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New Title - Fundação Luso-Americana

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<strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />

ConseLho DireCtivo:<br />

Teodora Cardoso (Presidente)<br />

Embaixador dos Estados Unidos da América<br />

Jorge Figueiredo Dias<br />

Jorge Torgal<br />

Luís Braga da Cruz<br />

Luís Valente de Oliveira<br />

Maria Gabriela Canavilhas<br />

Michael de Mello<br />

Vasco Graça Moura<br />

ConseLho exeCutivo:<br />

Rui Chancerelle de Machete (Presidente)<br />

Charles Allen Buchanan, Jr<br />

Mário Mesquita<br />

seCretário-GerAL: Fernando Durão<br />

DireCtores: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo<br />

e Melo, Miguel Vaz<br />

subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra<br />

responsáveL peLos serviços FinAnCeiros:<br />

Maria Fernanda David<br />

responsáveL peLos serviços ADministrAtivos:<br />

Luiza Gomes<br />

Assessores: João Silvério, Paula Vicente<br />

Rua do Sacramento à Lapa, 1<br />

1 49-090 Lisboa | Portugal<br />

Tel.: (+351) 1 393 5800 • Fax: (+351) 1 396 3358<br />

Email: fladport@flad.pt • www.flad.pt<br />

paralelo<br />

DireCtor: Rui Chancerelle de Machete<br />

eDitorA: Sara Pina<br />

CoorDenADorA: Paula Vicente<br />

seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes<br />

e Sofia Roquete<br />

CoLAborAm neste número: Alexandre Soares,<br />

Ana Brasil, Ana Catarina Santos, Ana Luísa<br />

Rodrigues, António Vicente, Bruno Marchand,<br />

Carla Martins, Carlos Moura, Catarina Gomes,<br />

Catarina Neves, Claúdia Gameiro, Charles<br />

Buchanan, Clara Pinto Caldeira, Cristina Lai<br />

Men, Fabiana Coelho, Joana Fernandes, Joana<br />

Godinho, João Carita, Filipe Santos Costa, Filipe<br />

Vieira, Filipa Simas, Francisco Belard, James<br />

R. Dickenson, James Roosevelt, Manuel Jacinto<br />

Nunes, Marco Leitão Silva, Margarida Pimenta,<br />

Maria Inácia Rezola, Maria João Guimarães,<br />

Mário Bettencourt Resendes, Mário Mesquita,<br />

Mário Soares, Marta Amorim, Martha Mendes,<br />

Michael Werz, Nuno Costa Santos, Patrícia<br />

Fonseca, Rui Catalão, Rui Chancerelle de<br />

Machete, Rui Vallera, Sara Pina, Sónia Graça,<br />

Susana Neves, Susana Salgado, Susana Paula<br />

e Vanda Mendonça<br />

DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B ]<br />

revisão: António Martins<br />

impressão: www.textype.pt<br />

tirAGem: 3000 exemplares<br />

niF: 501 5 6 307<br />

nº De reGisto nA erC: 1 5 563<br />

perioDiCiDADe: semestral<br />

paralelo@flad.pt<br />

Depósito legal: 69 114/07<br />

ISSN 1646-883X<br />

© Copyright: <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />

para o Desenvolvimento<br />

Todos os direitos reservados<br />

“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque]<br />

que me leva a pensar que nós estamos<br />

na mesma latitude de Lisboa,<br />

o que tenho dificuldade em imaginar.”<br />

Albert Camus, Cahier V (1946)<br />

Caro leitor<br />

“<br />

Oúnico limite para a nossa realização no futuro são as<br />

dúvidas que temos hoje. Sigamos em frente com fé<br />

diligente e forte.” Esta podia ser uma frase de Obama<br />

levando muitos a ultrapassarem medos e preconceitos e “emergir de<br />

uma relação abusiva com os líderes do nosso país no século XXI”, como<br />

escrevia o <strong>New</strong> York Times. Mas a declaração é de Roosevelt, feita há mais de<br />

sessenta anos.<br />

Em comum, os dois presidentes conseguiram reavivar a crença na<br />

mudança – mobilizaram os americanos. Os milhares de pessoas que<br />

afluíram ao Mall e pacientemente esperaram nas estações de metro,<br />

onde parecia não caber mais uma agulha, para assistir ao juramento de<br />

Obama são disso um bom exemplo.<br />

Roosevelt foi vivamente lembrado com a recente eleição, mas já antes<br />

a FLAD concretizava o Fórum, a ele dedicado, que decorreu em São<br />

Miguel, no Verão passado, para analisar e debater as relações transatlânticas,<br />

celebrando a visita de FDR aos Açores que nunca esqueceu.<br />

Dado o interesse suscitado e a vontade de fazer uma revista melhor e<br />

dirigida a mais pessoas, a Paralelo passa a ser vendida ao grande público.<br />

Está, portanto, nas bancas este número especialmente dedicado aos dois<br />

presidentes: Obama e Roosevelt. sArA pinA<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


índice<br />

05 | Editorial de<br />

Rui Chancerelle de Machete<br />

Reconstruir a América<br />

08 | O que vai mudar?<br />

por Filipe Vieira<br />

11 | Testemunho<br />

por Mário Soares<br />

12 | O que esperar?<br />

por Lídia Jorge<br />

13 | Desafios à nova<br />

Presidência<br />

por João de Vallera<br />

26 | Revista de Imprensa<br />

29 | Mensagem<br />

de James Roosevelt<br />

30 | De olhos<br />

postos no mundo<br />

por Sara Pina<br />

[portuGAL/euA]<br />

59 | Liderança<br />

no século XXI<br />

Curso da Kennedy School<br />

nos Açores<br />

69 | “Asas sobre a<br />

América”: Só a literatura<br />

vence o tempo<br />

14 | Prioridades<br />

energéticas e ambientais<br />

por Charles Buchanan<br />

15 | A mudança<br />

que o mundo precisa<br />

por Manuel Jacinto Nunes<br />

16 | A realidade<br />

do sonho<br />

por Joana Godinho<br />

<br />

<br />

CAPA de<br />

André Carrilho<br />

34 | Actualidade<br />

do pensamento de Roosevelt<br />

Entrevista com<br />

Alan Henrikson<br />

40 | A América de volta<br />

às Nações Unidas<br />

Entrevista com<br />

Stephen Schlesinger<br />

62 | CARTA BRANCA<br />

Um jantar no Havai<br />

de Mário Bettencourt Resendes<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 3<br />

<br />

<br />

<br />

22 | BLOCO DE NOTAS<br />

O novo ciclo americano<br />

ou a analogia Roosevelt<br />

de Mário Mesquita<br />

“A única coisa de que devemos<br />

ter medo é o próprio medo”<br />

[portuGAL/euA]<br />

46 | Carlucci vs. Kissinger<br />

49 | Os Capelinhos<br />

e a emigração açoriana<br />

52 | Perfil de Luís<br />

dos Santos Ferro


Estatuto Editorial<br />

4<br />

A Paralelo, revista da <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> (FLAD), visa contribuir<br />

para o desenvolvimento das relações entre Portugal e os<br />

Estados Unidos, nomeadamente, nos domínios económico, científico<br />

e cultural.<br />

A Paralelo adopta este título a fim de sublinhar que Portugal e os Estados<br />

Unidos estão no mesmo paralelo geográfico, partilham valores, foram<br />

e são, muitas vezes, aliados na defesa de interesses comuns.<br />

A Paralelo define-se como publicação institucional o mais próxima<br />

possível do jornalismo, no que se refere ao rigor, à exactidão e à criatividade<br />

editorial.<br />

A Paralelo rege-se, no exercício da sua actividade informativa, pelas<br />

referências fundamentais da deontologia do jornalismo.<br />

A Paralelo, no âmbito da sua linha editorial, assume o compro-misso<br />

de assegurar a defesa dos valores da liberdade de expressão e do<br />

pluralismo.<br />

A Paralelo dedica especial atenção às questões relacionadas com a<br />

comunidade portuguesa residente nos Estados Unidos e à defesa<br />

dos seus legítimos interesses.<br />

A Paralelo assume nos editoriais a sua linha de orientação, considerando<br />

que as opiniões expressas nos artigos dos seus colaboradores<br />

apenas vinculam os respectivos autores.<br />

A Paralelo publicará, em simultâneo, duas edições, com conteúdo<br />

idêntico, em português e inglês.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


ui ChAnCereLLe De mAChete<br />

‘ A actual situação oferece uma ocasião<br />

única para revigorar a comunidade<br />

cultural e económica entre<br />

um e outro lado do Atlântico.<br />

’<br />

eDitoriAL<br />

Reconstruir a América<br />

A eleição do Presidente Barack Obama é<br />

uma grande oportunidade para a revisão<br />

das políticas interna e externa dos EUA.<br />

Muito significativamente, a conhecida<br />

revista The American Interest titulou o seu último<br />

número como “Rebuilding America”.<br />

As expectativas de mudança são enormes,<br />

porventura mesmo excessivamente altas.<br />

O novo Presidente caracteriza-se por ser um<br />

homem de convicções fortes que pretende<br />

traduzir na prática a política do Executivo.<br />

Espera-se que<br />

tenha a coragem<br />

necessária para<br />

tomar as decisões<br />

adequadas<br />

para a resolução<br />

dos problemas;<br />

que não fraqueje<br />

e não ceda à popularidade fácil de seguir<br />

padrões políticos maioritários pelo simples<br />

facto de o serem.<br />

Os compromissos que tenha de assumir<br />

deverão assim ser sobre questões concretas<br />

e não sobre princípios.<br />

A primeira prioridade do novo Presidente,<br />

vencer a profunda crise financeira e económica,<br />

reveste simultaneamente carácter<br />

doméstico e dimensão mundial. Combater<br />

o desemprego e retomar o crescimento<br />

implicam relançar a procura e restituir aos<br />

bancos a capacidade de veicularem os<br />

necessários meios financeiros aos diversos<br />

actores do mercado. Reganhar a confiança<br />

dos agentes económicos exige o saneamento<br />

das instituições financeiras e este, provavelmente,<br />

só poderá conseguir-se se o<br />

Estado se tornar, ainda que temporariamente,<br />

titular de grande parte do seu capital<br />

social, por muito que pese à ideologia<br />

dominante na América. O paralelismo com<br />

certas medidas socializantes de <strong>New</strong> Deal<br />

reforça certa comunidade do destino entre<br />

o programa do actual Presidente e o <strong>New</strong><br />

Deal de Roosevelt.<br />

No sistema internacional, o novo Presidente<br />

defenderá seguramente, acima de tudo, os<br />

interesses do seu país. É o seu dever. Mas,<br />

nas grandes questões, as soluções a adoptar<br />

não serão tão conflituais com as posições da<br />

América como os neoconservadores acreditavam.<br />

As políticas energéticas convenientes,<br />

o controlo do aquecimento global, a promoção<br />

do desenvolvimento sustentável, um<br />

comércio internacional com trocas mais justas,<br />

todos requerem solidariedades acima do<br />

egoísmo míope de curto prazo da anterior<br />

Administração.<br />

Mas, mesmo no aspecto essencial da segurança,<br />

a luta contra o terrorismo fundamentalista<br />

islâmico e a questão conexa da criação<br />

de um modus vivendi entre Israel e os palestinianos,<br />

a estabilização do Sudoeste Asiático,<br />

com soluções funcionais para o Iraque,<br />

o Afeganistão e o Paquistão, a saída para o<br />

impasse nuclear iraniano, são problemas que<br />

têm a ganhar com a predisposição para o<br />

diálogo que os EUA agora demonstram.<br />

O Ocidente, como aliado partilhando valores<br />

e interesses comuns, proporciona um<br />

apoio estável, se se estabelecer um clima<br />

de confiança entre parceiros que mutuamente<br />

se respeitem. Num mundo perigoso,<br />

os EUA e a União Europeia muito beneficiarão<br />

se desenvolverem os meios de cooperarem<br />

nas tarefas e processos necessários<br />

para levar de vencida os desafios comuns.<br />

Ao contrário do cepticismo dos que apregoam<br />

o declínio da unidade do Ocidente,<br />

a actual situação oferece uma ocasião única<br />

para revigorar a comunidade cultural e económica<br />

entre um e outro lado do Atlântico.<br />

Assim sejamos capazes de recriar os instrumentos<br />

capazes de a concretizar!<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 5


6<br />

A festa da libertação<br />

O nosso país ainda continuava na mesma valeta em que se encontrava<br />

no dia anterior, mas a atmosfera era estonteante. Sentíamo-<br />

-nos muito bem, não só porque tínhamos ultrapassado uma<br />

barreira racial tão velha como a própria república, mas também<br />

porque a alvorada nos trazia a percepção de que estávamos finalmente<br />

a emergir de uma relação abusiva com os líderes do nosso<br />

país do século XXI. As cenas festivas de libertação que Dick<br />

Cheney tinha, em tempos, imaginado para o Iraque, estavam<br />

finalmente a acontecer – em cidades por toda a América.<br />

[ Frank Rich ]<br />

Esperança concretizada<br />

Alguns príncipes nascem em palácios. Outros nascem<br />

em manjedouras. Outros, ainda, nascem na imaginação,<br />

a partir de restos de história e de esperança.<br />

Barack Obama nunca fala da forma como as pessoas<br />

o vêem. Pelo contrário, sempre que pode, afirma:<br />

“Não sou eu que estou a fazer História. São vocês.”<br />

[...] Ele gosta de dizer: “Nós somos aqueles de quem<br />

revistA De imprensA<br />

por Filipe vieira *<br />

temos estado à espera”, mas as pessoas estavam à sua espera, à<br />

espera de alguém que terminasse aquilo que foi começado por<br />

um Rei [“Rei”/”King”, alusão a Martin Luther King].”<br />

[ Nancy Gibbs ]<br />

Obama e Carter<br />

O candidato cujo percurso até à presidência mais se assemelhou<br />

ao de Obama foi Jimmy Carter. Também ele usou um apelo muito<br />

pessoal e inspirador para compensar um currículo pouco consistente.<br />

Após ter cortejado o público com uma retórica lisonjeira,<br />

prometendo “um governo tão bom como o próprio povo<br />

americano”, Carter falhou redondamente como presidente, em<br />

Nova era I<br />

Estas eleições foram tão extraordinárias em tantos aspectos que<br />

serão necessários muitos anos para que o seu verdadeiro significado<br />

seja completamente explorado e muitos mais para que seja<br />

entendido. No entanto, já se sente no ar o início de uma nova era.<br />

Tal como em 1932 e 1980, a crise económica abriu o caminho<br />

para a rejeição do tipo de governação que tem predominado e<br />

para o forjar de uma nova abordagem. O público virou-se contra<br />

o conservadorismo nacional e o neoconservadorismo internacional<br />

de uma forma enérgica e massiva. A crença de que os mercados<br />

livres e os impostos mínimos sobre os mais ricos poderiam<br />

resolver todos os problemas internos e que a arrogância unilateral<br />

e as armas americanas poderiam resolver todos os problemas<br />

externos estará morta durante uma geração ou mais. A estratégia<br />

eleitoral de ressentimento cultural e falso populismo sofreu um<br />

duro golpe. [ Hendrik Hertzberg ]<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


parte porque era uma espécie de projecto político solitário. [...]<br />

Os americanos sensatos esperam que o Presidente eleito Obama<br />

tenha um destino melhor. Deveriam também reflectir sobre as<br />

implicações do processo de selecção que, em breve, recomeçará<br />

novamente.” [ George F. Will ]<br />

O voto dos yuppies<br />

Tenho escrito acerca do que chamei Bushenfreude, um fenómeno de<br />

yuppies enfurecidos que beneficiaram muito com os cortes nos impostos<br />

implementados pelo Presidente Bush e que financiaram campanhas<br />

democratas populistas e encolerizadas. Tenho teorizado que<br />

as pessoas que trabalham no sector dos serviços financeiros e noutros<br />

a ele ligados, estão de tal maneira indignadas e alienadas pela<br />

incompetência, pelo pesado conservadorismo social e pelos repetidos<br />

insultos à inteligência da nação por parte do Partido Republicano<br />

da era Bush que estão a votar com o coração e a cabeça em vez de<br />

votar com a carteira. [ Daniel Gross ]<br />

Nova era II<br />

E eis aqui Barack Obama, filho de um queniano negro que<br />

veio para os EUA com uma bolsa de estudo e da sua mulher<br />

branca americana. Não há mais nenhuma nação no mundo em<br />

que um eleitorado, com uma maioria de 75 por cento, tenha<br />

eleito, como seu líder máximo, um homem que se identifica<br />

revistA De imprensA<br />

como fazendo parte de uma das minorias historicamente oprimidas<br />

dessa mesma nação.<br />

O foco da política negra afasta-se agora de uma liderança baseada<br />

na expressão de sentimentos de injustiça e de uma política de<br />

identidade baseada na vitimização e rancor. No seu lugar, temos<br />

agora uma era em que se parte do princípio que pessoas fortes e<br />

talentosas de qualquer origem encontrarão o caminho para chegar<br />

ao seu justo lugar de poder na cena política.<br />

[ Juan Williams ]<br />

Interesse mundial<br />

Não há memória de outras eleições que tenham feito vir à tona<br />

um interesse tão grande de todo o mundo. E o mundo estava<br />

claramente a torcer pelo senador Barack Obama. Agora esperam-<br />

-se acções eficazes e<br />

‘ não há memória de outras<br />

eleições que tenham feito<br />

vir à tona um interesse<br />

tão grande de todo<br />

o mundo.<br />

’<br />

não arranjos provisórios.<br />

[…] A única<br />

forma de governar<br />

nesta era desgovernada<br />

de democracias<br />

disfuncionais é<br />

pensando o impossível<br />

e agindo de<br />

forma imprevisível, deixando sempre para trás o adversário, ofegante,<br />

a tentar alcançar-nos. [ Arnaud de Borchgrave ]<br />

Inclinação à esquerda<br />

O desejo que o público manifesta de mais acção governamental<br />

para sarar a economia e garantir a cobertura dos seguros de saúde,<br />

bem como o seu novo cepticismo relativamente à desregulamentação<br />

do mercado, sugerem que somos um país moderado que<br />

agora se inclina ligeira e cautelosamente para a esquerda.<br />

Mas essa cautela significa que os progressistas deveriam evitar dar<br />

opiniões baseadas no pressuposto de que já foi consumada uma<br />

revolução ideológica. Não deveriam imitar o triunfalismo de<br />

Karl Rove e dos seus seguidores, que interpretaram a vitória de<br />

50,8 por cento do Presidente Bush em 2004 como o prelúdio<br />

de uma maioria republicana duradoura. [ E. J. Dionne Jr ]<br />

* Jornalista em Washington dC<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 7


Barack Obama prometeu mudar a América<br />

e essa mudança aí está. O próprio facto<br />

de ter sido o primeiro afro-americano a<br />

ser eleito para a presidência da mais poderosa<br />

potência mundial constitui, por si só,<br />

uma revolução. Aí reside a maior e a mais<br />

surpreendente das mudanças saídas desta<br />

saga eleitoral, que se arrastou por mais de<br />

vinte e dois meses.<br />

A eleição de John F. Kennedy, em 1960,<br />

ocorre como a mais provável das comparações<br />

com o feito eleitoral de Obama,<br />

ainda que a marginalização dos negros na<br />

sociedade americana apenas de forma mitigada<br />

se possa equiparar às dificuldades<br />

inicialmente sentidas, em termos de aceitação,<br />

pelas comunidades irlandesa, italiana<br />

ou portuguesa à sua chegada ao Novo<br />

Continente. Ainda assim, John Kennedy foi<br />

o primeiro católico a habitar a Casa Branca<br />

e, até hoje, foi o último. John Kerry, também<br />

católico, concorreu há quatro anos<br />

atrás e, já então, o factor religião deixou<br />

de existir como argumento catalisador.<br />

O historiador David Kennedy, da<br />

Universidade de Stanford, observa, a propósito,<br />

que Barack Obama poderá ser<br />

também o primeiro e o último Presidente<br />

afro-americano dos Estados Unidos, sugerindo:<br />

“Talvez possamos agora esperar<br />

uma época em que a raça seja, como a<br />

religião, um factor insignificante.” Clement<br />

Price, da Universidade de Rutgers, recorda<br />

que Obama “apresentou ao país, de<br />

forma magistral”, a sua mãe branca e os<br />

seus avós do Kansas, “para o ajudar a conquistar<br />

os corações e as mentes dos americanos<br />

brancos”.<br />

A mudança da América para uma era<br />

puramente não racial é uma das potencialidades<br />

inerentes à vitória eleitoral de<br />

Obama. Poucas décadas depois de ter sido<br />

dado aos negros americanos o direito ao<br />

voto, o fenómeno da descompressão da<br />

8<br />

o que vai mudar?<br />

A mudança da América para uma era puramente não racial<br />

é uma das potencialidades inerentes à vitória eleitoral de Obama.<br />

POR FiLipe vieirA*<br />

tensão racial começa a ser uma realidade<br />

social desejável e que está patente no eleitorado<br />

que votou Obama. Os resultados<br />

destas presidenciais deitam por terra muitos<br />

dos mitos raciais alimentados durante<br />

a campanha eleitoral, o primeiro dos<br />

quais era o de que o eleitorado masculino<br />

de raça branca seria o mais reticente<br />

a aceitar a entrada de um negro para a<br />

Casa Branca. Afinal, Obama obteve daquele<br />

sector a mais elevada percentagem do<br />

que qualquer outro candidato democrata,<br />

desde a eleição do Presidente Jimmy<br />

Carter, ainda que John McCain tenha tido<br />

uma apreciável vantagem: 57 contra os<br />

41 por cento de Obama. O eleitorado<br />

latino-americano, que Hillary Clinton<br />

reivindicava como feudo próprio, durante<br />

as primárias, votou em massa no candidato<br />

democrata. O analista de sondagens<br />

de Hillary, Sergio Bendixen, disse para<br />

quem o quis ouvir: “O votante hispânico<br />

– e eu quero dizer isto com muito<br />

cuidado – não tem demonstrado muita<br />

disposição ou afinidade em apoiar candidatos<br />

negros.” Na realidade, Obama<br />

atingiu os 64 por cento do voto latinoamericano,<br />

ultrapassando os 55 por cento<br />

obtidos por John Kerry em 2004. McCain,<br />

dada a sua impopular política relativamente<br />

à emigração, não foi além dos 33<br />

por cento, contra os 43 obtidos por<br />

George W. Bush, há quatro anos, aquando<br />

da sua reeleição. Obama arrebatou<br />

também o voto dos católicos com 54 por<br />

cento (45 para McCain) e dos judeus<br />

com 71 por cento (21 para McCain) e<br />

45 por cento dos votos de todas as confissões<br />

protestantes, contra 54 para o<br />

candidato republicano.<br />

“barack obama poderá ser o primeiro e o último presidente afro-americano dos euA” (David Kennedy).<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

ANNE RyAN/POOL/LUSA


o Fim De umA presiDênCiA<br />

De penDor imperiAL<br />

A vertente racial da vitória de Obama é<br />

apenas uma das mudanças saídas destas<br />

eleições. O país espera, certamente, mais.<br />

Objectivamente, a chegada de Barack<br />

Hussein Obama à Casa Branca põe termo<br />

a oito anos de uma Presidência republicana<br />

marcadamente ideológica e de pendor<br />

imperial, com poderes únicos na<br />

história da república americana.<br />

A herança de George W. Bush, são duas<br />

guerras por terminar – no Iraque e no<br />

Afeganistão – e uma avassaladora crise<br />

financeira global, cujo fim se não vislumbra<br />

para breve. A política de continuidade<br />

segundo o estratega democrata Joe trippi, “obama transformou a arte de comunicação em política”.<br />

‘ não será fácil transpor para a dimensão<br />

da Casa branca o molde de gestão<br />

aplicado à sua campanha eleitoral.<br />

’<br />

que o candidato republicano John McCain<br />

esboçou sem grande convicção e com<br />

algumas apressadas mudanças de percurso,<br />

acabou por colocar nas mãos de<br />

Obama o futuro do país.<br />

O eleitorado espera, agora, do seu 44.º<br />

Presidente, mais do que a mudança prometida.<br />

Parece querer, afinal, uma nova<br />

América! E pode muito bem acontecer que<br />

Barack Hussein Obama seja o homem certo,<br />

no momento certo para responder a esse<br />

desafio. Não será<br />

fácil transpor para a<br />

dimensão da Casa<br />

Branca o molde de<br />

gestão aplicado à sua<br />

campanha eleitoral.<br />

A sua campanha foi,<br />

comprovadamente,<br />

uma das mais criativas<br />

e, ainda assim, das mais metódicas<br />

e sistemáticas de que há memória na<br />

história do país. Obama demonstrou ter<br />

um perfeito controlo das situações, navegando<br />

com extrema habilidade e ele-<br />

gância, muitas das dificuldades que lhe<br />

foram sendo colocadas à frente. Desde<br />

as alusões de carácter racista avançadas<br />

pela campanha de Hillary Clinton,<br />

durante as primárias, passando pela<br />

erupção inusitada do reverendo Wright,<br />

até às acusações insidiosas de ligações<br />

ao terrorismo largadas pela governadora<br />

do Alasca em comícios pelas terras<br />

do interior, a tudo os porta-vozes do<br />

candidato democrata responderam com<br />

uma grande contenção.<br />

“vAGA De FunDo” eLeCtróniCA<br />

A utilização dos meios electrónicos na campanha<br />

eleitoral pelas hostes de Barack<br />

Obama irá ser aplicada no centro do poder,<br />

em Washington. O estratega democrata Joe<br />

Trippi, em declarações ao Washington Post,<br />

comentava, a propósito: “Assim como John<br />

F. Kennedy usou de forma magistral a televisão<br />

como medium para levar a sua mensagem<br />

ao público”, Obama transformou a<br />

arte de comunicação em política ao ter,<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 9<br />

JUDy DEHAAS/EPA/LUSA


‘ obama já bateu com<br />

a porta na cara dos lóbis<br />

que queriam financiá-lo.<br />

’<br />

pela primeira vez, integrado a internet<br />

numa campanha política.<br />

E, agora, na Casa Branca, o novo Presi-<br />

dente eleito tem em marcha um projecto<br />

para expandir o sistema de comunicações.<br />

Os conselheiros políticos querem manter<br />

viva a “vaga de fundo” que foi a coluna<br />

dorsal do apoio, durante o processo eleitoral.<br />

O que lhe irá permitir contactar,<br />

directa e instantaneamente, através da internet,<br />

com uma rede de doadores e de militantes<br />

que serviram como “soldados”<br />

durante a campanha eleitoral: que ajudaram<br />

a organizar comícios; que foram entregar<br />

folhetos de porta a porta; que registaram<br />

milhões de votantes; que, no dia das eleições,<br />

telefonaram aos retardatários e que<br />

os levaram até às assembleias de voto, se<br />

necessário. Ao que se julga saber, Barack<br />

Obama tem disponível uma base de dados<br />

10<br />

que contém qualquer coisa como dez<br />

milhões de endereços de correios electrónicos<br />

e de telemóveis prontos a receber e<br />

a retransmitir sms à velocidade de um fogo<br />

posto numa floresta de cedros.<br />

A poLítiCA morAL De obAmA<br />

À semelhança de Jimmy Carter, este<br />

Presidente promete uma política moral.<br />

Mas, ao contrário de Carter, Obama é um<br />

político pragmático. Já bateu com a porta<br />

na cara aos lóbis que queriam financiar a<br />

sua equipa de transição e promete mandar<br />

fechar a prisão militar de Guantánamo.<br />

O fim da guerra no Iraque é outra promessa<br />

do novo Presidente e tudo parece<br />

indicar que o calendário da retirada das<br />

forças americanas daquela frente parece<br />

coincidir com a vontade política do<br />

Governo iraquiano e com a opinião das<br />

chefias do Pentágono. Já no que toca ao<br />

teatro de guerra no Afeganistão o cenário<br />

é diferente. E diferentes são também as<br />

opções de Barack Obama que propõe um<br />

reforço militar rápido, a par da retirada<br />

do Iraque, para dar caça aos taliban e<br />

estabilizar o poder do Presidente Hamid<br />

Karzai.<br />

Para proteger a sua retaguarda política<br />

em Washington e para evitar precalços e<br />

outros erros de percurso, o 44.º Presidente<br />

dos Estados Unidos nomeou Rahm<br />

Emanuel para seu chefe de gabinete.<br />

Emanuel é um homem do partido, brilhante,<br />

metódico e obstinado. Foi conselheiro<br />

político de Bill Clinton na Casa<br />

Branca. Por isso conhece os cantos à casa.<br />

Esteve em Wall Street, antes de ter concorrido<br />

e de ter sido eleito para o Congresso<br />

pelo estado do Illinois. Aliás, foi<br />

ele o arquitecto da vitória eleitoral dos<br />

democratas em 2006, na sua qualidade de<br />

presidente de campanha. Paul Begala,<br />

outro ex-conselheiro de Clinton, definiu<br />

Emanuel como “qualquer coisa entre uma<br />

dor de dentes e um ataque de hemorróidas”<br />

para sublinhar o estilo abrasivo e<br />

implacável do homem a quem cabem<br />

agora, na prática, na Casa Branca, as funções<br />

equivalentes às de um primeiro-<br />

-ministro num governo europeu.<br />

* Jornalista em Washington dC<br />

obama com soldados em basra, no iraque. o fim da guerra é uma das promessas do novo presidente.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

JANNINE B HARTMANN/EPA/LUSA


RAQUEL WISE<br />

ERIC DRAPER/EPA/LUSA<br />

POR mário soAres*<br />

Testemunho<br />

‘ [...] considero o homem<br />

certo para o momento certo.<br />

’<br />

Desde que o Presidente Barack Obama, ainda senador,<br />

acerca de dois anos, decidiu candidatar-se à<br />

Presidência da República – e li os seus primeiros<br />

discursos, declarações e a sua biografia –, que segui<br />

o seu percurso, com enorme atenção e simpatia, nos<br />

meses finais, com verdadeira paixão.<br />

“em todos os domínios vamos assistir a uma transformação radical”, escreve mário soares.<br />

Porquê? Porque percebi a importância da sua candidatura,<br />

não só para a América como para a Europa<br />

e mesmo para o resto do mundo.<br />

Fui crítico, muito severo, durante os dois mandatos,<br />

das políticas do Presidente Bush, tanto a nível<br />

externo como interno. Considerei a Guerra do Iraque<br />

um crime, alicerçada em mentiras e falsidades. Achei<br />

a invasão do Afeganistão um “precedente perigoso”<br />

que comprometeu para sempre o prestígio da NATO.<br />

Condenei a política hegemónica e unilateral dos<br />

Estados Unidos e a marginalização das Nações<br />

Unidas. A estratégia da luta contra o terrorismo,<br />

baseada apenas na força bruta, sem ouvir os seus<br />

aliados e sem verdadeira informação.<br />

No plano interno censurei o descuido das políticas<br />

da Administração Bush de saúde, educação e<br />

segurança social e a excessiva confiança na autoregularização<br />

do mercado, na chamada “mão invisível”,<br />

que favoreceu os muito ricos, arrasou as<br />

classes médias e aumentou a pobreza e o desemprego.<br />

Foram essas políticas que conduziram ao<br />

total descrédito da ideologia neoconservadora, que<br />

a Administração Bush, em vão, tentou impor ao<br />

mundo.<br />

Barack Obama revelou-se uma personalidade política<br />

ímpar, teve a coragem de denunciar, desde o<br />

início, a desastrosa política americana no Iraque, e<br />

conseguiu mobilizar, em seu favor, a esmagadora<br />

maioria da juventude americana para as boas causas<br />

sociais e ambientais e, no plano externo, em favor<br />

da paz, do multiculturalismo, em defesa das minorias<br />

e da igualdade entre homens e mulheres.<br />

Por isso o considero o homem certo para o<br />

momento certo. O que pode fazer quando chegar à<br />

Casa Branca? Em primeiro lugar, o facto de um afro-<br />

-americano se sentar na Sala Oval da Casa Branca,<br />

representa, em si mesmo, uma verdadeira revolução<br />

cultural e das mentalidades. Depois, porque prometeu<br />

a mudança e estou convencido que, apesar de todas<br />

as dificuldades – e da complexa crise que nos afecta<br />

a todos – vai cumprir. Como renovar o pioneirismo<br />

americano – na linha de Lincoln, Roosevelt e<br />

Kennedy – e defender a paz e o ambiente natural.<br />

Em todos os domínios, vamos assistir a uma transformação<br />

radical, o que é excelente para a América,<br />

para a Europa (apesar da sua actual paralisia) e para<br />

o mundo. * Antigo Presidente da República Portuguesa<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 11


ANTóNIO PEDRO SANTOS<br />

POR LíDiA JorGe*<br />

1<br />

O que esperar?<br />

Constou-me que na casa de infância do Presidente<br />

Reagan existia um ladrilho solto debaixo do qual,<br />

em criança, ele escondia as moedas. O Presidente<br />

Barack Obama não terá tido um ladrilho como<br />

esconderijo, mas seja lá onde for que tenha<br />

acumulado as suas fortunas de rapaz, espero que<br />

‘ Creio que barack obama [...] teria sido eleito<br />

pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu<br />

no ecrã um rosto que transmitia humildade<br />

e nobreza, simplicidade e juventude de espírito,<br />

realismo e crença.<br />

’<br />

STEFAN ZAKLIN/EPA/LUSA<br />

Lídia Jorge: “por certo que o presidente obama<br />

não vai voltar atrás.”<br />

entre elas se encontre<br />

uma carta dos seus avós<br />

sobre a palavra compromisso.<br />

Para nós, à distância<br />

de um oceano e um<br />

continente, não precisamos<br />

de mais nada senão<br />

que cumpra a mudança<br />

que anunciou. E o que<br />

anunciou não foi pouco.<br />

Como candidato, prometeu<br />

gerir bem o seu<br />

país, sem esquecer que<br />

os outros países têm os<br />

mesmos direitos de<br />

sobreviver e de guardarem<br />

para si os bens<br />

que lhes pertencem.<br />

Prometeu negociar e<br />

concertar, em vez de<br />

impor e atacar. Prometeu<br />

respeitar os direitos<br />

humanos, no interior do seu país, e fora dele.<br />

Prometeu respeitar a Terra, tomá-la na mão como<br />

o nosso único bem precioso. Prometeu que sendo<br />

os Estados Unidos o país mais poderoso, seria um<br />

entre pares, com a consciência sempre presente<br />

de que no mundo actual a falência de um pode<br />

ser a falência de todos.<br />

Pelo menos foi assim que entendi o seu pedido<br />

para que fossem votar em nome da mudança.<br />

O candidato Barack Obama disse que o voto de<br />

cada americano à primeira vista apenas mudaria o<br />

bairro, mas ao mudar o bairro mudaria a cidade.<br />

Mudando a cidade, mudaria o país, e mudando o<br />

país, mudaria o mundo. Nunca ouvi da boca de<br />

um político uma declaração tão à altura do momento<br />

que atravessamos. Até estou em crer que ele deve<br />

ter lido os versos de John Donne que o seu compatriota<br />

Ernest Hemingway tomou para epígrafe<br />

em Por Quem os Sinos dobram. Também aí o poeta inglês<br />

falava de que a parte que cada um representa é a<br />

parte de um todo. Pois o candidato Obama fez dessa<br />

ideia a sua promessa voluntariosa – “Change! Yes,<br />

We can”. Por certo que o Presidente Obama não<br />

vai voltar atrás. Ele tem entre os seus tesouros, de<br />

certeza, a palavra compromisso. E é isso que nós,<br />

à distância, podemos esperar da sua figura e personalidade.<br />

Naturalmente que os cidadãos americanos estarão<br />

à espera de outras urgências, como seja a saída<br />

rápida da estagnação económica que só agora nos<br />

é dado conhecer em toda a sua extensão. Mas eu<br />

não sei se é possível separar uns planos dos outros.<br />

O externo e o interno, o económico e o axiológico.<br />

Talvez não. Creio mesmo que Barack Obama foi<br />

eleito da forma como aconteceu, e teria sido eleito<br />

pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu<br />

no ecrã um rosto que transmitia humildade e<br />

nobreza, simplicidade e juventude de espírito, realismo<br />

e crença. Ora para os europeus, a imagem<br />

do norte-americano que por duas vezes trouxe a<br />

paz à Europa, durante o século XX, foi substituída,<br />

nos últimos tempos, pela imagem do soldado que<br />

entra na cidade do outro, transformado em inimigo<br />

e a devasta, captura o inimigo e lhe devassa a<br />

garganta com uma luz, diante do mundo inteiro.<br />

São marcas muito violentas. Acredito que o<br />

Presidente Obama não o deixará repetir.<br />

* escritora<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


POR João De vALLerA*<br />

Desafios à nova<br />

Presidência<br />

‘ obama quer governar para além<br />

das tradicionais fronteiras partidárias.<br />

’<br />

Nos últimos vinte e um meses tive o privilégio de<br />

observar de perto as eleições presidenciais norte-<br />

-americanas, que culminaram com a vitória do<br />

candidato Barack Obama. Assisti às duas convenções,<br />

com os seus rituais de consagração e os seus apelos<br />

à mobilização das bases, assim como observei a<br />

introdução de novas técnicas e de novos métodos<br />

de comunicação com os eleitores, em especial na<br />

campanha democrata.<br />

Três pensamentos me vieram espontaneamente<br />

ao espírito, na noite de 4 de Novembro. O de que<br />

de algum modo assistia ao encerrar de um ciclo,<br />

iniciado quarenta anos antes com o movimento<br />

dos direitos civis nos Estados Unidos. O de que<br />

tal evolução era demonstrativa da vitalidade e da<br />

capacidade de inclusão da sociedade americana,<br />

que sabe dar uma expressão positiva à diversidade<br />

do tecido que a compõe, afirmando-se e renovando-se<br />

para além das dificuldades cíclicas e<br />

divisões estruturais que a atravessam. O de que,<br />

como porventura nenhum dos seus quarenta e<br />

três antecessores, o candidato eleito tinha já assegurado<br />

um feito de dimensão histórica antes<br />

mesmo de passar a residir na Casa Branca.<br />

O novo Presidente tomou posse no dia 20 de<br />

Janeiro. Assume com ela problemas de grandes<br />

proporções e formidáveis desafios, tanto no<br />

domínio interno como externo. Seja ao nível da<br />

economia – cuja reanimação requer esforços<br />

imediatos e concertados de dimensão inédita,<br />

não descurando os condicionantes estruturais de<br />

mais longo prazo – seja nos planos da segurança<br />

internacional e das novas ameaças transnacionais,<br />

a sua intervenção será requerida, assim<br />

como não deixará de ser observada de perto e<br />

posta à prova, logo no início de um novo ciclo<br />

da vida política americana, a sua mensagem de<br />

mudança e a ambição transformacional que lhe<br />

está subjacente.<br />

A direcção do seu mandato reflectir-se-á desde logo<br />

na escolha da futura Administração e no leque das<br />

prioridades políticas a desenvolver, não obstante as<br />

limitações orçamentais conhecidas, por causa –<br />

e apesar – da crise. A determinação, a inteligência<br />

política e o pragmatismo de que já deu amplas mostras<br />

revelar-se-ão qualidades preciosas na busca de<br />

um inevitável equilíbrio entre a sua agenda e a estratégia<br />

legislativa necessária para conseguir alcançar<br />

os objectivos declarados durante a campanha, assim<br />

como na materialização da sua intenção de governar<br />

de uma forma inclusiva e para além das tradicionais<br />

fronteiras partidárias. A reforçada maioria democrata<br />

no Senado e na Câmara dos Representantes –<br />

na qual registo, com grande satisfação, a reeleição<br />

de três congressistas de ascendência portuguesa –<br />

constitui uma vantagem à partida, mas não uma<br />

garantia de sobreposição de agendas, e dificilmente<br />

dispensará, no sistema americano, a construção de<br />

coligações pontuais de geometria variável.<br />

A assunção da Presidência, nos Estados Unidos,<br />

traz consigo a extraordinária responsabilidade associada<br />

ao facto de os actos do seu titular se repercutirem<br />

não só sobre os cidadãos americanos mas<br />

também, voluntária ou involuntariamente, numa<br />

proporção sem paralelo, sobre o resto do mundo.<br />

Tal realidade oferece potencialidades únicas numa<br />

altura em que se desenham, na Europa, mais claras<br />

ambições de afirmação na cena internacional, e num<br />

momento em que, face aos grandes desafios globais,<br />

o reforço da parceria transatlântica cada vez mais<br />

surge como uma evidente e urgente necessidade.<br />

Portugal tem um significativo papel a desempenhar<br />

neste contexto, seja no quadro das relações<br />

União Europeia-Estados Unidos, seja no seio da<br />

NATO, seja ainda no plano bilateral onde, ao rico<br />

acervo do nosso relacionamento histórico, à mais-<br />

-valia de uma relação de aliados consubstanciada<br />

no Acordo de Defesa e Cooperação e ao trunfo da<br />

comunidade portuguesa e luso-americana residente<br />

nos Estados Unidos, se adicionam novos e promissores<br />

desenvolvimentos em domínios como os<br />

da ciência e do investimento. * embaixador de Portugal<br />

nos estados Unidos<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 13


JOSÉ SÉRGIO<br />

POR ChArLes buChAnAn*<br />

14<br />

Prioridades energéticas<br />

e ambientais<br />

Barack Obama é agora o Presidente eleito e os americanos<br />

estão encantados com o facto de ele levar a<br />

sério os urgentes desafios ambientais que os Estados<br />

Unidos enfrentam, desde a biodiversidade à gestão<br />

dos oceanos e à preservação das florestas. Mas hoje<br />

em dia, na América, falar de “ambiente” significa<br />

atacar as prioridades energéticas e depressa: reduzir a<br />

dependência das importações de petróleo estrangeiro,<br />

baixar os níveis das emissões de gases com efeito de<br />

estufa, dar atenção às políticas em matéria de altera-<br />

‘ obama lançará o seu plano “economia verde”,<br />

que abrangerá um período de dez anos<br />

e custará 150 mil milhões de dólares.<br />

’<br />

ções climáticas, incentivar as medidas nacionais de<br />

conservação de energia, as novas tecnologias limpas,<br />

o desenvolvimento das fontes renováveis de energia.<br />

No entanto, Obama tem de decidir que acções deve<br />

empreender em 2009 para inverter o processo de<br />

recessão económica, reduzir o défice orçamental americano,<br />

criar postos de trabalho para combater o<br />

desemprego e salvar famílias desesperadas (através da<br />

isenção de impostos, da implementação do seguro<br />

de saúde) e a indústria automóvel americana. Assim,<br />

apenas serão empreendidas acções relacionadas com<br />

as prioridades energéticas que contribuam para o<br />

“programa de salvação” nacional.<br />

Por exemplo, uma anterior proposta que preconizava<br />

um limite para as emissões de gases com efeito<br />

de estufa, que se estendia a toda a economia, exigindo<br />

que a indústria e os serviços públicos comprassem<br />

ao Governo créditos de emissões de dióxido de carbono,<br />

está a ser sujeita a novo escrutínio. Um programa<br />

deste tipo iria imediatamente fazer subir os<br />

custos da energia. Em vez disso, Obama lançará o seu<br />

plano “Economia Verde”, que abrangerá um período<br />

de dez anos e custará 150 mil milhões de dólares,<br />

e que se destina a: incentivar o investimento das<br />

empresas no fabrico de equipamento destinado à<br />

produção de energias limpas; financiar sistemas de<br />

transportes baseados em energias limpas; acelerar a<br />

produção de veículos “limpos” de baixo consumo;<br />

e promover a próxima geração de biocombustíveis<br />

não produzidos à base de culturas alimentares.<br />

Este esforço no sentido de uma “economia verde”<br />

também levará à reabilitação e isolamento dos edifícios<br />

e escritórios das grandes cidades a fim de<br />

tornar a energia mais eficiente. Isto irá resultar na<br />

reciclagem profissional e na criação de cerca de<br />

cinco milhões de novos empregos e, em simultâneo,<br />

na redução drástica do consumo de energia.<br />

A conservação de energia é a maneira mais rápida<br />

de reduzir a procura de energia e as importações de<br />

petróleo. Barack Obama pretende uma redução de<br />

15 por cento da procura de energia até 2020: os novos<br />

edifícios devem ser neutros em termos de emissões<br />

de dióxido de carbono e os edifícios existentes<br />

devem melhorar a sua eficiência energética em 25 por<br />

cento. Os edifícios governamentais deverão tornar-se<br />

“eficientes” em três anos, e as zonas urbanas de baixo<br />

rendimento deverão ser remodeladas de modo a tornarem-se<br />

energeticamente eficientes. Isto irá gerar<br />

milhões de empregos.<br />

As limitações orçamentais constituirão um problema<br />

grave, mas não devemos esquecer que o Governo<br />

Federal americano não está só nesta cruzada nacional<br />

da energia. Os vários estados também fornecem<br />

fundos e criam condições destinadas a ajudar as<br />

empresas privadas a agir. A Califórnia demonstrou<br />

que uma liderança forte ao longo de muitos anos<br />

conduziu a níveis de eficiência energética sem precedentes,<br />

à redução da procura de energia, a transportes<br />

limpos e a um nível elevado de criação de<br />

emprego. Estes resultados são comparáveis aos da<br />

Europa, onde o sector das energias renováveis<br />

da Alemanha movimenta 240 mil milhões de dólares<br />

e emprega 250 mil pessoas; em Inglaterra, estão<br />

a ser construídas sete mil turbinas eólicas, com um<br />

custo de 100 mil milhões de dólares, e Portugal<br />

também se encontra numa posição de grande visibilidade,<br />

situando-se em segundo lugar na UE em<br />

termos de sistemas de energias renováveis.<br />

* Membro do Conselho executivo da FLAD<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


POR mAnueL JACinto nunes*<br />

‘ À ideia de força,<br />

de demonstração<br />

de poderio dos estados<br />

unidos, opôs obama<br />

a ideia de diálogo.<br />

Algo que tem faltado<br />

totalmente à política<br />

americana.<br />

’<br />

KAMIL KRZACZyNSKy/EPA/LUSA<br />

A mudança<br />

que o mundo precisa<br />

A vitória de Obama é uma vitória para os Estados<br />

Unidos, para a Europa e para o mundo. O antiamericanismo<br />

cultivado por muitos atingiu o seu auge<br />

com a Administração Bush dos últimos oito anos.<br />

A Administração americana criou ao mundo ocidental<br />

problemas tão graves que não sabemos ainda quando<br />

e como sairemos deles. Embora McCain se situe<br />

no seu partido na ala mais afastada dos neoconservadores,<br />

a sua política externa, iria, por certo ser em<br />

grande parte uma política de continuidade. McCain<br />

falava do Iraque proclamando que os<br />

Estados Unidos iriam sair dele com uma<br />

vitória. Como se pode falar de uma vitória<br />

após uma intervenção tão desastrosa<br />

que incentivou o terrorismo, pôs em<br />

maior perigo os já débeis equilíbrios no<br />

Médio Oriente e suscitou a questão da<br />

divisão entre Ocidente e Oriente?<br />

À ideia de força, de demonstração de<br />

poderio dos Estados Unidos, opôs Obama<br />

a ideia de diálogo. Algo que tem faltado<br />

totalmente à política americana nestes<br />

anos. Não que Obama se tivesse apresentado<br />

como um pacifista, mas dando<br />

sempre preponderância primacial à nego-<br />

“obama vai certamente trazer alterações de grande alcance para a política americana.”<br />

ciação. Nas relações com a Europa e a América Latina,<br />

bem como no Médio Oriente, é fundamental este<br />

tipo de abordagem para que seja possível atenuar as<br />

tensões existentes e dar passos para um relacionamento<br />

mais estável que leve a paz a regiões onde subsistem<br />

focos de conflito.<br />

De imediato é no plano interno que Obama vai ter<br />

de actuar face à situação prevalecente e vai certamente<br />

trazer alterações significativas. Não se trata de spread<br />

the wealth, mas de inverter uma política que tem<br />

acentuado as desigualdades económicas. McCain falou<br />

de redução de impostos mas sem especificar como.<br />

Obama, não obstante as dificuldades orçamentais, terá<br />

de reduzir impostos mas não do mesmo modo. Foi<br />

à situação da classe média – núcleo estrutural de uma<br />

sociedade – a que ele sempre se referiu.<br />

Outro ponto fulcral da política enunciada por Obama<br />

é a saúde. Cerca de 40 milhões de americanos não<br />

têm qualquer sistema de saúde. É óbvio que não é<br />

um problema que possa ser resolvido a curto prazo,<br />

mas algo vai por certo ser feito nesse sentido.<br />

São múltiplos os problemas que Obama vai defrontar<br />

(herda uma pesada herança): o défice nas contas<br />

públicas, uma crise financeira e económica grave,<br />

o desemprego, as famílias endividadas, e um enorme<br />

défice externo. Quanto a este último, espera-se que<br />

não ceda às pressões do lóbi proteccionista que é bem<br />

forte nos Estados Unidos.<br />

A fasquia posta a Obama foi muito alta e afigura-<br />

-se-nos que ele não a poderá cumprir em pleno, mas<br />

não pode, por esse facto, gerar-se um sentimento de<br />

desilusão. Obama vai trazer mudança e mudança significativa.<br />

Pertence a uma geração que não é a do<br />

mundo que tem dirigido a América nos últimos anos.<br />

Kennedy e Clinton souberam introduzir um ar fresco<br />

em Washington, Obama talvez não possa ir tão longe<br />

como aqueles (apesar da sua grande vitória, a cor da<br />

pele ainda constitui uma limitação nos Estados<br />

Unidos) mas vai, certamente, trazer alterações de<br />

grande alcance para a política americana e para o<br />

relacionamento dos Estados Unidos com o mundo.<br />

A situação mundial estava bem necessitada desta<br />

mudança. * economista e antigo ministro das Finanças<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 15


POR JoAnA GoDinho*<br />

16<br />

A realidade do sonho<br />

As lágrimas escorriam pela cara de Jesse Jackson<br />

enquanto ouvia o discurso de vitória de Obama<br />

na noite das eleições. Quarenta e cinco anos depois<br />

de Martin Luther King ter proclamado: “I have a<br />

dream that one day this nation will rise up and<br />

live out the true meaning of its creed: ‘We hold<br />

these truths to be self-evident, that all men are<br />

created equal.’”<br />

O sonho tornou-se realidade, não só para os<br />

negros americanos, mas também para os brancos,<br />

que se viram finalmente libertados das amarras do<br />

apartheid nos Estados Unidos, e para as outras minorias<br />

e exilados que se sentiam cidadãos de segunda<br />

classe neste país de oportunidades – “chicanos”,<br />

orientais e ocidentais como a diáspora portuguesa.<br />

O sonho voou pelo mundo, de Guantánamo ao<br />

Quénia, de Berlim a Okinawa, e tornou-se realidade<br />

a 4 de Novembro de 2008.<br />

Nas entrevistas que deu quando do lançamento<br />

do filme W., Oliver Stone disse que a influência de<br />

George W. Bush nos Estados Unidos e no mundo<br />

se fará sentir por muitos anos. Bush acredita piamente<br />

que a História lhe dará razão. O novo<br />

Presidente dos Estados Unidos terá certamente de<br />

se confrontar, desde o primeiro momento na Casa<br />

Branca, com o espólio que a nova Administração e<br />

o povo americano – e o mundo – herdam após<br />

oito anos de Administração Bush.<br />

O novo Presidente herda três guerras distintas:<br />

a do Iraque, a do Afeganistão, e a guerra contra o<br />

que a Administração clama ser “o Terror”. A Guerra<br />

do Iraque é a segunda mais longa em que os<br />

Estados Unidos se envolveram desde sempre, depois<br />

da do Vietname, e a segunda mais cara depois da<br />

II Guerra Mundial – e terá custado para cima de<br />

um milhão de vidas.<br />

O novo Presidente herda uma economia nacional<br />

e global em recessão, com uma banca parcialmente<br />

nacionalizada à la regime socialista. Escasseia o<br />

dinheiro ao supra-supercapitalismo da Idade Global<br />

Pós-Moderna. A economia global sofre com a alta<br />

do preço do petróleo e de alimentos básicos,<br />

enquanto se debate com a crise financeira mais<br />

grave da sua existência, em que até um país con-<br />

siderado desenvolvido – a Islândia – se vê em risco<br />

de se afundar nas águas geladas do Árctico.<br />

O novo Presidente herda uma situação energética<br />

em que os Estados Unidos, que têm cinco por cento<br />

da população mundial, gastam um quarto da energia<br />

mundial, a um custo superior a 400 biliões de<br />

dólares por ano para o petróleo importado.<br />

Enquanto a Administração Bush se recusou a assinar<br />

o Protocolo de Quioto, o preço do barril de<br />

petróleo aumentou de 25 para 100 dólares entre<br />

o antes e o depois da Guerra do Iraque.<br />

O novo Presidente herda uma infra-estrutura<br />

transcontinental em perigosa decadência, como<br />

demonstraram o colapso da ponte em Minnesota<br />

em 2007 ou as inundações de Nova Orleães.<br />

Parte do sucesso económico dos Estados Unidos<br />

deveu-se a uma infra-estrutura estabelecida por<br />

presidentes com visão. No entanto, a Socie-<br />

dade <strong>Americana</strong> de Engenheiros Civis estima que<br />

são necessários 1,6 triliões de dólares apenas<br />

para mantê-la em boas condições nos próximos<br />

cinco anos.<br />

O novo Presidente herda um país dividido – entre<br />

ricos e pobres, brancos e outras raças, republicanos<br />

e democratas, Wall Street e Main Street – e por<br />

questões chamadas culturais: o casamento dos<br />

homossexuais, o aborto, a pena de morte e o uso<br />

de armas. A concentração da riqueza não só tem<br />

dividido os americanos entre os que têm e os que<br />

não têm, mas tem contribuído para o declínio económico<br />

do país.<br />

Obama prometeu baixar os impostos para as classes<br />

média e mais pobres, aumentar o acesso à saúde<br />

e a qualidade da educação, investir em energias<br />

alternativas e aumentar a ajuda externa. Para pagar<br />

a conta, o novo Presidente planeia acabar com a<br />

guerra, aumentar os impostos dos dois por cento<br />

de americanos mais ricos, evitar as fugas aos impostos<br />

das grandes corporações e fazer pagar a poluição<br />

a quem poluir. Não há soluções óptimas, mas<br />

o futuro do sonho global depende da velocidade<br />

e eficácia com que o novo Presidente venha a lidar<br />

com a pesada herança recebida no dia 20 de Janeiro<br />

de 2009. * Banco Mundial<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


POR miChAeL Werz*<br />

O momento histórico<br />

da América<br />

Minutos após se ter concluído a contagem de votos<br />

na Califórnia no dia 4 de Novembro e a CNN ter<br />

anunciado que Barack Obama tinha ganho as eleições,<br />

um suspiro de alívio colectivo atravessou a<br />

América. Deu-se então início a uma festa de enormes<br />

proporções; centenas de milhares de pessoas<br />

transformaram a noite em dia, festejando até ao<br />

nascer do sol. Na manhã seguinte, as pessoas puseram-se<br />

novamente em fila, como o tinham feito<br />

no dia anterior, quando muitos tiveram que esperar<br />

durante horas para poder votar. Só que, desta<br />

vez, formavam filas em frente aos quiosques e às<br />

sedes dos jornais. “É que um sítio da internet não<br />

‘ este momento americano encerra um percurso<br />

histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio<br />

holandês White Lion chegou à virgínia e trocou<br />

por outros bens os vinte africanos escravizados<br />

que tinham sido capturados durante uma batalha<br />

com um galeão espanhol a caminho do méxico.<br />

’<br />

cabe num álbum de família”, afirmou uma senhora<br />

idosa que se encontrava em frente ao edifício<br />

do Washington Post. E, de facto, para muitos dos que<br />

participaram, este dia tinha de ser documentado.<br />

Por todo o país, os jornais foram-se esgotando e<br />

tiveram de ser reimpressos até ao fim da manhã.<br />

A energia vulcânica que foi libertada durante a<br />

noite das eleições não se pode explicar apenas pelo<br />

impacto político de Barack Obama. Ele simboliza<br />

muito mais do que aquilo que defende: uma “deslocação<br />

tectónica” na sociedade, que já se tinha<br />

tornado visível durante o longo processo da sua<br />

nomeação. O dia 4 de Novembro foi a última de<br />

três datas memoráveis em 2008. A segunda foi o<br />

dia 3 de Junho, quando Barack Obama declarou,<br />

perante 17 mil apoiantes entusiásticos num estádio<br />

de basebol no Minnesota, que tinha ganho a nomea-<br />

ção para o Partido Democrata. A multidão ouviu o<br />

seu anúncio de pé, como se estar sentado fosse<br />

uma posição menos própria quando se está em<br />

presença de alguém que passou a fazer parte da<br />

História. Fazendo jus ao momento, o candidato<br />

terminou o seu discurso acerca da vitória improvável<br />

contra Hillary Clinton com as seguintes palavras:<br />

“América, este é o nosso momento.” E,<br />

indiscutivelmente, após o dia 3 de Junho, a história<br />

americana tem decorrido de forma acelerada.<br />

Este momento americano encerra um percurso<br />

histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio<br />

holandês White Lion chegou à Virgínia e trocou por<br />

outros bens os vinte africanos escravizados que<br />

tinham sido capturados durante uma batalha com<br />

um galeão espanhol a caminho do México.<br />

A escravatura era o pecado original do Novo Mundo,<br />

minando os seus propósitos de emancipação e as<br />

promessas de felicidade. Alexis de Tocqueville escreveu,<br />

no seu lendário relatório, em 1853, que nem<br />

mesmo a abolição da escravatura poderia mudar os<br />

preconceitos raciais porque estes eram “imutáveis”.<br />

Desde o dia 3 de Junho, estas tradições – resumidas<br />

nas famosas teorias de W. E. B. DuBois que descrevem<br />

a barreira da cor como a mais perversa causa de<br />

separação na América – têm sido postas à prova.<br />

Num instante, todos se aperceberam que, no dia das<br />

eleições de 2008, pela primeira vez desde a<br />

Declaração da Independência, os americanos podiam<br />

fazer História, rompendo com o seu passado.<br />

O primeiro dia memorável foi a 18 de Março,<br />

quando Barack Obama falou das relações interraciais<br />

em Filadélfia. Ele não só reconheceu o<br />

ressentimento mútuo que ainda existe entre americanos<br />

negros e brancos, como também insistiu<br />

que a sua própria história, com membros da<br />

família “de todas as raças e todas as cores, espalhados<br />

por três continentes”, só era possível nos<br />

Estados Unidos. E continuou, dizendo: “Nós<br />

podemos ter histórias diferentes, mas partilhamos<br />

das mesmas esperanças; […] podemos ter um<br />

aspecto diferente e ser oriundos de lugares diferentes,<br />

mas todos queremos ir na mesma direcção.”<br />

O seu compromisso universalista não<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 17


GUIDO MONTANI/EPA/LUSA<br />

passou despercebido porque ia ao encontro<br />

de experiências contemporâneas,<br />

partilhadas por muitos. No espaço de dois<br />

meses o seu discurso foi descarregado do<br />

YouTube mais de 4,5 milhões de vezes e<br />

uma sondagem da Gallup revelou o surpreendente<br />

resultado de que mais de<br />

85 por cento dos americanos tinham ouvido<br />

falar do seu discurso.<br />

Barack Obama tem uma ascendência<br />

ambígua, só podendo ser descrito como<br />

americano. O facto de um homem com a<br />

sua história pessoal ter sido eleito não só<br />

será registado nos livros de escola por<br />

todo o mundo durante o próximo século,<br />

18<br />

‘ num instante, todos se aperceberam que,<br />

no dia das eleições de 2008, pela primeira vez<br />

desde a Declaração da independência,<br />

os americanos podiam fazer história,<br />

rompendo com o seu passado.<br />

’<br />

como também ressaltará como um feito<br />

de consequências irreversíveis, independentemente<br />

de quaisquer desilusões políticas<br />

que possam vir a acontecer.<br />

* Michael Werz é Transatlantic Fellow do German Marshall<br />

Fund of the United States e Investigador no Institute for the<br />

Study of International Migration da School of Foreign Service<br />

a Universidade de Georgetown<br />

“A energia vulcânica que foi libertada durante a noite das eleições não se pode explicar apenas pelo impacto político de barack obama.”<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


ROLEX DELA PENA/EPA/LUSA ‘<br />

POR JAmes r. DiCKenson*<br />

As eleições e os media<br />

nós, jornalistas, desempenhamos um papel<br />

fundamental nos processos democráticos<br />

do nosso país. [...] uma imprensa livre<br />

que presta informação fidedigna<br />

é o fluido vital de qualquer democracia.<br />

’<br />

“obama levou a cabo uma das mais eficientes campanhas.”<br />

No dia 4 de Novembro de 2008, os Estados Unidos<br />

concluíram uma das suas eleições presidenciais mais<br />

históricas de sempre. A nação escolheu o seu primeiro<br />

Presidente afro-americano, o senador Barack<br />

Obama, do Illinois, um acontecimento extraordinário<br />

dada a nossa história trágica de escravatura<br />

e racismo. E aquela data assinalou também o fim<br />

de dois grandes fracassos políticos nacionais – a fé<br />

numa economia de mercado cada vez mais desregulamentada<br />

e uma política externa militarista e<br />

unilateral falhada – sobretudo no Iraque – que<br />

estava a dividir progressivamente o país e que criou<br />

um clima político extremamente favorável para os<br />

democratas. Mais de 80 por cento do eleitorado<br />

consideravam que o país estava a seguir um rumo<br />

errado, uma opinião que ficou patente nos resultados<br />

eleitorais: Obama derrotou o seu adversário<br />

republicano, o senador John McCain do Arizona,<br />

por 52 por cento contra 46 por cento do voto<br />

popular e por mais de dois contra um no Colégio<br />

Eleitoral. Para muitos americanos, isso assinalou o<br />

fim da era Reagan republicana.<br />

Tratou-se também de uma eleição histórica porque<br />

a adversária do senador Obama na corrida à<br />

nomeação democrata era a senadora Hillary Clinton<br />

de Nova Iorque, que esteve muito perto de conseguir<br />

a nomeação e, como tal, de se tornar a primeira<br />

mulher a ser candidata presidencial de um<br />

dos grandes partidos. Além disso, McCain escolheu<br />

para concorrer ao seu lado como candidata à Vice-<br />

-Presidência a governadora Sarah Palin do Alasca,<br />

a primeira mulher a candidatar-se a uma eleição<br />

nacional pelo Partido Republicano.<br />

Obama ganhou em parte graças ao clima político<br />

favorável, mas também porque realizou uma das mais<br />

eficientes campanhas presidenciais jamais vistas no<br />

país. No dia a seguir às eleições, deitou mãos ao<br />

trabalho, começando a reunir a sua administração e<br />

preparando-se para enfrentar os graves desafios que<br />

o esperam. Entre eles incluem-se duas guerras em<br />

curso, no Iraque e no Afeganistão, e problemas que<br />

vão desde o Irão, a Coreia do Norte e a Rússia até<br />

à iminência de uma recessão. Além disso, Obama<br />

prometeu reformar o sistema de saúde, reduzir<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 19


TANNEN MAURy/EPA/LUSA<br />

os impostos da classe média e definir uma<br />

política energética nacional susceptível de<br />

tornar o país independente em termos<br />

energéticos e de contribuir para a redução<br />

do aquecimento global.<br />

Durante a campanha, os opositores de<br />

Obama criticaram a sua falta de experiência<br />

– apenas quatro anos no Senado e<br />

oito anos na legislatura estadual do<br />

Illinois – para ser presidente e comandante-chefe<br />

das Forças Armadas. No<br />

entanto, Obama conduziu uma campanha<br />

disciplinada baseada na esperança,<br />

no futuro e na unidade nacional. Mostrou-se<br />

calmo e sereno perante acontecimentos<br />

inesperados tais como a crise<br />

económica que eclodiu em Setembro, o<br />

que reforçou a confiança dos eleitores.<br />

Foi considerado o candidato cool.<br />

McCain foi visto como o candidato hot.<br />

Realçou a sua carreira como o piloto de<br />

0<br />

“o jornalismo dos países ocidentais está a sofrer profundas modificações devido à tecnologia.”<br />

jactos da Marinha que foi um heróico<br />

prisioneiro de guerra no Vietname. Um<br />

veterano com vinte e seis anos de experiência<br />

no Congresso, McCain concorreu<br />

como um “não-alinhado” que se opusera<br />

aos seus correligionários do Partido<br />

Republicano em questões como a imigração<br />

e a reforma do financiamento das<br />

campanhas eleitorais frisando a sua experiência,<br />

especialmente nos domínios da<br />

segurança e dos negócios estrangeiros.<br />

Mas descobriu, tal como Clinton descobrira<br />

nas eleições primárias do Partido<br />

Democrata, que o país estava ansioso por<br />

uma ruptura com o passado, em grande<br />

parte devido à frustração perante as políticas<br />

fracassadas da Administração Bush.<br />

McCain foi prejudicado pela crise económica,<br />

uma área historicamente favorável<br />

aos democratas, que desviou a<br />

atenção da segurança nacional e dos<br />

negócios estrangeiros. A resposta de<br />

McCain à crise económica foi impulsiva<br />

e confusa. Não propôs nenhum grande<br />

tema para a campanha e saltou de uma<br />

questão para outra, começando por atacar<br />

Obama pela sua falta de experiência<br />

e, depois, pelo seu suposto extremo<br />

liberalismo, que McCain rotulou incorrectamente<br />

de “socialismo”. Os democratas<br />

ripostaram dizendo que McCain<br />

era um político imprevisível e impulsivo<br />

que poderia ser perigoso na Casa<br />

Branca e que, com os seus 72 anos, seria<br />

o homem com mais idade jamais eleito<br />

como Presidente.<br />

O nosso voto presidencial pode ser difícil<br />

de prever porque é o mais pessoal e<br />

simbólico que expressamos. O cargo é<br />

muito complexo, porque o Presidente não<br />

só é o chefe do Executivo e o comandante-em-chefe<br />

das Forças Armadas, mas<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


também o chefe simbólico da nação, que<br />

dá expressão aos ideais e aspirações do<br />

povo. O resultado destas eleições era<br />

duplamente difícil de prever devido à origem<br />

racial de Obama, mas a sua eleição<br />

é um símbolo poderoso de quanto a<br />

América evoluiu em termos de relações<br />

raciais nos últimos cinquenta anos.<br />

Nós, jornalistas, desempenhamos um<br />

papel fundamental nos processos democráticos<br />

do nosso país. Em sociedades<br />

baseadas na informação, somos uma instituição<br />

poderosa. Uma imprensa livre que<br />

presta informação fidedigna é o fluido vital<br />

de qualquer democracia; os estados totalitários<br />

não conseguem sobreviver quando<br />

a informação é livre e fidedigna, e é por<br />

essa razão que se esforçam tanto por a<br />

suprimir. A China está lenta mas progressivamente<br />

a tornar-se mais livre, porque<br />

os seus governantes não conseguem simplesmente<br />

fechar a internet, os satélites,<br />

os telemóveis, os blogues, os sítios web e<br />

outros canais de informação.<br />

Sublinho “fidedigna” porque é necessário<br />

que as pessoas confiem na informação<br />

que lhes é prestada pelos<br />

jornalistas. É imprescindível evitarmos<br />

dar a menor ideia de que favorecemos<br />

um partido ou facção em detrimento de<br />

outro. A reputação de imparcialidade e<br />

isenção é o nosso capital de trabalho,<br />

e é preciosa; se a perdemos, nunca mais<br />

a conseguimos recuperar. Nos Estados<br />

Unidos, os meios de comunicação social<br />

são um elemento muito importante do<br />

processo de triagem de candidatos políticos,<br />

pelo que as nossas decisões sobre<br />

as pessoas cujas actividades devemos<br />

cobrir e a atenção que devemos dedicar<br />

a cada candidato são rigorosamente controladas.<br />

Apesar das suspeitas de alguns<br />

membros dos partidos, procuramos não<br />

afectar o resultado das nossas eleições, e<br />

não o desejamos fazer. A nossa cobertura<br />

é ditada pelas acções – os êxitos e os<br />

fracassos – dos candidatos. Também nos<br />

concentramos em candidatos novos e<br />

relativamente desconhecidos que prometem<br />

mudança e que é necessário explicarmos<br />

aos eleitores.<br />

O jornalismo nos países ocidentais está<br />

a sofrer profundas modificações devido<br />

à tecnologia. Na América, a importância<br />

crescente da internet, com os seus blogues<br />

e os seus sítios web, dos canais de<br />

notícias da televisão por cabo, dos talk-<br />

-shows radiofónicos e dos telemóveis está<br />

a pôr em causa o papel dos jornais e das<br />

redes de televisão tradicionais. No entanto,<br />

não vi indícios de que isso tenha<br />

influenciado as eleições. O número de<br />

blogues tem aumentado exponencialmente,<br />

mas os blogues contrabalançam-<br />

-se uns aos outros: as histórias e boatos<br />

de um dos lados são instantaneamente<br />

contestados pelo outro lado. Foram os<br />

eventos e os actos e talentos dos candidatos<br />

que determinaram o rumo da<br />

cobertura noticiosa.<br />

O apoio dos jornais é considerado valioso<br />

mas não tem tido grande influência<br />

nas eleições presidenciais americanas. Os<br />

jornais com 80 por cento da circulação<br />

apoiaram os adversários de Franklin<br />

Roosevelt mas este, de qualquer maneira,<br />

venceu as eleições quatro vezes.<br />

Esta proliferação de fontes de informação<br />

deu azo ao argumento de que os jornalistas<br />

estão ultrapassados, de que já não<br />

somos necessários como “guardiões” da<br />

informação noticiosa. O que se passa é<br />

exactamente o contrário. A necessidade de<br />

profissionais como nós para triar e avaliar<br />

o volume crescente de informação em<br />

bruto é maior do que nunca.<br />

* Jornalista especializado nas campanhas presidenciais<br />

norte-americanas<br />

‘ obama conduziu uma campanha disciplinada<br />

baseada na esperança, no futuro e na unidade nacional.<br />

mostrou-se calmo e sereno perante acontecimentos<br />

inesperados tais como a crise económica que eclodiu<br />

em setembro, o que reforçou a confiança dos eleitores.<br />

Foi considerado o candidato cool.<br />

’<br />

“o nosso voto presidencial pode ser difícil de prever porque é o mais pessoal e simbólico.”<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 1<br />

MICHAL CZERWONKA/EPA/LUSA


LoCo De notAs<br />

O novo ciclo americano<br />

ou a analogia Roosevelt<br />

Os noventa anos da passagem de Franklin<br />

D. Roosevelt nos Açores, no final da Guerra<br />

de 1914-1918, coincidiram, por acaso da<br />

história, com o reavivar do seu legado presidencial.<br />

Ao intervir no I Fórum Açoriano<br />

Franklin D. Roosevelt (Julho de 2008),<br />

Pierre Hassner refere-se “ao calor com que<br />

foram ali comemorados os laços entre a<br />

Europa e a América”, mas fez notar que “o<br />

alvo deste entusiasmo foi a obra de Franklin<br />

Roosevelt e não a de George W. Bush”.<br />

Por que motivo? Hassner sugere que<br />

talvez “uma nostalgia implícita em relação<br />

a Roosevelt e uma exortação a uma nova<br />

mensagem e actuação rooseveltianas para<br />

reparar os danos provocados (por George<br />

W. Bush) constituíssem o subtexto implícito”.<br />

A política de George W. Bush e os<br />

seus efeitos na ordem internacional teriam<br />

conferido especial significado à herança<br />

de FDR: “O estado actual do mundo – sustenta<br />

Hassner, na sua intervenção dos<br />

Açores – torna extraordinariamente relevante<br />

o legado de Roosevelt”. Em especial,<br />

as suas “três grandes realizações”: o <strong>New</strong><br />

Deal, esboço de Estado-Providência nos<br />

Estados Unidos, a intervenção na II Guerra<br />

Mundial, contrariando o tropismo isolacionista,<br />

e os projectos para a reconstrução<br />

da ordem internacional materializados na<br />

Organização das Nações Unidas (ONU).<br />

Tarda a emergir uma nova ordem internacional<br />

após a queda do Muro de Berlim,<br />

o fim do regime soviético em 1991, o 11<br />

de Setembro de 2001 e a invasão do<br />

Iraque. Entre o que resta do equilíbrio<br />

anterior ao final da Guerra Fria figura, em<br />

lugar de relevo, um projecto “rooseveltiano”:<br />

as Nações Unidas. Apesar do seu<br />

desajustamento à realidade presente, a<br />

ONU constitui um dos raros pontos de<br />

apoio para a reorganização do sistema<br />

internacional.<br />

Voltaram a invocar-se métodos usados<br />

por FDR, após as presidenciais de 1932,<br />

com vista a combater o caos e o desespero<br />

reinantes na sociedade americana após<br />

o crash bolsista de 1929: a segurança social,<br />

o subsídio de desemprego, os impostos<br />

progressivos, em suma, a intervenção do<br />

Estado na economia. Estas formas de atenuar<br />

a desigualdade nas economias de<br />

mercado, designadas por “liberais” nos<br />

Estados Unidos e por “social-democratas”<br />

na Europa, permitiam um maior equilíbrio<br />

social e, em simultâneo, esboçavam<br />

uma alternativa ao estatismo da URSS.<br />

Com a emergência das teorias neoconservadoras,<br />

ao tempo de Ronald Reagan,<br />

as políticas sociais transformaram-se em<br />

alvos preferenciais das elites políticas e<br />

económicas dominantes. Inaugurou-se um<br />

novo período marcado pela procura de<br />

“menos Estado” e pelo aumento do leque<br />

das desigualdades sociais.<br />

Paul Krugman propõe uma periodização<br />

da história económica dos Estados Unidos<br />

no século XX baseada no critério da desigualdade<br />

social. O primeiro período identificado<br />

por Krugman, inicia-se ainda no<br />

século XIX (1870) e prolonga-se até 1930<br />

mário mesquitA<br />

e ao <strong>New</strong> Deal. Caracteriza-se por um<br />

elevado grau de desigualdade, sem qualquer<br />

espécie de protecção social aos<br />

trabalhadores e aos sectores mais desfavorecidos<br />

da sociedade.<br />

Os doze anos de presidência de FDR<br />

inauguram uma espécie de interregno,<br />

que se prolonga até à década de 80<br />

(segundo período). Eisenhower, primeiro<br />

Presidente republicano após os democratas<br />

FDR e Truman aceitaram, em parte, a<br />

herança das políticas sociais de FDR. Entre<br />

o fim da Guerra de 1939-1945 e os anos<br />

80, instaura-se, com base num consenso<br />

bipartidário, uma espécie de Estado-<br />

-providência imperfeito, sobretudo porque<br />

‘ o optimismo de obama não foi mero resultado<br />

da estratégia de campanha. o próprio legado de George<br />

W. bush obrigava a colocar alto a fasquia da esperança.<br />

o ex-presidente texano deixou atrás de si ruínas<br />

sobre ruínas.<br />

’<br />

houve uma reforma que nunca chegou a<br />

ter lugar: a protecção contra a doença<br />

alargada a todos os cidadãos, que permanece<br />

por realizar na América, apesar das<br />

tentativas falhadas de Truman, Nixon e<br />

Clinton, o que faz dos Estados Unidos o<br />

único país avançado que não possui um<br />

sistema nacional de saúde alargado a todos<br />

os cidadãos (Krugman).<br />

Um certo consenso bipartidário, entre<br />

democratas e republicanos moderados,<br />

permite manter intocada parte significativa<br />

da herança do <strong>New</strong> Deal, até à época<br />

de Ronald Reagan (terceiro período), em<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


que se reforçou a tendência para o<br />

aumento das desigualdades, em proporções<br />

semelhantes às dos anos 20. Até<br />

1980, sublinha Krugman, os ricos não<br />

eram mais ricos do que na época de<br />

Eisenhower. A matriz ideológica dessa<br />

viragem começa com os movimentos de<br />

radicalização da direita americana nos<br />

anos 70. A América de Reagan e de Bush<br />

voltou a registar índices de desigualdade<br />

semelhantes aos do período anterior à<br />

Grande Depressão. Se identificarmos o<br />

milionário, na esteira de De Long e<br />

Krugman, como o indivíduo que ganha<br />

anualmente o equivalente à produção<br />

anual de 20 mil operários médios, na<br />

América de 1957 existiam 16 milionários;<br />

na de 1968, 13; e na de 2007, um<br />

total de 160.<br />

Compreende-se que – em plena crise das<br />

políticas neoconservadoras – alguns apoiantes<br />

de Barack Obama o projectem como<br />

um novo Roosevelt, em vésperas de propor<br />

um novo <strong>New</strong> Deal. “Franklin Delano<br />

Obama?”. Com este título se interrogava<br />

Krugman, na sua coluna bi-semanal do <strong>New</strong><br />

York Times. Controlar a recessão a curto<br />

prazo, mas lançando as bases de um novo<br />

acordo social: “O meu conselho à equipa<br />

de Obama – escreve Krugman – consiste<br />

em calcularem o auxílio de que a economia<br />

precisa e, a seguir, acrescentarem 50 por<br />

cento. É preferível, numa economia em<br />

depressão, errar por excesso do que por<br />

insuficiência de estímulo.”<br />

A defesa do legado do <strong>New</strong> Deal por<br />

Paul Krugman é também o elogio da audácia<br />

política. Nem o mercado, nem as<br />

mudanças tecnológicas foram, em seu<br />

entender, os factores determinantes na<br />

transição dos anos 80 para um período<br />

de maior desigualdade na distribuição dos<br />

rendimentos. As transformações políticas<br />

é que desempenharam o papel motor: “As<br />

principais fontes do aumento da desigualdade<br />

nos Estados Unidos são as instituições<br />

e as normas, e não a tecnologia ou<br />

a mundialização”, sustenta. Os exercícios<br />

de comparação com o Canadá, a Grã-<br />

-Bretanha, o Japão e a França mostram<br />

que o crescimento das desigualdades nesses<br />

países se situou num plano bem inferior<br />

ao dos Estados Unidos.<br />

Em comunicação proferida, em 2005,<br />

no National Press Club, em Washington<br />

DC, na presença dos netos de FDR, Ann e<br />

James Roosevelt – o (então) senador<br />

Barack Obama afirmou em defesa do legado<br />

rooseveltiano em matéria de seguran-<br />

bLoCo De notAs<br />

Fotomontagem das imagens de roosevelt e obama na capa da Time.<br />

ça social: “O génio de Roosevelt foi pôr<br />

em prática a ideia de que a América não<br />

tem de ser um lugar onde as nossas aspirações<br />

individuais estão em conflito com<br />

o bem comum; é um sítio onde uma coisa<br />

torna a outra possível […]. Salvaremos a<br />

Segurança Social da privatização […] e,<br />

ao fazê-lo, afirmaremos a nossa crença de<br />

que estamos todos ligados como um único<br />

povo – preparados para partilhar os riscos<br />

e as recompensas para benefício da cada<br />

um e para o bem de todos.”<br />

bLoCo De notAs<br />

O paradigma neoconservador foi dominante<br />

na política americana durante quase<br />

três décadas, apesar do parêntesis Clinton.<br />

Em 2008, a herança de Reagan esgotou as<br />

suas virtualidades. O colapso bolsista, a<br />

recessão económica e a crise política – conforme<br />

sustentou Francis Fukuyama –<br />

devem-se a razões intrínsecas ao modelo<br />

neoconservador, desde a definição minimalista<br />

do papel do Estado na economia à<br />

oposição sistemática a quaisquer reformas<br />

no domínio da segurança social e da<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 3


saúde pública, sem esquecer a visão hegemónica<br />

da política externa americana,<br />

hostil à maior parte das instituições internacionais.<br />

No plano externo, escreve<br />

Fukuyama, “a grande tragédia de George<br />

W. Bush foi convencer-se que – após o 11<br />

de Setembro – podia ser Churchill a opor-<br />

-se a Hitler ou ser Reagan na altura da<br />

queda do Muro de Berlim, através do<br />

recurso ao poder militar americano no<br />

Médio Oriente”.<br />

Este contexto ajuda a compreender o sentido<br />

de retomar a inspiração de Roosevelt,<br />

num mundo em que as funções do Estado<br />

são muito diversas dos anos 30. A capa da<br />

Time, depois de vencidas as eleições pelo<br />

candidato democrata, trazia um Barack<br />

Obama disfarçado de FDR, de chapéu alto<br />

e boquilha, ao volante de um descapotável<br />

dos anos 40. Ao longo da campanha, Obama<br />

cultivou dois registos: o Presidente consensual<br />

e suprapartidário (alguns preferiram<br />

escrever “pós-partidário”) e o Presidente<br />

progressivo, herdeiro do legado “liberal”<br />

4<br />

bLoCo De notAs<br />

(no sentido de social-<br />

-democrata). Estas duas<br />

atitudes nem sempre se<br />

ajustarão da melhor<br />

forma. Pressupõem uma<br />

actuação presidencial<br />

pragmática de forma a<br />

arbitrar as tensões e encaminhá-las<br />

num sentido positivo.<br />

Alguns acusam o novo Presidente de ter<br />

elevado demasiado as expectativas dos americanos<br />

e do mundo. Deste modo, a desilusão<br />

seria certa. Contudo, o optimismo de<br />

Obama não foi mero resultado da estratégia<br />

de campanha. O próprio legado de George<br />

W. Bush obrigava a colocar alto a fasquia da<br />

esperança. O ex-Presidente texano deixou<br />

atrás de si ruínas sobre ruínas, desde o<br />

Iraque e a Faixa de Gaza às empresas destruídas<br />

na voragem da crise económica e<br />

financeira. Sem a vaga de entusiasmo desencadeada<br />

na América e no mundo, Obama<br />

não disporia da confiança que lhe permitirá<br />

conciliar os excessos de prudência de uns<br />

‘ obama cultivou dois registos:<br />

o presidente consensual<br />

e pós-partidário e o presidente<br />

progressivo, social-democrata.<br />

’<br />

com a impaciência de outros. Esse crédito<br />

de confiança terá limites temporais. É razoável<br />

fazê-los coincidir com o final do ano I<br />

da era Obama.<br />

Referências:<br />

Francis Fukuyama, “A <strong>New</strong> Era”, American Interest, Janeiro-<br />

-Fevereiro, 2009.<br />

Jacklin Easton (org.), Inspire a Nation: Barack Obama’s Most<br />

electrifying Speeches from day One of His Campaign Through His<br />

Inauguration, Publishing 180, Nova Iorque, 2009 (National-<br />

Press-Club-Obama-Speech).<br />

Paul Krugman, The Conscience of a Liberal, Nova Iorque,<br />

W.W.Norton, 2007.<br />

Paul Krugman, “Franklin Delano Obama?”, <strong>New</strong> York Times,<br />

10 de Novembro de 2008.<br />

Cartoon de obama com características de roosevelt proclamando a sua conhecida frase “A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo”<br />

adaptada, com ironia, ao contexto actual.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


VICTOR MELO/O RETRATO<br />

Por ocasião dos noventa anos da escala do<br />

Presidente norte-americano Roosevelt nas<br />

ilhas açorianas do Faial e São Miguel, o<br />

Governo Regional dos Açores e a <strong>Fundação</strong><br />

<strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> organizaram o I Fórum<br />

Açoriano Franklin D. Roosevelt com o apoio<br />

da Presidential Library, sediada em Hyde<br />

Park, nos arredores de Nova Iorque. Durante<br />

Laços atlânticos<br />

Políticos, diplomatas, investigadores e professores portugueses e americanos<br />

partilharam com o público açoriano as problemáticas das relações<br />

entre os estados Unidos e Portugal e o papel dos Açores.<br />

A valorização declarada do potencial geoestratégico dos Açores<br />

para o esforço de guerra no quadro do controlo do Atlântico foi<br />

salientada por Carlos César que defendeu que “com o intensificar<br />

da opção africana por parte do Pentágono […] e o processo<br />

de especialização e relocalização do AFRICOM” as Lajes serão o<br />

três dias, no Teatro Micaelense, em Ponta<br />

Delgada, discutiram-se as relações transatlânticas<br />

na opinião pública europeia e americana.<br />

O II Fórum está previsto para 2010<br />

em Angra do Heroísmo.<br />

Políticos, diplomatas, investigadores e<br />

professores portugueses e americanos partilharam<br />

com o público açoriano as pro-<br />

A exposição documental “roosevelt”, adquirida pela FLAD, foi inaugurada por ocasião do Fórum.<br />

mais tarde, seguiu para a horta e será apresentada em várias ilhas açorianas.<br />

AFriCom<br />

para as Lajes<br />

blemáticas das relações entre os Estados<br />

Unidos e Portugal e o papel dos Açores;<br />

as questões político-diplomáticas actuais;<br />

as reformas em curso nas organizações<br />

internacionais e a actual ordem mundial;<br />

os desafios pós-globalização e muitos<br />

outros temas de que lhe damos conta nos<br />

artigos que se seguem.<br />

local mais vantajoso a todos os níveis, de diplomáticos a logísticos.<br />

“O Estado português deve ter uma palavra rápida, clara e<br />

favorável aos Açores neste assunto”.<br />

O presidente do Governo Regional dos Açores fez estas declarações<br />

no âmbito do Fórum Roosevelt. Carlos César considerou<br />

o encontro “um marco muito positivo no aprofundamento do<br />

relacionamento da FLAD com a Região Autónoma dos Açores”,<br />

reconhecendo toda a actualidade a Roosevelt que, “por direito<br />

próprio, (tem) um lugar de destaque na galeria das grandes<br />

figuras políticas do século XX”.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 5


6<br />

Azores connection<br />

Roosevelt permaneceu apenas três dias em São Miguel mas essa<br />

visita marcou-o de tal forma que, quando já era Presidente (1933-<br />

-1945), encomendou a Charles E. Ruttan um quadro do navio<br />

USS dyer, tendo a bandeira portuguesa hasteada e o porto de<br />

Ponta Delgada como fundo. A pintura esteve sempre junto da<br />

sua secretária, na residência de Hyde Park, em Nova Iorque.<br />

Já no final da Segunda Guerra, quando propôs que se erguesse<br />

um edifício para a sede das Nações Unidas “do tipo do Empire<br />

State Building”, defendeu que nos EUA ficassem apenas “os<br />

arquivos e o respectivo pessoal”. As conferências, dizia, deveriam<br />

realizar-se a meio do Atlântico, nos Açores: “Já lá estive uma vez.<br />

Em frente da minha casa, cresciam, lado a lado, palmeiras e<br />

abetos. Têm um clima maravilhoso.”<br />

[ Patrícia Fonseca, 10 de Julho de 2008 ]<br />

Concretizar<br />

o sonho de Roosevelt<br />

Curiosamente, esta iniciativa (Fórum Roosevelt) – que a organização<br />

quer realizar de dois em dois anos e de forma rotativa<br />

em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo ou Horta – é um pouco<br />

o concretizar de um sonho de Franklin D. Roosevelt.<br />

[ Lumena Raposo, 16 de Julho de 2008 ]<br />

O primeiro<br />

dos grandes debates<br />

Confiemos que, depois de outras iniciativas de carácter cultural<br />

e formativo ultimamente realizadas, o “I Fórum Açoriano Franklin<br />

D. Roosevelt” seja o primeiro dos grandes debates que ajudem<br />

a compreender e prospectivar melhor os Açores e o seu posi-<br />

revistA De imprensA<br />

estudante universitária intervém no Fórum.<br />

cionamento no mundo de hoje e do futuro, a partir de um<br />

passado que muito nos ensina.<br />

Passado, presente e futuro formam a trilogia geradora da identidade<br />

singular que constitui o Povo Açoriano. Uma realidade<br />

indestrutível que nenhum amanho político poderá destruir.<br />

[ Gustavo Moura, 16 de Julho de 2008 ]<br />

Um corpo de conhecimento<br />

O fórum valeu por si [...] mas só por isso não serve os interesses<br />

da Região de forma significativa, pelo menos tendo presentes<br />

aqueles que nos parecem ser os interesses dos Açores<br />

enquanto região geo-estratégica por excelência. Este encontro,<br />

que se irá repetir de dois em dois anos – sempre em locais<br />

diferentes dos Açores, pelo que nos é dado entender –, deve,<br />

quanto a nós, constituir-se como um grande momento de exposição<br />

e debate de pensamento novo sobre a realidade e os interesses<br />

específicos dos Açores nas matérias em causa.<br />

[ Armando Mendes, 19 de Julho de 2008 ]<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


Novas utilizações<br />

para a Base das Lajes<br />

Hoje, os aviões têm uma maior autonomia de voo e é cada vez<br />

menos imperativo que tenham de reabastecer nas Lajes.<br />

Claro que, logisticamente, a Base das Lajes continua a desempenhar<br />

um importante papel nas nossas operações militares no<br />

Médio Oriente e no Iraque, em particular.<br />

Contudo, temos visto reduções recentes no nosso contingente<br />

nas Lajes e isso implicará também, eventualmente, a redução de<br />

empregos que disponibilizamos aos portugueses nas Lajes.<br />

[ 20 de Julho de 2008, entrevista com o embaixador Thomas<br />

Stephenson (por Paulo Simões/Rui Jorge Cabral) ]<br />

Lisboa e Açores<br />

revistA De imprensA<br />

Para os militares norte-americanos, as Lajes poderão ser uma base<br />

extremamente importante para o apoio logístico e operacional às<br />

operações do Africom, o novo comando militar que se tornará<br />

operacional em Outubro. Se olharmos para o mapa, vemos que a<br />

base nos Açores é ideal para o pré-posicionamento de equipamento,<br />

trânsito ou estacionamento de forças de operações especiais e<br />

reabastecimento americano em direcção a África. As Lajes também<br />

são vistas pela Força Aérea dos EUA como ideais para o treino dos<br />

novos caças F-22 Raptor.<br />

Num discurso (no Fórum Roosevelt) em Ponta Delgada, Carlos<br />

César, presidente do Governo Regional dos Açores, exigiu que Lisboa<br />

conclua rapidamente as negociações que tem vindo a manter desde<br />

há bastante tempo com os EUA sobre estes dois assuntos. Exigiu<br />

também que a resposta nacional seja sim. Os Açores têm todo o<br />

interesse político e orçamental em desempenhar o seu papel no<br />

“Sim, nós podemos!” euro-atlântico de Barack Obama. Lisboa tem<br />

dúvidas. Porquê?<br />

[ Miguel Monjardino, 21 de Julho de 2008 ]<br />

Centralidade dos Açores<br />

nas relações transatlânticas<br />

Existem no mundo inúmeras potências, mas nenhuma delas<br />

consegue actualmente a hegemonia de outrora. Franklin<br />

Delano Roosevelt era um visionário, um homem que esteve<br />

para além do seu tempo, tendo delineado o conceito que<br />

levou à formação das Nações Unidas, da qual pensou tornar-<br />

-se Secretário-Geral. Nos seus planos incluía o sonho de transferir<br />

a sede de Genebra – onde tinha funcionado a Sociedade<br />

das Nações – para Nova Iorque e para a cidade da Horta.<br />

[ Alexandre Pascoal, 22 de Julho de 2008 ]<br />

Factura Obama<br />

A figura do antigo Presidente americano não podia<br />

ter sido mais inspiradora, lembrando-nos a grandeza<br />

da América e a eterna dívida dos europeus para<br />

com ela. A iniciativa, que decorreu sob o tema geral<br />

das relações transatlânticas na opinião pública europeia<br />

e americana, não podia ter vindo mais a propósito.<br />

Tal como muitos analistas europeus, muitos<br />

dos intervenientes (incluindo eu própria) chamaram<br />

a atenção para este excesso de entusiasmo, advertindo<br />

para a factura que Obama pode apresentar à<br />

Europa a troco da sua vontade de imprimir à política<br />

externa norte-americana uma mudança que, em<br />

muitos aspectos, vai ao encontro daquilo que a<br />

Europa deseja.<br />

[ Teresa de Sousa, 23 de Julho de 2008 ]<br />

“Utilizados”<br />

é o que temos sido...<br />

Em extenso e cuidado discurso, o presidente do<br />

“Governo dos Açores” (como ultimamente se intitula,<br />

muito embora a Constituição revista continue a chamar-<br />

-lhe Governo Regional…) afirmou que “não gostamos<br />

de estar isolados nem de nos sentirmos utilizados”.<br />

Convirá, a propósito, precisar o que é isto de nos “sen-<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 7


tirmos utilizados”. Porque “utilizados” é o que, historicamente,<br />

sempre temos sido, como habitantes de um território estrategicamente<br />

importante.<br />

[ Álvaro Monjardino, 26 de Julho de 2008 ]<br />

8<br />

Transformar acordo<br />

em tratado internacional<br />

É tempo de transformar este acordo num Tratado Internacional,<br />

sujeito a aprovação pela Assembleia da República e pelo Congresso<br />

dos Estados Unidos.<br />

Admitimos que, no âmbito de novas e diferentes negociações<br />

de um Tratado Internacional sobre facilidades de utilização da<br />

Base das Lajes, pode encontrar-se a oportunidade para que a<br />

questão laboral, muitas vezes envolta em conflito, tenha um<br />

futuro entendimento claro e exequível, sem pôr em causa a<br />

dignidade e soberania de nenhum dos Estados.<br />

Para esta pretensão devemos contar com o prestígio da nossa<br />

diáspora e dos congressistas de ascendência açoriana.<br />

[ José Manuel Bolieiro, 31 de Julho de 2008 ]<br />

Estudantes participam<br />

no sonho açoriano de Roosevelt<br />

No essencial, a <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> para o Desenvolvimento<br />

(FLAD) realizou o sonho do político americano: especialistas de<br />

várias áreas e diferentes nacionalidades, e alguns finalistas de<br />

universidades portuguesas, reuniram-se […] para discutir as<br />

relações transatlânticas.<br />

O local de encontro foi Ponta Delgada, em São Miguel, essa<br />

terra onde o presidente americano só esteve uma vez. Foi amor<br />

à primeira vista. O evento tem o nome do sonhador. É o I Fórum<br />

Açoriano Franklin D. Roosevelt, onde a Universidade de<br />

Coimbra marcou presença com docentes, investigadores e<br />

estudantes. Mário Mesquita, coordenador da Comissão<br />

Organizadora do Fórum e Membro do Conselho Executivo da<br />

FLAD, conta que a ideia do Fórum nasceu “da vontade de criar,<br />

nos Açores, um espaço de reflexão sobre política internacional<br />

e estratégia”. Porquê nestas ilhas? “Fala-se muito dos Açores<br />

como um lugar estratégico em casos de guerra, mas a ideia<br />

que emana da visão de Roosevelt é que este lugar também<br />

pode servir à construção da paz e é a paz, e não a guerra, que<br />

queremos discutir”.<br />

revistA De imprensA<br />

mário soares e bernardino Gomes na visita à Casa e ao Jardim José do Canto.<br />

Nenhum dos alunos presentes hesita em afirmar que Roosevelt<br />

é um homem que vale a pena homenagear. É o presidente do<br />

Governo Regional dos Açores, Carlos César, que numa frase sintetiza<br />

o motivo: “Franklin Roosevelt empenhou-se em garantir<br />

que o papel da América a nível da política internacional fosse<br />

recordado pela disseminação da paz, pela força da razão e não<br />

pela força das armas, e este é um exemplo que o mundo contemporâneo<br />

precisa urgentemente de relembrar”. Manuel Porto,<br />

professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,<br />

mostra-se “a favor do Estado, mas de um bom Estado”.<br />

[ Martha Mendes, revista RL, n.º 22 ]<br />

O sonho da reorganização<br />

de uma ordem mundial pacífica<br />

O encontro multidisciplinar que a <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />

organizou em Ponta Delgada […] teve como efeméride de referência<br />

a passagem de Franklin Roosevelt pelos Açores durante a<br />

Primeira Guerra Mundial.<br />

Uma estada pelo arquipélago que lhe ficou como recordação encantatória<br />

e que, no entardecer da vida lhe terá feito sentir o desejo,<br />

não realizado, de ali regressar para esperar o fim dos dias.<br />

Mas, para além da recordação da histórica e acidental passagem pelo<br />

arquipélago, a referência que enquadrou as intervenções foi o sonho<br />

da reorganização de uma ordem mundial pacífica que animou a<br />

sua visão de futuro, para além da vitória militar na guerra de 1939-<br />

-1945, contra os demónios interiores europeus.<br />

[ Adriano Moreira, 19 de Agosto de 2008 ]<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


POR JAmes rooseveLt<br />

Mensagem ao Fórum<br />

O neto de Roosevelt não pôde estar presente mas participou<br />

com uma mensagem de abertura (por vídeo), agora transcrita,<br />

que valoriza o Fórum, dedicado ao seu avô, e o impulso que<br />

este dará ao fortalecimento dos laços dos dois lados do Atlântico.<br />

Chamo-me James Roosevelt Junior e é um prazer<br />

e um privilégio para mim saudar, em nome da<br />

família Roosevelt, os participantes neste primeiro<br />

Fórum Franklin D. Roosevelt sobre Relações<br />

Transatlânticas. Como sabem, o meu avô, o<br />

Presidente Franklin D. Roosevelt, visitou Ponta<br />

Delgada, na ilha de São Miguel, de 16 a 18 de<br />

Julho de 1918, quando era subsecretário da<br />

Marinha dos Estados Unidos da América. Chegou<br />

a bordo de um contratorpedeiro da marinha americana,<br />

o USS dyer, que efectuava a sua viagem<br />

inaugural. No seu diário e nas suas cartas à minha<br />

avó Eleanor Roosevelt e à sua mãe, Sarah Delano<br />

Roosevelt, escreveu muitas observações maravilhosas<br />

sobre a beleza da ilha que estava a visitar e<br />

sobre a utilidade das conversações que manteve<br />

com autoridades governamentais durante a sua<br />

visita. Espero que este Fórum assinale o relançamento<br />

da era de relações transatlânticas que foram<br />

tão importantes no tempo do meu avô. Para ele,<br />

as relações transatlânticas estavam no cerne da<br />

política externa dos Estados Unidos. É certo que o<br />

meu avô tinha uma visão mundial, mas considerava<br />

que os interesses comuns das nações banhadas<br />

pelo oceano Atlântico eram tão importantes que<br />

tinham de estar no cerne da política americana.<br />

Nos últimos anos, afastámo-nos desse projecto e<br />

espero que este Fórum dê um novo impulso a esse<br />

importante objectivo, colocando-o de novo no<br />

centro das relações externas dos Estados Unidos.<br />

O tema desta conferência, “As Relações<br />

Transatlânticas e a Opinião Pública Europeia e<br />

<strong>Americana</strong>”, é muito importante no mundo de<br />

hoje. Penso que o cepticismo bem como a falta de<br />

confiança e respeito mútuo que têm caracterizado<br />

as relações transatlânticas nos últimos anos prejudicam<br />

todas as pessoas do mundo, mas especialmente<br />

as populações de ambos os lados do<br />

Atlântico. Julgo, portanto, que a concentração renovada<br />

de atenção que este Fórum irá trazer segue<br />

inteiramente a tradição do serviço prestado pelo<br />

meu avô à presidência de Woodrow Wilson, durante<br />

e após a I Guerra Mundial, e como Presidente<br />

dos Estados Unidos durante quatro mandatos, nas<br />

décadas de 1930 e 1940. Estamos a viver um tempo<br />

diferente, um tempo difícil, e todos o sabemos.<br />

Mas é um tempo em que se têm registado também<br />

grandes progressos e que nos pode trazer um grande<br />

futuro de relações calorosas se nos concentrarmos<br />

novamente nos nossos interesses comuns. Por<br />

conseguinte, em nome da família Roosevelt, desejo<br />

agradecer aos organizadores deste Fórum por<br />

terem reunido importantes decisores políticos e<br />

porta-vozes de ambos os lados do Atlântico com<br />

o objectivo de nos levar a empenharmo-nos novamente<br />

nos nossos verdadeiros interesses como<br />

nações e, também, como cidadãos do mundo.<br />

Desejo-vos as maiores felicidades nas vossas sessões<br />

de trabalho e nas vossas deliberações, e aguardo<br />

com expectativa a oportunidade de tomar conhecimento<br />

dos efeitos duradouros que este Fórum<br />

produzirá na política mundial, e, principalmente,<br />

na política externa das nações de ambos os lados<br />

do Atlântico. Muito obrigado.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 9


30<br />

De olhos postos no mundo<br />

Na Sala Oval, Franklin delano Roosevelt fixa um ponto no enorme globo terrestre.<br />

Talvez o Mediterrâneo. O mar que sempre foi a sua paixão<br />

e as viagens que lhe proporcionou.<br />

Não admira que uma das suas primeiras<br />

recordações fosse a do poder do mar. Em<br />

1885, na sua primeira travessia do<br />

Atlântico, o pequeno Franklin, com apenas<br />

três anos, viajava de Inglaterra para<br />

os Estados Unidos quando o seu barco<br />

foi atingido por fortes ondas que invadiram<br />

a cabina onde a família Roosevelt<br />

estava instalada e levaram o seu brinquedo<br />

predilecto.<br />

POR sArA pinA*<br />

Cynthia Koch, directora da Biblioteca<br />

Franklin D. Roosevelt, conta que os<br />

Roosevelt passavam anualmente vários<br />

meses na Europa. A 30 de Janeiro de 1882,<br />

quando Franklin Delano Roosevelt nasceu,<br />

em Nova Iorque, a família tinha regressado<br />

de uma longa viagem. Nove meses<br />

antes do nascimento estavam na Europa,<br />

como indica o diário da sua mãe Sara,<br />

uma mulher muito viajada que deslum-<br />

brava o seu filho único com contos de<br />

aventuras de viagens por mar.<br />

Depois de alguns anos a viver na<br />

Alemanha, Franklin Delano Roosevelt<br />

ingressou no colégio de Groton, perto de<br />

Boston, cujo lema – apoiar os mais desfavorecidos<br />

– resultava da convicção de que<br />

os americanos privilegiados devem ajudar<br />

a resolver os “males nacionais e internacionais”.<br />

Em Harvard cursou Direito, mas<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

FDR PRESIDENTIAL LIBRARy


FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />

em 1915, passando revista a cadetes enquanto subsecretário de estado da marinha.<br />

o que realmente o fascinava era ser editor<br />

do jornal estudantil Harvard Crimson.<br />

Franklin Delano Roosevelt pertencia a<br />

uma família rica e com muitas ligações<br />

políticas. Theodore Roosevelt, o Presidente<br />

norte-americano de 1901 a 1909, era seu<br />

primo e tio da sua mulher – Eleanor.<br />

Embora a carreira profissional tenha<br />

começado pela advocacia, FDR cedo iniciou<br />

o serviço público. Em 1913, foi compensado<br />

pelo seu apoio à eleição para a<br />

Presidência de Woodrow Wilson com o<br />

cargo de subsecretário de Estado da<br />

Marinha e durante a I Guerra Mundial era<br />

o “número dois” na linha de comando.<br />

Foi com a participação da América na I<br />

Guerra Mundial que Roosevelt viajou até<br />

aos Açores para depois seguir para França<br />

e outras regiões da Europa. A visita a São<br />

Miguel foi muito marcante para FDR que<br />

“encomendou” ao pintor Charles Ruttan<br />

um quadro a óleo do destroyer USS dyer – o<br />

vaso de guerra que o transportou à Europa,<br />

ancorado no porto de Ponta Delgada.<br />

Talvez não fosse a sua pintura favorita,<br />

mas esteve sempre colocada por cima da<br />

sua secretária, no escritório da residência<br />

de Hyde Park.<br />

“Ponta Delgada está à vista e alguns dos<br />

nossos barcos encontram-se no porto […]<br />

Quando chegámos ao porto ouvimos dizer<br />

que, no momento exacto em que nos<br />

encontrávamos parados, um submarino<br />

foi visto em perseguição de um barco<br />

português, ao largo do quebra-mar. É claro<br />

que teríamos sido um alvo fácil, mas, se<br />

o submarino nos viu, decidiu evitar os<br />

destroyers, como qualquer submarino prudente<br />

faz”, escrevia Roosevelt no seu diário<br />

a 16 de Julho de 1918.<br />

Roosevelt foi recebido pelo comandante<br />

da base de Ponta Delgada, almirante Dunn.<br />

Numa carta para a mulher Eleanor, revelou-<br />

-se muito satisfeito com a organização militar<br />

e a recepção dos portugueses. Mas o que<br />

o deslumbrou foi a paisagem: “subitamente<br />

chegámos à orla do que foi, em tempos,<br />

uma enorme cratera, tendo no fundo um<br />

cenário maravilhoso – várias aldeias, vales<br />

e jardins, lagos azul-escuro e nascentes de<br />

onde se desprendem nuvens de vapor”.<br />

Para Cynthia Koch, “FDR viu no solo açoriano<br />

um lugar neutro onde os líderes se<br />

pudessem encontrar e debater políticas”.<br />

De tal maneira que em 1945, numa conferência<br />

de imprensa, enquanto Presidente,<br />

diria: “Tenciono conseguir um edifício<br />

semelhante ao Empire State Building [para<br />

as Nações Unidas] apenas para os<br />

‘ quando chegámos ao porto ouvimos dizer que, no<br />

momento exacto em que nos encontrávamos parados,<br />

um submarino foi visto em perseguição de um barco<br />

português, ao largo do quebra-mar.<br />

’<br />

o barco onde viajava roosevelt no porto de ponta Delgada, num óleo de Charles ruttan,<br />

exposto no gabinete de trabalho do presidente.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 31<br />

FDR PRESIDENTIAL LIBRARy


FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />

arquivos e respectivo pessoal, e, em seguida,<br />

fazer com que as conferências se realizem<br />

em parte do tempo, numa das ilhas<br />

dos Açores. Já lá estive uma vez. Em frente<br />

da minha casa cresciam, lado a lado,<br />

palmeiras e abetos. Têm um clima maravilhoso”.<br />

Para FDR o arquipélago açoriano significava<br />

esse ponto, quase neutro, entre a Europa<br />

e a América, onde os decisores políticos se<br />

podiam encontrar e debater as ideias que<br />

ditavam os acontecimentos mundiais.<br />

“Em 1932, depois de uma dura luta,<br />

Roosevelt tornou-se o candidato à presidência<br />

nomeado pelo Partido Democrata.<br />

FDR fascinou o público ao voar até<br />

Chicago para aceitar a nomeação, onde<br />

prometeu um <strong>New</strong> Deal para o povo americano”,<br />

explica Cynthia Koch, e continua:<br />

“FDR palmilhou a nação de lés a lés, percorrendo<br />

uma distância recorde de apro-<br />

3<br />

no avião a caminho de Chicago para a nomeação à candidatura a presidente pelo partido Democrata.<br />

ximadamente 20 mil quilómetros, por<br />

todo um país devastado por uma crise<br />

económica e humana que durava há três<br />

anos e se tornava cada vez mais grave”.<br />

O resultado dessa campanha foi a vitória<br />

democrata no ano seguinte. A 4 de<br />

Março de 1933, Roosevelt tomou posse<br />

como o 32.º Presidente dos Estados<br />

Unidos, numa altura em que a nação<br />

estava à beira do colapso.<br />

“Algumas vozes, levantadas pelo desespero<br />

e pelo medo, chegaram mesmo a<br />

pedir que o novo presidente suspendesse<br />

o governo constitucional e assumisse<br />

poderes quase ditatoriais”, conta a directora<br />

Koch. Mas Roosevelt manteve-se dialogante.<br />

Aos compatriotas, respondeu:<br />

“A única coisa que devemos recear é o<br />

próprio medo.”<br />

Na verdade, segundo as palavras de<br />

Cynthia Koch, “em termos humanos, a<br />

maior mudança foi talvez a nova sensação<br />

de um objectivo comum que FDR promoveu,<br />

falando com clareza e sinceridade<br />

à imprensa e ao povo americano”.<br />

Poucos dias depois de ter tomado posse,<br />

iniciou uma série de programas de rádio<br />

chamados “Conversas à Lareira” e que<br />

foram os primeiros discursos presidenciais<br />

dirigidos exclusivamente a uma audiência<br />

de rádio. “O estilo era informal e coloquial,<br />

dando a impressão de que o<br />

Presidente estava realmente a falar com as<br />

pessoas na sala”. Durante os doze anos de<br />

Roosevelt na Presidência, viriam a realizar-<br />

-se mais de 30 “Fireside chats”. A seguir<br />

a cada programa, a Casa Branca era inundada<br />

por telegramas e cartas. Cynthia Koch<br />

sustenta que “pela primeira vez, os americanos<br />

encetaram um diálogo nacional<br />

com o seu Presidente sobre o futuro e o<br />

destino da nação”.<br />

Os primeiros meses como Presidente<br />

foram marcados por uma actividade tão<br />

intensa por parte de Roosevelt que ficaram<br />

conhecidos como os “Primeiros Cem<br />

Dias”. Foi nesta altura que foi lançado o<br />

<strong>New</strong> Deal – 15 diplomas legislativos que<br />

visavam garantir comida, abrigo e trabalho<br />

para os necessitados, estruturar a<br />

reforma da banca, ajudar os agricultores<br />

empobrecidos e terminar com a proibição<br />

de cerveja e álcool, o que levantou<br />

a moral nacional.<br />

Na opinião da bibliotecária, “Franklin<br />

Roosevelt tinha um instinto de poder e a<br />

vontade necessária para o exercer. A II<br />

Guerra Mundial – com as suas operações<br />

militares à escala mundial, complexas coligações<br />

internacionais e problemas económicos<br />

e sociais – era um grande palco em<br />

que o Presidente assumiu um papel fulcral.<br />

Roosevelt foi, em todos os sentidos,<br />

o comandante-chefe da nação. Tomou<br />

decisões militares, políticas e reuniu um<br />

grupo dos melhores estrategas que lhe<br />

prestavam contas directamente”.<br />

Roosevelt detinha a principal posição na<br />

coligação de guerra das 26 nações aliadas,<br />

que ele denominou “Nações Unidas”. “À<br />

medida que a guerra avançava, FDR foi<br />

assumindo cada vez mais as funções de<br />

mediador e decisor principal do grupo”,<br />

diz Koch, acrescentando: “Ao longo da<br />

guerra, o Presidente Roosevelt frisou repetidas<br />

vezes a importância de reforçar a<br />

coligação. A diplomacia foi o que caracterizou<br />

a sua acção de liderança durante<br />

a II Guerra”.<br />

Na manhã de 12 de Abril de 1945,<br />

a II Guerra Mundial entrou no seu 2049.º<br />

dia. Tinham morrido já quase 50 milhões<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


de pessoas, e muitos mais milhões estavam<br />

feridos ou tinham perdido as suas<br />

casas. Na Europa, Adolf Hitler vivia num<br />

bunker subterrâneo enquanto os soldados<br />

soviéticos se preparavam para invadir a<br />

capital alemã e o primeiro campo de<br />

concentração era libertado pelas tropas<br />

russas. O Presidente norte-americano<br />

acordou exausto na sua casa de férias, na<br />

Geórgia. Poucas horas depois daquilo que<br />

parecia apenas uma “dor de cabeça”,<br />

Franklin D. Roosevelt morria, de uma<br />

hemorragia cerebral.<br />

Franklin D. Roosevelt viveu tempo suficiente<br />

para saber que a vitória estava<br />

garantida. Menos de um mês depois da<br />

sua morte, a Alemanha rendeu-se aos<br />

Aliados. Os últimos dias da sua vida<br />

foram dedicados ao mundo do pós-guerra,<br />

preparando as bases legislativas e<br />

logísticas da Organização das Nações<br />

Unidas (ONU).<br />

FDR morreu dias antes da data marcada<br />

para o discurso que iria proferir na sessão<br />

de abertura da conferência de fundação<br />

da ONU. Na véspera do dia em que morreu,<br />

trabalhou num discurso sobre o<br />

mundo do pós-guerra: “A simples con-<br />

roosevelt um dia antes de morrer a trabalhar na intervenção para a formação das nações unidas.<br />

quista dos nossos inimigos não é suficiente.<br />

Os americanos devem cultivar a ciência<br />

das relações humanas – a capacidade de<br />

todos os povos, de todos os tipos, viverem<br />

juntos e trabalharem juntos no mesmo<br />

mundo, em paz”.<br />

* com susAnA pAuLA<br />

Cynthia Koch, directora da biblioteca presidential Franklin D. roosevelt, foi a primeira oradora do Fórum roosevelt e iniciou a sua apresentação<br />

afirmando que “roosevelt teria ficado muito feliz com estas conferências”. A biblioteca foi parceira da organização deste encontro.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 33<br />

FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />

VICTOR MELO/O RETRATO


34<br />

Actualidade do pensamento<br />

de roosevelt<br />

Alan Henrikson, director de estudos diplomáticos da The Fletcher School of Law<br />

and diplomacy, da Tufts University, traçou o perfil de Roosevelt como “figura histórica”.<br />

em entrevista explica a importância do arquipélago e a actualidade do pensamento de Roosevelt,<br />

mesmo se comparado com o do novo Presidente dos estados Unidos, Barack Obama.<br />

Roosevelt era um homem do mundo, viajava<br />

muito. Na sua opinião, por que motivo os Açores<br />

lhe causaram tão boa impressão?<br />

Os Açores representavam para Roosevelt<br />

um ponto fulcral, uma espécie de eixo<br />

mental e visual, à volta do qual começou<br />

a desenvolver mais claramente a sua noção<br />

do limite de hemisfério ocidental e de uma<br />

Comunidade Atlântica. O final da guerra<br />

constituía o palco de uma nova ordem<br />

mundial, na qual imaginava<br />

que os Açores poderiam,<br />

eventualmente, vir a tornar-se<br />

o principal quartel-general,<br />

uma vez que a maioria dos<br />

estados soberanos do mundo<br />

se encontrava na Europa e no<br />

hemisfério ocidental, incluindo<br />

todas as repúblicas americanas.<br />

Poderia haver<br />

reuniões nos Açores e/ou no<br />

Pacífico. Há ainda a referir<br />

aquilo a que o seu Vice-<br />

-Presidente, Henry Wallace,<br />

chamava a sua espectacular e<br />

especial memória. Segundo<br />

ele, Roosevelt conseguia lembrar-se<br />

não só do aspecto das<br />

coisas, como também se<br />

recordava de informação<br />

específica acerca de lugares,<br />

como distâncias, e até das<br />

marés e dos ventos de algumas<br />

zonas de costa. Reparava<br />

em todos os detalhes de uma<br />

cena ou paisagem. Os Açores<br />

impressionaram-no profundamente.<br />

POR AnA brAsiL E António viCente<br />

Actualmente, os aviões americanos já não têm<br />

de fazer escala no meio do Atlântico para poderem<br />

chegar a outros lugares do mundo. A base<br />

aérea da ilha Terceira ainda continua a ser importante<br />

para os objectivos militares dos EUA?<br />

É um facto que, com os aviões de longo<br />

alcance, se tornou muito fácil sobrevoar o<br />

Atlântico e ultrapassá-lo, sem qualquer escala.<br />

Durante a Guerra do Kosovo, os bombardeiros<br />

americanos Stealth levantavam voo<br />

“obama terá, da mesma forma que roosevelt, um conhecimento directo<br />

de outras partes do mundo”, diz Alan henrikson.<br />

da base da Força Aérea de Whiteman, no<br />

Missouri, voando sobre Belgrado e voltando,<br />

sem parar. No entanto, tinham de ser abastecidos<br />

sete vezes por aviões em diversos<br />

pontos da viagem. Isto ilustra bem a necessidade<br />

de posições intermédias na cadeia<br />

logística, associadas a aeronaves de diferentes<br />

níveis tecnológicos e para diferentes fins.<br />

Além disso, estas posições intermédias têm<br />

de ser abastecidas e apoiadas. É necessário<br />

que tenham equipamentos de<br />

comunicação que sejam absolutamente<br />

fiáveis e seguros.<br />

Por conseguinte, na minha<br />

VICTOR MELO/O RETRATO<br />

opinião, provavelmente, seria<br />

melhor pensar nos Açores<br />

como um importante centro<br />

intermédio, do que como um<br />

principal ponto estratégico.<br />

Por outro lado, também é um<br />

facto que a geoestratégia é<br />

muito importante no contexto<br />

mais lato do problema que<br />

enfrentamos. Se houver um<br />

problema humanitário que<br />

necessite de operações de<br />

assistência em qualquer parte<br />

de África, por exemplo, pode<br />

acontecer que a velocidade<br />

não seja o mais relevante, mas<br />

sim a capacidade de carga.<br />

Numa situação do género,<br />

poderiam usar-se aeronaves<br />

mais lentas. Este seria o<br />

segundo exemplo de uma<br />

situação em que os Açores<br />

seriam importantes. O terceiro<br />

seria no caso de estarmos<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />

perante um problema sensível do ponto de<br />

vista político, que necessitasse de acção imediata;<br />

se fosse necessário chegar a algum<br />

lugar rapidamente, sem atrair muita atenção.<br />

Uma outra situação, muito semelhante a<br />

esta, poderia ser a necessidade de haver reuniões<br />

rápidas entre dirigentes para consulta<br />

aos níveis mais altos, como a que aconteceu<br />

em 2003 com Bush, Blair, Aznar e<br />

Barroso.<br />

O senhor é um dos principais especialistas em<br />

Franklin Delano Roosevelt. Ainda fica surpreendido<br />

perante algumas situações em que FDR é<br />

citado ou referido?<br />

As suas ideias, que muitas pessoas naquela<br />

altura julgavam não passarem de palavras<br />

– como as “Quatro Liberdades” –,<br />

eram de tal maneira grandes que foi<br />

possível adoptá-las em contextos completamente<br />

diferentes. Para mim, um desenvolvimento<br />

surpreendente foi a forma<br />

como o ex-secretário-geral das Nações<br />

Unidas, Kofi Annan, se referiu às “Quatro<br />

Liberdades”, de Roosevelt, quando apresentou<br />

o seu Relatório do Milénio. Citou<br />

especialmente a libertação das necessidades<br />

materiais e a libertação do medo –<br />

dando-lhes talvez a melhor definição<br />

existente de “segurança humana”, um<br />

novo termo que, entretanto, se institucionalizou<br />

em todo o mundo.<br />

É da opinião que, com a evolução da ordem mundial,<br />

será dada maior atenção aos pequenos estados?<br />

Sim. Em especial nas questões climáticas,<br />

no problema geopolítico relativo às zonas<br />

de conflito e na liderança moral no que<br />

toca a reagir às situações humanitárias. Isso<br />

acontecerá devido ao contexto diplomático.<br />

Do sistema das Nações Unidas fazem parte<br />

192 países. Eram apenas pouco mais de 50<br />

quando a ONU foi criada. Consequentemente,<br />

a ONU está a tornar-se uma instituição<br />

composta por pequenos países. Graças a<br />

este princípio de igualdade soberana e, uma<br />

vez que na Assembleia Geral todos os votos<br />

são iguais, o Conselho de Segurança é pressionado<br />

a alargar-se.<br />

Roosevelt era uma figura muito inspiradora. Pensa<br />

que o mundo anseia por este tipo de líder político,<br />

que muitos parecem ver em Obama?<br />

Sim. Muitas pessoas acreditam – e eu partilho<br />

dessa esperança – que Obama terá,<br />

da mesma forma que Roosevelt, um conhecimento<br />

directo de outras partes do mundo.<br />

Obama tem experiência; e não me refiro<br />

a experiência em política externa, mas sim<br />

a “experiência externa”. O seu pai era queniano,<br />

visitou a Índia e diversas regiões<br />

africanas. Chegou mesmo a viver na<br />

Indonésia. Na qualidade de membro do<br />

Foreign Relations Committee (comissão de<br />

fiscalização das relações externas do Senado<br />

americano), também viajou muito.<br />

Independentemente do que possam ser os<br />

objectivos das suas políticas, a compreensão<br />

alargada que tem de diversos contextos<br />

geográficos e sociais dar-lhe-á um determinado<br />

tipo de visão. Um exemplo disso<br />

mesmo é a sua proposta para um fundo<br />

global para a educação no valor de 15 mil<br />

milhões de dólares. Obviamente, não<br />

seriam apenas os EUA a assegurar o respectivo<br />

financiamento. Ainda não foi dada<br />

grande atenção a esta proposta. Entre outras<br />

coisas, Obama afirmou que “O facto de<br />

haver crianças, por exemplo, no Médio<br />

Oriente, que não sabem ler, pode, a longo<br />

‘ As suas ideias, [...] como as “quatro Liberdades”,<br />

eram de tal maneira grandes que foi possível<br />

adoptá-las em contextos completamente diferentes.<br />

prazo, constituir um perigo potencial para<br />

os EUA, bem como para a própria região”.<br />

Relativamente às suas propostas para a<br />

educação nos EUA tem dado ênfase às idades<br />

preescolares. Talvez seja o resultado do<br />

seu trabalho com as comunidades em<br />

Chicago – onde se apercebeu de como são<br />

decisivos esses anos para as famílias afro-<br />

-americanas – e provavelmente também<br />

da experiência acumulada nos quatro anos<br />

vividos na Indonésia durante a sua juventude,<br />

ou mesmo de tudo o que viu no<br />

Quénia. O facto de Obama defender – tal<br />

como FDR provavelmente o teria feito –<br />

não apenas a liberdade de expressão, a<br />

liberdade religiosa e a libertação do medo,<br />

como também a liberdade de aprender em<br />

qualquer lugar do mundo, mostra que tem<br />

um grande potencial.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 35<br />


36<br />

os Açores: entre os<br />

estados unidos e portugal<br />

A admiração dos micaelenses pelos Estados<br />

Unidos foi gerada, nas palavras de Carlos<br />

Enes, pelo sentimento de “abandono”<br />

por parte do Governo central e pelos<br />

apoios prestados pelas forças americanas.<br />

Começavam a manifestar-se tendências separatistas<br />

em São Miguel e na colónia emigrada<br />

na Nova Inglaterra. Alguns açorianos<br />

queriam distanciar-se do Governo do continente<br />

e, porventura, ligar-se aos Estados<br />

Unidos. Foi nesse clima que Franklin<br />

D. Roosevelt desembarcou no arquipélago.<br />

Os discursos de Franklin D. Roosevelt<br />

em Ponta Delgada não ultrapassaram os<br />

limites das palavras de protocolo. Roosevelt<br />

valorizou, no entanto, a posição estratégica<br />

dos Açores, a ponto de considerar o<br />

apoio concedido pela base naval de Ponta<br />

Delgada às forças aliadas mais importante<br />

do que a própria participação portuguesa<br />

no teatro de guerra europeu: “Portugal<br />

entrou na aliança europeia, mas os Açores<br />

fazem mais do que isso, pelas condições<br />

especiais da sua posição estratégica”.<br />

A atitude de não ingerência dos Estados<br />

Unidos nos assuntos internos portugueses<br />

e de repúdio de envolvimento em ensaios<br />

separatistas reflectia a orientação geral da<br />

política externa definida pelo Presidente<br />

Wilson, que se caracterizava pela ideia de<br />

uma arbitragem americana a nível internacional<br />

– uma espécie de leadership moral<br />

a exercer pelos Estados Unidos, com vista<br />

à defesa da paz e a espalhar pelo mundo<br />

os benefícios da democracia.<br />

Com a II Guerra Mundial, como explicou<br />

o professor Luís Andrade, os estrategas dos<br />

Estados Unidos multiplicavam os sinais de<br />

preocupação com o arquipélago português,<br />

a fim de demover a diplomacia salazarista<br />

da sua posição de neutralidade e<br />

obter a anuência do Governo português<br />

com vista à instalação de uma base militar<br />

nas ilhas atlânticas.<br />

Em discurso proferido, Roosevelt ameaçava,<br />

de forma implícita, com a possibi-<br />

POR mArtA Amorim E susAnA pAuLA<br />

lidade de ocupação dos Açores e de Cabo<br />

Verde: “Nós e as Américas – quando e<br />

onde quer que os nossos interesses forem<br />

atacados e a nossa segurança ameaçada<br />

– decidiremos onde deveremos colocar as<br />

nossas Forças Armadas e onde estabeleceremos<br />

a nossa posição militar estratégica,<br />

sem termos a mais ligeira hesitação para,<br />

servindo-nos das Forças Armadas, repelir<br />

qualquer ataque”.<br />

Em resposta, Salazar enviou contingentes<br />

militares para as ilhas. O Presidente Carmona<br />

efectuou uma viagem de reafirmação de<br />

soberania, sob o slogan “Aqui é Portugal”.<br />

Os Aliados e as potências do Eixo interpretaram<br />

estas medidas como “símbolo da<br />

vontade de Portugal em não deixar ocupar<br />

as suas possessões atlânticas por qualquer<br />

potência e sob qualquer pretexto”.<br />

Após o fim da II Guerra Mundial e o<br />

início da Guerra Fria, os Estados Unidos<br />

vão permanecendo nos Açores com inúmeras<br />

concessões ao Estado português.<br />

Como afirmou António José Telo, “Portugal<br />

foi o único país não democrático convidado<br />

para membro fundador da NATO; o<br />

único pequeno poder que, em 1961-63,<br />

conseguiu mudar aspectos importantes da<br />

política americana em África”.<br />

O historiador e director do Instituto de<br />

Defesa Nacional concluiu: “Em múltiplas<br />

crises e conjunturas nos últimos dois<br />

séculos, Portugal tem desempenhado<br />

funções e cumprido missões que estão<br />

aparentemente acima dos seus recursos<br />

e força relativa. Essa capacidade tem sido<br />

essencial para a criação do Portugal contemporâneo<br />

e deve-se a um conjunto<br />

multifacetado de factores. Os Açores e a<br />

sua posição estratégica são um dos principais<br />

e, em muitas das crises e situações<br />

concretas, são o principal”.<br />

“As bases e as relações bilaterais com os estados unidos: um século de entendimentos”<br />

foi a conferência apresentada ao Fórum por António José telo.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

VICTOR MELO/O RETRATO


Na opinião do embaixador de Portugal<br />

em Washington, João Vallera, a relação<br />

transatlântica só “ganhará força” se fizer<br />

coincidir a sua agenda com a agenda mundial.<br />

Por isso se têm desenvolvido esforços<br />

na busca de “plataformas comuns”, no<br />

âmbito de uma agenda que, segundo<br />

Vallera, se foca em questões específicas,<br />

como o comércio a vários níveis ou os<br />

entraves à circulação de pessoas e bens, à<br />

defesa europeia e as ligações à NATO. Mas<br />

também em grandes questões globais,<br />

como o Iraque, o terrorismo, a luta contra<br />

a pobreza ou a emergência de novas<br />

potências mundiais, como a China.<br />

O embaixador assumiu esperar da capital<br />

norte-americana “uma atitude mais<br />

atenta e mais adepta a escutar as reacções<br />

do exterior”. Afinal, segundo notou, assiste-se<br />

a “um movimento de considerável<br />

recentragem da política americana”, favorável<br />

a uma “significativa reaproximação<br />

com a Europa”.<br />

No entanto, realçou o embaixador, “a<br />

capacidade de alterar componentes básicos<br />

da política externa americana é muito<br />

limitada, visto que boa parte das opções<br />

de fundo da actual Administração vão trazer<br />

consequências para a próxima”.<br />

Ao apresentar João Vallera, o director<br />

da SIC Notícias, António José Teixeira,<br />

citou Robert Kagan quando este refere que<br />

actualmente os Estados Unidos estão em<br />

Marte e a Europa em Vénus. Ou seja,<br />

enquanto o objectivo dos europeus se<br />

centra no “equilíbrio de interesses” e na<br />

“resolução pacífica dos conflitos”, os norteamericanos<br />

“não acreditam que estejamos<br />

assim tão perto do sonho” da “paz perpétua”<br />

e da estabilidade mundial.<br />

... tAmbém pArA o Ambiente<br />

O embaixador dos Estados Unidos em<br />

Portugal, Thomas Stephenson, focou na<br />

sua intervenção o tema e optou por falar<br />

plataformas<br />

comuns...<br />

POR CLAúDiA GAmeiro,<br />

JoAnA FernAnDes E mArCo Leitão siLvA<br />

o embaixador dos estados unidos em portugal falou da política energética.<br />

da política energética que se tornou “o<br />

assunto político mais importante que<br />

põe em resto o bem-estar futuro”.<br />

Segundo o embaixador: “Os Estados<br />

Unidos e a Europa precisam de agir em<br />

três áreas: reduzir a dependência dos<br />

combustíveis fósseis; aumentar a eficácia<br />

energética e conservação; e desenvolver<br />

fontes de energia renováveis e alternativas”.<br />

Lembrando a estreita cooperação<br />

entre Portugal e os Estados Unidos,<br />

Thomas Stephenson exortou cidadãos e<br />

instituições a prosseguirem na defesa do<br />

ambiente. “Todos temos de criativamente<br />

trabalhar para garantir um mundo<br />

seguro e functional para os nossos<br />

filhos”. “Mesmo que não existisse ameaça<br />

climática, tínhamos toda a urgência<br />

em pôr fim à dependência energética<br />

relativamente aos combustíveis fósseis.<br />

Mas esta ameaça existe, e a resposta tem<br />

de ser imediata”, afirmou Viriato<br />

Soromenho-Marques, que atribui à<br />

União Europeia o papel de recolocar os<br />

Estados Unidos no caminho do combate<br />

à crise ambiental e climática.<br />

O assessor do presidente da Comissão<br />

Europeia para a área do ambiente lembrou<br />

que este não é um problema novo: “Esta<br />

crise de alterações climáticas, esta crise<br />

ambiental, já exige medidas há décadas.<br />

A diferença é que agora são muito mais<br />

urgentes”, disse.<br />

Soromenho-Marques garantiu que a resposta<br />

europeia a este problema está já em<br />

marcha: “Esta é uma época de mudança<br />

e o ambiente é o nosso calcanhar de<br />

Aquiles. A dívida climática terá de ser paga<br />

cêntimo por cêntimo, e só unidos vamos<br />

conseguir fazê-lo.”<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 37<br />

VICTOR MELO/O RETRATO


“A realidade contemporânea atravessa uma<br />

crise global que tem consequências sociais<br />

como o aumento da imigração e dos refugiados”,<br />

disse Pierre Hasner, director do<br />

Centro de Estudos de Relações Internacionais<br />

de Paris, e acrescentou: “Num mundo cada<br />

vez menos centrado na Europa e nos EUA<br />

é necessário acabar com posturas de domínio<br />

e permanente doutrinação em relação<br />

aos outros países. Precisamos hoje de políticas<br />

flexíveis que possam dar resposta aos<br />

problemas que atravessamos.”<br />

Perante os desafios globais, Pierre Hasner<br />

recordou a fórmula da democracia e da<br />

38<br />

relações transatlânticas<br />

que futuro?<br />

POR sArA pinA*<br />

economia de mercado como sistemas político<br />

e económico naturais da humanidade,<br />

que, “mesmo sendo soluções imperfeitas<br />

é bom lembrar que todas as suas alternativas<br />

falharam”.<br />

Para Adriano Moreira, presidente da<br />

Academia das Ciências de Lisboa e professor<br />

emérito da Universidade Técnica de<br />

Lisboa, a resposta aos desafios globais<br />

passa pela aliança das civilizações que<br />

“exige reorganização da governança mundial<br />

e não a multiplicação de centros de<br />

poder em desafio armado”.<br />

Na sua intervenção sobre a temática<br />

“A Reforma da NATO e a Relação<br />

Transatlântica”, sustentou que é “um projecto<br />

que fácil e repetidamente demonstra<br />

um desajustamento entre o modelo observante<br />

de que se parte e o modelo observado<br />

que configura a realidade actual”.<br />

O professor de Relações Internacionais<br />

considera que o que se verifica é que<br />

“o unilateralismo da Administração<br />

republicana de Washington instalou uma<br />

divisão de pareceres e atitudes entre os<br />

membros do Conselho de Segurança,<br />

que também o são da NATO, e que igualmente<br />

pertencem à União Europeia”.<br />

mário soares (esq.) e Adriano moreira (dir.) com miguel monjardino durante a visita à Casa e ao Jardim José do Canto, propriedade de Augusto Athayde,<br />

parte do programa social do Fórum. roosevelt percorreu o parque em 1918.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

SARA PINA


Adriano Moreira vai mais longe e afirma<br />

que “talvez não seja difícil reconhecer<br />

uma mudança na avaliação das ideias<br />

paradigmáticas de Ocidente, Atlântico,<br />

identidade cultural ou aliança global das<br />

democracias”.<br />

Quanto ao futuro da NATO, Adriano<br />

Moreira, apoiando-se no balanço que Alain<br />

Joxe fez do estado do mundo em 2008,<br />

prevê que “a NATO arrisca deixar de funcionar<br />

consistentemente como aliança,<br />

para ser antes um lugar de confronto entre<br />

a grande estratégia americana e a grande<br />

diplomacia europeia”. Quanto ao futuro<br />

do Ocidente, o<br />

professor também<br />

não hesita: “Não<br />

será possível que a<br />

circunstância que<br />

rodeia os ocidentais<br />

se altere substancialmente<br />

sem<br />

que o sistema de<br />

governança, segurança<br />

e defesa<br />

tenha de reorganizar<br />

a atitude, a<br />

definição e a resposta<br />

a dar à situação actual do mundo.”<br />

“A versão europeia dominante aponta<br />

para uma definição e consolidação de<br />

fronteiras amigas”, garante, ainda, Adriano<br />

Moreira, que defende que “o globalismo<br />

exige reinvenção da governança, fronteiras<br />

amigas, e consciência de que a casa<br />

comum, a Terra, é o alvo das reais ameaças<br />

que a todos rodeiam e que exigem<br />

uma aliança das civilizações; as forças<br />

militares não são dispensáveis, mas devem<br />

ser forças tranquilas e não instrumentos<br />

de unilateralismo”.<br />

A concluir, Adriano Moreira põe a tónica<br />

no poder político. “É a decisão política<br />

que vai determinar o acentuar da deriva<br />

ou o regresso ao pensamento de Wilson<br />

e Roosevelt, aos grandes princípios proclamados<br />

quando o mundo celebrou aquela<br />

alegria coberta de lágrimas que foi a<br />

paz de 1945 e a criação da ONU.”<br />

Na sua intervenção, Mário Soares reforçou<br />

a ideia de que os Estados Unidos se<br />

terão enganado no inimigo ao atacarem<br />

o Afeganistão envolvendo a NATO, uma<br />

“ocupação sem saída” e atacando depois<br />

o Iraque (sem o aval da ONU) e procurando<br />

combater os terroristas sem<br />

nenhum respeito pelos direitos humanos,<br />

casos de Guantánamo e Abu Ghraib.<br />

“O prestígio da América no mundo foi<br />

posto em causa de forma quase irremediável”,<br />

considera Mário Soares, pois o<br />

“unilateralismo da política americana<br />

que pretendia ser o polícia e o juiz do<br />

mundo, marginalizando a ONU, classificando<br />

alguns países, de acordo com<br />

critérios morais e religiosos, como pertencendo<br />

ao ‘eixo do mal’ verificou-se<br />

não ter qualquer consistência”.<br />

“É indispensável por isso mudar de<br />

paradigma, a globalização desregulada,<br />

fruto de um capitalismo selvagem, dito<br />

de casino, só conduz à concentração da<br />

riqueza em cada vez menos mãos e a<br />

mais pobreza nos países desenvolvidos<br />

e no mundo em geral. A globalização<br />

‘ num mundo cada vez menos centrado<br />

na europa e nos euA é necessário acabar<br />

com posturas de domínio e permanente<br />

doutrinação em relação aos outros<br />

países. precisamos hoje de políticas<br />

flexíveis que possam dar resposta<br />

aos problemas que atravessamos.<br />

’<br />

tem de ser consensualmente regularizada<br />

para se poder criar uma nova ordem<br />

internacional que assegure a paz e o<br />

desenvolvimento sustentável entre os<br />

povos e as nações.”<br />

Para Mário Soares, “um afro-americano<br />

no gabinete oval da Casa Branca<br />

representa por si só uma revolução cultural<br />

nos EUA e no mundo”. Soares<br />

comparou a vitória de Obama com a<br />

vitória de Roosevelt nos anos de 1930.<br />

Foi um ponto de viragem que, agora,<br />

passados quase oitenta anos, se repete.<br />

O fundador do Partido Socialista disse<br />

também que “curiosamente a América<br />

parece estar a sair de um ciclo trágico<br />

com o final do último mandato do<br />

Presidente Bush. Com as eleições presidenciais,<br />

a consciência política, o sentido<br />

de responsabilidade, o pioneirismo<br />

e o idealismo americanos parecem ter<br />

despertado como por milagre”.<br />

“A situação na Europa muda se soprar<br />

um novo vento político na América”,<br />

considera Soares. O que significa que<br />

os laços entre a Europa e a<br />

América se tornarão<br />

mais estreitos<br />

e fecundos.<br />

Mais intensas<br />

serão<br />

também as<br />

r e l a ç õ e s<br />

Portugal-Estados Unidos. José Medeiros<br />

Ferreira, antigo ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros, referiu que “apesar de Portugal<br />

ter querido sempre manter relações bilaterais<br />

com os Estados Unidos, estes sempre preferiram<br />

os contactos multilaterais através da<br />

OCDE, da NATO […] Mas os Açores sempre<br />

desempenharam um papel fundamental<br />

como uma âncora nas relações entre os dois<br />

países”.<br />

Medeiros Ferreira perspectivou que, no<br />

futuro, os Açores “tanto poderão ser um<br />

teatro de articulação euro-atlântico como<br />

um teatro de repartição de missões científicas,<br />

tecnológicas, de segurança e<br />

defesa. Entre a repartição de missões e<br />

repartição de ilhas por zonas de influência”.<br />

Sempre num quadro em que<br />

“oceanos e espaços comunicam mais<br />

entre si nesta fase de globalização”, o<br />

arquipélago “deve continuar a ser um<br />

factor de segurança e de articulação do<br />

espaço atlântico, ajudando a garantir a<br />

liberdade de circulação aeronaval entre<br />

continentes e entidades políticas dos<br />

dois lados do oceano”.<br />

* com FAbiAnA CoeLho, João CAritA<br />

E mArthA menDes<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 39<br />

SARA PINA


“Hoje ninguém pensa que os americanos<br />

podem tudo sozinhos”, disse Judite de<br />

Sousa (RTP) ao apresentar Schlesinger que,<br />

à margem deste encontro, deu uma entrevista<br />

exclusiva à Paralelo.<br />

Qual terá sido, na sua opinião, a razão principal<br />

para a criação das Nações Unidas (ONU) e como<br />

terá Roosevelt conseguido mudar as atitudes isolacionistas<br />

dos EUA?<br />

A questão central era a II Guerra Mundial.<br />

Como, certamente, se recordará, na I Guerra<br />

Mundial morreram 30 milhões de pessoas<br />

e na II Guerra Mundial morreram 60<br />

milhões. Assim, os delegados de São<br />

Francisco tinham a consciência de que se<br />

devia fazer tudo para evitar uma III Guerra<br />

Mundial. Foi por este motivo que a ideia<br />

das Nações Unidas de Roosevelt tocou no<br />

nervo da população americana e mundial.<br />

Tem-se falado muito acerca de uma possível<br />

reforma da ONU. Pensa que o Conselho de<br />

Segurança poderá vir a concordar que há uma<br />

necessidade de mudança?<br />

Em 2005 os Estados-membros das Nações<br />

Unidas reuniram-se e concordaram que<br />

eram necessárias algumas reformas. De<br />

facto, talvez se contem mesmo entre as<br />

reformas mais profundas de toda a história<br />

da ONU: a criação de algumas agências<br />

para ajudar a resolver o problema de<br />

Estados falidos, de um Fundo para a<br />

Democracia que financia países interessados<br />

em estabelecer um sistema democrático, e<br />

da Comissão de Consolidação da Paz que<br />

também deverá fornecer ajuda económica.<br />

Há ainda a famosa cláusula, o chamado<br />

princípio da “responsabilidade de proteger”,<br />

que permite ao Conselho de Segurança<br />

40<br />

A América de volta<br />

às nações unidas<br />

Stephen Schlesinger, investigador da Century Foundation e antigo director do World Policy<br />

Institute na <strong>New</strong> School, comentador da Time e da CNN, interveio no Fórum<br />

para falar dos desafios que a ONU enfrenta.<br />

POR AnA brAsiL E rui vALLerA<br />

o comentador da Time e da Cnn afirmou à Paralelo que:<br />

“o desastre do iraque acabou por fortalecer a onu.”<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

VICTOR MELO/O RETRATO


intervir num país que esteja a cometer<br />

genocídio contra o seu próprio povo. Isto<br />

é particularmente importante porque,<br />

segundo a Carta das Nações Unidas, não é<br />

permitido à ONU interferir nos assuntos<br />

internos de qualquer país, coisa que, no<br />

entanto, esta cláusula passou a admitir.<br />

Também houve reformas que possibilitaram<br />

uma melhor definição dos princípios éticos,<br />

para que não possa voltar a acontecer<br />

um escândalo semelhante ao do programa<br />

“Petróleo por Alimentos”. Houve ainda<br />

alguns esforços concertados para lidar com<br />

o terrorismo. O problema que se põe é que<br />

a ONU não consegue estabelecer uma definição<br />

de terrorismo que seja aceite por<br />

todos os países. Por isso, a sua acção contra<br />

o terrorismo tem sido limitada. O que<br />

a ONU terá de fazer futuramente é ter um<br />

papel muito mais activo no<br />

controlo das armas de destruição<br />

maciça, químicas,<br />

biológicas e nucleares. Mas,<br />

de momento, os recursos de<br />

que dispõe neste âmbito são<br />

limitados.<br />

Certas correntes de opinião defendem<br />

que as Nações Unidas passem<br />

a ter um papel muito mais activo em situações<br />

como a do Darfur. À luz destes novos poderes, acha<br />

que é natural que tal venha a acontecer?<br />

O problema é que, no Conselho de<br />

Segurança, há cinco nações que têm direito<br />

de veto e que podem impedir qualquer<br />

intervenção. Assim, no caso do Darfur,<br />

a China continua a vetar qualquer acção<br />

directa por parte do Conselho de Segurança,<br />

‘ o que a onu terá de fazer<br />

futuramente é ter um papel muito<br />

mais activo no controlo das armas<br />

de destruição maciça, químicas,<br />

biológicas e nucleares.<br />

’<br />

“uma das possibilidades de reforma do Conselho de segurança seria através do aumento<br />

dos membros não-permanentes”, afirma schlesinger.<br />

uma vez que vai buscar o seu petróleo ao<br />

Sudão e não está interessada em perder o<br />

acesso aos combustíveis. E, se não for a<br />

China, é a Rússia que não concorda com<br />

a intromissão da ONU nos assuntos internos<br />

de outro país.<br />

Quando se fala da necessidade de reforma, geralmente<br />

referem-se as alterações no Conselho<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 41<br />

UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER


de Segurança. Pensa que isto poderá vir a<br />

acontecer?<br />

Não penso que isso possa vir a acontecer;<br />

pelo menos, não para já. Em 2005, houve<br />

um grande esforço no sentido de reformar<br />

o Conselho de Segurança. Mas, o problema<br />

é, antes de mais, o facto de os membros<br />

permanentes poderem vetar qualquer<br />

reforma que não lhes agrade. Em segundo<br />

lugar, os países que preenchem os requisitos<br />

necessários para virem a fazer parte<br />

do Conselho de Segurança como membros<br />

permanentes – como é o caso da Alemanha,<br />

do Japão, da Índia, do Brasil e da África<br />

do Sul – têm dificuldade em convencer as<br />

suas próprias regiões de que deveriam<br />

tornar-se membros do Conselho.<br />

A realidade actual é muito diferente da de 1945.<br />

Não obstante, os membros permanentes da ONU<br />

continuam a ser os mesmos. Pensa que as decisões<br />

do Conselho de Segurança ainda têm legitimidade<br />

no mundo?<br />

Em relação a essa questão, vou argumentar<br />

de uma forma que pode soar um pouco a<br />

provocação. Há um velho ditado americano<br />

que diz: “Se não está estragado, não é preciso<br />

arranjá-lo.” Com isto quero dizer que<br />

também se pode argumentar que o Conselho<br />

de Segurança está a funcionar bastante bem<br />

desta forma, mesmo não sendo representativo.<br />

Uma das formas de mudar as coisas<br />

seria através do aumento dos membros não-<br />

-permanentes. Actualmente há 15 países no<br />

4<br />

Conselho de Segurança. Se, por exemplo, se<br />

aumentassem para 21, teríamos mais seis<br />

países com mandatos de dois anos, o que<br />

pelo menos alargaria um pouco a representação<br />

de outras regiões do mundo. Na minha<br />

opinião, essa é uma solução possível e é<br />

bastante provável que venha a acontecer nos<br />

próximos dez anos.<br />

O problema do veto é suficiente para explicar a<br />

incompatibilidade que se tem observado entre os<br />

EUA e a ONU, particularmente nas últimas duas<br />

ou três décadas?<br />

Se olharmos para o passado, para o que<br />

aconteceu em 1945, em São Francisco,<br />

veremos que os Estados Unidos deixaram<br />

bastante claro que, se não lhes fosse dado<br />

direito de veto, abandonariam a conferência.<br />

Isto significa, de certa forma, que o<br />

direito de veto mantém os EUA na ONU.<br />

No entanto, é um facto que os EUA contornaram<br />

o direito de veto, desafiando<br />

frontalmente o Conselho de Segurança e<br />

agindo sozinhos aquando da invasão do<br />

Iraque. Também é verdade que, durante a<br />

crise do Kosovo em 1998, a Rússia vetou<br />

qualquer acção por parte da ONU, e os<br />

Estados Unidos provocaram uma intervenção<br />

por parte da NATO, contornando,<br />

também aqui, a decisão das Nações Unidas.<br />

Portanto, há várias formas de contornar a<br />

questão do veto, mas são consideradas<br />

controversas porque vão contra a Carta<br />

das Nações Unidas.<br />

A ONU tem capacidade para contrabalançar as<br />

acções unilaterais dos EUA?<br />

Creio que sim. Aliás, no fim foi o que<br />

acabou por acontecer no caso do Iraque.<br />

Após Bush ter dado ordens para a invasão,<br />

todos se voltaram contra ele, excepto a<br />

Grã-Bretanha. Consequentemente, a reacção<br />

de Bush foi voltar ao Conselho de<br />

Segurança para pedir a autorização para a<br />

ocupação do Iraque por parte dos EUA,<br />

autorização essa que o Conselho de<br />

Segurança acabou por lhe conceder.<br />

Para o cidadão comum, a ONU perdeu relevância<br />

após a invasão americana do Iraque?<br />

Na altura em que tudo isto aconteceu,<br />

havia bastante receio que a ONU pudesse<br />

vir a ter o mesmo destino da Sociedade<br />

das Nações, ou seja, que viesse a desaparecer.<br />

No entanto, ironicamente, penso<br />

que o desastre do Iraque acabou por vir<br />

a fortalecer a ONU, porque, desde então,<br />

Bush foi forçado a retroceder e tem-se<br />

mantido com as Nações Unidas.<br />

Na sua opinião, haverá grandes divergências<br />

entre a ONU e o novo Presidente dos Estados<br />

Unidos?<br />

Obama será um forte apoiante da ONU.<br />

Um dos seus primeiros actos políticos será<br />

o de explicar às Nações Unidas que a<br />

América está de volta como membro<br />

pleno.<br />

segundo schlesinger, “obama será um forte apoiante da onu”. Fotografia tirada em 2007, do então candidato a candidato<br />

com ban Ki-moon, secretário-geral das nações unidas.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER


participação luso-americana<br />

“Investir na educação é uma forma de unir laços”,<br />

donzelina Barroso, consultora da JB Fernandes Memorial Trust na <strong>Fundação</strong> Rockefeller,<br />

defende o investimento na educação para unir os portugueses dos dois lados do Atlântico.<br />

Donzelina Barroso sugere que se faça uso<br />

das remessas dos emigrantes portugueses<br />

nos EUA e que se atraiam investidores para<br />

a filantropia: “É preciso mostrar que há<br />

onde investir. E que vale a pena fazê-lo na<br />

educação.”<br />

Para Elmano Costa, professor da<br />

California State University, a união e integração<br />

passa por aproximar os portugueses<br />

emigrados nos Estados Unidos da<br />

política norte-americana. “A comunidade<br />

portuguesa nos Estados Unidos vive numa<br />

situação económica desfavorável, tem<br />

baixa escolaridade e há muitos que ainda<br />

não têm nacionalidade americana. Têm<br />

pouco poder político...”, mas esta tendência<br />

está a alterar-se.<br />

João Luís Medeiros referiu-se à comunidade<br />

portuguesa emigrante nos Estados<br />

Unidos como “caixeiros-viajantes da saudade”.<br />

Na perspectiva do antigo deputado<br />

à Assembleia Regional dos Açores e<br />

Assembleia da República, o percurso de<br />

vida das gerações que, durante todo o<br />

século XX, trocaram a Europa pela América,<br />

deve ser recordado. E a língua portuguesa,<br />

diz o orador, é um forte traço dessa<br />

memória. “É muito importante que se<br />

continue a falar e a ensinar português na<br />

América do Norte», disse.<br />

imAGens mútuAs<br />

John Glenn, director de Política Externa<br />

do German Marshal Fund apresentou o<br />

“Transatlantic Trends” – um projecto promovido<br />

pelo German Marshall Fund of the United<br />

States e pela Compagnia di San Paolo, com o<br />

apoio FLAD, da Fundación BBVA e da Tipping<br />

Point Foundation, que procura avaliar as atitudes<br />

americanas e europeias sobre a relação<br />

transatlântica e os desafios globais.<br />

Para John Glenn, este inquérito anual<br />

permite concluir que “uma atitude anti-<br />

-Bush, na Europa, não se traduziu em antia-<br />

POR ALexAnDre soAres E JoAnA FernAnDes<br />

mericanismo”. Em relação a Portugal,<br />

apesar da presença americana na Base das<br />

Lajes, há moderação no desejo de cooperação<br />

com os EUA. As ambições portuguesas<br />

passam, por exemplo, pelo desejo do<br />

país assumir um papel mais interventivo<br />

na cena internacional (80 por cento); bem<br />

como nas organizações internacionais em<br />

que participa, como a NATO (81 por cento<br />

defendem uma acção mais visível).<br />

Antiga directora-geral da Comissão<br />

Europeia e Visiting Scholar de Harvard,<br />

Renée Haferkamp discordou das conclusões<br />

do inquérito: “A Europa é, neste<br />

momento, claramente ‘antiamericana’”,<br />

defendeu.<br />

Segundo Teresa de Sousa, do jornal<br />

Público, a crescente distanciação entre a<br />

Europa e os EUA justifica-se porque “os<br />

momentos edificantes da relação transatlântica,<br />

como a II Grande Guerra, o <strong>New</strong><br />

Deal, ou a queda do muro de Berlim são<br />

momentos de cooperação histórica que<br />

se tornam cada vez mais distantes no<br />

tempo”. A jornalista acredita que “os europeus<br />

vivem há cinquenta anos num clima<br />

de prosperidade e paz que os faz desvalorizar<br />

a ideia de que os americanos foram<br />

os seus grandes protectores”.<br />

Duarte Freitas, deputado ao Parlamento<br />

Europeu, argumentou na mesma linha de<br />

Teresa de Sousa, mas disse que “Bush foi<br />

uma boa desculpa para razões muito mais<br />

profundas que justificam o antiamericanismo<br />

actual”. As gerações mais novas,<br />

sublinhou, não têm na memória os<br />

momentos centrais da relação entre as<br />

duas potências.<br />

Donzelina barroso defendeu a captação de investimentos na educação.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 43<br />

VICTOR MELO/O RETRATO


new Deal: a política social sem medo<br />

A expressão “<strong>New</strong> deal” tornou-se um rótulo<br />

dos tipos de mudanças que FdR traria à economia<br />

americana mergulhada na depressão.<br />

O debate sobre a função e o lugar do Governo na vida americana e na<br />

economia, que teve início na década de 1930, prossegue nos nossos dias<br />

e também na mesa-redonda que juntou Teodora Cardoso, presidente do<br />

Conselho Directivo da FLAD e administradora do Banco de Portugal;<br />

Álvaro Dâmaso, presidente da Agência de Promoção do Investimento nos<br />

Açores; Eduardo Paz Ferreira, professor da Faculdade de Direito da<br />

Universidade de Lisboa; e Manuel Porto, professor da Faculdade de Direito<br />

de Universidade de Coimbra.<br />

Álvaro Dâmaso caracterizou o <strong>New</strong> Deal como um fármaco, serviu<br />

para melhorar a vida dos americanos e recuperar a confiança, “um<br />

novo Estado, regulador, onde existe a mão visível da regulação”.<br />

Roosevelt conseguiu ultrapassar a enorme crise em que se encontravam<br />

os Estados Unidos, desafios que agora também Obama encontra, comentou<br />

Paz Ferreira.<br />

Teodora Cardoso comparou os diferentes modelos socioeconómicos.<br />

Apontou o dedo ao modelo mediterrânico, aplicado em Portugal, porque<br />

“devido ao aumento das despesas de protecção social, os serviços<br />

públicos gerais são descuidados para diminuir essas despesas […]<br />

Portugal precisa de repensar o seu modelo […] para gerar produtividade<br />

e emprego”.<br />

44<br />

POR susAnA pAuLA<br />

mais meios<br />

para a defesa europeia<br />

“Defesa e Segurança nas Relações<br />

Transatlânticas” foi o tema da mesa-redonda<br />

presidida por Manuela Franco, diplomata<br />

e antiga secretária de Estado dos<br />

Negócios Estrangeiros e da Cooperação,<br />

com a participação de José Cutileiro,<br />

embaixador e antigo secretário-geral da<br />

UEO, Ricardo Rodrigues, deputado à<br />

Assembleia da República, Paulo Casaca,<br />

deputado ao Parlamento Europeu, Rui<br />

Paulo Figueiredo, adjunto do gabinete do<br />

primeiro-ministro e presidente do Instituto<br />

Transatlântico Democrático, e Miguel<br />

POR mArGAriDA pimentA<br />

Monjardino, professor da Universidade<br />

Católica Portuguesa.<br />

José Cutileiro centrou a sua intervenção<br />

nas relações entre a Europa e os EUA, frisando<br />

que a maioria dos países da União<br />

Europeia está na NATO e que as relações<br />

económicas entre a Europa e os EUA são<br />

as mais fortes entre quaisquer dois grupos<br />

do mundo. Criticou ainda os baixos orçamentos<br />

de defesa dos Estados europeus.<br />

Ricardo Rodrigues destacou nesta sua primeira<br />

intervenção a importância estratégica<br />

do arquipélago e da sua Zona<br />

Cartoon do <strong>New</strong> York Herald (4 de março de 1933).<br />

Económica Exclusiva: “Os açorianos são<br />

filhos da geografia.” Salientou, ainda,<br />

a importância do acordo entre Portugal<br />

e os EUA que fixa a Base das Lajes.<br />

O alerta para más interpretações do federalismo<br />

europeu foi dado por Paulo Casaca<br />

– o federalismo de Schuman surge por<br />

influência americana e não pretende a<br />

criação de um Estado unido com o objectivo<br />

de concorrer com os EUA.<br />

Rui Paulo Figueiredo salientou alguns<br />

aspectos que têm prejudicado a imagem<br />

americana aos olhos dos europeus, como<br />

o unilateralismo e o descuidar dos valores<br />

ocidentais, cujo exemplo mais gritante é<br />

Guantánamo.<br />

Miguel Monjardino abalou a discussão<br />

dizendo que a Europa precisa de mais<br />

meios para a defesa. A Europa tem estado<br />

dependente dos EUA e “Yes, we can”<br />

é um discurso que engloba também os<br />

europeus.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

MARGARIDA PIMENTA


VICTOR MELO O<br />

pontes sobre o oceano<br />

papel desempenhado por Portugal no diálogo transatlântico<br />

foi o objectivo traçado por uma das mesas-redondas<br />

do I Fórum Açoriano Franklin Roosevelt.<br />

Como moderadora da mesa, a cônsul-geral<br />

de Portugal em Boston, Manuela Bairos, reconheceu<br />

que Portugal é hoje “um trunfo para<br />

a Europa, no que diz respeito às relações<br />

transatlânticas”, sobretudo por causa dos<br />

“laços hoje existentes entre Portugal e os<br />

Estados Unidos”. Laços, referiu a cônsul, que<br />

nos últimos tempos têm permitido o desenvolvimento<br />

de projectos de parceria estratégica<br />

em diversas áreas (como a ciência e a<br />

tecnologia) entre os dois países. Como exemplo,<br />

Manuela Bairos apontou o projecto de<br />

construção de um centro de observação das<br />

alterações climáticas na ilha Graciosa, resultante<br />

de um protocolo assinado com a<br />

Universidade de Massachusetts.<br />

Ian Lesser, do German Marshall Fund,<br />

preferiu referir-se sobretudo à União<br />

Europeia e à forma como, do outro lado<br />

do Atlântico, os Estados Unidos encaram o<br />

POR mArCo Leitão siLvA<br />

posicionamento dos 27 Estados-membros:<br />

“Estamos hoje a assistir a um renascimento<br />

do diálogo em questões como a energia<br />

ou a segurança”, disse.<br />

O deputado do PSD à Assembleia<br />

Legislativa dos Açores, José Manuel Bolieiro,<br />

destacou a importância dos Açores, encarados<br />

por Washington como um parceiro<br />

estratégico do ponto de vista militar – razão<br />

que explica as novas parcerias militares.<br />

Deixou um desafio ao Governo português:<br />

“Porque não redigir um novo Tratado de<br />

Cooperação Militar, que seja aprovado tanto<br />

pelo Congresso dos Estados Unidos, como<br />

pela Assembleia da República?”.<br />

André Bradford destacou a importância<br />

actual dos Açores enquanto vantagem negocial<br />

do ponto de vista diplomático: “Hoje,<br />

o arquipélago assume-se até como mediador<br />

entre os dois lados do Atlântico.”<br />

André bradford defendeu a posição do arquipélago como mediador entre os dois lados do Atlântico.<br />

roosevelt<br />

e os Açores em livro<br />

Com a primeira<br />

edição do Fórum<br />

Açoriano Franklin<br />

D. Roosevelt<br />

sobre Relações<br />

Transatlânticas foi<br />

lançado o livro<br />

Franklin Roosevelt e os<br />

Açores nas duas<br />

Guerras Mundiais,<br />

uma iniciativa<br />

conjunta do<br />

Governo Regional<br />

dos Açores e da<br />

FLAD. Rui de Vallera, da <strong>Fundação</strong>, apresentou<br />

o livro que homenageia o importante<br />

papel do Presidente Roosevelt na política<br />

internacional do século passado, bem como<br />

a atenção que prestou as questões geopolíticas<br />

suscitadas pela posição geográfica do<br />

arquipélago dos Açores.<br />

Coordenado pelo professor Luís Nuno<br />

Rodrigues, este trabalho editado pela<br />

FLAD, com o apoio do IPRI, reflecte a história<br />

da relação pessoal que se estabeleceu<br />

entre Franklin Roosevelt e o arquipélago<br />

dos Açores.<br />

Novas interpretações sobre a evolução<br />

das relações luso-americanas durante o<br />

século XX, assim como novas perspectivas<br />

sobre a história açoriana são apresentadas<br />

nesta edição bilingue (em português e<br />

inglês), composta por 10 capítulos escritos<br />

por 10 autores, quatro americanos e<br />

seis portugueses.<br />

À biografia de Franklin Roosevelt, por<br />

Cynthia Koch, directora da Biblioteca<br />

Presidencial e do Museu Franklin D.<br />

Roosevelt, em Nova Iorque, seguem-se três<br />

capítulos por Carlos Enes, José Medeiros<br />

Ferreira, e Álvaro Monjardino, que abordam<br />

o tema da I Guerra Mundial, aprofundando<br />

realidades distintas da história<br />

açoriana durante esse período e obviamente<br />

da passagem do Presidente norte-americano<br />

pela Horta e Ponta Delgada.<br />

Os cinco capítulos seguintes, da autoria<br />

de Adam Seipp, Luís Andrade, Luís Nuno<br />

Rodrigues, Warren Kimball e Philip Mundy,<br />

tratam o período da II Guerra Mundial.<br />

Para finalizar, António José Telo dá-nos um<br />

panorama geral sobre a existência e a razão<br />

de ser de bases estrangeiras em Portugal<br />

durante as duas guerras mundiais do<br />

século XX e o período da Guerra Fria.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 45


RUI OCHôA<br />

46<br />

portuGAL/euA<br />

Apresentação do livro Carlucci vs. Kissinger: Os EUA e a Revolução Portuguesa<br />

um olhar sobre a revolução de Abril<br />

a partir de Washington<br />

Com o desafio em mente, e sem a pretensão de sistematizar uma vez mais<br />

o processo de transição iniciado pelo 25 de Abril de 1974,<br />

Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá partiram para o terreno e investigaram.<br />

À distância de mais de trinta anos, é hoje<br />

conhecido o profundo interesse que a alvorada<br />

democrática portuguesa teve em<br />

Washington. Entre dúvidas e receios, os<br />

Estados Unidos acompanharam de perto<br />

os primeiros passos da “ebulição democrática”<br />

portuguesa. Para a História, ficou o<br />

famoso conflito entre o antigo embaixador<br />

dos Estados Unidos em Portugal, Frank<br />

Carlucci, e o secretário de Estado norte-<br />

-americano, Henry Kissinger, com olhares<br />

díspares sobre o futuro (ainda) incerto do<br />

sistema político português.<br />

Conhecer as preocupações e diferendos<br />

suscitados na Casa Branca pela afirmação<br />

das forças revolucionárias de esquerda<br />

(durante o célebre Verão Quente de 1975),<br />

POR mArCo Leitão siLvA<br />

abre por isso mesmo caminho a uma nova<br />

perspectiva, vinda de fora, acerca da alvorada<br />

democrática em Portugal. Com o desafio<br />

em mente, e sem a pretensão de<br />

sistematizar uma vez mais o processo de<br />

transição iniciado pelo 25 de Abril de<br />

1974, Bernardino Gomes e Tiago Moreira<br />

de Sá partiram para o terreno e investigaram.<br />

Com base em material de arquivo<br />

nacional e norte-americano, os dois autores<br />

reconstituíram os traços essenciais do<br />

diferendo entre o embaixador Frank<br />

Carlucci e o secretário de Estado Henry<br />

Kissinger: Carlucci, mais optimista em relação<br />

ao futuro da democracia portuguesa,<br />

e Kissinger, céptico face a um processo<br />

conduzido pela esquerda revolucionária,<br />

Carlos Gaspar (ipri), rui machete (FLAD) e o ministro dos negócios estrangeiros Luís Amado.<br />

que poderia colocar Portugal sob influência<br />

soviética, num mundo então bipolar,<br />

marcado pela Guerra Fria.<br />

Assim nasce a obra Carlucci vs. Kissinger: Os<br />

eUA e a Revolução Portuguesa, editada pela Dom<br />

Quixote. Reconhecendo o valor da obra,<br />

a FLAD propôs-se promovê-la numa sessão<br />

de apresentação pública.<br />

Rui Machete, presidente da FLAD, marcou<br />

presença na sessão e deixou elogios àquilo<br />

que considerou ser um “excelente trabalho<br />

de investigação”, dada a luz que lança sobre<br />

aspectos até agora desconhecidos, tomando<br />

como exemplo os juízos de valor tecidos<br />

pela Administração norte-americana acerca<br />

da condução do processo revolucionário.<br />

Sobre o diferendo entre Carlucci e Kissinger,<br />

Rui Machete não tem dúvidas: é o embaixador<br />

quem “acaba por ganhar a aposta”<br />

sobre o futuro da democracia portuguesa.<br />

Afinal, “Mário Soares não foi o Kerenski<br />

da revolução, como Kissinger profetizava”.<br />

Um comentário que fez sorrir o antigo<br />

Presidente, também presente na sessão de<br />

apresentação da obra.<br />

Mas onde uns viram conflito, outros<br />

inferiram meras divergências. Jaime<br />

Gama, presidente da Assembleia da<br />

República, acredita que não terá havido<br />

propriamente um conflito entre Carlucci<br />

e Kissinger, mas apenas uma divergência<br />

de posições. Convidado especial para a<br />

apresentação da obra, Jaime Gama confessou-se<br />

espantado com o tipo de materiais<br />

a que os dois investigadores tiveram<br />

acesso. Com a ajuda do arquivo norteamericano,<br />

Tiago Moreira de Sá e<br />

Bernardino Gomes consultaram registos<br />

de conversas telefónicas, transcrições de<br />

conversas de gabinete e outros documentos<br />

que fazem parte do segredo de Estado<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


RUI OCHôA<br />

– elementos documentais que traduzem<br />

o íntimo funcionamento do sistema político<br />

norte-americano. “Os únicos segredos<br />

acabam por estar na cabeça daqueles<br />

que dirigem”, ironizou Jaime Gama.<br />

Ao expor os meandros do acompanhamento<br />

norte-americano do processo revolucionário,<br />

com base em documentos até<br />

hoje desconhecidos, Tiago Moreira de Sá<br />

diz ter compreendido agora a “complexidade<br />

da tarefa dos protagonistas” da transição<br />

democrática. E já de olhos postos<br />

em 2009, o investigador do Instituto<br />

Português de Relações Internacionais<br />

(IPRI) deixou um apelo: “Os 35 anos da<br />

revolução [de 25 de Abril de 1974] vão<br />

ser uma boa oportunidade para tornar a<br />

História da democracia portuguesa um<br />

pouco mais conhecida.” Ao colega investigador,<br />

Bernardino Gomes deixou também<br />

elogios sentidos.<br />

portuGAL/euA<br />

os autores do livro, bernardino Gomes (à esq.) e tiago moreira de sá entre o casal soares.<br />

‘ tem sido uma<br />

experiência inspiradora<br />

ver um país a emergir<br />

de 50 anos de ditadura,<br />

estar ao pé de uma nova<br />

fase de totalitarismo e<br />

recuperar por vontade do<br />

povo […] é um caso único<br />

na história do mundo.<br />

’<br />

Sobre as divergências entre Carlucci e<br />

Kissinger que serviram de mote ao livro,<br />

Bernardino Gomes deixou uma citação do<br />

embaixador, proferida no Congresso<br />

durante o período de transição democrática<br />

– um exemplo do optimismo que<br />

Carlucci quis transmitir à Administração<br />

norte-americana, face ao futuro político<br />

português: “Tem sido uma experiência<br />

inspiradora ver um país a emergir de 50<br />

anos de ditadura, estar ao pé de uma nova<br />

fase de totalitarismo [período do PREC]<br />

e recuperar por vontade do povo […]<br />

É um caso único na História do mundo.”<br />

Acompanhando de perto a definição do<br />

sistema político, Washington acabaria por<br />

influenciar também o rumo de Portugal.<br />

Afinal, diz Carlos Gaspar, director do IPRI,<br />

“se a política norte-americana [em relação<br />

a Portugal] tivesse sido diferente, o desfecho<br />

democrático da revolução poderia<br />

não ter existido”.<br />

Para a apresentação do livro foi convidado<br />

o ex-embaixador dos Estados Unidos<br />

em Portugal, Frank Carlucci, que não pôde<br />

contudo estar presente, tendo ainda assim<br />

enviado aos autores uma mensagem, cujo<br />

conteúdo Rui Machete revelou: “O livro<br />

é um relato apaixonante e factual. Foi<br />

muito interessante para mim ler telegramas<br />

que fiz… E ainda mais interessante<br />

ler as observações depreciativas que o<br />

Henry [Kissinger] fez sobre mim.” Um<br />

conflito que ficou para a História de<br />

Portugal e dos Estados Unidos. Um olhar<br />

sobre a alvorada da democracia portuguesa,<br />

a partir do outro lado do Atlântico,<br />

agora registado em livro por Bernardino<br />

Gomes e Tiago Moreira de Sá.<br />

Entrevista a Tiago<br />

Moreira de Sá<br />

paralelo [p] o que foi que mais o surpreendeu<br />

na investigação que fez para esta<br />

obra?<br />

tiago moreira de sá [tms] A ligação intensa<br />

e constante dos Estados Unidos aos<br />

militares moderados, e em particular a<br />

Melo Antunes e ao seu grupo, foi uma<br />

dessas revelações: os Estados Unidos chegaram<br />

até a prometer apoio militar aos<br />

militares moderados, caso tal fosse necessário,<br />

por altura do 5 de Novembro! Para<br />

além disso, surpreendeu-me o facto de a<br />

perspectiva de Kissinger ter sido muito<br />

mais do que uma simples teoria: foi de<br />

facto uma política que, em determinado<br />

momento, idealizou para Portugal. Um<br />

outro aspecto tem que ver com o papel-<br />

-chave desempenhado por Donald Rumsfeld<br />

(na altura chief of staff do Presidente<br />

Ford), que permitiu o acesso e o apoio<br />

directos da Casa Branca a Carlucci.<br />

[p] Do “mano a mano” entre Carlucci e<br />

Kissinger, quem saiu vencedor?<br />

[tms] Tendo em conta o resultado final<br />

para a democracia em Portugal, diria que<br />

Carlucci foi vencedor, no sentido em que<br />

a estratégia por ele defendida para o<br />

nosso país acabou por se concretizar, ou<br />

seja, a vitória da via democrática em<br />

Portugal.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 47


48<br />

portuGAL/euA<br />

A “caixa de ferramentas”<br />

do diplomata<br />

A Comunidade das democracias lançou nos estados Unidos um manual destinado<br />

a diplomatas com o objectivo de os ajudar na promoção da democracia,<br />

enquanto no desempenho das suas funções junto de nações cujas forças vivas<br />

aspirem a viver num regime pluripartidário.<br />

A Comunidade das Democracias, uma<br />

organização internacional que congrega<br />

125 países de vários continentes, lançou<br />

nos Estados Unidos um manual destinado<br />

a diplomatas com o objectivo de os ajudar<br />

na promoção da democracia, enquanto no<br />

desempenho das suas funções junto de<br />

nações cujas forças vivas aspirem a viver<br />

num regime pluripartidário. O evento teve<br />

lugar na Embaixada de Portugal, país<br />

que preside actualmente à Comunidade<br />

POR FiLipe vieirA*<br />

e que será igualmente o Estado anfitrião<br />

de uma cimeira ministerial marcada para<br />

o Verão de 2009, em Lisboa.<br />

Com um prefácio de Vaclav Havel, o<br />

arquitecto da “Revolução de Veludo” na<br />

República Checa, o manual é considerado<br />

a “caixa de ferramentas” dos diplomatas<br />

e baseia-se em múltiplas experiências vividas<br />

em experiências bem-sucedidas de<br />

transições para a democracia na Ucrânia,<br />

no Chile, na África do Sul, na Serra Leoa<br />

e na Tanzânia.<br />

Como sublinhou João de<br />

Vallera, o embaixador de<br />

Portugal, durante a sessão<br />

de lançamento, “o manual<br />

reconhece que a democracia<br />

não pode ser exportada ou<br />

importada, mas que tem<br />

que ser desenvolvida pelos<br />

cidadãos dos países em<br />

causa”. Vallera sublinhou, a<br />

propósito, que “tanto a<br />

sociedade civil como os<br />

governos podem beneficiar<br />

da utilização do manual,<br />

obtendo um melhor conhecimento<br />

do que podem<br />

esperar dos diplomatas, que<br />

na diplomacia pública dos<br />

dias de hoje representam<br />

também eles as suas próprias<br />

sociedades civis”. Este<br />

conceito foi reafirmado<br />

durante a intervenção de<br />

Paula Dobriansky, a subsecretária<br />

de Estado americana<br />

para a Democracia e<br />

Questões Globais, uma das<br />

mais influentes personalida-<br />

‘ os diplomatas<br />

“são emissários não<br />

apenas dos chefes<br />

de estado, mas também<br />

dos povos das suas<br />

democracias”.<br />

’<br />

des do gabinete de Condollezza Rice.<br />

A premissa perfilhada pela Comunidade<br />

das Democracias e expressa por Bronislaw<br />

Mistzal, director do Secretariado<br />

Permanente da organização, é a de que<br />

“nos nossos dias, a diplomacia em democracia<br />

deve reflectir os valores fundamentais”<br />

e a de que os diplomatas “são<br />

emissários não apenas dos chefes de<br />

Estado, mas também dos povos das suas<br />

democracias”.<br />

O objectivo último deste Manual do<br />

diplomata para o Apoio ao desenvolvimento da<br />

democracia é o de treinar o corpo diplomático<br />

dos países membros. A ideia inicial<br />

foi lançada pelo embaixador americano<br />

Mark Palmer, com base na sua experiência<br />

na Hungria durante a transição daquele<br />

país do comunismo para a democracia.<br />

O projecto acabou por ser concretizado<br />

por uma equipa liderada pelo diplomata<br />

canadiano Jeremy Kinsman em parceria<br />

com a Escola Woodrow Wilson de Serviços<br />

Públicos e Internacionais, da Universidade<br />

de Princeton. Kinsman pretende a colaboração<br />

futura do Colégio da Europa, em<br />

Bruges, tendo em vista a realização de dois<br />

workshops regionais.<br />

* Jornalista em Washington dC<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


portuGAL/euA<br />

No dia 27 de Setembro de 1957, a ilha açoriana do Faial acordava em sobressalto.<br />

era a erupção de um vulcão, no mar, perto dos Capelinhos. durante um ano, erupções<br />

vulcânicas e tremores de terra ameaçaram a região. As cinzas cobriram plantações e os<br />

terramotos destruíram aldeias, deixando mais de um milhar de pessoas sem tecto.<br />

Ninguém morreu, o que muitos consideraram um milagre.<br />

e uma nova vida nasceria...<br />

A tragédia dos Capelinhos, relembrada em<br />

várias cerimónias e comemorações o ano<br />

passado, foi um marco na história dos Açores.<br />

É este acontecimento que abre as portas para<br />

uma nova vaga de emigração para os Estados<br />

Unidos, numa escala sem precedentes.<br />

Há cinquenta anos, o impacto de um<br />

acontecimento geológico que arrasou<br />

casas e destruiu os meios de subsistência<br />

agrícolas, foi devastador. Uma pequena<br />

os Capelinhos<br />

e a emigração açoriana<br />

POR CLArA pinto CALDeirA<br />

ilha portuguesa, rural e pobre, tornou-se<br />

alvo de muitas atenções. Mota Amaral,<br />

presidente do Governo Regional dos<br />

Açores entre 1976 e 1995, embora muito<br />

novo na época, lembra que “durante<br />

semanas e meses, os Açores foram notícia,<br />

com direito a reportagens na imprensa<br />

internacional. Muitos cientistas do ramo<br />

visitaram o vulcão, que se tornou uma<br />

espécie de laboratório natural”. Gerou-se<br />

Aprovado o Azorean refugee Act, muitos tentaram embarcar no primeiro avião para os estados unidos<br />

(foto de Alfredina silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />

também uma enorme onda de solidariedade<br />

em todos os açorianos e nas comunidades<br />

emigrantes. São precisamente as<br />

comunidades residentes nos Estados<br />

Unidos que levam a cabo um movimento<br />

de sensibilização que chegará ao<br />

Senado, envolvendo o futuro Presidente<br />

John F. Kennedy, num tempo em que um<br />

acordo formal sobre a permanência americana<br />

nas Lajes estava a ser negociado.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 49


históriA De umA Lei<br />

As condições de vida difíceis tornaram as<br />

gentes açorianas emigrantes desde o século<br />

XIX. Os Estados Unidos eram um dos<br />

destinos preferenciais, tal como o Canadá<br />

e o Brasil. Mas se a seguir à ratificação da<br />

Constituição americana a abertura à emigração<br />

era considerável, num país ainda<br />

em construção, o século XX inaugura as<br />

restrições mais severas à chegada de estrangeiros,<br />

sobretudo depois da I Guerra<br />

Mundial. Nativos estabelecidos receavam<br />

a chegada de ideais diferentes, como o<br />

comunismo e o socialismo, e os sindicatos<br />

da indústria viam na mão-de-obra barata<br />

uma ameaça às suas reivindicações laborais.<br />

Deste contexto resulta, nos anos de 1920,<br />

a aprovação do sistema de cotas, que limita<br />

a imigração a 150 mil europeus por<br />

ano. A cota era estabelecida por nacionalidade:<br />

cada país tinha direito à entrada de<br />

dois por cento do número total de cidadãos<br />

seus já residentes nos Estados Unidos.<br />

Quando o vulcão dos Capelinhos assola o<br />

Faial, apenas 400 portugueses tinham acesso<br />

garantido ao sonho americano.<br />

Mais próxima do pesadelo, a época é<br />

particularmente dura nos Açores. Mota<br />

Amaral afirma: “As décadas de 50 e 60<br />

foram de grandes dificuldades económi-<br />

50<br />

portuGAL/euA<br />

cas nos Açores, com falta de emprego e<br />

salários muito baixos.” Em pleno Estado<br />

Novo, as ilhas continuam a carecer de<br />

desenvolvimento e o isolamento<br />

é muito sentido.<br />

Entre os anos de 1920 e<br />

1950, a população do<br />

arquipélago aumentou em<br />

cerca de 100 mil, fixando-<br />

-se nas 328 mil pessoas, o<br />

que agravava as condições<br />

de sobrevivência.<br />

Os acontecimentos nos<br />

Capelinhos extremam uma<br />

situação já muito complicada.<br />

A resposta da comunidade<br />

açoriana nos Estados<br />

Unidos é imediata. Atentos à evolução do<br />

ano negro, através da imprensa luso-americana<br />

e por correspondência com familiares,<br />

iniciam um processo de sensibilização<br />

política, reunidos em torno de Joseph Perry<br />

Jr., representante do Estado eleito por<br />

Rhode Island, do Partido Democrata,<br />

americano descendente de faialenses.<br />

Congressistas e senadores de estados com<br />

população portuguesa foram inundados por<br />

cartas e telegramas, e nem o Presidente<br />

Eisenhower pôde ficar indiferente. É então<br />

que John Pastore, amigo pessoal de Joseph<br />

Perry Jr., leva ao Senado uma proposta que<br />

autorizava vistos à população afectada pela<br />

tragédia dos Capelinhos.<br />

‘ nativos estabelecidos receavam<br />

a chegada de ideais diferentes,<br />

como o comunismo e o socialismo,<br />

e os sindicatos da indústria viam<br />

na mão-de-obra barata uma ameaça<br />

às suas reivindicações laborais.<br />

’<br />

Neste processo, emerge um apoiante<br />

determinante: John F. Kennedy, senador de<br />

Massachusetts, futuro Presidente dos<br />

Estados Unidos. Conhecido pelas suas posições<br />

anticotas, viria mesmo a publicar nesse<br />

ano um pequeno ensaio sob o título<br />

A Nation of Immigrants, em que defendia a<br />

abolição daquele sistema, argumentando<br />

que “não respondia às necessidades nacionais<br />

nem garantia os objectivos internacionais<br />

numa era de interdependência<br />

entre nações”. No Senado, defende a tradição<br />

hospitaleira do país, e acrescenta:<br />

o vulcão em actividade há cinquenta anos (foto de manuel Cristiano da silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


portuGAL/euA<br />

Kennedy recebendo uma placa de agradecimento como símbolo de gratidão dos faialenses<br />

(foto de António rosa Furtado, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />

“Este é um caso trágico que merece atenção<br />

em todos os sentidos, particularmente<br />

porque as pessoas dos Açores provaram<br />

já ser excelentes cidadãos.” O senador<br />

Hagen, também apoiante da medida, fala<br />

assim dos açorianos: “Quase sem excepção,<br />

são pessoas de grande carácter e<br />

capacidade de realização. Subscrevem os<br />

princípios do nosso governo e instituições<br />

económicas. São diligentes. Gostam<br />

de aprender.” Vários senadores, entre os<br />

quais Kennedy, sublinham ainda a existência<br />

de boas relações entre Portugal e<br />

os Estados Unidos.<br />

As relações entre os dois países são marcadas,<br />

desde sempre, pelas questões atlânticas.<br />

Durante a I Guerra Mundial, os<br />

americanos estabeleceram uma base naval<br />

em Ponta Delgada, apenas para fins militares.<br />

A partir da II Guerra Mundial instalam-se<br />

nas Lajes de forma informal. O<br />

primeiro acordo começa a desenhar-se<br />

ainda bilateralmente, antes do tratado da<br />

Aliança do Norte, em 1949. Depois, em<br />

1951, e já nas duas plataformas negociais,<br />

os americanos estabelecem um acordo<br />

provisório com Portugal, que se vai estendendo<br />

ao longo de seis anos. Em 1957,<br />

quando a Natureza mostra a sua fúria, os<br />

políticos ainda tentavam entender-se, em<br />

condições difíceis de harmonizar. Medeiros<br />

Ferreira, açoriano, professor universitário<br />

na área da História das Relações Inter-<br />

nacionais e ex-ministro dos Negócios<br />

Estrangeiros, situa o processo legislativo<br />

americano sobre a imigração neste âmbito:<br />

“A erupção dos Capelinhos vai dar a<br />

oportunidade, que considero sincera, mas<br />

que se pode englobar nesse contexto, de<br />

os EUA mostrarem que estão atentos e<br />

solidários com a dimensão civil e humana<br />

das relações luso-americanas.”<br />

The Azorean Refugee Act, aprovado a 2<br />

de Setembro de 1958, concedeu vistos a<br />

1500 famílias. Dois anos depois, uma actua<br />

-lização da medida concedeu mais 500<br />

vistos. “Se tivéssemos ficado, a pobreza<br />

perseguia-nos para o resto da vida. Foi uma<br />

coisa má que se tornou boa.” As palavras<br />

são de Leonilda Andrade, da Praia do Norte,<br />

uma das seis mil pessoas que se estima<br />

terem saído do Faial entre 1958 e 1960.<br />

E não só faialenses emigraram. Todas as<br />

ilhas beneficiaram da abertura à imigração,<br />

com o apoio do governador da Horta<br />

Freitas Pimentel, mas com alguma resistência<br />

de Salazar, que tentou, com pouco<br />

sucesso, cooptar pessoas para as colónias.<br />

A lei de 1958 é considerada o primeiro<br />

passo rumo à grande reforma de 1965,<br />

que aboliu as cotas de emigração, já sob<br />

a égide do Presidente John F. Kennedy,<br />

com reflexos profundos nos Açores.<br />

A emiGrAção AçoriAnA:<br />

um retrAto em evoLução<br />

Desde os Capelinhos, até à década de 1980,<br />

a emigração açoriana para os Estados<br />

Unidos não parou de crescer. Nesta época,<br />

a população no arquipélago diminuiu um<br />

terço. Só no final da década de 1970 se<br />

verifica um abrandamento da chegada de<br />

açorianos aos Estados Unidos.<br />

Mota Amaral aponta alguns factores<br />

explicativos: “A arrancada do desenvolvimento<br />

nos Açores, com a implantação do<br />

regime autonómico democrático, modificou<br />

as expectativas.” A importância dos<br />

fundos europeus para o desenvolvimento<br />

da região e a evolução da própria sociedade<br />

americana também contribuíram<br />

para o país deixar de ser visto como a<br />

terra da abundância.<br />

Embora a emigração tenha abrandado, a<br />

população portuguesa nos Estados Unidos<br />

não parou de crescer, engrossada pelas<br />

segunda e terceira gerações. Neste momento,<br />

cerca de um milhão de pessoas de origem<br />

portuguesa vive nos Estados Unidos,<br />

e cerca de metade provém dos Açores.<br />

Os níveis de educação dos portugueses<br />

emigrados têm vindo a melhorar, embora<br />

seja no ensino universitário que o caminho<br />

ainda está por percorrer. Medeiros<br />

Ferreira salienta o seguinte: “Há duas ou<br />

três universidades na Costa Leste que têm<br />

departamentos de estudos portugueses e<br />

que têm bastante visibilidade desse ponto<br />

de vista. Começa a haver uma maior integração<br />

universitária.”<br />

A nível económico, as pessoas de origem<br />

portuguesa têm rendimentos familiares<br />

10 por cento superiores aos da<br />

população em geral e a percentagem de<br />

pobreza é menor.<br />

TESTEMUNHOS<br />

Carmen monteiro<br />

A erupção dos Capelinhos acabou com a<br />

vida tal como a conhecíamos no Capelo.<br />

Fomos enviados para a Horta, para viver<br />

em asilos, depois para uma aldeia vizinha<br />

[…] A minha mãe, Olívia, escreveu para a<br />

prima na América, que tinha visto uma vez<br />

há vinte anos atrás, para lhe pedir patrocínio<br />

à nossa emigração. Nunca tínhamos<br />

saído da pequena ilha do Faial, e muito<br />

menos viajado num avião, mas aí estávamos<br />

nós a partir de avião para uma nova<br />

vida nos Estados Unidos.<br />

miguel Canto e Castro<br />

Eu vivia em Los Banos há quatro anos<br />

quando a primeira vaga de imigrantes dos<br />

Açores chegou a Merced County. Estávamos<br />

em 1959. A cidade de Los Banos recebeu<br />

cerca de 1 famílias de sinistrados, da ilha<br />

do Faial. Começaram a trabalhar em leitarias<br />

e como ajudantes das vacarias logo<br />

que chegaram.<br />

Para a elaboração deste artigo foi consultado<br />

o livro Capelinhos: A Volcano of Synergies,<br />

Azorean emigration to America (2008), Tony<br />

Goulart (coord.), São José, Califórnia:<br />

Portuguese Heritage Publications of<br />

Califórnia.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 51


5<br />

portuGAL/euA<br />

Luís dos santos Ferro<br />

ou a engenharia das artes<br />

O encontro foi no Grémio Literário, inevitavelmente.<br />

Ali, está em casa, o halo de<br />

Eça permeando as salas que sabe de cor.<br />

“Era aqui que eles, Os Vencidos da Vida,<br />

vinham muito.” Na biblioteca, prontamente<br />

reservada após o jantar, o serão não teve<br />

pressa. Amável, urbano, sem pedantismos<br />

– assim se nos apresenta Luís dos Santos<br />

Ferro, engenheiro de formação que um<br />

“Tenho prazer de viver, e vivo bem de muitas maneiras.”<br />

POR sóniA GrAçA*<br />

decisivo pendor artístico consagrou, metade<br />

da carreira, à cultura. O ex-director da<br />

FLAD aceitou falar de si à Paralelo. Que<br />

falem dele. “Uma extravagância! Caí das<br />

nuvens…”<br />

Nascido a 12 de Julho de 1939 em<br />

Lisboa, Luís Ferro é bafejado pelo amor<br />

exclusivo dos pais, com quem divide<br />

morada largos anos na Rua do Andaluz.<br />

O primeiro ciclo de sete anos no Liceu<br />

Camões revela um aluno próspero, com<br />

jeito para as línguas, em especial o francês,<br />

que apura na Alliance Française. Em casa,<br />

o pai, professor de Letras, corrige a aritmética<br />

e sugere leituras; a mãe, devotada<br />

ao lar, aplana a disciplina com uns lances<br />

sobre o piano. Curioso por natureza, Luís<br />

Ferro correspondia e, aos 16 anos, vence<br />

em 1972, no aeroporto de Lisboa, com o pianista Arthur rubinstein, a marquesa de Cadaval e nella rubinstein.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

EDUARDO GAGEIRO


um concurso da Alliance com um ensaio<br />

precoce sobre L’existentialisme est un Humanisme,<br />

de Sartre, que o leva a Paris.<br />

Mas o verdadeiro apelo era o da ciência,<br />

o da experimentação. “Nunca quis ser<br />

filósofo ou professor de literatura”, sintetiza.<br />

Dispensado do exame de admissão,<br />

escolhe em 1956 o Instituto Superior<br />

Técnico para cursar Engenharia Químico-<br />

-Industrial, num tempo em que os caloiros<br />

eram recebidos com um concerto da<br />

Orquestra Sinfónica Nacional. Entre a teoria<br />

e o laboratório, Luís Ferro volteia toda<br />

a matemática que sabia. Em Química<br />

Analítica, arrebata 18 valores, convencendo<br />

Fraústo da Silva, à data professor assistente,<br />

que lhe captou outros interesses:<br />

“Era inteligente e trabalhador, mas estava<br />

apaixonado pela arte e pela música. Em<br />

parte talvez por minha culpa, que também<br />

sou devoto de ópera.”<br />

Embalado pela Emissora Nacional, vai<br />

ao São Carlos noites sucessivas, já então<br />

seduzido por Mozart e Wagner: primeiro<br />

com bilhetes de claque, mais tarde convidado<br />

assíduo para o camarote de crítica<br />

do musicólogo João de Freitas Branco.<br />

João Furtado Coelho, colega de curso e<br />

professor jubilado de Matemática, era<br />

cúmplice na afinidade: “Gostávamos de<br />

música clássica, de ir a exposições e<br />

temos em comum um certo sentido de<br />

humor.” A camaradagem flui na Juventude<br />

Musical Portuguesa, espécie de conservatório<br />

laico que trazia ao Tivoli notáveis<br />

artistas internacionais a baixos cachets.<br />

Eleito secretário-geral entre 1963 e 1975,<br />

Luís Ferro alarga repertórios e cresce<br />

como auditor, sob a pedagogia amiga de<br />

Freitas Branco, que também colaborava<br />

na revista Arte Musical.<br />

Em 1960 e no ano seguinte, estagia em<br />

dois laboratórios nos arredores de Paris,<br />

e trava conhecimento com Louis de<br />

Broglie, Nobel de Física; pretexto suficiente<br />

também para investigar Eça de Queirós,<br />

eterno ideal literário, e recuperar locais<br />

biográficos. Philippe Mayer, proprietário<br />

da primeira casa do escritor em Neuilly-<br />

-sur-Seine, deixa-se cativar pelo jovenzinho<br />

e, décadas mais tarde, dá-lhe<br />

permissão para ali colocar uma placa<br />

comemorativa do 150.º aniversário<br />

do nascimento de<br />

Eça – descerrada por Jorge<br />

Sampaio e patrocinada pelo<br />

Grémio. Em 1996, era<br />

Sarkozy maire de Neuilly.<br />

“Fez os contactos e preparou<br />

tudo com minúcia”,<br />

atesta José Manuel dos<br />

Santos, à data assessor de<br />

Sampaio para os assuntos<br />

portuGAL/euA<br />

culturais. “Tem uma memória histórica,<br />

um sentido da tradição e gosta dos pequenos<br />

e grandes rituais.”<br />

Isso era evidente já em 1961, quando<br />

se soube que a última morada, onde Eça<br />

faleceu, estava ameaçada. De volta a<br />

Portugal, todo espírito de missão, escreve<br />

um artigo alarmado no diário de Lisboa<br />

e remete-o à filha do escritor,<br />

D. Maria Eça de Queiroz, que vivia em<br />

Tormes. Rápida sintonia entre duas gerações,<br />

desfiam memórias à lareira e trocam<br />

correspondência até 1970, ano em que<br />

faleceu a guardiã do espólio. “Nunca estive<br />

tão perto do Eça como nessa altura.<br />

Conheci manuscritos que ninguém mais<br />

conheceu pela simples razão de que ela<br />

confiou em mim.” Mais tarde escreveria<br />

um longo artigo evocativo para o dicionário<br />

compilado por Alfredo Campos Matos,<br />

outro queirosiano de quem, nos idos de<br />

1960, se fez amigo e interlocutor privilegiado:<br />

“O coleccionismo e a bibliofilia<br />

são duas facetas dessa paixão. Uso muitas<br />

vezes o arquivo dele para trabalhos que<br />

vou publicando.” Sintra era o cenário de<br />

muitos serões de tertúlia e música, ambos<br />

vizinhos em casas alugadas (todas as<br />

férias e fins-de-semana) pela marquesa<br />

de Cadaval – na sua residência, entre jantares<br />

e concertos, perambulavam artistas<br />

de todo o mundo e inclusive o último<br />

rei de Itália, Humberto II. Graças a ela,<br />

Luís Ferro depura o humanismo e a<br />

melomania: “Era o testemunho vivo de<br />

uma história, tinha antepassados grandiosos.<br />

Através dela conheci figuras como<br />

Rubinstein, Rostropovitch, Barenboim<br />

ou Jacqueline du Pré.”<br />

o treino DA enGenhAriA<br />

Em 1963, deixa o Instituto Superior<br />

Técnico com uma média de 15 valores.<br />

A disciplina serviu-lhe de base para a boa<br />

performance, primeiro no Laboratório de<br />

Física e Energia Nuclear; depois na<br />

Sociedade Nacional de Sabões, onde se<br />

mantém até 1980 à frente dos Estudos e<br />

Projectos, lado a lado com o proletariado.<br />

O director técnico, Luís Núncio, tinha nele<br />

um colaborador de ouro: “Era muito perfeccionista.<br />

Até as saídas preparava com<br />

grande precisão, os hotéis sempre bem<br />

escolhidos.” O fascínio das viagens e um<br />

pensamento ecuménico cedo se revelaram.<br />

“Tem uma paixão particular por Veneza<br />

e orientou-me na primeira visita, há muitos<br />

anos. Também foi através dele que<br />

conheci René Huyghe, no Grémio, e<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 53


D.R.<br />

54<br />

portuGAL/euA<br />

santos Ferro (o primeiro à esquerda) com um grupo de músicos de várias nacionalidades no Congresso<br />

da Juventude musical, em Florença, 1971. o segundo a contar da direita é o maestro álvaro Cassuto.<br />

Com saul bellow, nobel da Literatura, e bernardino Gomes no auditório da FLAD.<br />

quando expus pintura nos Estados Unidos,<br />

em 1983, não deixou de me dar contactos<br />

interessantes”, testemunha o pintor e<br />

amigo de infância Eduardo Nery.<br />

Instalado o PREC (Processo Revolucionário<br />

em Curso), com os patrões desorientados,<br />

os salários estagnam. Ferro não se acostuma<br />

e sai, com brio: “Cheguei a participar<br />

numa greve, coisa impensável para os<br />

engenheiros! No fim, tive direito a um<br />

louvor da comissão de trabalhadores.”<br />

Os cinco anos seguintes, passados na<br />

empresa Lorilleux Lefranc, seriam os derradeiros<br />

como engenheiro.<br />

A mudança nunca lhe foi penosa,<br />

sobretudo porque a intuía e preparava.<br />

Em 1985, torna-se evidente que a sua é<br />

uma rara história feliz em que uma<br />

escolha não elimina definitivamente<br />

outra. Tinha acabado de ouvir falar da<br />

FLAD quando, nesse Outono, Teresa<br />

Gouveia, recém-eleita secretária de<br />

Estado da Cultura de Cavaco Silva, o<br />

convida para seu chefe de gabinete:<br />

“Escolhi-o pelas qualidades de carácter<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

D.R.


e pela inteligência. É uma pessoa culta,<br />

bem relacionada no meio e é meu<br />

amigo.” Durante um ano, garante todos<br />

os despachos e lança speeches precursores<br />

sobre mecenato, que seria lei em Agosto<br />

de 1986. “Ajudou-me a preparar e a<br />

lançar todo esse sistema”, destaca Teresa<br />

Gouveia. A indiferença política é nele,<br />

mais do que nunca, sinónimo de eficácia<br />

e subtileza. “Numa relação que tanto<br />

podia dar ensejo à concórdia como à<br />

discórdia, os nossos tempos na Secretaria<br />

de Estado serviram para cimentar um<br />

reencontro permanente e fraternal que<br />

se prolongou até hoje”, certifica Manuel<br />

Villaverde Cabral, então director da<br />

Biblioteca Nacional, salientando:<br />

“Profissional rigoroso e penetrante, o<br />

Engenheiro continua a ser, para mim,<br />

de conselho sempre útil e fiável.” “Está<br />

lá, chefe Luís?” – dirige-se-lhe o amigo<br />

e historiador José-Augusto França, à data<br />

comissário da Exposição de Arte<br />

Portuguesa do Século XIX (Paris), que<br />

aproveita a ocasião para exercitar a cumplicidade:<br />

“Tem um humor queirosiano<br />

muito interessante, uma ironia latente<br />

e um pessimismo activo.” Demais amigos<br />

ouvidos pela Paralelo são unânimes<br />

neste capítulo.<br />

o FLoresCer nA FLAD<br />

Chamado a concurso na FLAD, Bernardino<br />

Gomes, administrador até 2003, cede ao<br />

currículo e às referências: “Uma pessoa<br />

inteligente e articulada. Muitos me diziam<br />

que era formidável, organizado e interessado<br />

em questões culturais.” Luís Ferro<br />

esteve com ele na definição de políticas<br />

para a cultura, um dos sectores menos<br />

financiados. No seu gabinete, com vista<br />

para o Tejo, incontáveis foram os projectos<br />

que estudou e as bolsas de estudo que<br />

ajudou a confiar ora a americanos que<br />

vinham, ora a portugueses que iam.<br />

A Gulbenkian partilhou, por exemplo, o<br />

apoio a estudos portugueses em universidades<br />

americanas: “Telefonava-me quando<br />

chegava um pedido que dissesse<br />

respeito a ambas as fundações. Falávamos<br />

de forma franca e chegámos sempre a<br />

acordo”, diz João Pedro Garcia, director<br />

do Serviço Internacional da Gulbenkian,<br />

fixando um pormenor curioso: “Após<br />

vinte e cinco anos de contactos, sugeriu<br />

que nos tratássemos por tu. Fiquei muito<br />

orgulhoso.” Teresa Alves, académica da<br />

Faculdade de Letras, viu apoiadas pela<br />

FLAD três sabáticas num programa de intercâmbio<br />

de docentes com a Georgetown<br />

University: “Somos hoje a única faculdade<br />

que oferece uma licenciatura em<br />

portuGAL/euA<br />

Com José-Augusto França no museu Angers, em França (outubro de 2000).<br />

estudos norte-americanos. Não fosse o<br />

Engenheiro e isto não existia.”<br />

Além da Colecção de Arte, eminentes<br />

foram os projectos das fundações de<br />

Serralves e Vieira da Silva – artista de<br />

quem Luís Ferro é amigo desde os estágios<br />

em Paris. “Era o elo de ligação, foi<br />

a Paris sondar-lhe a adesão e falou com<br />

historiadores para o catalogue raisonné”, destaca<br />

Marina Ruivo, directora da <strong>Fundação</strong><br />

Arpad Szenes – Vieira da Silva. Numa das<br />

viagens, Bernardino Gomes recorda-se de<br />

um desvelo invulgar: “A Vieira pediu que<br />

levássemos urze de Sintra. Não sei como<br />

é que o engenheiro conseguiu, mas<br />

fomos com urze no avião.” Em duas décadas,<br />

muitas personalidades foram recebidas<br />

na <strong>Fundação</strong>, entre elas, George<br />

Steiner, em 2002, encontro convertido<br />

em amizade.<br />

Bernardino Gomes não hesita na retrospectiva:<br />

“É muito interessante nele a transformação<br />

de uma visão clássica em algo<br />

mais avant-garde. Não se pode pensar hoje<br />

na FLAD sem pensar no trabalho dele e<br />

na capacidade intelectual indiscutível. Era<br />

paciente, sabia dizer não com elegância.”<br />

Teresa Gouveia corrobora: “Tem a coragem<br />

moral e a generosidade de dizer sempre<br />

a verdade, por mais difícil que seja, e isso<br />

é uma qualidade raríssima.”<br />

O hoje consultor da FLAD retemperase<br />

na música (tem um camarote no São<br />

Carlos que partilha com Teresa Gouveia<br />

e outros amigos) e na bibliofilia – quer<br />

“reler”. Aqui e ali, bustos omnipresen-<br />

tes de Eça, fotografias dedicadas de<br />

Soares e de Sampaio (cujas comissões<br />

de honra apoiou, embora sempre apartidário),<br />

medalhas sucessivas. E, inesperada,<br />

uma parede coberta de nus<br />

femininos desvendando um refinado<br />

hedonismo. “Tenho prazer de viver, e<br />

vivo bem de muitas maneiras.”<br />

* Jornalista do semanário Sol<br />

Internacionalização<br />

do Grémio Literário<br />

Sócio desde 1971, Luís Ferro integra o<br />

Conselho Literário há treze anos e<br />

frequentemente substitui José-Augusto<br />

França na presidência, quando este se<br />

ausenta a Paris. Além de conferências,<br />

encontros com escritores e apresentações<br />

de filmes, o núcleo trata de organizar a<br />

cerimónia anual de aniversário do Eça.<br />

Expressivo tem sido também o papel do<br />

engenheiro na internacionalização do<br />

Clube. “Graças a ele, temos hoje cerca<br />

de 135 clubes estrangeiros com quem<br />

nos correspondemos. É um sócio cheio<br />

de iniciativa”, diz o actual presidente<br />

Macedo e Cunha.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 55<br />

D.R.


56<br />

portuGAL/euA<br />

obama ou mcCain<br />

quem elegeram os media<br />

para a presidência?<br />

Há muito que se questiona a influência dos media em períodos eleitorais.<br />

Até que ponto são os jornalistas e os comentadores responsáveis<br />

pela eleição dos governantes.<br />

Será que as diferenças no tratamento jornalístico<br />

das várias candidaturas influenciam<br />

as vitórias e as derrotas dos<br />

candidatos? Estudos sobre a cobertura jornalística<br />

das campanhas como o do Pew<br />

Research Center dão pistas que ajudam a<br />

compreender o tema.<br />

Após a derrota nas eleições presidenciais<br />

contra Ronald Reagan, em 1984, Walter<br />

Mondale convocou uma conferência de<br />

imprensa para anunciar o seu afastamento<br />

da política e aconselhar o seu partido<br />

a não voltar a nomear um candidato sem<br />

perfil mediático. Mondale interpretou os<br />

resultados eleitorais através das opiniões<br />

dos comentadores e dos jornalistas que<br />

apontavam a sua “imagem pouco apelativa”<br />

como a principal causa da derrota.<br />

Para tentar explicar situações como esta<br />

e compreender a influência dos media na<br />

escolha dos candidatos, vários estudiosos<br />

têm-se dedicado ao estudo do papel que<br />

os media desempenham nas eleições.<br />

Actualmente, os media são a principal fonte<br />

de informação política para a grande<br />

maioria dos cidadãos e não só divulgam<br />

a informação sobre a campanha e os candidatos,<br />

como também a seleccionam,<br />

tratam, reorganizam e comentam.<br />

Apesar de ainda persistir alguma falta de<br />

consenso em relação ao grau de influência<br />

dos media, uma vez que – entre outras razões<br />

– é bastante difícil estabelecer uma relação<br />

directa entre a exposição aos media e a alteração<br />

do comportamento eleitoral, pois este<br />

pode ser influenciado por inúmeros outros<br />

factores, é relativamente consensual entre<br />

vários autores que os media influenciam, pelo<br />

menos, a percepção dos contextos em que<br />

as decisões são tomadas.<br />

POR susAnA sALGADo*<br />

Noelle-Neumann, por exemplo, no seu<br />

livro A espiral do Silêncio (1980) chamou a<br />

atenção para a influência do clima da<br />

opinião sobre as decisões das pessoas e<br />

defendeu a importância desta pressão da<br />

opinião dominante, dada a natureza social<br />

das pessoas e o seu receio de isolamento.<br />

Ora, são os media que, para além de informarem<br />

sobre os candidatos e as suas<br />

‘ os media têm tendência para<br />

enquadrar a cobertura das eleições<br />

como narrativas de competição<br />

e baseiam-se nos resultados<br />

das sondagens para apresentar<br />

os candidatos e tratar as suas<br />

imagens e mensagens.<br />

’<br />

propostas, dão informação sobre as posições<br />

existentes, através da divulgação de<br />

sondagens e da interpretação que os jornalistas<br />

e os comentadores fazem dos<br />

vários eventos da campanha e do desempenho<br />

dos candidatos.<br />

os CAnDiDAtos<br />

Com o objectivo de caracterizar a forma<br />

como os media trataram as candidaturas<br />

presidenciais de 2008, o estudo realizado<br />

pelo Pew Research Center através do<br />

Project for Excellence in Journalism analisou<br />

a cobertura jornalística da campanha<br />

durante seis semanas, o período entre as<br />

convenções e o último debate presidencial<br />

(de 8 de Setembro a 16 de Outubro), num<br />

total de 2412 peças jornalísticas provenientes<br />

de 48 órgãos de informação.<br />

Os dados analisados apontam para a existência<br />

de dois fenómenos na cobertura<br />

mediática. O primeiro relaciona-se com<br />

táctica e estratégia e explica que o candidato<br />

que foi visto como o<br />

vencedor teve uma cobertu-<br />

ra noticiosa mais favorável.<br />

O segundo aponta para o<br />

efeito de reforço e de eco<br />

dos media, e está intimamente<br />

relacionado com o peso<br />

que as sondagens têm nas<br />

campanhas. A divulgação de<br />

estudos de opinião quase<br />

diariamente conduz a que<br />

o impacto de praticamente<br />

todos os acontecimentos<br />

seja medido e depois analisado<br />

pelos media. Cada acontecimento<br />

ou declaração da<br />

campanha eleitoral tem, neste sentido, três<br />

ecos: primeiro, realiza-se a cobertura noticiosa<br />

que dá a conhecer o que aconteceu;<br />

depois, o efeito é medido através dos estudos<br />

de opinião; e, por fim, as reacções às<br />

sondagens são conhecidas, examinadas e<br />

comentadas. Todo este processo acaba por<br />

ampliar a relevância de alguns factos e<br />

declarações e essa selecção é, em grande<br />

medida, realizada pelos jornalistas. Este<br />

tipo de efeito está geralmente presente no<br />

trabalho dos media, mas ganha uma especial<br />

importância em contextos eleitorais,<br />

devido à divulgação quase permanente de<br />

sondagens.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


RAINER JENSEN/EPA/LUSA<br />

Não é por acaso que quando são analisados<br />

os temas das peças jornalísticas verifica-<br />

-se que a maioria foca o carácter, o passado<br />

e o desempenho dos candidatos nos eventos<br />

da campanha e nas sondagens.<br />

No entanto, nesta campanha, a crise<br />

financeira e o estado da economia<br />

impediram que a cobertura jornalística<br />

se centrasse quase exclusivamente nos<br />

aspectos estratégicos da campanha e na<br />

competição entre os candidatos. Estes<br />

últimos assuntos estiveram presentes na<br />

maioria das peças jornalísticas, mas<br />

contrariamente a eleições anteriores<br />

essa presença foi menor e isso deveu-se<br />

à atenção atribuída ao tema “economia”.<br />

De qualquer forma, os valores do<br />

estudo apontam para cerca de 53 por<br />

cento da cobertura jornalística centrada<br />

em Politics, isto é, as estratégias, as tácticas<br />

e o desempenho dos candidatos<br />

nas sondagens de opinião, e apenas 20<br />

por cento sobre Policy, o que significa<br />

portuGAL/euA<br />

os assuntos enfatizados nos media são os mesmos que as pessoas usam para avaliar os candidatos.<br />

o noticiar dos temas mais importantes<br />

para o país no momento da eleição e<br />

as propostas dos candidatos para os<br />

ultrapassar. É interessante referir neste<br />

contexto que autores como Iyengar e<br />

Kinder (<strong>New</strong>s that Matters: Television and<br />

American Opinion) defendem que os<br />

assuntos enfatizados nos media durante<br />

a campanha eleitoral, são os mesmos<br />

que as pessoas usam para avaliar os<br />

diferentes candidatos e as suas propostas<br />

eleitorais.<br />

houve FAvoreCimento?<br />

Em Setembro, devido à situação preocupante<br />

de dois dos maiores bancos de investimento,<br />

o Lehman Brothers e o Merrill<br />

Lynch, e da seguradora AIG, a cobertura<br />

jornalística sobre a crise financeira e a economia<br />

subiu de quatro para 40 por cento e<br />

o estudo do Pew Research Center demonstrou<br />

ainda que simultaneamente a cobertu-<br />

ra positiva da candidatura de Barack Obama<br />

também aumentou, o que significa que a<br />

crise acabou por favorecer a candidatura<br />

democrata. Por um lado, Obama representa<br />

a oposição às políticas seguidas pelo actual<br />

Presidente, mas, por outro, os esforços de<br />

John McCain para se associar à resolução<br />

da crise, chegando a anunciar a suspensão<br />

da campanha e a tentar cancelar o primeiro<br />

debate presidencial, acabaram por ser prejudiciais<br />

à sua imagem.<br />

McCain teve nesta altura mais cobertura<br />

mediática que Obama, mas essa maior<br />

visibilidade foi essencialmente negativa.<br />

De facto, mais notícias não significaram<br />

boas notícias para o candidato republicano.<br />

E quando o tema das notícias foi a<br />

economia, McCain teve uma cobertura<br />

mais negativa (55 por cento) que positiva<br />

(15 por cento), enquanto a tendência<br />

foi oposta para o seu adversário – Obama<br />

teve uma cobertura mais positiva (36 por<br />

cento) que negativa (23 por cento).<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 57


RON SACHS/LUSA<br />

Estes valores chamam também a atenção<br />

para a importância dos enquadramentos<br />

que os jornalistas escolhem quando dão<br />

notícias acerca dos candidatos. Os enquadramentos<br />

jornalísticos encorajam determinadas<br />

percepções e interpretações e são<br />

uma forma, entre outras, de olhar para a<br />

realidade e de arrumar a cobertura noticiosa,<br />

organizando, assim, o mundo tanto<br />

para os jornalistas que escrevem as notícias,<br />

como para os leitores dessas notícias.<br />

Desta forma, num contexto de crise económica<br />

e financeira, de instabilidade e de<br />

desconfiança dos cidadãos, enquadrar o<br />

discurso político e as propostas de um<br />

candidato presidencial de forma positiva<br />

e fazer o contrário com o outro candidato,<br />

pode induzir nos eleitores a ideia de<br />

que o primeiro está mais preparado para<br />

lidar com os problemas do país e é a<br />

melhor opção eleitoral.<br />

Não obstante as várias diferenças nos<br />

sistemas político e mediático dos dois<br />

países, é interessante apontar aqui uma<br />

semelhança com as eleições presidenciais<br />

de 2006 em Portugal. Durante a campanha<br />

58<br />

portuGAL/euA<br />

eleitoral, a crise económica foi um tema<br />

com forte presença nos media e isso pode<br />

ter influenciado os eleitores, acabando por<br />

beneficiar o candidato com mais preparação<br />

nessa área específica e o que mais<br />

mencionou o tema na sua campanha. Não<br />

obstante o Presidente da República não<br />

ter, em Portugal, poderes executivos ou<br />

legislativos, os media transmitiram frequentemente<br />

a ideia de que um político com<br />

formação em Economia poderia vigiar<br />

melhor as acções do Governo e cumprir<br />

melhor a sua função de fiscalização.<br />

Não só a economia, mas também a avaliação<br />

jornalística da estratégia das duas<br />

candidaturas foi mais favorável a Obama.<br />

Entre outros factores, contribuíram para<br />

isso, por exemplo, os seus bons resultados<br />

nas sondagens e o facto de os seus apoiantes<br />

revelarem mais entusiasmo. Igualmente<br />

a cobertura mediática dos três debates<br />

presidenciais não se revelou favorável a<br />

McCain, pois mesmo quando o seu desempenho<br />

foi considerado bom, ele nunca foi<br />

visto como o vencedor dos debates. Por<br />

exemplo, na semana do último debate<br />

(de 12 a 16 de Outubro), as peças jornalísticas<br />

divulgadas sobre Obama foram 50<br />

por cento positivas, 31 por cento neutras<br />

e 19 por cento negativas, enquanto no<br />

caso de McCain os valores foram de apenas<br />

sete por cento positivas, 24 por cento<br />

neutras e 69 por cento negativas.<br />

Os dados divulgados são tanto mais interessantes<br />

quando se verifica que a cobertura<br />

favorável tem reflexos nas sondagens<br />

de opinião, pois quanto mais positiva a<br />

cobertura jornalística, mais intenções de<br />

voto o candidato recolhe, uma tendência<br />

registada nas duas candidaturas em<br />

períodos diferentes. Estes dados, que relacionam<br />

cobertura favorável com bons<br />

resultados nas sondagens e que esclarecem<br />

sobre o tipo de tratamento jornalístico da<br />

mensagem dos políticos, são certamente<br />

importantes para quem se interessa pela<br />

questão da influência dos media nas eleições<br />

e, num plano mais geral, se questiona<br />

sobre se os media apenas reflectem ou<br />

antecipam a opinião pública.<br />

*Investigadora de media e política e docente na Universidade<br />

Nova de Lisboa<br />

enquadrar o discurso político de um candidato de uma forma positiva pode induzir nos eleitores a ideia de que é a melhor opção eleitoral.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


D.R.<br />

portuGAL/euA<br />

Liderança no século xxi<br />

A FLAd e o Governo Regional dos Açores, em colaboração com a Harvard Kennedy<br />

School, trouxeram a Portugal um curso de liderança considerado um dos melhores<br />

do mundo. Professores da instituição norte-americana e executivos portugueses discutiram<br />

na ilha Terceira os desafios que se colocam a quem exerce a liderança no século XXI.<br />

A repetir este ano.<br />

Ao longo de uma semana, cerca de cinquenta<br />

executivos, quadros de empresas privadas,<br />

da administração pública e de organizações<br />

não governamentais, vindos de vários pontos<br />

do País, foram confrontados com desafios<br />

que avaliaram a sua capacidade de<br />

liderança. Uma iniciativa da FLAD, que convidou<br />

três professores da Harvard Kennedy<br />

School, uma das mais prestigiadas instituições<br />

mundiais na área da formação avançada<br />

de executivos – Maxime Fern, Hugh<br />

O’Doherty e Martin Linsk –, para tomar as<br />

rédeas nesta acção inovadora.<br />

Segundo Paulo Zagalo e Melo, director<br />

para a área da Educação, Ciência e<br />

Tecnologia da FLAD, este curso de<br />

“Liderança no Século XXI” é uma acção<br />

pioneira em Portugal. “Muitas vezes criticamos<br />

as nossas organizações, não pela<br />

falta de recursos, mas pela falta de liderança.<br />

Obviamente, é possível melhorar,<br />

há técnicas para tal e especialistas que<br />

estudam precisamente essas técnicas, e,<br />

POR ArmAnDo sALvADo<br />

portanto, esta é a razão para a FLAD ter<br />

investido neste curso”, explicou.<br />

De acordo com os formadores, Portugal<br />

tem uma cultura onde a subserviência ainda<br />

ocupa um lugar importante. A este respeito,<br />

Martin Linsk anotou mesmo que “existe<br />

uma profunda diferença para com a autoridade<br />

na cultura portuguesa, e nós acreditamos<br />

que se pode exercer a liderança em<br />

qualquer posição que se ocupe numa organização;<br />

não é um exclusivo do topo”.<br />

Os três professores da Harvard Kennedy<br />

School procuraram mostrar que ninguém<br />

nasce líder. Aprendem-se, sim, comportamentos<br />

de liderança. “Nós tentamos dar-<br />

-lhes ferramentas e ideias sobre como fazer<br />

progressos face aos desafios de liderança.<br />

Também usamos o grupo como um estudo<br />

de caso, porque acreditamos que a<br />

oportunidade de exercer liderança surge<br />

todos os dias, em família, à mesa do jantar,<br />

na nossa vida profissional”, salientou<br />

Martin Linsk.<br />

Alunos, professores e organizadores do Curso de Liderança na terceira, Açores.<br />

A professora Maxime Fern diz mesmo que<br />

há que separar a ideia de autoridade da de<br />

liderança, porque uma não pressupõe a<br />

outra: “O principal objectivo deste curso<br />

é ajudar as pessoas a separarem a confusão<br />

existente entre o que é a liderança e a autoridade,<br />

e como essa distinção entre as duas<br />

ideias leva as pessoas a fazerem aquilo a<br />

que chamamos ‘trabalho adaptativo’.”<br />

Hugh O’Doherty, também ele professor em<br />

Harvard, assegura: “Para exercer a liderança<br />

não é preciso ter uma personalidade característica,<br />

com carisma. A liderança é uma<br />

actividade que as pessoas podem escolher<br />

exercer com ou sem autoritarismo. Ser líder<br />

é ter capacidade para mobilizar um grupo.”<br />

Reflexão, empenho e atenção pelo<br />

grupo que se lidera, três conceitos fundamentais<br />

que saíram deste curso. Os professores<br />

da Harvard Kennedy School<br />

deixaram uma mensagem clara: todos<br />

podem ser líderes, mesmo que não se<br />

esteja no topo da hierarquia.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 59


RUI OCHôA<br />

60<br />

portuGAL/euA<br />

daniel Okrent, o primeiro provedor do leitor do The <strong>New</strong> York Times,<br />

esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro – O Provedor.<br />

Falou, também, sobre a campanha e as eleições presidenciais norte-americanas.<br />

Daniel Okrent fez a sua declaração de interesses<br />

depois de apresentado por José Carlos<br />

Abrantes e confessou-se apoiante do novo<br />

Presidente norte-americano. Estas foram as<br />

primeiras eleições, desde que começou a<br />

carreira de jornalista, em que pôde tomar<br />

partido por algum dos candidatos. Por isso,<br />

o agora escritor e consultor não teve problemas<br />

em assumir que chegou a contribuir<br />

financeiramente para a campanha do<br />

senador democrata.<br />

Para o ex-editor da Time, houve três tópicos<br />

que se destacaram na eleição de Barack<br />

Obama: “O primeiro, a vitória de um<br />

homem negro numa nação com a história<br />

dos Estados Unidos da América; em segundo<br />

lugar, o entusiasmo por um homem<br />

eloquente, com um discurso diferente<br />

daquilo a que estamos habituados; e por<br />

último, o nível de esperança das populações,<br />

pois vimos muita gente habitualmente<br />

distante da política a envolver-se<br />

directamente na campanha.” Por outro lado,<br />

Daniel Okrent acredita que “Obama tam-<br />

“obama é um homem<br />

extraordinário”<br />

POR rui CAtALão<br />

bém ganhou com a presença dos jornalistas<br />

porque tinha uma história melhor do<br />

que McCain: ia ser o primeiro presidente<br />

negro, enquanto o candidato republicano<br />

não tinha nada de diferente, de novo”.<br />

Estas eleições presidenciais permitiram<br />

também confirmar uma tendência já<br />

conhecida, como explicou o autor de<br />

O Provedor. “Os leitores/telespectadores procuram<br />

acima de tudo órgãos de informação<br />

que reforcem as suas convicções. Se vemos<br />

algo que está de acordo com aquilo em<br />

que acreditamos, o jornalista é imparcial.<br />

Se vemos alguma coisa que choque com<br />

as nossas crenças, dizemos que é parcial.”<br />

Da mesma forma, o ex-provedor do Times<br />

reconheceu uma aproximação e um maior<br />

interesse em notícias sobre política, “apesar<br />

de as pessoas estarem mais interessadas em<br />

artigos sobre sondagens e a horse race do que<br />

propriamente nos artigos sobre os candidatos<br />

e as suas ideias e propostas”.<br />

Na conferência promovida pela FLAD,<br />

Joaquim Vieira e Patrícia Fonseca marca-<br />

paula vicente da FLAD entre os dois antigos provedores,<br />

José Carlos Abrantes (Dn), à esquerda, e Daniel okrent (nYt).<br />

ram presença quase como se fossem entrevistadores.<br />

Os dois jornalistas interpelaram<br />

Daniel Okrent por diversas vezes, registando<br />

igualmente alguns comentários. Para<br />

o actual provedor do Público, “as eleições<br />

norte-americanas foram sinónimo de alegria<br />

genuína, num ambiente de festa idêntico<br />

ao 25 de Abril em Portugal”. Já a<br />

jornalista da Visão destacou a singularidade<br />

do discurso de Barack Obama, “numa<br />

forma de fazer política que não jogava<br />

com as regras normais”.<br />

Apesar de acreditarem nas capacidades<br />

do novo Presidente norte-americano,<br />

Daniel Okrent e os seus interlocutores<br />

mostraram-se de acordo quanto à posição<br />

dos media face a Obama: “A partir da<br />

tomada de posse, a imprensa vai ser<br />

muito mais crítica, vai haver uma mudança<br />

como da noite para o dia”, garantiu<br />

Daniel Okrent.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


portuGAL/euA<br />

michael schudson<br />

era uma vez uma democracia<br />

desafiar o senso comum sobre as origens e o percurso da democracia americana<br />

e lembrar as funções democráticas do jornalismo foram ideias centrais da conferência<br />

de Schudson sobre “A Cidadania e os Media”.<br />

Os fundadores da nação americana<br />

teriam estranhado estes<br />

tempos de voto universal e<br />

secreto em que os eleitores têm<br />

ao seu dispor complexos e<br />

volumosos guias informativos e<br />

em que são seriamente encarados<br />

como “cidadãos informados”.<br />

Há dois séculos e meio,<br />

enfatiza o professor da<br />

Universidade de San Diego<br />

(Califórnia) e de Columbia<br />

(Nova Iorque), não se esperava<br />

que avaliassem por si próprios<br />

questões públicas. Os<br />

Founding Fathers não simpatizavam<br />

com a publicidade de<br />

procedimentos governamentais,<br />

negligenciavam a educação<br />

pública e desencorajavam a participação<br />

pública informal nos<br />

assuntos legislativos.<br />

Cem anos depois da fundação<br />

dos EUA, o voto continuava a<br />

ser uma questão de “bebidas,<br />

dólares e drama”, raramente<br />

algo de mais elevado. Um exemplo:<br />

em Nova Jérsia, por volta<br />

de 1880, pelo menos um terço<br />

do eleitorado contava receber<br />

um punhado de dólares no dia<br />

das eleições. O voto não expressava<br />

uma forte convicção nas<br />

melhores políticas públicas mas<br />

uma lealdade similar à dos adeptos<br />

das equipas de futebol.<br />

Na actualidade tais evocações<br />

desafiam ideias feitas sobre as<br />

origens e o percurso da democracia<br />

americana. Foram os<br />

reformadores do final do século<br />

XX, não os pais fundadores, que deram<br />

um passo decisivo para conformar os americanos<br />

ao “ideal do cidadão informado”.<br />

E as “novidades” sucederam-se. Os parti-<br />

POR CArLA mArtins*<br />

shudson: “As pessoas procuram romance nas actividades políticas”.<br />

‘ na América do século xix, o voto não<br />

expressava uma forte convicção<br />

nas melhores políticas públicas mas<br />

uma lealdade similar à dos adeptos<br />

das equipas de futebol. Cem anos<br />

depois da fundação dos euA,<br />

o voto continuava a ser uma questão<br />

de “bebidas, dólares e drama”,<br />

raramente algo de mais elevado.<br />

’<br />

dos esforçam-se por oferecer um programa<br />

que promete boas políticas mais do<br />

que bons empregos. O sistema abriu-se a<br />

uma “revolução de direitos”.<br />

poLítiCA sem FALsos<br />

morALismos<br />

Ao traçar esta, em última análise,<br />

“antropologia da democracia”,<br />

Schudson não ilude com<br />

pureza um campo animado, ao<br />

invés, por interesses. “Votar é<br />

uma prática tão cultural quanto<br />

moral”, mas não se confunda<br />

“votar, estar informado ou<br />

aderir a organizações cívicas<br />

com virtude pessoal ou espírito<br />

público”. Homens e mulheres<br />

também se mobilizam<br />

porque preferem o gossip político<br />

ao das celebridades ou do<br />

desporto. E procuram romance<br />

nas actividades políticas.<br />

Neste devir democrático,<br />

quais os papéis que cumprem<br />

os media noticiosos? São sete,<br />

segundo a sistematização de<br />

Schudson. A começar por informar<br />

o público e investigar os<br />

poderes. Mas também a de criar<br />

empatia social. Hoje a democracia<br />

sofre com a apatia.<br />

O investigador recordou a<br />

conversa de um editor com<br />

uma afro-americana, em 1980,<br />

quando Carter e Reagen disputavam<br />

a Presidência. A<br />

senhora não iria votar. “Estou<br />

muito ocupada e muito cansada,<br />

dá demasiado trabalho”.<br />

O editor não considerava que<br />

os jornalistas pudessem fazer<br />

alguma coisa para que ela<br />

mudasse de ideias. Excepto<br />

contar a sua história e levar a<br />

sociedade, pelo menos aqueles<br />

que votam e aqueles que têm o poder de<br />

tomar decisões, a vê-la e a compreendê-la<br />

com compaixão.<br />

* Professora da ULHT<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 61


6<br />

CArtA brAnCA<br />

Um jantar no Havai<br />

‘ A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista<br />

foi pedido um discurso, breve que fosse, em português.<br />

não entenderiam, é certo, o significado das palavras,<br />

mas a sonoridade da língua traria de volta a nostalgia<br />

de anos passados.<br />

’<br />

Não foi fácil convencer o adido de Imprensa da Embaixada dos<br />

Estados Unidos em Lisboa – vivíamos a segunda metade dos<br />

anos de 1980 – a incluir as ilhas do Havai no roteiro de uma<br />

viagem profissional.<br />

O jornalista convidado, signatário desta crónica, argumentou<br />

com a presença de descendentes de emigrantes açorianos de<br />

outras décadas – mas, valha a verdade, o apelo do mito turístico<br />

daquelas ilhas do Pacífico era uma outra motivação inconfessável.<br />

Para um ilhéu, seria, entre outras coisas, uma oportunidade<br />

única para um mergulho na famosa praia de Waikiki, nos arredores<br />

de Honolulu...<br />

Depois de uma negociação pormenorizada entre diplomata e<br />

jornalista, lá seguiu para Washington uma proposta de itinerário<br />

que acabou por incluir duas das ilhas descobertas pelo capitão<br />

Cook. Com alguma surpresa para ambos, a proposta de percurso<br />

veio devolvida com aprovação integral.<br />

As cinco semanas então passadas nos Estados Unidos foram uma<br />

experiência de vida fascinante para um jovem jornalista que tinha,<br />

na altura, um conhecimento limitado de outras paragens.<br />

O contacto com o melting pot, em inúmeras cambiantes, deixou<br />

marcas que perduraram. E, curiosamente, acabou por ser no<br />

Havai que aconteceu o episódio que inspira esta crónica e que<br />

ficou na memória com um registo singular de emoção.<br />

mário bettenCourt<br />

resenDes*<br />

À chegada a Maui, o guia destacado para acompanhar o jornalista<br />

avisou que o programa incluía um jantar com algumas<br />

dezenas de descendentes de emigrantes. Ao tomar conhecimento<br />

da visita de um português, para mais açoriano, a comu-<br />

nidade local luso-descendente tinha feito questão em celebrar<br />

uma presença que era, nesses tempos, conforme se percebeu,<br />

uma raridade.<br />

No dia marcado, num restaurante de montanha, em cenário<br />

paradisíaco – a ilha é, toda ela, um prodígio de beleza natural<br />

– meia centena de convivas receberam, com particular<br />

afabilidade, o jornalista e o seu guia. Eram, na sua esmagadora<br />

maioria, pessoas já na terceira idade, nascidos localmente,<br />

filhos ou netos de emigrantes. E que falavam, apenas,<br />

a língua inglesa.<br />

A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista foi pedido<br />

um discurso, breve que fosse, em português. Não entenderiam,<br />

é certo, o significado das palavras, mas a sonoridade da língua<br />

traria de volta a nostalgia de anos passados.<br />

O jornalista levantou-se e, perante uma plateia atenta, cumpriu<br />

a missão. No final, recebeu uma das mais entusiásticas – e certamente<br />

a mais comovente – salva de palmas da sua vida.<br />

* Jornalista, provedor dos leitores do Diário de Notícias<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

RUI COUTINHO


D.R.<br />

No Committee of Concerned Journalists,<br />

no National Press Building, em Washington<br />

DC, dez jornalistas portugueses frequentaram<br />

duas intensas semanas do curso de<br />

soCieDADe<br />

o jornalismo americano visto<br />

do lado de dentro<br />

dez jornalistas portugueses estiveram nos eUA com bolsas de curta duração, ao abrigo<br />

dos programas “Alfredo Mesquita” e “José Rodrigues Miguéis”, criados pela FLAd,<br />

para favorecer o intercâmbio entre os dois países na área jornalística.<br />

aperfeiçoamento para profissionais midcareer.<br />

O curso incluiu conferências e visitas<br />

de trabalho, por exemplo, às redacções<br />

(online e edição impressa) do Washington Post.<br />

Os mais actuais problemas com que se<br />

depara o jornalismo foram discutidos<br />

pelos professores do Committee e outros<br />

convidados para conversar com a turma<br />

lusa de jornalistas.<br />

Este curso nos EUA resulta de bolsas de<br />

curta duração da FLAD, ao abrigo dos programas<br />

“Alfredo Mesquita” (jornalistas<br />

dos Açores) e “José Rodrigues Miguéis”<br />

(jornalistas do continente) para favorecer<br />

o intercâmbio entre os dois países na área<br />

jornalística. Os bolseiros começaram por<br />

viajar até aos Açores, onde contactaram<br />

com representantes das instituições locais<br />

e visitaram órgãos de comunicação social<br />

e pontos turísticos.<br />

Já nos EUA, os jornalistas fizeram o<br />

International Visitor Leadership Program,<br />

de formação sobre as especificidades do<br />

sistema norte-americano, organizado pelo<br />

Departamento de Estado e pela embaixada<br />

norte-americana em Lisboa.<br />

As duas bolseiras açorianas do programa<br />

“Alfredo Mesquita” beneficiaram, ainda,<br />

de uma semana na região de Boston onde<br />

contactaram com várias instituições ligadas<br />

à comunidade emigrada na região.<br />

Patrícia Fonseca (Visão), Ana Catarina<br />

Santos e Cristina Lai Men (TSF), Filipe<br />

Santos Costa (expresso), Maria João Guimarães<br />

e Catarina Gomes (Público), Catarina Neves<br />

(SIC) e Ana Luísa Rodrigues (RTP) foram<br />

os jornalistas do continente seleccionados,<br />

e Vanda Mendonça (diário Insular) e Filipa<br />

Simas (RTP Açores) as jornalistas açorianas<br />

que participaram no programa.<br />

Cada bolseiro elaborou um pequeno<br />

depoimento que reproduzimos nas páginas<br />

seguintes, depoimentos que testemunham<br />

alguns dos acontecimentos por eles<br />

vividos.<br />

Este ano, em Junho, outros 10 jornalistas<br />

portugueses serão formados pelo Committee<br />

of Concern Journalists em Washington.<br />

Grupo de jornalistas à chegada ao Washington<br />

post para reunião de trabalho.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 63


Washington Post<br />

e weather reports<br />

64<br />

POR AnA LuísA roDriGues*<br />

Mesmo habituados a conhecer personalidades<br />

ou lugares míticos, o entusiasmo era<br />

indisfarçável na visita ao Washington Post.<br />

Ao caminhar pelos dois pisos da redacção,<br />

o sentimento misturou a contenção<br />

– afinal, “do lado de lá” estavam colegas<br />

de profissão – e a curiosidade de espreitar<br />

cada cantinho.<br />

Numa ala, open spaces a perder de vista com<br />

centenas de secretárias, noutra, gabinetes<br />

para os seniores. Em cada estaminé, os<br />

metros quadrados conquistados por muralhas<br />

de dossiês e papéis ao monte – doença<br />

endémica de qualquer redacção.<br />

Tínhamos encontro marcado com Debora<br />

Howell, ombusdman do Washington Post. Mas<br />

mais do que a entrevista, “entrar no cenário”<br />

foi o que me fez verdadeiramente<br />

vibrar.<br />

Surpreendentemente, a redacção do<br />

Washingtonpost.com, edição online do jornal,<br />

fica do outro lado do rio Potomac, no<br />

estado da Virgínia.<br />

Noventa pessoas alimentam uma plataforma<br />

que origina 250 milhões de page<br />

viewers por mês, segundo Jonathan Krim,<br />

editor da página web. As mudanças no jornalismo,<br />

da cultura free que impera na web,<br />

do melhor perfil para o jornalista do futuro<br />

foram temas de conversa.<br />

Antes da saída, a surpresa. As vidraças<br />

da redacção permitiam uma vista cinematográfica<br />

sobre o temporal que em<br />

minutos varreu a zona. Chuva grossa<br />

batida a vento, trovões e clarões a encarregarem-se<br />

dos jogos de som e luz. E luz<br />

também se fez sobre um dos mais intrigantes<br />

mitos norte-americanos: a obsessão<br />

com o boletim meteorológico, os<br />

tão famosos weather reports que têm até<br />

direito a canais de TV. Percebi que não<br />

é uma paranóia!<br />

O temporal fez cancelar o jantar dessa<br />

noite. Opção mais radical do que a intempérie…<br />

Duas horas depois, o sol voltava<br />

a brilhar e as pessoas enchiam as ruas,<br />

memória lavada do temporal.<br />

Um dia pode ter várias caras. É como se<br />

a variedade da meteorologia se afinasse<br />

pelo diapasão do próprio país. E uma das<br />

impressões mais fortes que se pode trazer<br />

dos Estados Unidos é justamente a diversidade<br />

do caldo norte-americano, qual<br />

manta de retalhos. * RTP<br />

soCieDADe<br />

Da democracia<br />

na América<br />

A festa de Obama, a retirada de Hillary e o entusiasmo<br />

da sociedade civil nestas eleições presidenciais.<br />

Para um jornalista de política, estar nos EUA<br />

em ano de eleições presidenciais é uma<br />

sorte. Estar em Washington na semana em<br />

que terminaram as primárias do Partido<br />

Democrata mais disputadas de sempre, é a<br />

sorte grande. Poder assistir ao comício em<br />

que Hillary Clinton abandonou a corrida e<br />

deu o seu apoio a Barack Obama é um<br />

jackpot. Foi a esse jackpot que os bolseiros da<br />

FLAD puderam assistir in loco: o comício de<br />

7 de Junho foi o momento em que a primeira<br />

mulher que esteve à beira de ser<br />

candidata à Presidência dos EUA deu o seu<br />

apoio ao primeiro afro-americano candidato<br />

à Presidência por um dos principais<br />

partidos. Quatro dias antes, alguns de nós<br />

já tinham “participado” numa das muitas<br />

centenas de festas organizadas por todo o<br />

país pelos apoiantes de Obama para assistir,<br />

POR FiLipe sAntos CostA*<br />

saída de hillary – jackpot para os bolseiros<br />

da FLAD.<br />

em directo, aos resultados das derradeiras<br />

primárias dos democratas. Em ambos os<br />

casos – no ambiente familiar do café<br />

Busboys & Poets e no cenário imponente<br />

do National Building Museum; na festa do<br />

vencedor e na retirada do vencido –, testemunhámos<br />

o melhor da democracia nos<br />

EUA: mais do que discursos inspirados e<br />

inspiradores (que os houve!), o entusiasmo<br />

de uma sociedade civil que, contrariando<br />

a tendência dos últimos anos e a previsão<br />

dos académicos, se mobiliza e arregaça as<br />

mangas para defender aquilo em que acredita.<br />

* expresso<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

FILIPE SANTOS COSTA


o sonho<br />

da emigração<br />

POR FiLipA simAs*<br />

Uma viagem ao passado e ao futuro, ao<br />

mesmo tempo, parece algo pouco real assim<br />

contado, mas a busca de contactos e ligações<br />

com a emigração açoriana na zona da Nova<br />

Inglaterra, nos Estados Unidos da América,<br />

foi sinceramente uma descoberta.<br />

Traduz-se num sentimento misto de<br />

orgulho por quem vingou e de admiração<br />

por aqueles que se arriscaram, em tempos<br />

difíceis, por terras imensas sem qualquer<br />

apoio ou até comunicação.<br />

Viajo, confortável, num jipe conduzido<br />

por motorista, mas ao que parece está<br />

mais perdido do que eu. Vive há mais de<br />

vinte anos nesta região e pouco ou nada<br />

conhece.<br />

Ao longo da viagem apercebo-me que<br />

esta é a realidade de uma boa parte dos<br />

emigrantes do arquipélago.<br />

Vivem a cerca de três horas de Boston e<br />

nunca visitaram a cidade.<br />

soCieDADe<br />

Penso em como o isolamento das ilhas<br />

se prolonga do outro lado do Atlântico.<br />

Num programa organizado minuciosamente<br />

pelo professor Onésimo de Almeida<br />

conhecemos o outro lado. São luso-descendentes<br />

que hoje se destacam na comunidade<br />

onde vivem e até a nível nacional<br />

e internacional.<br />

Para contar o caminho para os sucessos<br />

lusos nem é preciso ir muito longe.<br />

Micaelense de origem, Onésimo Teotónio<br />

de Almeida é hoje professor catedrático<br />

no Departamento de Estudos Portugueses<br />

e Brasileiros da Brown University, em<br />

Providence. Tem tido um papel relevante<br />

na divulgação do português em terras<br />

americanas.<br />

No seu dia-a-dia multiplica-se entre<br />

aulas, conferências, reuniões e esquiços<br />

para a sua próxima publicação. Uma azáfama<br />

própria de quem gosta do que faz.<br />

Confesso que através da caneta de<br />

Onésimo dou por mim a viajar neste<br />

sonho açoriano.<br />

E porque o espaço é curto para uma imensidão<br />

de sentimentos, deixo escrever quem<br />

tão bem soube expressá-los em palavras:<br />

“How far that little candle throws his beams!<br />

So shines a good deed in a weary world.”<br />

(William Shakespeare). * RTP (Açores)<br />

baltimore:<br />

prioridade às notícias locais<br />

POR CristinA LAi men*<br />

A preto e branco, os retratos estão alinhados numa das paredes da enorme recepção.<br />

São pelo menos 15 os repórteres do The Baltimore Sun, vencedores do Prémio Pulitzer,<br />

que formam esta galeria de notáveis. Somos recebidos pela editora do The Sun online,<br />

Mary Hartney, e pelo editor adjunto Harry Merritt, que não escondem as dificuldades<br />

do histórico jornal do estado de Maryland. A pouco mais de 50 quilómetrosde<br />

Washington DC, a redacção do The Baltimore Sun não escapou aos cortes orçamentais nos<br />

últimos anos, mas tenta adaptar-se ao novo desafio que representa a internet. Com uma<br />

média de idade que ronda os 50 anos, os jornalistas passaram a andar com câmaras<br />

de vídeo – 25 por cento dos profissionais já têm o equipamento no saco de<br />

reportagem. São em menor número, trabalham mais e, no final do mês, ganham o<br />

mesmo. Assim obrigam os tempos de crise que se vivem no The Baltimore Sun, que afectam<br />

também a cobertura dos acontecimentos internacionais.<br />

Cada vez mais, a prioridade vai para as notícias locais. É esse o mote do vizinho The<br />

Baltimore Times, um jornal destinado à comunidade negra que representa quase 40 por<br />

cento da população do estado de Maryland. Quando a América pode vir a ter, pela<br />

primeira vez, um Presidente negro, a fotografia a preto e branco de Barack Obama<br />

ocupa toda a primeira página de uma das últimas edições. A redacção jovem e reduzida<br />

do The Baltimore Times destaca as boas notícias que envolvem a comunidade negra –<br />

“daisies and roses”, nas palavras do editor Ron Williams, que adianta: “Quando a<br />

América se constipa, nós apanhamos uma pneumonia.” * TSF<br />

A excelência<br />

no jornalismo<br />

POR CAtArinA neves*<br />

Imagine que está a conduzir um carro e<br />

ao mesmo tempo tem de lhe mudar o<br />

óleo. É impossível, mas é também o exemplo<br />

perfeito para ajudar a compreender o<br />

momento que a comunicação social norteamericana<br />

atravessa.<br />

De acordo com Mark Jurkowitz, director<br />

do Project for Excellence in Journalism, há<br />

dois conceitos que marcam o antes e o<br />

agora: economia e novas tecnologias. Como<br />

se fosse obrigatório definir um a. I. (antes<br />

da Internet) e um d. I. (depois da Internet).<br />

A. I., os chamados velhos media norte-americanos<br />

tinham grandes redacções, um<br />

público fiel e um dia inteiro para preparar<br />

a notícia. D. I., as televisões norte-americanas<br />

perderam um milhão de espectadores<br />

por ano, a publicidade desceu 10 por cento,<br />

só em 2007, e há jornais, como o Boston<br />

Globe, que rescindem contratos com todos<br />

os correspondentes.<br />

É num período, para muitos assustador,<br />

de mudança como o actual que nasce o<br />

Pew Research Center’s Project for Excellence<br />

in Journalism. Trata-se de uma organização<br />

independente que se dedica à investigação<br />

do comportamento dos meios de comunicação<br />

social nos Estados Unidos. Tem como<br />

objectivo fornecer, a quem produz as notícias<br />

e a quem as consome, uma análise<br />

estatística que permita uma melhor compreensão<br />

do que é veiculado pelos media.<br />

O Project for Excellence defende que a<br />

quantificação da realidade é um instrumento<br />

mais útil do que a crítica da mesma.<br />

A página www.journalism.org, que funciona<br />

como um arquivo, permite-nos saber<br />

que, nas 70 mil notícias recolhidas ao longo<br />

do último ano, dois temas marcaram a agenda<br />

dos media: o Iraque e a campanha presidencial.<br />

Descobrimos também que, ao<br />

contrário do que o público parece pensar,<br />

a cobertura da campanha de Hillary Clinton<br />

e de Barack Obama foi equilibrada. E que<br />

Obama foi alvo de um tratamento mais negativo<br />

do que aquele que foi dado a Clinton.<br />

Nestes dias agitados e incertos, é gratificante<br />

saber que jornalistas e investigadores<br />

reúnem, analisam e guardam as estórias<br />

de todos os dias. A bem da memória futura.<br />

Na esperança de que os motores dos<br />

jornais, das rádios e das televisões continuem<br />

a ressoar e que o carro, já com o<br />

óleo mudado, não pare. * SIC<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 65


PATRíCIA FONSECA<br />

Estarão os jornais condenados a desaparecer? Se sobreviverem,<br />

como serão daqui a dez anos? Serão os jornalistas de imprensa<br />

treinados para fazerem vídeos, tirar fotos e recolher sons?<br />

Estivemos quinze dias à volta de uma mesa, numa sala fechada,<br />

em Washington, a reflectir sobre estas e outras questões e a pôr<br />

em causa o jornalismo que praticamos, numa redacção do outro<br />

lado do Atlântico. Os mediadores deste debate foram formadores<br />

do Committee of Concerned Journalists, instituição que reuniu<br />

66<br />

soCieDADe<br />

As notícias<br />

que ficaram no museu<br />

É difícil escolher o que impressiona mais<br />

no <strong>New</strong>seum. Há destroços de repórteres<br />

de guerra, um computador, um caderno,<br />

POR mAriA João GuimArães*<br />

um carro baleado, pedaços de histórias<br />

que acabaram bem ou muito mal (está<br />

lá o passaporte de Daniel Pearl, morto<br />

manchetes de jornais de todo o mundo, expostos no newseum, que noticiaram o 11 de setembro.<br />

uma pausa preocupada<br />

POR CAtArinA Gomes*<br />

pelos taliban). Há fotos que se tornaram<br />

imagens icónicas com uma explicação.<br />

Destas, a mais impressionante será a<br />

fotografia do abutre que, ao longe,<br />

espreita uma criança africana, num estado<br />

de subnutrição extremo, enrolada,<br />

sozinha no chão de poeira, prestes a<br />

morrer. Foi tirada no Sudão, na fome de<br />

1993. A foto, descobre-se no museu das<br />

notícias, tem uma outra história trágica<br />

para além da que vemos na imagem.<br />

O fotógrafo, Kevin Carter, não tocou na<br />

criança – as autoridades do Sudão tinham<br />

dito expressamente que não deveria<br />

haver qualquer contacto por causa do<br />

perigo de contágio. O fotógrafo ganhou<br />

um prémio Pullitzer com esta foto –<br />

tendo recebido de imediato milhares de<br />

cartas indignadas questionando-o porque<br />

não tinha ajudado a criança. Carter acabou<br />

por se suicidar em 1994, pouco<br />

depois de receber o prémio. Esta foto,<br />

esta história, é apenas um pequeno fragmento<br />

de todo o espólio existente no<br />

<strong>New</strong>seum, e este não se esgota no grande<br />

espaço da Pennsylvania Avenue, em<br />

Washington: pode visitar-se o site na net<br />

e ver, por exemplo, primeiras páginas<br />

de jornais de todo o mundo – e, entre<br />

estes, o Público, o Jornal de Notícias, o diário<br />

de Coimbra e o diário As Beiras.<br />

* Público<br />

um conjunto de jornalistas, editores, proprietários e académicos<br />

para pensarem o presente e o futuro da profissão. Nestas manhãs<br />

e tardes de reflexão foi reconfortante verificar que muitos dos<br />

problemas sentidos nos Estados Unidos e em Portugal são idênticos:<br />

fuga de leitores para o jornal online sem que as receitas<br />

publicitárias tenham acompanhado essa transferência, cortes de<br />

pessoal, desinvestimento em histórias de investigação que consomem<br />

mais tempo. Porém, as soluções, embora ainda não<br />

tenham sido encontradas, estão a ser procuradas naquele país há<br />

mais tempo. Uma coisa é certa, o sistema mediático (sobretudo<br />

no caso da imprensa) está em convulsão e vive um momento de<br />

busca desenfreada de um novo paradigma que o salve da ameaça<br />

de um fim iminente. O problema, dizia um dos formadores,<br />

“é que temos de mudar o óleo do carro ao mesmo tempo que<br />

o continuamos a conduzir”. * Público<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


Açorianos na política<br />

POR vAnDA menDonçA*<br />

Em Rhode Island, o mais pequeno estado norte-americano, com<br />

apenas um milhão e 50 mil habitantes, os portugueses e luso-<br />

-descendentes representam 10 por cento da população. No<br />

Congresso Estadual esse número sobe para 12 por cento – dos<br />

75 membros da Câmara dos Representantes nove têm origem<br />

portuguesa, enquanto no Senado quatro dos 38 eleitos são de<br />

shiuhhh!!!<br />

You’re visiting<br />

the united<br />

states senate!<br />

POR AnA CAtArinA sAntos*<br />

Peguei no mapa a preto e branco com as<br />

duas mãos e o papel colou-se aos dedos,<br />

húmidos. Tremia ligeiramente. Os olhos<br />

ávidos varreram o esboço do hemiciclo,<br />

enquanto percorria com os dedos os desenhos<br />

das secretárias que tinham os sobrenomes<br />

inscritos. De frente para a mesa<br />

do Vice-Presidente dos EUA, contei, da<br />

esquerda para a direita, “Uma, duas…<br />

Aqui está: Obama na primeira fila, segunda<br />

mesa da esquerda”. Duas filas atrás,<br />

outro nome que busquei desde o início:<br />

Clinton, na última fila. “Hillary, na última<br />

fila?!” Sorri.<br />

Já só faltava um. Respirei fundo e foquei-<br />

-me de novo no mapa. “Ala republicana<br />

no lado direito, McConnel não, Dole também<br />

não, finalmente detectei-o. “Cá está<br />

– McCain na terceira fila, sexta cadeira.<br />

Fantástico!” Tinha identificado os lugares<br />

onde estariam sentados os senadores que<br />

queria ver ao vivo.<br />

Entrei na sala do Senado entusiasmada.<br />

Sem telemóvel, sem máquina fotográfica<br />

ou bloco de notas. Nada. E em silêncio<br />

absoluto. A sessão decorria com apenas<br />

dois solitários senadores. Um, de pé, falava<br />

enquanto apontava para um cartaz; o<br />

outro, sentado no lado oposto, tomava<br />

notas. Todas as outras secretárias estavam<br />

soCieDADe<br />

vazias. Nem sinal de Obama, Hillary ou<br />

McCain…<br />

No Senado norte-americano, os senadores<br />

assistem às sessões nos seus gabinetes através<br />

de circuito interno de vídeo. Na belíssima<br />

sala do Senado estão apenas os membros da<br />

mesa e a peculiar figura, por já tão inusual,<br />

da dactilógrafa. Circula elegantemente pela<br />

sala com os óculos na ponta do nariz, uma<br />

franja de cabelo negro e, sempre de pé, dedilha<br />

velozmente na máquina de escrever que<br />

carrega ao peito.<br />

Habituada, como estou, ao clamor do<br />

Parlamento português, o contraste foi abismal.<br />

Entreabri a boca, quase soltei uma<br />

ascendência lusa. Eleito pela primeira vez em 1998, com apenas<br />

20 anos, Daniel da Ponte foi o segundo mais jovem senador a<br />

assumir o cargo. Filho de pais açorianos, oriundos da ilha de<br />

São Miguel, fez do aumento do ordenado mínimo estadual uma<br />

das suas bandeiras. Em relação à comunidade portuguesa de<br />

Rhode Island, considera que “está muito mais integrada na sociedade<br />

americana do que em Massachusetts”. A educação e a participação<br />

política são, no entanto, os principais desafios. Em sua<br />

opinião, “as ligações entre os Açores e Portugal e os Estados<br />

Unidos são cada vez mais estreitas”. “Entre as novas gerações,<br />

é cada vez mais ‘fashionable’ conhecer as raízes”, diz.<br />

* diário Insular<br />

‘ entrei na sala do senado<br />

entusiasmada. [...]<br />

nada. nem sinal<br />

de obama, hillary<br />

ou mcCain…<br />

’<br />

exclamação. Não tive sequer tempo para<br />

tal. Atrás de mim sussurraram: “Shiuhhh,<br />

M’am. This is the US Senate!” * TSF<br />

Ana Catarina santos (tsF) nos corredores de Capitol hill.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 67<br />

D.R


D.R<br />

Foi cruzando as crateras adormecidas<br />

dos vulcões açorianos que o grupo verdadeiramente<br />

se conheceu. Já sabíamos<br />

os nomes uns dos outros, já tínhamos<br />

trocado algumas palavras de circunstância,<br />

mas foi ali, na ilha de São Miguel,<br />

sob um céu imenso e o mar a perder de<br />

vista, esforçando-nos por alcançar o<br />

cume de uma serra, que criámos os primeiros<br />

laços. Respeitou-se o ritmo de<br />

68<br />

soCieDADe<br />

Azores connection<br />

Já sabíamos os nomes uns dos outros, já tínhamos trocado algumas palavras<br />

de circunstância, mas foi ali, na ilha de São Miguel, sob um céu imenso<br />

e o mar a perder de vista, esforçando-nos por alcançar o cume de uma serra,<br />

que criámos os primeiros laços.<br />

POR pAtríCiA FonseCA<br />

os jornalistas que participaram no programa (com excepção de Filipa simas) e os dois membros da FLAD em são miguel.<br />

quem tinha os músculos mais adormecidos,<br />

estendeu-se a mão a quem temia<br />

as alturas, dividiram-se bolachas e água<br />

com os desprevenidos... Dez quilómetros<br />

à conversa, com pausas para fotografias<br />

e gargalhadas inesperadas, que terminaram<br />

nesta foto de grupo, no cume com<br />

vista para o nordeste da ilha, com as<br />

lagoas rasa e comprida a nossos pés. Ali,<br />

a meio caminho entre o continente<br />

europeu e o americano, descobrimos as<br />

coordenadas da vida de cada um e desenhámos<br />

o primeiro esboço do mapa da<br />

nossa amizade. Seremos sempre “o<br />

grupo de Washington”, onde aprendemos<br />

e crescemos tanto. Mas teremos<br />

sempre de agradecer aos Açores estes<br />

instantes de claridade, que nos abriram<br />

o coração para o que estava para vir.<br />

* Visão<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


portuGAL/euA<br />

só a literatura vence o tempo<br />

“Asas sobre a América”, ciclo de conferências sobre o encontro de escritores portugueses<br />

com autores norte-americanos pretendeu “captar um público jovem”, “apelar à leitura<br />

e ao diálogo”, afirmou Mário Mesquita * , administrador responsável pela área da Cultura.<br />

Breve síntese sobre a misteriosa arte de escrever.<br />

Apresentado por Filipa Melo, o ciclo reuniu<br />

no auditório da FLAD estudantes e<br />

professores universitários, escritores, editores,<br />

tradutores e visitantes de diversas<br />

áreas do conhecimento.<br />

Segundo William Faulkner (1897-1962),<br />

o escritor fará tudo para escrever mesmo<br />

“roubar a própria mãe”. Para concluir um<br />

livro estará disposto a perder a “honra,<br />

o orgulho, a decência, a segurança e a<br />

felicidade”. Afectada, ao longo de toda a<br />

vida, por várias doenças graves, Carson<br />

McCullers (1917-1967) chegará “a atar<br />

uma caneta ao pulso para poder escrever”,<br />

sem parar. Afinal, o que poderá destruir<br />

um artista? “Nada”, dizia Faulkner. Nada,<br />

a não ser “a morte”.<br />

Os oito escritores norte-americanos até<br />

agora apresentados no ciclo “Asas sobre a<br />

América”, para lá das particularidades<br />

biográficas e das diferenças de estilo literário,<br />

partilham o princípio de que escrever<br />

não é viver menos, pelo contrário, sem<br />

a experiência da literatura, o mundo é<br />

insuficiente, e mesmo incompreensível.<br />

Indispensável ao acto criador, a solidão,<br />

levada a um ponto extremo, não é para<br />

eles um empobrecimento mas uma forma<br />

de estar perto da Natureza e da sua humanidade<br />

interior, incluindo nela o pavor,<br />

o caos e a desumanidade implícitas.<br />

Como lembrou Gonçalo M. Tavares, o<br />

escritor é aquele que “repara”, e no caso de<br />

Philip Roth (n. 1933), “mestre da lentidão”<br />

– autor, entre outras obras, de Pastoral<br />

<strong>Americana</strong>, 1997 –, o que se detém a observar<br />

um personagem, considerando o mínimo<br />

pormenor como um indício revelador.<br />

“Escritor omnívoro”, “enraizando a literatura<br />

no quotidiano de cada personagem”,<br />

também Saul Bellow (1915-2005) parte de<br />

um “detalhe” para reflectir sobre “a condição<br />

humana”. “A essa atenção ao detalhe eu<br />

chamaria força erótica”, explicou Rui Zink,<br />

tradutor de Ravelstein 2000, último romance<br />

do Nobel da Literatura 1976.<br />

POR susAnA neves<br />

sem a experiência da literatura o mundo é insuficiente e mesmo incompreensível.<br />

Viver de forma “pacata” como Flannery<br />

O’Connor (1925-1964) não a impediu<br />

de “desenvolver uma vida interior sulfúrica”,<br />

resumiu Pedro Mexia. Enquanto a<br />

progressiva reclusão de Emily Dickinson<br />

(1830-1886) no seu quarto em Amherst<br />

foi, segundo Ana Luísa Amaral, uma<br />

maneira “simbólica”, “dramatizada” e<br />

“ambígua” de comunicar com o mundo<br />

e afirmar a sua personalidade literária.<br />

Pela leitura de excertos de várias obras<br />

– entre elas, O Coração É Um Caçador Solitário,<br />

1940, de Carson McCullers, feita por Inês<br />

Pedrosa, ou através da expressiva interpretação<br />

de Saudação a Walt Whitman, de<br />

Álvaro de Campos, apresentada pelo actor<br />

João Grosso – foi possível verificar que,<br />

na sua essência, a escrita é um organismo<br />

musical, um detonador de imagens,<br />

transversal ao espaço, vencedor desse<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 69<br />

RUI OCHôA


“Infinito Idiota”, que a cáustica McCullers,<br />

entendia ser o “Tempo”.<br />

As palavras têm o poder de “fazer parar<br />

a linguagem”, lembrou Manuel António<br />

Pina a propósito do “imagismo” em Ezra<br />

Pound (1885-1972), ou seja, projectam<br />

uma “aparição” mental em quem as lê.<br />

Ao mesmo tempo “memória” e “matéria<br />

viva”, as palavras não pertencem ao autor,<br />

imbuídas que estão de vida própria, desafiam-no,<br />

evocando um tecido complexo<br />

de “afluências”.<br />

Walt Whitman (1819-1892) não foi a<br />

única influência na invenção de Álvaro de<br />

Campos, defendeu o investigador e tradutor<br />

norte-americano Richard Zenith. Para<br />

Fernando Pessoa, o autor de Folhas de erva,<br />

1855, não foi um “pai” mas um “profeta<br />

irmão” que o ajudou a libertar-se do despotismo<br />

da unicidade para passar a um<br />

nível superior de conhecimento em que<br />

se redescobre numa nova unidade: a de<br />

ser múltiplo.<br />

Ler um escritor é, portanto, ser contaminado<br />

e iniciado pela sua rede de influências<br />

ou “afluências” artísticas e literárias,<br />

70<br />

portuGAL/euA<br />

perder-se nele e percebê-lo para lá de<br />

qualquer apriorismo.<br />

“O facto de viver no Sul não o torna<br />

mais compreensível”, justificava Flannery<br />

O’Connor, feroz opositora da “literatura<br />

documental”. Yoknapatawpha, território imaginado<br />

por Faulkner, poderá nunca ser<br />

encontrado apesar de ser situado no<br />

Mississipi.<br />

Alguns dos debates mais participados<br />

de “Asas sobre a América” centraram-se<br />

no clássico binómio livre arbítrio vs predestinação.<br />

Na opinião de Lídia Jorge, o<br />

autor de O Som e a Fúria, 1931, William<br />

Faulkner, considerando “a fragilidade do<br />

Homem” tendeu a colocá-lo “face a uma<br />

Totalidade com a qual é preciso nego-<br />

ciar”. Para definir a noção de liberdade<br />

em O’Connor, a americanista Teresa Alves<br />

leu na introdução de Sangue Sábio, 1962:<br />

“O livre arbítrio não significa uma única<br />

vontade mas muitas vontades a agirem<br />

conflituosamente numa pessoa.” Por isso,<br />

a “integridade de alguém reside no que<br />

esse alguém não é capaz de fazer”. Em<br />

suma: “A liberdade é um mistério.”<br />

As abusivas “regularizações” da obra de<br />

Emily Dickinson, desde a publicação dos<br />

primeiros poemas no jornal Springfield daily<br />

Republican, ainda durante a vida da escritora,<br />

até às sucessivas edições póstumas,<br />

reveladas por Ana Luísa Amaral, são um<br />

exemplo de como a integridade de uma<br />

obra pode ser ameaçada por preconceitos<br />

‘ Ler um escritor é ser contaminado e iniciado<br />

pela sua rede de influências ou “afluências”<br />

artísticas e literárias, perder-se nele e percebê-lo<br />

para lá de qualquer apriorismo.<br />

’<br />

Apresentação de Lídia Jorge na mesa com Filipa melo, coordenadora do ciclo “Asas sobre a América”. Ao fundo, a imagem de William Faulkner.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />

RUI OCHôA


de ordem machista, linguística e epistemológica.<br />

Ser “o único canguru entre a<br />

beleza” custou a Dickinson a reclusão e<br />

a censura, mas graças à persistência, em<br />

escrever e fazer-se publicar também através<br />

de cartas, a força do seu talento acabaria<br />

por reemergir intacta na edição<br />

fac-similada da sua obra, em 1991.<br />

“Escrever, tal como o entendo, é uma<br />

forma de ser”, afirma Manuel António Pina,<br />

para quem a poesia, à semelhança do autor<br />

de Os Cantos, 1925-1969, e Jorge Luis<br />

Borges, tem a ver com “a música”, “a entoação”,<br />

“uma certa respiração da frase”.<br />

O mistério da literatura é como o mistério<br />

do mundo, escapa às fórmulas, antecipa<br />

e projecta novos leitores.<br />

um hino À poesiA<br />

Apesar de a leitura das obras de Whitman<br />

anteceder a criação heteronímica de<br />

Fernando Pessoa, e de o “acariciador de<br />

vida” ter provocado uma perturbação<br />

“absoluta” ao autor de Mensagem, 1934,<br />

influenciando-o a nível literário e estético<br />

mas também numa ordem mais “secreta”,<br />

ou seja, libertando-o “sensorial e sexualmente”,<br />

Richard Zenith defendeu que os<br />

heterónimos pessoanos resultam de uma<br />

amálgama de influências, das quais se<br />

destaca a influência literária arcana de<br />

Shakespeare.<br />

Saudação a Walt Whitman, assinado por Álvaro<br />

de Campos, em 1915, resposta ao poema<br />

canto Salut au Monde!, 1856, de Whitman,<br />

seria uma espécie de “poema de solidariedade”<br />

de Pessoa a um escritor “profeta<br />

irmão”, um “hino à poesia”, “uma paródia”,<br />

“um pastiche”, “um estupro”, feito<br />

pelo “hiper consciente” Fernando Pessoa.<br />

Interessado no estilo de escrita do autor<br />

norte-americano, apreciando, sobretudo,<br />

a sua atitude “inclusiva” face a todas as<br />

manifestações do real, Pessoa não reconhecia<br />

na consciência uma fonte exponencial<br />

de felicidade. E em vez de “acariciador de<br />

vida” como Whitman, cultivava a “arte do<br />

fingimento”. Existia “gloriosamente pela<br />

imaginação”.<br />

DA impossibiLiDADe<br />

em DeFinir A AmériCA<br />

No debate subordinado ao tema “Ensino<br />

da Literatura Norte-<strong>Americana</strong> em<br />

Portugal”, os americanistas Carlos<br />

Azevedo (Universidade do Porto), Teresa<br />

Alves (Universidade de Lisboa) e Mário<br />

Avelar (Universidade Aberta) defenderam<br />

que a América não é tanto uma “fabricadora<br />

de mitos”, opinião expressa pelo<br />

ensaísta Eduardo Lourenço, na primeira<br />

portuGAL/euA<br />

“escrever, tal como o entendo, é uma forma de ser”, manuel António pina e Filipa melo.<br />

sessão deste ciclo de conferências [ver<br />

Paralelo n.º 2] mas, sobretudo, um espelho<br />

onde se têm projectado algumas das expectativas<br />

europeias. No ano em que se celebra<br />

o cinquentenário do ensino da<br />

literatura norte-americana em Portugal,<br />

os aspirantes a americanistas poderão<br />

contar com múltiplas “leituras das narrativas<br />

fundadoras da identidade americana”,<br />

“o questionamento dos clássicos”<br />

e o estudo de alguns dos “temas preferenciais”:<br />

a “questão da identidade”, “o<br />

herói rebelde”, a “discrepância entre a<br />

promessa e a realidade”, “o desejo de<br />

evasão”, “a fuga” e a “viagem”. O “multiculturalismo”<br />

e a “interinfluência das<br />

artes” nos Estados Unidos são ainda contemplados<br />

nos programas universitários<br />

portugueses porque sem esta abordagem<br />

transversal não é possível compreender<br />

“a ideia da América”, na opinião de<br />

Teresa Alves, um “mundo que não acaba”<br />

e por isso é indefinível.<br />

*Público, 21 de Fevereiro de 2008<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 71<br />

RUI OCHôA


Twentieth Century Portugal:<br />

A Historical Overview<br />

José miguel sardica<br />

Universidade Católica Editora, 008<br />

7<br />

Portugal<br />

contemporâneo<br />

POR mAriA ináCiA rezoLA<br />

Em 2003, António Costa Pinto leva a cabo<br />

uma iniciativa relativamente inédita no<br />

panorama nacional: reúne contributos de<br />

académicos de diferentes áreas de especialização<br />

(história, economia, política,<br />

cultura, artes, etc.) e publica, em Nova<br />

Iorque, Contemporary Portugal. Politics, Society<br />

and Culture 1 . Esta ambiciosa e bem conseguida<br />

obra propunha-se fornecer a especialistas,<br />

estudantes e ao público em geral<br />

uma visão do Portugal contemporâneo,<br />

abordando, para o efeito, aspectos tão<br />

diversos como a política, questões coloniais,<br />

relações internacionais, economia,<br />

movimentos migratórios, mudança social,<br />

literatura, arte, etc. Nesse mesmo ano,<br />

Manuel Baiôa, Paulo Jorge Fernandes e<br />

Ribeiro de Meneses publicam um excelente<br />

balanço, também em língua inglesa,<br />

sobre a história política do século XX português<br />

2 . Ainda que com âmbitos diferentes,<br />

estes dois trabalhos acabaram por se<br />

tornar indispensáveis a todos os investigadores<br />

estrangeiros que desejam iniciar<br />

um estudo sobre o Portugal contemporâneo<br />

ou acompanhar os mais recentes<br />

desenvolvimentos académicos operados<br />

neste domínio.<br />

Apesar destes progressos, o público não<br />

especialista continuava a não dispor de uma<br />

obra de síntese que lhe permitisse ter uma<br />

visão rápida mas rigorosa da história recente<br />

de Portugal. É essa, em nosso entender,<br />

a grande lacuna que Twentieth Century Portugal,<br />

A Historical Overview vem colmatar. Mas não<br />

é esse apenas o seu mérito.<br />

Livros<br />

estante FLAD<br />

O seu autor, José Miguel Sardica, há<br />

muito que nos habituou a trabalhos de<br />

inegável e reconhecida qualidade 3 . Não é<br />

por acaso que no início do estudo tem<br />

preocupação de esclarecer o seu âmbito,<br />

objectivos e limitações. O seu propósito<br />

– familiarizar um público “generalista”<br />

estrangeiro com a história contemporânea<br />

portuguesa – e as naturais “contingências”<br />

de espaço de uma obra deste tipo, levaram-no<br />

a optar por se situar no plano da<br />

história institucional e política, recolhendo<br />

e sintetizando as investigações que<br />

neste âmbito se têm produzido.<br />

Tendo como ponto de partida os três grandes<br />

ciclos do século XX português –<br />

República (1910-1926), Ditadura (1926-<br />

-1974) Democracia (1974-década de<br />

1980) – Sardica estrutura o seu trabalho<br />

em 20 capítulos de maneira a clarificar<br />

com maior precisão as suas evoluções<br />

e momentos de viragem. A opção pela<br />

síntese – não se espere encontrar novos<br />

factos ou pesquisa original, alerta o<br />

autor – não o impede de assumir uma<br />

posição quanto a alguns dos aspectos mais<br />

polémicos da história recente de Portugal.<br />

‘ posições polémicas, reveladoras<br />

do domínio do tema e capacidade<br />

reflexiva do autor, que apenas<br />

contribuem para tornar mais<br />

aliciante a leitura da obra.<br />

’<br />

Veja-se, a este respeito, o seu posicionamento<br />

sobre a democraticidade do regime<br />

republicano português, a família política<br />

em que situa a ditadura salazarista ou o<br />

papel que atribui a alguns dos protagonistas<br />

da Revolução portuguesa. Posições<br />

polémicas, reveladoras do domínio do<br />

tema e capacidade reflexiva do autor, que<br />

apenas contribuem para tornar mais aliciante<br />

a leitura da obra.<br />

A sinopse é complementada com quatro<br />

importantes anexos – acrónimos, cronologia,<br />

biografias e bibliografia – em que,<br />

mais uma vez, o autor deixa patente a sua<br />

mestria. Apesar de a sua área de especialidade<br />

ser o século XIX em boa hora aceitou<br />

este difícil desafio.<br />

Uma observação apenas, relativamente<br />

secundária, sobre as opções gráficas e a<br />

conhecida resistência dos editores às notas<br />

de rodapé. Mais uma vez, como acontece<br />

em muitas outras obras, a estratégia de<br />

“encaixar” as notas entre o final do corpo<br />

do texto e os anexos não foi, em nosso<br />

entender, a melhor.<br />

Balanço final: um livro há muito esperado<br />

que cumpre bem os seus propósitos<br />

de divulgação da história contemporânea<br />

a um público estrangeiro generalista.<br />

1 Pinto, António Costa (ed.), Contemporary Portugal. Politics, Society<br />

and Culture. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003.<br />

2 Baiôa, Fernandes, e Meneses, Ribeiro de, “The political<br />

history of twentieth-century Portugal”, in e-JPH, vol. 1,<br />

n.º 2, Inverno de 2003, pp. 2-18.<br />

3 Doutor em História, docente da Faculdade de Ciências<br />

Humanas da Universidade Católica Portuguesa e membro<br />

do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura dessa<br />

mesma universidade, é autor de diversos artigos em<br />

revistas especializadas de história e diversos livros sobre<br />

história política, institucional e cultural de Portugal. Os<br />

seus estudos sobre o franquismo, a regeneração, ou as<br />

biografias de José Maria Eugénio de Almeida e o duque<br />

de Ávila e Bolama são obras incontornáveis da historiografia<br />

contemporânea portuguesa.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


Vulcão dos Capelinhos<br />

– Memórias 1957- 007<br />

victor hugo Forjaz (editor-coordenador)<br />

OVGA – Observatório Vulcanológico<br />

e Geotérmico dos Açores,<br />

Ponta Delgada, 007<br />

Sobre o vulcão<br />

POR FrAnCisCo beLArD<br />

Jornalista freelance<br />

Esta obra colectiva de 826 páginas pesa<br />

cerca de três quilos, mas o seu peso científico<br />

e historiográfico é muito superior às<br />

quantidades enunciadas. A sua apresentação<br />

pública a 27 de Setembro de 2007 na<br />

Sociedade Amor da Pátria, na cidade da<br />

Horta, comemorou a erupção dos<br />

Capelinhos cinquenta anos antes, acontecimento<br />

natural e histórico que como tal<br />

foi sentido na altura, emocionando os<br />

Açores e o País, e tendo consequências<br />

próprias de um abalo que não era apenas<br />

sísmico. O alarme causado pelo despertar<br />

do vulcão (só adormeceria por volta de 24<br />

de Outubro de 1958) ultrapassou as<br />

dimensões do mero susto, embora grande;<br />

muitas pessoas emigrariam, nomeadamente<br />

para os Estados Unidos (ver o recente<br />

volume coordenado por Tony Goulart,<br />

Capelinhos: A Volcano of Synergies – Azorean emigration<br />

to America, 2008, San José: Portuguese<br />

Heritage Publications of California,<br />

452 pp.). Casas ficaram sob lava e cinzas<br />

(massa que no litoral viria a conformar<br />

uma península, aumentando a área da ilha),<br />

jornais, rádios, fotografias, filmes, artigos<br />

e livros repercutiram as alterações geomorfológicas<br />

no local e o que daí resultou para<br />

a paisagem e para o tecido social. Depois<br />

houve obras de construção e reconstrução,<br />

e estudos científicos da tectónica e do vulcanismo<br />

das ilhas, dando utilidade ao fenómeno;<br />

sem isso ficaria confinado a pesados<br />

custos, ainda que sem perda de vidas. Victor<br />

Livros<br />

Hugo Forjaz, então adolescente, mudou de<br />

projecto profissional e veio a ser o nome<br />

porventura mais conhecido dos geólogos<br />

e vulcanólogos que aprofundaram e divulgaram<br />

a lição dos Capelinhos, coisa que<br />

continua a fazer, como comprova o volume<br />

identificado, ao qual pude aceder num dos<br />

momentos comemorativos (ver expresso/<br />

”Actual”, 13 de Outubro de 2007).<br />

Prefaciado pelo presidente do Governo<br />

Regional dos Açores, Carlos M. Martins do<br />

Vale César, o livro recolhe contributos<br />

importantes, como (sigo o índice e perdoem-me<br />

omissões) os de Júlio Quintino<br />

(que assinou o relatório do Serviço<br />

Meteorológico Nacional sobre a erupção<br />

submarina ao largo da ponta oeste do Faial<br />

e a cerca de um quilómetro da costa, junto<br />

aos ilhéus dos Capelinhos, e mais tarde o<br />

levantamento geomagnético da<br />

ilha para o aludido SMN),<br />

Frederico Machado (engenheiro<br />

e director de Obras Públicas a<br />

quem se devem, em 1958-1959,<br />

notícias científicas preliminares),<br />

Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro<br />

de Brito, John Scofield, Haroun<br />

Tazieff, A. de Castello Branco, F.<br />

Moitinho de Almeida, Georges<br />

Zbyszewski, Octávio da Veiga<br />

Ferreira, C. F. Torre de Assunção,<br />

José Custódio de Morais, José<br />

Correia da Cunha, J. A. Sacadura<br />

Garcia, Viriato Campos, Adrian F.<br />

Richards et alia, A. de Mendonça<br />

Dias, W. H. Parsons, J. W. Mulford,<br />

Victor Hugo Forjaz, Aaron C.<br />

Waters et alia, Guy Camus, Alwyn<br />

Scarth e Jean-Claude Tanguy,<br />

Ricardo Madruga da Costa, Zilda<br />

de Melo França, e ainda Filipe M.<br />

Porteiro, Frederico Cardigos,<br />

Helder Fraga e equipa do projecto<br />

OGAMP, etc. O volume inclui<br />

fotografias a preto e branco (coevas)<br />

e a cores (mais recentes),<br />

mapas, esboços geológicos e<br />

outros registos documentais, a<br />

que acrescem testemunhos de ou<br />

sobre uma dúzia de observadores<br />

e investigadores do fenómeno,<br />

relatórios, recortes de imprensa...<br />

Não ignoro que esta recensão, breve para<br />

a dimensão do objecto e sobretudo para<br />

o seu alcance histórico e científico, padece<br />

de aridez. Que esta não vos iluda; o<br />

livro contém informação rica e diversificada,<br />

apta a seduzir os leigos que quase<br />

todos somos, ficando a ser obra de referência<br />

e consulta sobre contextos geofísicos,<br />

geográficos e sociológicos que a<br />

natureza e a história apontam como problemas<br />

permanentes dos Açores, ou seja,<br />

também nossos como povo, e um legado<br />

para a comunidade científica internacional.<br />

“Capelinhos foi um mundo de aprendizagens”,<br />

escreve V. H. Forjaz na página<br />

821 do livro que com boas razões ele acha<br />

curto, em epílogo que une retrospectiva<br />

e prospectiva, no ponto da situação de um<br />

caso não encerrado.<br />

‘ [...] o livro contém informação<br />

rica e diversificada, apta a seduzir<br />

os leigos que quase todos somos.<br />

’<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 73


Drawings in Spain<br />

and Portugal<br />

Revista Master Drawings, vol. 45,<br />

nº 3, Outono de 007<br />

Master Drawings Association,<br />

Nova Iorque<br />

74<br />

desenhos<br />

portugueses<br />

POR CArLos mourA<br />

docente de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais<br />

e Humanas da Universidade Nova de Lisboa<br />

Observava Bernard Berenson, na introdução<br />

desse autêntico monumento de connoisseurship<br />

que é o seu livro sobre os<br />

desenhos dos pintores florentinos, que o<br />

conhecimento sobre a autoria de um qualquer<br />

desenho nunca pode ser estritamente<br />

científico. Porque não mensurável, nem<br />

reversível ou demonstrável, tal conhecimento<br />

é, no máximo, apenas plausível.<br />

Donde a extrema latitude do debate crítico<br />

neste domínio, necessariamente atribuicionista<br />

dado o carácter fragmentário<br />

e aleatório das peças em estudo. Visando<br />

a elaboração do corpus dos diferentes artistas<br />

do passado, o esclarecimento dos nexos<br />

entre a sua obra gráfica e a pintura, a<br />

escultura ou outras realizações estéticas,<br />

a reconstituição de colecções e o seu significado<br />

cultural, ele supõe um elevado<br />

grau de especialização em constante descoberta<br />

e revisão. Os núcleos dos museus,<br />

bibliotecas, fundações e colecções (públicas<br />

e privadas), além das obras avulsas<br />

constantemente lançadas no mercado,<br />

integram assim todo um campo de investigação<br />

pertencente à história da arte.<br />

Ocupando nele um lugar cimeiro, a<br />

revista Master drawings é seguramente a<br />

mais importante publicação internacional<br />

sobre a matéria. Herdeira da Old Master<br />

drawings anterior à II Guerra Mundial,<br />

congrega no seu corpo redactorial e de<br />

Livros<br />

colaboradores os mais reputados<br />

especialistas mundiais. Os<br />

artigos e as recensões críticas<br />

nela publicados são, por isso,<br />

trabalho de ponta e uma referência<br />

não apenas para o académico,<br />

mas também para o<br />

público culto amante da arte.<br />

Dedicado a Espanha e Portugal,<br />

o número de Outono de 2007<br />

conferiu, pela primeira vez,<br />

algum destaque ao estudo dos<br />

desenhos de artistas portugueses<br />

ou de estrangeiros conservados<br />

em colecções nacionais. Com<br />

particular realce para o contributo<br />

de Nicholas Turner, e as<br />

novas revelações sobre Vieira<br />

Lusitano trazidas em excelente<br />

e bem documentado artigo.<br />

Autor de variados livros,<br />

nomeadamente sobre o desenho<br />

italiano, conservador no<br />

Departamento de Desenhos e<br />

Gravuras do British Museum e<br />

curador dos desenhos do Paul<br />

Getty Museum de Los Angeles, Turner<br />

ocupara-se já, em 2000, do catálogo da<br />

exposição dos desenhos dos Mestres europeus<br />

em Colecções Portuguesas (Cambridge e Lisboa)<br />

e colaborara no da exposição de Vieira<br />

Lusitano (Museu de Arte Antiga). Daí o<br />

interesse pela obra gráfica do pintor português,<br />

cuja prática italiana, próxima da<br />

técnica do desenho à pena e aguada de<br />

Francesco Trevisani e das composições a<br />

giz de Benedetto Luti, originou uma vasta<br />

produção, longe de estar completamente<br />

identificada. Dois estudos para um Martírio<br />

de São Lourenço, em Acireale (Catânia) e<br />

Liverpool, são assim propostos para o<br />

primeiro período romano de Vieira,<br />

enquanto uma Coroação de d. João V (antes<br />

atribuída a Joseph Werner, o Jovem) e uma<br />

alegoria (considerada de um anónimo<br />

florentino), ambas parisienses, ingressam<br />

igualmente no catálogo do artista, a par<br />

de outras folhas mais tardias. Contam-se,<br />

entre estas, uma notável Minerva (colecção<br />

particular) e um Orfeu, de Würzburg, dado<br />

até agora ao círculo de Carlo Maratta, com<br />

o qual alguns dos seus desenhos devem<br />

andar confundidos. Como as sete folhas<br />

da Albertina de Viena, em que se inclui<br />

uma versão da Alegoria da Pintura, independentemente<br />

de outras relacionadas sobretudo<br />

com gravuras.<br />

Num artigo mais breve, Eduardo Batarda<br />

Fernandes divulga ainda a existência da<br />

colecção da Faculdade de Belas-Artes do<br />

Porto, e das novas aquisições de desenhos<br />

italianos, espanhóis e holandeses que o<br />

apoio mecenático para ela permitiu encaminhar.<br />

Havendo a registar, por último,<br />

uma notícia crítica sobre os desenhos de<br />

Fernando Calhau, presentes na retrospectiva<br />

intitulada “Convocação I e II”, realizada<br />

em 2006-2007 no Centro de Arte<br />

Moderna da <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian,<br />

em Lisboa. Da autoria de Philippe-Alain<br />

Michaud, discorre sobre o universo poético<br />

deste artista contemporâneo, falecido<br />

recentemente, e as suas composições sobre<br />

papel de registos cromáticos totalizantes<br />

(também na colecção da FLAD).<br />

E por aqui se fica a parte relativa à arte<br />

portuguesa, um tanto desequilibrada em<br />

relação à espanhola, sempre mais visível<br />

pelo respectivo acervo e produção<br />

bibliográfica.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


Voices from the Islands:<br />

An Anthology of Azorean<br />

Poetry<br />

John M. Kinsella<br />

(Selection and translation)<br />

007, Gávea-Brown Publications<br />

Vozes do mar<br />

POR nuno CostA sAntos<br />

O cliché que associa os Açores à poesia<br />

não é, sabemo-lo, descabido. A verdade<br />

é que, desde há muito, tem nascido no<br />

arquipélago vasta produção poética,<br />

de diferentes tonalidades e vocações,<br />

muita dela marcada pela sempre<br />

invocada melancolia brumosa<br />

das ilhas. Outra ideia recorrente (de<br />

quem conhece os dois lugares,<br />

claro) que não é de todo delirante<br />

é aquela que faz uma ponte entre<br />

os Açores e a Irlanda – em termos<br />

paisagísticos e de universo. Voices<br />

from the Islands, uma antologia de<br />

poesia açoriana organizada por um<br />

irlandês, faz pois confluir dois<br />

lugares-comuns que fazem sentido.<br />

A edição é da Gávea-Brown, editora<br />

que tem publicado várias antologias<br />

poéticas, de Eugénio de<br />

Andrade a Jorge de Sena, passando<br />

pelos açorianos Emanuel Félix e<br />

José Martins Garcia.<br />

Na introdução, John Kinsella faz<br />

um retrato equilibrado e interessante<br />

das características essenciais<br />

da poesia – e da literatura – açoriana.<br />

Kinsella encontra alguma<br />

unidade nos temas – o mar, a emigração<br />

e (sobretudo) o isolamento<br />

insular, criador de um território<br />

literário autónomo e de uma linguagem<br />

própria. Nomes como os<br />

de Pedro da Silveira, Onésimo<br />

Teotónio de Almeida, Eduardo<br />

Livros<br />

Bettencourt Pinto e Diniz<br />

Borges são referidos justamente<br />

como responsáveis<br />

pelo aprofundamento<br />

da ideia de “poesia açoriana”,<br />

quer através da<br />

recolha de textos quer<br />

através do pensamento e<br />

da reflexão.<br />

Há uma referência importante ao poeta<br />

Roberto de Mesquita, florentino que,<br />

tendo vivido no século XIX na ilha das<br />

Flores, escreveu uma poesia influenciada<br />

pela densidade e pela pose de Baudelaire<br />

e Verlaine. Mas também se recordam<br />

Côrtes-Rodrigues, o homem do Orpheu<br />

nos Açores, a geração do seminário de<br />

Angra do Heroísmo, publicações como<br />

Gávea e Atlântida e o desenho que os emigrantes<br />

deram ao lirismo das ilhas. São<br />

trazidas ao texto as ideias de “açoriani-<br />

‘ são trazidas ao texto as ideias de “açorianidade”<br />

e a polémica (estafadíssima, diga-se)<br />

em volta da questão da “literatura açoriana”,<br />

bem resolvida num parágrafo aqui transcrito<br />

da autoria de onésimo Almeida.<br />

dade” e a polémica (estafadíssima, diga-<br />

-se) em volta da questão da “literatura<br />

açoriana”, bem resolvida num parágrafo<br />

aqui transcrito da autoria de Onésimo.<br />

Mas também se fala de “portugalidade”.<br />

Um sentimento que se resume numa boa<br />

frase de um dos poetas aqui presentes, o<br />

emigrante Heitor Aghá-Silva: “Só sei chorar<br />

em português” (curiosamente a palavra<br />

“saudade” não é sempre traduzida da<br />

mesma maneira – umas vezes aparece<br />

como “yearning”, outras como “nostalgia”).<br />

Fica a faltar na introdução<br />

uma breve nota sobre os “novos”<br />

– alguns deles aqui representados,<br />

como Mário Cabral e Rui Machado,<br />

e apesar de tudo reveladores de uma<br />

especificidade literária própria, a necessitar<br />

de enquadramento.<br />

O melhor do livro está claramente<br />

no prazer com que se lê a versão<br />

em inglês de alguns poemas maiores<br />

da poesia açoriana – por exemplo,<br />

“As raparigas lá de casa”, de<br />

Emanuel Félix, resulta muitíssimo<br />

bem na versão “The girls at home”.<br />

Outro exemplo: “Eu não sou quem<br />

fiquei; o meu delito”, de José<br />

Martins Garcia, continua a ser perfeito<br />

como “I am not the one who<br />

stayed; my crime”. Fica claro neste<br />

livro que os poetas açorianos são,<br />

nos seus melhores representantes,<br />

excelentes e maiores. O pior está<br />

nalgumas escolhas de autores e poemas<br />

menos consistentes e mais<br />

questionáveis – que têm o natural<br />

efeito de desequilibrar o retrato.<br />

Voices from the Islands, por ter os poemas<br />

no original e em inglês, pode<br />

também funcionar como uma boa<br />

antologia para quem, no continente,<br />

nada conhece da poesia açoriana<br />

além dos nomes clássicos.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 75<br />


The Americans<br />

robert Frank<br />

Steidl, 008. Fotografias de Robert<br />

Frank e prefácio de Jack Kerouac<br />

(1ª edição, 1958)<br />

76<br />

Retratos<br />

da América<br />

POR CLArA pinto CALDeirA<br />

Em 1958, a Guerra Fria dominava o mundo,<br />

Eisenhower era o Presidente dos Estados<br />

Unidos, a corrida espacial estava lançada,<br />

ainda existia segregação racial naquele país,<br />

e os grandes movimentos sociais estavam<br />

por vir.<br />

Livros<br />

Nesse ano, Robert Frank publicava a obra,<br />

agora reeditada, The Americans – um retrato<br />

da América profunda, que resultou de uma<br />

viagem de vários meses por todos os cantos<br />

do país que o fotógrafo suíço escolheu para<br />

viver, no início da década. Como afirma Jack<br />

Kerouac, que prefaciou a obra, ao abrir estas<br />

páginas feitas a preto e bran-<br />

co, e outros contrastes, “não<br />

se sabe se uma jukebox é mais<br />

triste do que um caixão”.<br />

Robert Frank retrata um país<br />

de cowboys, de bandeiras patrióticas,<br />

de carros modernos,<br />

do advento da televisão, mas<br />

também de fissuras entre<br />

raças, assimetrias sociais e<br />

feridas de pobreza. Embora algumas imagens<br />

nos confrontem com símbolos onde a alma<br />

existe sem a presença humana, a maioria<br />

das fotografias seleccionadas por Robert<br />

Frank têm gente dentro. Ou melhor, americanos.<br />

Alguns anos antes de conseguir a<br />

bolsa do Guggenheim que lhe permitiu<br />

realizar este livro, Robert Frank declarou à<br />

revista Life o que queria transmitir ao público<br />

com as suas imagens. Desejava que, ao<br />

olhar uma fotografia sua, as pessoas se sentissem<br />

como quando querem ler um bom<br />

verso duas vezes. Kerouac dá-lhe razão,<br />

‘ embora algumas imagens nos confrontem<br />

com símbolos onde a alma existe<br />

sem a presença humana, a maioria das<br />

fotografias seleccionadas por robert Frank<br />

têm gente dentro. ou melhor, americanos.<br />

’<br />

ao classificar este livro como um poema,<br />

acrescentando que muitos livros de poesia<br />

podem ser escritos sobre ele. Trata-se de um<br />

olhar humano e delicado sobre a diversidade<br />

americana do final dos anos de 1950,<br />

uma viagem por dentro da alma de um país<br />

em mutação.<br />

Robert Frank dedicou-se também ao cinema,<br />

abandonando temporariamente a fotografia.<br />

Acompanhou a geração beatnik,<br />

documentando a sua realidade e protagonistas.<br />

As suas afinidades com Kerouac,<br />

nome fundamental deste movimento, estenderam-se<br />

à tela, num filme narrado pelo<br />

escritor (Pull Miss daisy). Entre várias obras<br />

consideradas marcos do cinema avant-gard,<br />

destaca-se o polémico documentário sobre<br />

uma digressão dos Rolling Stones, que teve<br />

algumas restrições de exibição, suscitadas<br />

pela própria banda. A ligação à sétima arte<br />

parece natural ao folhear The Americans,<br />

em que a linguagem cinematográfica e<br />

documental está já presente. Sempre atento<br />

aos aspectos mais controversos da realidade,<br />

e sem observar restrições, a vida de Robert<br />

Frank divide-se, desde então, entre estas duas<br />

formas artísticas. Em 1996 foi distinguido<br />

com o prémio do Hasselblad Center, na<br />

Suíça, seu país natal.<br />

Reeditada pela Steidl, em 2008, com prefácio<br />

original de Jack Kerouac, The Americans<br />

mantém-se uma obra intemporal. Porque,<br />

para compreender o presente, é importante<br />

contemplar o passado, décadas depois do<br />

final dos anos de 1950, o legado fotográfico<br />

do american trotter continua a ser poético.<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


Ainda hoje não é difícil que os desenhos de António Sena<br />

levantem dúvidas em muitos de nós relativamente ao seu estatuto.<br />

À primeira vista poderiam passar por meras folhas de<br />

rascunho, lugares onde alguém se demorou a organizar notas<br />

avulsas, como se num aturado processo de negociação do pensamento.<br />

Estão lá os números e as cifras, os seus indiscerníveis<br />

segredos, a medir esforços na rápida caligrafia. Estão lá as hesi-<br />

CoLeCção FLAD<br />

António sena<br />

Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511<br />

tações e os recuos, na sua energia insurgente, concretizada<br />

naquele paradoxo tão comum de querer apagar riscando por<br />

cima. Estão lá manchas, nódoas, borrões e toda a espécie de<br />

sinais e indícios que normalmente não nos ocorreria mencionar<br />

no inventário das coisas prováveis numa obra de arte.<br />

Também por isso, é absolutamente legítimo que tenhamos<br />

dúvidas quanto ao estatuto destes desenhos – que os encaremos<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 77<br />

FOTOGRAFIA


como provocações e que lhes respondamos na exacta proporção<br />

do confronto que estimulam. É legítimo, e é sobretudo<br />

desejável, ou não fossem estas provocações parte integrante das<br />

obras que aqui se apresentam, e cuja singularidade deve tanto<br />

ao universo dos interesses particulares de António Sena, quanto<br />

ao contexto artístico que as viu nascer.<br />

Iniciada em meados da década de 1960, a obra de António<br />

Sena cedo se sintonizou com as propostas da arte internacional<br />

da época. As influências que a pop art, o informalismo, a arte<br />

conceptual ou mesmo a arte minimal tiveram nos primeiros<br />

anos de produção deste artista, materializaram-se em pinturas<br />

e desenhos que, lenta mas objectivamente, testaram uma síntese<br />

possível para esta diversidade de propostas e enquadramentos<br />

formais. A incorporação de iconografias e processos do<br />

quotidiano, conjugada com a procura sistemática da requalificação<br />

do gesto, da instrumentalização do signo, e da poética<br />

da repetição, reuniram-se no estabelecimento de um programa<br />

estético que extraiu desta súmula a sua identidade própria.<br />

Os desenhos que aqui encontramos são um testemunho directo<br />

desta identidade e deste esforço de síntese. Na sua impressio-<br />

António Sena nasceu em Lisboa em 1941. Tendo iniciado o<br />

seu percurso académico no Instituto Superior Técnico e na<br />

Faculdade de Ciências de Lisboa, Sena abandona a formação<br />

na área científica para se inscrever na Sociedade Cooperativa<br />

de Gravadores Portugueses. Em 1965 parte para Londres<br />

como bolseiro da <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian, cidade<br />

onde frequenta a St. Martin’s School of Arts, e onde reside<br />

até 1975.<br />

Regressado a Lisboa, Sena conjuga a prática artística com a<br />

78<br />

CoLeCção FLAD<br />

nante contenção de meios, não só podemos identificar os<br />

resíduos de toda esta conjuntura, mas também o carácter idiossincrático<br />

da obra de Sena, e uma vitalidade pouco frequente<br />

em obras do chamado modernismo tardio. Realizadas em 1979,<br />

estas peças poderiam certamente servir para ilustrar as oscilações<br />

ocorridas no advento do pós-modernismo. Contudo, a sua energia<br />

é claramente moderna, feita de extremadas contradições que<br />

procuram coabitar no espaço da obra. Porque, se olharmos bem,<br />

estes desenhos inscrevem-se em folhas que parecem meras páginas,<br />

compõem-se de linhas que por vezes são traços, usam uma<br />

cor que nunca domina, promovem um rigor que nunca ordena,<br />

prometem uma mensagem que não comunica, e estão terminados<br />

na forma de um projecto. No fundo, estes desenhos são arte<br />

sem o parecer. E se é por isso que são provocações, é também<br />

por isso que são relevantes: pelo quanto resistem ao paradigma,<br />

pelo quanto desafiam as nossas expectativas e põem a nu as bases<br />

do nosso juízo estético e o índice de liberdade que lhe concedemos.<br />

bruno mArChAnD<br />

actividade docente, tendo sido professor de Pintura no Ar.Co.<br />

entre 1978 e 199 .<br />

De entre as exposições que realizou desde 1964, destacam-se<br />

a sua participação na LIS’79 – que lhe valeu o 1º prémio deste<br />

certame – bem como as individuais “Obras sobre Papel” e<br />

“Pintura”, ambas no Centro de Arte Moderna da <strong>Fundação</strong><br />

Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1990 e 00 , respectivamente), e<br />

a antológica “Pintura/Desenho 1964- 003” no Museu de Arte<br />

Contemporânea de Serralves (Porto, 003).<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009


CoLeCção FLAD<br />

Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 79<br />

FOTOGRAFIA


Revista tRimestRal de<br />

Política externa e<br />

Assuntos Internacionais<br />

editada pelo<br />

INSTITUTO PORTUGUÊS DE<br />

RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />

da Universidade Nova de Lisboa<br />

Rua de D. Estefânia, 195 - 5º, D. to<br />

1000-155 Lisboa | PORTUGAL<br />

Tel.: +351 21 3 1176<br />

Fax: +351 21 314 1228<br />

Email: ipri@ipri.pt<br />

www.ipri.pt<br />

80<br />

21<br />

12,50<br />

21 MAR : 2009 : TRIMESTRAL<br />

RELAÇÕES<br />

INTERNACIONAIS<br />

60 anos da NATO<br />

Manuel Fernandes Pereira<br />

António José Telo<br />

Pedro Manuel Santos<br />

Pedro Aires Oliveira<br />

Sandra Dias Fernandes<br />

Bernardo Pires de Lima<br />

O princípio de Obama<br />

José Gomes André<br />

António Costa Silva<br />

Manuela Franco<br />

Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009

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