

Ex.3 – Co<strong>da</strong> do Primeiro Movimento do Op.33, N.5 <strong>de</strong> J. F. Haydn


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

Ex.4 – corrupção <strong>da</strong> métrica ternária do Minueto no Terceiro Movimento (Scherzo) do Op.33, N.5 <strong>de</strong> J. F. Haydn<br />

há uma interrupção justamente na cadência final, entre<br />

a dominante e a tônica, no encerramento <strong>de</strong> uma frase<br />

que prometia ser regular (<strong>de</strong> quatro compassos). Esta<br />

pausa é surpreen<strong>de</strong>nte, e Haydn <strong>de</strong>leita o ouvinte ain<strong>da</strong><br />

mais quando insere, após ela, ao invés <strong>da</strong> conclusão<br />

aguar<strong>da</strong><strong>da</strong>, uma repetição do acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> dominante, e só<br />

então o acor<strong>de</strong> esperado <strong>de</strong> tônica. assim, a primeira frase<br />

<strong>da</strong> parte a é regular em termos <strong>de</strong> número <strong>de</strong> compassos<br />

e irregular em termos <strong>de</strong> métrica e a segun<strong>da</strong> é o oposto<br />

– irregular em termos <strong>de</strong> número <strong>de</strong> compassos (seis)<br />

e regular em termos <strong>de</strong> métrica. Nenhuma <strong>da</strong>s duas<br />

se conforma às prescrições do minueto próprio para a<br />

<strong>da</strong>nça, que exige um número simétrico <strong>de</strong> compassos e<br />

acentuação regular.<br />

Na segun<strong>da</strong> parte do scherzo, Haydn brinca com a espera<strong>da</strong><br />

volta à parte a, que parece, à primeira vista, ocorrer no<br />

c.17. No entanto, este retorno está na tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> “erra<strong>da</strong>”<br />

27


28<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

<strong>de</strong> Ré maior, e, assim, é <strong>de</strong>scartado no c.19. Em segui<strong>da</strong>,<br />

Haydn reagrupa os pulsos <strong>de</strong> semínima, gerando <strong>de</strong>sta<br />

vez (c.21-23) um gran<strong>de</strong> compasso 4/2. Neste trecho,<br />

Haydn dissocia novamente o primeiro violino <strong>da</strong>s outras<br />

vozes, que também executam o compasso 4/2, porém<br />

<strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>s do primeiro violino em uma semínima. Este<br />

<strong>de</strong>slocamento é notado, na partitura, com sforzandi. a<br />

confusão métrica cria<strong>da</strong> chama novamente a atenção do<br />

ouvinte, mas Haydn o acalma em segui<strong>da</strong>: ele retoma o<br />

ritmo ternário e resolve a frase em Ré maior (c.26). Em<br />

segui<strong>da</strong>, Haydn reutiliza o metro binário com o dátilo<br />

inicial (c.27-28), e, no c.29, já <strong>de</strong> volta à métrica ternária,<br />

prepara o retorno à tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal, sol maior. Neste<br />

trecho, Haydn passa pelo acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> sexta alemã, (IIo9,<br />

sem fun<strong>da</strong>mental) sobre um pe<strong>da</strong>l <strong>de</strong> Ré – um acor<strong>de</strong><br />

excessivamente engenhoso para uma <strong>da</strong>nça – e resolve este<br />

acor<strong>de</strong> em Ré maior, dominante <strong>de</strong> sol maior. O retorno à<br />

tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> principal, no entanto, ocorre antes do <strong>de</strong>vido,<br />

em termos estruturais. ao invés <strong>de</strong> coincidir com o retorno<br />

<strong>da</strong> parte a do minueto (levare do c.33), reforçando-o, ele<br />

se confirma dois tempos antes, na cabeça do c.32. Esta<br />

falta <strong>de</strong> sincronia entre forma e harmonia enfraquece a<br />

sensação <strong>de</strong> retorno. assim, no c.32, é como se o levare <strong>de</strong><br />

a, esticado por todo o compasso, procurasse compensar<br />

esta falta <strong>de</strong> coincidência, criando uma tensão rítmica<br />

para procurar recobrar o interesse pelo retorno <strong>de</strong> a. Em<br />

segui<strong>da</strong>, a reprise acontece exatamente como na primeira<br />

parte, exceto pela dinâmica pianisimo no fim, que atenua<br />

ain<strong>da</strong> mais este fim já muito pouco convencional.<br />

Este scherzo atenta contra algumas <strong>da</strong>s prescrições<br />

fun<strong>da</strong>mentais para o minueto, como a métrica<br />

ternária, a clareza estrutural, com sincronia entre<br />

forma e harmonia. É interessante notar que Haydn<br />

perverte estas regras, sem, no entanto, <strong>de</strong>scaracterizar<br />

a impressão final, que continua sendo <strong>de</strong> minueto.<br />

Nesta peça, a <strong>de</strong>sproporção entre os procedimentos<br />

<strong>de</strong> Haydn e a estrutura prescrita pela regra gera uma<br />

incongruência agu<strong>da</strong> e risível.<br />

a preocupação com o fim do discurso não é um fato<br />

isolado em Haydn: os tratados retóricos mais antigos<br />

já prescrevem alguns cui<strong>da</strong>dos com encerramento <strong>da</strong><br />

oração. aristóteles, por exemplo, afirma que “o epílogo<br />

consiste em quatro pontos: inclinar o auditório a nosso<br />

favor e contra o adversário; amplificar e minimizar;<br />

excitar as paixões do ouvinte e fazer com que recor<strong>de</strong>”<br />

(aRIsTÓTELEs, 1991, 1419b10). Para Quintiliano, a<br />

peroratio é uma recapitulação final que <strong>de</strong>ve resumir, <strong>de</strong><br />

forma breve, os fatos narrados. Eles <strong>de</strong>vem ser tratados<br />

com peso e digni<strong>da</strong><strong>de</strong>, animados por reflexões aptas<br />

e diversificado por figuras a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s (QuINTILIaNO,<br />

1985, v.1,2). Johann Mathesson afirma, no Vollkommene<br />

Capellmeister, que, na música, “a saí<strong>da</strong> ou o término do<br />

discurso, mais do que em to<strong>da</strong>s as outras partes, <strong>de</strong>ve<br />

proporcionar um movimento especialmente enfático.<br />

Este movimento não se encontra apenas no <strong>de</strong>correr ou<br />

na continuação <strong>da</strong> melodia, mas principalmente na co<strong>da</strong><br />

[Nachspiel]” (MaTTHEsON, 1954, II,14,12). Mattheson<br />

está em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com as prescritivas clássicas,<br />

que recomen<strong>da</strong>m, no início e no fim do discurso, estilo<br />

mais agudo, para aumentar seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento.<br />

Haydn reserva muitas surpresas para o final do último<br />

movimento do Quarteto em Sol Maior Op.33, N.5, como<br />

veremos a seguir.<br />

No exordium do primeiro movimento <strong>de</strong>sse quarteto, Haydn<br />

utiliza a própria cadência perfeita. Nele, o compositor<br />

brinca com a idéia implícita <strong>de</strong> fim na cadência, e o<br />

utiliza na função <strong>de</strong> início do discurso. Na co<strong>da</strong> do último<br />

movimento, o fim do quarteto (Ex.5), a cadência também é<br />

matéria para agu<strong>de</strong>zas. Nesse ponto, Haydn põe em dúvi<strong>da</strong><br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> conclusão do movimento V-I. Ele apresenta, nos<br />

vinte e um compassos <strong>da</strong> co<strong>da</strong>, sete cadências perfeitas<br />

em sol maior, enganando o ouvinte seis vezes antes <strong>de</strong><br />

terminar <strong>de</strong>finitivamente, como veremos a seguir.<br />

a primeira cadência, que inicia a co<strong>da</strong> (c.88), dá origem a<br />

um pe<strong>da</strong>l ostinato no segundo violino, que é suporte <strong>de</strong><br />

uma melodia exótica no primeiro violino, mo<strong>da</strong>liza<strong>da</strong> pela<br />

presença do dó sustenido. O trecho se encerra com uma<br />

segun<strong>da</strong> cadência (c.94), que marca simultaneamente o<br />

início do pe<strong>da</strong>l ostinato (idêntico ao anterior do violino)<br />

no violoncelo. a melodia que se sobrepõe a este pe<strong>da</strong>l<br />

surpreen<strong>de</strong> o ouvinte, pois, embora seja ritmicamente<br />

semelhante à dos c.88-94, se <strong>de</strong>tém sobre outro acor<strong>de</strong>,<br />

sol maior com sétima (V7/IV). a harmonia se resolve<br />

novamente em sol maior, pela terceira vez. Esta resolução,<br />

como a anterior, também dá origem à próxima continuação,<br />

que se resolve numa quarta cadência <strong>de</strong> sol maior, no<br />

c.102. Esta resolução dá início, concomitantemente, à<br />

repetição <strong>da</strong> frase anterior, e Haydn segue para a quinta<br />

cadência em sol maior (c.104), que se repete, no c.105,<br />

em sua forma mais elementar: os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> dominante e<br />

tônica (V – I), em pianissimo (sexta cadência). Finalmente<br />

o movimento se encerra, pela sétima vez, forte, no c.106.<br />

Esta resolução é a <strong>de</strong>finitiva.<br />

O excesso <strong>de</strong> finais <strong>de</strong>ste movimento questiona a eficácia<br />

<strong>da</strong> cadência perfeita, e põe em jogo a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />

procedimento como finalizador do discurso, jogo que<br />

também está presente quando Haydn utiliza a cadência<br />

para iniciar o primeiro movimento.<br />

4 - Conclusão<br />

a idéia <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za, nos quartetos Op.33 <strong>de</strong> J. F. Haydn,<br />

apresenta algumas peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Na visão retórica<br />

clássica, a agu<strong>de</strong>za resi<strong>de</strong> na aplicação <strong>de</strong> lugarescomuns<br />

rítmicos, melódicos e harmônicos visando à<br />

representação engenhosa dos afetos, que constituem a<br />

matéria convenciona<strong>da</strong> do discurso musical. Nesse viés<br />

<strong>de</strong> pensamento, pressupõe-se uma correspondência total<br />

entre a matéria (res) e o discurso (verbum). Na música <strong>de</strong><br />

Haydn, há uma ruptura entre as preceptivas do discurso<br />

musical e os procedimentos agudos. Nos Gli Scherzi, o que<br />

<strong>de</strong>leita o ouvinte é justamente a percepção <strong>de</strong> como os<br />

princípios são engenhosamente distorcidos, evi<strong>de</strong>nciando,<br />

em última análise, não a relação res/verbum, mas a própria<br />

estrutura musical.


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

Ex.5 – Peroratio no Quarto Movimento (Allegretto finale) do Op.33, N.5 <strong>de</strong> J. F. Haydn<br />

Nos quartetos Op.33, o efeito cômico resulta <strong>da</strong><br />

incongruência entre regra e procedimento. agindo<br />

exclusivamente <strong>de</strong>ntro dos limites <strong>da</strong> léxis musical, esse<br />

autor torna possível conceber uma comici<strong>da</strong><strong>de</strong> intrínseca<br />

ao discurso musical, sem referência a elementos externos<br />

(res). Este pensamento é uma inovação original proposta<br />

inicialmente pela música <strong>de</strong> Haydn. O uso do termo<br />

scherzo para os movimentos formalmente semelhantes<br />

aos minuetos funciona como um emblema <strong>da</strong> atitu<strong>de</strong><br />

cômica <strong>de</strong> Haydn nos quartetos Op.33.<br />

Nesses quartetos, muitas vezes, as agu<strong>de</strong>zas, por serem<br />

sutis, só são perceptíveis mediante a escuta atenta <strong>de</strong><br />

ouvintes conhecedores. a maior parte dos procedimentos<br />

29


30<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

cômicos nestes quartetos não salta imediatamente à<br />

vista, e, por isso, o prazer que estas obras proporcionam<br />

ten<strong>de</strong> a ser maior a ca<strong>da</strong> escuta.<br />

ciente <strong>da</strong> harmonia entre artificiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> (agu<strong>de</strong>za) e<br />

populari<strong>da</strong><strong>de</strong> presente nessas obras, a crítica <strong>de</strong> sua<br />

época podia afirmar que muitas obras <strong>de</strong>ste compositor<br />

compraziam tanto aos amadores, à “beleza juvenil”,<br />

quanto aos conhecedores, ao “contrapontista cujo<br />

cabelo embranqueceu sobre as partituras”, por possuir<br />

as duas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O equilíbrio entre artificiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e populari<strong>da</strong><strong>de</strong> garantiu às obras <strong>de</strong> Haydn o favor do<br />

público e <strong>da</strong> crítica. No entanto, a compreensão <strong>da</strong><br />

dimensão mais profun<strong>da</strong> <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Haydn está<br />

reserva<strong>da</strong> apenas aos conhecedores.<br />

a constatação <strong>de</strong> tantas semelhanças entre as teorias do<br />

século XVIII e a prática <strong>de</strong> Haydn leva a crer que imagens<br />

que têm sido propaga<strong>da</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primeiros biógrafos,<br />

august Griesinger (1809) e albert christoph Dies (1810),<br />

que transmitem uma imagem <strong>de</strong> um compositor com<br />

pouca cultura e gran<strong>de</strong> talento natural, provavelmente não<br />

correspon<strong>de</strong>m à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e servem apenas para retratar<br />

o i<strong>de</strong>al humano romântico, que ten<strong>de</strong> a valorizar aptidões<br />

naturais em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong>s adquiri<strong>da</strong>s. uma análise<br />

cui<strong>da</strong>dosa do Op.33 indica que ele, ao contrário do que<br />

pregavam os primeiros biógrafos, tinha gran<strong>de</strong> afini<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

com o pensamento teórico <strong>de</strong> sua época. Essa opinião<br />

ganha ain<strong>da</strong> mais força com uma consulta aos livros <strong>da</strong><br />

biblioteca <strong>de</strong> Haydn (inteiramente preservados), dos quais<br />

uma gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> consiste em livros teóricos sobre<br />

as artes (HÖRWaRTNER, 1997, p.395-461).<br />

Po<strong>de</strong>mos supor, com isso, que procedimentos agudos<br />

do Quarteto Op.33, N.5 <strong>de</strong> Haydn refletem uma maneira<br />

consciente, própria e profun<strong>da</strong> <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r a linguagem<br />

musical, que também po<strong>de</strong>rá ser constata<strong>da</strong> em outras<br />

obras maduras do compositor.


Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

Referências<br />

aRIsTÓTELEs. Retórica. Madrid: Gredos, 1991.<br />

BaRROs, cassiano <strong>de</strong> almei<strong>da</strong>. A orientação retórica do processo <strong>de</strong> composição do Classicismo observa<strong>da</strong> a partir<br />

do tratado Versuch einer Anleitung zur Composition <strong>de</strong> H. Ch. Koch. campinas: uNIcaMP, 2005 (dissertação <strong>de</strong><br />

mestrado).<br />

BaTTEuX, charles. Einschränkung <strong>de</strong>r schönen Künste auf einen einzigen Grundsatz (Leipzig, 1770) [Les Beaux Arts<br />

Réduits en un même Principe. Paris, 1746]. Hil<strong>de</strong>sheim: Georg Olms, 1976 (fac-simile) (tradução <strong>de</strong> J. a. schlegel).<br />

BONDs, Marc Evans. Wordless Rhetoric. Musical Form and the Metaphor of the Oration. cambridge: Harvard university<br />

Press, 1991.<br />

FuHRMaNN, Wolfgang. Strategien <strong>de</strong>s Witzes. Versuch über Haydn. Dissertação <strong>de</strong> mestrado, universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Viena,<br />

1992.<br />

GERBER, Ernst Ludwig. Historisch-biographisches Lexicon <strong>de</strong>r Tonkünstler. Leipzig: [s.n.], 1790-92, 90-92.<br />

GOVE, Philip Babcock (ed.). Wit. In: Merriam-Webster Third New International Dictionary. [s.l] Meriam-Webster Inc.,<br />

2002. cD-ROM.<br />

GRacIÁN, Baltasar. Agu<strong>de</strong>za Y Arte <strong>de</strong> Ingenio (Madrid, 1642). Madrid: castalia, 1987. GOTTscHED, Johann christoph.<br />

Versuch einer Critischen Dichtkunst vor die Deutschen (Leipzig, 1752) stuttgart: Horst steinmetz, 1972 (1ª edição:<br />

1730).<br />

HaNsEN, João adolfo. O Discreto. In: NOVaEs, a<strong>da</strong>uto (org.). Libertinos Libertários. são Paulo: companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

1996, p.77-103.<br />

HÖRWaRTNER, Maria. Joseph Haydn’s Library: an attempt at a Literary-Historical Reconstruction. In: sIsMaN, Elaine<br />

(org.) Haydn and His World. New Jersey: Princeton university Press, 1997, p.395-461.<br />

KOcH, Heinrich christoph. Versuch einer Anleitung zur Composition (Rudolstadt, 1782-93). Hil<strong>de</strong>sheim: Georg Olms, 1969<br />

(fac-simile).<br />

LOcKE, John. Ensaio sobre o Entendimento Humano (London, 1690). são Paulo: abril, 1983 (coleção Pensadores; tradução<br />

<strong>de</strong> anoar aiex).<br />

MaTTHEsON, Johann. Der Vollkommene Capellmeister (Hamburg, 1739). Kassel: Bärenreiter, 1954 (fac-simile)<br />

PaNDI, Marianne & Franz schmidt. Musik zor Zeit Haydns dund Beethovens in <strong>de</strong>r Pressburger Zeitung. In: Haydn-<br />

Yearbook. London, v.8, p.165-293, 1971.<br />

QuINTILIaNO, Marco Fabio. Insititutio Oratoria. London: Harvard university Press, 1985 (Loeb classical Library).<br />

REIcHaRDT, Johann Friedrich. Neue merkwürdige musikalische Werke. In: Musikalisches Kunstmagazin.<br />

Berlin: im Verlage <strong>de</strong>s Verfassers, v. 1, n. 1-3, p.205, 1782.<br />

suLZER, Johann Georg. Allgemeine Theorie <strong>de</strong>r Schönen Künste in einzeln, nach alphabetiswceher Ordnung<br />

<strong>de</strong>r Kunstwörter auf einan<strong>de</strong>r folgen<strong>de</strong>n Artikeln abgehan<strong>de</strong>lt (Leipzig, 1771-74). Berlin: Digitale Bibliothek.<strong>de</strong>, 2002. 1<br />

cD-ROM.<br />

TaVE, stuart. The Amiable Humorist: a study in the comic theory and criticism of the 18 th and early 19 th Centuries. chicago:<br />

university of chicago Press, 1960.<br />

TEsauRO, Emanuele. Il Cannocchiale Aristotelico o sia I<strong>de</strong>a <strong>de</strong>ll´arguta et Ingeniosa Elocutione que serve à tutta l´Arte<br />

Oratoria, Lapi<strong>da</strong>ria, et Simbolica Esaminata co´Principij <strong>de</strong>l Divino Aristotele (Torino, 1654). savigliano: Editrice artistica<br />

Piemontese, 2000 (fac-simile).<br />

WEBER, Daniel. Über komische charakteristik und Karrikatur in praktischen Musikwerken. In: Allgemeine<br />

Musikalische Zeitung . Leipzig: Breitkopf & Härtel, n.9, p.137-143, nov. 1800; n.10, p.157-162, <strong>de</strong>z.<br />

Mônica Lucas graduou-se em clarinete pela universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> são Paulo (1990), especializando-se a seguir na interpretação<br />

<strong>de</strong> música antiga no conservatório Real <strong>de</strong> Haia (Holan<strong>da</strong>). Foi finalista do concurso internacional Van Wassenaer<br />

(Holan<strong>da</strong>, 1995). Retornou ao Brasil em 1998. Trabalha regularmente com as orquestras barrocas Concerto Köln e Das<br />

Kleine Konzert, com quem realiza gravações anuais para a rádio alemã WDR e para os selos cPO e Tel<strong>de</strong>c. No Brasil,<br />

gravou com as orquestras Novo Horizonte e Armonico Tributo. Participa do conjunto <strong>de</strong> sopros Harmoniemusik (música<br />

do século XVIII em instrumentos históricos). coor<strong>de</strong>na o Núcleo <strong>de</strong> <strong>Música</strong> antiga <strong>da</strong> Eca-usP. concluiu o doutorado em<br />

música na uNIcaMP em 2005 com tese “Humor e agu<strong>de</strong>za nos Quartetos <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33 <strong>de</strong> Joseph Haydn”. sua atual<br />

pesquisa <strong>de</strong> pós-doutorado (bolsa FaPEsP) mostra a influência <strong>da</strong> visão poético-retórica na música instrumental do final<br />

do século XVIII.<br />

31


32<br />

Lucas, M. uma visão retórica <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za no Quarteto <strong>de</strong> Cor<strong>da</strong>s Op.33, N.5 <strong>de</strong> Franz Joseph Haydn. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 21-32<br />

Notas<br />

1 “Diese Werke [op.33] wer<strong>de</strong>n gepriesen, und könnens auch nicht genug, in Absicht <strong>de</strong>r alleroriginellsten Laune, und <strong>de</strong>s Lebhafteten<br />

angenehmsten Witzes <strong>de</strong>r <strong>da</strong>rinnen herrscht.”<br />

2 “Wit consists in the assemblage of i<strong>de</strong>as; and putting those together, with quickness and variety wherein can be found any resemblance or congruity,<br />

thereby to make up pleasant pictures and agreeable visions in the fancy; judgment, on the contrary, lies quite on the other si<strong>de</strong>, in separating carefully,<br />

one from another, i<strong>de</strong>as wherein can be found the least difference, thereby to avoid being misled by similitu<strong>de</strong>, and by affinity to take one thing for<br />

another.”<br />

3 ”Dieser Witz ist eine Gemüths-kraft, welche die aehnlichkeiten <strong>de</strong>r Dinge leicht wahrnehmen, und also eine Vergleichung zwischen ihnen anstellen<br />

kann. Er setzet die scharfsinnigkeit zum Grun<strong>de</strong>, welche ein Vermögen <strong>de</strong>r seele anzeiget, viel an einem Ding wahrzunehmen, welches ein andrer, <strong>de</strong>r<br />

gleichsam einen [...] blö<strong>de</strong>n Verstand hat, nicht wür<strong>de</strong> beobachtet haben.“<br />

4 „Man kommt durchgehends <strong>da</strong>rin überein, <strong>da</strong>ß eine lebhafte Einbildungskraft die Grundlage <strong>de</strong>s Wizes ausmache, und <strong>da</strong>ß <strong>de</strong>r, <strong>de</strong>n man vorzüglich<br />

einen wizigen Kopf nennet, in seinen Vorstellungen mehr von einer lebhaften Phantasie, als von Verstand im eigentlichen philosophischen sinne<br />

dieses Worts, geleitet wer<strong>de</strong>. Wie nun <strong>de</strong>r Verstand überall auf <strong>de</strong>utliches und entwikeltes Denken ziehlet, so scheinet <strong>de</strong>r Wiz auf sinnliche, aber<br />

lebhafte sehr klare Vorstellungen zu lenken“.<br />

5 „Wenn er aber in Werken <strong>de</strong>s Geschmaks diesen Dienst leisten soll, so muß er mit scharfsinn verbun<strong>de</strong>n und von Verstand und guter Beurtheilung<br />

geleitet wer<strong>de</strong>n. Ohne scharfsinn wird er leicht falsch, ausschweifend und so gar abgeschmakt; und wenn ihn nicht eine richtige Beurtheilung<br />

begleitet, so wird er unzeitig, abentheuerlich, übertrieben und schädlich“.<br />

6 “Mann überlädt die Natur; man stutzet sie zu; man putzet sie nach <strong>de</strong>m Gutdünken einer falschen Zärtlichkeit heraus; man behängt sie mit künstlich<br />

ineinan<strong>de</strong>r gedrehten Ge<strong>da</strong>nken, mit geheimnissvollenRäthseln, mit zugespitzten Einfällen; mit einem Worte, man fällt in <strong>da</strong>s gezwungene Wesen,<br />

<strong>de</strong>n an<strong>de</strong>rn äussersten Fehler, welcher <strong>de</strong>r Plumpheit entegengesetzt ist; aber ein Fehler, von <strong>de</strong>m man sich weit schwerer losreisst, als selber von <strong>de</strong>r<br />

Plumpheit, weil die Künstler sich selbst in ihren Fehlern bewun<strong>de</strong>rn.“<br />

7 „Wo <strong>de</strong>r Verstand durch große und wichtige Wahrheit zu erleuchten, o<strong>de</strong>r wo <strong>da</strong>s Herz durch pathetische, o<strong>de</strong>r zärtliche Gegenstän<strong>de</strong> zu rühren ist, <strong>da</strong><br />

bleibt <strong>de</strong>r Wiz ausgeschlossen. so unumgänglich er zu blos unterhalten<strong>de</strong>n Werken, zu <strong>de</strong>m lustigen schauspiehl und zu <strong>de</strong>r spotten<strong>de</strong>n satyre ist, so<br />

übel wär er in <strong>de</strong>m Trauerspiehl und in an<strong>de</strong>rn pathetischen Werken angewen<strong>de</strong>t. Je feiner er ist, je mehr beleidiget er <strong>de</strong>n guten Geschmak, wo <strong>da</strong>s<br />

Herz blos empfin<strong>de</strong>n, o<strong>de</strong>r <strong>de</strong>r Verstand blos erkennen und beurtheilen will“<br />

8 „so wie ferner <strong>de</strong>r dichterische und mahlerische Witz in Erfindung von aehnlichkeiten besteht, die sich nicht je<strong>de</strong>r zu fin<strong>de</strong>n getraut hätte, und so<br />

wie es auf <strong>de</strong>r geschickten Verbindung zweyer solchen aehnlichkeiten beruht, <strong>da</strong>ss ein Ge<strong>da</strong>nke zum witzigen Ge<strong>da</strong>nken wird, so beruht auch <strong>de</strong>r<br />

musikalische Witz auf Erfindung nicht erwarteter aehnlichkeit zwischen zwey musikalischen Ge<strong>da</strong>nken und ihrer durch <strong>da</strong>s ueberraschen<strong>de</strong> sich als<br />

geschickt und zweckmässig ankündigen<strong>de</strong>n Verbindung.“<br />

9 “Die Kunstmitteln [wodurch <strong>de</strong>r Tonsetzer <strong>da</strong>s Gefühl <strong>de</strong>s Lächerlichen aufzuregen vermag] bestehen in <strong>de</strong>r launigten anwendung <strong>de</strong>r grossen o<strong>de</strong>r<br />

kleinen Gabe von Witz.”<br />

10 a Pressburger Zeitung <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1782 nos dá a <strong>da</strong>ta e os executantes do concerto: “Deve-se acrescentar a esta nota do concerto ocorrido<br />

nos aposentos <strong>da</strong> con<strong>de</strong>ssa van Nor<strong>de</strong>n no dia 25 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, que a música foi composta pelo Kapellmeister do príncipe Esterházy, o famoso<br />

senhor Hay<strong>de</strong>n [sic], e que o quarteto executado naquela ocasião foi executado pelos Messrs. Luiggi Tomasini, apfelmayr [Franz aspelmayr], Weigl e<br />

[Thaddäus] Huber. a obra foi recebi<strong>da</strong> com gracioso aplauso pela ilustre audiência, que teve o prazer <strong>de</strong> oferecer ao senhor Hay<strong>de</strong>n, o compositor, uma<br />

magnífica caixinha <strong>de</strong> ouro incrusta<strong>da</strong> com diamantes, e a ca<strong>da</strong> um dos músicos uma magnífica caixa <strong>de</strong> ouro para rapé” (PaNDI, 1981, p. 456).<br />

11 “Wollte man ferner <strong>de</strong>n charakter <strong>de</strong>r Haydn’schen Kompositionen mit zwey Wörter angeben, so wäre er – wie mich dünkt – kunstvolle Popularität,<br />

o<strong>de</strong>r populäre (fassliche, eindringen<strong>de</strong>) Kunstfülle.”<br />

12 “[immer verstand Joseph Haydn schlau unerhörtes unter <strong>de</strong>m anstrich <strong>de</strong>s allbekannten zu bieten [weswegen auch] die junge schöne sowohl als bei<br />

<strong>de</strong>r bei Partituren grau gewor<strong>de</strong>neKontrapuntist seine Werke mit vergnügen [hören]”.<br />

13 O manuscrito, atribuído ao copista <strong>de</strong> Esterházy anônimo 30, contém apenas os quartetos em si menor (a3, P1), em Mi bemol maior (a2, P2), em sol<br />

maior (a1, P5) e Ré maior (a5, P6). Pertence ao arquivo musical <strong>da</strong> abadia Beneditina <strong>de</strong> Melk (Baixa-Áustria), cat. VI 736-9


Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

Compondo a “cor nacional”: conciliações<br />

estéticas e culturais na música<br />

do<strong>de</strong>cafônica <strong>de</strong> César Guerra-Peixe 1<br />

Ana Cláudia <strong>de</strong> Assis (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

anaclaudia@ufmg.br<br />

Resumo: César Guerra-Peixe, em 1944, ao a<strong>de</strong>rir ao movimento <strong>Música</strong> Viva e ao do<strong>de</strong>cafonismo assumiu uma posição<br />

<strong>de</strong> compositor esteticamente anti-nacional, rompendo com uma tradição nacionalista fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do<br />

século XIX e prolonga<strong>da</strong> até início dos anos 1950. Romper com esta tradição implicava propor novos valores estéticomusicais<br />

para o público brasileiro, este habituado à afinação nacionalista, às consonâncias <strong>da</strong> música tradicional<br />

européia e aos ritmos <strong>da</strong> música popular. Na busca <strong>de</strong> tais valores, Guerra-Peixe <strong>de</strong>u início a seu projeto <strong>da</strong> “cor nacional”<br />

constituído pelo trabalho <strong>de</strong> conciliação dos elementos <strong>da</strong> linguagem atonal-serial-do<strong>de</strong>cafônica e elementos <strong>da</strong> música<br />

tonal tradicional, em especial <strong>da</strong> música popular urbana. Dentre os elementos musicais priorizados pelo compositor em<br />

suas experiências estéticas está o ritmo. Este artigo tem como objetivo apresentar algumas estratégias <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por<br />

Guerra-Peixe para imprimir “cor nacional” às suas obras do<strong>de</strong>cafônicas, bem como as motivações estéticas e culturais<br />

que conduziram tais estratégias.<br />

Palavras-chave: Guerra-Peixe, música do<strong>de</strong>cafônica, ritmo, conciliações estéticas e culturais.<br />

Composing the Brazilian “National Colour”: aesthetic and cultural conciliations in César<br />

Guerra-Peixe’s do<strong>de</strong>caphonic music<br />

Abstract: When, in 1944, Brazilian composer César Guerra-Peixe joined the <strong>Música</strong> Viva movement and adhered to<br />

do<strong>de</strong>caphonism, he was taking on the role of an aesthetically antinational composer, thus breaking with a nationalist<br />

tradition foun<strong>de</strong>d in the second half of the twentieth-century which continued till the early 1950s. To break with that<br />

tradition entailed to propose new musical-aesthetic values to a Brazilian audience used to the nationalistic tuning, the<br />

consonances of traditional European music and the rhythms of popular music. In search of such values, Guerra-Peixe<br />

launched his “national colour” project, conciliating elements from atonal-serial-do<strong>de</strong>caphonic language with elements<br />

from traditional tonal music, and from Brazilian urban popular music in particular. Rhythm ranks high among the<br />

musical elements privileged by the composer in his aesthetic experiences. Herein I present some strategies <strong>de</strong>veloped by<br />

Guerra-Peixe in or<strong>de</strong>r to furnish his do<strong>de</strong>caphonic works with the “national colour” as well as the aesthetic and cultural<br />

motivations that have led to those strategies.<br />

Keywords: Guerra-Peixe, do<strong>de</strong>caphonic music, rhythm, aesthetic and cultural conciliations.<br />

1. introdução<br />

Durante o período entre 1944 e 1949, o compositor<br />

petropolitano César Guerra-Peixe (1914-1993) fez<br />

parte do Grupo <strong>Música</strong> Viva (1939-1952) formando, ao<br />

lado <strong>de</strong> Cláudio Santoro (1919-1989), Eunice katun<strong>da</strong><br />

(1915-1990) e Edino Krieger (1928), a linha <strong>de</strong> frente<br />

do movimento li<strong>de</strong>rado por Hans Joachim Koellreutter<br />

(1915-2005).<br />

Ao a<strong>de</strong>rir ao <strong>Música</strong> Viva e ao do<strong>de</strong>cafonismo 2 , Guerra-<br />

Peixe assumiu, assim como seus colegas <strong>de</strong> Grupo, uma<br />

posição <strong>de</strong> compositor esteticamente anti-nacional,<br />

rompendo com uma tradição fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na segun<strong>da</strong><br />

meta<strong>de</strong> do século XIX através dos compositores do<br />

romantismo brasileiro - Brasílio Itiberê (1848-1913),<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

Alberto Nepomuceno (1864-1920), Alexandre Levy<br />

(1864-1892) - e prolonga<strong>da</strong> até o início dos anos 1950.<br />

Romper com a tradição nacionalista implicava propor<br />

novos valores estético-musicais para o público brasileiro,<br />

este habituado às sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s nacionalistas, aos acor<strong>de</strong>s<br />

tonais <strong>da</strong> música tradicional européia e aos ritmos <strong>da</strong><br />

música popular. Apropriando-se <strong>de</strong> práticas musicais que<br />

se tradicionalizaram na cultura brasileira e conciliandoas<br />

com outras práticas estranhas a esta cultura, Guerra-<br />

Peixe tentou criar, no período entre 1944 e 1949, uma<br />

música cujas perspectivas sonoras renovadoras não<br />

comprometessem o diálogo com o público, mas, ao<br />

mesmo tempo, contribuísse para <strong>de</strong>spertar uma nova<br />

sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> musical na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua época.<br />

Recebido em: 09/07/2007 - Aprovado em: 12/12/2007<br />

33


34<br />

Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

Segundo <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Edino Krieger, <strong>de</strong>ntre os<br />

compositores do Grupo <strong>Música</strong> Viva, Guerra-Peixe foi “o<br />

mais rigoroso na sua visão teórica. Ele pesquisou muito<br />

a música serial, fazendo séries pan-intervalares, ele<br />

realmente foi fundo na questão do serialismo, muito mais<br />

do que qualquer um <strong>de</strong> nós” (KRIEGER, 1989 3 ).<br />

Paralelamente às pesquisas com a técnica do<strong>de</strong>cafônica,<br />

Guerra-Peixe trabalhou como orquestrador e arranjador <strong>de</strong><br />

músicas populares em três diferentes emissoras <strong>de</strong> rádio -<br />

Rádio Tupi, Rádio Globo e Rádio Nacional, respectivamente<br />

(entre 1946 e 1949), transitando e convivendo com músicas<br />

e músicos <strong>de</strong> universos aparentemente antagônicos.<br />

Esta convivência serviu-lhe não apenas como um meio<br />

<strong>de</strong> ampliar sua experiência enquanto compositor e<br />

orquestrador, mas, também, foi uma prática fun<strong>da</strong>mental<br />

para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s estratégias <strong>de</strong> conciliação, as<br />

quais, nas palavras <strong>de</strong> KRIEGER (1989), <strong>de</strong>finem-se como<br />

“experiências <strong>de</strong> conciliar o do<strong>de</strong>cafonismo com elementos<br />

<strong>de</strong> uma certa sintaxe brasileira”.<br />

Infiltrando materiais <strong>de</strong> práticas musicais populares<br />

no âmbito <strong>da</strong> estruturação rítmica e melódica, Guerra-<br />

Peixe buscou imprimir uma “cor nacional 4 ” às suas<br />

obras do<strong>de</strong>cafônicas, construindo, assim, uma estética<br />

sonora própria, compatível com a linguagem <strong>da</strong> música<br />

do<strong>de</strong>cafônica, mas, ao mesmo tempo, acessível ao gosto<br />

musical <strong>de</strong> sua época.<br />

Dos elementos priorizados por Guerra-Peixe em seu projeto<br />

<strong>da</strong> “cor nacional”, está o ritmo. Para ele, o ritmo na música<br />

do<strong>de</strong>cafônica era um dos principais elementos para atingir<br />

a “comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> 5 ” com o público brasileiro. Baseado<br />

nesta tese, Guerra-Peixe formulou uma série <strong>de</strong> críticas<br />

aos compositores e às obras do<strong>de</strong>cafônicas como uma<br />

forma <strong>de</strong> legitimar suas experiências estéticas. Dentro<br />

<strong>de</strong>sta perspectiva, po<strong>de</strong>mos dizer que, na medi<strong>da</strong> em que<br />

Guerra-Peixe <strong>de</strong>senvolvia seu projeto <strong>da</strong> “cor nacional”<br />

contribuía, naturalmente, para a construção <strong>de</strong> uma<br />

imagem <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica diferente <strong>da</strong>quela forja<strong>da</strong><br />

pelos compositores nacionalistas brasileiros durante a<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1940, na qual o do<strong>de</strong>cafonismo representava<br />

uma “música formalista”, “<strong>de</strong>genera<strong>da</strong>”, “sem conteúdo<br />

emocional” e “<strong>de</strong>spoja<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus elementos essenciais <strong>de</strong><br />

comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> 6 ”.<br />

Para enten<strong>de</strong>rmos a fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong>s críticas <strong>de</strong> Guerra-<br />

Peixe relativas ao ritmo na música do<strong>de</strong>cafônica, bem<br />

como <strong>de</strong> seus argumentos em prol <strong>da</strong> “cor nacional”, faz-se<br />

necessário refletir em que medi<strong>da</strong> a técnica <strong>de</strong> composição<br />

do<strong>de</strong>cafônica contribuiu para uma revisão do tempo<br />

musical e <strong>da</strong> estruturação rítmica <strong>da</strong> música oci<strong>de</strong>ntal.<br />

2. sobre o tempo musical<br />

Dentre os parâmetros do som, o ritmo é aquele que<br />

se estabelece a partir <strong>da</strong> combinação entre as várias<br />

durações <strong>de</strong> tempo que po<strong>de</strong>m existir entre uma ou mais<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sonoras. Ou seja, uma estrutura rítmica ou um<br />

motivo rítmico é uma seqüência <strong>de</strong> durações que po<strong>de</strong>m<br />

ser iguais ou diferentes, simultâneas ou sucessivas,<br />

repeti<strong>da</strong>s ou varia<strong>da</strong>s.<br />

Para Olivier Messiaen (1908-1992), um dos compositores<br />

que levou adiante o princípio serial <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica,<br />

a música é “a arte do tempo, ela <strong>de</strong>lineia o tempo” (apud<br />

FERRAZ, 1998, p.187). Sendo a música a arte do tempo, o<br />

ritmo é, então, a ferramenta que viabiliza e estrutura as<br />

relações temporais, as durações, <strong>de</strong> uma obra musical. É<br />

o ritmo que faz soar a arte do tempo:<br />

(...). A música é feita <strong>de</strong> sons? Eu digo que não! Não, ela não<br />

é feita somente <strong>de</strong> sons; em parte ela é feita com sons, mas<br />

também e principalmente com Durações, Arrebatamentos e<br />

Repousos, Acentuações, Intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e Densi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, Ataques e<br />

Timbres, tudo aquilo que se agrupe sob um vocábulo geral: o<br />

Ritmo (MESSIAEN, apud FERRAZ, 1998, p.188).<br />

To<strong>da</strong> discussão acerca do tempo ou, como no nosso caso,<br />

acerca do tempo na criação musical, coloca-nos diante<br />

<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> in<strong>da</strong>gações, por vezes inquietantes.<br />

Paradoxalmente, a primeira questão que surge é justamente<br />

a mais complexa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r objetivamente e, talvez por<br />

isso mesmo, é a que mais se impõe: o que é o tempo?<br />

(...). Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem<br />

me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a <strong>de</strong>clarar,<br />

sem receio <strong>de</strong> contestação, que, se na<strong>da</strong> sobreviesse, não haveria<br />

tempo futuro, e se agora na<strong>da</strong> houvesse, não existiria o tempo<br />

presente. De que modo existem aqueles dois tempos - o passado<br />

e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ain<strong>da</strong> não veio?<br />

(SANTO AGOSTINHO, apud SEINCMAN, 2001, p.13).<br />

Assim como Santo Agostinho, também nós sabemos o que<br />

é o tempo. Reconhecemos o fluxo do tempo através <strong>de</strong><br />

nossas sensações, lembranças, experiências, expectativas,<br />

intuições e memória. No entanto, a gran<strong>de</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

está em analisar o tempo, falar sobre ele, explicar suas<br />

dimensões, medi-lo ou capturá-lo.<br />

RICOEUR (1985) comenta sobre a divisão feita pela filosofia<br />

ao tratar o tempo: o tempo subjetivo ou fenomenológico<br />

através <strong>de</strong> Santo Agostinho, Husserl, Hei<strong>de</strong>gger, e o<br />

tempo objetivo ou cosmológico com Platão e Aristóteles.<br />

Esta divisão, na opinião <strong>de</strong> CASTORIADIS (1987, p.265),<br />

“resultou que todo avanço na compreensão <strong>de</strong> um<br />

somente multiplicou as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s na compreensão<br />

do outro e no esforço <strong>de</strong> construir, <strong>de</strong> algum modo, uma<br />

ponte por cima do fosso que os separa”.<br />

No caso <strong>da</strong> música o tempo é, sobretudo, fenomenológico,<br />

pois seu reconhecimento é feito através <strong>da</strong> sensação do<br />

<strong>de</strong>slocamento dos eventos sonoros. A musicóloga Ivanka<br />

Stoïanova pon<strong>de</strong>ra que<br />

(...) a idéia mais comum sobre a presença do tempo, sobre a<br />

sensação do tempo - o como o tempo passa -, é a <strong>de</strong> que este é<br />

<strong>de</strong>terminado pelo movimento relativo às mu<strong>da</strong>nças sofri<strong>da</strong>s por um<br />

objeto numa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> duração: um tempo que se subordina ao<br />

movimento (STOÏANOVA apud FERRAZ, 1998, p.201).<br />

Isso não implica na idéia <strong>de</strong> que o tempo seja linear<br />

ou progressivo. Ao contrário, na medi<strong>da</strong> em que ele


Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

está subordinado ao caráter <strong>de</strong> mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> próprio <strong>da</strong><br />

criação musical e às incessantes relações sensoriais<br />

e intelectuais dos indivíduos, então “o tempo não é<br />

progressivo, mas pluridirecionado: não é global, mas<br />

múltiplo” (REIS, 1994, p.22). Nesta perspectiva, as fases<br />

do tempo são subjetivamente redimensiona<strong>da</strong>s durante<br />

a audição <strong>de</strong> uma obra musical: po<strong>de</strong>mos recuperar o<br />

passado no presente através <strong>da</strong> memória dos eventos já<br />

ouvidos e, então, o presente seria a superposição ou a<br />

simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dois estados do tempo - o passado no<br />

presente; <strong>da</strong> mesma forma, o presente antecipa o futuro<br />

através <strong>da</strong> perspectiva gera<strong>da</strong> em função do passado e<br />

presente juntos. É o que se ten<strong>de</strong> a chamar <strong>de</strong> “o convívio<br />

dos tempos” (BOSI, 1992).<br />

Ao contrário do caráter pluridirecional <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

musical, a partitura enquanto maquete <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que ain<strong>da</strong> não se concretizou, contém o passado, o<br />

presente e o futuro, porém imóveis, sem o vai-e-vem <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual e <strong>da</strong> experiência corporal, sem o<br />

contínuo <strong>da</strong>r e receber que se empreen<strong>de</strong> no tempo, sem<br />

a ação ativa <strong>da</strong> memória.<br />

Segundo ECLÉA BOSI (1979, p.86)<br />

(...) a memória permite a relação do corpo presente com o<br />

passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo atual <strong>da</strong>s<br />

representações. Pela memória, o passado não só vem à tona <strong>da</strong>s<br />

águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas,<br />

como também empurra, <strong>de</strong>sloca estas últimas, ocupando o espaço<br />

todo <strong>da</strong> consciência. A memória aparece como força subjetiva ao<br />

mesmo tempo profun<strong>da</strong> e ativa, latente e penetrante, oculta e<br />

invasora.<br />

Neste sentido, a memória permite que a audição <strong>de</strong> uma<br />

obra, ou qualquer outra vivência humana, não seja uma<br />

mera seqüência <strong>de</strong> eventos ou um eterno <strong>de</strong>vir. Dentro <strong>da</strong><br />

abor<strong>da</strong>gem bergsoniana, SEINCMAN (2001, p.32) aponta<br />

que “a memória é o estofo do tempo e este não po<strong>de</strong> estar<br />

situado fora <strong>da</strong> consciência, ele é uma duração interior”.<br />

A esta abor<strong>da</strong>gem do tempo como “duração interior”,<br />

acrescentamos a opinião <strong>de</strong> BOSI (1992, p.29), para quem<br />

a música possibilita um efeito <strong>de</strong> “suspensão” do tempo<br />

através <strong>de</strong> “recorrências e simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>s”:<br />

(...). Na música, na <strong>da</strong>nça e na poesia o tempo é trabalhado<br />

internamente para, no conjunto, ser suspenso. Essa anulação<br />

subjetiva resulta <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> recorrências que <strong>de</strong>spistam<br />

a seriali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s notas ou dos segmentos coreográficos. Na<br />

música o efeito <strong>de</strong> simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong> constitui uma conquista pela<br />

qual o sentimento, que é difuso e abrangente, se faz energia<br />

sonora indivisa.<br />

Assim, “suspen<strong>de</strong>r” o tempo significaria abstrairmos o tempo<br />

<strong>de</strong> sua existência racional. Durante um acontecimento<br />

musical, o tempo não é racionalizado, ele é potencialmente<br />

“experienciado” <strong>de</strong> uma forma global on<strong>de</strong> passado,<br />

presente e futuro convivem e se alteram incessantemente.<br />

De um modo geral, quando estamos diante <strong>de</strong> uma<br />

situação em que muitas informações diferentes nos são<br />

apresenta<strong>da</strong>s, temos a sensação <strong>de</strong> que o tempo <strong>de</strong>morou a<br />

passar. Mesmo diante <strong>de</strong> informações varia<strong>da</strong>s, mas sobre<br />

as quais temos referências anteriores, o tempo parece que<br />

não foi tão longo. Ou, se estamos diante <strong>de</strong> informações<br />

novas, mas prazerosas, então o tempo voou. Ouvir uma obra<br />

do<strong>de</strong>cafônica seria, então, como fazer uma viagem por uma<br />

estra<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> e sem placas, on<strong>de</strong> o tempo parece<br />

não passar. Mas as placas estão lá assim como o tempo não<br />

se prolongou, porém nossos ouvidos se acostumaram com<br />

o tempo anterior, o <strong>da</strong> música tonal, on<strong>de</strong> as sinalizações<br />

já são tão conheci<strong>da</strong>s que não exige nenhum esforço para<br />

traduzi-las. O intuito <strong>de</strong> Guerra-Peixe era justamente tentar<br />

sinalizar o caminho “<strong>de</strong>sconhecido” para o público <strong>de</strong> sua<br />

época, através <strong>da</strong>s referências já conheci<strong>da</strong>s, as referências<br />

<strong>da</strong> música anterior.<br />

Dentre os elementos representativos <strong>da</strong> música<br />

nacionalista, o ritmo esteve sempre em primeiro plano,<br />

pois as combinações rítmicas “exóticas” <strong>da</strong>s manifestações<br />

afro-brasileiras foram converti<strong>da</strong>s em símbolo <strong>de</strong> cultura<br />

nacional. Sabendo <strong>da</strong> força expressiva do ritmo na música<br />

nacionalista e na música popular, Guerra-Peixe o elegeu<br />

como um “sinalizador” para a audição <strong>de</strong> sua música<br />

do<strong>de</strong>cafônica.<br />

Esta escolha resultou, como dito anteriormente, numa<br />

série <strong>de</strong> reflexões sobre o ritmo na música dos doze sons,<br />

<strong>de</strong>monstrando, <strong>de</strong>ntre outros, o interesse do compositor<br />

pelo <strong>de</strong>bate estético-musical <strong>de</strong> sua época. Devido<br />

à relevância <strong>de</strong> seu conteúdo para nossa discussão,<br />

transcrevemos uma parte consi<strong>de</strong>rável <strong>da</strong> carta <strong>de</strong> Guerra-<br />

Peixe a Curt Lange, na qual o compositor argumenta sobre<br />

a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma revisão do tratamento rítmico em<br />

sua música do<strong>de</strong>cafônica. A argumentação <strong>de</strong> Guerra-<br />

Peixe é basea<strong>da</strong> em sua experiência pessoal, o que a<br />

torna ain<strong>da</strong> mais significativa para a compreensão <strong>de</strong><br />

seus conflitos estéticos neste processo <strong>de</strong> conciliação do<br />

do<strong>de</strong>cafonismo com elementos <strong>da</strong> cultura nacional:<br />

(...). Sobre a rítmica nos 12 sons (...), este é um ponto fraco que<br />

venho apontando, mas que meus colegas e amigos parecem<br />

discor<strong>da</strong>r. O que me atrapalhou até agora foi o preconceito <strong>de</strong><br />

evitar seqüências, principalmente rítmicas. Tenho a impressão<br />

<strong>de</strong> que a gente começa a se embebe<strong>da</strong>r <strong>de</strong> idéias filosóficas,<br />

acabando por esquecer <strong>de</strong> lado a música. Pois, meu amigo, no<br />

Quarteto Misto e no Noneto cheguei ao ponto <strong>de</strong> não repetir<br />

nunca uma idéia melódica ou rítmica. Como resultado compliquei<br />

tanto estas peças que o Quarteto Misto já foi ensaiado várias<br />

vezes em Buenos Aires e não conseguiram executá-lo - segundo<br />

me contou o Eitler [ 7 ]. Veja em minhas obras do seu arquivo, a<br />

diferença que existe, neste sentido. A partir do Duo para flauta<br />

e violino (ou seja, a partir <strong>de</strong> 1947) a rítmica começa a tomar<br />

estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. No Quarteto e na Peça pra dois minutos, pareceme<br />

que já há ritmo. Mas continuo <strong>de</strong>senvolvendo esta parte.<br />

Existem, porém, muitas seqüências rítmicas e melódicas. Vejo,<br />

to<strong>da</strong>via, que na maioria (para não dizer to<strong>da</strong>s) <strong>da</strong>s obras nos<br />

doze sons a seqüência não tem mora<strong>da</strong>. Faz-se a “propagan<strong>da</strong>”<br />

estética <strong>de</strong> que a música atonal é arrítimica. O que me diz disto?<br />

Escreva duas linhas a este respeito, <strong>da</strong>ndo-me o seu parecer.<br />

Para mim, julgo mais uma incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> construtiva do que<br />

“conceito” estético. Porque se po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r ritmo à obra sem recorrer<br />

aos exageros <strong>de</strong> abusar <strong>da</strong>s seqüências. Confio na sua cultura e<br />

na sua sinceri<strong>da</strong><strong>de</strong>, para me tirar <strong>de</strong> uma dúvi<strong>da</strong> muito gran<strong>de</strong>.<br />

Diga francamente, porque não revelarei a sua opinião a ninguém<br />

– se por acaso supõe que ela possa ferir aos <strong>de</strong>mais, que ain<strong>da</strong><br />

não se preocuparam com este problema. Tenho discutido sobre<br />

35


36<br />

Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

o assunto. Mas a minha opinião não encontrou acolhi<strong>da</strong>. Dizem,<br />

filosoficamente, que a música atonal tem que ser assim porque<br />

o mundo hoje está <strong>de</strong>sequilibrado, torturado! Ora, o mundo<br />

sempre esteve mais ou menos neste estado. A fase <strong>de</strong> nossos dias<br />

apenas se apresenta sob outro aspecto – mas a luta, o motivo,<br />

ou a meta é a mesma <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as épocas, não acha? Ou será que<br />

estou dizendo bobagem? Os compositores atonalistas, parece,<br />

ain<strong>da</strong> não repararam que as músicas populares <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> hoje são mais ritma<strong>da</strong>s (swing, samba, tango, rumba, conga,<br />

quaracha, valsas mexicanas, para falar especialmente <strong>da</strong>s<br />

Américas) do que as <strong>da</strong>s épocas anteriores. Ora, se os povos<br />

sentem tanto o fator rítmico, por que nossa música não há <strong>de</strong><br />

refletir este sentimento? (Carta <strong>de</strong> Guerra-Peixe a Curt Lange.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 9 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1947).<br />

Contrapondo a música do<strong>de</strong>cafônica com a música<br />

popular, Guerra-Peixe atribui aos atonalistas uma<br />

“incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong> criar músicas mais “ritma<strong>da</strong>s”<br />

e compreensíveis à maioria. Servindo-se do termo<br />

“arrítmico” como sinônimo <strong>de</strong> não repetição rítmica,<br />

o compositor radicaliza sua crítica e <strong>de</strong>monstra certa<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> no uso <strong>de</strong>ste termo. Em primeiro lugar, o termo<br />

arrítmico não se aplica ao conceito <strong>de</strong> música a que se<br />

refere o compositor, pois se uma música é <strong>de</strong>stituí<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> ritmo, ela já não é mais música. Em segundo lugar,<br />

a repetição, ain<strong>da</strong> que em grau mínimo, é inerente a<br />

to<strong>da</strong> forma <strong>de</strong> organização <strong>da</strong> linguagem humana. Sem<br />

repetição não existe relação e se não há relação, então<br />

na<strong>da</strong> existe. A repetição é pressuposto <strong>da</strong> memória a<br />

qual, relembrando BOSI (1979), propicia a relação do<br />

presente com o passado.<br />

Ao <strong>de</strong>pararmos com algumas obras <strong>de</strong> Schoenberg<br />

(Suíte op.25), Webern (Variações op.33) e Berg (Sonata<br />

n.1), a afirmativa quanto à ausência <strong>de</strong> seqüências<br />

é objetivamente falsa, elas existem e exercem papel<br />

prepon<strong>de</strong>rante na <strong>de</strong>finição <strong>da</strong>s uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s formais.<br />

O do<strong>de</strong>cafonismo tem como critério a não repetição, ou<br />

melhor, o grau mínimo <strong>de</strong> redundância, pois substitui a<br />

idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento dos gran<strong>de</strong>s temas melódicos,<br />

próprio <strong>da</strong> música tonal, pela utilização <strong>de</strong> pequenos<br />

motivos ou pequenas configurações rítmico/melódicas,<br />

variados constantemente 8 . Estes motivos quase nunca<br />

serão repetidos <strong>de</strong> maneira passiva, estarão sempre<br />

abertos a um processo <strong>de</strong> variação contínua, dificultando<br />

o reconhecimento imediato dos mesmos:<br />

(...). Existe uma repetição na música serial, porém não se trata <strong>da</strong><br />

repetição nua, elementar ou <strong>da</strong> repetição passiva <strong>da</strong>s lembranças.<br />

O serialismo articula uma repetição conceitual. Ela está presente<br />

no serialismo e bloqueia tanto as diferenças presentes na<br />

materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> do objeto quanto as diferenças<br />

presentes no próprio observador (FERRAZ, 1998, p.50).<br />

Entretanto, o grau <strong>de</strong> redundância rítmica <strong>de</strong> uma obra<br />

do<strong>de</strong>cafônica, se compara<strong>da</strong> à rítmica <strong>da</strong> música popular,<br />

é, sob o ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> percepção, muito mais sutil<br />

e muito mais complexa, sem dúvi<strong>da</strong>. Por isso a rítmica<br />

do<strong>de</strong>cafônica não servia diretamente aos propósitos <strong>de</strong><br />

Guerra-Peixe, uma vez que o público com o qual ele<br />

convivia havia se habituado à redundância <strong>da</strong> rítmica<br />

popular, freqüente também nas obras dos nacionalistas.<br />

Assim, à falta <strong>de</strong> estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> rítmica do Quarteto<br />

Misto e do Noneto, ambas <strong>de</strong> 1945, contrapõe-se o<br />

“ritmo dinâmico” do Duo para flauta e violino, <strong>de</strong> 1947,<br />

consi<strong>de</strong>rado por Guerra-Peixe um <strong>de</strong> seus melhores<br />

trabalhos: “(...) como alguns quadros <strong>de</strong> Augusto<br />

Rodrigues, [o Duo] tem bastante uni<strong>da</strong><strong>de</strong> formal e, o que<br />

é mais importante, certa comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong>” (GUERRA-<br />

PEIXE, 1971, V, p.3). Devemos lembrar que estas obras <strong>de</strong><br />

1945 - Quarteto Misto e Noneto -, foram modifica<strong>da</strong>s<br />

em 1947 <strong>de</strong>vido à insatisfação do compositor com o alto<br />

grau <strong>de</strong> diluição rítmica (GUERRA-PEIXE, 1971, V, p.3).<br />

Ain<strong>da</strong> na carta anteriormente cita<strong>da</strong>, Guerra-Peixe referese<br />

à diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> rítmica <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contemporâneas<br />

como um valor estético que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sprezado pela<br />

música do<strong>de</strong>cafônica: “Ora, se os povos sentem tanto o<br />

fator rítmico, por que nossa música não há <strong>de</strong> refletir<br />

este sentimento?”. Formula<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa maneira, a pergunta<br />

<strong>de</strong> Guerra-Peixe nos <strong>de</strong>svia <strong>de</strong> sua questão essencial, pois,<br />

nela, o compositor se coloca <strong>de</strong> fora do sentimento dos<br />

povos e, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele compartilhava tal sentimento.<br />

Parece-nos que a questão subjacente à pergunta envia<strong>da</strong><br />

a seu interlocutor Curt Lange é: Ora, se nós brasileiros<br />

e latino-americanos sentimos tanto o fator rítmico, por<br />

que minha música não po<strong>de</strong> refletir tal sentimento? Não<br />

po<strong>de</strong>mos pensar Guerra-Peixe como alguém indiferente<br />

ou mesmo distante <strong>da</strong>s transformações rítmicas em sua<br />

cultura. Pela correspondência com Curt Lange e pelo<br />

conteúdo <strong>de</strong> outros documentos pesquisados, po<strong>de</strong>mos<br />

afirmar que Guerra-Peixe sempre foi um pesquisador<br />

<strong>de</strong> ritmos, cujas primeiras coletas surgiram ain<strong>da</strong> na<br />

infância 9 . Sua música, embora possua um conteúdo<br />

harmônico singular, soa essencialmente rítmica.<br />

O ritmo também foi tema <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> crítica <strong>da</strong><br />

pianista e compositora Eunice Katun<strong>da</strong>, logo após sua<br />

ruptura com o do<strong>de</strong>cafonismo e com o Grupo <strong>Música</strong><br />

Viva. Em seu texto “Atonalismo, do<strong>de</strong>cafonismo e música<br />

nacional”, publicado em 1952 na Revista Fun<strong>da</strong>mentos,<br />

Katun<strong>da</strong> recorreu ao exemplo <strong>da</strong>s manifestações<br />

populares – “exauri<strong>da</strong>s” no “mundo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte que<br />

produziu Schoenberg” - para legitimar sua crítica ao<br />

ritmo <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica:<br />

(...). Ora, o ritmo na música do<strong>de</strong>cafônica, é quase sempre<br />

construído, calculado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suas partículas mínimas. Ao passo<br />

que na música nacional, principalmente naquela <strong>da</strong>s nações on<strong>de</strong><br />

há maior varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> música popular e folclórica, vivos,<br />

atuais como na música brasileira, na música húngara, na espanhola,<br />

na russa (...), o ritmo está no nosso sangue, é instintivo. Não<br />

precisamos recorrer a processos cerebralísticos e construtivistas<br />

para transformar em música as fórmulas vivas <strong>da</strong> rítmica nacional,<br />

as nossas síncopas, as alternâncias e superposições <strong>de</strong> três contra<br />

dois, tão <strong>de</strong> nosso gosto tanto no campo como na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nossa<br />

música é ain<strong>da</strong> produto <strong>da</strong>quela fusão <strong>de</strong> consciência, sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e instinto, que constitui o i<strong>de</strong>al do homem íntegro, <strong>de</strong> que nos<br />

fala Goethe. Nós não somos produto <strong>da</strong>quele mundo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte,<br />

que produziu Schoenberg, mundo exaurido e esgotado que nega o<br />

futuro, que recorre à música para fugir à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, atingindo até os<br />

extremos do expressionismo, do atonalismo e do do<strong>de</strong>cafonismo,<br />

excluindo o popular, o natural, para encerrar-se na erudição <strong>de</strong><br />

elite <strong>de</strong> classe. (...) Nós que cantamos, que <strong>da</strong>nçamos a música


Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

popular, nós que gostamos <strong>da</strong> repetição, dos estribilhos, dos<br />

temas simples e acessíveis <strong>da</strong> música <strong>de</strong> nosso povo, para quem a<br />

arte musical é uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> e não um gozo <strong>de</strong> sibaritas, que<br />

iríamos fazer com essa ânsia do novo pela novi<strong>da</strong><strong>de</strong> - que proíbe a<br />

repetição -, com a dissonância, o fragmentário, o problemático e o<br />

incompreensível? 10 (KATUNDA apud KATER, 2001:b, p.70 - 71).<br />

Formula<strong>da</strong>s em contextos diferentes, a argumentação<br />

<strong>de</strong> Katun<strong>da</strong> contra o ritmo <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica é<br />

semelhante à <strong>de</strong> Guerra-Peixe, embora guar<strong>de</strong> um teor<br />

político mais acentuado em virtu<strong>de</strong> dos acontecimentos<br />

antece<strong>de</strong>ntes à sua <strong>de</strong>claração, como o “Apelo do II<br />

Congresso <strong>de</strong> Praga” (1948), a “Carta Aberta” <strong>de</strong> Camargo<br />

Guarnieri (1950) e a diluição <strong>da</strong> ala forte do Grupo <strong>Música</strong><br />

Viva, esta também conseqüência do referido Congresso 11 .<br />

Ressaltando a influência <strong>de</strong> aspectos culturais na criação<br />

artística musical, Katun<strong>da</strong> se posicionou <strong>de</strong> maneira<br />

favorável à manutenção <strong>da</strong> estética nacionalista a qual,<br />

naquele momento, correspondia à “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira expressão”<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social brasileira. A varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ritmos<br />

criados e transformados espontaneamente nas culturas<br />

bastava à i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong> música artística nacional,<br />

sem precisar “recorrer aos processos cerebralísticos<br />

e construtivistas <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica”, como<br />

mencionado acima pela compositora.<br />

Eunice Katun<strong>da</strong> não teme em compartilhar do gosto do<br />

povo relativo à repetição, aos estribilhos, aos temas simples<br />

e acessíveis, ao contrário <strong>da</strong> hesitação <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong><br />

por Guerra-Peixe em sua carta a Curt Lange, em 9 <strong>de</strong><br />

maio <strong>de</strong> 1947. Hesitação esta que, assim como ocorreu<br />

com Katun<strong>da</strong>, se transformou em convicção a partir <strong>de</strong><br />

1950, quando Guerra-Peixe abandonou <strong>de</strong>finitivamente<br />

o do<strong>de</strong>cafonismo em virtu<strong>de</strong>, naturalmente, <strong>de</strong> sua<br />

insatisfação pessoal, mas, sem dúvi<strong>da</strong>, por influência<br />

direta <strong>da</strong>s práticas musicais <strong>da</strong> cultura pernambucana 12 .<br />

3. <strong>Música</strong> n.1 (1945) 13<br />

Para exemplificarmos o trabalho <strong>de</strong> conciliação<br />

do compositor no âmbito <strong>da</strong> estruturação rítmica,<br />

selecionamos um excerto <strong>da</strong> <strong>Música</strong> n.1, para piano solo,<br />

composta em 1945.<br />

A <strong>Música</strong> n.1 é construí<strong>da</strong> sob princípios do<strong>de</strong>cafônicos<br />

- emprego <strong>da</strong>s quatro formas <strong>da</strong> série geradora -,<br />

estrategicamente conciliados com princípios estruturais<br />

e formais <strong>da</strong> música tonal tradicional. Esta conciliação se<br />

faz presente já na própria concepção <strong>da</strong> série geradora.<br />

Segundo Guerra-Peixe, a série <strong>de</strong>sta obra “possibilita uma<br />

realização harmônica coerente e, sobretudo, acusticamente<br />

aceitável por ouvidos menos ‘avançados’” (GUERRA-PEIXE,<br />

1971, V, p.12). Significa que a série foi construí<strong>da</strong> tendo<br />

como parâmetro a formação <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s <strong>da</strong> harmonia tonal.<br />

Tais acor<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser vistos na figura abaixo:<br />

Visando garantir ain<strong>da</strong> mais a recepção <strong>de</strong> sua música pelos<br />

ouvidos “menos avançados”, além <strong>da</strong>s harmonias tonais,<br />

Guerra-Peixe emprega, no segundo movimento <strong>da</strong> <strong>Música</strong><br />

n.1, dois materiais (um formal, outro rítmico) <strong>de</strong>notativos<br />

<strong>de</strong> práticas musicais tradicionais e populares.<br />

Ex. 1: Acor<strong>de</strong>s extraídos <strong>da</strong> série geradora <strong>da</strong> <strong>Música</strong> n.1 - Curriculum Vitae do compositor, 1971, V, p.2<br />

Ex.2: Material com função <strong>de</strong> refrão em <strong>Música</strong> n.1, 2º movimento, c.1<br />

37


38<br />

Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

O primeiro é um motivo rítmico-melódico recorrente, em<br />

uníssono, funcionando como uma espécie <strong>de</strong> refrão. Este<br />

material aparece no c.1 do Allegro Giusto, (Ex.2), e <strong>de</strong>pois<br />

recorre nos c.11-13, c.19-20, c.54, c.56-57 e c.85.<br />

Tradicionalmente, o refrão é encontrado em músicas<br />

sob a forma Rondó, cuja origem po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>da</strong> aos<br />

trovadores provençais e “consta <strong>de</strong> um refrão repetido<br />

sempre na mesma tonali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> um número variável<br />

<strong>de</strong> coplas ou estrofes, diferentes entre si e <strong>de</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

varia<strong>da</strong>s” (MAGNANI, 1989, p.143). Esta estrutura <strong>da</strong><br />

forma-rondó é freqüente na música folclórica brasileira.<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ao expor algumas melodias populares<br />

em seu “Ensaio sobre a <strong>Música</strong> Brasileira”, menciona, por<br />

exemplo, que “o que caracteriza o côco e o <strong>de</strong>termina em<br />

geral é o refrão” (M. ANDRA<strong>DE</strong>, 1972, p.108).<br />

No caso <strong>da</strong> <strong>Música</strong> n.1, o refrão não é repetido <strong>de</strong><br />

maneira literal, ocorrem variações <strong>de</strong> notas, <strong>de</strong> ritmo, <strong>de</strong><br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas o caráter é mantido e reforçado pelo<br />

fato <strong>de</strong>le aparecer sempre em uníssono. Sob o ponto <strong>de</strong><br />

vista <strong>da</strong> escuta, o refrão exerce um papel importante<br />

na medi<strong>da</strong> em que a ca<strong>da</strong> aparição, ele é reconhecido<br />

pela memória que, imediatamente, o relaciona com os<br />

eventos do passado, do presente e mesmo do futuro<br />

através <strong>da</strong> projeção, como discutido anteriormente. Ele<br />

é, sem dúvi<strong>da</strong>, uma ferramenta que auxilia o ouvinte na<br />

apreensão do discurso musical.<br />

O segundo material, e que diz respeito diretamente ao<br />

tratamento do ritmo, é um <strong>de</strong>senho sugestivo dos padrões<br />

rítmicos e do swing do jazz tradicional norte-americano,<br />

aparecendo <strong>de</strong> forma explícita a partir do c.60, na região<br />

grave do piano, permanecendo até o c.83. Com este<br />

material rítmico em forma <strong>de</strong> ostinato, o compositor<br />

<strong>de</strong>senvolveu uma polifonia a duas vozes distintas - uma<br />

na região grave, outra na região agu<strong>da</strong> do piano -, <strong>de</strong><br />

caráter “improvisatório”, numa analogia à improvisação<br />

instrumental jazzística.<br />

Para os compositores nacionalistas, o jazz que vinha<br />

sendo disseminado no Brasil era mais um <strong>de</strong>ntre os vários<br />

produtos impostos pelo mercantilismo <strong>da</strong> indústria cultural<br />

norte-americana. Neste sentido, a correspondência com o<br />

“imperialismo” norte-americano fazia do jazz uma ameaça<br />

ao caráter fisionômico e “hegemônico” <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

brasileira. Segundo WISNIK (1983), o nacionalismo<br />

musical brasileiro tinha dois fortes inimigos:<br />

(...) o primeiro, <strong>de</strong>clarado, é a vanguar<strong>da</strong> do<strong>de</strong>cafônica,<br />

antagonista no nível formal e no nível <strong>de</strong> projeto cultural, pois<br />

serviria para aguçar a distância entre a música e a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. O<br />

outro, enviesado, é a própria música popular urbana, empolga<strong>da</strong><br />

no cal<strong>de</strong>irão espúrio do mercado internacional, que dilapi<strong>da</strong>ria<br />

as fontes puras do espírito nacional, capazes <strong>de</strong> imprimir uma<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> “psicológica” à expressão musical do país como um<br />

todo (...). (WISNIK, 1983, p. 31).<br />

Entretanto, Guerra-Peixe, enquanto músico <strong>de</strong> rádio e em<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional, mantinha contato<br />

direto com gêneros musicais populares, nacionais e<br />

internacionais, permitindo-lhe uma leitura diferente<br />

<strong>da</strong>quela forja<strong>da</strong> pelos nacionalistas. Para ele, <strong>de</strong>ntro<br />

do universo <strong>da</strong> música popular, o jazz correspondia à<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong> musical <strong>da</strong> época. Como algo novo e, ao mesmo<br />

tempo, assimilável aos ouvidos <strong>de</strong> sua cultura, infiltrar o<br />

jazz em suas obras do<strong>de</strong>cafônicas parecia-lhe uma forma<br />

eficiente <strong>de</strong> assegurar não só a comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> como<br />

também o caráter renovador <strong>de</strong> sua música.<br />

Ex.3: Alusão à rítmica do jazz tradicional norte-americano em <strong>Música</strong> n.1 2º movimento, c.60- 67


Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

Em seu primeiro artigo publicado na Revista <strong>Música</strong> Viva<br />

n.12 — “Aspectos <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Popular” —, em janeiro <strong>de</strong><br />

1947, Guerra-Peixe se posicionou a favor <strong>da</strong> disseminação<br />

do jazz na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, esboçando aspectos <strong>de</strong><br />

sua origem e relacionando-o com gêneros instrumentais<br />

<strong>da</strong> música popular urbana do Brasil. Este artigo, segundo<br />

nos relata Guerra-Peixe, parece não ter agra<strong>da</strong>do a crítica<br />

<strong>de</strong> tendência nacionalista:<br />

(...). A colaboradora musical do CORREIO DA NOITE - a besta<br />

quadra<strong>da</strong> LAURA <strong>DE</strong> FIGUEIREDO, do Conservatório do Lorenzo<br />

[Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Música</strong>] e aluna do Newton Pádua<br />

[ex-professor <strong>de</strong> composição <strong>de</strong> Guerra-Peixe] – tem comentado<br />

o meu primeiro artigo <strong>de</strong> <strong>MÚSICA</strong> VIVA, sobre a música popular.<br />

Ela <strong>de</strong>ixa as frases incompletas, para comentar em <strong>de</strong>sacordo,<br />

distorcendo o sentido <strong>da</strong>s coisas. Diz muita asneira. Mas, po<strong>de</strong><br />

ser que o errado seja eu, no assunto (...). (Carta <strong>de</strong> Guerra-Peixe<br />

a Curt Lange. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1947).<br />

Mais tar<strong>de</strong>, porém, Guerra-Peixe mudou radicalmente sua<br />

opinião em relação aos gêneros musicais “estrangeiros”.<br />

No artigo escrito e publicado em 1953 na Revista<br />

Fun<strong>da</strong>mentos 14 , o compositor <strong>de</strong>clarou ter cometido um<br />

equívoco no artigo escrito em 1947, publicado na Revista<br />

<strong>Música</strong> Viva n.12, passando, então, a endossar o tom<br />

xenófobo do discurso nacionalista a respeito do jazz.<br />

O projeto <strong>de</strong> Guerra-Peixe para a criação <strong>de</strong> uma música<br />

do<strong>de</strong>cafônica mais acessível aos ouvidos <strong>de</strong> sua época,<br />

buscando na cultura os subsídios necessários, foi,<br />

gra<strong>da</strong>tivamente, se intensificando. A partir <strong>de</strong> 1946 o<br />

compositor expan<strong>de</strong> seu projeto <strong>da</strong> “cor nacional”, até então<br />

centrado no âmbito <strong>da</strong> estruturação rítmica e melódica,<br />

através do uso sistemático <strong>de</strong> séries simétricas 15 :<br />

(...). Na técnica dos doze sons, com série simétrica (pois só<br />

tenho composto <strong>de</strong>ssa forma, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Trio <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s - com<br />

exceção na Sinfonia n.1) procuro <strong>da</strong>r “cor” nacional às minhas<br />

obras, caracterizando também, o meu estilo. Não é por meio<br />

<strong>da</strong> simples “cópia” <strong>da</strong> música popular, mas por meio <strong>de</strong> certa<br />

correspondência melódica e rítmica, que julgo ser o caminho<br />

para trabalhar pró-música nacional. (Consi<strong>de</strong>rando-se isto,<br />

naturalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o advento do atonalismo). Da música do<br />

povo procuro colher as sugestões que ela me possa <strong>da</strong>r, evitando<br />

submeter-me a um regionalismo. (Carta <strong>de</strong> Guerra-Peixe a Curt<br />

Lange. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 24 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1947).<br />

A expressão “trabalhar pró-música nacional” não <strong>de</strong>ve<br />

ser entendi<strong>da</strong> como sinônimo <strong>de</strong> “trabalhar a favor <strong>da</strong><br />

música nacionalista”, mas, sim, a favor <strong>da</strong> renovação<br />

<strong>da</strong> linguagem musical erudita brasileira através do<br />

atonalismo. Como enfatizado, o projeto <strong>da</strong> “cor nacional”<br />

através <strong>da</strong>s conciliações rítmicas (e melódicas) visava a<br />

criação <strong>de</strong> uma música mo<strong>de</strong>rna — por meio dos recursos<br />

do idioma atonal-serial-do<strong>de</strong>cafônico — sem prejuízo <strong>da</strong><br />

comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong> com seu público.<br />

4. Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Além <strong>da</strong> preocupação com a comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos<br />

interpretar a alusão a gêneros musicais populares e a<br />

elementos formais tradicionais <strong>da</strong> música erudita no<br />

contexto <strong>de</strong> uma obra do<strong>de</strong>cafônica também como uma<br />

forma do compositor expressar a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> estéticomusical<br />

urbana dos anos 1940 — <strong>da</strong> qual ele participava<br />

— e que os nacionalistas pareciam negar.<br />

Guerra-Peixe se formou em meio à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos sons<br />

<strong>de</strong> sua cultura: música tonal clássico-romântica, música<br />

tonal-mo<strong>da</strong>l folclórica, música tonal nacionalista, música<br />

atonal-do<strong>de</strong>cafônica; em meio à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos<br />

espaços: rádios, orquestras, instituições <strong>de</strong> ensino, bares,<br />

cassinos, salas <strong>de</strong> concerto; em meio à multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> cores e formas: artes plásticas, cinema, fotografia,<br />

literatura. Seu estilo e suas opções estéticas expressam<br />

e são motivados por esta multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural, muito<br />

embora não fossem por ela <strong>de</strong>terminados.<br />

Assim como ocorre na dinâmica própria <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cultural, o termo “conciliar” - empregado por nós para<br />

<strong>de</strong>signar as estratégias <strong>de</strong> Guerra-Peixe - implica<br />

em coexistência não hierárquica e não unificadora.<br />

Na conciliação, os elementos musicais coexistem e<br />

se dinamizam a partir do contato entre si, revelando<br />

novas potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>s e adquirindo novas funções. Por<br />

exemplo, o ritmo do jazz norte-americano na <strong>Música</strong><br />

n.1, consi<strong>de</strong>rado uma representação <strong>da</strong> música popular,<br />

ao sair <strong>de</strong> seu contexto e levado ao contexto <strong>da</strong> música<br />

do<strong>de</strong>cafônica torna-se uma outra representação, ain<strong>da</strong><br />

que guar<strong>de</strong> sua essência original, pois “a mesma coisa<br />

não é mais exatamente a mesma, mesmo se não sofreu<br />

nenhuma alteração, pelo fato <strong>de</strong> que existe num outro<br />

tempo” (CASTORIADIS, 1987:a, p.227).<br />

A existência em um outro tempo pressupõe a existência<br />

também em um outro contexto social ou em outro contexto<br />

histórico-musical. Nesta perspectiva, interpretamos as<br />

conciliações estéticas <strong>de</strong> Guerra-Peixe como coexistência<br />

<strong>de</strong> diferentes representações histórico-musicais que se<br />

alteram constantemente no contato entre si. Este processo<br />

<strong>de</strong> auto-alteração, além <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

cultural <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> brasileira, realça a forma estratégica<br />

encontra<strong>da</strong> pelo compositor para se dirigir e propor uma<br />

nova sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> musical para o público <strong>de</strong> sua época.<br />

39


40<br />

Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

Referências<br />

ANDRA<strong>DE</strong>, Mário <strong>de</strong>. Ensaio sobre a música brasileira. 3.ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972.<br />

ASSIS, Ana Cláudia. Os Doze Sons e a Cor Nacional: Conciliações estéticas e culturais na produção musical <strong>de</strong> César Guerra-<br />

Peixe (1944-1954). 2006. 268f. Tese (Doutorado em História) – Departamento <strong>de</strong> História, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia e<br />

Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.<br />

BOLETIM LATINO-AMERICANO <strong>DE</strong> MÙSICA. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imprensa Nacional, Tomo VI, abril, 1946. 606p.<br />

BOSI, A. O Tempo e os Tempos. In NOVAES, A. (org.) Tempo e História. p.19-32. São Paulo: Cia. <strong>da</strong>s Letras, 1992.<br />

BOSI, Ecléa. Memória e Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>: Lembranças <strong>de</strong> Velhos. São Paulo: TA Queiroz, 1979.<br />

CASTORIADIS, Cornelius. A lógica conjuntista ou i<strong>de</strong>ntitária. In As Encruzilha<strong>da</strong>s do Labirinto 1. Tradução <strong>de</strong> Carmem<br />

Sylvia Gue<strong>de</strong>s e Rosa Maria Boaventura. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1987(a). vol. I, seção II, p.217-226.<br />

FARIA Jr., Antônio Guerreiro <strong>de</strong>. Guerra-Peixe e as idéias <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>: uma revelação.<br />

Debates Ca<strong>de</strong>rnos do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Música</strong>. CLA/UNI-RIO, n.2, p.63-72, junho, 1998.<br />

FERRAZ, Silvio. <strong>Música</strong> e Repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: Educ: FAPESP, 1998.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Aspectos <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Popular. Revista <strong>Música</strong> Viva. Rio <strong>de</strong> Janeiro, n.12, p. 01-09, janeiro, 1947.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Curriculum Vitae. Belo Horizonte: Biblioteca <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, 1971, I. 5 f. Texto<br />

<strong>da</strong>tilografado.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Curriculum Vitae - Catálogo <strong>de</strong> obras. Belo Horizonte: Biblioteca <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>,<br />

1971, VI. 21 f. Texto <strong>da</strong>tilografado.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Curriculum Vitae – Principais traços evolutivos <strong>da</strong> produção musical. Belo Horizonte: Biblioteca <strong>da</strong><br />

<strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, 1971, V. 12 f. Texto <strong>da</strong>tilografado.<br />

GUERRA-PEIXE, César e LANGE, Francisco Curt. Correspondência (1946-1985). Acervo Curt Lange, Biblioteca Universitária<br />

<strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>: Série Correspondências.176f.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Que ismo é esse, Koellreutter? Fun<strong>da</strong>mentos. São Paulo, n.31, p.33-35, jan., 1953.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Relação Cronológica <strong>de</strong> Composições, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1944. Belo Horizonte: Biblioteca <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, 1993, 51f. Texto manuscrito.<br />

KATER Carlos. <strong>Música</strong> Viva e H.J.Koellreutter: movimentos em direção à mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. São Paulo: Atravez/Musa, 2001a.<br />

KATER Carlos. Eunice Katun<strong>da</strong>: musicista brasileira. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2001b.<br />

KRIEGER, Edino. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1989. 2 fitas cassete (60 min.). Entrevista concedi<strong>da</strong> a Carlos Kater.<br />

MAGNANI, Sérgio. Expressão e Comunicação na Linguagem <strong>da</strong> <strong>Música</strong>. Belo Horizonte: <strong>UFMG</strong>, 1989.<br />

REIS, José Carlos. Nouvelle Histoire e Tempo Histórico: A Contribuição <strong>de</strong> Febvre, Bloch e Brau<strong>de</strong>l. São Paulo: Ática, 1994.<br />

RICOEUR, Paul. Temps et Récit. Paris: Seuil, 1985.<br />

ROSA, Robervaldo Linhares. Obras do<strong>de</strong>cafônicas para piano <strong>de</strong> compositores do Grupo <strong>Música</strong> Viva: H.J. Koellreutter, Cláudio<br />

Santoro, César Guerra-Peixe e Edino Krieger – uma proposta interpretativa. 2001. 113 f. Dissertação (Mestrado em <strong>Música</strong><br />

Brasileira, Práticas Interpretativas), Instituto <strong>de</strong> Letras e Artes <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2001.<br />

SEINCMAN, Eduardo. Do Tempo Musical. São Paulo: Via Lettera: FAPESP, 2001.<br />

WEBERN, Anton. O Caminho para a música nova. Tradução, introdução e notas <strong>de</strong> Carlos Kater. São Paulo: Novas<br />

Metas, 1984.<br />

WISNIK, José Miguel. O Mo<strong>de</strong>rnismo e a música. Sete Ensaios sobre o mo<strong>de</strong>rnismo. p.29-38. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FUNARTE,<br />

1983.<br />

Partituras:<br />

GUERRA-PEIXE, César. Dez Bagatelas. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1946. Piano. Manuscrito.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Miniaturas n.3. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1948. Piano. Manuscrito.<br />

GUERRA-PEIXE, César.<strong>Música</strong> n.1. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1945. Piano. Manuscrito.<br />

GUERRA-PEIXE, César. Quatro Bagatelas. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1944. Piano. Manuscrito.<br />

Ana Cláudia <strong>de</strong> Assis é Doutora em História pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais e Professora Adjunta <strong>da</strong> <strong>Escola</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong> (<strong>UFMG</strong>). Como pianista <strong>de</strong>dica-se ao repertório brasileiro contemporâneo, sendo responsável por estréias <strong>de</strong><br />

obras <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Prado, Guerra-Peixe e Eunice Katun<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ntre outros. Seus projetos <strong>de</strong> pesquisa, voltados à produção<br />

musical brasileira, buscam conciliar a prática musicológica com a prática interpretativa. Atualmente integra o Grupo<br />

Instrumental Oficina <strong>Música</strong> Viva, criado em 2006.


Assis, A. C. <strong>de</strong>. Compondo a “cor nacional”: conciliações estéticas e culturais na música ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 33-41<br />

Notas<br />

1 O tema <strong>de</strong>ste artigo foi <strong>de</strong>senvolvido em nossa tese <strong>de</strong> doutorado, intitula<strong>da</strong> Os Doze Sons e a Cor Nacional: Conciliações estéticas e culturais na<br />

produção musical <strong>de</strong> César Guerra-Peixe (1944-1954), realiza<strong>da</strong> no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História (FAFICH-<strong>UFMG</strong>), sob orientação <strong>da</strong><br />

professora Dra. Regina Horta.<br />

2 No período em que Guerra-Peixe esteve vinculado ao <strong>Música</strong> Viva compôs cerca <strong>de</strong> 49 obras basea<strong>da</strong>s na técnica do<strong>de</strong>cafônica <strong>de</strong> composição,<br />

contemplando diferentes formações instrumentais, <strong>de</strong>ntre elas, instrumentos solistas, duos, trios, quartetos <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>, noneto e orquestra (ASSIS,<br />

2006).<br />

3 Entrevista <strong>de</strong> Edino Krieger a Carlos Kater em 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1989. 2 Fitas cassete, localiza<strong>da</strong>s no Laboratório <strong>de</strong> Musicologia e Etnomusicologia<br />

<strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>.<br />

5 O termo “comunicabili<strong>da</strong><strong>de</strong>” é empregado pelo compositor em diversos documentos com os quais trabalhamos (correspondência, currículo, artigos,<br />

<strong>de</strong>ntre outros).<br />

6 Expressões emprega<strong>da</strong>s por Camargo Guarnieri na Carta Aberta <strong>de</strong> 1950. Ver KATER (2001, p.119 -124).<br />

7 Esteban Eitler (1913-1960), flautista argentino com intensa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> junto ao movimento <strong>Música</strong> Viva, foi responsável pela interpretação <strong>de</strong><br />

aproxima<strong>da</strong>mente 16 músicas nas programações radiofônicas <strong>Música</strong> Viva. Ver ASSIS, 2006.<br />

8 Isso não implica na ausência total <strong>de</strong> repetições, pois, segundo WEBERN (1984), a “apreensibili<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong> uma obra só é garanti<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong><br />

repetições. Porém, no caso <strong>da</strong> música do<strong>de</strong>cafônica, a repetição literal <strong>de</strong> configurações melódicas ou rítmicas é muito mais sutil que na música tonal<br />

tradicional.<br />

9 A este respeito, ver FARIA JR. (1998).<br />

10 Esta última frase foi reescrita por Kater, pois, no original, seu sentido estava confuso: “(...) que iríamos fazer com essa ânsia do novo pela novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, que<br />

proíbe a repetição, a dissonância, o fragmentário, o problemático e o incompreensível?” (KATER, 2001:b, p.71).<br />

11 O texto <strong>de</strong> Katun<strong>da</strong> parece-nos, <strong>de</strong> certa maneira, uma ratificação <strong>da</strong> Carta Aberta <strong>de</strong> Guarnieri.<br />

12 Guerra-Peixe mudou-se do Rio <strong>de</strong> Janeiro para o Recife às vésperas do carnaval <strong>de</strong> 1950, a convite <strong>de</strong> trabalho <strong>da</strong> Rádio Jornal do Comércio <strong>de</strong> Recife,<br />

permanecendo na capital pernambucana até início <strong>de</strong> 1953.<br />

13 O manuscrito original <strong>da</strong> <strong>Música</strong> n.1 encontra-se na Biblioteca Nacional do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Cópias po<strong>de</strong>m ser encontra<strong>da</strong>s na Biblioteca do Instituto<br />

<strong>de</strong> Letras e Artes <strong>da</strong> UNI-RIO e na Biblioteca <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>.<br />

14 O título do artigo publicado em Fun<strong>da</strong>mentos é “Que ismo é esse, Koelreutter?” (1953). Um ano antes, em 1952, Eunice Katun<strong>da</strong> publicou, no mesmo<br />

periódico, o texto “Atonalismo, do<strong>de</strong>cafonia e música nacional”, já comentando neste artigo.<br />

15 Obtêm-se uma série simétrica quando a relação intervalar <strong>da</strong>s seis últimas notas <strong>da</strong> série é análoga à relação <strong>da</strong>s seis primeiras. Exemplo <strong>da</strong> série<br />

geradora <strong>de</strong> Dez Bagatelas (1946) para piano solo: Mib, Fá, Ré, Sol, Dó, Sib - Lá, Si, Sol#, Dó#, Fá#, Mi (1ª meta<strong>de</strong>: 2ªM↑, 3ªm↑, 4ªJ↑, 5ªJ↑, 2ªM↑; 2ª<br />

meta<strong>de</strong>: 2ªM↑, 3ªm↑, 4ªJ↑, 5ªJ↑, 2ªM↑).<br />

41


42<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires<br />

durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920: mo<strong>de</strong>rnismo,<br />

recepción y campo musical 1<br />

silvina luz Mansilla<br />

(Facultad <strong>de</strong> Artes y Ciencias Musicales; Universi<strong>da</strong>d Católica Argentina, Buenos Aires, Argentina)<br />

silvina_mansilla@uca.edu.ar<br />

Resumen: Estudio en torno a la primera visita <strong>de</strong> H. Villa-Lobos a Buenos Aires, ocurri<strong>da</strong> en 1925 por invitación <strong>de</strong> la<br />

Asociación Wagneriana y la Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong> Conciertos. Se analiza la repercusión en la crítica especializa<strong>da</strong> y el<br />

impacto que su obra causó en la activi<strong>da</strong>d musical local, hallando opiniones encontra<strong>da</strong>s: algunas positivas y otras <strong>de</strong><br />

reserva o pru<strong>de</strong>nte abstención. Se concluye que aquellas marchas y contramarchas en torno a la valoración <strong>de</strong> su obra,<br />

estaban <strong>de</strong>jando avizorar ya un campo musical incipiente en el que, no mucho tiempo <strong>de</strong>spués, se produciría la primera<br />

fractura entre tradición y mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Argentina.<br />

Palabras clave: Villa-Lobos, Buenos Aires, recepción musical, mo<strong>de</strong>rnismo, campo musical, conciertos.<br />

Heitor Villa-lobos in Buenos aires during the 1920s: mo<strong>de</strong>rnism, reception and musical field<br />

abstract: This study explores the significance of Heitor Villa-Lobos´s first visit to Buenos Aires in 1925, following an<br />

invitation from the Asociación Wagneriana and the Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong> Conciertos. The paper discusses the reaction to<br />

his work among specialized music critics and the impact it ma<strong>de</strong> on the local music scene. Opinions were positive in some<br />

instances but reserved or noncommittal in others. The author conclu<strong>de</strong>s that the critics were disregarding the changing<br />

ground in music where a break between tradition and mo<strong>de</strong>rnity in Argentina would happen not too long afterwards.<br />

Villa-Lobos, Buenos Aires, musical reception, mo<strong>de</strong>rnism, musical scene, concert life.<br />

1 - introducción<br />

En un artículo <strong>de</strong> 1921 aparecido en la revista porteña<br />

El Hogar, Julián Aguirre - uno <strong>de</strong> los músicos más<br />

representativos <strong>de</strong>l primer nacionalismo musical<br />

argentino - lamentaba, al comentar el contenido <strong>de</strong> un<br />

concierto <strong>de</strong> música <strong>de</strong> autores brasileños realizado en<br />

Buenos Aires por iniciativa <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong><br />

<strong>Música</strong> y refiriéndose a Villa-Lobos, “la ausencia <strong>de</strong> obras<br />

más importantes <strong>de</strong> este original compositor” (GARCIA<br />

MUÑOZ, 1970, 46). 2<br />

Desgracia<strong>da</strong>mente, no llegaría a ver satisfecha su<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>. Esos primeros intercambios musicales<br />

argentino-brasileños ocurridos en 1921 y los siguientes,<br />

ocurridos en 1922 a raíz <strong>de</strong> los festejos <strong>de</strong>l Centenario<br />

<strong>de</strong> la in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia brasileña, culminarían con la primer<br />

visita <strong>de</strong> Heitor Villa-Lobos a Buenos Aires sólo en<br />

1925, casi un año <strong>de</strong>spués <strong>de</strong>l fallecimiento <strong>de</strong> Aguirre.<br />

Invitado por dos instituciones priva<strong>da</strong>s, 3 la Asociación<br />

Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires y la Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong><br />

Conciertos, se brin<strong>da</strong>rían en tres sesiones varias muestras<br />

<strong>de</strong> la producción, to<strong>da</strong>vía juvenil, <strong>de</strong>l músico brasileño.<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

El primer concierto fue más bien una audición informal<br />

realiza<strong>da</strong> en la Embaja<strong>da</strong> <strong>de</strong> Brasil, don<strong>de</strong> a<strong>de</strong>más <strong>de</strong><br />

obras <strong>de</strong> cámara el propio Villa-Lobos ejecutó el piano.<br />

El segundo, realizado en el Salón La Argentina, se integró<br />

asimismo con obras pianísticas y para conjuntos <strong>de</strong><br />

cámara. Finalmente, el tercero, en el Teatro O<strong>de</strong>ón, incluyó<br />

obras <strong>de</strong> un orgánico mayor como el Nonetto, que había<br />

sido estrenado en París en 1923. 4<br />

Si bien se han documentado cinco estadías <strong>de</strong> Villa-Lobos<br />

en Buenos Aires, en los años 1925, 1935, 1940, 1946 y<br />

1952 (VALENTI FERRO, 1992 y CAAMAÑO, 1969), el<br />

presente trabajo abor<strong>da</strong> el estudio <strong>de</strong> la repercusión en la<br />

crítica especializa<strong>da</strong> que alcanzó la primera presencia <strong>de</strong><br />

Villa-Lobos en Buenos Aires, in<strong>da</strong>gando el impacto que su<br />

obra causó en la activi<strong>da</strong>d musical local. 5 Los lineamientos<br />

teóricos que subyacen en la propuesta combinan nociones<br />

provenientes <strong>de</strong> la teoría <strong>de</strong> la recepción (Hans Robert<br />

Jauss y Wolfgang Iser) con algunas <strong>de</strong> las ya clásicas<br />

nociones sobre sociología <strong>de</strong>l arte, aporta<strong>da</strong>s por el<br />

pensador francés Pierre Bourdieu. 6<br />

Recebido em: 11/03/2007 - Aprovado em: 20/12/2007


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

Poco o na<strong>da</strong> es lo que se ha estudiado hasta el presente<br />

en materia <strong>de</strong> procesos <strong>de</strong> recepción artística producidos<br />

en el campo musical durante el periodo <strong>de</strong> entreguerras<br />

entre el mo<strong>de</strong>rnismo brasileño y la vanguardia argentina.<br />

No suce<strong>de</strong> lo mismo en los estudios sobre literatura y en<br />

las investigaciones sobre artes visuales, que a<strong>de</strong>lantan<br />

a la musicología local en estas cuestiones en, al menos,<br />

una déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> trabajo. Un recorrido bibliográfico somero<br />

<strong>da</strong> cuenta <strong>de</strong> viajes <strong>de</strong> confraterni<strong>da</strong>d cultural, <strong>de</strong><br />

alusiones a las expresiones culturales produci<strong>da</strong>s en el<br />

vecino país por parte <strong>de</strong> diversos medios gráficos <strong>de</strong> los<br />

años 20, <strong>de</strong> muestras y exposiciones que tanto allí como<br />

aquí intentaron fomentar esos intercambios estéticos<br />

y <strong>de</strong> la conformación progresiva <strong>de</strong> una visión global,<br />

latinoamericana, en búsque<strong>da</strong> <strong>de</strong> puntos <strong>de</strong> coinci<strong>de</strong>ncia<br />

culturales entre los diferentes territorios su<strong>da</strong>mericanos.<br />

Algo análogo suce<strong>de</strong>ría en el campo musical, tal como se<br />

lo trabaja en esta primera aproximación.<br />

Para la presente investigación se recaba información en<br />

la prensa periódica general y especializa<strong>da</strong> y se intenta<br />

interpretar, a la luz <strong>de</strong>l complejo contexto socio-cultural<br />

que se perfila <strong>de</strong>s<strong>de</strong> comienzos <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>l 20, la<br />

recepción <strong>de</strong> la producción <strong>de</strong>l compositor brasileño en<br />

el incipiente campo musical porteño <strong>de</strong> entonces. Como<br />

se adhiere al carácter dinámico que acarrea la noción<br />

bourdiana <strong>de</strong> campo, en el sentido <strong>de</strong> que éste se hallaría<br />

en permanente movimiento <strong>de</strong>bido a la pugna entre<br />

fuerzas que se entrechocan, se superponen y se agregan<br />

en su intención <strong>de</strong> llegar a convertirse en centrales, se<br />

intenta <strong>de</strong>mostrar a través <strong>de</strong>l análisis <strong>de</strong> la repercusión<br />

<strong>de</strong> la visita <strong>de</strong> Villa-Lobos a Buenos Aires ocurri<strong>da</strong> en<br />

1925, que no podría <strong>de</strong>mostrarse la existencia <strong>de</strong> tal<br />

situación para esa fecha en la vi<strong>da</strong> musical <strong>de</strong> esa ciu<strong>da</strong>d,<br />

sino sólo un estado previo, anterior, <strong>de</strong> latencia. 7<br />

Dejamos para otro estudio la cuestión <strong>de</strong> la relación entre<br />

Villa-Lobos y algunos creadores argentinos. Eduardo<br />

Storni (1988, p.60) afirma que el compositor brasileño<br />

fundó ya en ese primer viaje amista<strong>de</strong>s imperece<strong>de</strong>ras<br />

con Juan José Castro y sus hermanos, quienes fueron<br />

entusiastas difusores <strong>de</strong> su producción en Argentina y<br />

en otros países. En este sentido, no es un <strong>da</strong>to menor el<br />

hecho <strong>de</strong> que Juan José Castro escribiera Adiós a Villa-<br />

Lobos, para cuer<strong>da</strong>s y timbales como homenaje, a poco<br />

<strong>de</strong> fallecer el músico (1960) y que Alberto Ginastera<br />

incluyera un número con el título Homenaje a Heitor<br />

Villa-Lobos en su serie para piano Doce Preludios<br />

Americanos, opus 12, <strong>de</strong> 1944. 8<br />

2 - argentina y Brasil: relaciones musicales<br />

en torno a 1922<br />

En 1921, la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, una enti<strong>da</strong>d<br />

fun<strong>da</strong><strong>da</strong> en Argentina en 1915 por cuatro compositores<br />

enrolados en el nacionalismo musical y ganadores<br />

<strong>de</strong>l Premio Europa, 9 organizó una audición <strong>de</strong>dica<strong>da</strong><br />

a compositores brasileños en los salones <strong>de</strong>l Museo<br />

Nacional <strong>de</strong> Bellas Artes. Según comentó Julián Aguirre<br />

en su columna <strong>de</strong> la revista El Hogar (nº 606, 20-5-<br />

1921), aquella vela<strong>da</strong> había resultado “sumamente<br />

interesante” y había congregado “a una distingui<strong>da</strong> y<br />

numerosa concurrencia”. Su extensa nota a<strong>de</strong>más <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar el hecho puntual, resultó una invitación a<br />

profundizar y exten<strong>de</strong>r las relaciones artísticas entre<br />

Argentina y Brasil. Argumentando que su i<strong>de</strong>a no se <strong>de</strong>bía<br />

tan sólo a un <strong>de</strong>seo <strong>de</strong> “simple cortesía internacional”,<br />

sino que <strong>de</strong>scansaba en la actitud “doblemente grata”<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar que se trataba <strong>de</strong> arte “americano” el que<br />

estaba “ensalzando y aplaudiendo”, Aguirre se <strong>de</strong>dicó en<br />

esos párrafos a comentar enfáticamente la producción<br />

musical contemporánea brasileña.<br />

La combinación <strong>de</strong> las obras que tuvo aquel concierto fue<br />

al parecer, to<strong>da</strong>vía algo fortuita. Según escribió Aguirre, se<br />

ejecutó “lo que estaba al alcance” pues había aún una muy<br />

escasa difusión <strong>de</strong> partituras brasileñas en Buenos Aires. 10<br />

La audición estuvo patrocina<strong>da</strong> por el ministro <strong>de</strong> Brasil,<br />

Pedro <strong>de</strong> Toledo. Aguirre (El Hogar, nº 606, 20-5-1921),<br />

sabiendo su posición <strong>de</strong> crítico influyente y respetado,<br />

lo invitó a “oficializar to<strong>da</strong>s esas <strong>de</strong>mostraciones<br />

<strong>de</strong> intercambio artístico” a través <strong>de</strong> las socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

musicales y <strong>de</strong> la Comisión Nacional <strong>de</strong> Bellas Artes.<br />

Según él, esas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>bían encargarse <strong>de</strong> la difusión<br />

<strong>de</strong> la producción nacional en el extranjero evitando que<br />

“cualquier viajero, generalmente <strong>de</strong> escasa importancia,<br />

se arrogue la representación <strong>de</strong>l país” no teniendo en<br />

reali<strong>da</strong>d ese “valor representativo”. Entendía que las<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicales <strong>de</strong>bían <strong>da</strong>r a conocer a los músicos<br />

y producciones más importantes <strong>de</strong>l medio y que esto<br />

evitaría abusos y posteriores fracasos estruendosos en el<br />

extranjero. Su nota culminaba <strong>de</strong>stacando que:<br />

“la iniciativa <strong>de</strong> canje <strong>de</strong> composiciones y ejecución <strong>de</strong><br />

programas con obras tan serias y bien escritas como las <strong>de</strong> los<br />

autores brasileños [...], señala el camino a seguir por to<strong>da</strong>s las<br />

agrupaciones que se interesan por las bellas artes...” (El Hogar,<br />

nº 606, 20-5-1921).<br />

En 1922, varios fueron los actos artístico-musicales<br />

que registraron la continui<strong>da</strong>d <strong>de</strong> aquellas primeras<br />

sugerencias <strong>de</strong> intercambio. Ellos se enmarcaron<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego en los festejos <strong>de</strong>l primer centenario <strong>de</strong> la<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia brasileña que se conmemoraba en ese año.<br />

Se pasará ahora breve revista a algunos <strong>de</strong> ellos. 11<br />

El primero fue un concierto <strong>de</strong>l virtuoso pianista Arthur<br />

Rubinstein, quien visitó Buenos Aires en el invierno <strong>de</strong><br />

ese año. En agosto <strong>de</strong> 1922 Gastón Talamón, crítico<br />

musical <strong>de</strong> la revista Nosotros, <strong>da</strong>ba cuenta <strong>de</strong> su<br />

interés por acercar a nuestro ambiente la producción<br />

brasileña, particularmente la <strong>de</strong> Villa-Lobos. Escribió allí,<br />

refiriéndose al repertorio que había interpretado en esos<br />

días el mencionado pianista:<br />

“Entre las obras que nos dio a conocer, señalemos O prole do<br />

bebê, <strong>de</strong>l gran compositor brasileño Héctor Villa-Lobos; se trata<br />

<strong>de</strong> una serie <strong>de</strong> piezas muy mo<strong>de</strong>rnas, muy <strong>de</strong>bussystas, en las<br />

cuales el autor evoca la vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> diversas muñecas: negra, mulata,<br />

indígena, caracteriza<strong>da</strong>s con motivos y ritmos populares, <strong>de</strong><br />

gran efecto pianístico. Villa-Lobos es ya una gloria <strong>de</strong> la música<br />

43


44<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

iberoamericana, cuya obra <strong>de</strong>bería difundirse entre nosotros...”<br />

(Nosotros. Año XVI, n° 59, agosto 1922, p.537-538. Sección<br />

Crónica Musical) 12<br />

Dos acontecimientos más fueron los que tuvieron<br />

resonancia en torno a las relaciones culturales argentinobrasileñas.<br />

Relacionados ambos con el repertorio sinfónico,<br />

uno ocurrió en octubre y el otro en diciembre <strong>de</strong> ese<br />

mismo año. Sobre ambos dio cuenta Aguirre, siempre en<br />

su columna musical <strong>de</strong> El Hogar. 13<br />

En la nota <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1922, Aguirre comentó un<br />

concierto realizado en Río <strong>de</strong> Janeiro, en el que gracias<br />

a la organización logra<strong>da</strong> por la Asociación Wagneriana<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires y el financiamiento <strong>de</strong> la señora Epitacio<br />

Pessoa, actuó la orquesta <strong>de</strong> la Asociación Sinfónica<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires dirigi<strong>da</strong> por el compositor argentino<br />

Celestino Piaggio. Es importante <strong>de</strong>stacar que Argentina<br />

no contaba para esos tiempos aún con organismos<br />

sinfónicos oficiales y estables. La asociación menciona<strong>da</strong><br />

había estado actuando en el teatro Colón, pero era un<br />

organismo sin trayectoria previa, fun<strong>da</strong>do ese mismo<br />

año por una <strong>de</strong>sinteligencia entre los músicos a causa<br />

<strong>de</strong>l criterio que <strong>de</strong>bía emplearse para los concursos <strong>de</strong><br />

los cargos <strong>de</strong> instrumentistas. 14 Esa <strong>de</strong>sinteligencia,<br />

podría <strong>de</strong>cirse, resultó fructífera pues el otro sector <strong>de</strong><br />

los músicos, afiliados a la APO, 15 creó por su lado otra<br />

orquesta, la Filarmónica <strong>de</strong> la APO, conoci<strong>da</strong> durante la<br />

floreciente déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 por la actuación <strong>de</strong>stacadísima<br />

<strong>de</strong> batutas extranjeras, entre otras la <strong>de</strong>l suizo Ernst<br />

Ansermet quien se instaló en Buenos Aires durante las<br />

tempora<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1924, 1925 y 1926. Lo cierto es que<br />

Piaggio y ese grupo <strong>de</strong> músicos trasla<strong>da</strong>dos especialmente<br />

a Río <strong>de</strong> Janeiro, estrenaron en esa ciu<strong>da</strong>d obras <strong>de</strong> Carlos<br />

López Buchardo, Constantino Gaito, Pascual De Rogatis,<br />

Alfredo Schiuma, Floro Ugarte, Alberto Williams y el<br />

mismo director-compositor, Celestino Piaggio (MONDOLO,<br />

1988, p.83). Aguirre <strong>de</strong>stacó la cáli<strong>da</strong> recepción <strong>de</strong> la<br />

producción argentina por parte <strong>de</strong> la crítica brasileña<br />

así como <strong>de</strong> la figura <strong>de</strong>l joven director <strong>de</strong> la orquesta.<br />

También resaltó que se habían incorporado para la<br />

ocasión varios instrumentistas <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Sinfónica<br />

<strong>de</strong> Río colaborando entre otros Ernâni Braga, 16 un pianista<br />

consagrado que había participado unos meses antes<br />

en la Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rno (WISNIK, 1977, p.70) y<br />

Aldón Milanes, director <strong>de</strong>l Instituto Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>de</strong> Río <strong>de</strong> Janeiro. Señaló Aguirre que ello implicó “no<br />

solamente una gentilísima cortesía, sino también una<br />

prueba <strong>de</strong> soli<strong>da</strong>ri<strong>da</strong>d doblemente grata por tratarse<br />

<strong>de</strong> compositores y maestros <strong>de</strong> un valor reconocido”<br />

(El Hogar, nº 679, 20-10-1922, p.3).<br />

Igualmente positiva es la auto-evaluación que en la<br />

revista institucional (Ex.1) realizó la misma Asociación<br />

Wagneriana. Una extensa nota muy probablemente escrita<br />

por el presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la enti<strong>da</strong>d - Carlos López Buchardo -,<br />

que abarca varias <strong>de</strong> las primeras páginas, <strong>da</strong> cuenta <strong>de</strong>l<br />

éxito organizativo y artístico que significó ese concierto. 17<br />

La reseña transcribe completa una crítica apareci<strong>da</strong> en<br />

el periódico brasileño O Paiz, mencionando también el<br />

éxito <strong>de</strong> prensa que fue el concierto y <strong>da</strong>ndo una lista<br />

numerosa <strong>de</strong> otros periódicos que también se hicieron<br />

eco favorable <strong>de</strong> él. 18 Tanto en la nota <strong>de</strong> O Paiz como<br />

en el editorial que se comenta, lo que se quiere <strong>de</strong>stacar<br />

es el tema <strong>de</strong> la confraterni<strong>da</strong>d entre ambos países, la<br />

intención <strong>de</strong> estrechar vínculos artísticos, favorecer el<br />

intercambio intelectual (aún cuando se <strong>de</strong>stacaban muy<br />

claramente las características distintivas, propias, <strong>de</strong><br />

ambos estilos “nacionalistas”) y cimentar una relación<br />

positiva entre los pueblos. Al mismo tiempo (no escapa<br />

a una rápi<strong>da</strong> observación), la Wagneriana buscaba así<br />

continuar <strong>de</strong> algún modo legitimándose como institución<br />

en el campo musical local. De hecho, esta editorial<br />

finaliza transcribiendo una carta <strong>de</strong> felicitación envia<strong>da</strong><br />

por el compositor José André, entonces presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la<br />

Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>. 19<br />

Ex.1 - Tapa <strong>de</strong> la Revista <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires. Año VI, nº 55. Oct-nov-dic 1922.<br />

Los ecos <strong>de</strong> aquel concierto <strong>de</strong> música argentina en la<br />

ciu<strong>da</strong>d carioca continuaron ese año en la prensa local,<br />

pues hacia diciembre se repitió en el teatro Colón el<br />

programa íntegro interpretado en Río <strong>de</strong> Janeiro. 20<br />

A<strong>de</strong>más <strong>de</strong> los auspicios <strong>de</strong> la Wagneriana y la Asociación<br />

Sinfónica <strong>de</strong> Buenos Aires, se contó en la repetición con el<br />

aval <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>. La legitimación<br />

institucional <strong>de</strong> obras, compositores, instrumentistas<br />

y director contó a<strong>de</strong>más con la que sería <strong>de</strong>spués una<br />

instancia consagratoria por antonomasia: la asistencia y<br />

el positivo aplauso <strong>de</strong>l Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la Nación Marcelo<br />

Torcuato <strong>de</strong> Alvear y su esposa, la cantante <strong>de</strong> ópera<br />

Regina Pacini, y con ellos, los ministros, el inten<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires Carlos Noel y algunos representantes<br />

diplomáticos. 21<br />

3 – Villa-lobos en Buenos aires en la<br />

tempora<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1925<br />

Aunque no se ha podido establecer aún el día exacto<br />

en que Villa-Lobos arribó a Buenos Aires, se estima<br />

que ello sucedió a mediados <strong>de</strong>l mes <strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1925.<br />

Su presentación en socie<strong>da</strong>d se realizó a través <strong>de</strong> la<br />

Embaja<strong>da</strong> <strong>de</strong> Brasil, que el día 31 <strong>de</strong> mayo le ofreció una


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

<strong>de</strong>mostración a la cual asistieron numerosas personas.<br />

Sin tratarse <strong>de</strong> un concierto en el sentido estricto, se<br />

interpretaron en esa ocasión algunas obras a manera<br />

<strong>de</strong> “presentación oficial”: un trío (que estuvo a cargo<br />

<strong>de</strong> Jorge Fanelli, Pedro Napolitano y Adolfo Morpurgo)<br />

y algunas obras pianísticas (interpreta<strong>da</strong>s por Aline Van<br />

Barentzen y el propio autor). 22<br />

3.1 - la actuación para la Wagneriana en el<br />

salón la argentina<br />

Invitado por la Wagneriana, el 1º <strong>de</strong> junio <strong>de</strong> 1925,<br />

con la dirección <strong>de</strong>l autor, se estrenaron en el salón La<br />

Argentina algunas <strong>de</strong> sus obras <strong>de</strong> cámara instrumentales<br />

y vocales. 23 El extenso programa incluía una especie <strong>de</strong><br />

muestra <strong>de</strong> la producción <strong>da</strong><strong>da</strong> a conocer durante la<br />

Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna (1922), en Brasil: el Segundo<br />

Trío (1916) para violín, violonchelo y piano; para canto<br />

y piano, Les Mères (1914), sobre texto <strong>de</strong> Víctor Hugo y<br />

Festim Pagào (Festín Pagano) (1919), sobre poesías en<br />

portugués <strong>de</strong> Ronald <strong>de</strong> Carvalho; el Cuarteto simbólico<br />

(que figuró solamente como “Cuarteto”) (1921) para<br />

flauta, saxofón, celesta, arpa y coro femenino; el Choro<br />

n° 2, (1924) para flauta y clarinete, partitura <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a<br />

una <strong>de</strong> las principales cabezas <strong>de</strong>l mo<strong>de</strong>rnismo brasileño,<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (WRIGHT, 1992, p.63); tres canciones<br />

con octeto instrumental, Sertão noe estío, Viola y<br />

Sinos <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia y finalmente, las Tres Danzas Africanas<br />

(Farrapós, Kamkukus y Kankikis) (1916) en versión <strong>de</strong><br />

ocho instrumentos (dos violines, viola, violonchelo,<br />

contrabajo, flauta, clarinete y piano). 24<br />

Instrumentistas argentinos (algunos, inmigrantes<br />

radicados) colaboraron con el compositor brasileño<br />

asumiendo las diferentes partes <strong>de</strong> sus obras. Jorge<br />

Fanelli (piano), Pedro Napolitano (violín), Adolfo<br />

Morpurgo (violonchelo), Angel Mazzei (flauta), Julio<br />

Valdés (saxofón), Bruno Wisinger (celesta, piano),<br />

Augusto Sebastiani (arpa), Roque Spatola (clarinete),<br />

Carlos Pessina (violín), Edgardo Gambuzzi (viola),<br />

Alejandro Gamberale (contrabajo), a<strong>de</strong>más <strong>de</strong>l barítono<br />

Gregorio Svetloff e integrantes femeninas <strong>de</strong> la<br />

Socie<strong>da</strong>d Coral Argentina y <strong>de</strong> la Asociación <strong>de</strong> Coristas<br />

Líricos Profesionales, fueron quienes asumieron la<br />

responsabili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la ejecución musical. 25<br />

La Wagneriana, que seguía presidi<strong>da</strong> por López Buchardo, 26<br />

presentó la audición <strong>de</strong> la siguiente manera:<br />

“El convencimiento existente en la Asociación Wagneriana <strong>de</strong><br />

Buenos Aires <strong>de</strong> que su misión no <strong>de</strong>be concretarse a la divulgación<br />

<strong>de</strong> las obras musicales admiti<strong>da</strong>s en todos los repertorios, sino<br />

que, siguiendo el movimiento nacionalista en lo que ostenta <strong>de</strong><br />

propio y <strong>de</strong> continental, tiene que consagrarse con preferencia<br />

al arte musical <strong>de</strong> la Argentina y <strong>de</strong> Su<strong>da</strong>mérica en general como<br />

una finali<strong>da</strong>d digna <strong>de</strong> interés y <strong>de</strong> sus activi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ha sido causa<br />

<strong>de</strong> numerosas iniciativas corona<strong>da</strong>s por el éxito.<br />

En este sentido, los <strong>de</strong>seos <strong>de</strong> la Asociación [...] no se han<br />

reducido a meros propósitos, a un verbalismo ineficaz para<br />

originar hechos: al pensamiento siguió siempre la acción; y<br />

<strong>de</strong>be reconocerse que tanto la música argentina como la <strong>de</strong><br />

las naciones su<strong>da</strong>mericanas que mayor aporte han prestado<br />

a nuestro arte, merecieron en to<strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>d la atención <strong>de</strong><br />

esta enti<strong>da</strong>d musical, que consi<strong>de</strong>ra el nacionalismo como uno<br />

<strong>de</strong> los fun<strong>da</strong>mentos <strong>de</strong> su existencia.<br />

El intercambio musical es, en este caso, el más activo agente<br />

<strong>de</strong>l conocimiento mutuo: pero más que intercambio, <strong>de</strong>bería<br />

consi<strong>de</strong>rarse como acto <strong>de</strong> confraterni<strong>da</strong>d. Porque siendo el<br />

arte en general y la música en particular, medios indiscutibles<br />

<strong>de</strong> acercamiento, al ponerse en contacto los pueblos que tienen<br />

entre sí rasgos comunes, el sentimiento fraternal se acrecienta,<br />

y este sentimiento se convierte, lógicamente, en asimilación. Así<br />

los pueblos se compenetran y al compenetrarse, se conocen y<br />

estiman. (Revista <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana, Año VII, n° 71,<br />

junio-1925, p.2).<br />

La nota sigue comentando la labor <strong>de</strong> difusión <strong>de</strong> la música<br />

latinoamericana que la Wagneriana venía promoviendo,<br />

hace mención <strong>de</strong> los conciertos sinfónicos <strong>de</strong> 1922 ya<br />

citados aquí, y luego <strong>de</strong> disculparse por hacer crónica <strong>de</strong><br />

sí misma, brin<strong>da</strong> una serie <strong>de</strong> opiniones positivas sobre<br />

la producción escucha<strong>da</strong> (Ex.2). Previniéndose <strong>de</strong> quienes<br />

disienten con respecto a Villa-Lobos, la revista asegura:<br />

“Nos hallamos ante un arte nuevo, que merece respeto por<br />

los valores que caracterizan a su autor. Dirán algunos que el<br />

maestro ha ido <strong>de</strong>masiado lejos al extremar sus personalísimos<br />

puntos <strong>de</strong> vista artísticos, por su vehemencia al convertir en<br />

manifestaciones <strong>de</strong> naturaleza exuberante y bárbara, en ciertos<br />

momentos, el estilo <strong>de</strong> sus composiciones; pero no podrán negar<br />

la valentía y la autori<strong>da</strong>d con que el maestro brasileño lleva a<br />

cabo sus propósitos, y mucho menos su personali<strong>da</strong>d, que nos<br />

resulta inconfundible. (Revista Wagneriana, Año VII, n° 71,<br />

junio-1925, p.2)<br />

Ex.2 - Fotografía autografia<strong>da</strong> con <strong>de</strong>dicatoria a la<br />

Wagneriana. (Revista <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana, año<br />

VII, n° 71, junio-1925, p.3).<br />

Fallecido ya Julián Aguirre, la columna “La semana<br />

musical” <strong>de</strong> la revista El Hogar estaba a cargo ahora<br />

<strong>de</strong> Bernardo Iriberri, un animador <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> musical<br />

argentina que proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Pamplona (España) se había<br />

radicado en Buenos Aires en 1906. 27 Este comentarista, si<br />

bien <strong>de</strong>dicó media página al concierto <strong>de</strong>l 1º <strong>de</strong> junio, se<br />

manifestó escéptico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el título mismo <strong>de</strong> su crónica. 28<br />

Con ligera ironía comienza comentando:<br />

“Un autor que no <strong>de</strong> un paso a<strong>de</strong>lante en la extravagancia <strong>de</strong><br />

emplear sucesivas combinaciones disonantes, o que no alcance<br />

a superar las au<strong>da</strong>cias <strong>de</strong> los que en el Viejo Mundo han hecho la<br />

45


46<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

comedia <strong>de</strong> las sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s y ritmos raros, no lleva al arte <strong>de</strong> la<br />

música el menor aporte. No se conce<strong>de</strong> personali<strong>da</strong>d al que haga<br />

obra que recuer<strong>de</strong> las escuelas pretéritas, pero se admite que la<br />

tenga quien copie procedimientos <strong>de</strong> los más avanzados en el<br />

arte <strong>de</strong> combinar los sonidos” (El Hogar, 19-6-1925, p.27).<br />

Continúa combinando un tono entre <strong>de</strong>sconfiado y<br />

aprensivo, aunque no pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> reconocer algo <strong>de</strong><br />

talento en el compositor brasileño:<br />

“A través <strong>de</strong> una primera audición es muy difícil po<strong>de</strong>r juzgar<br />

obras <strong>de</strong> una contextura tan rara como las <strong>de</strong> Villa-Lobos.<br />

Quizá <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> sucesivas repeticiones pudiéramos advertir<br />

la enjundia <strong>de</strong>l talento que supo armonizar la profundi<strong>da</strong>d <strong>de</strong><br />

concepción con la nota novedosa. Pero nos tememos que la<br />

impresión recibi<strong>da</strong> perdure y se confirme el juicio formado.<br />

“En algunas obras se observan momentos sumamente felices,<br />

que comprueban el innegable talento <strong>de</strong>l autor [...], pero acosado<br />

éste por el afán <strong>de</strong> originali<strong>da</strong>d, repite procedimientos y se afirma<br />

en lugares comunes, con <strong>de</strong>smedro <strong>de</strong> la uni<strong>da</strong>d que to<strong>da</strong> obra<br />

<strong>de</strong> arte necesita tener.” (El Hogar, 19-6-1925, p.27).<br />

Entendiendo que no podía <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> aludir al público, el<br />

comentarista cierra su aporte con cierta ambigüe<strong>da</strong>d, sin<br />

abandonar su actitud adversa:<br />

“El que haya asistido a la audición que nos ocupa, si no estaba<br />

ciego, habrá advertido las sonrisas <strong>de</strong> la mayoría <strong>de</strong> la gente.<br />

¿Es que nos encontramos ante un genio no comprendido? De<br />

ser así, esas sonrisas hubiéranse trocado en indignación, pues<br />

el genio irrita y exaspera al que no llega a compren<strong>de</strong>rlo; no<br />

mueve a la risa. No queremos <strong>de</strong>cir que sea mala la obra <strong>de</strong>l<br />

compositor brasileño. La juzgamos según que<strong>da</strong> dicho, a través<br />

<strong>de</strong> una primera audición, y no sería extraño que un sucesivo<br />

contacto con ella nos hiciera reconocer cuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que hayan<br />

podido permanecer ocultas o <strong>de</strong>sfigura<strong>da</strong>s por el abigarrado<br />

conjunto <strong>de</strong> timbres tan extraños.<br />

De cualquier manera, un compositor que encuentra tan dividi<strong>da</strong>s<br />

las opiniones <strong>de</strong>l público, ocupa, sin du<strong>da</strong>, la atención <strong>de</strong>l mismo,<br />

y le obliga a <strong>de</strong>sear posesionarse plenamente <strong>de</strong>l secreto <strong>de</strong> su<br />

música, si es que este existe.” (El Hogar, 19-6-1925, p.27).<br />

Otra fuente en la que se leen opiniones contrarias, casi<br />

agresivas, a este concierto es el diario La Época, que<br />

no ahorró calificativos acusando al compositor <strong>de</strong> ser<br />

rebuscado, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado, pasado <strong>de</strong> mo<strong>da</strong> y hasta falto <strong>de</strong><br />

sinceri<strong>da</strong>d y <strong>de</strong> cultura. Incluimos aquí algunos pasajes<br />

<strong>de</strong> esa crítica:<br />

“Sabíamos aproxima<strong>da</strong>mente las ten<strong>de</strong>ncias <strong>de</strong> Villa-Lobos y<br />

el rebuscamiento en la elección <strong>de</strong> los instrumentos que <strong>de</strong>ben<br />

interpretar sus i<strong>de</strong>as musicales [...]<br />

... un Trío que cuenta con diez años <strong>de</strong> e<strong>da</strong>d [...] obra <strong>de</strong> juventud,<br />

fogosa y algo <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>, <strong>de</strong>muestra más intuición que cultura<br />

y ya, el <strong>de</strong>seo a “outrance” <strong>de</strong> hacer cosas raras.... [Sobre el final,]<br />

un “scherzo” torturado y abstruso establece un vivo contraste y<br />

<strong>de</strong>struye la uni<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la obra.<br />

Villa-Lobos se <strong>de</strong>muestra en ellas [en el Cuarteto, el Octeto y el<br />

Choro nº 2] el intuitivo <strong>de</strong> antes, con algo más <strong>de</strong> metier, que busca<br />

<strong>de</strong>sespera<strong>da</strong>mente nuevos recursos <strong>de</strong> expresión y en su afán por<br />

encontrar sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ritmos, disonancias, colores y combinaciones<br />

instrumentales no comunes, se olvi<strong>da</strong> muchas veces <strong>de</strong> poner<br />

también, en sus salsas complica<strong>da</strong>s, un poco <strong>de</strong> música.<br />

[...] pue<strong>de</strong> ser que una vez que se convenza <strong>de</strong> que su mo<strong>de</strong>rnismo<br />

está ya un poco pasado <strong>de</strong> mo<strong>da</strong> y <strong>de</strong> que para hacer hay que<br />

<strong>de</strong>spreocuparse un poco <strong>de</strong> la forma y poner sinceri<strong>da</strong>d y<br />

emoción, produzca las obras que son <strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> un talento<br />

joven y brioso como el suyo...” (La Época, 2-6-1925, p.7)<br />

El cronista sin embargo no pue<strong>de</strong> ignorar que el público<br />

tuvo una actitud distendi<strong>da</strong> y como en el caso <strong>de</strong> El Hogar,<br />

resalta las sonrisas diverti<strong>da</strong>s que se advirtieron:<br />

“La audición <strong>de</strong> anoche no nos sorprendió tanto como al<br />

público, que, apocado primero y sonriente <strong>de</strong>spués, aplaudió<br />

con entusiasmo y hasta exigió el bis <strong>de</strong> un trozo que lo divirtió<br />

sobremanera [...] una ‘berceuse’ que gustó mucho al público...”<br />

(La Época, 2-6-1925, p.7)<br />

Mayoritaria es sin embargo la recepción positiva <strong>de</strong><br />

la producción <strong>de</strong> Villa-Lobos ejecuta<strong>da</strong> el 1º <strong>de</strong> junio<br />

para la Wagneriana. Citaremos a manera <strong>de</strong> pequeñas<br />

muestras, fragmentos <strong>de</strong> La Prensa, La Nación, El Diario,<br />

La Vanguardia, Nosotros, La Quena y Caras y Caretas.<br />

También mencionaremos una nota <strong>de</strong> la revista Él,<br />

bastante posterior.<br />

Comenzando por La Prensa y la revista Él, <strong>de</strong>be recalcarse<br />

que se trata <strong>de</strong> artículos escritos por la misma pluma: la<br />

<strong>de</strong>l musicógrafo y crítico argentino Gastón Talamón. 29 En<br />

La Prensa se incluyó una extensa nota, con una foto, en la<br />

sección “Arte y Teatro”. El autor no economizó elogiosos<br />

adjetivos, a la vez que intentó <strong>de</strong>jar mal parados a quienes<br />

repudiaban al compositor brasileño:<br />

“...un compositor que [...] es una <strong>de</strong> las más vigorosas, mo<strong>de</strong>rnas y<br />

originales personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicales <strong>de</strong> Ibero-América.<br />

[…] todo en la obra [el Cuarteto Simbólico] acredita a un maestro,<br />

a un artista lleno <strong>de</strong> inquietu<strong>de</strong>s, anheloso por crear una obra<br />

que se aparte <strong>de</strong>l camino trillado, i<strong>de</strong>al que logra con talento y<br />

que sobre todo, abre amplios horizontes para el futuro...<br />

[las canciones] son sabias y características estilizaciones<br />

realiza<strong>da</strong>s con mano maestra, en las cuales el compositor nos<br />

revela, con medios atrevidos y mo<strong>de</strong>rnos, el alma <strong>de</strong> su raza.<br />

[El haberlo traído es una] labor que había asustado a los espíritus<br />

timoratos y retrógrados pero que significa un esfuerzo digno <strong>de</strong><br />

admiración...” (La Prensa, 2-6-1925, p.16).<br />

Como buen cultor <strong>de</strong>l nacionalismo cultural, Talamón<br />

<strong>de</strong>dicó unos párrafos a <strong>de</strong>stacar el nacionalismo musical <strong>de</strong><br />

Villa-Lobos, aunque diferenciándolo <strong>de</strong> otros compositores<br />

que continuaban arraigados a las ten<strong>de</strong>ncias europeas, no<br />

encontrando divorcio en la convivencia <strong>de</strong>l interés por el<br />

folklore, con las ten<strong>de</strong>ncias mo<strong>de</strong>rnistas en su música:<br />

“[Hay en Brasil] un grupo muy selecto <strong>de</strong> artistas, generalmente<br />

muy cultos, conocedores <strong>de</strong>l movimiento clásico y mo<strong>de</strong>rno<br />

europeo, poseedores <strong>de</strong> una orientación noble y proba, pero<br />

casi siempre empeñados en seguir las huellas <strong>de</strong> los gran<strong>de</strong>s<br />

maestros <strong>de</strong> allen<strong>de</strong> los mares más que en crear un arte nuevo,<br />

genuinamente brasileño, mediante el uso <strong>de</strong> motivos <strong>de</strong>l<br />

cancionero popular. En Villa-Lobos se siente palpitar la gran alma<br />

sonora <strong>de</strong>l Brasil. Alma nueva y libre <strong>de</strong> prejuicios escolásticos:<br />

alma <strong>de</strong> un pueblo joven y vigoroso que quiere cantar con propio<br />

acento; que tiene conciencia <strong>de</strong> su valer y <strong>de</strong> su fuerza.... [Villa-<br />

Lobos posee] méritos puramente musicales, más <strong>de</strong> una vez<br />

ultramo<strong>de</strong>rnos...” (La Prensa, 2-6-1925, p.16).<br />

El artículo <strong>de</strong> Talamón <strong>de</strong> la revista Él resulta <strong>de</strong> interés<br />

pues <strong>da</strong> una visión retrospectiva sobre la visita <strong>de</strong> Villa-<br />

Lobos <strong>de</strong> 1925 quince años <strong>de</strong>spués, en ocasión <strong>de</strong>l tercer<br />

viaje <strong>de</strong>l compositor a la Argentina (1940). Tres páginas<br />

completas y cuatro amplias fotos en las que se incluye a


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

su esposa, hablan <strong>de</strong> comienzo, <strong>de</strong> la notorie<strong>da</strong>d adquiri<strong>da</strong><br />

por el compositor para entonces. 30 Talamón reseña to<strong>da</strong><br />

su visión <strong>de</strong> la situación <strong>de</strong>l campo musical <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>l 20, intentando fijar la primer visita <strong>de</strong> 1925 como<br />

una suerte <strong>de</strong> hito <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> musical porteña y<br />

no du<strong>da</strong>ndo en arreglar las fechas para atribuir a Villa-<br />

Lobos el carácter <strong>de</strong> pionero <strong>de</strong> la difusión <strong>de</strong> la música<br />

mo<strong>de</strong>rna en Argentina:<br />

“Las gran<strong>de</strong>s audiciones sinfónicas, corales y <strong>de</strong> conjunto <strong>de</strong><br />

cámara <strong>de</strong> la entonces nueva música, se realizaron en Buenos<br />

Aires años <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la actuación <strong>de</strong>l gran compositor<br />

brasileño. Ernesto Ansermet en la Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong><br />

Conciertos y en la Asociación <strong>de</strong>l Profesorado Orquestal y en<br />

grado mucho menor el Teatro Colón [...] dieron a conocer muchas<br />

<strong>de</strong> las obras <strong>de</strong> la mayoría <strong>de</strong> los compositores mencionados<br />

[Stravinsky, Prokofiev, Poulenc, Honegger, Malipiero, Casella,<br />

Castelnuovo-Te<strong>de</strong>sco, etc]”... 31<br />

Con respecto a las sonrisas y la actitud <strong>de</strong> sorpresa <strong>de</strong>l<br />

público, Talamón brin<strong>da</strong> sus recuerdos <strong>de</strong> esta manera:<br />

“Frente al cuarteto y las <strong>da</strong>nzas, el público se<br />

<strong>de</strong>sconcertó un tanto; pues la mayoría <strong>de</strong> los<br />

auditores no había transpuesto aún la era <strong>de</strong>l<br />

wagnerismo. Pero como, entre nosotros, raras<br />

veces se producen reacciones violentas contra<br />

las obras que se apartan <strong>de</strong> los hábitos auditivos<br />

imperantes, el concierto logró éxito innegable.<br />

Los que comprendieron - y no fueron pocos -<br />

la trascen<strong>de</strong>nte nove<strong>da</strong>d <strong>de</strong> esas expresiones<br />

dinámicas amerindias, aplaudieron con fervor; y los<br />

que no las comprendieron, impresionados por su<br />

extraordinaria pujanza y por una emoción humana,<br />

acaso percibi<strong>da</strong> únicamente por el subconsciente,<br />

unieron sin resistencia su cordiali<strong>da</strong>d a la <strong>de</strong> los<br />

convencidos”.(Él, 1940, s/n página).<br />

Nosotros <strong>de</strong>dicó asimismo una larga nota a la presencia <strong>de</strong><br />

Villa-Lobos en Buenos Aires. Firma<strong>da</strong> por Herberto Paz, un<br />

reconocido crítico <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> esa época, la crónica es también<br />

consagratoria cuando expresa al comienzo y al final:<br />

“....Sin du<strong>da</strong> ninguna, Héctor Villa-Lobos es uno <strong>de</strong> los<br />

compositores más atrayentes <strong>de</strong>l momento actual [...]<br />

...estamos ante un ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ro artista, cuya obra [...] es merecedora,<br />

por lo menos, <strong>de</strong>l respetuoso silencio que siempre inspira aquello<br />

que no po<strong>de</strong>mos alcanzar” (año 19, nº 193, junio-1925, p.262-<br />

265).<br />

De las composiciones interpreta<strong>da</strong>s para la Wagneriana<br />

rescató el Cuarteto y el Choro nº 2, intentando también<br />

persuadir al lector, hacer docencia, al admitir que el<br />

mo<strong>de</strong>rnismo <strong>de</strong>l estilo <strong>de</strong> Villa-Lobos pudo no haber sido<br />

comprendido <strong>de</strong>l todo por el público:<br />

“...Y en esto consiste lo raro y lo extravagante <strong>de</strong> Villa-Lobos:<br />

porque en arte todo es convencional, él quiere serlo lo menos<br />

posible; es <strong>de</strong>cir, quiere aproximarse en cuanto pue<strong>da</strong> al meollo:<br />

la naturaleza. Y como nunca se encuentra en ella el acor<strong>de</strong><br />

perfecto, él lo altera. Como lo simétrico tampoco es natural,<br />

él provoca los choques <strong>de</strong> ritmos, <strong>de</strong> dibujos, <strong>de</strong> tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Lo que él persigue, no pue<strong>de</strong> obtenerse <strong>de</strong> otra manera: en<br />

consecuencia, lo que hace, está bien.<br />

Naturalmente aquí sus obras han producido algún <strong>de</strong>sconcierto:<br />

nuestro público no está habituado a ciertas manifestaciones<br />

artísticas que (¡oh, paradoja!) aunque fieles reflejos <strong>de</strong> cosas que,<br />

en su mayor parte nos son familiares, quizá por lo viejas, resultan<br />

nuevas...” (La Prensa, 2-6-1925, p.16). 32<br />

El Diario y La Vanguardia dieron su aprobación también al<br />

concierto <strong>de</strong>l 1º <strong>de</strong> junio. El primero aplaudió las Danzas<br />

Africanas, a las que calificó como “una composición muy<br />

intensa y <strong>de</strong>scriptiva, en la que [el autor] ha sembrado<br />

elementos <strong>de</strong> gracia y singular sentido”. Sobre el público,<br />

la percepción <strong>de</strong>l cronista fue que brindó “inequívocas<br />

manifestaciones <strong>de</strong> aplauso [...] bien mereci<strong>da</strong>s” y que<br />

“salió con la impresión <strong>de</strong> haberse encontrado todo un<br />

músico que prometiendo para el porvenir, ha <strong>da</strong>do ya<br />

lo suficiente en su e<strong>da</strong>d para revelar estro personal,<br />

preparación y orientaciones interesantes” (El Diario, 2-<br />

6-1925, p.14). La Vanguardia brevemente <strong>de</strong>scribió al<br />

compositor brasileño como “un músico <strong>de</strong> indiscutible<br />

cultura y eleva<strong>da</strong> inspiración, <strong>de</strong> ten<strong>de</strong>ncias artísticas<br />

mo<strong>de</strong>rnas que ennoblecen con su refina<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>d<br />

y su riqueza colorística, el pintoresco folclore brasileño”<br />

y aludiendo al comportamiento <strong>de</strong>l público dijo que,<br />

“tanto Héctor Villa-Lobos como los ejecutantes <strong>de</strong> sus<br />

obras fueron sumamente aplaudidos”. (La Vanguardia,<br />

2-6-1925, p.2).<br />

Un aporte que merece comentarse en especial es<br />

el <strong>de</strong> la revista La Quena, el órgano <strong>de</strong> expresión <strong>de</strong>l<br />

director <strong>de</strong>l Conservatorio <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />

el compositor Alberto Williams. En su escrito, incluido<br />

en el comienzo <strong>de</strong> la revista, en la sección “Historia y<br />

biografías”, Williams <strong>de</strong>dicó varias páginas a presentar<br />

un boceto biográfico y un listado <strong>de</strong> obras por género,<br />

esto es, un catálogo <strong>de</strong> la producción <strong>de</strong> Villa-Lobos.<br />

En el característico tipo <strong>de</strong> escritura panegírica, incluyó<br />

<strong>da</strong>tos acerca <strong>de</strong> su infancia, formación, familia, estudios<br />

realizados, primeros maestros (todo lo típico <strong>de</strong> una<br />

biografía) y hasta una <strong>de</strong>scripción física <strong>de</strong>l músico<br />

brasileño, algo grandilocuente, diciendo que:<br />

“Villa-Lobos tiene sólo 35 años, y su producción revela ya un<br />

músico fecundo y un laborioso infatigable. Es bajo <strong>de</strong> estatura,<br />

<strong>de</strong>lgado, <strong>de</strong> complexión atlética, nariz aguileña un tanto<br />

dilata<strong>da</strong> en su base, tez morena, cabellos negros, amplia frente,<br />

y ojos negros luminosos que reflejan la fuerza <strong>de</strong> voluntad y<br />

la superiori<strong>da</strong>d <strong>de</strong> su hermosa inteligencia. La franqueza es la<br />

cuali<strong>da</strong>d dominante <strong>de</strong> su carácter. Es jovial, bonachón, buen<br />

amigo, aficionado a todo lo bueno como ser los buenos cigarros,<br />

los ricos vinos y bocados sabrosos. Es culto, ilustrado y se interesa<br />

por to<strong>da</strong>s las manifestaciones intelectuales” (La Quena, año VI,<br />

nº 24, junio-julio 1925, p.3-7).<br />

De este registro apologético, plagado <strong>de</strong> adjetivaciones,<br />

Williams no dudó - en párrafo siguiente - en pasar a otro<br />

totalmente diferente, en el que sintetizó la orientación<br />

estética <strong>de</strong> Villa-Lobos y ofreció una caracterización<br />

estilística en términos técnicos, marcando un abrupto<br />

contraste con lo anterior y dirigiéndose, <strong>de</strong> improviso, a<br />

un público con conocimientos técnicos:<br />

“Su producción musical, ya consi<strong>de</strong>rable por la canti<strong>da</strong>d, se<br />

orienta hacia el ultramo<strong>de</strong>rnismo, en que se acentúan, se<br />

47


48<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

exageran y a veces se caricaturizan la armonía yuxtapuesta,<br />

la politonía, la atonali<strong>da</strong>d, los motivos persistentes y la forma<br />

libre que en el clasicismo tienen el nombre bien <strong>de</strong>finido <strong>de</strong><br />

fantasía […] las obras <strong>de</strong> Héctor Villa-Lobos están pletóricas <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> rítmica [...] y ese procedimiento [el tratamiento <strong>de</strong>l aspecto<br />

rítmico] que ha cambiado la dirección <strong>de</strong>l arte musical hacia<br />

horizontes inexplorados, es digno <strong>de</strong>l mayor encomio. Gracias a<br />

él, hemos penetrado en un nuevo universo sonoro...” (La Quena,<br />

año VI, nº 24, junio-julio 1925, p.4).<br />

El último párrafo es muy digno <strong>de</strong> la escritura<br />

contun<strong>de</strong>ntemente preceptiva a la que estamos<br />

acostumbrados en Williams: su interés - está muy claro -<br />

fue el <strong>de</strong> producir un artículo que sin reservas respal<strong>da</strong>ra<br />

al músico brasileño:<br />

“Héctor Villa-Lobos es un compositor genial, que honra a<br />

su país y a to<strong>da</strong> nuestra América. Que su carrera se prosiga<br />

triunfalmente son nuestros mejores votos”. (La Quena, año VI,<br />

nº 24, junio-julio 1925, p.7).<br />

Respecto <strong>de</strong> Caras y Caretas, hay una nota no muy<br />

extensa escrita por José Oje<strong>da</strong>, don<strong>de</strong> se recalca el ritmo<br />

y la originali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la producción escucha<strong>da</strong>:<br />

“En la Asociación Wagneriana hizo escuchar últimamente<br />

algunas <strong>de</strong> sus composiciones [...], trozos impregnados <strong>de</strong> una<br />

originali<strong>da</strong>d encantadora, que recibieron los más calurosos<br />

aplausos. En persecución incesante <strong>de</strong>l carácter expresivo y<br />

pintoresco [...] señalan ante todo un sentimiento <strong>de</strong> admirable<br />

riqueza en el ritmo, con la mayor libertad posible <strong>de</strong> los elementos<br />

sonoros y <strong>de</strong>notan en el autor un artista <strong>de</strong> gran talento, dueño<br />

absoluto <strong>de</strong> un portentoso lenguaje <strong>de</strong> emociones...” (Caras y<br />

Caretas, 6-6-1925).<br />

La Nación, don<strong>de</strong> se presume escribía José André, el<br />

presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, 33 fue pru<strong>de</strong>nte<br />

en sus apreciaciones y publicó este comentario que <strong>de</strong>staca<br />

la madurez que evi<strong>de</strong>nciaba a temprana e<strong>da</strong>d Villa-Lobos:<br />

“Joven aún, en la e<strong>da</strong>d en que muchos comienzan, Villa-Lobos<br />

está in<strong>de</strong>pendizándose <strong>de</strong>l período <strong>de</strong> asimilación inevitable en<br />

to<strong>da</strong> iniciación artística. Ninguna <strong>de</strong> las obras constituye algo<br />

<strong>de</strong>finitivo, no ya en la música actual sino <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>l bagaje<br />

<strong>de</strong>l mismo autor. Lo que seguramente no escapó al instinto <strong>de</strong>l<br />

público, es que Villa-Lobos es un músico muy personal y que<br />

mucho <strong>de</strong> lo que hace oír trae una nota nueva <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> lo<br />

conocido. Esto es ya suficiente para establecer la categoría <strong>de</strong>l<br />

artista” (La Nación, 2-6-1925).<br />

3.2 - la actuación para “la Cultural”, en el<br />

Teatro O<strong>de</strong>ón<br />

El segundo “Concierto Villa-Lobos” se registró el 17<br />

<strong>de</strong> junio para la Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong> Conciertos, en el<br />

teatro O<strong>de</strong>ón, <strong>de</strong> Leóni<strong>da</strong>s Barletta. Esta enti<strong>da</strong>d, fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

por Mag<strong>da</strong>lena Bengolea <strong>de</strong> Sánchez Elía - una <strong>de</strong> las<br />

propulsoras <strong>de</strong> la vi<strong>da</strong> musical porteña durante los años<br />

20 y cantante <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> -, mostró un especial interés<br />

por la difusión <strong>de</strong>l repertorio <strong>de</strong> música mo<strong>de</strong>rna. Su<br />

coro mixto, que intervino en el estreno <strong>de</strong>l Nonetto <strong>de</strong><br />

Villa-Lobos, participó unos meses <strong>de</strong>spués en el estreno<br />

<strong>de</strong> Le Roi David <strong>de</strong> Honegger, bajo la dirección <strong>de</strong> Ernst<br />

Ansermet (VALENTI FERRO, 1992, p.131-132).<br />

Para aquella segun<strong>da</strong> ocasión se repitió una sola obra,<br />

estrenándose casi la totali<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l programa. Siempre<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> lo que es el repertorio <strong>de</strong> cámara, el programa<br />

incluyó el Choro nº 2, para flauta y clarinete (repetición),<br />

Epigramas irónicos y sentimentales, para canto y piano,<br />

el Quinteto doble (1915) (integrado por Tími<strong>da</strong>, Misterios<br />

e Inquieta), la Suite Floral (Idylio na re<strong>de</strong>, Una camponesa<br />

canta<strong>de</strong>ira y Alegria na horta), para piano (1916-1919),<br />

la Segun<strong>da</strong> Sonata, para violonchelo y piano (1916)<br />

y el Nonetto (1923). Entre los artistas participantes se<br />

encontraron la cantante Antonieta Silveyra <strong>de</strong> Lenhardson,<br />

el violonchelista Adolfo Morpurgo y el pianista Francisco<br />

Amicarelli. 34<br />

Destacando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el comienzo la asistencia <strong>de</strong>l presi<strong>de</strong>nte<br />

Alvear y el embajador <strong>de</strong>l Brasil, La Prensa, esto es, Gastón<br />

Talamón, concentró sus párrafos en el Nonetto, que sin<br />

du<strong>da</strong>, <strong>de</strong>be haber resultado la partitura más llamativa <strong>de</strong>l<br />

programa:<br />

“El Nonetto pertenece a una ten<strong>de</strong>ncia estética que no admite<br />

discusión y ante la cual imposible es permanecer indiferente: o<br />

gusta o se rechaza […] [Se trata <strong>de</strong> una] evocación magistral y<br />

realista <strong>de</strong> una fiesta indígena, pero <strong>de</strong> indígenas primitivos, cuyo<br />

cancionero no ha logrado aún salir <strong>de</strong> los motivos embrionarios,<br />

<strong>de</strong> los ritmos y ruidos primarios - ¡pero cuán ricos y originales!<br />

- que no han <strong>da</strong>do a la voz humana el <strong>de</strong>sarrollo alcanzado en<br />

un mayor estado <strong>de</strong> a<strong>de</strong>lanto [...] En este nonetto se explayan<br />

un dinamismo brutal, una aparente incoherencia, una fuerza<br />

primitiva, casi diríamos un salvajismo, <strong>de</strong> los cuales emanan<br />

indu<strong>da</strong>ble gran<strong>de</strong>za y ese po<strong>de</strong>r subyugador inherente a to<strong>da</strong><br />

manifestación colectiva [...] Es una raza, todo lo primitiva que<br />

se quiera, que vibra y palpita en esta página; haberlo logrado<br />

es un mérito singular. Sin du<strong>da</strong>, cuando Villa-Lobos realice sus<br />

obras <strong>de</strong>finitivas, acaso sin per<strong>de</strong>r su originali<strong>da</strong>d, ni carácter,<br />

ni fuerza, suavice esas asperezas, poetice y embellezca esas<br />

escenas tan realistas; pero, con todo, mucho es haber escrito<br />

una obra semejante.” (La Prensa, 18-6-1925, p.15).<br />

Muy atractivo resulta comparar estas opiniones que, aún<br />

siendo positivas, hablan <strong>de</strong> primitivismo, salvajismo y<br />

brutali<strong>da</strong>d, con las verti<strong>da</strong>s en 1940 en la revista Él por el<br />

mismo crítico. Al respecto, valga apuntar algunos conceptos<br />

<strong>de</strong> Florencia Garramuño (GARRAMUÑO, 2004, p.155-<br />

156), quien sostiene que la categoría <strong>de</strong> lo “primitivo”<br />

en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, siguiendo algunos experimentos<br />

vanguardistas como el “surrealismo etnográfico”, venía a<br />

representar algo así como la posibili<strong>da</strong>d <strong>de</strong> un <strong>de</strong>stino<br />

diferente para los países latinoamericanos. Según la<br />

autora, hubo un cambio <strong>de</strong> significado y <strong>de</strong> función en la<br />

figura <strong>de</strong> “lo primitivo” que tanto la vanguardia argentina<br />

como la brasileña negociaron perfectamente al asociarla<br />

con la mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d. 35 Aquí, pasados quince años como se<br />

ha dicho, quien relata ya no emplea esa categoría anterior<br />

y por el contrario, tien<strong>de</strong> a magnificar aquel concierto,<br />

atribuyéndole, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la recepción, la importancia <strong>de</strong> un<br />

hecho fun<strong>da</strong>dor:<br />

“Ante esa partitura [el Nonetto], en la que la potente personali<strong>da</strong>d<br />

<strong>de</strong>l compositor se afirma magníficamente, el público <strong>de</strong> Buenos<br />

Aires tuvo la sensación <strong>de</strong> que un nuevo lenguaje surgía en<br />

América y que ese lenguaje si era <strong>de</strong> Villa-Lobos, lo era también<br />

<strong>de</strong> la época y <strong>de</strong> América.<br />

Y es así como por primera vez en la historia <strong>de</strong> nuestra vi<strong>da</strong><br />

musical, una <strong>de</strong> las fechas más importantes <strong>de</strong> su cultura la fijó<br />

un compositor <strong>de</strong> nuestra América: ello en extremo halagador<br />

para nuestro amor propio continental, una <strong>de</strong> cuyas principales


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

capitales pudo prescindir, <strong>de</strong>l aporte europeo para colocarse a<br />

tono con la conciencia musical <strong>de</strong>l mundo...” (Él, 1940)<br />

En la columna <strong>de</strong> La Prensa, Talamón <strong>de</strong>stacó a<strong>de</strong>más<br />

el <strong>de</strong>sempeño <strong>de</strong> la cantante Antonieta Silveyra <strong>de</strong><br />

Lenhardson y la actuación <strong>de</strong>l coro mixto <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d<br />

Cultura <strong>de</strong>l Conciertos (La Prensa, 18-6-1925, p.15).<br />

Herberto Paz, en Nosotros, también <strong>de</strong>dicó espacio<br />

consi<strong>de</strong>rable al Nonetto, <strong>de</strong>scribiendo las partes vocales,<br />

la rítmica, la proce<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> los motivos y el lenguaje<br />

musical en estos términos:<br />

“... la voz humana está emplea<strong>da</strong> como si fuera otro instrumento<br />

el cual interviene <strong>de</strong> vez en cuando <strong>de</strong> forma tan eficiente, que<br />

al punto se advierte que ningún timbre <strong>de</strong> la orquesta podría<br />

reemplazarlo [...] las palabras no son poesías; son simplemente<br />

interjecciones o vocablos in<strong>de</strong>finibles <strong>de</strong> origen indígena, que<br />

no tienen otro objeto que el <strong>de</strong> subrayar, acentuar los valores<br />

rítmicos <strong>de</strong>l canto. Las i<strong>de</strong>as musicales [...] son también<br />

netamente indígenas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego, pre-colombinas, como<br />

lo revela la parte lenta o Marcha Fúnebre […] La melodía se<br />

<strong>de</strong>senvuelve en el reducido espacio <strong>de</strong> cuatro semitonos (Sol-<br />

Si naturales), razón por la cual este trozo tiene un valor tan<br />

extraño e impresionante (sobre todo cuando las voces femeninas<br />

rompen con un inesperado alarido la melancólica sereni<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l<br />

ambiente) que es difícil escapar a su influjo...” (año 19, nº 193,<br />

junio 1925, p.263).<br />

Sobre el Quinteto Doble dijo que era una obra <strong>de</strong>sarrolla<strong>da</strong><br />

con “corrección y pericia”, pero que era imprescindible<br />

enten<strong>de</strong>r que <strong>da</strong>taba <strong>de</strong> varios años atrás. En cuanto a la<br />

Suite Floral, para piano, la calificó como un “bello trabajo<br />

[...] ya escuchado en Buenos Aires en varias oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

por [las interpretaciones <strong>de</strong>] Arthur Rubinstein...” (año 19,<br />

nº 193, junio 1925, p.263).<br />

La Época, una vez más, volvió a <strong>de</strong>dicar palabras <strong>de</strong><br />

frial<strong>da</strong>d al compositor brasileño, valorizando tan<br />

sólo la actuación <strong>de</strong> los cantantes y el coro quienes,<br />

“sometidos a prueba, fueron aplaudidos”. Sobre el<br />

autor, lamentó:<br />

“... el extravío <strong>de</strong> un músico joven, con cuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s naturales y<br />

adquiri<strong>da</strong>s, que con un poco más <strong>de</strong> paciencia hubiera podido<br />

encontrar tal ves (sic) por las vías propias <strong>de</strong>l arte y <strong>de</strong> la<br />

música, una forma <strong>de</strong> expresar acerta<strong>da</strong>mente las emociones<br />

que seguramente ani<strong>da</strong>n en su pecho, ya que su falta <strong>de</strong><br />

sinceri<strong>da</strong>d actual no ha <strong>de</strong> representar, esperamos, falta <strong>de</strong> i<strong>de</strong>as<br />

y <strong>de</strong> sentimientos...” (La Época, 18-6-1925, p.8).<br />

El Diario solamente se pronunció en su agen<strong>da</strong> cultural,<br />

anunciando la audición en el teatro O<strong>de</strong>ón y no muchos<br />

<strong>da</strong>tos más que indicar las “excepcionales dotes <strong>de</strong><br />

compositor original <strong>de</strong> Villa-Lobos”, lo cual había<br />

“que<strong>da</strong>do acreditado ya en la Wagneriana”. (El Diario,<br />

17-6-1925, p.14).<br />

4 - intercambios y ecos posteriores a la visita<br />

<strong>de</strong> Villa lobos<br />

Un seguimiento <strong>de</strong> la totali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la prensa periódica<br />

porteña en la segun<strong>da</strong> mitad <strong>de</strong> la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 escapa<br />

a los alcances <strong>de</strong> este trabajo, <strong>de</strong> carácter introductorio.<br />

Se señala sin embargo una fuente especializa<strong>da</strong> que<br />

circuló en Buenos Aires entre 1927 y 1930 y que fue el<br />

escenario <strong>de</strong> algunos aportes musicográficos proce<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> Brasil en esos años: La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>. 36<br />

La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, que aparecía en forma mensual,<br />

tuvo como característica la inclusión <strong>de</strong> notas<br />

proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> diferentes países. Entre otros, firman las<br />

referi<strong>da</strong>s a Brasil, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, 37 Tapaios Gomez y<br />

Augusto López Gonsalvez.<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> en el primer número presenta, a partir<br />

<strong>de</strong> su comentario <strong>de</strong> actuali<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la música en San Pablo,<br />

sus i<strong>de</strong>as sobre el nacionalismo brasileño. 38 Para él, el<br />

efecto inédito que tenían las obras mo<strong>de</strong>rnistas se <strong>de</strong>bía<br />

a la presencia <strong>de</strong> elementos nacionalistas que estaban<br />

expresados a través <strong>de</strong> una música “psicológicamente<br />

racial”: a diferencia <strong>de</strong>l nacionalismo patriótico e i<strong>de</strong>alista<br />

que producía una música “objetivamente racial”, los<br />

mo<strong>de</strong>rnistas lograban un nacionalismo convincente por<br />

su fuerza interior. Lejos <strong>de</strong> que<strong>da</strong>rse en el mero exotismo,<br />

en la búsque<strong>da</strong> <strong>de</strong> efecto, el compositor “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ramente”<br />

brasileño para Andra<strong>de</strong>, es aquel que lograba <strong>de</strong>mostrar<br />

una relación “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ra” con el medio: Villa-Lobos –<br />

Luciano Gallet y Lorenzo Fernan<strong>de</strong>s también - encarnaban<br />

este especial modo “nuevo” <strong>de</strong> expresión musical. 39<br />

En otra colaboración <strong>de</strong>s<strong>de</strong> San Pablo, al año siguiente,<br />

<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> mencionó un concierto <strong>de</strong> obras vocales<br />

realizado por Julieta Trelles <strong>de</strong> Menexes, una cantante<br />

que ya había actuado en Argentina y Uruguay, en el que<br />

se interpretó música <strong>de</strong> compositores nuestros. Comentó<br />

que ejecutó obras <strong>de</strong> López Buchardo, Aguirre, André,<br />

Torre Bertucci y Lía Cimaglia y que él lamentó no se<br />

incluyera también algún trozo <strong>de</strong> Pascual <strong>de</strong> Rogatis, a<br />

quien consi<strong>de</strong>raba una “personali<strong>da</strong>d interesante <strong>de</strong> la<br />

música su<strong>da</strong>mericana contemporánea”. También refirió en<br />

estas páginas el estreno <strong>de</strong>l Ru<strong>de</strong> Poema <strong>de</strong> Villa Lobos,<br />

para piano, por parte <strong>de</strong> Arthur Rubinstein. Curioso es<br />

encontrar calificativos tan similares a los empleados por<br />

Talamón dos años antes: los términos “salvaje” y “brutal”<br />

volvieron a aparecer, con connotación positiva, tal como<br />

explica Garramuño que sucedió en las artes visuales:<br />

“Se trata <strong>de</strong> un trabajo notable en el cual Villa-Lobos <strong>da</strong> libertad<br />

a ese su lado salvaje y brutal, que constituye uno <strong>de</strong> los aspectos<br />

<strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> su personali<strong>da</strong>d. Es sin du<strong>da</strong> una <strong>de</strong> las<br />

producciones más importantes <strong>de</strong> la música pianística brasileña, y<br />

contiene un gran número <strong>de</strong> <strong>de</strong>talles <strong>de</strong> extraordinaria belleza...”<br />

(La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>. Año 2, nº 2, agosto 1928, p.120).<br />

Otro columnista brasileño, Tapaios Gomez, envía una<br />

colaboración al nº 2 <strong>de</strong> La revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, en la cual<br />

resume su visión panorámica sobre la evolución <strong>de</strong> la<br />

producción nacionalista brasileña, con un enfoque<br />

similar al <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Para él, Villa-Lobos<br />

comparte con Luciano Gallet y Oscar Lorenzo Fernan<strong>de</strong>s,<br />

la “nueva generación musical” encarga<strong>da</strong> <strong>de</strong> continuar la<br />

ten<strong>de</strong>ncia nacionalista inicia<strong>da</strong> por músicos anteriores.<br />

Sobre Villa-Lobos, reconoce su ya trascen<strong>de</strong>nte labor<br />

internacional y su consistencia como compositor<br />

mo<strong>de</strong>rno y a la vez brasileño. 40<br />

49


50<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

Muy diferente es la opinión sobre el compositor, <strong>de</strong> otro<br />

corresponsal que escribe para La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong> en<br />

1928, Augusto Lopez Gonsalvez. Su crónica referi<strong>da</strong> a<br />

los últimos sucesos con que cerró la tempora<strong>da</strong> 1927<br />

en Río <strong>de</strong> Janeiro, parece representar exactamente la<br />

opinión contraria a la <strong>de</strong> Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> y Tapaios<br />

Gomez. La contraposición entre las ciu<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> San Pablo<br />

y Río aparece netamente yuxtapuesta en esta nota. Para<br />

el periodista, en aquel momento se estaba <strong>da</strong>ndo un<br />

“renacimiento” <strong>de</strong>l arte “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ramente brasileño” como<br />

reacción a la Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rno, “movimiento<br />

<strong>de</strong>structor, <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nado y <strong>de</strong>sorientado que se inició en<br />

San Pablo bajo el aspecto <strong>de</strong>l más exagerado futurismo<br />

y bajo los auspicios <strong>de</strong>l ya gastado Marinetti como dios<br />

creador.” 41 Ese “renacimiento” estaba representado por la<br />

producción musical <strong>de</strong> Lorenzo Fernan<strong>de</strong>s, natural <strong>de</strong> Río<br />

<strong>de</strong> Janeiro, ligado a un arte más bien <strong>de</strong> corte romántico,<br />

<strong>de</strong>cimonónico y - por las <strong>de</strong>scripciones que brin<strong>da</strong> - tonal.<br />

Villa-Lobos, en cambio, no lograba plasmar, según esta<br />

nota, el “alma brasileña”. Dice:<br />

“El extraordinario Villa-Lobos mismo, a pesar <strong>de</strong> haber escrito<br />

tanto sobre nuestro folklore, es un músico que no traduce<br />

<strong>de</strong>bi<strong>da</strong>mente el alma brasileña, que no consigue [...] expresarla.<br />

Es que este músico se está tornando un reflejo ca<strong>da</strong> vez más<br />

acentuado <strong>de</strong> las innumerables corrientes <strong>de</strong> la música europea,<br />

<strong>de</strong> manera que sus composiciones, sobre todo las últimas, tienen<br />

una forma heterogénea en la cual lo que hay <strong>de</strong> brasileño<br />

muere o <strong>de</strong>saparece. [...] [Se presentó] Alma brasileña [para<br />

piano], composición interesante, pero en la cual los brasileños<br />

absolutamente no reconocen su alma”. (La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>,<br />

año 1, nº 8, marzo 1928, p.49-50).<br />

5 - a manera <strong>de</strong> conclusión<br />

El recorrido realizado por una buena parte <strong>de</strong> la prensa<br />

periódica en torno a la primera visita <strong>de</strong> Villa-Lobos a<br />

Buenos Aires <strong>da</strong> cuenta <strong>de</strong> una recepción que resulta,<br />

si bien predominantemente positiva, algo reserva<strong>da</strong> o<br />

pru<strong>de</strong>ntemente expectante. Debe señalarse que, junto a<br />

algunos críticos conocidos como musicógrafos (Gastón<br />

Talamón o Herberto Paz, por ejemplo), se encuentran<br />

escritos correspondientes a personas cuya posición hoy<br />

es prácticamente <strong>de</strong>sconoci<strong>da</strong> en la historia <strong>de</strong> la música<br />

argentina (José Oje<strong>da</strong>) o que se <strong>de</strong>dicaron posteriormente<br />

a la activi<strong>da</strong>d empresarial (Bernardo Iriberri), mientras<br />

que el grueso <strong>de</strong> los artículos comentados lleva la firma -<br />

o son atribuibles con bastante certeza - <strong>de</strong> compositores<br />

argentinos representantes <strong>de</strong> la ten<strong>de</strong>ncia nacionalista,<br />

<strong>de</strong> conoci<strong>da</strong> trayectoria en ese terreno (Julián Aguirre,<br />

Carlos López Buchardo, Alberto Williams, José André).<br />

Que la presencia <strong>de</strong> Villa-Lobos en la capital argentina<br />

causó un fuerte impacto, es algo que surge con total<br />

evi<strong>de</strong>ncia. Que las relaciones <strong>de</strong> intercambio musical<br />

se enmarcaban en una ten<strong>de</strong>ncia más amplia ocurri<strong>da</strong><br />

en el campo cultural, promotora <strong>de</strong> una visión global,<br />

latinoamericana, muy típica <strong>de</strong> la época, es algo que<br />

se lee también en forma permanente en las diferentes<br />

fuentes consulta<strong>da</strong>s. Que los compositores nacionalistas<br />

argentinos enfatizaron lo que <strong>de</strong> local, folclórico, distintivo<br />

tiene la producción <strong>de</strong> Villa-Lobos es también algo bien<br />

marcado en los escritos recorridos.<br />

Sin embargo, ese predominio <strong>de</strong> una recepción positiva<br />

por parte <strong>de</strong> la crítica conviviendo con algunas<br />

expresiones <strong>de</strong> reserva o abstención (ocurri<strong>da</strong>s a veces<br />

incluso en la misma publicación, como se ha constatado),<br />

podría estar <strong>da</strong>ndo cuenta <strong>de</strong> un campo musical que<br />

estaba aún en formación y en el que las opciones por<br />

los lugares <strong>de</strong> preeminencia y subalterni<strong>da</strong>d, estaban<br />

en una suerte <strong>de</strong> estado <strong>de</strong> latencia. 42 Si por campo<br />

se entien<strong>de</strong>, según la noción bourdiana, un sistema <strong>de</strong><br />

líneas <strong>de</strong> fuerza en permanente oposición, sumatoria y<br />

choques, pue<strong>de</strong> <strong>de</strong>cirse que en el terreno musical esa<br />

combinación <strong>de</strong> fuerzas no se <strong>da</strong> aún <strong>de</strong>l todo en los años<br />

20, en Buenos Aires. La preeminencia <strong>de</strong>l nacionalismo<br />

como ten<strong>de</strong>ncia estilística en la música en esa déca<strong>da</strong><br />

es to<strong>da</strong>vía muy marca<strong>da</strong> y su carácter hegemónico está<br />

casi omnipresente a nivel <strong>de</strong> las publicaciones <strong>de</strong> mayor<br />

tira<strong>da</strong> y circulación.<br />

Pero el otro aspecto <strong>de</strong> la música <strong>de</strong> Villa-Lobos, el <strong>de</strong><br />

las innovaciones en el lenguaje y el <strong>de</strong> su pertenencia al<br />

movimiento mo<strong>de</strong>rnista brasileño, no pasaría <strong>de</strong>sapercibido<br />

para los compositores que estaban entonces en plena<br />

formación artística. Más allá <strong>de</strong>l interés por fomentar<br />

una política cultural que estrechara vínculos entre ambos<br />

países, quizá las marchas y contramarchas en torno a la<br />

valoración <strong>de</strong> su producción, hayan ya estado <strong>de</strong>jando<br />

avizorar en lo particular <strong>de</strong> ese campo musical incipiente,<br />

la que sería, no mucho tiempo <strong>de</strong>spués (hacia fines <strong>de</strong> la<br />

déca<strong>da</strong>, en 1929, con la creación <strong>de</strong>l “Grupo Renovación”),<br />

la indu<strong>da</strong>ble primera fractura entre tradición y mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d<br />

ocurri<strong>da</strong> en la historia musical <strong>de</strong> Argentina.


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

Referências<br />

ANDRA<strong>DE</strong>, Mário <strong>de</strong>. <strong>Música</strong> <strong>de</strong>l Brasil, Buenos Aires, Schapire, 1944.<br />

ARIZAGA, Rodolfo. Enciclopedia <strong>de</strong> la música argentina, Buenos Aires, Fondo Nacional <strong>de</strong> las Artes, 1971.<br />

BOURDIEU, Pierre. “Campo intelectual y proyecto creador”, Poullion, J. Problemas <strong>de</strong>l estructuralismo, México, siglo XXI, 1967.<br />

______ , Sociología y Cultura, México, Grijalbo, 1990.<br />

______ , Creencia artística y bienes simbólicos. Elementos para una sociología <strong>de</strong> la cultura, (Trad. y pról.: A. Gutiérrez),<br />

Córdoba- Buenos Aires, Grupo editorial aurelia*rivera, 2003.<br />

CAAMAÑO, Roberto. Historia <strong>de</strong>l Teatro Colón, Buenos Aires, Cinetea, 1969, 3 vols.<br />

GARCÍA MUÑOZ, Carmen. Julián Aguirre, Buenos Aires, Ediciones Culturales Argentinas, 1971.<br />

______ , “Materiales para una historia <strong>de</strong> la música argentina. La activi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong> entre<br />

1915 y 1930”, Revista <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> Investigación Musicológica ‘Carlos Vega’, año IX nº 9. Buenos Aires, UCA, 1988,<br />

p.149-194.<br />

______ , “López Buchardo. 1. Carlos”, Diccionario <strong>de</strong> la <strong>Música</strong> Española e Hispanoamericana, Madrid, SGAE, vol 6, 2000,<br />

p.1004-1006.<br />

GARCÍA MUÑOZ, Carmen y Ana María MONDOLO, “André, José”, Diccionario <strong>de</strong> la <strong>Música</strong> Española e Hispanoamericana,<br />

Madrid, SGAE, vol 1, 1999, p.451-453.<br />

GARRAMUÑO, Florencia. “¿Para qué comparar? Tango y samba y el fin <strong>de</strong> los estudios comparatistas y <strong>de</strong><br />

área”, Prismas, revista <strong>de</strong> historia intelectual, nº 8. Buenos Aires, 2004, p.151-162.<br />

ISER, Wolfgang. El acto <strong>de</strong> leer. Teoría <strong>de</strong>l efecto estético, Madrid, Taurus, 1987.<br />

JAUSS, Hans-Robert. Towards an Aesthetic of Reception, Brighton, Harvester Press, 1982.<br />

MANSILLA, Silvina Luz. “La Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires: instancia <strong>de</strong> legitimación y consagración musical<br />

en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1912-1921”, Revista <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> Investigación Musicológica ‘Carlos Vega’, nº 18, Buenos Aires,<br />

EDUCA, 2004, p.19-37.<br />

______ “El nacionalismo musical en Buenos Aires durante los días <strong>de</strong> Marcelo Torcuato <strong>de</strong> Alvear. Un análisis sociocultural<br />

sobre sus representantes, obras e instituciones”, Leiva, Alberto David (coord.), Los días <strong>de</strong> Alvear. Tomo 1. San<br />

Isidro (Buenos Aires), Aca<strong>de</strong>mia Provincial <strong>de</strong> Ciencias y Letras, 2006, p. 313-344.<br />

MICELI, Sergio. “La vanguardia argentina en la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920, notas sociológicas para un análisis comparado con el<br />

Brasil mo<strong>de</strong>rnista”, Prismas, revista <strong>de</strong> historia intelectual, nº 8, Buenos Aires, 2004, p.163-174.<br />

MONDOLO, Ana María. “Catálogo clasificado <strong>de</strong> la obra <strong>de</strong> Celestino Piaggio”, Revista <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> Investigación<br />

Musicológica ‘Carlos Vega’, año IX nº 9, Buenos Aires, UCA, 1988, p.79-94.<br />

SAAVEDRA, Leonora. Of Selves and Others: Historiography, I<strong>de</strong>ology, and the politics of Mo<strong>de</strong>rn Mexican<br />

Music. Tesis doctoral, University of Pittsburgh, 2001.<br />

SCARABINO, Guillermo. El Grupo Renovación (1929-1944) y la “nueva música” en la Argentina <strong>de</strong>l siglo XX, Buenos Aires,<br />

Instituto <strong>de</strong> Investigación Musicológica “Carlos Vega” (UCA), Cua<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Estudios nº 3, 2000.<br />

STORNI, Eduardo. Villa Lobos, Madrid, Espasa-Calpe, 1988.<br />

TORGOVNIK, Marianna. Defining the Primitive / Reimagining Mo<strong>de</strong>rnity, Gone Primitive: Savage Intellects, Mo<strong>de</strong>rn Lives.<br />

Chicago y Londres: University of Chicago Press, 1990, p.3-41.<br />

VALENTI FERRI, Enzo. Cien años <strong>de</strong> música en Buenos Aires, <strong>de</strong> 1890 a nuestros días, Buenos Aires, Gagliannone, 1992.<br />

WILLIAMS, Alberto. “Historia y biografía. Héctor Villa-Lobos”, La Quena, Revista mensual <strong>de</strong>l Conservatorio<br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Buenos Aires y sus 107 sucursales, Buenos Aires, año VI, nº 24, junio-julio 1925, p.3-7.<br />

WISNIK, José Miguel, O coro dos contrários. A música em torno <strong>da</strong> semana <strong>de</strong> 22, Sao Paulo, Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1977.<br />

WRIGHT, Simon, Villa-Lobos, Oxford-New York, Oxford University Press, 1992.<br />

Hemerografía:<br />

Periódicos: La Prensa, La Nación, La Vanguardia, El Diario, La Época.<br />

Revistas: Caras y Caretas, La Quena, El Hogar, Revista <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires, La Revista <strong>de</strong><br />

<strong>Música</strong>, Nosotros, Él.<br />

silvina luz Mansilla (1962) es Doctora en Artes por la Facultad <strong>de</strong> Filosofía y Letras <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Buenos Aires, con una<br />

tesis <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a la circulación, recepción y mediaciones en la obra musical <strong>de</strong> Carlos Guastavino. Licencia<strong>da</strong> y Profesora Superior<br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong>, especiali<strong>da</strong>d Musicología por la Universi<strong>da</strong>d Católica Argentina. Se graduó también como Profesora <strong>de</strong> Piano en el<br />

Conservatorio Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong> “Carlos López Buchardo”. En la actuali<strong>da</strong>d es docente-investigadora, con <strong>de</strong>dicación especial,<br />

en la Facultad <strong>de</strong> Artes y Ciencias Musicales <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d Católica Argentina y Jefe <strong>de</strong> Trabajos Prácticos en la cátedra<br />

“<strong>Música</strong> Latinoamericana y Argentina” <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Buenos Aires. Autora <strong>de</strong> numerosos artículos referidos a música<br />

académica argentina <strong>de</strong>l siglo XX, dirige tesistas y becarios, es tutora <strong>de</strong>l equipo UBACyT F-831 <strong>de</strong>dicado al estudio <strong>de</strong> la<br />

música en la prensa periódica argentina e integrante <strong>de</strong>l Órgano <strong>de</strong> Fiscalización <strong>de</strong> la Asociación Argentina <strong>de</strong> Musicología.<br />

51


52<br />

Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

Notas<br />

1 Agra<strong>de</strong>zco a la Dra. Patricia Artundo (profesora <strong>de</strong> la Facultad <strong>de</strong> Filosofía y Letras <strong>de</strong> la Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Buenos Aires) sus agu<strong>da</strong>s indicaciones<br />

y enseñanzas en el seminario <strong>de</strong> doctorado “Mo<strong>de</strong>rnismo brasileño y vanguardia argentina. Las relaciones artístico-literarias entre el Brasil y la<br />

Argentina durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920”. Una versión abrevia<strong>da</strong> <strong>de</strong> este trabajo fue presenta<strong>da</strong> en la XVII Conferencia <strong>de</strong> la Asociación Argentina <strong>de</strong><br />

Musicología y XIII Jorna<strong>da</strong>s Argentinas <strong>de</strong>l Instituto Nacional <strong>de</strong> Musicología, congreso realizado en La Plata (Buenos Aires, Argentina) entre el 17 y<br />

el 20 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2006.<br />

2 El Hogar, 20-5-1921. Citado en: GARCÍA MUÑOZ, 1970, p. 46.<br />

3 En esto, el campo musical, sigue a la generali<strong>da</strong>d <strong>de</strong>l campo cultural puesto que, en coinci<strong>de</strong>ncia con lo que sostiene Sergio Miceli, no creemos casual<br />

el hecho <strong>de</strong> que la visita <strong>de</strong> Villa-Lobos se haya podido materializar gestiona<strong>da</strong> por un mecenazgo privado. Miceli señala la “virtual ausencia <strong>de</strong><br />

iniciativas gubernamentales o públicas” en las condiciones <strong>de</strong> funcionamiento <strong>de</strong>l campo literario y artístico argentino en las déca<strong>da</strong>s <strong>de</strong> 1910 y 1920<br />

y en cambio la existencia <strong>de</strong> “un mecenazgo privado, ejercido ya sea en carácter personal por figuras ilustres <strong>de</strong> familias <strong>de</strong> la élite dominante [el caso<br />

<strong>de</strong> la Socie<strong>da</strong>d Cultural <strong>de</strong> Conciertos, como se verá más a<strong>de</strong>lante] o por frentes empresariales en el área cultural” (MICELI, 2004, p. 164).<br />

4 Seguramente junio <strong>de</strong> 1925 fue un mes muy “brasileño” en Buenos Aires, pues también la Socie<strong>da</strong>d Nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong> organizó un concierto<br />

extraordinario <strong>de</strong>dicado a la difusión <strong>de</strong> compositores <strong>de</strong> ese país. De ese concierto, en el cual no participó Villa-Lobos, sólo tenemos por ahora la<br />

fecha exacta (11-6-1925), <strong>da</strong>to que brin<strong>da</strong> Carmen GARCIA MUÑOZ (1988, p. 149).<br />

5 Luego <strong>de</strong> esa primera estancia convoca<strong>da</strong> por instituciones priva<strong>da</strong>s, para 1935 su presencia obe<strong>de</strong>ció ya a una invitación oficial, estatal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el<br />

Teatro Colón: dirigió obras propias y <strong>de</strong> otros compositores, ejecuta<strong>da</strong>s por la Orquesta Estable a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> ponerse en escena su ballet Uirapuru. En<br />

1940 nuevamente vino como director invitado a estrenar obras suyas con la Orquesta Estable <strong>de</strong>l Colón y algunos solistas brasileños. El año 1946<br />

marcó la última actuación <strong>de</strong> Villa-Lobos en el Colón: dio a conocer en ese viaje más obras propias <strong>de</strong> género sinfónico. Finalmente en 1952, participó<br />

en el teatro Gran Rex en la dirección <strong>de</strong> nuevos estrenos suyos, esta vez a cargo <strong>de</strong> la Orquesta Sinfónica <strong>de</strong>l Estado. (VALENTI FERRO, 1992, pp. 141-<br />

142 y CAAMAÑO, 1969, tomo 3, p. 381).<br />

6 De la teoría <strong>de</strong> la recepción están conteni<strong>da</strong>s en este estudio las nociones <strong>de</strong>: lector implícito, aquel receptor-lector-oyente hipotético que, según Iser,<br />

posee las predisposiciones para que la obra cause su efecto y comuni<strong>da</strong>d interpretativa, que se refiere, en palabras <strong>de</strong> Stanley Fish, a quienes opinan<br />

acerca <strong>de</strong> la obra adjudicándole vali<strong>de</strong>z a su significado. De Pierre Bourdieu, tomamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego los dos conceptos centrales <strong>de</strong> su teoría, campo<br />

y habitus. Campo o bien, campo intelectual, suele ser <strong>de</strong>finido como un sistema <strong>de</strong> fuerzas sociales que continuamente se oponen y se agregan,<br />

mientras que habitus alu<strong>de</strong> a lo social incorporado, las disposiciones dura<strong>de</strong>ras, producto <strong>de</strong> la historia (Ver bibliografía).<br />

7 “Campo” no sería, en este sentido, comprendido como un sinónimo <strong>de</strong> “terreno” (artístico, musical, cultural), como suele aplicarse en sentido<br />

generalizado. Bourdieu fue clarísimo al emplear la analogía <strong>de</strong>l campo intelectual con un campo “magnético” y cuando, expresamente, afirmó que<br />

el campo intelectual es “irreductible a un simple agregado <strong>de</strong> agentes aislados, a un conjunto <strong>de</strong> adiciones <strong>de</strong> elementos simplemente yuxtapuestos”<br />

(1967, p. 135).<br />

8 Si bien Storni no du<strong>da</strong> en mostrarse crítico para con la musicología produci<strong>da</strong> en los países centrales en un intento <strong>de</strong> reivindicar la producción<br />

latinoamericana (“...por lo visto, el rigor es sólo merecido por compositores que acrediten no ser periféricos...”), él mismo incurre en falta <strong>de</strong> rigor<br />

metodológico al <strong>da</strong>tar la primera visita <strong>de</strong> Villa-Lobos a la Argentina como ocurri<strong>da</strong> en 1926 (STORNI, 1988, p. 61. Énfasis suyo).<br />

9 El “Premio Europa” fue una beca <strong>de</strong> perfeccionamiento en composición musical que otorgó regularmente el gobierno nacional argentino <strong>de</strong>s<strong>de</strong> los<br />

últimos años <strong>de</strong>l siglo XIX hasta 1914, al comenzar la llama<strong>da</strong> Primera Guerra Mundial. Como en otras artes, ningún compositor que se preciara <strong>de</strong><br />

tal podía sustraerse a vivir la experiencia <strong>de</strong> estudio e intercambio intelectual en el viejo continente (con muchísima frecuencia en París), hecho que<br />

le servía <strong>de</strong> fuerte convali<strong>da</strong>ción entre sus pares. Los cuatro compositores fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong> la SNM fueron Felipe Boero, José André, Josué Teófilo Wilkes<br />

y Ricardo Rodríguez. (Ver GARCIA MUÑOZ, 1988, p. 149 y ss.)<br />

10 En el programa figuraron los compositores Glauco Velázquez, Henrique Oswald, J. Octaviano, Alberto Nepomuceno, Joào Nunes, Luciano Gallet y<br />

Heitor Villa-Lobos.<br />

11 A<strong>de</strong>más <strong>de</strong> los actos artísticos-musicales, hubo un primer intercambio, no muy feliz, a nivel <strong>de</strong> la musicografía, entre el crítico Gastón Talamón y<br />

Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Gastón Talamón, que escribió en la revista Nosotros y en el periódico La Prensa, escribió en La Revue Musicale <strong>de</strong> París (año 3, 1-<br />

7-1922, pp. 75-76), un artículo titulado “El estado actual <strong>de</strong> la música argentina”, en el cual resaltaba la producción <strong>de</strong> los compositores argentinos<br />

y con grandilocuencia <strong>de</strong>cía: “Buenos Aires se ha convertido en el mayor centro <strong>de</strong> esta cultura [la iberoamericana], y es ella quien aspira a traducir<br />

mejor los impulsos que agitan el Perú, el Ecuador, Chile, México, Brasil y Uruguay”. De Andra<strong>de</strong> no tardó en salir al encuentro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Klaxon (nº 5, 15-<br />

9-1922). Bastante contrariado y con ironía lo trató <strong>de</strong> “asno” y manifestó su “preocupación por la psicología <strong>de</strong> ese argentino tan erudito... Gastón...”.<br />

Consi<strong>de</strong>ró un atrevimiento que el crítico argentino, ante el público francés, dijera que “Buenos Aires traduce los impulsos musicales <strong>de</strong>l Brasil”. Irónico,<br />

Mário escribió: “¡Qué valiente!” y ensegui<strong>da</strong> resaltó a varios compositores brasileños (Carlos Gomes, Nepomuceno, Villa-Lobos) que a esa altura,<br />

aparecían mencionados en diccionarios musicales y en artículos <strong>de</strong> Milhaud, a diferencia <strong>de</strong> varios argentinos citados por Talamón. Y para finalizar,<br />

subrayó: “¿Qué nos importa? Es tiempo <strong>de</strong> alegría! Es el Centenario <strong>de</strong> la In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> Buenos Aires que celebramos el 7 <strong>de</strong> septiembre...!!<br />

Démonos las manos...!” Se dirimía sin du<strong>da</strong> en este hecho, la búsque<strong>da</strong> por la primacía <strong>de</strong> uno u otro país, ante el continente europeo.<br />

12 El resaltado es mío. La suite O prole do bebê era una obra nuevísima: Rubinstein la había estrenado en el Teatro Municipal <strong>de</strong> Río <strong>de</strong> Janeiro en julio<br />

<strong>de</strong> ese mismo año (WRIGHT, 1992, p. 31).<br />

13 Las crónicas se titularon “Concierto Argentino en Brasil” (El Hogar, nº 679. 20-10-1922, p. 92 y ss.) y “Concierto sinfónico en el Colón” (El Hogar,<br />

nº 686, 8-12-1922, p. 92 y ss.)<br />

14 La Asociación Sinfónica <strong>de</strong> Buenos Aires sería la que <strong>de</strong>spués dio origen a la Orquesta Estable <strong>de</strong>l Teatro Colón. Ello suce<strong>de</strong> en 1925, año en que se<br />

crean los <strong>de</strong>nominados “cuerpos estables” <strong>de</strong>l teatro (ballet, orquesta y coro). Ver VALENTI FERRO, 1992, p. 117.<br />

15 Asociación <strong>de</strong>l Profesorado Orquestal, una enti<strong>da</strong>d fun<strong>da</strong><strong>da</strong> en 1919 con fines gremiales. Ver VALENTI FERRO, 1992, pp. 118-119.<br />

16 También habría venido a la Argentina en 1927, según aparece mencionado en La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong> (año 1, nº 4, octubre 1927, p. 266). No se investiga<br />

esta visita, en este trabajo.<br />

17 La nota se titula “El Homenaje <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires al pueblo brasileño”, (año VI, n° 55, oct-nov-dic 1922, pp. 1-4).<br />

18 Menciona notas apareci<strong>da</strong>s en A noite, Gazeta <strong>de</strong> Noticias, Corrreio <strong>da</strong> Manha, O Día, O Jornal, A Rua, Jornal do comercio, A Noticia, Gazeta <strong>da</strong> Noite,<br />

A Patria, A Folha y Jornal do Brasil (año VI, n° 55, oct-nov-dic 1922, p. 3).<br />

19 Fue presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> la SNM <strong>de</strong>s<strong>de</strong> su creación, hasta 1924. Estos <strong>de</strong>talles <strong>da</strong>n cuenta <strong>de</strong> la red <strong>de</strong> cooperación existente entre las socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicales<br />

argentinas y <strong>de</strong> la permanencia en algunas <strong>de</strong> ellas <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados compositores, lo cual favoreció la institucionalización <strong>de</strong>l nacionalismo musical.<br />

20 En un trabajo referido a Celestino Piaggio, Ana María Mondolo (1988, p. 94) aporta la fecha exacta <strong>de</strong> este concierto, realizado el 2 <strong>de</strong> diciembre <strong>de</strong><br />

1922 en el teatro Colón. También cita una crónica periodística referi<strong>da</strong> a la actuación en Río, apareci<strong>da</strong> en A noite, el 5 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1922.<br />

21 De ello <strong>da</strong> cuenta Aguirre (“Concierto sinfónico en el Colón”, El Hogar, nº 686, 8-12-1922, p. 92).<br />

22 Hay noticias <strong>de</strong> esto en La Prensa (1-6-1925, p. 19). El periódico parece haber sido uno <strong>de</strong> los mejores predispuestos, porque anticipó ese día: “...La<br />

audición produjo hon<strong>da</strong> impresión en el numeroso auditorio, siendo unánime la opinión <strong>de</strong> que el maestro Villa-Lobos es una <strong>de</strong> las más interesantes<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s musicales <strong>de</strong> nuestra época.”


Mansilla, s. l. Heitor Villa-Lobos en Buenos Aires durante la déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920 ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 42-53<br />

23 Villa-Lobos <strong>de</strong>bió estar en Buenos Aires <strong>de</strong>s<strong>de</strong> al menos dos semanas antes, puesto que la puesta a punto y dirección <strong>de</strong>l extenso programa no pudo<br />

haberse realizado en tan poco tiempo.<br />

24 Las fechas <strong>de</strong> composición han sido toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> WRIGHT, 1992 y WISNIK, 1977.<br />

25 “Héctor Villa-Lobos en la Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires”, Revista <strong>de</strong> la Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires. (Año VII, n° 71, junio-1925,<br />

p. 2)<br />

26 López Buchardo presidió la Wagneriana entre 1916 y 1948, año <strong>de</strong> su fallecimiento. Fue él quien impulsó la edición <strong>de</strong> esta revista, a<strong>de</strong>más <strong>de</strong>l coro<br />

y la orquesta que se fun<strong>da</strong>rían posteriormente (GARCÍA MUÑOZ, 2000, p. 1004).<br />

27 Iriberri ejerció la crítica en las revistas El Hogar y Atlánti<strong>da</strong> y a partir <strong>de</strong> 1928 se <strong>de</strong>dicó a una empresa <strong>de</strong> organización <strong>de</strong> conciertos que llamó<br />

“Conciertos Iriberri”. Pianista <strong>de</strong> formación, su empresa llegó a ser una <strong>de</strong> las instituciones más relevantes <strong>de</strong> América en esa especiali<strong>da</strong>d (Véase<br />

ARIZAGA, 1971, p. 184)<br />

28 “Pocas audiciones han <strong>de</strong>spertado tanta curiosi<strong>da</strong>d como la que se celebró días pasados en la Asociación Wagneriana”. (El Hogar, 19-6-1925, p. 27).<br />

29 ARIZAGA (1971, p. 291) afirma que Talamón fue crítico <strong>de</strong> La Prensa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1922 hasta su muerte, ocurri<strong>da</strong> en 1956. Entre sus escritos figuran<br />

numerosos ensayos y artículos a favor <strong>de</strong> la ten<strong>de</strong>ncia nacionalista y un libro <strong>de</strong> Historia <strong>de</strong> la <strong>Música</strong>. Las críticas en los diarios habitualmente se<br />

publicaban sin firma. Sí se incluía el nombre <strong>de</strong>l columnista en las revistas.<br />

30 Agra<strong>de</strong>zco a Patricia Artundo su gentileza al señalarme la existencia <strong>de</strong> esta crónica periodística.<br />

31 Ernst Ansermet como se sabe, ya estaba establecido en Buenos Aires, un año antes <strong>de</strong> la primera visita <strong>de</strong> Villa-Lobos, en 1924. Obras sinfónicas<br />

<strong>de</strong> algunos <strong>de</strong> esos autores fueron interpreta<strong>da</strong>s en esta ciu<strong>da</strong>d antes <strong>de</strong> 1925, a saber: Casella (1909, 1911, 1916), Malipiero (1910, 1919, 1922),<br />

Prokofiev (1914, 1916, 1919) y Honegger (1918, 1920, 1921, 1923) (cfr. SCARABINO, 2000, pp. 55-56).<br />

32 El subrayado es original.<br />

33 GARCÍA MUÑOZ y MONDOLO afirman que André escribió en La Nación entre 1923 y 1944 y que “revistas y periódicos se enriquecieron con sus<br />

escritos, que abarcaban <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el diario comentario anónimo hasta colaboraciones y artículos firmados” (1999, p. 452).<br />

34 La soprano Mag<strong>da</strong>lena Bengolea <strong>de</strong> Sánchez Elía, directora <strong>de</strong> la enti<strong>da</strong>d, también estaba programa<strong>da</strong> para este concierto, pero no pudo concretar<br />

sus partes por razones <strong>de</strong> salud, según el diario La Época (18-6-1925, p. 8)<br />

35 Sobre el discurso primitivista asociado a la mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong>d, que resulta fun<strong>da</strong>mental en el pensamiento occi<strong>de</strong>ntal sobre el Otro, véase TORGOVNICK<br />

(1990, pp. 3-41). En la musicología Latinoamericana reciente pue<strong>de</strong> citarse en esta línea teórica, el estudio sobre música mexicana <strong>de</strong>l siglo XX<br />

realizado por Leonora Saavedra para su tesis doctoral (SAAVEDRA, 2001).<br />

36 Auspicia<strong>da</strong> por la Asociación Wagneriana <strong>de</strong> Buenos Aires y la editorial Ricordi, fue una publicación en la que se incluían gran canti<strong>da</strong>d <strong>de</strong> ejemplos<br />

musicales y muchas vignetas alusivas. Aparecieron en total treinta y tres números, hasta junio <strong>de</strong> 1930.<br />

37 Aunque se sabe sólo <strong>de</strong> tres colaboraciones suyas para esta revista, Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong>bió estar plenamente informado <strong>de</strong>l<br />

contenido <strong>de</strong> la misma puesto que (según informes <strong>de</strong> Patricia Artundo) en su biblioteca se encuentra una colección completa <strong>de</strong><br />

esta publicación periódica. Sus i<strong>de</strong>as sobre estética brasileña eran ya conoci<strong>da</strong>s en Buenos Aires <strong>de</strong>s<strong>de</strong> al menos 1925, año en que<br />

aparecen reseñas que evi<strong>de</strong>ncian la circulación <strong>de</strong> sus libros aquí.<br />

38 La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, año 1, nº 1, julio 1927, pp. 40-42.<br />

39 Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> vuelve a mencionar a Villa Lobos en un párrafo <strong>de</strong>dicado a Gue<strong>de</strong>s Penteado, importante mecenas femenina <strong>de</strong><br />

los artistas <strong>de</strong> la Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rno. Comenta que ella ha sido una <strong>de</strong>fensora incansable <strong>de</strong> su arte. (La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>.<br />

Año 1, nº 6, diciembre 1927, p. 123).<br />

40 Dice: “Villa Lobos, nombre que ya ha traspasado las fronteras <strong>de</strong> su patria, asume, por eso mismo, una posición <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>.<br />

Des<strong>de</strong> 1920, to<strong>da</strong>s sus producciones procuran traducir el ambiente brasileño, sin que hasta este momento hubiese titubeado en la<br />

consecución <strong>de</strong>l programa que se trazó. De una fecundi<strong>da</strong>d extraordinaria, Villa Lobos [...] realiza obra dura<strong>de</strong>ra” (La Revista <strong>de</strong><br />

<strong>Música</strong>, año 1 nº 2, agosto 1927, p. 38).<br />

41 La Revista <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, año 1, nº 8, marzo 1928, p. 48.<br />

42 En este caso no solamente resulta operativa la aplicación <strong>de</strong> la noción bourdiana <strong>de</strong> campo sino también el concepto gramsciano<br />

<strong>de</strong> hegemonía, entendiendo que <strong>de</strong> manera incipiente hubo fuerzas subalternas que pugnaban por emerger y alcanzar un lugar<br />

predominante. El término “subalterni<strong>da</strong>d”, si bien no está aceptado por el Diccionario <strong>de</strong> la Real Aca<strong>de</strong>mia Española, está muy<br />

diseminado en los estudios sociales latinoamericanos para referir a una condición ontológica en relación a contextos históricos<br />

pre-<strong>de</strong>terminados.<br />

53


54<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

Os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong><br />

Heitor Villa-Lobos e a transcrição<br />

para piano <strong>de</strong> José Vieira Brandão:<br />

uma análise comparativa<br />

Daniel Wolff (UFRGS, Porto Alegre)<br />

<strong>da</strong>niel@<strong>da</strong>nielwolff.com<br />

olin<strong>da</strong> Allessandrini (UFRGS, Porto Alegre)<br />

olin<strong>da</strong>piano@gmail.com<br />

Resumo: este artigo discute a transcrição para piano dos Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos. o autor<br />

<strong>da</strong>s transcrições, José Vieira Brandão, aluno e colaborador <strong>de</strong> Villa-lobos, contou com a aprovação do compositor para<br />

a publicação <strong>da</strong>s mesmas. Após contextualizar os prelúdios <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Villa-lobos para violão e estabelecer as<br />

circunstâncias históricas <strong>da</strong>s transcrições, a discussão enfoca a problemática <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação para o piano dos recursos<br />

característicos do violão empregados na versão original.<br />

Palavras-chave: Villa-lobos, Vieira Brandão, violão, transcrição, piano<br />

The Five Prelu<strong>de</strong>s for guitar by Heitor Villa-Lobos and José Vieira Brandão’s piano transcription:<br />

a comparative analysis<br />

Abstract: The present article discusses the piano transcription of Heitor Villa-lobos’s Five Prelu<strong>de</strong>s for guitar. The<br />

author of the transcriptions, José Vieira Brandão, pupil and collaborator of Villa-lobos, had the composer’s approval for<br />

publishing the piano version. Upon presenting the prelu<strong>de</strong>s in the context of Villa-lobos’s guitar works and establishing<br />

the historical background of the transcriptions, the discussion focuses on the problem of a<strong>da</strong>pting for the piano the<br />

idiomatic guitar writing of the original score.<br />

Keywords: Villa-lobos, Vieira Brandão, guitar, transcription, piano<br />

1 - Introdução<br />

em 1940, Heitor Villa-lobos compôs sua última obra para<br />

violão solo: os Cinco Prelúdios, <strong>de</strong>dicados à sua segun<strong>da</strong><br />

esposa Armin<strong>da</strong> Villa-lobos, a Mindinha. segundo relato<br />

do compositor, havia também um sexto prelúdio cuja<br />

partitura extraviou-se, o qual ele consi<strong>de</strong>rava como o<br />

mais belo <strong>de</strong> todos (sAnTos, 1975, p.25).<br />

os Cinco Prelúdios, obras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor na literatura<br />

musical brasileira, atraíram por sua beleza a atenção do<br />

pianista e compositor José Vieira Brandão, conceituado<br />

intérprete <strong>de</strong> Villa-lobos e seu aluno <strong>de</strong> composição<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1930, que <strong>de</strong>cidiu então transcrevê-los para piano.<br />

o próprio Villa-lobos chegou a ouvir a versão para piano<br />

dos três primeiros prelúdios, e não somente aprovou o<br />

trabalho <strong>de</strong> Vieira Brandão como o autorizou a publicálo<br />

no futuro 1 . Assim, em 1970, um ano após a primeira<br />

audição pública em execução do próprio Vieira Brandão<br />

na sala Cecília Meirelles, dá-se finalmente a publicação<br />

<strong>da</strong>s transcrições pela editora francesa Max eschig,<br />

responsável também pela publicação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong><br />

obra <strong>de</strong> Villa-lobos.<br />

PER MUSi – revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

Mesmo sendo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse musical, além <strong>de</strong><br />

idiomaticamente pianísticas, as transcrições <strong>de</strong> Vieira<br />

Brandão tiveram pequena repercussão, sendo praticamente<br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>s, mesmo entre os pianistas. estas obras foram<br />

grava<strong>da</strong>s no CD Villa-Lobos por Olin<strong>da</strong> Alessandrini (1992)<br />

e, com sua subseqüente difusão no meio musical brasileiro,<br />

estão finalmente recebendo os méritos que lhes cabem.<br />

em um programa <strong>de</strong> recital apresentado no Brasil e nos<br />

estados Unidos, os autores <strong>de</strong>ste artigo apresentaram, ao<br />

violão e ao piano, os Cinco Prelúdios, comparando as duas<br />

versões. Para nossa satisfação, sempre fomos gratificados<br />

com aplausos calorosos.<br />

Ao final <strong>da</strong>s apresentações, vários dos violonistas presentes<br />

— familiarizados com diferentes interpretações dos prelúdios<br />

— comentaram que a audição <strong>da</strong> transcrição para piano<br />

contribuiu para gerar novas idéias interpretativas para<br />

as partituras originais <strong>de</strong> Villa-lobos. incentivados pela<br />

boa receptivi<strong>da</strong><strong>de</strong> junto ao público, <strong>de</strong>cidimos registrar os<br />

resultados <strong>de</strong> nossa pesquisa, resultando no artigo a seguir.<br />

recebido em: 17/04/2007 - Aprovado em: 15/12/2007


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

2 - Os Cinco Prelúdios na obra para violão<br />

solo <strong>de</strong> Villa-Lobos<br />

Des<strong>de</strong> muito jovem Villa-lobos mostrou-se apegado ao<br />

violão, instrumento que executava com amplo domínio<br />

técnico, e pelo qual nutria especial carinho. De fato,<br />

sua primeira obra escrita foi uma peça para violão solo<br />

intitula<strong>da</strong> Panqueca, composta em 1900 2 . segue-se<br />

a produção <strong>de</strong> diversas obras para violão, entre elas a<br />

Mazurka em Ré Maior 3 e a Valsa Concerto n.2 4 , ambas<br />

extravia<strong>da</strong>s, tal como a Panqueca. finalmente, surge<br />

a Suíte Popular Brasileira (1908-1912), sua primeira<br />

composição <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte para o instrumento.<br />

A Suíte Popular Brasileira consta <strong>de</strong> cinco movimentos:<br />

Mazurka-Choro, Schottisch-Choro, Valsa-Choro, Gavota-<br />

Choro e Chorinho. Apesar <strong>de</strong> belos e musicalmente<br />

sólidos, os movimentos <strong>da</strong> suíte <strong>de</strong>monstram uma escrita<br />

tradicional para violão, nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong>s antigas escolas<br />

do instrumento que Villa-lobos tão bem dominava (sor,<br />

Aguado, Carcassi etc.). É somente na déca<strong>da</strong> seguinte,<br />

quando <strong>da</strong> composição dos Doze Estudos (1924-1929),<br />

que Villa-lobos levaria o violão a caminhos técnicos até<br />

então inexplorados, a ponto do violonista espanhol Andrés<br />

segóvia, a quem foram <strong>de</strong>dicados os estudos, consi<strong>de</strong>rálos,<br />

a princípio, como impossíveis <strong>de</strong> serem tocados.<br />

Os Doze Estudos contrastam muito com a Suíte Popular<br />

Brasileira. não somente pelas inovações técnicas acima<br />

menciona<strong>da</strong>s, mas também pela arroja<strong>da</strong> linguagem<br />

musical, fruto <strong>da</strong>s influências sofri<strong>da</strong>s por Villa-lobos em<br />

Paris. Dona <strong>de</strong> singela beleza, a Suíte Popular Brasileira é,<br />

também, dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> tradicional prosódia musical: suas frases<br />

são regulares, o sistema harmônico primordialmente tonal,<br />

os contornos melódicos típicos do século XiX, ain<strong>da</strong> quando<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> a influência do choro carioca dos princípios<br />

do século XX. Já nos Doze Estudos percebe-se o espírito<br />

<strong>de</strong>sbravador e pioneiro do compositor: as sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

inovadoras são em gran<strong>de</strong> parte fruto dos avanços técnicos<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>dos por Villa-lobos ao instrumento, resultando em<br />

inespera<strong>da</strong>s e inventivas texturas, muitas <strong>da</strong>s quais soam<br />

arroja<strong>da</strong>s ain<strong>da</strong> nos dias <strong>de</strong> hoje.<br />

em 1940, Villa-lobos retorna sua atenção ao violão,<br />

<strong>de</strong>dicando-lhe os Cinco Prelúdios. e que bela síntese<br />

faz aqui Villa-lobos, <strong>de</strong> sua própria produção musical.<br />

Muitas <strong>da</strong>s inovações sonoras dos Doze Estudos estão<br />

aqui presentes, porém o idioma musical é <strong>de</strong> uma<br />

simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> típica <strong>da</strong> Suíte Popular Brasileira. Tomese<br />

como exemplo o Prelúdio n.2. enquanto a primeira<br />

seção remonta às harmonias simples e à afini<strong>da</strong><strong>de</strong> com<br />

o choro <strong>da</strong> Suíte Popular brasileira, a seção central é<br />

indiscutivelmente associa<strong>da</strong> ao caráter inovador dos<br />

Doze Estudos. Cabe então in<strong>da</strong>gar porque Villa-lobos,<br />

já com cinqüenta e três anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> e consi<strong>de</strong>rável<br />

<strong>de</strong>staque profissional, teria regressado a um estilo<br />

musical típico <strong>da</strong> sua juventu<strong>de</strong>.<br />

infelizmente, é impossível respon<strong>de</strong>r esta questão com<br />

certeza, restando-nos apegar a possíveis suposições.<br />

sendo os Cinco Prelúdios <strong>de</strong>dicados a Mindinha, esposa<br />

que Villa-lobos tanto amava e por quem possuía profundo<br />

afeto, é natural que o compositor recorresse ao estilo<br />

“afetuoso” <strong>da</strong> suíte, mais apropriado para a ocasião do<br />

que o espírito viril dos Estudos.<br />

Ao mesmo tempo, em sua produção pianística do mesmo<br />

período, constatamos também um retorno ao romantismo<br />

presente em obras <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong>. É possível, portanto,<br />

que Villa-lobos estivesse, no momento, atravessando uma<br />

fase comum a pessoas <strong>de</strong> meia i<strong>da</strong><strong>de</strong>, na qual se proce<strong>de</strong> a<br />

um “retorno às raízes”, porém com a experiência adquiri<strong>da</strong><br />

ao longo dos anos. não esqueçamos que o violão era o<br />

“instrumento secreto” <strong>da</strong> adolescência do compositor,<br />

que tinha <strong>de</strong> praticá-lo escondido <strong>de</strong> sua família.<br />

3 - Vieira Brandão, o músico<br />

Vieira Brandão nasceu em 26 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1911, em<br />

Cambuquira, Minas Gerais e, ain<strong>da</strong> criança, transferiuse<br />

para o rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> residiu a maior parte<br />

<strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Teve sóli<strong>da</strong> formação musical, concluindo<br />

em 1929, com primeiro prêmio, o curso <strong>de</strong> piano no<br />

instituto nacional <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, hoje escola <strong>de</strong> <strong>Música</strong><br />

<strong>da</strong> UfrJ. iniciou, então, a carreira <strong>de</strong> concertista,<br />

realizando turnês pelo Brasil, América do sul e estados<br />

Unidos, on<strong>de</strong> foi bolsista <strong>de</strong> 1945 a 1946 na University<br />

of southern California em los Angeles. foi Professor<br />

Titular <strong>de</strong> Piano e Canto Coral do Conservatório Brasileiro<br />

<strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1940. Dedicou-se, em especial, à obra<br />

pianística <strong>de</strong> Villa-lobos, sendo responsável por diversas<br />

primeiras audições mundiais <strong>de</strong> suas obras compostas<br />

entre 1932 e 1959, ano do falecimento <strong>de</strong> Villa-lobos.<br />

entre elas, <strong>de</strong>stacam-se o Choros n.11 e a Bachianas<br />

Brasileiras n.3, ambas apresenta<strong>da</strong>s sob a regência do<br />

próprio compositor.<br />

A partir <strong>de</strong> 1930, iniciou os estudos <strong>de</strong> composição com<br />

Villa-lobos. Como compositor, suas obras mantém-se<br />

fiéis ao nacionalismo. Produziu canções, peças pianísticas,<br />

obras <strong>de</strong> câmara e orquestrais, movimentando-se com<br />

<strong>de</strong>senvoltura entre os vários gêneros musicais. De seu<br />

catálogo constam mais <strong>de</strong> cem títulos. em sua homenagem,<br />

o Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Música</strong> realizou o 1º Concurso<br />

nacional <strong>de</strong> Piano José Vieira Brandão, e lançou o CD A<br />

obra <strong>de</strong> José Vieira Brandão (1995), contendo obras corais<br />

e música <strong>de</strong> câmara do compositor:<br />

Como educador musical, teve <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> atuação no<br />

magistério do Piano, <strong>da</strong> educação Musical e <strong>da</strong> regência<br />

Coral. foi o mais próximo colaborador <strong>de</strong> Villa-lobos<br />

nas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> superintendência Musical e Artística<br />

(seMA), órgão governamental que estimulou a educação<br />

musical nas escolas brasileiras através do canto orfeônico.<br />

A partir <strong>de</strong> 1956, <strong>de</strong>sempenhou a função <strong>de</strong> Técnico<br />

em educação Musical e Artística junto à secretaria <strong>de</strong><br />

educação e Cultura do rio <strong>de</strong> Janeiro. fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira<br />

n.36 <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> <strong>Música</strong>, ocupou o cargo<br />

<strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte do Conservatório Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong><br />

1990 até falecer em 2002.<br />

55


56<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

4 - As transcrições <strong>de</strong> José Vieira Brandão<br />

A arte <strong>da</strong> transcrição, que consiste em a<strong>da</strong>ptar uma obra<br />

musical para uma formação instrumental distinta <strong>da</strong>quela<br />

para qual a obra foi originalmente concebi<strong>da</strong>, é pratica<strong>da</strong><br />

com freqüência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período renascentista. naquela<br />

época, era comum encontrar obras dos gran<strong>de</strong>s mestres<br />

<strong>da</strong> polifonia vocal transcritas para vihuela, instrumento<br />

precursor do violão. Tal prática permaneceu em uso ao longo<br />

do período barroco através do alaú<strong>de</strong>, outro importante<br />

precursor do violão. Por exemplo, <strong>da</strong>s quatro suítes que J.s.<br />

Bach <strong>de</strong>dicou ao instrumento, duas <strong>de</strong>las — BWV 995 e<br />

BWV 1006a — possuem também versões para violoncelo<br />

e violino, respectivamente. o próprio Bach também<br />

transcreveu, para as mais varia<strong>da</strong>s formações, obras <strong>de</strong><br />

compositores tais como Vivaldi, Albinoni e Marcello.<br />

no período clássico, e durante todo o século XiX,<br />

a realização <strong>de</strong> transcrições permanece constante:<br />

Mozart transformou várias <strong>de</strong> suas peças <strong>de</strong> câmara<br />

em movimentos sinfônicos; Beethoven transcreveu para<br />

piano e orquestra seu concerto para violino. Po<strong>de</strong>mos<br />

citar, também, liszt que transcreveu para o piano vários<br />

Lie<strong>de</strong>r <strong>de</strong> schubert, estudos <strong>de</strong> Paganini, obras <strong>de</strong> Bach<br />

para órgão, as nove sinfonias <strong>de</strong> Beethoven e trechos <strong>de</strong><br />

diversas óperas. no século XX, são notórias as transcrições<br />

orquestrais <strong>de</strong> schoenberg <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> câmara <strong>de</strong><br />

Beethoven e Brahms, assim como a a<strong>da</strong>ptação orquestral<br />

dos Quadros <strong>de</strong> uma Exposição <strong>de</strong> Mussorgsky por ravel.<br />

Gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong>s obras orquestrais <strong>de</strong> ravel também foi,<br />

num primeiro momento, concebi<strong>da</strong> para piano solo, e só<br />

então transcrita para orquestra pelo próprio compositor.<br />

Heitor Villa-lobos, mesmo sendo um compositor<br />

extremamente fértil, transcreveu muitas <strong>de</strong> suas obras<br />

para diferentes formações instrumentais. eis aqui<br />

alguns célebres exemplos: Bachianas Brasileiras n.4 (<strong>de</strong><br />

piano solo para orquestra <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s), Ária <strong>da</strong>s Bachianas<br />

Brasileiras n.5 (<strong>de</strong> canto e octeto <strong>de</strong> violoncelos para<br />

canto e violão, e posteriormente para canto e piano),<br />

Modinha e Canção do Poeta do Século Dezoito (<strong>de</strong> canto<br />

e piano para canto e violão).<br />

Quanto às transcrições do violão para o piano, já<br />

comentamos que Villa-lobos ouviu e aprovou a transcrição<br />

para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão dos três primeiros Prelúdios.<br />

Há outra evidência <strong>de</strong> que Villa-lobos aprovava transcrições<br />

<strong>de</strong>ste tipo. Carlevaro relata que ouviu os Doze Estudos<br />

pela primeira vez quando foi apresentado por Villa-lobos<br />

ao pianista Tomás Terán. “ele [Villa-lobos] pediu a Terán<br />

para tocar os estudos para mim. foi surpreen<strong>de</strong>nte ouvir<br />

as transcrições para piano <strong>de</strong> Terán <strong>de</strong>stes estudos para<br />

violão. Primeiro, Villa-lobos comentava um dos estudos e<br />

após Terán tocava-o ao piano” (CArleVAro, 1988, p.3).<br />

em sua juventu<strong>de</strong>, Villa-lobos coletou canções populares<br />

nas diversas regiões do Brasil. no contexto <strong>de</strong> sua obra,<br />

estes temas nortearam sua produção musical para as mais<br />

varia<strong>da</strong>s formações camerísticas, vocais e orquestrais.<br />

Para piano, arranjou um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> canções<br />

folclóricas brasileiras em coletâneas como as Ciran<strong>da</strong>s, as<br />

Cirandinhas, o Guia Prático e a Prole do Bebê n.1.<br />

note-se aqui a aparição <strong>de</strong> um novo termo — arranjo — o qual<br />

difere consi<strong>de</strong>ravelmente <strong>da</strong> transcrição. segundo Adler,<br />

Transcrição é a transferência <strong>de</strong> uma obra previamente composta<br />

<strong>de</strong> um meio musical para outro. Já o arranjo envolve mais do<br />

processo <strong>de</strong> composição, uma vez que o material previamente<br />

existente po<strong>de</strong> ser não mais que uma melodia ou mesmo parte <strong>de</strong><br />

uma melodia para a qual o arranjador <strong>de</strong>ve suprir uma harmonia,<br />

contraponto, e às vezes até mesmo ritmo [...] (1989, p.512).<br />

É interessante notar que na a<strong>da</strong>ptação para piano dos Cinco<br />

Prelúdios, Vieira Brandão obteve um resultado híbrido <strong>de</strong><br />

arranjo e transcrição. se consi<strong>de</strong>rarmos a distinção entre os<br />

dois termos estabeleci<strong>da</strong> por Adler, veremos que o material<br />

original (a partitura para violão solo) ten<strong>de</strong>ria a resultados<br />

próprios <strong>de</strong> uma transcrição, pois a melodia, a harmonia<br />

e o ritmo foram indicados com precisão pelo compositor.<br />

Porém, o violão possui uma pequena extensão <strong>de</strong> pouco<br />

mais <strong>de</strong> três oitavas, além <strong>de</strong> uma limita<strong>da</strong> gama <strong>de</strong> recursos<br />

polifônicos, se comparado ao piano. Assim, obras escritas<br />

originalmente para violão solo ten<strong>de</strong>m a soarem vazias<br />

e restritas quando executa<strong>da</strong>s em sua escrita original ao<br />

piano, que teria então somente uma pequena parte <strong>de</strong> suas<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> manejo explora<strong>da</strong>s.<br />

Como exemplo, os harmônicos naturais do Prelúdio n.2,<br />

<strong>de</strong> especial efeito ao violão, per<strong>de</strong>riam muito <strong>de</strong> sua<br />

ambientação se executados como uma simples monodia<br />

ao piano. Também o acompanhamento <strong>da</strong> primeira seção<br />

do Prelúdio n.2 resultaria por <strong>de</strong>mais simples para a mão<br />

esquer<strong>da</strong> do pianista. A fim <strong>de</strong> solucionar o problema,<br />

Vieira Brandão teve <strong>de</strong> criar novas texturas e padrões<br />

<strong>de</strong> acompanhamento que enriquecessem o material<br />

musical a ponto <strong>de</strong> torná-lo satisfatório para o piano.<br />

ele soube combinar cautelosamente elementos <strong>de</strong> ambos<br />

— arranjo e transcrição — no intuito <strong>de</strong> melhor preservar<br />

a ambientação original dos prelúdios ao piano, tal qual<br />

fez Villa-lobos ao transcrever suas próprias obras.<br />

Vieira Brandão faz uma releitura <strong>da</strong> obra original, baseado<br />

em suas experiências como pianista, <strong>de</strong>monstrando amplo<br />

domínio do teclado e dos diferentes timbres que o piano<br />

po<strong>de</strong> apresentar. Por ser um profícuo intérprete <strong>de</strong> Villalobos,<br />

adquiriu intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a linguagem e a técnica<br />

do compositor, valendo-se <strong>de</strong>stes elementos na realização<br />

<strong>da</strong>s transcrições dos Cinco Prelúdios.<br />

A pianista Anna stella sCHiC (1989, p.141), renoma<strong>da</strong><br />

intérprete e amiga <strong>de</strong> Villa-lobos, referiu-se assim às<br />

transcrições dos prelúdios por Vieira Brandão:<br />

[…] simplesmente extraordinárias. Graças a essas obras, senti<br />

alguns dos momentos <strong>de</strong> maior emoção, mercê <strong>da</strong> inegável<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Vieira Brandão, transformando-os em cinco peças<br />

pianísticas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> beleza e força, a<strong>da</strong>ptando-os perfeitamente<br />

ao instrumento ao mesmo tempo em que respeita totalmente a<br />

tessitura, a cor, o gênero e o som do violão. […] posso afirmar,<br />

transmitindo minha própria opinião, que o próprio autor não<br />

transformaria esses prelúdios em versão pianística, com maior<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do que Vieira Brandão, conhecedor profundo e<br />

abalizado <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Villa-lobos.


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

5 - O original <strong>de</strong> Villa-Lobos e a transcrição<br />

<strong>de</strong> Vieira Brandão: comentário comparativo<br />

A fim <strong>de</strong> melhor ilustrar o processo <strong>de</strong> transcrição, incluímos<br />

a seguir uma concisa análise comparativa <strong>da</strong>s soluções<br />

encontra<strong>da</strong>s por Vieira Brandão frente ao problema <strong>de</strong> transpor<br />

para o piano a escrita tipicamente violonística <strong>de</strong> Villa-lobos.<br />

Antes <strong>de</strong> examinar ca<strong>da</strong> prelúdio individualmente, cabe<br />

ressaltar que, na versão para violão, Villa-lobos coloca<br />

pouquíssimas indicações <strong>de</strong> dinâmica. Vieira Brandão,<br />

na versão pianística, é prolixo nas indicações, tanto <strong>de</strong><br />

dinâmica, como <strong>de</strong> an<strong>da</strong>mento e, mesmo, <strong>de</strong> caráter.<br />

Algumas vezes, suas indicações reforçam o fluxo natural<br />

do texto musical, e, portanto, coinci<strong>de</strong>m com as idéias <strong>de</strong><br />

Villa-lobos, implícitas na versão violonística. em muitos<br />

trechos, no entanto, especialmente nas indicações <strong>de</strong><br />

an<strong>da</strong>mento, divergem dos originais.<br />

5.1 - Prelúdio n.1: Homenagem ao Sertanejo<br />

Brasileiro - Melodia Lírica 5 (Composto na forma<br />

A B A)<br />

na parte inicial (A), o tema melódico, que aparece três<br />

vezes com pequenas diferenças, é tratado pianisticamente<br />

como uma progressão. na primeira vez (c.1-12), a escrita<br />

pianística é semelhante à do original, buscando preservar<br />

as sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s do violão (ex.1).<br />

na segun<strong>da</strong> vez (a partir do c.13), Vieira Brandão sugere<br />

crescendo e poco affretando. na terceira e última<br />

progressão temática, a partir do c.29 (ex.2), Vieira Brandão<br />

enriquece o original com dobramentos <strong>de</strong> oitava tanto o<br />

tema quanto os acor<strong>de</strong>s do acompanhamento, <strong>de</strong> modo a<br />

reforçar o clímax <strong>da</strong> progressão.<br />

ex.1: H. Villa-lobos, Prelúdio 1, c.1-4. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.2: H. Villa-lobos, Prelúdio 1, c.29-32. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

57


58<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

na seção B (Più Mosso), o violão imita a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

viola caipira, instrumento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ressonância em<br />

virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong>s <strong>de</strong>z cor<strong>da</strong>s <strong>de</strong> aço agrupa<strong>da</strong>s em cinco pares.<br />

o arpejo recorrente do acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> mi maior remonta a uma<br />

<strong>da</strong>s afinações <strong>da</strong> viola caipira. Vieira Brandão optou pelo<br />

<strong>de</strong>sdobramento do motivo principal em oitavas para obter<br />

uma sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> mais brilhante, semelhante à <strong>da</strong> viola<br />

caipira (ex.3). A utilização do pe<strong>da</strong>l — implícita na extensão<br />

dos arpejos e na oitava grave e longa que apóia o primeiro<br />

tempo — contribui para aumentar a ressonância.<br />

Curiosamente, o final <strong>de</strong>ste prelúdio, que, ao violão,<br />

solicita expressivo diminuendo, ao piano, é substituído<br />

por crescendo.<br />

5.2 - Prelúdio n.2: Homenagem ao Malandro<br />

Carioca - Melodia Capadócia - Melodia Capoeira<br />

(Composto na forma A B A)<br />

no An<strong>da</strong>ntino inicial, o clima <strong>de</strong> seresta surge com<br />

naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> na versão violonística. A escrita pianística<br />

procura captar este ambiente, através <strong>da</strong> utilização<br />

do registro agudo em staccatto, conferindo leveza ao<br />

trecho (tocado com pe<strong>da</strong>l <strong>de</strong> uma cor<strong>da</strong>). Contrariando<br />

a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> rítmica do original, Vieira Brandão cria um<br />

acompanhamento <strong>de</strong> mão esquer<strong>da</strong> no registro médio,<br />

com ritmo <strong>de</strong> habanera, comum às obras pianísticas <strong>de</strong><br />

salão do início do século XX, no rio <strong>de</strong> Janeiro (ex.4).<br />

recurso semelhante foi utilizado por odmar Amaral<br />

Gurgel (vulgo Gaó) no arranjo para piano do Choros n.<br />

1 (original para violão) 6 . Contudo, o acompanhamento<br />

agregado por Gaó é em ritmo <strong>de</strong> choro, idêntico ao que<br />

encontramos em diversas peças <strong>de</strong> ernesto nazareth, a<br />

quem Villa-lobos <strong>de</strong>dicou o Choros n. 1.<br />

na seção central temos uma <strong>da</strong>s inovações <strong>de</strong> Villalobos<br />

na escrita para o violão: a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> obti<strong>da</strong> é<br />

resultante <strong>da</strong> afinação natural do instrumento, mediante<br />

a utilização <strong>de</strong> um pe<strong>da</strong>l <strong>de</strong> cor<strong>da</strong>s soltas em oposição ao<br />

<strong>de</strong>slocamento paralelo <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s nas <strong>de</strong>mais cor<strong>da</strong>s do<br />

instrumento. Villa-lobos utilizou este recurso técnico em<br />

inúmeras ocasiões, levando Marco PereirA (1984, p.53)<br />

a caracterizá-lo como o “ovo <strong>de</strong> Colombo” do compositor.<br />

na versão pianística Vieira Brandão, mesmo enriquecendo<br />

os arpejos originais, preserva a sensação física <strong>de</strong><br />

comodi<strong>da</strong><strong>de</strong> na execução ao utilizar o cruzamento <strong>de</strong><br />

mãos, recurso tão idiomático para o piano como o são os<br />

arpejos <strong>da</strong> versão original para violão (ex.5).<br />

5.3 - Prelúdio n.3: Homenagem a Bach (Composto<br />

na forma A B)<br />

Mais uma vez, no original para violão, o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

harmônico está diretamente ligado à afinação natural<br />

do instrumento, mediante o aproveitamento <strong>da</strong>s cor<strong>da</strong>s<br />

soltas na melodia do baixo. na versão para piano, são<br />

criados enca<strong>de</strong>amentos <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, porém sem obscurecer<br />

o sentido tonal.<br />

observemos os compassos iniciais. Tanto a progressão <strong>de</strong><br />

segun<strong>da</strong>s <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, como os baixos coincidindo com<br />

as cor<strong>da</strong>s soltas do violão, são executados pela mão direita<br />

na versão para piano. Para a mão esquer<strong>da</strong>, Vieira Brandão<br />

agrega acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tría<strong>de</strong>s e tétra<strong>de</strong>s. Curiosamente, no<br />

c.1 foram feitas duas alterações cromáticas na linha<br />

melódica. notem-se, também, as diferenças <strong>de</strong> compasso<br />

e figuras rítmicas entre as duas versões (ex.6).<br />

ex.3: H. Villa-lobos, Prelúdio 1, c.53-55. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

ex.4: H. Villa-lobos, Prelúdio 2, c.1-3. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.5: H. Villa-lobos, Prelúdio 2, c.35-38. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.6: H. Villa-lobos, Prelúdio 3, c.1-2. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão<br />

59


60<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

no Molto A<strong>da</strong>gio e Dolorido (Molto A<strong>da</strong>gio e Espressivo<br />

na versão pianística), o <strong>de</strong>senvolvimento bachiano em<br />

escalas <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> versão original é respeitado<br />

ao piano, exceto pelo acréscimo <strong>de</strong> oitavas. Apesar do<br />

reforço <strong>da</strong> melodia em três oitavas simultâneas, Vieira<br />

Brandão alterou a dinâmica: <strong>de</strong> forte no original para<br />

piano e pianíssimo na transcrição (ex.7).<br />

Já na repetição <strong>da</strong> melodia (a partir do c.30), o reforço<br />

é expandido para dobramentos em quatro oitavas e as<br />

indicações <strong>de</strong> dinâmica são mais condizentes com o<br />

original <strong>de</strong> Villa-lobos (ex.8). Alcança-se assim uma tensão<br />

crescente, tal como é comum em versões pianísticas <strong>da</strong>s<br />

gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> Bach para órgão.<br />

ex.7: H. Villa-lobos, Prelúdio 3, c.23. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.8: H. Villa-lobos, Prelúdio 3, c.30. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

5.4 - Prelúdio n.4: Homenagem ao Índio Brasileiro<br />

(Composto na forma A B A’ A)<br />

Villa-lobos comentou com Abel Carlevaro, primeiro<br />

violonista a tocar este prelúdio (esCAnDe, 2005, p.144),<br />

que os acor<strong>de</strong>s com ritmos pontuados <strong>da</strong> primeira parte<br />

representam o som longínquo e lúgubre dos tambores<br />

por ele ouvidos na selva amazônica 7 . estes acor<strong>de</strong>s, com<br />

dinâmica suave, são usados como resposta à melodia<br />

<strong>de</strong>sacompanha<strong>da</strong> que inicia a peça. A proeminência <strong>da</strong><br />

melodia é reforça<strong>da</strong> pela indicação <strong>de</strong> dinâmica mais<br />

sonora. Vieira Brandão, a fim <strong>de</strong> separar ain<strong>da</strong> mais os<br />

dois elementos, transpõe a melodia para a oitava superior<br />

mantendo o acompanhamento no registro original (ex.9;<br />

lembrando que o violão soa uma oitava abaixo).<br />

A parte central (B), para os violonistas, é assaz idiomática.<br />

Assim como no Prelúdio n. 2, Villa-lobos faz uso <strong>da</strong>s<br />

cor<strong>da</strong>s soltas como pe<strong>da</strong>l, sobre o qual dispõe acor<strong>de</strong>s em<br />

movimento paralelo. Ao piano, Vieira Brandão mantém<br />

a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> original, porém sem a mesma lógica<br />

<strong>de</strong> execução <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> dos acor<strong>de</strong>s paralelos, menos<br />

idiomáticos ao piano que ao violão (ex.10).<br />

ex.9: H. Villa-lobos, Prelúdio 4, c.1-4. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.10: H. Villa-lobos, Prelúdio 4, c.11-12. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

61


62<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

no retorno à primeira seção (A’), o efeito dos harmônicos<br />

naturais é substituído no piano por acor<strong>de</strong>s menores com<br />

sétima em movimento paralelo, no registro sobre-agudo.<br />

note-se aqui a possível influência <strong>da</strong> afinação natural do<br />

violão na escolha <strong>de</strong> Vieira Brandão: as cor<strong>da</strong>s soltas do<br />

instrumento, excetuando-se a quinta cor<strong>da</strong>, geram um<br />

acor<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mi menor com sétima menor (ex.11). efetivamente,<br />

é este tipo <strong>de</strong> acor<strong>de</strong> que Villa-lobos emprega nos acor<strong>de</strong>s<br />

em ritmos pontuados (c.28 e 30). A notação originalmente<br />

utiliza<strong>da</strong> por Villa-lobos indicava a posição em ca<strong>da</strong> cor<strong>da</strong><br />

on<strong>de</strong> obter os harmônicos naturais <strong>de</strong>sejados. no ex.11<br />

apresentamos o som real resultante dos harmônicos, para<br />

melhor compreensão do leitor não violonista.<br />

5.5 - Prelúdio n.5: Homenagem à Vi<strong>da</strong> Social<br />

- Aos rapazinhos e mocinhas fresquinhos que<br />

freqüentam os concertos e os teatros no Rio<br />

(Composto na forma A B C A)<br />

Ao transcrever o quinto prelúdio, Vieira Brandão criou<br />

uma nova peça pianística. o resultado obtido difere<br />

consi<strong>de</strong>ravelmente do original, mas <strong>de</strong>monstra gran<strong>de</strong><br />

imaginação musical. A seção inicial, ao violão, tem<br />

caráter <strong>de</strong> seresta. Ao piano, com o acréscimo <strong>de</strong> arpejos<br />

abrangendo quatro oitavas, torna-se grandiosa, conforme<br />

a própria indicação do transcritor, que também alterou a<br />

dinâmica <strong>de</strong> mezzo-forte para forte (ex.12).<br />

ex.11: H. Villa-lobos, Prelúdio 4, c.27-28. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.12: H. Villa-lobos, Prelúdio 5, c.1-3. original para violão e transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

na seção B, ao piano, novamente aparece um recurso<br />

muito utilizado por Villa-lobos. Acima do tema melódico,<br />

revoluteiam arpejos ascen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes em<br />

constante movimento. Tais arpejos não constam no<br />

original para violão, tendo sido livremente agregados<br />

por Vieira Brandão. efeito semelhante é encontrado em<br />

diversas obras originais para piano, entre as quais a<br />

Festa no Sertão e Impressões Seresteiras, ambas do Ciclo<br />

Brasileiro. note-se também a mu<strong>da</strong>nça do compasso <strong>de</strong><br />

6/4 para 3/4 na versão pianística (ex.13).<br />

A terceira seção preserva ao piano as mesmas progressões<br />

<strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s do original, mas sempre com o enriquecimento<br />

<strong>de</strong> arpejos, obtendo efeitos sonoros compatíveis com a<br />

escrita pianística do próprio Villa-lobos (ex.14).<br />

Ambas as versões repetem a seção A e encerram a peça<br />

ex.13: H. Villa-lobos, Prelúdio 5, c.17 (segundo versão original). original para violão e<br />

transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

ex.14: H. Villa-lobos, Prelúdio 5, c.34-37 (segundo versão original). original para violão e<br />

transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão.<br />

63


64<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

em fortissimo. no violão, esta indicação <strong>de</strong> dinâmica é<br />

abrupta, precedi<strong>da</strong> <strong>de</strong> poco rall. no penúltimo compasso,<br />

ao passo que na transcrição, dirige-se com allargando e<br />

crescendo molto ao fortissimo final, encerrando <strong>de</strong> forma<br />

grandiosa o ciclo dos Cinco Prelúdios (ex.15).<br />

ex.15: H. Villa-lobos, Prelúdio 5, c.57-59 (segundo versão original). original para violão e<br />

transcrição para piano <strong>de</strong> Vieira Brandão<br />

.6 - Conclusão<br />

Turíbio santos escreveu que “os Prelúdios, no fundo, são<br />

retratos musicais. não <strong>de</strong> uma pessoa como costumava<br />

fazer Villa-lobos ao piano, graças à sua fabulosa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> improvisar, mas <strong>de</strong> um povo, <strong>de</strong> um país. Uma gama<br />

infinita <strong>de</strong> sentimentos profun<strong>da</strong>mente brasileiros <strong>de</strong>stila<br />

nessas cinco peças” (sAnTos, 1975, p.28).<br />

esta ampla gama faz dos Prelúdios um excelente caso <strong>de</strong><br />

estudo para o processo <strong>de</strong> transcrição, pois a varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> texturas violonísticas empregados por Villa-lobos<br />

apresenta uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> equivalente <strong>de</strong> problemas<br />

a serem resolvidos pelo transcritor. e, em se tratando<br />

<strong>de</strong> transcrição <strong>de</strong> violão para piano, faz-se necessário<br />

agregar elementos que preencham a maior extensão e<br />

recursos polifônicos <strong>de</strong>ste último.<br />

Como vimos, Vieira Brandão utilizou diversos procedimentos<br />

para criar tais elementos: dobramentos <strong>de</strong> oitava, adição<br />

<strong>de</strong> acompanhamento rítmico, <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> arpejos<br />

e adição <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s. Porém, este processo não se <strong>de</strong>u <strong>de</strong><br />

maneira aleatória. A fim <strong>de</strong> manter-se estilisticamente fiel,<br />

Vieira Brandão tomou como base a escrita pianística do<br />

próprio Villa-lobos, extraindo <strong>de</strong>la vários dos elementos<br />

agregados em suas transcrições.


Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

7 - Referências<br />

ADler, samuel. The Study of Orchestration. new York: norton, 1989.<br />

AllessAnDrini, olin<strong>da</strong>. Vieira Brandão: <strong>de</strong>poimento. [1986]. rio <strong>de</strong> Janeiro. entrevista concedi<strong>da</strong> a o. Allesandrini.<br />

AllessAnDrini, olin<strong>da</strong>. Villa-Lobos por Olin<strong>da</strong> Alessandrini. Porto Alegre: Art&som, 1992. 1 CD.<br />

BrAnDÃo, José Vieira. A obra <strong>de</strong> José Vieira Brandão. rio <strong>de</strong> Janeiro: rio Arte, 1995, 1 CD<br />

CArleVAro, Abel. Technique, Analysis and Interpretation of the Guitar Works of Heitor Villa-Lobos: 12 Studies (1929).<br />

Hei<strong>de</strong>lberg: Chanterelle, 1988. (Guitar Masterclass. v.3)<br />

esCAnDe, Alfredo. Abel Carlevaro: un nuevo mundo en la guitarra. Montevidéu: Aguilar, 2005.<br />

fernÁnDeZ, eduardo. Villa-lobos new Manuscripts, Guitar Review, new York, n.107, p. 22-28, 1996:<br />

PereirA, Marco. Heitor Villa-Lobos: sua obra para violão. Brasília: Musi Med, 1984.<br />

sAnTos, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu Villa-lobos - MeC, 1975.<br />

sCHiC, Anna stella. Villa-Lobos: o índio branco. rio <strong>de</strong> Janeiro: imago, 1989.<br />

VillA-loBos, Heitor. 5 Prélu<strong>de</strong>s (transcrits d’après les 5 Prélu<strong>de</strong>s pour guitare par José Vieira Brandão). Paris: Éditions Max<br />

eschig, 1970. 1 partitura. Piano.<br />

VillA-loBos, Heitor. Cinq Prélu<strong>de</strong>s (1940). Paris: Éditions Max eschig, 1954. 5 partituras. Violão.<br />

VillA-loBos, Heitor. Choros nº 1. rio <strong>de</strong> Janeiro: Casa Arthur napoleão, 1920. 1 partitura. Violão.<br />

VillA-loBos, Heitor. Choros nº 1. rio <strong>de</strong> Janeiro: Casa Arthur napoleão, 1968. 1 partitura. Piano.<br />

Wolff, Daniel. Abel Carlevaro: <strong>de</strong>poimento. [1985-87]. Montevidéu. entrevista concedi<strong>da</strong> a D. Wolff.<br />

8 - Leitura recomen<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

AZeVeDo, luiz Heitor Corrêa <strong>de</strong>. Heitor Villa-lobos. in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. london:<br />

Macmillan,1980. p. 763-767, v.19.<br />

BArreneCHeA, lúcia silva. GerlinG, Cristina Maria Pavan Capparelli. Villa-lobos e Chopin, o diálogo musical <strong>da</strong>s<br />

nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Série Estudos, Porto Alegre, v.5, p. 11-73, <strong>de</strong>z. 2000.<br />

BoYD, Malcolm. Arrangement. in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. london: Macmillan,1980. p.627-632, v.1.<br />

BreleT, Gisèle. L’interprétation créatrice. Paris: PUf, 1951.<br />

CArleVAro, Abel. Técnica Aplica<strong>da</strong> sobre 5 Prelúdios y el Choro No. 1 <strong>de</strong> H. Villa-Lobos. Montevidéu, 1986. (Clases<br />

Magistrales, v.2)<br />

CArVAlHo, Hermínio Bello <strong>de</strong>.Villa-lobos e o Violão. in: VillA-loBos, Heitor. Educação musical. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu<br />

Villa-lobos, 1969. p. 123-145. (Presença <strong>de</strong> Villa-lobos; v.3)<br />

CrofTon, ian; frAser, Donald. A Dictionary of Musical Quotations. new York: schirmer, 1989.<br />

DUArTe, John. The prelu<strong>de</strong>s of Villa-lobos: some notes. Guitar International Magazine, liverpool, p.43, jun.1985. (Parte 1)<br />

DUArTe, John. The prelu<strong>de</strong>s of Villa-lobos: some notes. Guitar International Magazine, liverpool, p.41, ago.1985. (Parte 2)<br />

frAGA, orlando. Heitor Villa-lobos: A survey of his Guitar Music. Revista Eletrônica <strong>de</strong> Musicologia (http://www.rem.ufpr.<br />

br/reMv1.1/vol1.1/villa.html), Curitiba, v. 1.1, 1996.<br />

frAnÇA, eurico nogueira. Villa-Lobos: síntese crítica e bibliográfica. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu Villa-lobos - MeC, 1978.<br />

HorTA, luiz Paulo. Villa-Lobos: uma introdução. rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1987.<br />

JosÉ Vieira Brandão. in: MArConDes, Marco Antônio <strong>de</strong> (ed.). Enciclopédia <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Brasileira: erudita, folclórica e popular.<br />

são Paulo: Art editora, 1977. v.1, p.112.<br />

Kiefer, Bruno. Villa-Lobos e o mo<strong>de</strong>rnismo na música brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1981.<br />

liMA, souza. Comentários sobre a obra pianística <strong>de</strong> Villa-Lobos. rio <strong>de</strong> Janeiro: MeC, 1968.<br />

MAriZ, Vasco. Heitor Villa-Lobos: compositor brasileiro. 5.ed. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu Villa-lobos, 1977.<br />

MAriZ, Vasco. História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> no Brasil. rio <strong>de</strong> janeiro: Civilização Brasileira, 1981.<br />

neVes, José Maria. Villa-lobos, o choro e os choros. são Paulo: Musicalia,1977.<br />

nÓBreGA, Adhemar Alves <strong>da</strong>. roteiros <strong>de</strong> Villa-lobos in: VillA-loBos, Heitor. educação musical. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu<br />

Villa-lobos, 1969. p. 7-26. (Presença <strong>de</strong> Villa-lobos; v.4)<br />

nÓBreGA, Adhemar. Os choros <strong>de</strong> Villa-Lobos. rio <strong>de</strong> Janeiro: Museu Villa-lobos, 1975.<br />

PAsCoAl, Maria lúcia. A Prole do Bebê n.1 e n.2 <strong>de</strong> Villa-lobos: estratégias <strong>da</strong> textura como recurso composicional. Per<br />

Musi, Belo Horizonte, n.11, p.95-105, 2005.<br />

PAZ, ermelin<strong>da</strong> Azevedo. Villa-lobos e a música popular brasileira. rio <strong>de</strong> Janeiro: e. A. Paz, 2004.<br />

TArAsTi, eero. Heitor Villa-Lobos: The life and Works, 1887-1959. londres: Mcfarland, 1995.<br />

TrAnsCriPTion. in: sADie, stanley (ed.) The New Grove Dictionary of Music and Musicians. london: Macmillan, 1980. v.19, p.117.<br />

WriGHT, simon. Villa-lobos. oxford: oxford University Press, 1992. (oxford studies of Composers - série)<br />

YATes, stanley. ‘Villa-lobos’ Guitar Music: Alternative sources and implications for Performance. Soundboard, v.24, n.1,<br />

p.7-20,1997.<br />

65


66<br />

Wolff , D.; AllessAnDrini, o. os Cinco Prelúdios para violão <strong>de</strong> Heitor Villa-lobos e a transcrição ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 54-66<br />

Daniel Wolff é professor do Departamento <strong>de</strong> <strong>Música</strong> e do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em <strong>Música</strong> <strong>da</strong> UfrGs e<br />

Professor Visitante (Pós-Doutorado, Capes) <strong>da</strong> Universität <strong>de</strong>r Künste em Berlim. É Doutor e Mestre em <strong>Música</strong> (violão)<br />

pela Manhattan school of Music <strong>de</strong> nova iorque (bolsas CnPq e Capes), e Bacharel em <strong>Música</strong> (violão) pela escuela<br />

Universitária <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>de</strong> Montevidéu. Vencedor <strong>de</strong> concursos nacionais e internacionais <strong>de</strong> violão, sua carreira inclui<br />

apresentações na América do sul, estados Unidos e europa, tendo já diversos discos gravados. Como compositor e<br />

arranjador, teve suas obras executa<strong>da</strong>s ou grava<strong>da</strong>s por orquestras e grupos do Brasil, eUA, Argentina, itália, Alemanha e<br />

inglaterra. Para maiores informações, ver www.<strong>da</strong>nielwolff.com.br<br />

Olin<strong>da</strong> Allessandrini graduou-se pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias do sul, e obteve o prêmio “Me<strong>da</strong>lha <strong>de</strong> ouro” <strong>da</strong> UfGrs,<br />

após concluir o curso <strong>de</strong> Virtuosi<strong>da</strong><strong>de</strong> em Piano. suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s incluem recitais, música <strong>de</strong> câmara, concertos com<br />

orquestras, ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s pe<strong>da</strong>gógicas e colaboração em livros editados. seu repertório vai do barroco ao contemporâneo,<br />

com <strong>de</strong>dicação especial à música brasileira do presente e do passado. entre seus CDs <strong>de</strong>stacam-se os <strong>de</strong>dicados a obras<br />

<strong>de</strong> Villa-lobos, ra<strong>da</strong>més Gnattali e Araújo Vianna, além dos CDs “Panorama Brasileiro”, “Valsas”, “pamPiano” e “Ébano e<br />

Marfim”, e também vários outros como pianista convi<strong>da</strong><strong>da</strong>. realizou tournées pela Alemanha, Áustria, estados Unidos,<br />

noruega e América latina. Produz e apresenta o programa semanal “Panorama <strong>da</strong> <strong>Música</strong> do Brasil e <strong>da</strong>s Américas”, na<br />

rádio <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> (UfrGs), em Porto Alegre.<br />

Notas<br />

1 informação transmiti<strong>da</strong> verbalmente por Vieira Brandão a olin<strong>da</strong> Allessandrini.<br />

2 A fim <strong>de</strong> melhor familiarizar-se com o instrumento, Villa-lobos também transcreveu diversas obras para violão quando ain<strong>da</strong> jovem, e com freqüência<br />

gabava-se <strong>de</strong> haver transcrito a Chaconne <strong>de</strong> Bach vários anos antes <strong>da</strong> pioneira transcrição <strong>de</strong> Andrés segóvia (sAnTos, 1975, p.7).<br />

3 segundo certas versões, a Mazurka em ré Maior foi escrita antes <strong>da</strong> Panqueca.<br />

4 Um fragmento <strong>da</strong> Valsa Concerto n o 2, atualmente no Museu Villa-lobos no rio <strong>de</strong> Janeiro, foi <strong>de</strong>scoberto recentemente. Ver: fernÁnDeZ, 1996, p.23.<br />

5 subtítulos extraídos <strong>de</strong> Turíbio sAnTos, op. cit., 25-28.<br />

6 É improvável que Vieira Brandão, na época em que fez o arranjo dos Prelúdios, conhecesse a versão <strong>de</strong> Gaó do Choros n. 1, pois esta só foi publica<strong>da</strong><br />

em 1968 pela editora Arthur napoleão.<br />

7 informação transmiti<strong>da</strong> verbalmente por Carlevaro a Daniel Wolff, durante período <strong>de</strong> estudos particulares <strong>de</strong> violão em Montevidéu (1985-1987).


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter:<br />

uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação<br />

segundo os parâmetros <strong>da</strong> Performance<br />

Historicamente Informa<strong>da</strong><br />

Lara Greco (UFG, Goiânia)<br />

lararilara@gmail.com<br />

Lúcia Barrenechea (UNIRIO, Rio <strong>de</strong> Janeiro)<br />

lucia.barrenechea@gmail.com<br />

Resumo: Este artigo propõe a discussão <strong>de</strong> uma possível interpretação <strong>da</strong> obra Inspiratio, para violão e piano, <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico<br />

Richter (n.1932), tomando como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> os parâmetros <strong>da</strong> performance practice abor<strong>da</strong>dos por DUFFIN (1995)<br />

em seu artigo “Performance Practice: Que me veux-tu? What do you want from me?”, publicado na Early Music America.<br />

A reflexão sobre tais parâmetros, embora originalmente direcionados para a performance <strong>da</strong> <strong>Música</strong> Antiga, po<strong>de</strong><br />

possibilitar a adoção <strong>de</strong> um discurso musical coerente na interpretação <strong>de</strong> uma obra contemporânea ou <strong>de</strong> qualquer<br />

outro período histórico.<br />

Palavras-Chave: Performance Historicamente Informa<strong>da</strong>, práticas <strong>de</strong> performance, música atual, música <strong>de</strong> câmara para<br />

violão e piano, música brasileira.<br />

Inspiratio by Fre<strong>de</strong>rico Richter: an interpretative approach based on the principles of Historically<br />

Informed Performance<br />

Abstract: This article invites to a <strong>de</strong>bate about a possible interpretation of the work Inspiratio, for guitar and piano, by<br />

Brazilian composer Fre<strong>de</strong>rico Richter (b.1932), using as point of <strong>de</strong>parture the performance practice parameters discussed<br />

by DUFFIN (1995) in his article “Performance Practice: Que me veux-tu? What do you want from me?” published in Early<br />

Music America. The discussion about these parameters, although originally inten<strong>de</strong>d for early music performance, can<br />

make possible the adoption of a coherent musical speech in the performance of a contemporary work or a work from any<br />

other historical period.<br />

Keywords: Historically Informed Performance, performance practice, contemporary music, chamber music for guitar and<br />

piano, Brazilian music.<br />

1 - Introdução<br />

BUCKINX (1998) aponta que, no Século XX, as novas<br />

técnicas <strong>de</strong> composição, notação e execução cria<strong>da</strong>s<br />

formaram a base <strong>da</strong> música que <strong>de</strong>las surgia, criando<br />

a duali<strong>da</strong><strong>de</strong> material-linguagem. Em <strong>de</strong>corrência<br />

<strong>de</strong>stas novas experimentações e <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

amplificação do som acústico, que tornou possível a<br />

releitura <strong>de</strong> algumas obras, o repertório específico para<br />

o duo violão e piano tornou-se mais explorado. Trata-se<br />

<strong>de</strong> uma formação instrumental que, em princípio, gera<br />

uma relação sonora intrinca<strong>da</strong> e <strong>de</strong>sigual no que tange<br />

a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> volume sonoro <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> instrumento.<br />

Ao lançar mão do uso <strong>da</strong> amplificação do som do violão,<br />

o compositor reinventa a relação sonora entre esses<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

dois instrumentos. Por outro lado, os compositores<br />

que preferem não utilizar este recurso têm que se<br />

preocupar constantemente com o equilíbrio entre piano<br />

e violão, fator que interfere diretamente na escrita e<br />

no idiomatismo <strong>da</strong> obra. Em Inspiratio, o compositor<br />

gaúcho Fre<strong>de</strong>rico Richter (n.1932), também conhecido<br />

como Frerídio, explora mais a experimentação sonora<br />

em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> estrutura; nesta obra, o equilíbrio <strong>da</strong><br />

amplitu<strong>de</strong> sonora e o diálogo imitativo entre violão e<br />

piano são elementos <strong>de</strong>terminantes na escrita utiliza<strong>da</strong><br />

pelo compositor, o que evi<strong>de</strong>ncia sua escolha <strong>de</strong> não <strong>da</strong>r a<br />

nenhum dos dois instrumentos o óbvio e previsível papel<br />

<strong>de</strong> suporte harmônico.<br />

Recebido em: 09/03/2007 - Aprovado em: 20/11/2007<br />

67


68<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

É natural que <strong>de</strong> uma nova maneira <strong>de</strong> se compor,<br />

surjam novos recursos <strong>de</strong> execução dos instrumentos<br />

e, conseqüentemente, uma nova maneira <strong>de</strong> encarar a<br />

obra e um outro modo <strong>de</strong> se conceber a performance.<br />

Para interpretar uma obra como esta, os instrumentistas<br />

<strong>de</strong>vem assumir uma posição ativa em relação às suas<br />

<strong>de</strong>cisões interpretativas, tornou-se ca<strong>da</strong> vez mais difícil<br />

recorrer-se ao senso comum, o que torna necessário um<br />

trabalho exploratório aliado à performance. NIELSON<br />

(2000) aponta que a maior fonte <strong>de</strong> informações para<br />

a abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong>s questões <strong>de</strong> perfomance <strong>da</strong> <strong>Música</strong><br />

Atual é, além do compositor, a <strong>de</strong>dicação, por parte<br />

dos performers e regentes, a este tipo <strong>de</strong> repertório.<br />

Ross W. DUFFIN (1995), em seu artigo “Performance<br />

Practice: Que me veux-tu? What do you want from<br />

me?”, publicado na Early Music América, acredita<br />

na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> pesquisa aliado à<br />

performance. A Performance Practice, ou Performance<br />

Historicamente Informa<strong>da</strong> (Historically Informed<br />

Performance ou HIP), que exige do performer <strong>de</strong>cisões<br />

interpretativas conscientes e um maior aprofun<strong>da</strong>mento<br />

<strong>de</strong> sua compreensão <strong>da</strong> linguagem composicional e <strong>da</strong><br />

maneira como o compositor a maneja.<br />

DUFFIN (1995, p.3) aponta que “os parâmetros <strong>da</strong><br />

performance practice para música barroca (ou, como<br />

sugerimos neste trabalho, para qualquer música) incluem<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, situação, altura, afinação e temperamento,<br />

articulação, ornamentação, improvisação, an<strong>da</strong>mento,<br />

notação, e dinâmica”. Para NIELSON (2000), estes não<br />

são meros <strong>de</strong>talhes expressivos na <strong>Música</strong> Atual, pois<br />

<strong>de</strong>les <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a coerência do discurso musical. Neste<br />

tipo <strong>de</strong> repertório, o compositor controla todos estes<br />

parâmetros, tornando-se indispensável a fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

às indicações <strong>da</strong> partitura, o que envolve um trabalho<br />

<strong>de</strong> pesquisa e análise, já que a abor<strong>da</strong>gem puramente<br />

intuitiva po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>sastrosa. Para DUFFIN (1995),<br />

performers tomam estas <strong>de</strong>cisões interpretativas o<br />

tempo todo; quando essas <strong>de</strong>cisões não são conscientes<br />

acabam por cair no senso comum.<br />

2 - A obra<br />

Inspiratio, para violão e piano (RICHTER, 1987), é<br />

uma obra atonal com predominância <strong>de</strong> intervalos <strong>de</strong><br />

segun<strong>da</strong>s menores, quartas justas, quintas aumenta<strong>da</strong>s<br />

e suas respectivas inversões. Estes intervalos, apesar <strong>de</strong><br />

recorrentes, não apresentam nenhuma funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou<br />

direcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> harmônica, no sentido que estes termos<br />

assumem no sistema tonal. Esta obra utiliza uma forma<br />

<strong>de</strong> organização do material sonoro comum a vários<br />

compositores do século XX: a utilização do timbre como<br />

dimensão composicional e a transformação contínua<br />

do som como principal aspecto <strong>da</strong> composição (ZUBEN,<br />

2005). Apesar <strong>de</strong> não ser dividi<strong>da</strong> em movimentos, a obra<br />

tem três seções claramente distintas, a saber, Tempo<br />

Perceptivo, An<strong>da</strong>ntino e Mo<strong>de</strong>rato, finalizando-se com<br />

uma co<strong>da</strong> rítmica. As seções são construí<strong>da</strong>s através <strong>da</strong><br />

manipulação <strong>da</strong> textura <strong>de</strong> um bloco <strong>de</strong> notas: a partir<br />

<strong>de</strong> uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> forma<strong>da</strong> por Mi b – Mi – Lá b – Lá,<br />

são adiciona<strong>da</strong>s ou subtraí<strong>da</strong>s outras notas cromáticas,<br />

o que torna a textura ora mais <strong>de</strong>nsa, ora menos <strong>de</strong>nsa.<br />

Para BERRY (1987):<br />

“Densi<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser vista como um aspecto quantitativo <strong>da</strong><br />

textura – o número <strong>de</strong> eventos consecutivos (a espessura do<br />

tecido) assim como o grau <strong>de</strong> “compressão” dos eventos com<br />

a distância intervalar. Existe uma relação vital entre <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e dissonância; a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> relativa <strong>de</strong> um complexo textural<br />

tenso (por exemplo, três componentes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma extensão<br />

<strong>de</strong> uma terça menor) é resultado <strong>de</strong> uma intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

dissonância, assim como é <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>” (BERRY, 1987, p.184).<br />

A forma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> seção é <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> pelo processo <strong>de</strong><br />

transformação que a textura sofre. Além <strong>da</strong> exploração <strong>de</strong><br />

diferentes <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, também a exploração do material<br />

métrico, <strong>da</strong>s durações e dos registros atuam <strong>de</strong> forma<br />

<strong>de</strong>terminante sobre a estrutura <strong>da</strong> obra.<br />

A seguir, será feita uma análise <strong>de</strong> Inspiratio com relação<br />

às suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s interpretativas, abor<strong>da</strong>ndose<br />

os elementos composicionais em função <strong>de</strong> sua<br />

interferência nos parâmetros <strong>da</strong> performance practice<br />

discutidos por Duffin.<br />

2.1. - Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

A sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com DUFFIN (1995, p.3),<br />

“provém <strong>de</strong> aspectos tais como quais instrumentos<br />

ou vozes estamos usando, o som que eles produzem,<br />

e o número <strong>de</strong> executantes”. Em Inspiratio, existe<br />

uma constante busca pelo equilíbrio <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> e<br />

<strong>da</strong> produção sonora do duo violão e piano, já que o<br />

compositor não solicita amplificação do som acústico.<br />

Para NIELSON (2000, p.74), os compositores exploram<br />

na <strong>Música</strong> Atual novos recursos <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

duas formas: recorrendo a uma instrumentação não<br />

convencional para atingir <strong>de</strong>terminados recursos e<br />

<strong>de</strong>scobrindo novas maneiras <strong>de</strong> se obter sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

inusita<strong>da</strong>s <strong>de</strong> instrumentos convencionais. Esta última<br />

forma é o caso <strong>de</strong>sta obra <strong>de</strong> Richter, já que o piano<br />

tem participação ativa, nunca sendo tratado como<br />

mero acompanhador ou suporte harmônico, tendo<br />

seus recursos utilizados composicionalmente <strong>de</strong> modo<br />

a soarem violonisticamente na maior parte <strong>da</strong> peça.<br />

Embora haja momentos <strong>de</strong> contraste, a aproximação<br />

entre a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> dos dois instrumentos sempre se dá<br />

neste sentido. Assim, a escrita do piano é, nesta peça,<br />

essencialmente a idiomática do violão. (Ex.1a e Ex.1b).<br />

Ao tocar esta obra, o pianista <strong>de</strong>ve imaginar o som do<br />

piano como um segundo violão. Este fator é que confere<br />

equilíbrio <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> à obra, já que em alguns<br />

momentos o som do piano é explorado em regiões que, se<br />

não estivesse soando “violonisticamente”, tornaria o som<br />

do violão inaudível (Ex. 2).<br />

Em outra ocasião, os trêmolos extremamente idiomáticos<br />

do violão no Tempo Perceptivo são repetidos pelo piano<br />

(Ex. 3):


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

Ex.1a – Linha do piano na clave <strong>de</strong> Fá (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 10º sistema <strong>da</strong> p.4)<br />

Ex.1b – Linha do violão: (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 11º sistema <strong>da</strong> p.4)<br />

Ex.2 – Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> violonística do piano na clave <strong>de</strong> Fá (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 9º sistema <strong>da</strong> p.3)<br />

Ex.3: Trêmolos no violão e piano (Inspiratio:Tempo Perceptivo, 5º sistema <strong>da</strong> p.2)<br />

2.2. - Situação<br />

De acordo com DUFFIN (1995, p.4), situação “se<br />

refere ao tipo <strong>de</strong> espaço físico para o qual a música<br />

foi originalmente concebi<strong>da</strong> e como os executantes<br />

eram distribuídos <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quele espaço”. As salas <strong>de</strong><br />

concerto <strong>de</strong> hoje, quando em condições i<strong>de</strong>ais, possuem<br />

um perfeito isolamento acústico para que ruídos<br />

externos não sejam ouvidos, e proporcionam a projeção<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> do som produzido pelos instrumentos<br />

para a platéia, como uma concha acústica. Para a<br />

performance <strong>de</strong> Inspiratio, é recomendável uma sala<br />

que seja apropria<strong>da</strong> para concertos, pois numa sala com<br />

acústica ina<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> o equilíbrio <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> entre<br />

os instrumentos não ficaria evi<strong>de</strong>nte. A maneira como<br />

o duo se posiciona no palco também é <strong>de</strong>cisiva, já que<br />

não é recomendável que o piano esteja com o tampo<br />

aberto, e o violonista <strong>de</strong>ve buscar colocar-se <strong>da</strong> maneira<br />

que melhor possa projetar o som do seu instrumento.<br />

Em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> afini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s entre<br />

os instrumentos, obti<strong>da</strong> pelo controle <strong>de</strong> outros<br />

parâmetros, a amplificação não é recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>, pois<br />

69


70<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

como já foi dito anteriormente, a escolha instrumental<br />

e musical do compositor evi<strong>de</strong>ncia sua intenção <strong>de</strong><br />

explorar o equilíbrio sonoro dos dois instrumentos<br />

como parte intrínseca <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> obra. Por outro<br />

lado, a amplificação geraria uma nova i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sonora, estranha à construção sonora originalmente<br />

cria<strong>da</strong> pelo compositor.<br />

2.3. - Afinação e Temperamento<br />

DUFFIN (1995) refere-se à afinação e ao temperamento<br />

no contexto específico <strong>da</strong> performance <strong>de</strong> música barroca,<br />

ou seja, no que diz respeito à utilização <strong>de</strong> temperamentos<br />

históricos, prática não explora<strong>da</strong> na obra em questão.<br />

Entretanto, Richter utiliza a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> flexibilizar<br />

o temperamento do violão em alguns trechos durante a<br />

obra, causando contraste com os momentos em que as<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos dois instrumentos estão perfeitamente<br />

amalgama<strong>da</strong>s (Ex. 4).<br />

2.4. - Articulação<br />

DUFFIN (1995, p.5) lembra que “articulação, arca<strong>da</strong>s,<br />

golpes <strong>de</strong> língua, e <strong>de</strong>dilhados <strong>de</strong> teclado (e pe<strong>da</strong>is) são<br />

as áreas óbvias <strong>de</strong> preocupação, embora nós <strong>de</strong>vamos<br />

também incluir técnica <strong>de</strong> mão direita para alaudistas<br />

e violonistas, e outras coisas mais”. A observação <strong>de</strong>ste<br />

parâmetro na peça é essencial para que o primeiro<br />

parâmetro, a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, se efetive. Como em Inspiratio<br />

o piano procura, em vários momentos, reproduzir<br />

idiomatismos do violão, o pianista po<strong>de</strong> buscar este<br />

resultado imitativo compensando a diferença entre os<br />

mecanismos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> som dos dois instrumentos<br />

através <strong>da</strong> manipulação <strong>de</strong> outros parâmetros, como a<br />

articulação (Ex.5a e Ex.5b), optando, por exemplo, por<br />

tocar <strong>de</strong> forma mais articula<strong>da</strong>, separa<strong>da</strong>, em vez <strong>de</strong><br />

utilizar-se <strong>de</strong> legato. A indicação “sêco” do compositor,<br />

no trecho citado como exemplo, é um indicativo neste<br />

sentido.<br />

Ex.4: Violão soando <strong>de</strong> forma não tempera<strong>da</strong> (Inspiratio:An<strong>da</strong>ntino, c.17, p.6)<br />

Ex.5a: Linha do violão reproduzindo a célula rítmica inicial dos clusters do Tempo Perceptivo em diminuição<br />

(Inspiratio:Mo<strong>de</strong>rato, c.4-5, p.8<br />

Ex.5b: Linha do piano executando a mesma célula rítmica em “resposta” à linha do violão (Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.6, p.8


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

2.5. - Ornamentação<br />

Ornamentação é outro aspecto discutido por DUFFIN<br />

(1995, p.7) num contexto particular <strong>da</strong> interpretação<br />

<strong>de</strong> música barroca, que conta com a “aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> muitos<br />

tratados e prefácios <strong>de</strong> edições, explicando sinais <strong>de</strong><br />

ornamentação e recomen<strong>da</strong>ndo maneiras florea<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

caminhar expressivamente <strong>de</strong> uma nota para outra”.<br />

No caso <strong>da</strong> música contemporânea, a ornamentação<br />

é geralmente explicita<strong>da</strong> na partitura, sendo a questão<br />

<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>codificação <strong>de</strong> símbolos mais problemática. O<br />

que <strong>de</strong>veria chamar a atenção do performer é o papel<br />

<strong>da</strong> ornamentação na construção sonora <strong>da</strong> obra. A<br />

ornamentação em Inspiratio, assim como outros parâmetros<br />

já discutidos, contribui para que o piano aproximese<br />

<strong>da</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> violonística. Em alguns momentos a<br />

linha do piano, apesar <strong>de</strong> estar escrita <strong>de</strong> uma maneira<br />

diferente <strong>da</strong>quela do violão, po<strong>de</strong> ter como referência <strong>de</strong><br />

execução alguns ornamentos <strong>de</strong>ste instrumento (Ex.6a,<br />

6b e 6c). Assim, o pianista <strong>de</strong>ve procurar i<strong>de</strong>ntificar estes<br />

momentos e estar atento à maneira como o violonista os<br />

executa para tentar reproduzir o mesmo efeito.<br />

Ex.6a: Semicolcheia (Mi) funcionando como uma apojatura <strong>de</strong> colcheia (Fá) (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 2º sistema, p.1)<br />

Ex.6b: Apojatura no violão como referência para a realização do trecho no Ex.6a (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 8º sistema)<br />

Ex.6c: Conciliação entre o trêmolo do violão e o trinado do piano (Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.8, p.8)<br />

71


72<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

Em outros momentos, os ornamentos do piano e violão<br />

estão escritos <strong>da</strong> mesma maneira (Ex.7a e 7b), e o pianista<br />

<strong>de</strong>ve proce<strong>de</strong>r <strong>da</strong> mesma forma.<br />

Ex.7a: Ornamentos do piano remetendo à sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> dos ornamentos do violão no Tempo Perceptivo<br />

(Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.22, p.10)<br />

Ex.7b: Ornamentos no violão como referência para o piano<br />

(Inspiratio: Tempo Perceptivo 11º sistema, p.4)<br />

2.6. - Improvisação<br />

DUFFIN (1995, p.7) aponta que a improvisação “está presente<br />

em certa medi<strong>da</strong> em praticamente to<strong>da</strong> peça barroca para<br />

mais <strong>de</strong> um instrumento, uma vez que a execução do baixo<br />

contínuo requer que o performer crie alguma coisa partindo<br />

<strong>de</strong> muito pouco [as cifras e o baixo]”. Esperava-se, portanto,<br />

que o performer <strong>de</strong>ssa época dominasse a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

improvisar. Essa habili<strong>da</strong><strong>de</strong> voltou a ser exigi<strong>da</strong> na <strong>Música</strong><br />

Atual, o que é o caso <strong>da</strong> obra em questão. Na maior parte<br />

<strong>de</strong> Inspiratio, o compositor especifica claramente suas<br />

intenções, tanto na notação, como em indicações na<br />

partitura; porém, em alguns momentos, Richter conce<strong>de</strong><br />

aos performers a chance <strong>de</strong> tomar algumas <strong>de</strong>cisões<br />

interpretativas mais ativas, como na repetição ad libitum do<br />

moto do violão que toca em rubato <strong>de</strong>sencontra<strong>da</strong>mente<br />

sobre os acor<strong>de</strong>s ritmicamente regulares do piano (Ex.8).<br />

Essas <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>vem ser fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> acordo com<br />

a coerência do discurso dos trechos on<strong>de</strong> estes momentos<br />

estão inseridos.<br />

Existe um <strong>de</strong>sencontro métrico proveniente <strong>de</strong> um<br />

momento em que as sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos dois instrumentos<br />

se encontram perfeitamente amalgama<strong>da</strong>s, formando<br />

também um prenúncio do que vem a seguir: uma série <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sencontros entre vários parâmetros (como articulação<br />

e dinâmica). O objetivo <strong>de</strong>ste trecho, que vem com a<br />

instrução <strong>de</strong> repetição ad libitum, é evi<strong>de</strong>nciar a oposição<br />

entre a métrica do violão e do piano, e não existe razão<br />

para que ele se prolongue além do necessário para<br />

que isso aconteça (o compositor sugere que se repita<br />

o trecho no mínimo duas vezes), o que acarretaria um<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio entre este primeiro <strong>de</strong>sencontro e os que<br />

surgirão adiante.<br />

Sobre as <strong>de</strong>cisões interpretativas relativas à realização <strong>de</strong><br />

alguns trêmolos <strong>de</strong> duração in<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ou fermatas<br />

em seções intermediárias (Ex.9), também se <strong>de</strong>ve procurar<br />

soluções que contribuam para manter a coerência do<br />

discurso musical.<br />

A fermata sobre o trêmolo do violão não <strong>de</strong>ve ter uma<br />

duração muito longa, já que estabelece uma ligação<br />

entre um diálogo imitativo dos instrumentos. Já no final


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

<strong>de</strong>ste trecho, o traço (que, <strong>de</strong> acordo com a legen<strong>da</strong><br />

forneci<strong>da</strong> pelo compositor na partitura, significa duração<br />

in<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>), juntamente com as indicações do<br />

compositor, sugere que a duração <strong>de</strong>ve se prolongar até<br />

que o som <strong>de</strong>sapareça, justamente porque este momento<br />

tem um caráter mais conclusivo que o anterior, por se<br />

tratar do final <strong>de</strong> uma seção.<br />

Ex.8: Rítmica <strong>de</strong>sencontra<strong>da</strong> entre o violão em rubato e a rítmica regular do piano<br />

(Inspiratio: An<strong>da</strong>ntino, c.13, p.5)<br />

Ex.9: Pontos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão sobre duração do tempo (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 11º e 12º sistemas, p.4)<br />

73


74<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

2.7. - An<strong>da</strong>mento<br />

An<strong>da</strong>mento é um parâmetro que po<strong>de</strong> ser um elemento<br />

essencial para que uma obra como Inspiratio tenha uma<br />

interpretação coesa. Duffin discute em seu artigo o largo<br />

espectro <strong>de</strong> significados que as indicações <strong>de</strong> an<strong>da</strong>mento<br />

po<strong>de</strong>m ter, o que mostra que esse parâmetro é <strong>de</strong><br />

natureza bem complexa. Como já foi dito anteriormente,<br />

Inspiratio não é dividi<strong>da</strong> em movimentos e se organiza<br />

em três seções distintas: Tempo Perceptivo (quando não<br />

há métrica indica<strong>da</strong>), An<strong>da</strong>ntino e Mo<strong>de</strong>rato, finalizandose<br />

com uma co<strong>da</strong> rítmica. Embora não exista indicação<br />

métrica <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> e nem divisões <strong>de</strong> compasso no Tempo<br />

Perceptivo, os performers precisam <strong>de</strong>cidir por uma<br />

pulsação regular, sentindo-a internamente até o final<br />

<strong>de</strong>sta primeira seção, já que a precisão rítmica neste<br />

momento confere uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e coerência ao discurso<br />

musical. Apesar <strong>de</strong> não haver indicação <strong>de</strong> an<strong>da</strong>mento<br />

no Tempo Perceptivo, existe uma alusão à célula rítmica<br />

no início <strong>da</strong> obra, mais adiante, no Mo<strong>de</strong>rato, que acaba<br />

por sugerir uma relação com a seção inicial (Ex.10a, 10b<br />

e 10c). Esta alusão po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>da</strong> como uma<br />

indicação <strong>de</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o an<strong>da</strong>mento do Tempo<br />

Perceptivo e o an<strong>da</strong>mento convencional Mo<strong>de</strong>rato. Sem<br />

esta relação, a indicação do início <strong>da</strong> obra po<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r<br />

na subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ex.10a – Célula rítmica no início <strong>da</strong> obra (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 1º sistema, p.1)<br />

Ex.10b – Célula rítmica do início <strong>da</strong> obra repeti<strong>da</strong> em diminuição pelo piano<br />

(Inspiratio:Tempo Perceptivo. 6º sistema, p.2)<br />

Ex.10c – Célula rítmica do início <strong>da</strong> obra repeti<strong>da</strong> pelo violão com diminuição e inversão<br />

(Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.4- 5, p.8)


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

Essa relação po<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> também em outras<br />

referências <strong>da</strong> primeira seção na última seção. Outra<br />

retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s idéias rítmicas do Tempo Perceptivo ocorre<br />

nos primeiros compassos do Mo<strong>de</strong>rato; tomando-se a<br />

semínima como uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo no Tempo Perceptivo,<br />

obtêm-se um resultado rítmico idêntico no Mo<strong>de</strong>rato<br />

(Ex.11a e 11b). Este mesmo padrão se repete com<br />

aumentação rítmica no c.10 do Mo<strong>de</strong>rato (Ex.11c).<br />

Ex.11a – Semínima toma<strong>da</strong> como uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo (Inspiratio:Tempo Perceptivo, 2º sistema, p.1)<br />

Ex.11b: Subdivisão rítmica no Mo<strong>de</strong>rato a partir <strong>da</strong> referência <strong>da</strong> semínima do Tempo Perceptivo<br />

(Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.1-2, p.6)<br />

Ex.11c – Aumentação rítmica <strong>de</strong> motivo do Tempo Perceptivo no início <strong>da</strong> seção Mo<strong>de</strong>rato (Inspiratio: c.10-12, p.8)<br />

75


76<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

A partir <strong>da</strong>í, o compositor passa a criar uma espécie<br />

<strong>de</strong> diminuição métrica, utilizando três fórmulas <strong>de</strong><br />

compasso consecutivas diferentes, sendo ca<strong>da</strong> uma mais<br />

curta que a anterior. Os performers precisam enfatizar<br />

a métrica particular <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>stes compassos para<br />

melhor criar este efeito, que conduz a uma finalização<br />

<strong>da</strong> obra (Ex.12).<br />

Ex.12 – Fórmulas <strong>de</strong> compasso variantes (Inspiratio: Mo<strong>de</strong>rato, c.18-20, p.9)<br />

2.8. - Notação<br />

Em seu artigo, DUFFIN (1995, p.5) consi<strong>de</strong>ra a notação<br />

como um aspecto que “trata <strong>da</strong> realização <strong>da</strong> música<br />

escrita”. Inspiratio utiliza a grafia tradicional mescla<strong>da</strong> com<br />

símbolos comumente usados na música contemporânea,<br />

como clusters e traços horizontais ao lado <strong>da</strong>s notas<br />

indicando duração in<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>. Especificamente com<br />

relação à escrita <strong>da</strong> parte pianística, como já foi exposto<br />

anteriormente, em muitos momentos <strong>da</strong> obra ela se<br />

assemelha à notação idiomática violonística, revelando<br />

a clara intenção do compositor <strong>de</strong> buscar um equilíbrio<br />

sonoro entre os dois instrumentos.<br />

2.9. - Dinâmica<br />

Ao abor<strong>da</strong>r o uso <strong>da</strong> dinâmica na música barroca,<br />

DUFFIN (1995, p.6) lembra que “basicamente… [era]<br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> mais do performer do que do compositor.<br />

Assim, a menos que houvesse algum efeito inesperado,<br />

mas necessário na música, o compositor <strong>de</strong>ixaria a parte<br />

sem marcações”. Na <strong>Música</strong> Atual, a dinâmica, um dos<br />

parâmetros mais explorados, é indica<strong>da</strong> com gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>talhamento pelos compositores. Como em Inspiratio<br />

a experimentação sonora é o fator prepon<strong>de</strong>rante, a<br />

exploração dos parâmetros mais diretamente relacionados<br />

com o equilíbrio <strong>da</strong> amplitu<strong>de</strong> do som e com a construção<br />

<strong>de</strong> um diálogo imitativo entre violão e piano, como a<br />

dinâmica, se torna um dos meios mais efetivos para se<br />

chegar a este propósito. O problema <strong>de</strong> equilíbrio sonoro<br />

entre os dois instrumentos é muito evi<strong>de</strong>nte em alguns<br />

momentos, principalmente quando o piano é explorado<br />

nas regiões média e média-grave. Para atingir o equilíbrio<br />

necessário, o pianista <strong>de</strong>ve procurar se orientar pela<br />

amplitu<strong>de</strong> sonora do violão (Ex.13a e 13b).


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

Ex.13a: Linhas do piano e violão escritas numa mesma região (Inspiratio: An<strong>da</strong>ntino, c.10, p.5)<br />

Ex.13b: Linhas do piano e violão escritas numa mesma região (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 9º sistema, p.3)<br />

A dinâmica, no plano geral <strong>da</strong> obra, <strong>de</strong>ve ser concebi<strong>da</strong> a<br />

partir <strong>da</strong>s <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais ou menos intensas <strong>de</strong> timbre;<br />

sendo assim, o conceito <strong>de</strong> dinâmica <strong>de</strong>ve se dilatar<br />

além <strong>da</strong>s fronteiras do usual, que se refere à maior ou<br />

menor amplitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> som. Por isso, para<br />

se <strong>de</strong>terminar a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> sonora <strong>de</strong> algum trecho, a<br />

textura também <strong>de</strong>ve ser observa<strong>da</strong>. Em vários momentos<br />

<strong>de</strong>sta obra a textura é mais <strong>de</strong>terminante neste sentido<br />

do que a própria amplitu<strong>de</strong> sonora (Ex.14a e 14b):<br />

EX.14a: Intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> menor em dinâmica f enérgico <strong>de</strong>vido à textura monofônica e timbre apenas do violão<br />

(Inspiratio: Tempo Perceptivo, 8º sistema, p.3)<br />

77


78<br />

GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

EX.14b: Intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> maior em dinâmica mp <strong>de</strong>vido à textura mais <strong>de</strong>nsa, relações intervalares e timbre<br />

resultante entre piano e violão (Inspiratio: Tempo Perceptivo, 5º sistema, p.2)<br />

3. - Conclusão<br />

Tomando-se a abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> DUFFIN (1995) sobre a<br />

Performance Practice, ou Performance Historicamente<br />

Informa<strong>da</strong> como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para a discussão <strong>de</strong> uma<br />

possível interpretação <strong>de</strong> Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter,<br />

conclui-se que os parâmetros discutidos em seu artigo,<br />

embora originalmente direcionados para a performance<br />

<strong>da</strong> <strong>Música</strong> Antiga, po<strong>de</strong>m ser aplicados a qualquer estilo<br />

<strong>de</strong> repertório, inclusive na <strong>Música</strong> Atual. A reflexão sobre<br />

tais parâmetros possibilita a adoção <strong>de</strong> um discurso<br />

coerente na interpretação <strong>de</strong> uma obra contemporânea<br />

ou <strong>de</strong> qualquer outro período histórico. NIELSON (2000,<br />

p.87) acredita firmemente que “as conseqüências do<br />

não envolvimento nas questões <strong>da</strong> Performance Practice<br />

na música contemporânea po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>sastrosas”. A<br />

abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> Performance Tradicional, segundo Duffin,<br />

quando calca<strong>da</strong> na imitação sem muita reflexão, tornase<br />

ineficaz para a <strong>Música</strong> Atual, pois as convenções <strong>de</strong><br />

interpretação ain<strong>da</strong> não estão estabeleci<strong>da</strong>s nestas obras<br />

contemporâneas. NIELSON (2000, p.51) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que<br />

“ca<strong>da</strong> vez mais, as investigações <strong>de</strong> novas sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

novos níveis <strong>de</strong> complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> musical, e novas formas <strong>de</strong><br />

comunicação com os performers (e, ultimamente, com<br />

a platéia), requerem novas abor<strong>da</strong>gens para o estudo e<br />

a performance, bem diferentes <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia e prática<br />

tradicionais”. Neste ponto existe uma estreita semelhança<br />

entre a Performance Histórica na <strong>Música</strong> Antiga e na<br />

<strong>Música</strong> Atual. Porém, enquanto na primeira procurase<br />

recriar em condições atuais a intenção e o resultado<br />

musical <strong>de</strong> obras concebi<strong>da</strong>s num tempo distante, sem<br />

ter como referência algum registro sonoro original,<br />

na última existe uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular-se a<br />

escuta do convencional para se enten<strong>de</strong>r a música em<br />

outro contexto. Nesse sentido, é <strong>de</strong> vital importância<br />

que o performer tenha compreensão <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

calcar suas interpretações em reflexões fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s<br />

no conhecimento <strong>de</strong>ssas discussões, com o intuito <strong>de</strong><br />

enriquecer e fortalecer a coerência <strong>de</strong> seu discurso<br />

musical e seu fazer artístico.


GRECO, L.; BARRENECHEA, L. Inspiratio <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Richter: uma abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> interpretação ... Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 67-79<br />

4. - Referências<br />

BERRY, Wallace. Structural Functions in Music. Toronto, General Publishing Company Ltd, 1987.<br />

BUCKINX, Boun<strong>de</strong>wijn, O Pequeno Pomo, ou a História <strong>da</strong> <strong>Música</strong> do Pós-Mo<strong>de</strong>rnismo. São Paulo, Editora Gior<strong>da</strong>no,<br />

1998.<br />

DUFFIN, Ross W. Performance Practice: Que me veux-tu? What do you want from me? Early Music America v.1, n.1 (Fall<br />

1995), p.27-36. Tradução não publica<strong>da</strong> <strong>de</strong> Paulo César Martins Rabelo, p.1-12.<br />

NIELSON, Lewis. Technical, interpretive and aesthetics issues in the performance practice of contemporary music.<br />

Per Musi, v. 2. Belo Horizonte: <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, p.50-88, 2000.<br />

RICHTER, Fre<strong>de</strong>rico. Inspiratio. Porto alegre, Goldberg Edições Musicais, 1997.<br />

ZUBEN, Paulo. Ouvir o Som: Aspectos <strong>de</strong> Organização na <strong>Música</strong> do Século XX. Cotia, Ateliê Editorial,<br />

2005.<br />

Lara Greco é Licencia<strong>da</strong> em Piano pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás. Em 2007, concluiu o Mestrado em <strong>Música</strong> na<br />

mesma instituição, com bolsa do CNPq, sob a orientação <strong>da</strong> Profa. Dra. Lúcia Barrenechea com trabalho na linha <strong>de</strong><br />

pesquisa Performance Musical e Suas Interfaces. Atualmente, é professora <strong>de</strong> piano nas Oficinas <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> EMAC/<br />

UFG.<br />

Lúcia Barrenechea é pianista e pesquisadora, Bacharel em <strong>Música</strong> pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, Mestre em <strong>Música</strong><br />

pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Boston, EUA, e Doutora em <strong>Música</strong> pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Iowa, EUA. Em 1994 passou a integrar o<br />

corpo docente <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> e Artes Cênicas <strong>da</strong> UFG. Des<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2006, é professora no Instituto Villa-Lobos<br />

<strong>da</strong> UNIRIO.<br />

79


80<br />

RodRigues, R. F. Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>: as imagens do Tempo na escuta musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 80-83<br />

Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

as imagens do Tempo na escuta musical<br />

Rodrigo Fonseca e Rodrigues ( PUC-SP, São Paulo )<br />

rodfroes@gmail.com<br />

sumário: Recompor, pelas estratégias do exercício conceitual, a dinâmica heterogênea <strong>de</strong> tempos, <strong>de</strong> ritmos e <strong>de</strong> forças<br />

co-implicados na imagem <strong>da</strong> escuta musical, é a proposta com a qual esta comunicação preten<strong>de</strong> se comprometer. Uma<br />

tarefa como esta precisaria redimensionar alguns pontos <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> ligados ao próprio modo <strong>de</strong> pensá-la, na busca <strong>de</strong><br />

experimentar outros meios conceituais para re-imaginar, conceitualmente, a escuta, não como um fenômeno ligado ao<br />

som, mas como uma paradoxal composição <strong>de</strong> tempos heterogêneos, <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Palavras-Chave: escuta, imagem, tempo, sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, pensamento<br />

sound and sonority: the images of the Time in musical listening<br />

Abstract: Re-composing, for the strategies of the conceptual exercise, the heterogeneous dynamics of times, rhythms<br />

and forces co-implied in the image of musical listening, is the proposal to which this communication intends to commit<br />

itself. A task as this would need to take a new dimension about some starting points to the proper way to think it, in the<br />

search to try other conceptual ways to re-imagine the listening, not as a phenomenon to the sound, but as a paradoxical<br />

composition of heterogeneous times, of soundings.<br />

Keywords: listening, image, time, sound, thought<br />

1- A imagem do pensamento e a escuta<br />

A nossa percepção facilmente nos convence <strong>de</strong> que<br />

vivemos uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que é produzi<strong>da</strong> por fenômenos<br />

e por estados sensíveis. Ora, isso significa que<br />

percebemos e pensamos o mundo quase sempre em<br />

termos <strong>de</strong> imagens mentais – as afecções - que são<br />

dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma, <strong>de</strong> contorno, <strong>de</strong> substância, e <strong>de</strong> uma<br />

mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> “episódica”. Essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> percebi<strong>da</strong>, porém,<br />

coinci<strong>de</strong> com um modo <strong>de</strong> organizar o pensamento e<br />

que necessita, por sua vez, <strong>de</strong> uma lógica do espaço.<br />

Vi<strong>de</strong>, por exemplo, todo o universo <strong>de</strong> figuras, intervalos,<br />

gra<strong>da</strong>ções etc. que condicionam a imagem <strong>da</strong> música.<br />

Os elementos formados e os símbolos que povoam a<br />

escuta musical também não existem sem um espaço<br />

imaginário, espaço on<strong>de</strong> movimentos, veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

distâncias, durações, dinâmicas e alturas se me<strong>de</strong>m e se<br />

articulam, tal como num sistema lógico e organizado.<br />

A história <strong>da</strong> abstração no pensamento analítico fez com<br />

que a imagem do Tempo, ou seja, a sua força incorporal e<br />

a-forma<strong>da</strong>, se reduzisse a uma figuração, a uma imagem<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

figura<strong>da</strong>, espacializa<strong>da</strong>, cronológica. Isto significa que<br />

escalonar mentalmente durações temporais simplesmente<br />

intensivas e incomensuráveis em intervalos extensos,<br />

em distâncias mensura<strong>da</strong>s. É tal imagem <strong>de</strong> pensamento<br />

que representa um tempo objetivado como unívoco<br />

e homogêneo. Dito isto, é preciso não se orientar no<br />

pensamento - e também na escuta - se pautando somente<br />

sob tais hábitos <strong>de</strong> espacializar o Tempo, figurando-o como<br />

um mero conjunto <strong>de</strong> formas, <strong>de</strong> matéria e <strong>de</strong> movimentos<br />

coor<strong>de</strong>náveis. Isso não é mais do que um meio <strong>de</strong> falsear a<br />

natureza do Tempo, que po<strong>de</strong> ser também pensado como<br />

uma “máquina <strong>de</strong> forças” e que to<strong>da</strong> a forma do mundo só<br />

se manifesta quando ganha algum ritmo. Por esta razão, o<br />

Tempo tem uma imagem singular, porque não é passível <strong>de</strong><br />

nenhuma representação objetiva. De sua parte, a imagem<br />

<strong>da</strong> escuta passará, se submeti<strong>da</strong> a tal espacialização do<br />

pensamento, a sofrer um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação pauta<strong>da</strong><br />

num horizonte lógico e num tempo dramatizado, que<br />

se assentam apenas em séries ou nos enca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong><br />

formas perceptíveis e <strong>de</strong> estados vividos.<br />

Recebido em: 22/06/2007 - Aprovado em: 21/12/2007


RodRigues, R. F. Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>: as imagens do Tempo na escuta musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 80-83<br />

Um modo <strong>de</strong> pensar abstrato analítico não permitirá<br />

jamais que se conceba na<strong>da</strong> em música como real<br />

movimento, mas somente como mobili<strong>da</strong><strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nável,<br />

ou seja, como pseudo-movimento. E, bem o sabemos,<br />

a força <strong>da</strong> música vive para aquém e para muito além<br />

<strong>da</strong> forma, <strong>da</strong> percepção, <strong>da</strong> sintaxe e do sentimento.<br />

Precisamos, <strong>de</strong> ora em diante, acolher um modo <strong>de</strong><br />

problematizar a escuta que se volte antes para uma<br />

apreensão conceitual <strong>de</strong> como a música se move como<br />

potência do Tempo e <strong>de</strong> como o movimento intenso do<br />

Tempo nasce <strong>da</strong> música. Para tanto, o nosso investimento<br />

será imaginar conceitualmente uma outra performance<br />

<strong>da</strong> escuta, que se componha a partir <strong>de</strong> uma outra<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> rítmica puramente intensiva, que insiste sob a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> extensiva, já qualifica<strong>da</strong> e cataloga<strong>da</strong> do som<br />

e dos signos anexos.<br />

2 - A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> intensiva <strong>da</strong> escuta<br />

Amparamo-nos inicialmente no “pensamento <strong>da</strong><br />

imanência”, <strong>de</strong>fendido por autores como Spinoza,<br />

Nietzsche, Henri Bergson e Gilles Deleuze que, em vez<br />

<strong>de</strong> acolherem uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fenomenológica, extensiva e<br />

espacializa<strong>da</strong>, ousam investir na apreensão <strong>da</strong> face intensiva<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> sua transiência íntima, heterogênea e<br />

criativa. Por se tratar <strong>de</strong> uma face puramente temporal,<br />

imaterial, é impossível representá-la a partir <strong>de</strong> um modo<br />

<strong>de</strong> pensamento abstrato. A idéia <strong>de</strong> “intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>” passa a<br />

nortear uma outra imagem do pensamento, inabarcável<br />

pelo olhar analítico transcen<strong>de</strong>nte, tais como os arquétipos<br />

do pensamento platônico e cartesiano.<br />

Expliquemos este ponto: as intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s são parte <strong>de</strong><br />

um processo oscilatório. A sua dinâmica revela, por sua<br />

vez, um mundo vital não-sensível que, num processo<br />

complexo <strong>de</strong> veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s puras, incorporais ( os virtuais<br />

), se atualizam , no sentido <strong>de</strong> se tornarem ato, ação,<br />

em nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, produzi<strong>da</strong> pela percepção<br />

e pela linguagem.<br />

Os ritmos intensivos são, no entanto, ain<strong>da</strong> insensíveis<br />

para os tempos <strong>da</strong> nossa lenta e redutora percepção.<br />

Significa dizer que só conhecemos a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s quando ela já se encontra <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong><br />

num tempo “extenso”, por isso já recoberta pelo signo<br />

e por quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s formais, que dizem respeito às nossas<br />

retoma<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentido, <strong>de</strong> convenção, <strong>de</strong> recognição, <strong>de</strong><br />

valoração etc. Dito <strong>de</strong> outro modo: os ritmos intensivos<br />

nos “trabalham” muito antes <strong>de</strong> nos <strong>da</strong>rmos conta <strong>de</strong>les.<br />

O Tempo é uma inconcebível máquina <strong>de</strong> forças as quais<br />

muitas são para nós insensíveis, mas que fazem emergir,<br />

por meio <strong>de</strong> movimentos intensos, modulações, um<br />

mundo sensível para a vi<strong>da</strong> orgânica. Conclui-se com isto<br />

que, quando escutamos, somos afetados por um mundo<br />

<strong>de</strong> virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s insensíveis, mu<strong>da</strong>s, uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

é primordialmente vibratória, um fluxo heterogêneo<br />

composto <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> ritmos <strong>de</strong> sensação que não<br />

se contentam em habitar os intervalos cronológicos. 1<br />

3 - As sínteses temporais, a imagem do “<strong>de</strong>vir”<br />

e as virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> escuta<br />

No segundo capítulo do seu livro Diferença e Repetição,<br />

Gilles Deleuze estima, inspirado por uma idéia <strong>de</strong> Santo<br />

Agostinho, “três sínteses do tempo”, que operamos para<br />

existir (<strong>DE</strong>LEUZE, 1990, p.124 ). Para enten<strong>de</strong>r o trabalho<br />

<strong>de</strong>ssas sínteses temporais na criação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> vivi<strong>da</strong>, é<br />

preciso levar em conta que nossas vi<strong>da</strong>s an<strong>da</strong>m sempre em<br />

vários ritmos, em várias veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Em suma, é por milhares<br />

<strong>de</strong> sínteses do tempo que compomos a nossa existência.<br />

Para melhor explicitar este ponto: no processo <strong>de</strong> síntese,<br />

haveria uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “pequenos eus” como partes<br />

<strong>de</strong> nossos dinamismos corporais e que possuem, ca<strong>da</strong> um,<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes <strong>de</strong> captar as oscilações do Tempo<br />

e os fluxos <strong>da</strong>s suas intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e dos seus ritmos que<br />

os afetam. São a estes “eus” que Deleuze chama <strong>de</strong> “eus<br />

contemplantes”. Tal como uma placa sensível, eles retêm<br />

certas excitações, enquanto outras <strong>de</strong>saparecem e que<br />

conservam uma intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>, quando uma outra sobrevém.<br />

O autor chama <strong>de</strong> “contração” essa paradoxal sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

pré-sensível. Isso quer dizer que somos todos “máquinas<br />

<strong>de</strong> contrair” e que contraímos ínfimas e velocíssimas<br />

vibrações, antes mesmo <strong>de</strong> sentirmos as coisas. É então a<br />

partir <strong>de</strong> nossas “contemplações contraentes” ( pequenos<br />

eus contemplando mutuamente as contrações <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

um ) que se <strong>de</strong>finem, portanto, todos os nossos ritmos,<br />

as nossas reservas, os nossos tempos <strong>de</strong> reações, os mil<br />

entrelaçamentos, as sensações e até mesmo as fadigas<br />

sensitivas que vão nos recompondo sem parar.<br />

Recuperemos agora uma outra idéia <strong>de</strong>leuziana, recria<strong>da</strong><br />

a partir <strong>da</strong> antiga idéia do “vir-a-ser”, <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por<br />

alguns pensadores pré-socráticos: a imagem conceitual<br />

do “tempo do <strong>de</strong>vir”. Ela se opõe radicalmente à reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

temporal-espacial <strong>da</strong> percepção, do fenômeno, <strong>da</strong> matéria<br />

forma<strong>da</strong>, <strong>da</strong> convencional série tridimensional passadopresente-futuro.<br />

Assim, o presente, como um estado<br />

vivido, só po<strong>de</strong> existir na condição <strong>de</strong> uma extensão <strong>de</strong><br />

tempos enca<strong>de</strong>ados, como instantes estendidos sobre a<br />

percepção, já qualificados e figurados por uma imagem<br />

<strong>de</strong> um tempo mensurável.<br />

A concepção abstrata do presente vivido é o recorte<br />

temporal <strong>de</strong> um instante que se encaixa entre passado<br />

e futuro. Mas o “tempo do <strong>de</strong>vir”, que não tem história,<br />

não se dramatiza nem possui um <strong>de</strong>stino prévio, concebe<br />

uma outra imagem do presente, que evoca antes um<br />

con<strong>de</strong>nsado <strong>de</strong> ritmos acoplando, num mesmo átimo, o<br />

passado “puro” e o futuro imediato. 2 O <strong>de</strong>vir, paradoxal<br />

por natureza, se furta assim à apreensão do presente<br />

vivido, ou ain<strong>da</strong>, o que chamamos <strong>de</strong> presente, que é<br />

apenas uma imagem con<strong>de</strong>nsa<strong>da</strong> por ritmos <strong>de</strong> <strong>de</strong>vires<br />

que perseveram, que duram o suficiente para o sentirmos<br />

e o representarmos mentalmente como um fenômeno. Ele<br />

não é um instante, não tem espessura nem extensão, e não<br />

suporta a separação arbitrária do antes e do <strong>de</strong>pois, do<br />

passado e do futuro, como se fossem tempos separados.<br />

81


82<br />

RodRigues, R. F. Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>: as imagens do Tempo na escuta musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 80-83<br />

Para prosseguir, a idéia do “tempo do <strong>de</strong>vir” é uma<br />

imagem conceitual <strong>de</strong> um Tempo em que passado e<br />

futuro insistem e divi<strong>de</strong>m, ao infinito, ca<strong>da</strong> presente. Isto<br />

é, quando o tempo cronológico percebido passa e leva o<br />

instante, haverá sempre uma trepi<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> entretempos<br />

intensivos, sem início e sem fim: um composto <strong>de</strong><br />

movimentos caóticos e <strong>de</strong> ritmos, irredutíveis ao “presente<br />

<strong>da</strong> percepção e do metrônomo”. O trabalho incessante do<br />

porvir, ao enxertar um tempo no outro, revela a paradoxal<br />

a-topia e ubiqüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a fugaci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

Tempo, por natureza, acrônico.<br />

De tudo o que foi aqui exposto, vale concluir: enquanto<br />

sentimos o jorro <strong>da</strong>s vibrações propriamente sonoras,<br />

geramos afecções e “paisagens internas”, outras<br />

modulações, nem sempre sonoras, também estão em<br />

curso, conservando ou potencializando ritmos intensivos<br />

<strong>de</strong> sensação, enquanto outros ritmos se dissipam para<br />

sempre. Po<strong>de</strong>mos escutar, portanto, o sentido implicado<br />

<strong>da</strong> música, o seu movimento, as suas cadências <strong>de</strong><br />

acor<strong>de</strong>s, a respiração no canto, as palavras, as frases,<br />

os significados, mas não percebemos auditivamente as<br />

virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que aí se maquinam. Mais do que uma<br />

seqüência <strong>de</strong> sons, é o jogo <strong>de</strong> tempos não musicais,<br />

sequer sensíveis, o que lhe dá intimamente a sua força<br />

e o seu movimento. O resultado <strong>de</strong> tantas virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

em jogo será sentido e qualificado tardiamente como<br />

manifestação “atual”, sonora, simbólica <strong>da</strong> música.<br />

São realmente as notas <strong>de</strong> uma melodia que se tornam<br />

claramente apercebi<strong>da</strong>s, mas o que “contraímos”,<br />

pelo trabalho <strong>da</strong>s nossas sínteses temporais, é uma<br />

outra face <strong>da</strong> música, que nos afeta muito antes <strong>da</strong>s<br />

notas, e que também vão mais além <strong>de</strong>las. É por isso<br />

que, mesmo ao ouvir novamente uma certa obra, ca<strong>da</strong><br />

momento <strong>da</strong> escuta será singular. Esta, antes mesmo <strong>de</strong><br />

reconhecer e apreciar certo fraseado musical, tal ou tal<br />

cadência <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s, uma figura rítmica ou uma imagem<br />

anexa, precisa “maquinar”, criativamente, tempos que<br />

são insonoros, incorporais, inumanos, <strong>de</strong> durações,<br />

veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s e intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s impalpáveis pela percepção<br />

subjetiva e pela representação objetiva.<br />

A sensação, feita <strong>de</strong> modulações sub-percebi<strong>da</strong>s, é o<br />

resultado <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> contrações silenciosas opera<strong>da</strong>s<br />

pelas “sínteses do tempo” <strong>de</strong> nossos pequeninos eus.<br />

São essas incontáveis sínteses temporais, simultâneas,<br />

encavala<strong>da</strong>s, que operamos para gerar, pela escuta, a<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sensível <strong>da</strong> música. Do mesmo modo, o que<br />

existe po<strong>de</strong> ser a música, mas o que insiste são os ritmos<br />

intensivos, as sensações e as sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s em constante<br />

e paradoxal composição/<strong>de</strong>composição/recomposição.<br />

Escutar, enfim, é algo como amalgamar um fluxo, um<br />

ritmo existencial, que se cria por meio <strong>de</strong> sínteses <strong>de</strong><br />

muitos outros ritmos e imagens híbridos. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>vemos pensar que a música se constrói na condição <strong>de</strong><br />

ser sempre atravessa<strong>da</strong> por inúmeros domínios <strong>de</strong> escuta<br />

e <strong>de</strong> não-escuta.<br />

4 - As imagens <strong>da</strong> “sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />

Finalizamos esta comunicação, ao evocando uma idéia<br />

<strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Silvio Ferraz (2005) que nos diz assim:<br />

o que se enten<strong>de</strong> por “som”, sendo este já qualificado,<br />

só dirá respeito a uma coisa estanque, a um fenômeno,<br />

a uma imagem conceitual arbitrária, espacializa<strong>da</strong>. O<br />

que se movimenta na música é antes a escuta e não<br />

o som. E a escuta é muito mais do que aquilo que soa.<br />

A música tanto não repousa apenas no sonoro quanto<br />

o sonoro não é uma ação puramente auditiva. Po<strong>de</strong>mos<br />

assim pensar os tempos <strong>da</strong> escuta em termos <strong>de</strong> imagens<br />

pré-sensíveis, <strong>de</strong> imagens sonoras e até <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong><br />

música, às vezes, sem nenhuma referência ao som. Ferraz<br />

arremata: “...escutamos tudo aquilo que vem com os<br />

sons”, <strong>de</strong>ixando claro que a escuta é urdi<strong>da</strong> por ritmos,<br />

explícitos ou secretos, que os sons tecem com as nossas<br />

vi<strong>da</strong>s ( FERRAZ, 2005, p. 76 ).<br />

É neste momento final que recorremos ao que nos diz<br />

Ferraz sobre o que <strong>de</strong>fine a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, e porque este é<br />

o conceito que exprime o que os insuficientes conceitos<br />

<strong>de</strong> som, <strong>de</strong> objeto sonoro, <strong>de</strong> forma e <strong>de</strong> matéria<br />

sonoras ou musicais, não alcançariam. O sufixo <strong>da</strong><br />

palavra “sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong>nota, genericamente, aspectos<br />

qualitativos, adjetivados, timbrísticos do som. O conceito<br />

<strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>screve antes o processo, a totali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos <strong>de</strong>sdobramentos implicados na escuta e não a coisa<br />

sonora. A questão é a <strong>de</strong> ouvir não o som, nem o que está<br />

no som, e sim o que está no ouvir, nas potências que nos<br />

afetam e que se movem, que se criam pela escuta.<br />

A sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> adquire aqui, para a nossa apreensão, um<br />

outro calibre conceitual: tudo aquilo que soa não é apenas<br />

o som, mas sim uma composição contingencial, efêmera,<br />

mutante, <strong>de</strong> muitos tempos, e não somente tempos vividos<br />

como estados sentimentais nem como fenômenos sonoros.<br />

Dito isto, não fica difícil concor<strong>da</strong>r com a idéia <strong>de</strong> que a<br />

escuta se faz como uma máquina <strong>de</strong> tempos. A sonori<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

é, para o nosso propósito, uma palavra <strong>de</strong>sejável, porque<br />

ela exprime o modo <strong>de</strong> ser do som, porque ela expressa o<br />

que nós nos tornamos à medi<strong>da</strong> que escutamos.<br />

Esse misterioso processo é o que já <strong>de</strong>screvemos como<br />

“<strong>de</strong>vir-som”: é tudo aquilo que se diferencia pela<br />

escuta; são todos os ritmos que ela consegue maquinar,<br />

transduzindo veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, durações, fluxos, encontros e<br />

cruzamentos <strong>de</strong> tempos, <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong> vibrações e <strong>de</strong><br />

imagens <strong>de</strong> to<strong>da</strong> natureza. A sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser pensa<strong>da</strong><br />

como uma máquina <strong>de</strong> fluxos e <strong>de</strong> refluxos, <strong>de</strong> ritmos<br />

<strong>de</strong> sensação - naturais ou mesmo inventa<strong>da</strong>s -, <strong>de</strong> puros<br />

movimentos, <strong>de</strong> signos, <strong>de</strong> valores e <strong>da</strong>s temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

compostas por tudo isso. Ela se faz <strong>de</strong> uma avalanche<br />

simultânea <strong>de</strong> estremecimentos e <strong>de</strong> modulações que<br />

nos afetam para além dos problemas musicais estritos. A<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> será, <strong>de</strong>ste modo, o esplendor do movimento<br />

criativo, virtual, multiplicador e intempestivo <strong>da</strong> escuta,<br />

a sua própria imagem composta por muitas sensações<br />

silenciosas do Tempo.


RodRigues, R. F. Som e Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>: as imagens do Tempo na escuta musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 80-83<br />

Referências Bibliográficas<br />

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

<strong>DE</strong>LEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal. Tradução <strong>de</strong> Luiz Orlandi e Roberto Machado, 1974.<br />

FERRAZ, Sílvio. Livro <strong>da</strong>s Sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>s: notas dispersas sobre composição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. 7 Letras, 2005.<br />

Leituras Recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

<strong>DE</strong>LEUZE, Gilles. Francis Bacon: logique <strong>de</strong> la sensation. Paris: Ed. <strong>de</strong> la Différence, 1998.<br />

______________ & GATTARI, Felix. O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1997.<br />

SCHAEFFER, Pierre. Traite <strong>de</strong>s objets musicaux. Paris: Editions du Seuil, 1968.<br />

Rodrigo Fonseca e Rodrigues é Doutor em Comunicação e Semiótica, na área Sistemas Sonoros pela PUC/SP (2007),<br />

Mestre em Comunicação Social, pela <strong>UFMG</strong> (2002) e Licenciado em História, pela <strong>UFMG</strong> (1999). Autor do livro <strong>Música</strong><br />

eletrônica: a textura <strong>da</strong> máquina (Ed. Annablume, 2005), atualmente é Professor <strong>de</strong> Teoria e Métodos <strong>de</strong> Pesquisa em<br />

Comunicação (FCH/FUME, Belo Horizonte).<br />

Notas<br />

1 De início, para a escuta, o Tempo é, antes <strong>de</strong> ser musical, uma força insonora, não empírica. O que Gilles Deleuze chama <strong>de</strong> “virtual” é a imagem <strong>de</strong>sta<br />

força. É a potência rítmica a-formal, em seu modular absoluto, que ganha ritmo, comunica-se com outros ritmos, ganha consistência e engendra,<br />

maquina, séries <strong>de</strong> tempos fenomenológicos, instantes aos quais chamamos <strong>de</strong> “atuais”, sensíveis.<br />

2 Tudo isso vem – e intervém - nos cruzamentos <strong>de</strong> tempos ínfimos, maquinados pelos acoplamentos entre passados imediatos e futuros iminentes,<br />

sem história, sem lembrança, igualmente sem <strong>de</strong>stino e sem progresso. O passado e o futuro assim “insistem”, num mesmo instante, sempre bifurcado<br />

ao infinito, em outros imprevistos passados-futuros. É o mesmo que dizer que um futuro e um passado divi<strong>de</strong>m, a ca<strong>da</strong> instante, o presente,<br />

subdividindo-o, ao infinito, em ambos os sentidos ao mesmo tempo ( <strong>DE</strong>LEUZE, 1974, p. 169 ).<br />

83


84<br />

PALOMBINI, C. Nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Denise Garcia surpreen<strong>de</strong> uma música em construção. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 84-86<br />

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS<br />

Nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

Denise Garcia surpreen<strong>de</strong> uma<br />

música em construção<br />

Carlos Palombini (<strong>UFMG</strong>, Belo Horizonte)<br />

cpalombini@gmail.com<br />

Resenha do filme Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Denise Garcia, sobre mulheres no funk carioca, disponível no mercado <strong>de</strong><br />

aluguel <strong>de</strong> DVDs no Brasil.<br />

Palavras-chave: funk carioca, bailes funk, feminismo.<br />

Denise Garcia returns from the Rio <strong>de</strong> Janeiro slums and brings back the marvels of a music<br />

in the making<br />

Review of the film I’m Ugly But Trendy, by Denise Garcia, on women in funk carioca, available from the DVD rental market<br />

in Brazil.<br />

Keywords: funk carioca, bailes funk, feminism<br />

O que motivou Denise Garcia a realizar Sou feia mas tô na<br />

mo<strong>da</strong> foi a música. Em Porto Alegre, on<strong>de</strong> morou até o ano<br />

2000, ela viveu a música como um pólo <strong>de</strong> atração em torno<br />

do qual se reuniam indivíduos <strong>de</strong> classes sociais e formações<br />

distintas. De mu<strong>da</strong>nça para o Rio <strong>de</strong> Janeiro naquele ano, ela<br />

percebeu que, apesar <strong>de</strong> muita conversa sobre miscigenação<br />

no que tem sido apresentado como o gênero nacional por<br />

excelência, o samba, as coisas não funcionavam mais assim<br />

na capital cultural <strong>da</strong> nação, se é que um dia funcionaram.<br />

Nesta época, garotas pobres — e, na maioria dos casos,<br />

negras — como Vanessinha Pikatchu e Tati Quebra-Barraco<br />

<strong>de</strong>spontavam nas favelas. Vanessinha, cujo epíteto se po<strong>de</strong><br />

construir como uma alusão pueril ao órgão masculino,<br />

dizendo que queira “ir ao shopping” ao invés <strong>de</strong> “ficar em<br />

casa lavando pilhas <strong>de</strong> pratos”; Tati, cujo epíteto se po<strong>de</strong><br />

traduzir como a Garota Que Faz, dizendo que:<br />

Eu fiquei três meses sem quebrar o barraco,<br />

Sou feia, mas tô na mo<strong>da</strong>,<br />

Tô po<strong>de</strong>ndo pagar hotel pros homens,<br />

E isso que é mais importante.<br />

Quebra o meu barraco! Quebra o meu barraco!<br />

PER MUSI – Revista Acadêmica <strong>de</strong> <strong>Música</strong> – n.16, 86 p., jul. - <strong>de</strong>z., 2007<br />

A reação imediata <strong>da</strong> mídia, com a qual estas garotas<br />

se confrontavam, era a <strong>de</strong> rejeição pura e simples. “A<br />

sensação que eu tive então foi que não se esperava que<br />

elas usassem seu conhecimento, suas experiências na<br />

música que faziam, o que significa que se esperava que<br />

elas não se expressassem.” Sua empatia transforma<strong>da</strong> em<br />

cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, Denise Garcia <strong>de</strong>cidiu fazer um filme, ligou<br />

para a Garota Que Faz, marcou uma entrevista na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Deus e passou um ano indo e vindo <strong>da</strong>s favelas, em<br />

bailes funk por todo o Rio.<br />

Os moradores <strong>da</strong>s favelas brasileiras não estão<br />

<strong>de</strong>sacostumados ao olhar estrangeiro, sempre em busca<br />

<strong>de</strong> vislumbres <strong>de</strong> uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o samba<br />

é samba (isto é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos trinta), se apresenta como<br />

um manancial <strong>de</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Evidência do fato: a<br />

maravilhosa gravação <strong>de</strong> Aracy Côrtes, em 1932, para a<br />

Columbia, <strong>de</strong> “Tem francesa no morro”, <strong>de</strong> Assis Valente,<br />

inteiramente canta<strong>da</strong> em patoá francês. E embora os<br />

historiadores <strong>da</strong> música popular brasileira viessem a ter<br />

muita dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> se solicitados a apresentar um samba<br />

Recebido em: 28/10/2007 - Aprovado em: 20/09/2007


PALOMBINI, C. Nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Denise Garcia surpreen<strong>de</strong> uma música em construção. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 84-86<br />

aludindo à visita <strong>de</strong> um morador <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> Zona Sul<br />

à favela, 1 relatos <strong>da</strong> <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> problemática do favelado<br />

às áreas afluentes do Rio não são raros: “Comigo não”,<br />

<strong>de</strong> Heitor Catumbi e Valentina Biosca (Victor, 1935),<br />

“Sambista na Cinelândia”, <strong>de</strong> Custódio Mesquita e Mário<br />

Lago (O<strong>de</strong>on, 1936), “Cabaret no morro” <strong>de</strong> Herivelto<br />

Martins (O<strong>de</strong>on, 1937) ou “Mulato antimetropolitano” <strong>de</strong><br />

Laurindo <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> (O<strong>de</strong>on, 1939), são quatro exemplos,<br />

apenas <strong>da</strong> discografia <strong>de</strong> Carmen Miran<strong>da</strong>.<br />

Como foi que os moradores <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus reagiram<br />

às visitas <strong>de</strong> Denise Garcia? “Des<strong>de</strong> o início, fui muito<br />

bem recebi<strong>da</strong>, provavelmente porque tenha sido uma<br />

<strong>da</strong>s raras mulheres que fala português, está interessa<strong>da</strong><br />

neles e é brasileira como eles.” Ninguém sugeriu que ela<br />

<strong>de</strong>vesse solicitar autorização aos traficantes, e Denise<br />

Garcia supôs ter permissão para realizar seu trabalho<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse honesta com as pessoas envolvi<strong>da</strong>s e<br />

com ela própria. “Se você enxerga aqueles aos quais está<br />

documentando como seres humanos iguais a você, você<br />

está num bom caminho.”<br />

Fã dos Ramones, Denise Garcia vê o funk carioca como<br />

o avatar local do espírito punk. A crueza do punk é<br />

certamente um traço do funk carioca. Para <strong>de</strong>sgosto <strong>da</strong><br />

diretora, é um traço <strong>de</strong> seu filme também. Denise Garcia<br />

esforçou-se para obter financiamento <strong>de</strong> companhias<br />

locais. As respostas eram invariavelmente as mesmas: “não<br />

queremos ver nosso nome associado aos bailes funk.” Tanto<br />

melhor: como os indivíduos aos quais retrata, Sou feia mas<br />

tô na mo<strong>da</strong> carrega as marcas <strong>de</strong> pobreza imereci<strong>da</strong>.<br />

Pelo que se po<strong>de</strong> julgar dos resultados, na favela ao menos,<br />

a honesti<strong>da</strong><strong>de</strong> é a melhor política. O grau <strong>de</strong> empatia entre<br />

Denise Garcia e os sujeitos cuja vi<strong>da</strong> diária ela documenta<br />

é espantoso. Os espectadores são colocados em contato<br />

íntimo com gente cuja confiança talvez jamais pu<strong>de</strong>ssem<br />

conquistar. De suas expedições a campos nos quais<br />

poucos <strong>de</strong> nós nos aventuraríamos, Denise Garcia nos traz<br />

a maravilha <strong>de</strong> uma música em construção. E escutamos<br />

o funk carioca como nunca, nem mesmo no mais proibido<br />

dos CDs piratas. O MC G3 abre o filme cantando a palo<br />

seco contra o pano <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong> uma impressionante<br />

pare<strong>de</strong> <strong>de</strong> alto-falantes mudos, conectando assim as<br />

equipes <strong>de</strong> som do Rio às block parties do Bronx dos anos<br />

setenta e aos sound systems jamaicanos dos anos sessenta<br />

sem pe<strong>da</strong>ntismo algum. Uma improvisação vocal ao som<br />

<strong>de</strong> palmas por um grupo <strong>de</strong> amigos liga o funk carioca<br />

às tradições brasileiras do repente, do samba <strong>de</strong> ro<strong>da</strong> e<br />

do partido alto ao mesmo tempo em que estabelece uma<br />

relação entre estas tradições e o proto-rap <strong>de</strong> The Last<br />

Poets. Deise <strong>da</strong> Injeção canta a cappella na porta <strong>de</strong> sua<br />

casa enquanto Ramona — uma transgênero — executa<br />

uma coreografia altamente explícita. Denise Garcia é o<br />

objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> todo o etnógrafo musical!<br />

Quando filmava, ela não sabia o que resultaria <strong>de</strong> seus<br />

esforços. Mesmo assim, os funkeiros com os quais<br />

trabalhou continuaram cooperativos e abertos. Denise<br />

Garcia acredita que tenha sido só quando viram o filme no<br />

classudo O<strong>de</strong>on, no Rio, que eles se tenham <strong>da</strong>do conta do<br />

que estava acontecendo. “Em meu filme não há sociólogo<br />

ou antropólogo para explicar as palavras dos funkeiros;<br />

eles falam por si.” Ela acredita que o comportamento<br />

<strong>de</strong> seus amigos <strong>da</strong> favela durante a estréia no Rio seja<br />

evidência do sucesso <strong>de</strong> seu trabalho: “eles estavam<br />

felizes e fizeram barulho durante to<strong>da</strong> a sessão.”<br />

Mas Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong> é mesmo um filme no qual<br />

os funkeiros falam por si? De modo algum! Se isto fosse<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Denise Garcia não seria uma diretora. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que ela nos apresenta é altamente construí<strong>da</strong>. Mais que<br />

um filme sobre funk, Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong> é um filme<br />

à thèse, um filme sobre a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> explícita como um<br />

instrumento <strong>de</strong> liberação feminina. Esta inversão se explica<br />

nas seguintes linhas Philip Brett e Elizabeth Wood:<br />

A música, especialmente a popular, com suas táticas lúdicas,<br />

provocantes ou diruptivas em torno <strong>da</strong> representação tanto<br />

vocal como visual do sexo e do gênero (vi<strong>de</strong> Madonna, Prince<br />

ou Boy George), freqüentemente parece respon<strong>de</strong>r à idéia <strong>de</strong><br />

Judith Butler <strong>de</strong>stas características supostamente naturais como<br />

elocuções “performativas” (isto é, como atos <strong>de</strong> fala), às quais<br />

os sujeitos se submetem numa repetição força<strong>da</strong> como parte<br />

<strong>da</strong> admissão à língua e à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Butler propõe a notável<br />

inversão segundo a qual “se um regime <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos<br />

incumbe duma performance compulsória do sexo, então só po<strong>de</strong><br />

ser através <strong>de</strong>sta performance que o sistema binário do gênero e<br />

o sistema binário do sexo venham a ter qualquer inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong>”<br />

(BUTLER, 1993, p 318), (BRETT e WOOD, 2002).<br />

O mundo funk carioca se movimenta rapi<strong>da</strong>mente e<br />

<strong>de</strong>ixa poucos rastros visíveis. Se na pista todos os seres<br />

humanos brilham com a beleza transcen<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong><br />

seu transe <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, em 2007 a visão <strong>de</strong> mulheres<br />

que nem <strong>de</strong> longe correspon<strong>de</strong>m aos i<strong>de</strong>ais aceitos <strong>de</strong><br />

beleza feminina ocupando o palco para <strong>da</strong>rem voz a sua<br />

disposição em tomar parte nas formas mais acintosamente<br />

selvagens <strong>de</strong> intercurso sexual simplesmente dissipou-se.<br />

O documentário <strong>de</strong> Denise Garcia permanece como um<br />

tributo eloqüente a esta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vi-o inúmeras<br />

vezes. Vi inúmeras vezes jovens assistirem-lhe. A memória<br />

<strong>de</strong> suas faces continua tão viva quanto os melhores<br />

momentos do filme: alertas, seus troncos projetando-se<br />

<strong>de</strong> suas ca<strong>de</strong>ira, os olhos muito abertos, os rostos sorrindo<br />

maravilhados diante <strong>de</strong> uma cultura que quase todos<br />

parecem <strong>de</strong>terminados a ocultar-lhes.<br />

85


86<br />

PALOMBINI, C. Nas favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Denise Garcia surpreen<strong>de</strong> uma música em construção. Per Musi, Belo Horizonte, n.16, 2007, p. 84-86<br />

Referências<br />

BRETT, Philip e WOOD, Elizabeth. 2002. “<strong>Música</strong> lésbica e gay”. Revista eletrônica <strong>de</strong> musicologia, . Curitiba: UFPR.<br />

BUTLER, Judith. 1993. “Imitation and Gen<strong>de</strong>r Insubordination”. In ABELOVE, Henry, BARALE, Michèle Aina e HALPERIN,<br />

David (orgs). The Lesbian and Gay Studies Rea<strong>de</strong>r. Nova York e Londres: Routledge, pp 307–20.<br />

Ficha técnica resumi<strong>da</strong> do filme Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong><br />

Título original: Sou feia mas tô na mo<strong>da</strong> (2005, Brasil)<br />

61 minutos, Colorido, Ví<strong>de</strong>o Digital<br />

Gênero: Documentário<br />

Censura: 14 anos<br />

Direção: Denise Garcia<br />

Roteiro: Denise Garcia<br />

Produção: Denise Garcia<br />

Assistente <strong>de</strong> Produção: João Mors Cabral<br />

Diretor <strong>de</strong> Animação: Allan Sieber<br />

Fotografia e Som: Paulo Camacho, Pedro Bronz, Matias Maxx<br />

Edição: Gustavo Melo (Telephone Colorido)<br />

Elenco<br />

Deise <strong>da</strong> Injeção<br />

Gaiola <strong>da</strong>s Popozu<strong>da</strong>s<br />

Tati Quebra-Barraco<br />

Cidinho e Doca<br />

DJ Marlboro<br />

Carlos Palombini é professor adjunto <strong>de</strong> Musicologia na <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Música</strong> <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>, on<strong>de</strong> co-edita a série <strong>Música</strong><br />

Edita<strong>da</strong> (Editora <strong>da</strong> <strong>UFMG</strong>) e coor<strong>de</strong>na o Laboratório <strong>de</strong> Produção Fonográfica. Suas pesquisas enfocam o texto <strong>de</strong> Pierre<br />

Schaeffer e os bailes funk carioca. Seus trabalhos aparecem nos periódicos Music and Letters (OUP), Computer Music<br />

Journal (MIT Press), Organised Sound (CUP), Leonardo (MIT Press), Leonardo Music Journal (MIT Press), Echo (UCLA),<br />

Synteesi (Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Finlan<strong>de</strong>sa <strong>de</strong> Semiótica), Electronic Musicological Review (UFPR), Per musi (<strong>UFMG</strong>), Anthropológicas<br />

(UFPE), Em pauta (UFRGS) etc. É pesquisador do CNPq.<br />

Notas<br />

1 “O Neguinho e a Senhorita”, <strong>de</strong> Noel Rosa <strong>de</strong> Oliveira e Abelardo <strong>da</strong> Silva (gravado por Noite Ilustra<strong>da</strong>), e “Voltei pro morro”, <strong>de</strong> Luiz<br />

Peixoto e Vicente Paiva (gravado por Carmen Miran<strong>da</strong>), são dois exemplos.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!