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CULTURA, IDENTIDADE E SENTIMENTO EM GABRIEL GARCIA ...

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<strong>CULTURA</strong>, <strong>IDENTIDADE</strong> E <strong>SENTIMENTO</strong> <strong>EM</strong> <strong>GABRIEL</strong> <strong>GARCIA</strong><br />

MARQUEZ: a constituição dos sujeitos contemporâneos no conto O rastro do teu<br />

RESUMO<br />

sangue na neve<br />

Flávia Alexandra Pereira Pinto 1<br />

Jeane Carla Oliveira de Melo 2<br />

O presente artigo discute as relações entre cultura e literatura a partir dos conceitos<br />

advindos das teorias sociais contemporâneas, tais como centro, periferia e nação. Para<br />

tanto, procura-se rever as concepções sobre identidade a partir da análise dos processos<br />

de identificação e constituição do sujeito na atualidade. A análise do conto O rastro do<br />

teu sangue na neve, de Gabriel García Márquez, sustenta o argumento de que as<br />

identidades no mundo contemporâneo estão se deslocando em virtude de uma série de<br />

mudanças que vêm desestruturando o sujeito e seus espaços em distintos aspectos<br />

culturais e sociais.<br />

Palavras-chave: Identidade. Cultura. Literatura latino-americana contemporânea. Conto.<br />

ABSTRACT<br />

This paper discusses the relationship between culture and literature from the concepts<br />

that come from the contemporary social theories, such as core, periphery, and nation. To<br />

that end, seeks to revise notions about identity from the analysis of processes of<br />

identification and constitution of the subject today. An analysis of the short story The<br />

trail of your blood in the snow, by Gabriel García Márquez, supports the argument that<br />

identities in the contemporary world are moving because of a series of changes that are<br />

disrupting the subject and its spaces in different cultural and social.<br />

Keywords: Identity. Culture. Contemporary Latin American literature. Tale.<br />

1 INTRODUÇÃO<br />

A identidade tem se destacado como uma questão central nas discussões<br />

contemporâneas, tanto no contexto da reconstrução das identidades nacionais e étnicas<br />

como na sua reafirmação pessoal e cultural. Esses processos colocam em evidência uma<br />

série de conceitos tradicionais, reforçando o argumento de que existem distintos<br />

processos de formações identitárias nas sociedades de hoje. A discussão sobre as<br />

1 Licenciada em Letras (UFMA) e Pedagogia (U<strong>EM</strong>A) e mestranda do Programa de Pós Graduação em<br />

Cultura e Sociedade (UFMA). E-mail: flavialexandra@hotmail.com<br />

2 Licenciada em História (U<strong>EM</strong>A) e Pedagogia (UFMA) e mestranda do Programa de Pós Graduação em<br />

Cultura e Sociedade (UFMA). E-mail: jeca_melo@hotmail.com


instâncias nas quais as identidades são contestadas no mundo globalizado impulsiona<br />

uma análise da importância da diferença e das oposições na sua construção.<br />

A tradição moderna dominante nos estudos filosóficos e sociais concebe a<br />

individualidade do sujeito como algo preexistente. Entretanto, as teorias<br />

contemporâneas têm contestado esse modelo de expressão. As pesquisas da psicanálise,<br />

da linguística, da antropologia descentralizaram o sujeito em relação às leis de seu<br />

desejo, às formas de sua linguagem, às regras de suas ações ou ao jogo de seu discurso<br />

imaginativo. Se as possibilidades de pensamento e ação são determinadas por uma série<br />

de sistemas que o sujeito não controla e às vezes não compreende, então o sujeito está<br />

descentrado, no sentido de que não é o único centro existente capaz de explicar os<br />

acontecimentos.<br />

Isto pode ser caracterizado como parte de um processo mais amplo de<br />

mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades<br />

modernas e abalando os quadros de referência que davam ao sujeito uma estabilidade no<br />

mundo social. O próprio processo de identificação, através do qual se projetam as<br />

identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático, bem como as<br />

relações entre os sujeitos, a cultura e os espaços de representação cultural.<br />

Sobre esse processo, Stuart Hall (2001) nos adverte que, de forma crescente,<br />

as paisagens políticas do mundo contemporâneo são marcadas por identificações rivais<br />

e conflitantes, e que a tendência em direção a uma maior interdependência global está<br />

deslocando as identidades culturais e produzindo uma fragmentação de códigos, uma<br />

multiplicidade de estilos, com ênfase no efêmero, no flutuante, na diferença e no<br />

pluralismo cultural.<br />

Partindo desses pressupostos, o presente artigo pretende demonstrar como<br />

Gabriel García Márquez trata da constituição das identidades das personagens principais<br />

do conto O rastro do teu sangue na neve (1994), com base nas noções de sujeito,<br />

identidade, espaço e lugar, advindas dos Estudos Culturais (BHABA, 2001; HALL,<br />

2001), revelando como estas identidades estão sendo deslocadas, inclusive<br />

simbolicamente, fenômeno característico das sociedades e culturas contemporâneas.


2 BREVES DIGRESSÕES SOBRE A <strong>IDENTIDADE</strong> NO MUNDO<br />

CONT<strong>EM</strong>PORÂNEO<br />

Nos últimos tempos, muito se tem discutido sobre as grandes mudanças nos<br />

âmbitos social, cultural, epistemológico, entre outros, que tem desestruturado o sujeito<br />

contemporâneo e dado novos contornos à sua identidade. Desta forma, o homem da<br />

sociedade moderna possuía uma identidade bem definida e localizada no mundo social e<br />

cultural. Entretanto, as rupturas da pós-modernidade vêm deslocando e, por vezes,<br />

fragmentando as identidades culturais de classe, sexualidade, etnia, raça e<br />

nacionalidade. Se antes estas identidades eram constituídas sob paradigmas previamente<br />

definidos, aos quais os indivíduos se adequavam socialmente, hoje elas se encontram<br />

com fronteiras mais diluídas, fenômeno este que tem provocado um redimensionamento<br />

das identidades na dita contemporaneidade.<br />

Assim, os sujeitos, neste início de século, buscam, entre infinitas<br />

possibilidades, múltiplas formas de identificação nas sociedades em que vivem.<br />

Portanto, enfatiza-se que nos tempos atuais, o homem é um ser com uma identidade<br />

híbrida, formada e transformada continuamente segundo os sistemas culturais, que<br />

também são híbridos (HALL, 2001).<br />

Isso tem acontecido, principalmente, pelo fato dos sujeitos não se situarem<br />

mais na sociedade como seres plenos, conforme assinalava a concepção dos iluministas,<br />

unificados desde seu nascimento até sua morte; ou como sujeitos sociológicos,<br />

possuidores de uma essência que os identificaria no mundo, mas que poderia ser<br />

modificada quando em contato com o mundo exterior (HALL, 2001). Atualmente, os<br />

homens, imersos na pós-modernidade capitalista, vivem um novo estágio de<br />

identificação, sem endereços fixos, nascidos da diversidade de culturas do mundo<br />

globalizado, tendo sua identidade construída e reconstruída permanentemente ao longo<br />

de sua existência.<br />

Neste sentido, o que caracteriza as sociedades contemporâneas, portanto, é o<br />

declínio das velhas identidades, as quais foram características da estabilização do<br />

mundo social, gerando, assim, o surgimento de novas alternativas de identificação, bem<br />

como o seu contínuo deslocamento, fenômeno este que para muitos autores marca a<br />

chamada contemporaneidade.<br />

Neste atribulado contexto de intensas rupturas e descontinuidades a nível<br />

global, insere-se a produção literária do escritor colombiano Gabriel García Márquez.


Em uma de suas mais emblemáticas obras, intitulada “Doze Contos Peregrinos”, o autor<br />

busca problematizar a realidade latino-americana contemporânea, no intuito de fazer<br />

com que seus leitores reflitam sobre as representações produzidas em torno dos<br />

sentimentos conflitantes assumidos por estrangeiros quando presentes em solo não-<br />

pátrio. Buscando manejar tais sentimentos em sua escritura, García Márquez adverte<br />

ainda no prólogo: “(...) não sei por que, interpretei aquele sonho exemplar como uma<br />

tomada de consciência da minha identidade, e pensei que era um bom ponto de partida<br />

para escrever sobre as coisas estranhas que acontecem aos latino-americanos na<br />

Europa” (MARQUEZ, 1992, p.4).<br />

A literatura, entendida como uma das maiores formas de expressão cultural<br />

das sociedades, busca também referências de lugar, procurando conferir aos sujeitos<br />

uma identidade cultural, de forma a acentuar a relação dos indivíduos com o lugar em<br />

que vivem, situando-os historicamente. Contudo, a produção literária contemporânea,<br />

longe de almejar uma pretensa estabilidade, tem quebrado as tradicionais referências de<br />

lugar, de espaço, de tempo e de identidade. García Márquez, representante desta<br />

linhagem de autores que problematizam a realidade social, nos apresenta uma literatura<br />

singular e ao mesmo tempo intensa, de modo que o leitor possa se identificar e refletir<br />

sobre seu papel enquanto cidadão do mundo, na construção da sociedade e das relações<br />

humanas.<br />

Deve-se destacar, ainda, segundo Abdala Júnior (2004), o fato de que a<br />

ênfase em se discutir a mestiçagem e o hibridismo cultural, característicos da cultura<br />

latino-americana, vem da necessidade de se dar conta do grande processo de<br />

deslocamentos e de justaposições que desnudam as concepções fixas e unitárias de<br />

sujeito, de identidade, e da própria cultura.<br />

A necessidade de uma análise sobre o deslocamento das identidades, como<br />

conseqüência de uma sociedade então globalizada, reforça-se, visto que tal fenômeno,<br />

comum às comunidades contemporâneas, tem demonstrado a fragilidade e a dificuldade<br />

que o homem tem tido na constituição de sua identidade e reconhecimento de sua<br />

subjetividade, de forma que cada vez mais o processo de deslocamento se intensifica.<br />

Nesse contexto, os textos literários contemporâneos fazem o mesmo em<br />

relação às noções de formação do sujeito e constituição de sua identidade. Segundo<br />

Hutcheon (1991, p.15), as narrativas contemporâneas “[...] desafiam o pressuposto<br />

humanista de um eu unificado e uma consciência integrada, por meio do<br />

estabelecimento e, ao mesmo tempo, da subversão da subjetividade coerente [...]”,


estando esta constituição pautada na descentralização e na diferença, o que sugere a<br />

multiplicidade, a heterogeneidade e a pluralidade.<br />

3 A LITERATURA LATINO-AMERICANA CONT<strong>EM</strong>PORÂNEA E O<br />

REALISMO MÁGICO DE <strong>GABRIEL</strong> GARCÍA MARQUEZ<br />

Gabriel García Márquez pertence a uma geração de escritores latino-<br />

americanos surgida na década de 1960, junto com Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar,<br />

Carlos Fuentes, Guillermo Cabrera Infante, entre outros. Estes escritores transformaram<br />

os anos 60 na década que marcou a produção latino-americana. Seus trabalhos ficaram<br />

conhecidos internacionalmente e se tornaram best-sellers na América Latina, Estados<br />

Unidos e Europa. O auge da explosão latino-americana ocorreu em 1967 com a<br />

publicação de Cem Anos de Solidão, de García Márquez.<br />

É difícil traçar um perfil daquela geração de escritores. Eles não faziam<br />

parte de uma escola literária específica, mas compartilhavam uma preocupação com a<br />

linguagem e com a forma, bem como enfatizaram elementos universais da experiência<br />

humana. Também compartilhavam uma visão distinta de mundo e uma crença de que a<br />

literatura tinha um papel social na América Latina. Grande parte desses autores tinha<br />

formação intelectual influenciada pelas vanguardas europeias, pela novela francesa e<br />

pelo modernismo norte-americano.<br />

No entanto, estes intelectuais refinados, que conheciam bem as tendências<br />

literárias estrangeiras, não abraçaram o realismo puro e o naturalismo produzidos no<br />

chamado primeiro mundo. Estes estilos aparentemente não se ajustavam ao contexto<br />

literário latino-americano. Franco (1994) explica que enquanto os escritores europeus<br />

defrontavam-se com uma realidade aparente, sem surpresas, os escritores latino-<br />

americanos viam-se diante de uma realidade extraordinária, singular. “A realidade é<br />

muito complexa e fantástica, a sociedade é muito dispersa para que o estilo de Balzac<br />

tenha sucesso [...]” (FRANCO apud HERSCOVITZ, 2004, p. 176). Assim, a realidade<br />

latino-americana não se enquadra ao modelo europeu baseado no capitalismo racional,<br />

no desenvolvimento progressivo e linear.<br />

Os escritores latino-americanos daquela geração romperam com o realismo<br />

tradicional e abraçaram um mundo no qual a fantasia e a realidade fundiram-se para<br />

formar uma nova esfera chamada realismo mágico. No início dos anos 70, os escritores


latino-americanos discutiam se sua narrativa era realista ou fantástica, como expressa a<br />

seguinte fala de García Márquez de 1972 (apud HERSCOVITZ, 2004, p. 177)<br />

Em “Cem Anos de Solidão” eu sou um escritor realista porque<br />

na América Latina tudo é possível, tudo é real...Estamos<br />

cercados pelo extraordinário, por coisas fantásticas... Temos que<br />

trabalhar a linguagem e a técnica literária para incorporar a<br />

realidade fantástica latino-americana em nossos livros e fazer<br />

com que a literatura transmita o estilo de vida latino-americano<br />

no qual coisas extraordinárias acontecem todo o dia como<br />

coronéis que lutaram 34 guerras e perderam todas...Os escritores<br />

latino-americanos precisam escrever sobre essa realidade ao<br />

invés de buscar explicações racionais que não representam essa<br />

realidade. Temos que assumir essa realidade porque ela tem algo<br />

novo para oferecer à literatura universal.<br />

García Márquez falava do realismo mágico, termo mais identificado com<br />

seu próprio trabalho do que com a obra de outros escritores latino-americanos. O<br />

realismo mágico é uma narrativa que não distingue o fantástico do real, o mito e a<br />

história. É considerado um estilo derivado do movimento surrealista. Quem conhece a<br />

vida na América Latina sabe que o cotidiano surpreende mais do que a ficção. É difícil<br />

ver cotidianamente um rastro de sangue pela neve, percorrendo o caminho de alguém,<br />

como descreveu García Márquez. Quem conhece a América Latina sabe que o realismo<br />

mágico não é mera distorção da realidade nem uma simples incursão abstrata em um<br />

mundo irracional, acabando por tornar-se quase uma escolha natural dos povos latino-<br />

americanos devido a suas origens e influências históricas e culturais.<br />

3.1 O rastro de teu sangue na neve: olhares contemporâneos<br />

O conto “O rastro de teu sangue na neve”, que integra o livro intitulado Doze<br />

Contos Peregrinos, publicado em 1979, emerge como uma das narrativas mais<br />

significativas da compilação de histórias sobre as experiências de latinos na Europa.<br />

Desta forma, García Márquez busca tematizar sobre experiências perpassadas por duras<br />

estratégias de adaptação cultural por parte dos latino-americanos e que deixam vir à<br />

tona um complexo jogo de relações de força, por vezes, bastante desiguais. São disputas<br />

de poder entre pessoas e entre culturas, que tocam na problemática de noções como<br />

“centro” e “periferia”, que, para Abdala Júnior (2004, p.52), indicam<br />

Os nós resultantes dos fluxos planetários que formam um campo<br />

de forças, ocupando um determinado espaço físico, geográfico,


para além do virtual. Um lócus determinado e não apenas<br />

virtual, no qual se situam formas de poder, com sujeitos que<br />

podem ser anônimos, mas são concretos e têm práxis sociais<br />

determinadas. A esses grupos, evidentemente, opõem-se formas<br />

alternativas do poder simbólico, situadas fora e dentro de<br />

territórios determinados, inclusive, hegemônicos.<br />

No referido conto, O rastro de teu sangue na neve, García Márquez localiza a<br />

sua narrativa entre a cultura e o sentimento. A trama gira em torno de duas personagens<br />

centrais: Nena Daconte e Billy Sánchez. Os dois nasceram na mesma cidade do interior<br />

da Colômbia, Cartagena de Índias, porém, Nena fora educada longe dali, na Europa, e<br />

trazia consigo todas as características de uma verdadeira cidadã européia. Mais que isso,<br />

Nena representa mesmo uma cidadã globalizada, que conhece o que de mais valorizado<br />

existe na cultura dita européia, e consegue, ao retornar à sua cidade natal, aproveitar,<br />

mesmo que brevemente, o que a cidade e a cultura local oferecem.<br />

Em contrapartida, Billy Sánchez representa o que de mais local o conto narra em<br />

termos de cultura latina. Billy é retratado como alguém que só consegue seus objetivos,<br />

a princípio, contrariando a ordem estabelecida e os bons costumes locais, por meio da<br />

imposição, força e violência, desfrutando da mais despudorada impunidade. Tanto Nena<br />

quanto Billy pertenciam a grupos abastados da pequena e conservadora cidade do<br />

interior colombiano. Malgrado as semelhanças de origem e as diferenças de educação,<br />

Nena Daconte e Billy Sánchez apaixonam-se à primeira vista e se casam, partindo logo<br />

em seguida da Colômbia rumo à França.<br />

Arguto observador de sua época, a história traz elementos característicos da<br />

contemporaneidade. Mais do que narrar a dramática trajetória de um jovem casal latino-<br />

americano em viagem de lua-de-mel pela Europa, o autor nos oferece uma obra aberta,<br />

disposta a abrigar múltiplas leituras e interpretações, amalgamando, simultaneamente,<br />

cultura, política, nações, sentimentos e existências.<br />

A temática da identidade latino-americana atravessa o conto do princípio ao fim,<br />

por meio do embate entre as identidades latinas e européias em seus diversos contrastes,<br />

matizes e divergências. Somado a isto, García Márquez destaca também o papel<br />

singular dos espaços, desempenhado pelos grandes centros urbanos que atuam de modo<br />

incisivo na reconfiguração das identidades.<br />

A trama se desenrola em Paris, cidade costumeiramente considerada símbolo e<br />

sinônimo de romantismo. Buscando romper com esse imaginário corrente, o escritor<br />

colombiano a descreve como a personificação da solidão e da ausência de laços de


solidariedade. Pelas mãos do autor, a urbe francesa se divorcia do caráter mítico<br />

costumeiramente atribuído a ela, tornando-se um lugar de desencanto para estrangeiros<br />

incautos, representado pela personagem de Billy Sánchez.<br />

No conto, há passagens que demonstram a visão do autor sobre o Outro,<br />

representado aqui pelo europeu. García Márquez tece críticas à cultura francesa,<br />

utilizando o recurso da ironia. Por vezes, refere-se à França de modo sardônico, como a<br />

“cultura civilizada”. Civilização que se mostra incompreensível para Billy Sánchez,<br />

acostumado com a total liberdade e impunidade que gozava em sua terra natal,<br />

Cartagena de Índias, na Colômbia.<br />

Contrariamente, sua parceira, Nena Daconte, parece não sentir nenhum<br />

estranhamento com o tratamento frio dos franceses. Nena, por ter sido educada na<br />

Europa, compactua daqueles códigos culturais necessários para a sobrevivência de um<br />

estrangeiro fora de sua pátria. Sobre isto, a visão do Outro, Edgar e Segdwick (2003, p.<br />

240) argumentam que<br />

[...] O Outro pode ser designado como uma projeção cultural de<br />

conceitos. Essa projeção constrói as identidades de sujeitos<br />

culturais, segundo uma relação de poder em que o Outro é o<br />

elemento subjugado, tornando-se, por conseguinte, uma relação<br />

de poder.<br />

De um lado, apresenta-se a figura radiante de Nena Daconte, imaginada por<br />

García Márquez como um anjo etéreo, figura idealizada, mulher de perfeição. Em outro<br />

oposto, temos o anti-héroi Billy Sanchez, rico bandoleiro que acaba apaixonado por<br />

Nena. No entanto, ela também se apaixona pelo bruto bandoleiro e, mais que isso,<br />

consegue dominar a violenta personalidade dele. Desta forma, a ponte entre os dois se<br />

estabelece a partir do sexo, tornado o código afetivo mais orgânico e genuíno. Eram<br />

nesses termos que o casal conseguia se igualar, ainda que momentaneamente, uma vez<br />

que, mesmo pertencendo à mesma casta social, formavam um par intelectual bastante<br />

desigual. García Márquez descreve uma entrega igual e arrebatadora para ambos, como<br />

ilustra a passagem:<br />

Quando os pais de Nena Daconte regressaram à casa, eles<br />

haviam progredido tanto no amor que o mundo já não era<br />

suficiente para outra coisa, e faziam a qualquer hora e em<br />

qualquer lugar, tratando de inventá-lo outra vez que faziam<br />

(1994, p.230).


De acordo com Albuquerque Jr. (2007), a partir do momento que o autor escreve<br />

um texto, a criação passa a não ser mais somente sua, perdendo, portanto, o seu<br />

monopólio interpretativo. Desta forma, tomamos a liberdade de pensar na personagem<br />

Nena Daconte como a representação de uma América Latina cosmopolita e globalizada,<br />

que conseguiu fugir do estereótipo terceiro-mundista comumente dirigido aos latino-<br />

americanos.<br />

No entanto, seu marido, representava justamente o oposto. Billy Sánchez trazia<br />

consigo as características mais abomináveis em um indivíduo: era preconceituoso,<br />

machista, violento e imaturo, reforçando, portanto, a caricatura do latino ignorante.<br />

Opostos que representam duas históricas facetas da problemática latino-americana,<br />

traduzidas na questão binária entre civilização versus barbárie.<br />

García Márquez contrabalança as características distintas entre os dois,<br />

oferecendo, sutilmente, a Nena a voz de comando na relação. Ela é uma espécie de Exu,<br />

aquela responsável por abrir e fechar caminhos. O sangue de Nena, tornado uma bússola<br />

simbólica, é quem demarca a rota da viagem rumo à França. Sem Nena, Billy ficaria<br />

perdido, porém, não consegue se dar conta que é a esposa que dá segurança e<br />

estabilidade à lua-de-mel e continua a agir com a sua insensibilidade característica, até<br />

mesmo quando o ferimento de Nena parece se agravar.<br />

Se Nena Daconte era a personificação da educação, dos bons modos e da cultura<br />

européia, seu marido exercia um machismo que beirava o insuportável. Falas como<br />

“macho não come doce” (p.234) e “não há humilhação pior do que ser conduzido por<br />

uma mulher” (p.235) nos dão a exata noção da imaturidade irrefletida da personagem,<br />

cujo código de comunicação traduzia-se, frequentemente, entre o silêncio dos<br />

“valentões tímido” (p.223) e a violência gratuita.<br />

A ausência de bons modos de Billy Sánchez e sua incompreensão diante das<br />

regras da cultura francesa acabam por reforçar a imagem da barbárie diante da<br />

civilização. Essas idéias estão expressas nas falas de personagens que advertem Billy<br />

sobre estar “em um país civilizado, cujas normas estritas se fundavam nos critérios<br />

mais antigos e sábios, ao contrário das Américas bárbaras, onde bastava subornar o<br />

porteiro para entrar nos hospitais” (p. 246-247). A própria Nena já havia advertido seu<br />

marido sobre o comportamento francês: “eles eram as pessoas mais grosseiras do<br />

mundo, mas não trocavam porrada nunca” (p.237). O grau da hospitalidade francesa<br />

também é retratado nesta passagem: “mas você pode morrer de sede sem encontrar<br />

ninguém que lhe dê um copo d´água de graça” (p.235).


Além de serem frios, anteriormente há menções no conto que sugerem serem os<br />

franceses um povo de higiene duvidosa, já que, raramente se encontrava sabonete e<br />

papel higiênico nos hotéis da França. Diante de tantas regras diferentes das suas, restava<br />

apenas a Billy, frente à ansiedade de ver a esposa que estava hospitalizada devido à<br />

incurável ferida em seu dedo, submeter-se ao império da razão (p.247) e aguardar o dia<br />

de visitas.<br />

Com efeito, torna-se bastante nítida a crítica do autor aos costumes franceses que<br />

tanto os orgulha como uma de suas principais marcas civilizacionais. Durante todo o<br />

conto, a polidez francesa beira a falta de humanidade. A partir dessa inversão, diante de<br />

todos os revezes que Billy Sánchez sofre em sua jornada de vários dias sem Nena<br />

Daconte, quem de fato é bárbaro? Os franceses, que se negam a ajudar um visitante<br />

incauto e só o fazem mediante o lucro, ou o colombiano, que se desespera e se vê<br />

impedido de visitar a mulher enferma? A questão talvez seja uma das mais<br />

fundamentais a se fazer após a leitura do conto. O que sabemos, de fato, é que o<br />

encontro entre o Velho e o Novo Mundo resultou em uma experiência de imenso<br />

estranhamento e desconfiança recíprocas.<br />

Tanto Billy Sánchez quanto Nena Daconte, descritos como filhos da elite<br />

colombiana, incorporavam o racismo de diversas maneiras. No conto há passagens em<br />

que os negros estão retratados nas falas das personagens, de forma depreciativa, quando,<br />

por exemplo, do tumultuado encontro entre os dois. Há um claro desprezo em relação<br />

aos negros na fala de Nena: “Portanto, pense bem no que você vai fazer, porque comigo<br />

vai ter de se comportar melhor que um negro” (p.228). Já o preconceito racial de Billy é<br />

exposto quando ele afirma que costumava, junto com seu bando, aterrorizar as mães de<br />

santo de Cartagena de Índias e quando se reportava ao medido que cuidou de sua<br />

esposa, tratando-o de forma pejorativa como um “negro careca” (p.240).<br />

Tais passagens ilustram de forma magistral a reprodução do preconceito entre as<br />

elites latino-americanas, que se julgam superiores pela cor e pela classe social,<br />

enxergando a si próprias como herdeiras da cultura do colonizador, tida como legítima,<br />

em oposição à cultura do colonizado, dos índios, negros e mestiços, sinônimo de<br />

barbárie. O curioso é que o autor, no início, chama atenção para a pele de Nena, descrita<br />

como possuindo a cor do melaço (p.223), denotando, assim, a sua mestiçagem. No<br />

entanto, o colombiano do interior, pertencente às elites, aparece assemelhando-se ao<br />

europeu.


Outro fato que merece destaque é a reprodução do preconceito de forma<br />

hierárquica e verticalizada. Billy trata os negros de Cartagena de Índias com desprezo,<br />

por se sentir superior a estes, no entanto, quando chega na França recebe o mesmo<br />

tratamento que costumava dispensar em sua terra natal. Esta questão possibilita a<br />

reflexão acerca das relações multiculturais. Dispensando a análise que privilegia o<br />

combalido discurso da democracia racial, Vianna Neto (2005, p.292) argumenta que o<br />

multiculturalismo chama a si inúmeros questionamentos e problemas de ordem<br />

identitária e territorial, que<br />

[…] Submetendo à crítica conceitos unitários e monolíticos,<br />

como os de origem, pureza, identidade e autenticidade,<br />

reinscrevem em uma visão plural da história uma multiplicidade<br />

de fragmentos culturais em trânsito sob uma ótica<br />

descentralizadora e policêntrica, produtora de conflitos e<br />

mutações.<br />

Retornando à descrição das personagens, Nena é caracterizada como um ser de<br />

perfeição, de beleza e inteligência. Todos os atributos lhe são dados, o que empresta<br />

certa monotonia e previsibilidade ao conto. No entanto, Billy Sanchez, com toda a sua<br />

gama de imperfeições e defeitos de caráter, deixa o conto mais humano e denso,<br />

sobretudo a partir da reviravolta de sua personagem, quando esta se encontra solitária<br />

em Paris. Há muito que se explorar em Billy Sánchez. O exílio forçado em uma cidade<br />

que praticamente ignorava sua existência, o fez nascer, finalmente, para a vida adulta.<br />

Sozinho em um quarto de hotel, vagando por Paris ou desprezado por sua própria<br />

embaixada, que anteriormente o recebera tão bem, o bandoleiro confirma a máxima<br />

existencial da qual o ser humano amadurece diante de circunstâncias difíceis que lhe são<br />

postas. Quem de fato o “domestica” não é a sua esposa, Nena Daconte. É a França com<br />

toda a sua frieza e impessoalidade.<br />

O sofrimento e os maus-tratos o obrigaram a enxergar além das suas<br />

necessidades e o fizeram entender que suas necessidades não são prioridade para<br />

ninguém. Em Paris, não havia o pai com suas culpas disposto a lhe dar conforto e<br />

presentes caros. Não havia sequer um canal comunicativo. Para não morrer de fome,<br />

Billy recorreu aos gestos apelando para uma linguagem universal, do modo que<br />

finalmente pudesse conseguir alguma coisa para comer.<br />

Não conseguia, portanto, compreender “um mundo fundado no talento da<br />

mesquinharia” (p.241). Os dias que passa em um hotel barato de Paris são vividos entre


a agonia e a longa espera pelo dia de visitar Nena Daconte. Toda a trajetória de Billy<br />

sem a esposa nos remete a um exílio, cujo cárcere é a sufocante e desumana a cidade de<br />

Paris com suas regras incompreensíveis por todos os lugares.<br />

A superioridade de Nena é confirmada até mesmo na hora de sua morte. É ela<br />

que pede para localizarem o marido, embora o esforço em vão de encontrarem Billy,<br />

que estava a poucos metros do hospital que a mulher convalescia. Até o último<br />

momento de sua vida, Nena Daconte cuidou de seu marido, exercendo o controle da<br />

relação, o que desqualificava de todo o machismo e o domínio que seu esposo julgava<br />

exercer. Percebe-se, portanto, que a narrativa também traz a discussão sobre gênero,<br />

com a valorização do feminino em detrimento da debilidade masculina, algo<br />

extremamente caro no interior da sexista cultura latino-americana.<br />

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Mais do que ver uma assimilação deslumbrada do modus vivendi europeu, o<br />

conto denuncia a incompreensão e a intolerância entre povos de culturas distintas. A<br />

França é retratada como uma nação egoísta, que só reconhece como válido os seus<br />

costumes e despreza aqueles que vivem na periferia do sistema. Nesse ponto,<br />

percebemos a existência da América Latina a partir do da visão de barbárie que o<br />

europeu faz a respeito deste território. Esse dado é extremamente importante para se<br />

pensar a identidade, uma vez que, conforme assinala Figueiredo e Noronha (2005,<br />

p.191) “[...] a identidade não é elaborada isoladamente”.<br />

Se Nena Daconte transitava com tanta facilidade pela Europa, é porque ela<br />

passara a vida estudando em colégios internos europeus. Nena era aceita não por ser<br />

colombiana, mas por conhecer os códigos culturais do Velho Continente. Com efeito, o<br />

que se reconhecia e se destacava em Nena não era a sua origem latina, mas sua alta<br />

capacidade de assimilar os valores estrangeiros.<br />

Nesse ponto, talvez seu esposo tenha agido, embora sem muita consciência<br />

disto, de modo mais autêntico, malgrado seus péssimos modos e vícios. Billy Sanchez<br />

resistiu e enfrentou a cultura francesa o máximo que pôde, até ser vencido por um país<br />

que o fez sentir um bárbaro ao tratá-lo como uma escória social, mesmo que seu<br />

comportamento com os franceses estivesse longe de ser exemplar.


À parte do desenvolvimento do jogo amoroso entre as personagens, que rende<br />

belas páginas acerca do conflito relacional entre homens e mulheres, a característica<br />

principal do conto O rastro de teu sangue na neve é o desencontro entre culturas e<br />

pessoas.<br />

A produção literária sempre se relacionou com questões de identidade, e as<br />

obras literárias esboçam respostas, implícita ou explicitamente, para tais interrogações,<br />

bem como oferecem uma gama de modelos de como aquela se constrói, desempenhando<br />

um papel significativo na construção das identidades dos leitores, na medida em que<br />

permitem a identificação com as personagens, analisando as situações do seu ponto de<br />

vista particular.<br />

Com efeito, as narrativas contemporâneas têm apontado reflexões sobre<br />

questões sobre o mundo de hoje, sobre a vida do homem e suas relações sociais,<br />

culturais, pessoais. Em O rastro do teu sangue na neve, constata-se a problematização<br />

sobre a identidade, bem como o contexto vivido pelo homem contemporâneo e os<br />

dilemas presentes na constituição de sua subjetividade e de sua inserção nos diferentes<br />

espaços.<br />

O conto converte-se em elemento significativo e reflexivo da relação<br />

construída entre autor e leitor. Gárcia Márquez apresenta metáforas e representações<br />

fluidas, oferecendo distintas possibilidades de inferência, sobretudo com relação às<br />

personagens centrais do conto e a constituição de suas identidades em torno dos papéis<br />

sociais assumidos e sua relação com os espaços ficcionais.<br />

Nesse conto particularmente, Gárcia Márquez retoma uma antiga interrogação<br />

que aflige o ser humano desde a Antiguidade. Ontem, como hoje, as relações humanas<br />

são conflitantes, sobretudo a comunicação entre o eu e o outro. Ainda que se<br />

desenvolvam as mais diversas tecnologias de comunicação, mas a outra forma de<br />

interação, a humana propriamente dita, continua a ser confusa.<br />

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1992.<br />

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Janeiro: Editora UFJF/EdUFF, 2005.

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