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<strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
ConseLho DireCtivo:<br />
Teodora Cardoso (Presidente)<br />
Embaixador dos Estados Unidos da América<br />
Jorge Figueiredo Dias<br />
Jorge Torgal<br />
Luís Braga da Cruz<br />
Luís Valente de Oliveira<br />
Maria Gabriela Canavilhas<br />
Michael de Mello<br />
Vasco Graça Moura<br />
ConseLho exeCutivo:<br />
Rui Chancerelle de Machete (Presidente)<br />
Charles Allen Buchanan, Jr<br />
Mário Mesquita<br />
seCretário-GerAL: Fernando Durão<br />
DireCtores: Fátima Fonseca, Paulo Zagalo<br />
e Melo, Miguel Vaz<br />
subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra<br />
responsáveL peLos serviços FinAnCeiros:<br />
Maria Fernanda David<br />
responsáveL peLos serviços ADministrAtivos:<br />
Luiza Gomes<br />
Assessores: João Silvério, Paula Vicente<br />
Rua do Sacramento à Lapa, 1<br />
1 49-090 Lisboa | Portugal<br />
Tel.: (+351) 1 393 5800 • Fax: (+351) 1 396 3358<br />
Email: fladport@flad.pt • www.flad.pt<br />
paralelo<br />
DireCtor: Rui Chancerelle de Machete<br />
eDitorA: Sara Pina<br />
CoorDenADorA: Paula Vicente<br />
seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes<br />
e Sofia Roquete<br />
CoLAborAm neste número: Alexandre Soares,<br />
Ana Brasil, Ana Catarina Santos, Ana Luísa<br />
Rodrigues, António Vicente, Bruno Marchand,<br />
Carla Martins, Carlos Moura, Catarina Gomes,<br />
Catarina Neves, Claúdia Gameiro, Charles<br />
Buchanan, Clara Pinto Caldeira, Cristina Lai<br />
Men, Fabiana Coelho, Joana Fernandes, Joana<br />
Godinho, João Carita, Filipe Santos Costa, Filipe<br />
Vieira, Filipa Simas, Francisco Belard, James<br />
R. Dickenson, James Roosevelt, Manuel Jacinto<br />
Nunes, Marco Leitão Silva, Margarida Pimenta,<br />
Maria Inácia Rezola, Maria João Guimarães,<br />
Mário Bettencourt Resendes, Mário Mesquita,<br />
Mário Soares, Marta Amorim, Martha Mendes,<br />
Michael Werz, Nuno Costa Santos, Patrícia<br />
Fonseca, Rui Catalão, Rui Chancerelle de<br />
Machete, Rui Vallera, Sara Pina, Sónia Graça,<br />
Susana Neves, Susana Salgado, Susana Paula<br />
e Vanda Mendonça<br />
DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B ]<br />
revisão: António Martins<br />
impressão: www.textype.pt<br />
tirAGem: 3000 exemplares<br />
niF: 501 5 6 307<br />
nº De reGisto nA erC: 1 5 563<br />
perioDiCiDADe: semestral<br />
paralelo@flad.pt<br />
Depósito legal: 69 114/07<br />
ISSN 1646-883X<br />
© Copyright: <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
para o Desenvolvimento<br />
Todos os direitos reservados<br />
“Belo céu azul [aqui em Nova Iorque]<br />
que me leva a pensar que nós estamos<br />
na mesma latitude de Lisboa,<br />
o que tenho dificuldade em imaginar.”<br />
Albert Camus, Cahier V (1946)<br />
Caro leitor<br />
“<br />
Oúnico limite para a nossa realização no futuro são as<br />
dúvidas que temos hoje. Sigamos em frente com fé<br />
diligente e forte.” Esta podia ser uma frase de Obama<br />
levando muitos a ultrapassarem medos e preconceitos e “emergir de<br />
uma relação abusiva com os líderes do nosso país no século XXI”, como<br />
escrevia o <strong>New</strong> York Times. Mas a declaração é de Roosevelt, feita há mais de<br />
sessenta anos.<br />
Em comum, os dois presidentes conseguiram reavivar a crença na<br />
mudança – mobilizaram os americanos. Os milhares de pessoas que<br />
afluíram ao Mall e pacientemente esperaram nas estações de metro,<br />
onde parecia não caber mais uma agulha, para assistir ao juramento de<br />
Obama são disso um bom exemplo.<br />
Roosevelt foi vivamente lembrado com a recente eleição, mas já antes<br />
a FLAD concretizava o Fórum, a ele dedicado, que decorreu em São<br />
Miguel, no Verão passado, para analisar e debater as relações transatlânticas,<br />
celebrando a visita de FDR aos Açores que nunca esqueceu.<br />
Dado o interesse suscitado e a vontade de fazer uma revista melhor e<br />
dirigida a mais pessoas, a Paralelo passa a ser vendida ao grande público.<br />
Está, portanto, nas bancas este número especialmente dedicado aos dois<br />
presidentes: Obama e Roosevelt. sArA pinA<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
índice<br />
05 | Editorial de<br />
Rui Chancerelle de Machete<br />
Reconstruir a América<br />
08 | O que vai mudar?<br />
por Filipe Vieira<br />
11 | Testemunho<br />
por Mário Soares<br />
12 | O que esperar?<br />
por Lídia Jorge<br />
13 | Desafios à nova<br />
Presidência<br />
por João de Vallera<br />
26 | Revista de Imprensa<br />
29 | Mensagem<br />
de James Roosevelt<br />
30 | De olhos<br />
postos no mundo<br />
por Sara Pina<br />
[portuGAL/euA]<br />
59 | Liderança<br />
no século XXI<br />
Curso da Kennedy School<br />
nos Açores<br />
69 | “Asas sobre a<br />
América”: Só a literatura<br />
vence o tempo<br />
14 | Prioridades<br />
energéticas e ambientais<br />
por Charles Buchanan<br />
15 | A mudança<br />
que o mundo precisa<br />
por Manuel Jacinto Nunes<br />
16 | A realidade<br />
do sonho<br />
por Joana Godinho<br />
<br />
<br />
CAPA de<br />
André Carrilho<br />
34 | Actualidade<br />
do pensamento de Roosevelt<br />
Entrevista com<br />
Alan Henrikson<br />
40 | A América de volta<br />
às Nações Unidas<br />
Entrevista com<br />
Stephen Schlesinger<br />
62 | CARTA BRANCA<br />
Um jantar no Havai<br />
de Mário Bettencourt Resendes<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 3<br />
<br />
<br />
<br />
22 | BLOCO DE NOTAS<br />
O novo ciclo americano<br />
ou a analogia Roosevelt<br />
de Mário Mesquita<br />
“A única coisa de que devemos<br />
ter medo é o próprio medo”<br />
[portuGAL/euA]<br />
46 | Carlucci vs. Kissinger<br />
49 | Os Capelinhos<br />
e a emigração açoriana<br />
52 | Perfil de Luís<br />
dos Santos Ferro
Estatuto Editorial<br />
4<br />
A Paralelo, revista da <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> (FLAD), visa contribuir<br />
para o desenvolvimento das relações entre Portugal e os<br />
Estados Unidos, nomeadamente, nos domínios económico, científico<br />
e cultural.<br />
A Paralelo adopta este título a fim de sublinhar que Portugal e os Estados<br />
Unidos estão no mesmo paralelo geográfico, partilham valores, foram<br />
e são, muitas vezes, aliados na defesa de interesses comuns.<br />
A Paralelo define-se como publicação institucional o mais próxima<br />
possível do jornalismo, no que se refere ao rigor, à exactidão e à criatividade<br />
editorial.<br />
A Paralelo rege-se, no exercício da sua actividade informativa, pelas<br />
referências fundamentais da deontologia do jornalismo.<br />
A Paralelo, no âmbito da sua linha editorial, assume o compro-misso<br />
de assegurar a defesa dos valores da liberdade de expressão e do<br />
pluralismo.<br />
A Paralelo dedica especial atenção às questões relacionadas com a<br />
comunidade portuguesa residente nos Estados Unidos e à defesa<br />
dos seus legítimos interesses.<br />
A Paralelo assume nos editoriais a sua linha de orientação, considerando<br />
que as opiniões expressas nos artigos dos seus colaboradores<br />
apenas vinculam os respectivos autores.<br />
A Paralelo publicará, em simultâneo, duas edições, com conteúdo<br />
idêntico, em português e inglês.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
ui ChAnCereLLe De mAChete<br />
‘ A actual situação oferece uma ocasião<br />
única para revigorar a comunidade<br />
cultural e económica entre<br />
um e outro lado do Atlântico.<br />
’<br />
eDitoriAL<br />
Reconstruir a América<br />
A eleição do Presidente Barack Obama é<br />
uma grande oportunidade para a revisão<br />
das políticas interna e externa dos EUA.<br />
Muito significativamente, a conhecida<br />
revista The American Interest titulou o seu último<br />
número como “Rebuilding America”.<br />
As expectativas de mudança são enormes,<br />
porventura mesmo excessivamente altas.<br />
O novo Presidente caracteriza-se por ser um<br />
homem de convicções fortes que pretende<br />
traduzir na prática a política do Executivo.<br />
Espera-se que<br />
tenha a coragem<br />
necessária para<br />
tomar as decisões<br />
adequadas<br />
para a resolução<br />
dos problemas;<br />
que não fraqueje<br />
e não ceda à popularidade fácil de seguir<br />
padrões políticos maioritários pelo simples<br />
facto de o serem.<br />
Os compromissos que tenha de assumir<br />
deverão assim ser sobre questões concretas<br />
e não sobre princípios.<br />
A primeira prioridade do novo Presidente,<br />
vencer a profunda crise financeira e económica,<br />
reveste simultaneamente carácter<br />
doméstico e dimensão mundial. Combater<br />
o desemprego e retomar o crescimento<br />
implicam relançar a procura e restituir aos<br />
bancos a capacidade de veicularem os<br />
necessários meios financeiros aos diversos<br />
actores do mercado. Reganhar a confiança<br />
dos agentes económicos exige o saneamento<br />
das instituições financeiras e este, provavelmente,<br />
só poderá conseguir-se se o<br />
Estado se tornar, ainda que temporariamente,<br />
titular de grande parte do seu capital<br />
social, por muito que pese à ideologia<br />
dominante na América. O paralelismo com<br />
certas medidas socializantes de <strong>New</strong> Deal<br />
reforça certa comunidade do destino entre<br />
o programa do actual Presidente e o <strong>New</strong><br />
Deal de Roosevelt.<br />
No sistema internacional, o novo Presidente<br />
defenderá seguramente, acima de tudo, os<br />
interesses do seu país. É o seu dever. Mas,<br />
nas grandes questões, as soluções a adoptar<br />
não serão tão conflituais com as posições da<br />
América como os neoconservadores acreditavam.<br />
As políticas energéticas convenientes,<br />
o controlo do aquecimento global, a promoção<br />
do desenvolvimento sustentável, um<br />
comércio internacional com trocas mais justas,<br />
todos requerem solidariedades acima do<br />
egoísmo míope de curto prazo da anterior<br />
Administração.<br />
Mas, mesmo no aspecto essencial da segurança,<br />
a luta contra o terrorismo fundamentalista<br />
islâmico e a questão conexa da criação<br />
de um modus vivendi entre Israel e os palestinianos,<br />
a estabilização do Sudoeste Asiático,<br />
com soluções funcionais para o Iraque,<br />
o Afeganistão e o Paquistão, a saída para o<br />
impasse nuclear iraniano, são problemas que<br />
têm a ganhar com a predisposição para o<br />
diálogo que os EUA agora demonstram.<br />
O Ocidente, como aliado partilhando valores<br />
e interesses comuns, proporciona um<br />
apoio estável, se se estabelecer um clima<br />
de confiança entre parceiros que mutuamente<br />
se respeitem. Num mundo perigoso,<br />
os EUA e a União Europeia muito beneficiarão<br />
se desenvolverem os meios de cooperarem<br />
nas tarefas e processos necessários<br />
para levar de vencida os desafios comuns.<br />
Ao contrário do cepticismo dos que apregoam<br />
o declínio da unidade do Ocidente,<br />
a actual situação oferece uma ocasião única<br />
para revigorar a comunidade cultural e económica<br />
entre um e outro lado do Atlântico.<br />
Assim sejamos capazes de recriar os instrumentos<br />
capazes de a concretizar!<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 5
6<br />
A festa da libertação<br />
O nosso país ainda continuava na mesma valeta em que se encontrava<br />
no dia anterior, mas a atmosfera era estonteante. Sentíamo-<br />
-nos muito bem, não só porque tínhamos ultrapassado uma<br />
barreira racial tão velha como a própria república, mas também<br />
porque a alvorada nos trazia a percepção de que estávamos finalmente<br />
a emergir de uma relação abusiva com os líderes do nosso<br />
país do século XXI. As cenas festivas de libertação que Dick<br />
Cheney tinha, em tempos, imaginado para o Iraque, estavam<br />
finalmente a acontecer – em cidades por toda a América.<br />
[ Frank Rich ]<br />
Esperança concretizada<br />
Alguns príncipes nascem em palácios. Outros nascem<br />
em manjedouras. Outros, ainda, nascem na imaginação,<br />
a partir de restos de história e de esperança.<br />
Barack Obama nunca fala da forma como as pessoas<br />
o vêem. Pelo contrário, sempre que pode, afirma:<br />
“Não sou eu que estou a fazer História. São vocês.”<br />
[...] Ele gosta de dizer: “Nós somos aqueles de quem<br />
revistA De imprensA<br />
por Filipe vieira *<br />
temos estado à espera”, mas as pessoas estavam à sua espera, à<br />
espera de alguém que terminasse aquilo que foi começado por<br />
um Rei [“Rei”/”King”, alusão a Martin Luther King].”<br />
[ Nancy Gibbs ]<br />
Obama e Carter<br />
O candidato cujo percurso até à presidência mais se assemelhou<br />
ao de Obama foi Jimmy Carter. Também ele usou um apelo muito<br />
pessoal e inspirador para compensar um currículo pouco consistente.<br />
Após ter cortejado o público com uma retórica lisonjeira,<br />
prometendo “um governo tão bom como o próprio povo<br />
americano”, Carter falhou redondamente como presidente, em<br />
Nova era I<br />
Estas eleições foram tão extraordinárias em tantos aspectos que<br />
serão necessários muitos anos para que o seu verdadeiro significado<br />
seja completamente explorado e muitos mais para que seja<br />
entendido. No entanto, já se sente no ar o início de uma nova era.<br />
Tal como em 1932 e 1980, a crise económica abriu o caminho<br />
para a rejeição do tipo de governação que tem predominado e<br />
para o forjar de uma nova abordagem. O público virou-se contra<br />
o conservadorismo nacional e o neoconservadorismo internacional<br />
de uma forma enérgica e massiva. A crença de que os mercados<br />
livres e os impostos mínimos sobre os mais ricos poderiam<br />
resolver todos os problemas internos e que a arrogância unilateral<br />
e as armas americanas poderiam resolver todos os problemas<br />
externos estará morta durante uma geração ou mais. A estratégia<br />
eleitoral de ressentimento cultural e falso populismo sofreu um<br />
duro golpe. [ Hendrik Hertzberg ]<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
parte porque era uma espécie de projecto político solitário. [...]<br />
Os americanos sensatos esperam que o Presidente eleito Obama<br />
tenha um destino melhor. Deveriam também reflectir sobre as<br />
implicações do processo de selecção que, em breve, recomeçará<br />
novamente.” [ George F. Will ]<br />
O voto dos yuppies<br />
Tenho escrito acerca do que chamei Bushenfreude, um fenómeno de<br />
yuppies enfurecidos que beneficiaram muito com os cortes nos impostos<br />
implementados pelo Presidente Bush e que financiaram campanhas<br />
democratas populistas e encolerizadas. Tenho teorizado que<br />
as pessoas que trabalham no sector dos serviços financeiros e noutros<br />
a ele ligados, estão de tal maneira indignadas e alienadas pela<br />
incompetência, pelo pesado conservadorismo social e pelos repetidos<br />
insultos à inteligência da nação por parte do Partido Republicano<br />
da era Bush que estão a votar com o coração e a cabeça em vez de<br />
votar com a carteira. [ Daniel Gross ]<br />
Nova era II<br />
E eis aqui Barack Obama, filho de um queniano negro que<br />
veio para os EUA com uma bolsa de estudo e da sua mulher<br />
branca americana. Não há mais nenhuma nação no mundo em<br />
que um eleitorado, com uma maioria de 75 por cento, tenha<br />
eleito, como seu líder máximo, um homem que se identifica<br />
revistA De imprensA<br />
como fazendo parte de uma das minorias historicamente oprimidas<br />
dessa mesma nação.<br />
O foco da política negra afasta-se agora de uma liderança baseada<br />
na expressão de sentimentos de injustiça e de uma política de<br />
identidade baseada na vitimização e rancor. No seu lugar, temos<br />
agora uma era em que se parte do princípio que pessoas fortes e<br />
talentosas de qualquer origem encontrarão o caminho para chegar<br />
ao seu justo lugar de poder na cena política.<br />
[ Juan Williams ]<br />
Interesse mundial<br />
Não há memória de outras eleições que tenham feito vir à tona<br />
um interesse tão grande de todo o mundo. E o mundo estava<br />
claramente a torcer pelo senador Barack Obama. Agora esperam-<br />
-se acções eficazes e<br />
‘ não há memória de outras<br />
eleições que tenham feito<br />
vir à tona um interesse<br />
tão grande de todo<br />
o mundo.<br />
’<br />
não arranjos provisórios.<br />
[…] A única<br />
forma de governar<br />
nesta era desgovernada<br />
de democracias<br />
disfuncionais é<br />
pensando o impossível<br />
e agindo de<br />
forma imprevisível, deixando sempre para trás o adversário, ofegante,<br />
a tentar alcançar-nos. [ Arnaud de Borchgrave ]<br />
Inclinação à esquerda<br />
O desejo que o público manifesta de mais acção governamental<br />
para sarar a economia e garantir a cobertura dos seguros de saúde,<br />
bem como o seu novo cepticismo relativamente à desregulamentação<br />
do mercado, sugerem que somos um país moderado que<br />
agora se inclina ligeira e cautelosamente para a esquerda.<br />
Mas essa cautela significa que os progressistas deveriam evitar dar<br />
opiniões baseadas no pressuposto de que já foi consumada uma<br />
revolução ideológica. Não deveriam imitar o triunfalismo de<br />
Karl Rove e dos seus seguidores, que interpretaram a vitória de<br />
50,8 por cento do Presidente Bush em 2004 como o prelúdio<br />
de uma maioria republicana duradoura. [ E. J. Dionne Jr ]<br />
* Jornalista em Washington dC<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 7
Barack Obama prometeu mudar a América<br />
e essa mudança aí está. O próprio facto<br />
de ter sido o primeiro afro-americano a<br />
ser eleito para a presidência da mais poderosa<br />
potência mundial constitui, por si só,<br />
uma revolução. Aí reside a maior e a mais<br />
surpreendente das mudanças saídas desta<br />
saga eleitoral, que se arrastou por mais de<br />
vinte e dois meses.<br />
A eleição de John F. Kennedy, em 1960,<br />
ocorre como a mais provável das comparações<br />
com o feito eleitoral de Obama,<br />
ainda que a marginalização dos negros na<br />
sociedade americana apenas de forma mitigada<br />
se possa equiparar às dificuldades<br />
inicialmente sentidas, em termos de aceitação,<br />
pelas comunidades irlandesa, italiana<br />
ou portuguesa à sua chegada ao Novo<br />
Continente. Ainda assim, John Kennedy foi<br />
o primeiro católico a habitar a Casa Branca<br />
e, até hoje, foi o último. John Kerry, também<br />
católico, concorreu há quatro anos<br />
atrás e, já então, o factor religião deixou<br />
de existir como argumento catalisador.<br />
O historiador David Kennedy, da<br />
Universidade de Stanford, observa, a propósito,<br />
que Barack Obama poderá ser<br />
também o primeiro e o último Presidente<br />
afro-americano dos Estados Unidos, sugerindo:<br />
“Talvez possamos agora esperar<br />
uma época em que a raça seja, como a<br />
religião, um factor insignificante.” Clement<br />
Price, da Universidade de Rutgers, recorda<br />
que Obama “apresentou ao país, de<br />
forma magistral”, a sua mãe branca e os<br />
seus avós do Kansas, “para o ajudar a conquistar<br />
os corações e as mentes dos americanos<br />
brancos”.<br />
A mudança da América para uma era<br />
puramente não racial é uma das potencialidades<br />
inerentes à vitória eleitoral de<br />
Obama. Poucas décadas depois de ter sido<br />
dado aos negros americanos o direito ao<br />
voto, o fenómeno da descompressão da<br />
8<br />
o que vai mudar?<br />
A mudança da América para uma era puramente não racial<br />
é uma das potencialidades inerentes à vitória eleitoral de Obama.<br />
POR FiLipe vieirA*<br />
tensão racial começa a ser uma realidade<br />
social desejável e que está patente no eleitorado<br />
que votou Obama. Os resultados<br />
destas presidenciais deitam por terra muitos<br />
dos mitos raciais alimentados durante<br />
a campanha eleitoral, o primeiro dos<br />
quais era o de que o eleitorado masculino<br />
de raça branca seria o mais reticente<br />
a aceitar a entrada de um negro para a<br />
Casa Branca. Afinal, Obama obteve daquele<br />
sector a mais elevada percentagem do<br />
que qualquer outro candidato democrata,<br />
desde a eleição do Presidente Jimmy<br />
Carter, ainda que John McCain tenha tido<br />
uma apreciável vantagem: 57 contra os<br />
41 por cento de Obama. O eleitorado<br />
latino-americano, que Hillary Clinton<br />
reivindicava como feudo próprio, durante<br />
as primárias, votou em massa no candidato<br />
democrata. O analista de sondagens<br />
de Hillary, Sergio Bendixen, disse para<br />
quem o quis ouvir: “O votante hispânico<br />
– e eu quero dizer isto com muito<br />
cuidado – não tem demonstrado muita<br />
disposição ou afinidade em apoiar candidatos<br />
negros.” Na realidade, Obama<br />
atingiu os 64 por cento do voto latinoamericano,<br />
ultrapassando os 55 por cento<br />
obtidos por John Kerry em 2004. McCain,<br />
dada a sua impopular política relativamente<br />
à emigração, não foi além dos 33<br />
por cento, contra os 43 obtidos por<br />
George W. Bush, há quatro anos, aquando<br />
da sua reeleição. Obama arrebatou<br />
também o voto dos católicos com 54 por<br />
cento (45 para McCain) e dos judeus<br />
com 71 por cento (21 para McCain) e<br />
45 por cento dos votos de todas as confissões<br />
protestantes, contra 54 para o<br />
candidato republicano.<br />
“barack obama poderá ser o primeiro e o último presidente afro-americano dos euA” (David Kennedy).<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
ANNE RyAN/POOL/LUSA
o Fim De umA presiDênCiA<br />
De penDor imperiAL<br />
A vertente racial da vitória de Obama é<br />
apenas uma das mudanças saídas destas<br />
eleições. O país espera, certamente, mais.<br />
Objectivamente, a chegada de Barack<br />
Hussein Obama à Casa Branca põe termo<br />
a oito anos de uma Presidência republicana<br />
marcadamente ideológica e de pendor<br />
imperial, com poderes únicos na<br />
história da república americana.<br />
A herança de George W. Bush, são duas<br />
guerras por terminar – no Iraque e no<br />
Afeganistão – e uma avassaladora crise<br />
financeira global, cujo fim se não vislumbra<br />
para breve. A política de continuidade<br />
segundo o estratega democrata Joe trippi, “obama transformou a arte de comunicação em política”.<br />
‘ não será fácil transpor para a dimensão<br />
da Casa branca o molde de gestão<br />
aplicado à sua campanha eleitoral.<br />
’<br />
que o candidato republicano John McCain<br />
esboçou sem grande convicção e com<br />
algumas apressadas mudanças de percurso,<br />
acabou por colocar nas mãos de<br />
Obama o futuro do país.<br />
O eleitorado espera, agora, do seu 44.º<br />
Presidente, mais do que a mudança prometida.<br />
Parece querer, afinal, uma nova<br />
América! E pode muito bem acontecer que<br />
Barack Hussein Obama seja o homem certo,<br />
no momento certo para responder a esse<br />
desafio. Não será<br />
fácil transpor para a<br />
dimensão da Casa<br />
Branca o molde de<br />
gestão aplicado à sua<br />
campanha eleitoral.<br />
A sua campanha foi,<br />
comprovadamente,<br />
uma das mais criativas<br />
e, ainda assim, das mais metódicas<br />
e sistemáticas de que há memória na<br />
história do país. Obama demonstrou ter<br />
um perfeito controlo das situações, navegando<br />
com extrema habilidade e ele-<br />
gância, muitas das dificuldades que lhe<br />
foram sendo colocadas à frente. Desde<br />
as alusões de carácter racista avançadas<br />
pela campanha de Hillary Clinton,<br />
durante as primárias, passando pela<br />
erupção inusitada do reverendo Wright,<br />
até às acusações insidiosas de ligações<br />
ao terrorismo largadas pela governadora<br />
do Alasca em comícios pelas terras<br />
do interior, a tudo os porta-vozes do<br />
candidato democrata responderam com<br />
uma grande contenção.<br />
“vAGA De FunDo” eLeCtróniCA<br />
A utilização dos meios electrónicos na campanha<br />
eleitoral pelas hostes de Barack<br />
Obama irá ser aplicada no centro do poder,<br />
em Washington. O estratega democrata Joe<br />
Trippi, em declarações ao Washington Post,<br />
comentava, a propósito: “Assim como John<br />
F. Kennedy usou de forma magistral a televisão<br />
como medium para levar a sua mensagem<br />
ao público”, Obama transformou a<br />
arte de comunicação em política ao ter,<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 9<br />
JUDy DEHAAS/EPA/LUSA
‘ obama já bateu com<br />
a porta na cara dos lóbis<br />
que queriam financiá-lo.<br />
’<br />
pela primeira vez, integrado a internet<br />
numa campanha política.<br />
E, agora, na Casa Branca, o novo Presi-<br />
dente eleito tem em marcha um projecto<br />
para expandir o sistema de comunicações.<br />
Os conselheiros políticos querem manter<br />
viva a “vaga de fundo” que foi a coluna<br />
dorsal do apoio, durante o processo eleitoral.<br />
O que lhe irá permitir contactar,<br />
directa e instantaneamente, através da internet,<br />
com uma rede de doadores e de militantes<br />
que serviram como “soldados”<br />
durante a campanha eleitoral: que ajudaram<br />
a organizar comícios; que foram entregar<br />
folhetos de porta a porta; que registaram<br />
milhões de votantes; que, no dia das eleições,<br />
telefonaram aos retardatários e que<br />
os levaram até às assembleias de voto, se<br />
necessário. Ao que se julga saber, Barack<br />
Obama tem disponível uma base de dados<br />
10<br />
que contém qualquer coisa como dez<br />
milhões de endereços de correios electrónicos<br />
e de telemóveis prontos a receber e<br />
a retransmitir sms à velocidade de um fogo<br />
posto numa floresta de cedros.<br />
A poLítiCA morAL De obAmA<br />
À semelhança de Jimmy Carter, este<br />
Presidente promete uma política moral.<br />
Mas, ao contrário de Carter, Obama é um<br />
político pragmático. Já bateu com a porta<br />
na cara aos lóbis que queriam financiar a<br />
sua equipa de transição e promete mandar<br />
fechar a prisão militar de Guantánamo.<br />
O fim da guerra no Iraque é outra promessa<br />
do novo Presidente e tudo parece<br />
indicar que o calendário da retirada das<br />
forças americanas daquela frente parece<br />
coincidir com a vontade política do<br />
Governo iraquiano e com a opinião das<br />
chefias do Pentágono. Já no que toca ao<br />
teatro de guerra no Afeganistão o cenário<br />
é diferente. E diferentes são também as<br />
opções de Barack Obama que propõe um<br />
reforço militar rápido, a par da retirada<br />
do Iraque, para dar caça aos taliban e<br />
estabilizar o poder do Presidente Hamid<br />
Karzai.<br />
Para proteger a sua retaguarda política<br />
em Washington e para evitar precalços e<br />
outros erros de percurso, o 44.º Presidente<br />
dos Estados Unidos nomeou Rahm<br />
Emanuel para seu chefe de gabinete.<br />
Emanuel é um homem do partido, brilhante,<br />
metódico e obstinado. Foi conselheiro<br />
político de Bill Clinton na Casa<br />
Branca. Por isso conhece os cantos à casa.<br />
Esteve em Wall Street, antes de ter concorrido<br />
e de ter sido eleito para o Congresso<br />
pelo estado do Illinois. Aliás, foi<br />
ele o arquitecto da vitória eleitoral dos<br />
democratas em 2006, na sua qualidade de<br />
presidente de campanha. Paul Begala,<br />
outro ex-conselheiro de Clinton, definiu<br />
Emanuel como “qualquer coisa entre uma<br />
dor de dentes e um ataque de hemorróidas”<br />
para sublinhar o estilo abrasivo e<br />
implacável do homem a quem cabem<br />
agora, na prática, na Casa Branca, as funções<br />
equivalentes às de um primeiro-<br />
-ministro num governo europeu.<br />
* Jornalista em Washington dC<br />
obama com soldados em basra, no iraque. o fim da guerra é uma das promessas do novo presidente.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
JANNINE B HARTMANN/EPA/LUSA
RAQUEL WISE<br />
ERIC DRAPER/EPA/LUSA<br />
POR mário soAres*<br />
Testemunho<br />
‘ [...] considero o homem<br />
certo para o momento certo.<br />
’<br />
Desde que o Presidente Barack Obama, ainda senador,<br />
acerca de dois anos, decidiu candidatar-se à<br />
Presidência da República – e li os seus primeiros<br />
discursos, declarações e a sua biografia –, que segui<br />
o seu percurso, com enorme atenção e simpatia, nos<br />
meses finais, com verdadeira paixão.<br />
“em todos os domínios vamos assistir a uma transformação radical”, escreve mário soares.<br />
Porquê? Porque percebi a importância da sua candidatura,<br />
não só para a América como para a Europa<br />
e mesmo para o resto do mundo.<br />
Fui crítico, muito severo, durante os dois mandatos,<br />
das políticas do Presidente Bush, tanto a nível<br />
externo como interno. Considerei a Guerra do Iraque<br />
um crime, alicerçada em mentiras e falsidades. Achei<br />
a invasão do Afeganistão um “precedente perigoso”<br />
que comprometeu para sempre o prestígio da NATO.<br />
Condenei a política hegemónica e unilateral dos<br />
Estados Unidos e a marginalização das Nações<br />
Unidas. A estratégia da luta contra o terrorismo,<br />
baseada apenas na força bruta, sem ouvir os seus<br />
aliados e sem verdadeira informação.<br />
No plano interno censurei o descuido das políticas<br />
da Administração Bush de saúde, educação e<br />
segurança social e a excessiva confiança na autoregularização<br />
do mercado, na chamada “mão invisível”,<br />
que favoreceu os muito ricos, arrasou as<br />
classes médias e aumentou a pobreza e o desemprego.<br />
Foram essas políticas que conduziram ao<br />
total descrédito da ideologia neoconservadora, que<br />
a Administração Bush, em vão, tentou impor ao<br />
mundo.<br />
Barack Obama revelou-se uma personalidade política<br />
ímpar, teve a coragem de denunciar, desde o<br />
início, a desastrosa política americana no Iraque, e<br />
conseguiu mobilizar, em seu favor, a esmagadora<br />
maioria da juventude americana para as boas causas<br />
sociais e ambientais e, no plano externo, em favor<br />
da paz, do multiculturalismo, em defesa das minorias<br />
e da igualdade entre homens e mulheres.<br />
Por isso o considero o homem certo para o<br />
momento certo. O que pode fazer quando chegar à<br />
Casa Branca? Em primeiro lugar, o facto de um afro-<br />
-americano se sentar na Sala Oval da Casa Branca,<br />
representa, em si mesmo, uma verdadeira revolução<br />
cultural e das mentalidades. Depois, porque prometeu<br />
a mudança e estou convencido que, apesar de todas<br />
as dificuldades – e da complexa crise que nos afecta<br />
a todos – vai cumprir. Como renovar o pioneirismo<br />
americano – na linha de Lincoln, Roosevelt e<br />
Kennedy – e defender a paz e o ambiente natural.<br />
Em todos os domínios, vamos assistir a uma transformação<br />
radical, o que é excelente para a América,<br />
para a Europa (apesar da sua actual paralisia) e para<br />
o mundo. * Antigo Presidente da República Portuguesa<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 11
ANTóNIO PEDRO SANTOS<br />
POR LíDiA JorGe*<br />
1<br />
O que esperar?<br />
Constou-me que na casa de infância do Presidente<br />
Reagan existia um ladrilho solto debaixo do qual,<br />
em criança, ele escondia as moedas. O Presidente<br />
Barack Obama não terá tido um ladrilho como<br />
esconderijo, mas seja lá onde for que tenha<br />
acumulado as suas fortunas de rapaz, espero que<br />
‘ Creio que barack obama [...] teria sido eleito<br />
pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu<br />
no ecrã um rosto que transmitia humildade<br />
e nobreza, simplicidade e juventude de espírito,<br />
realismo e crença.<br />
’<br />
STEFAN ZAKLIN/EPA/LUSA<br />
Lídia Jorge: “por certo que o presidente obama<br />
não vai voltar atrás.”<br />
entre elas se encontre<br />
uma carta dos seus avós<br />
sobre a palavra compromisso.<br />
Para nós, à distância<br />
de um oceano e um<br />
continente, não precisamos<br />
de mais nada senão<br />
que cumpra a mudança<br />
que anunciou. E o que<br />
anunciou não foi pouco.<br />
Como candidato, prometeu<br />
gerir bem o seu<br />
país, sem esquecer que<br />
os outros países têm os<br />
mesmos direitos de<br />
sobreviver e de guardarem<br />
para si os bens<br />
que lhes pertencem.<br />
Prometeu negociar e<br />
concertar, em vez de<br />
impor e atacar. Prometeu<br />
respeitar os direitos<br />
humanos, no interior do seu país, e fora dele.<br />
Prometeu respeitar a Terra, tomá-la na mão como<br />
o nosso único bem precioso. Prometeu que sendo<br />
os Estados Unidos o país mais poderoso, seria um<br />
entre pares, com a consciência sempre presente<br />
de que no mundo actual a falência de um pode<br />
ser a falência de todos.<br />
Pelo menos foi assim que entendi o seu pedido<br />
para que fossem votar em nome da mudança.<br />
O candidato Barack Obama disse que o voto de<br />
cada americano à primeira vista apenas mudaria o<br />
bairro, mas ao mudar o bairro mudaria a cidade.<br />
Mudando a cidade, mudaria o país, e mudando o<br />
país, mudaria o mundo. Nunca ouvi da boca de<br />
um político uma declaração tão à altura do momento<br />
que atravessamos. Até estou em crer que ele deve<br />
ter lido os versos de John Donne que o seu compatriota<br />
Ernest Hemingway tomou para epígrafe<br />
em Por Quem os Sinos dobram. Também aí o poeta inglês<br />
falava de que a parte que cada um representa é a<br />
parte de um todo. Pois o candidato Obama fez dessa<br />
ideia a sua promessa voluntariosa – “Change! Yes,<br />
We can”. Por certo que o Presidente Obama não<br />
vai voltar atrás. Ele tem entre os seus tesouros, de<br />
certeza, a palavra compromisso. E é isso que nós,<br />
à distância, podemos esperar da sua figura e personalidade.<br />
Naturalmente que os cidadãos americanos estarão<br />
à espera de outras urgências, como seja a saída<br />
rápida da estagnação económica que só agora nos<br />
é dado conhecer em toda a sua extensão. Mas eu<br />
não sei se é possível separar uns planos dos outros.<br />
O externo e o interno, o económico e o axiológico.<br />
Talvez não. Creio mesmo que Barack Obama foi<br />
eleito da forma como aconteceu, e teria sido eleito<br />
pelo mundo inteiro, porque de súbito apareceu<br />
no ecrã um rosto que transmitia humildade e<br />
nobreza, simplicidade e juventude de espírito, realismo<br />
e crença. Ora para os europeus, a imagem<br />
do norte-americano que por duas vezes trouxe a<br />
paz à Europa, durante o século XX, foi substituída,<br />
nos últimos tempos, pela imagem do soldado que<br />
entra na cidade do outro, transformado em inimigo<br />
e a devasta, captura o inimigo e lhe devassa a<br />
garganta com uma luz, diante do mundo inteiro.<br />
São marcas muito violentas. Acredito que o<br />
Presidente Obama não o deixará repetir.<br />
* escritora<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
POR João De vALLerA*<br />
Desafios à nova<br />
Presidência<br />
‘ obama quer governar para além<br />
das tradicionais fronteiras partidárias.<br />
’<br />
Nos últimos vinte e um meses tive o privilégio de<br />
observar de perto as eleições presidenciais norte-<br />
-americanas, que culminaram com a vitória do<br />
candidato Barack Obama. Assisti às duas convenções,<br />
com os seus rituais de consagração e os seus apelos<br />
à mobilização das bases, assim como observei a<br />
introdução de novas técnicas e de novos métodos<br />
de comunicação com os eleitores, em especial na<br />
campanha democrata.<br />
Três pensamentos me vieram espontaneamente<br />
ao espírito, na noite de 4 de Novembro. O de que<br />
de algum modo assistia ao encerrar de um ciclo,<br />
iniciado quarenta anos antes com o movimento<br />
dos direitos civis nos Estados Unidos. O de que<br />
tal evolução era demonstrativa da vitalidade e da<br />
capacidade de inclusão da sociedade americana,<br />
que sabe dar uma expressão positiva à diversidade<br />
do tecido que a compõe, afirmando-se e renovando-se<br />
para além das dificuldades cíclicas e<br />
divisões estruturais que a atravessam. O de que,<br />
como porventura nenhum dos seus quarenta e<br />
três antecessores, o candidato eleito tinha já assegurado<br />
um feito de dimensão histórica antes<br />
mesmo de passar a residir na Casa Branca.<br />
O novo Presidente tomou posse no dia 20 de<br />
Janeiro. Assume com ela problemas de grandes<br />
proporções e formidáveis desafios, tanto no<br />
domínio interno como externo. Seja ao nível da<br />
economia – cuja reanimação requer esforços<br />
imediatos e concertados de dimensão inédita,<br />
não descurando os condicionantes estruturais de<br />
mais longo prazo – seja nos planos da segurança<br />
internacional e das novas ameaças transnacionais,<br />
a sua intervenção será requerida, assim<br />
como não deixará de ser observada de perto e<br />
posta à prova, logo no início de um novo ciclo<br />
da vida política americana, a sua mensagem de<br />
mudança e a ambição transformacional que lhe<br />
está subjacente.<br />
A direcção do seu mandato reflectir-se-á desde logo<br />
na escolha da futura Administração e no leque das<br />
prioridades políticas a desenvolver, não obstante as<br />
limitações orçamentais conhecidas, por causa –<br />
e apesar – da crise. A determinação, a inteligência<br />
política e o pragmatismo de que já deu amplas mostras<br />
revelar-se-ão qualidades preciosas na busca de<br />
um inevitável equilíbrio entre a sua agenda e a estratégia<br />
legislativa necessária para conseguir alcançar<br />
os objectivos declarados durante a campanha, assim<br />
como na materialização da sua intenção de governar<br />
de uma forma inclusiva e para além das tradicionais<br />
fronteiras partidárias. A reforçada maioria democrata<br />
no Senado e na Câmara dos Representantes –<br />
na qual registo, com grande satisfação, a reeleição<br />
de três congressistas de ascendência portuguesa –<br />
constitui uma vantagem à partida, mas não uma<br />
garantia de sobreposição de agendas, e dificilmente<br />
dispensará, no sistema americano, a construção de<br />
coligações pontuais de geometria variável.<br />
A assunção da Presidência, nos Estados Unidos,<br />
traz consigo a extraordinária responsabilidade associada<br />
ao facto de os actos do seu titular se repercutirem<br />
não só sobre os cidadãos americanos mas<br />
também, voluntária ou involuntariamente, numa<br />
proporção sem paralelo, sobre o resto do mundo.<br />
Tal realidade oferece potencialidades únicas numa<br />
altura em que se desenham, na Europa, mais claras<br />
ambições de afirmação na cena internacional, e num<br />
momento em que, face aos grandes desafios globais,<br />
o reforço da parceria transatlântica cada vez mais<br />
surge como uma evidente e urgente necessidade.<br />
Portugal tem um significativo papel a desempenhar<br />
neste contexto, seja no quadro das relações<br />
União Europeia-Estados Unidos, seja no seio da<br />
NATO, seja ainda no plano bilateral onde, ao rico<br />
acervo do nosso relacionamento histórico, à mais-<br />
-valia de uma relação de aliados consubstanciada<br />
no Acordo de Defesa e Cooperação e ao trunfo da<br />
comunidade portuguesa e luso-americana residente<br />
nos Estados Unidos, se adicionam novos e promissores<br />
desenvolvimentos em domínios como os<br />
da ciência e do investimento. * embaixador de Portugal<br />
nos estados Unidos<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 13
JOSÉ SÉRGIO<br />
POR ChArLes buChAnAn*<br />
14<br />
Prioridades energéticas<br />
e ambientais<br />
Barack Obama é agora o Presidente eleito e os americanos<br />
estão encantados com o facto de ele levar a<br />
sério os urgentes desafios ambientais que os Estados<br />
Unidos enfrentam, desde a biodiversidade à gestão<br />
dos oceanos e à preservação das florestas. Mas hoje<br />
em dia, na América, falar de “ambiente” significa<br />
atacar as prioridades energéticas e depressa: reduzir a<br />
dependência das importações de petróleo estrangeiro,<br />
baixar os níveis das emissões de gases com efeito de<br />
estufa, dar atenção às políticas em matéria de altera-<br />
‘ obama lançará o seu plano “economia verde”,<br />
que abrangerá um período de dez anos<br />
e custará 150 mil milhões de dólares.<br />
’<br />
ções climáticas, incentivar as medidas nacionais de<br />
conservação de energia, as novas tecnologias limpas,<br />
o desenvolvimento das fontes renováveis de energia.<br />
No entanto, Obama tem de decidir que acções deve<br />
empreender em 2009 para inverter o processo de<br />
recessão económica, reduzir o défice orçamental americano,<br />
criar postos de trabalho para combater o<br />
desemprego e salvar famílias desesperadas (através da<br />
isenção de impostos, da implementação do seguro<br />
de saúde) e a indústria automóvel americana. Assim,<br />
apenas serão empreendidas acções relacionadas com<br />
as prioridades energéticas que contribuam para o<br />
“programa de salvação” nacional.<br />
Por exemplo, uma anterior proposta que preconizava<br />
um limite para as emissões de gases com efeito<br />
de estufa, que se estendia a toda a economia, exigindo<br />
que a indústria e os serviços públicos comprassem<br />
ao Governo créditos de emissões de dióxido de carbono,<br />
está a ser sujeita a novo escrutínio. Um programa<br />
deste tipo iria imediatamente fazer subir os<br />
custos da energia. Em vez disso, Obama lançará o seu<br />
plano “Economia Verde”, que abrangerá um período<br />
de dez anos e custará 150 mil milhões de dólares,<br />
e que se destina a: incentivar o investimento das<br />
empresas no fabrico de equipamento destinado à<br />
produção de energias limpas; financiar sistemas de<br />
transportes baseados em energias limpas; acelerar a<br />
produção de veículos “limpos” de baixo consumo;<br />
e promover a próxima geração de biocombustíveis<br />
não produzidos à base de culturas alimentares.<br />
Este esforço no sentido de uma “economia verde”<br />
também levará à reabilitação e isolamento dos edifícios<br />
e escritórios das grandes cidades a fim de<br />
tornar a energia mais eficiente. Isto irá resultar na<br />
reciclagem profissional e na criação de cerca de<br />
cinco milhões de novos empregos e, em simultâneo,<br />
na redução drástica do consumo de energia.<br />
A conservação de energia é a maneira mais rápida<br />
de reduzir a procura de energia e as importações de<br />
petróleo. Barack Obama pretende uma redução de<br />
15 por cento da procura de energia até 2020: os novos<br />
edifícios devem ser neutros em termos de emissões<br />
de dióxido de carbono e os edifícios existentes<br />
devem melhorar a sua eficiência energética em 25 por<br />
cento. Os edifícios governamentais deverão tornar-se<br />
“eficientes” em três anos, e as zonas urbanas de baixo<br />
rendimento deverão ser remodeladas de modo a tornarem-se<br />
energeticamente eficientes. Isto irá gerar<br />
milhões de empregos.<br />
As limitações orçamentais constituirão um problema<br />
grave, mas não devemos esquecer que o Governo<br />
Federal americano não está só nesta cruzada nacional<br />
da energia. Os vários estados também fornecem<br />
fundos e criam condições destinadas a ajudar as<br />
empresas privadas a agir. A Califórnia demonstrou<br />
que uma liderança forte ao longo de muitos anos<br />
conduziu a níveis de eficiência energética sem precedentes,<br />
à redução da procura de energia, a transportes<br />
limpos e a um nível elevado de criação de<br />
emprego. Estes resultados são comparáveis aos da<br />
Europa, onde o sector das energias renováveis<br />
da Alemanha movimenta 240 mil milhões de dólares<br />
e emprega 250 mil pessoas; em Inglaterra, estão<br />
a ser construídas sete mil turbinas eólicas, com um<br />
custo de 100 mil milhões de dólares, e Portugal<br />
também se encontra numa posição de grande visibilidade,<br />
situando-se em segundo lugar na UE em<br />
termos de sistemas de energias renováveis.<br />
* Membro do Conselho executivo da FLAD<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
POR mAnueL JACinto nunes*<br />
‘ À ideia de força,<br />
de demonstração<br />
de poderio dos estados<br />
unidos, opôs obama<br />
a ideia de diálogo.<br />
Algo que tem faltado<br />
totalmente à política<br />
americana.<br />
’<br />
KAMIL KRZACZyNSKy/EPA/LUSA<br />
A mudança<br />
que o mundo precisa<br />
A vitória de Obama é uma vitória para os Estados<br />
Unidos, para a Europa e para o mundo. O antiamericanismo<br />
cultivado por muitos atingiu o seu auge<br />
com a Administração Bush dos últimos oito anos.<br />
A Administração americana criou ao mundo ocidental<br />
problemas tão graves que não sabemos ainda quando<br />
e como sairemos deles. Embora McCain se situe<br />
no seu partido na ala mais afastada dos neoconservadores,<br />
a sua política externa, iria, por certo ser em<br />
grande parte uma política de continuidade. McCain<br />
falava do Iraque proclamando que os<br />
Estados Unidos iriam sair dele com uma<br />
vitória. Como se pode falar de uma vitória<br />
após uma intervenção tão desastrosa<br />
que incentivou o terrorismo, pôs em<br />
maior perigo os já débeis equilíbrios no<br />
Médio Oriente e suscitou a questão da<br />
divisão entre Ocidente e Oriente?<br />
À ideia de força, de demonstração de<br />
poderio dos Estados Unidos, opôs Obama<br />
a ideia de diálogo. Algo que tem faltado<br />
totalmente à política americana nestes<br />
anos. Não que Obama se tivesse apresentado<br />
como um pacifista, mas dando<br />
sempre preponderância primacial à nego-<br />
“obama vai certamente trazer alterações de grande alcance para a política americana.”<br />
ciação. Nas relações com a Europa e a América Latina,<br />
bem como no Médio Oriente, é fundamental este<br />
tipo de abordagem para que seja possível atenuar as<br />
tensões existentes e dar passos para um relacionamento<br />
mais estável que leve a paz a regiões onde subsistem<br />
focos de conflito.<br />
De imediato é no plano interno que Obama vai ter<br />
de actuar face à situação prevalecente e vai certamente<br />
trazer alterações significativas. Não se trata de spread<br />
the wealth, mas de inverter uma política que tem<br />
acentuado as desigualdades económicas. McCain falou<br />
de redução de impostos mas sem especificar como.<br />
Obama, não obstante as dificuldades orçamentais, terá<br />
de reduzir impostos mas não do mesmo modo. Foi<br />
à situação da classe média – núcleo estrutural de uma<br />
sociedade – a que ele sempre se referiu.<br />
Outro ponto fulcral da política enunciada por Obama<br />
é a saúde. Cerca de 40 milhões de americanos não<br />
têm qualquer sistema de saúde. É óbvio que não é<br />
um problema que possa ser resolvido a curto prazo,<br />
mas algo vai por certo ser feito nesse sentido.<br />
São múltiplos os problemas que Obama vai defrontar<br />
(herda uma pesada herança): o défice nas contas<br />
públicas, uma crise financeira e económica grave,<br />
o desemprego, as famílias endividadas, e um enorme<br />
défice externo. Quanto a este último, espera-se que<br />
não ceda às pressões do lóbi proteccionista que é bem<br />
forte nos Estados Unidos.<br />
A fasquia posta a Obama foi muito alta e afigura-<br />
-se-nos que ele não a poderá cumprir em pleno, mas<br />
não pode, por esse facto, gerar-se um sentimento de<br />
desilusão. Obama vai trazer mudança e mudança significativa.<br />
Pertence a uma geração que não é a do<br />
mundo que tem dirigido a América nos últimos anos.<br />
Kennedy e Clinton souberam introduzir um ar fresco<br />
em Washington, Obama talvez não possa ir tão longe<br />
como aqueles (apesar da sua grande vitória, a cor da<br />
pele ainda constitui uma limitação nos Estados<br />
Unidos) mas vai, certamente, trazer alterações de<br />
grande alcance para a política americana e para o<br />
relacionamento dos Estados Unidos com o mundo.<br />
A situação mundial estava bem necessitada desta<br />
mudança. * economista e antigo ministro das Finanças<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 15
POR JoAnA GoDinho*<br />
16<br />
A realidade do sonho<br />
As lágrimas escorriam pela cara de Jesse Jackson<br />
enquanto ouvia o discurso de vitória de Obama<br />
na noite das eleições. Quarenta e cinco anos depois<br />
de Martin Luther King ter proclamado: “I have a<br />
dream that one day this nation will rise up and<br />
live out the true meaning of its creed: ‘We hold<br />
these truths to be self-evident, that all men are<br />
created equal.’”<br />
O sonho tornou-se realidade, não só para os<br />
negros americanos, mas também para os brancos,<br />
que se viram finalmente libertados das amarras do<br />
apartheid nos Estados Unidos, e para as outras minorias<br />
e exilados que se sentiam cidadãos de segunda<br />
classe neste país de oportunidades – “chicanos”,<br />
orientais e ocidentais como a diáspora portuguesa.<br />
O sonho voou pelo mundo, de Guantánamo ao<br />
Quénia, de Berlim a Okinawa, e tornou-se realidade<br />
a 4 de Novembro de 2008.<br />
Nas entrevistas que deu quando do lançamento<br />
do filme W., Oliver Stone disse que a influência de<br />
George W. Bush nos Estados Unidos e no mundo<br />
se fará sentir por muitos anos. Bush acredita piamente<br />
que a História lhe dará razão. O novo<br />
Presidente dos Estados Unidos terá certamente de<br />
se confrontar, desde o primeiro momento na Casa<br />
Branca, com o espólio que a nova Administração e<br />
o povo americano – e o mundo – herdam após<br />
oito anos de Administração Bush.<br />
O novo Presidente herda três guerras distintas:<br />
a do Iraque, a do Afeganistão, e a guerra contra o<br />
que a Administração clama ser “o Terror”. A Guerra<br />
do Iraque é a segunda mais longa em que os<br />
Estados Unidos se envolveram desde sempre, depois<br />
da do Vietname, e a segunda mais cara depois da<br />
II Guerra Mundial – e terá custado para cima de<br />
um milhão de vidas.<br />
O novo Presidente herda uma economia nacional<br />
e global em recessão, com uma banca parcialmente<br />
nacionalizada à la regime socialista. Escasseia o<br />
dinheiro ao supra-supercapitalismo da Idade Global<br />
Pós-Moderna. A economia global sofre com a alta<br />
do preço do petróleo e de alimentos básicos,<br />
enquanto se debate com a crise financeira mais<br />
grave da sua existência, em que até um país con-<br />
siderado desenvolvido – a Islândia – se vê em risco<br />
de se afundar nas águas geladas do Árctico.<br />
O novo Presidente herda uma situação energética<br />
em que os Estados Unidos, que têm cinco por cento<br />
da população mundial, gastam um quarto da energia<br />
mundial, a um custo superior a 400 biliões de<br />
dólares por ano para o petróleo importado.<br />
Enquanto a Administração Bush se recusou a assinar<br />
o Protocolo de Quioto, o preço do barril de<br />
petróleo aumentou de 25 para 100 dólares entre<br />
o antes e o depois da Guerra do Iraque.<br />
O novo Presidente herda uma infra-estrutura<br />
transcontinental em perigosa decadência, como<br />
demonstraram o colapso da ponte em Minnesota<br />
em 2007 ou as inundações de Nova Orleães.<br />
Parte do sucesso económico dos Estados Unidos<br />
deveu-se a uma infra-estrutura estabelecida por<br />
presidentes com visão. No entanto, a Socie-<br />
dade <strong>Americana</strong> de Engenheiros Civis estima que<br />
são necessários 1,6 triliões de dólares apenas<br />
para mantê-la em boas condições nos próximos<br />
cinco anos.<br />
O novo Presidente herda um país dividido – entre<br />
ricos e pobres, brancos e outras raças, republicanos<br />
e democratas, Wall Street e Main Street – e por<br />
questões chamadas culturais: o casamento dos<br />
homossexuais, o aborto, a pena de morte e o uso<br />
de armas. A concentração da riqueza não só tem<br />
dividido os americanos entre os que têm e os que<br />
não têm, mas tem contribuído para o declínio económico<br />
do país.<br />
Obama prometeu baixar os impostos para as classes<br />
média e mais pobres, aumentar o acesso à saúde<br />
e a qualidade da educação, investir em energias<br />
alternativas e aumentar a ajuda externa. Para pagar<br />
a conta, o novo Presidente planeia acabar com a<br />
guerra, aumentar os impostos dos dois por cento<br />
de americanos mais ricos, evitar as fugas aos impostos<br />
das grandes corporações e fazer pagar a poluição<br />
a quem poluir. Não há soluções óptimas, mas<br />
o futuro do sonho global depende da velocidade<br />
e eficácia com que o novo Presidente venha a lidar<br />
com a pesada herança recebida no dia 20 de Janeiro<br />
de 2009. * Banco Mundial<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
POR miChAeL Werz*<br />
O momento histórico<br />
da América<br />
Minutos após se ter concluído a contagem de votos<br />
na Califórnia no dia 4 de Novembro e a CNN ter<br />
anunciado que Barack Obama tinha ganho as eleições,<br />
um suspiro de alívio colectivo atravessou a<br />
América. Deu-se então início a uma festa de enormes<br />
proporções; centenas de milhares de pessoas<br />
transformaram a noite em dia, festejando até ao<br />
nascer do sol. Na manhã seguinte, as pessoas puseram-se<br />
novamente em fila, como o tinham feito<br />
no dia anterior, quando muitos tiveram que esperar<br />
durante horas para poder votar. Só que, desta<br />
vez, formavam filas em frente aos quiosques e às<br />
sedes dos jornais. “É que um sítio da internet não<br />
‘ este momento americano encerra um percurso<br />
histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio<br />
holandês White Lion chegou à virgínia e trocou<br />
por outros bens os vinte africanos escravizados<br />
que tinham sido capturados durante uma batalha<br />
com um galeão espanhol a caminho do méxico.<br />
’<br />
cabe num álbum de família”, afirmou uma senhora<br />
idosa que se encontrava em frente ao edifício<br />
do Washington Post. E, de facto, para muitos dos que<br />
participaram, este dia tinha de ser documentado.<br />
Por todo o país, os jornais foram-se esgotando e<br />
tiveram de ser reimpressos até ao fim da manhã.<br />
A energia vulcânica que foi libertada durante a<br />
noite das eleições não se pode explicar apenas pelo<br />
impacto político de Barack Obama. Ele simboliza<br />
muito mais do que aquilo que defende: uma “deslocação<br />
tectónica” na sociedade, que já se tinha<br />
tornado visível durante o longo processo da sua<br />
nomeação. O dia 4 de Novembro foi a última de<br />
três datas memoráveis em 2008. A segunda foi o<br />
dia 3 de Junho, quando Barack Obama declarou,<br />
perante 17 mil apoiantes entusiásticos num estádio<br />
de basebol no Minnesota, que tinha ganho a nomea-<br />
ção para o Partido Democrata. A multidão ouviu o<br />
seu anúncio de pé, como se estar sentado fosse<br />
uma posição menos própria quando se está em<br />
presença de alguém que passou a fazer parte da<br />
História. Fazendo jus ao momento, o candidato<br />
terminou o seu discurso acerca da vitória improvável<br />
contra Hillary Clinton com as seguintes palavras:<br />
“América, este é o nosso momento.” E,<br />
indiscutivelmente, após o dia 3 de Junho, a história<br />
americana tem decorrido de forma acelerada.<br />
Este momento americano encerra um percurso<br />
histórico que foi iniciado em 1619, quando o navio<br />
holandês White Lion chegou à Virgínia e trocou por<br />
outros bens os vinte africanos escravizados que<br />
tinham sido capturados durante uma batalha com<br />
um galeão espanhol a caminho do México.<br />
A escravatura era o pecado original do Novo Mundo,<br />
minando os seus propósitos de emancipação e as<br />
promessas de felicidade. Alexis de Tocqueville escreveu,<br />
no seu lendário relatório, em 1853, que nem<br />
mesmo a abolição da escravatura poderia mudar os<br />
preconceitos raciais porque estes eram “imutáveis”.<br />
Desde o dia 3 de Junho, estas tradições – resumidas<br />
nas famosas teorias de W. E. B. DuBois que descrevem<br />
a barreira da cor como a mais perversa causa de<br />
separação na América – têm sido postas à prova.<br />
Num instante, todos se aperceberam que, no dia das<br />
eleições de 2008, pela primeira vez desde a<br />
Declaração da Independência, os americanos podiam<br />
fazer História, rompendo com o seu passado.<br />
O primeiro dia memorável foi a 18 de Março,<br />
quando Barack Obama falou das relações interraciais<br />
em Filadélfia. Ele não só reconheceu o<br />
ressentimento mútuo que ainda existe entre americanos<br />
negros e brancos, como também insistiu<br />
que a sua própria história, com membros da<br />
família “de todas as raças e todas as cores, espalhados<br />
por três continentes”, só era possível nos<br />
Estados Unidos. E continuou, dizendo: “Nós<br />
podemos ter histórias diferentes, mas partilhamos<br />
das mesmas esperanças; […] podemos ter um<br />
aspecto diferente e ser oriundos de lugares diferentes,<br />
mas todos queremos ir na mesma direcção.”<br />
O seu compromisso universalista não<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 17
GUIDO MONTANI/EPA/LUSA<br />
passou despercebido porque ia ao encontro<br />
de experiências contemporâneas,<br />
partilhadas por muitos. No espaço de dois<br />
meses o seu discurso foi descarregado do<br />
YouTube mais de 4,5 milhões de vezes e<br />
uma sondagem da Gallup revelou o surpreendente<br />
resultado de que mais de<br />
85 por cento dos americanos tinham ouvido<br />
falar do seu discurso.<br />
Barack Obama tem uma ascendência<br />
ambígua, só podendo ser descrito como<br />
americano. O facto de um homem com a<br />
sua história pessoal ter sido eleito não só<br />
será registado nos livros de escola por<br />
todo o mundo durante o próximo século,<br />
18<br />
‘ num instante, todos se aperceberam que,<br />
no dia das eleições de 2008, pela primeira vez<br />
desde a Declaração da independência,<br />
os americanos podiam fazer história,<br />
rompendo com o seu passado.<br />
’<br />
como também ressaltará como um feito<br />
de consequências irreversíveis, independentemente<br />
de quaisquer desilusões políticas<br />
que possam vir a acontecer.<br />
* Michael Werz é Transatlantic Fellow do German Marshall<br />
Fund of the United States e Investigador no Institute for the<br />
Study of International Migration da School of Foreign Service<br />
a Universidade de Georgetown<br />
“A energia vulcânica que foi libertada durante a noite das eleições não se pode explicar apenas pelo impacto político de barack obama.”<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
ROLEX DELA PENA/EPA/LUSA ‘<br />
POR JAmes r. DiCKenson*<br />
As eleições e os media<br />
nós, jornalistas, desempenhamos um papel<br />
fundamental nos processos democráticos<br />
do nosso país. [...] uma imprensa livre<br />
que presta informação fidedigna<br />
é o fluido vital de qualquer democracia.<br />
’<br />
“obama levou a cabo uma das mais eficientes campanhas.”<br />
No dia 4 de Novembro de 2008, os Estados Unidos<br />
concluíram uma das suas eleições presidenciais mais<br />
históricas de sempre. A nação escolheu o seu primeiro<br />
Presidente afro-americano, o senador Barack<br />
Obama, do Illinois, um acontecimento extraordinário<br />
dada a nossa história trágica de escravatura<br />
e racismo. E aquela data assinalou também o fim<br />
de dois grandes fracassos políticos nacionais – a fé<br />
numa economia de mercado cada vez mais desregulamentada<br />
e uma política externa militarista e<br />
unilateral falhada – sobretudo no Iraque – que<br />
estava a dividir progressivamente o país e que criou<br />
um clima político extremamente favorável para os<br />
democratas. Mais de 80 por cento do eleitorado<br />
consideravam que o país estava a seguir um rumo<br />
errado, uma opinião que ficou patente nos resultados<br />
eleitorais: Obama derrotou o seu adversário<br />
republicano, o senador John McCain do Arizona,<br />
por 52 por cento contra 46 por cento do voto<br />
popular e por mais de dois contra um no Colégio<br />
Eleitoral. Para muitos americanos, isso assinalou o<br />
fim da era Reagan republicana.<br />
Tratou-se também de uma eleição histórica porque<br />
a adversária do senador Obama na corrida à<br />
nomeação democrata era a senadora Hillary Clinton<br />
de Nova Iorque, que esteve muito perto de conseguir<br />
a nomeação e, como tal, de se tornar a primeira<br />
mulher a ser candidata presidencial de um<br />
dos grandes partidos. Além disso, McCain escolheu<br />
para concorrer ao seu lado como candidata à Vice-<br />
-Presidência a governadora Sarah Palin do Alasca,<br />
a primeira mulher a candidatar-se a uma eleição<br />
nacional pelo Partido Republicano.<br />
Obama ganhou em parte graças ao clima político<br />
favorável, mas também porque realizou uma das mais<br />
eficientes campanhas presidenciais jamais vistas no<br />
país. No dia a seguir às eleições, deitou mãos ao<br />
trabalho, começando a reunir a sua administração e<br />
preparando-se para enfrentar os graves desafios que<br />
o esperam. Entre eles incluem-se duas guerras em<br />
curso, no Iraque e no Afeganistão, e problemas que<br />
vão desde o Irão, a Coreia do Norte e a Rússia até<br />
à iminência de uma recessão. Além disso, Obama<br />
prometeu reformar o sistema de saúde, reduzir<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 19
TANNEN MAURy/EPA/LUSA<br />
os impostos da classe média e definir uma<br />
política energética nacional susceptível de<br />
tornar o país independente em termos<br />
energéticos e de contribuir para a redução<br />
do aquecimento global.<br />
Durante a campanha, os opositores de<br />
Obama criticaram a sua falta de experiência<br />
– apenas quatro anos no Senado e<br />
oito anos na legislatura estadual do<br />
Illinois – para ser presidente e comandante-chefe<br />
das Forças Armadas. No<br />
entanto, Obama conduziu uma campanha<br />
disciplinada baseada na esperança,<br />
no futuro e na unidade nacional. Mostrou-se<br />
calmo e sereno perante acontecimentos<br />
inesperados tais como a crise<br />
económica que eclodiu em Setembro, o<br />
que reforçou a confiança dos eleitores.<br />
Foi considerado o candidato cool.<br />
McCain foi visto como o candidato hot.<br />
Realçou a sua carreira como o piloto de<br />
0<br />
“o jornalismo dos países ocidentais está a sofrer profundas modificações devido à tecnologia.”<br />
jactos da Marinha que foi um heróico<br />
prisioneiro de guerra no Vietname. Um<br />
veterano com vinte e seis anos de experiência<br />
no Congresso, McCain concorreu<br />
como um “não-alinhado” que se opusera<br />
aos seus correligionários do Partido<br />
Republicano em questões como a imigração<br />
e a reforma do financiamento das<br />
campanhas eleitorais frisando a sua experiência,<br />
especialmente nos domínios da<br />
segurança e dos negócios estrangeiros.<br />
Mas descobriu, tal como Clinton descobrira<br />
nas eleições primárias do Partido<br />
Democrata, que o país estava ansioso por<br />
uma ruptura com o passado, em grande<br />
parte devido à frustração perante as políticas<br />
fracassadas da Administração Bush.<br />
McCain foi prejudicado pela crise económica,<br />
uma área historicamente favorável<br />
aos democratas, que desviou a<br />
atenção da segurança nacional e dos<br />
negócios estrangeiros. A resposta de<br />
McCain à crise económica foi impulsiva<br />
e confusa. Não propôs nenhum grande<br />
tema para a campanha e saltou de uma<br />
questão para outra, começando por atacar<br />
Obama pela sua falta de experiência<br />
e, depois, pelo seu suposto extremo<br />
liberalismo, que McCain rotulou incorrectamente<br />
de “socialismo”. Os democratas<br />
ripostaram dizendo que McCain<br />
era um político imprevisível e impulsivo<br />
que poderia ser perigoso na Casa<br />
Branca e que, com os seus 72 anos, seria<br />
o homem com mais idade jamais eleito<br />
como Presidente.<br />
O nosso voto presidencial pode ser difícil<br />
de prever porque é o mais pessoal e<br />
simbólico que expressamos. O cargo é<br />
muito complexo, porque o Presidente não<br />
só é o chefe do Executivo e o comandante-em-chefe<br />
das Forças Armadas, mas<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
também o chefe simbólico da nação, que<br />
dá expressão aos ideais e aspirações do<br />
povo. O resultado destas eleições era<br />
duplamente difícil de prever devido à origem<br />
racial de Obama, mas a sua eleição<br />
é um símbolo poderoso de quanto a<br />
América evoluiu em termos de relações<br />
raciais nos últimos cinquenta anos.<br />
Nós, jornalistas, desempenhamos um<br />
papel fundamental nos processos democráticos<br />
do nosso país. Em sociedades<br />
baseadas na informação, somos uma instituição<br />
poderosa. Uma imprensa livre que<br />
presta informação fidedigna é o fluido vital<br />
de qualquer democracia; os estados totalitários<br />
não conseguem sobreviver quando<br />
a informação é livre e fidedigna, e é por<br />
essa razão que se esforçam tanto por a<br />
suprimir. A China está lenta mas progressivamente<br />
a tornar-se mais livre, porque<br />
os seus governantes não conseguem simplesmente<br />
fechar a internet, os satélites,<br />
os telemóveis, os blogues, os sítios web e<br />
outros canais de informação.<br />
Sublinho “fidedigna” porque é necessário<br />
que as pessoas confiem na informação<br />
que lhes é prestada pelos<br />
jornalistas. É imprescindível evitarmos<br />
dar a menor ideia de que favorecemos<br />
um partido ou facção em detrimento de<br />
outro. A reputação de imparcialidade e<br />
isenção é o nosso capital de trabalho,<br />
e é preciosa; se a perdemos, nunca mais<br />
a conseguimos recuperar. Nos Estados<br />
Unidos, os meios de comunicação social<br />
são um elemento muito importante do<br />
processo de triagem de candidatos políticos,<br />
pelo que as nossas decisões sobre<br />
as pessoas cujas actividades devemos<br />
cobrir e a atenção que devemos dedicar<br />
a cada candidato são rigorosamente controladas.<br />
Apesar das suspeitas de alguns<br />
membros dos partidos, procuramos não<br />
afectar o resultado das nossas eleições, e<br />
não o desejamos fazer. A nossa cobertura<br />
é ditada pelas acções – os êxitos e os<br />
fracassos – dos candidatos. Também nos<br />
concentramos em candidatos novos e<br />
relativamente desconhecidos que prometem<br />
mudança e que é necessário explicarmos<br />
aos eleitores.<br />
O jornalismo nos países ocidentais está<br />
a sofrer profundas modificações devido<br />
à tecnologia. Na América, a importância<br />
crescente da internet, com os seus blogues<br />
e os seus sítios web, dos canais de<br />
notícias da televisão por cabo, dos talk-<br />
-shows radiofónicos e dos telemóveis está<br />
a pôr em causa o papel dos jornais e das<br />
redes de televisão tradicionais. No entanto,<br />
não vi indícios de que isso tenha<br />
influenciado as eleições. O número de<br />
blogues tem aumentado exponencialmente,<br />
mas os blogues contrabalançam-<br />
-se uns aos outros: as histórias e boatos<br />
de um dos lados são instantaneamente<br />
contestados pelo outro lado. Foram os<br />
eventos e os actos e talentos dos candidatos<br />
que determinaram o rumo da<br />
cobertura noticiosa.<br />
O apoio dos jornais é considerado valioso<br />
mas não tem tido grande influência<br />
nas eleições presidenciais americanas. Os<br />
jornais com 80 por cento da circulação<br />
apoiaram os adversários de Franklin<br />
Roosevelt mas este, de qualquer maneira,<br />
venceu as eleições quatro vezes.<br />
Esta proliferação de fontes de informação<br />
deu azo ao argumento de que os jornalistas<br />
estão ultrapassados, de que já não<br />
somos necessários como “guardiões” da<br />
informação noticiosa. O que se passa é<br />
exactamente o contrário. A necessidade de<br />
profissionais como nós para triar e avaliar<br />
o volume crescente de informação em<br />
bruto é maior do que nunca.<br />
* Jornalista especializado nas campanhas presidenciais<br />
norte-americanas<br />
‘ obama conduziu uma campanha disciplinada<br />
baseada na esperança, no futuro e na unidade nacional.<br />
mostrou-se calmo e sereno perante acontecimentos<br />
inesperados tais como a crise económica que eclodiu<br />
em setembro, o que reforçou a confiança dos eleitores.<br />
Foi considerado o candidato cool.<br />
’<br />
“o nosso voto presidencial pode ser difícil de prever porque é o mais pessoal e simbólico.”<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 1<br />
MICHAL CZERWONKA/EPA/LUSA
LoCo De notAs<br />
O novo ciclo americano<br />
ou a analogia Roosevelt<br />
Os noventa anos da passagem de Franklin<br />
D. Roosevelt nos Açores, no final da Guerra<br />
de 1914-1918, coincidiram, por acaso da<br />
história, com o reavivar do seu legado presidencial.<br />
Ao intervir no I Fórum Açoriano<br />
Franklin D. Roosevelt (Julho de 2008),<br />
Pierre Hassner refere-se “ao calor com que<br />
foram ali comemorados os laços entre a<br />
Europa e a América”, mas fez notar que “o<br />
alvo deste entusiasmo foi a obra de Franklin<br />
Roosevelt e não a de George W. Bush”.<br />
Por que motivo? Hassner sugere que<br />
talvez “uma nostalgia implícita em relação<br />
a Roosevelt e uma exortação a uma nova<br />
mensagem e actuação rooseveltianas para<br />
reparar os danos provocados (por George<br />
W. Bush) constituíssem o subtexto implícito”.<br />
A política de George W. Bush e os<br />
seus efeitos na ordem internacional teriam<br />
conferido especial significado à herança<br />
de FDR: “O estado actual do mundo – sustenta<br />
Hassner, na sua intervenção dos<br />
Açores – torna extraordinariamente relevante<br />
o legado de Roosevelt”. Em especial,<br />
as suas “três grandes realizações”: o <strong>New</strong><br />
Deal, esboço de Estado-Providência nos<br />
Estados Unidos, a intervenção na II Guerra<br />
Mundial, contrariando o tropismo isolacionista,<br />
e os projectos para a reconstrução<br />
da ordem internacional materializados na<br />
Organização das Nações Unidas (ONU).<br />
Tarda a emergir uma nova ordem internacional<br />
após a queda do Muro de Berlim,<br />
o fim do regime soviético em 1991, o 11<br />
de Setembro de 2001 e a invasão do<br />
Iraque. Entre o que resta do equilíbrio<br />
anterior ao final da Guerra Fria figura, em<br />
lugar de relevo, um projecto “rooseveltiano”:<br />
as Nações Unidas. Apesar do seu<br />
desajustamento à realidade presente, a<br />
ONU constitui um dos raros pontos de<br />
apoio para a reorganização do sistema<br />
internacional.<br />
Voltaram a invocar-se métodos usados<br />
por FDR, após as presidenciais de 1932,<br />
com vista a combater o caos e o desespero<br />
reinantes na sociedade americana após<br />
o crash bolsista de 1929: a segurança social,<br />
o subsídio de desemprego, os impostos<br />
progressivos, em suma, a intervenção do<br />
Estado na economia. Estas formas de atenuar<br />
a desigualdade nas economias de<br />
mercado, designadas por “liberais” nos<br />
Estados Unidos e por “social-democratas”<br />
na Europa, permitiam um maior equilíbrio<br />
social e, em simultâneo, esboçavam<br />
uma alternativa ao estatismo da URSS.<br />
Com a emergência das teorias neoconservadoras,<br />
ao tempo de Ronald Reagan,<br />
as políticas sociais transformaram-se em<br />
alvos preferenciais das elites políticas e<br />
económicas dominantes. Inaugurou-se um<br />
novo período marcado pela procura de<br />
“menos Estado” e pelo aumento do leque<br />
das desigualdades sociais.<br />
Paul Krugman propõe uma periodização<br />
da história económica dos Estados Unidos<br />
no século XX baseada no critério da desigualdade<br />
social. O primeiro período identificado<br />
por Krugman, inicia-se ainda no<br />
século XIX (1870) e prolonga-se até 1930<br />
mário mesquitA<br />
e ao <strong>New</strong> Deal. Caracteriza-se por um<br />
elevado grau de desigualdade, sem qualquer<br />
espécie de protecção social aos<br />
trabalhadores e aos sectores mais desfavorecidos<br />
da sociedade.<br />
Os doze anos de presidência de FDR<br />
inauguram uma espécie de interregno,<br />
que se prolonga até à década de 80<br />
(segundo período). Eisenhower, primeiro<br />
Presidente republicano após os democratas<br />
FDR e Truman aceitaram, em parte, a<br />
herança das políticas sociais de FDR. Entre<br />
o fim da Guerra de 1939-1945 e os anos<br />
80, instaura-se, com base num consenso<br />
bipartidário, uma espécie de Estado-<br />
-providência imperfeito, sobretudo porque<br />
‘ o optimismo de obama não foi mero resultado<br />
da estratégia de campanha. o próprio legado de George<br />
W. bush obrigava a colocar alto a fasquia da esperança.<br />
o ex-presidente texano deixou atrás de si ruínas<br />
sobre ruínas.<br />
’<br />
houve uma reforma que nunca chegou a<br />
ter lugar: a protecção contra a doença<br />
alargada a todos os cidadãos, que permanece<br />
por realizar na América, apesar das<br />
tentativas falhadas de Truman, Nixon e<br />
Clinton, o que faz dos Estados Unidos o<br />
único país avançado que não possui um<br />
sistema nacional de saúde alargado a todos<br />
os cidadãos (Krugman).<br />
Um certo consenso bipartidário, entre<br />
democratas e republicanos moderados,<br />
permite manter intocada parte significativa<br />
da herança do <strong>New</strong> Deal, até à época<br />
de Ronald Reagan (terceiro período), em<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
que se reforçou a tendência para o<br />
aumento das desigualdades, em proporções<br />
semelhantes às dos anos 20. Até<br />
1980, sublinha Krugman, os ricos não<br />
eram mais ricos do que na época de<br />
Eisenhower. A matriz ideológica dessa<br />
viragem começa com os movimentos de<br />
radicalização da direita americana nos<br />
anos 70. A América de Reagan e de Bush<br />
voltou a registar índices de desigualdade<br />
semelhantes aos do período anterior à<br />
Grande Depressão. Se identificarmos o<br />
milionário, na esteira de De Long e<br />
Krugman, como o indivíduo que ganha<br />
anualmente o equivalente à produção<br />
anual de 20 mil operários médios, na<br />
América de 1957 existiam 16 milionários;<br />
na de 1968, 13; e na de 2007, um<br />
total de 160.<br />
Compreende-se que – em plena crise das<br />
políticas neoconservadoras – alguns apoiantes<br />
de Barack Obama o projectem como<br />
um novo Roosevelt, em vésperas de propor<br />
um novo <strong>New</strong> Deal. “Franklin Delano<br />
Obama?”. Com este título se interrogava<br />
Krugman, na sua coluna bi-semanal do <strong>New</strong><br />
York Times. Controlar a recessão a curto<br />
prazo, mas lançando as bases de um novo<br />
acordo social: “O meu conselho à equipa<br />
de Obama – escreve Krugman – consiste<br />
em calcularem o auxílio de que a economia<br />
precisa e, a seguir, acrescentarem 50 por<br />
cento. É preferível, numa economia em<br />
depressão, errar por excesso do que por<br />
insuficiência de estímulo.”<br />
A defesa do legado do <strong>New</strong> Deal por<br />
Paul Krugman é também o elogio da audácia<br />
política. Nem o mercado, nem as<br />
mudanças tecnológicas foram, em seu<br />
entender, os factores determinantes na<br />
transição dos anos 80 para um período<br />
de maior desigualdade na distribuição dos<br />
rendimentos. As transformações políticas<br />
é que desempenharam o papel motor: “As<br />
principais fontes do aumento da desigualdade<br />
nos Estados Unidos são as instituições<br />
e as normas, e não a tecnologia ou<br />
a mundialização”, sustenta. Os exercícios<br />
de comparação com o Canadá, a Grã-<br />
-Bretanha, o Japão e a França mostram<br />
que o crescimento das desigualdades nesses<br />
países se situou num plano bem inferior<br />
ao dos Estados Unidos.<br />
Em comunicação proferida, em 2005,<br />
no National Press Club, em Washington<br />
DC, na presença dos netos de FDR, Ann e<br />
James Roosevelt – o (então) senador<br />
Barack Obama afirmou em defesa do legado<br />
rooseveltiano em matéria de seguran-<br />
bLoCo De notAs<br />
Fotomontagem das imagens de roosevelt e obama na capa da Time.<br />
ça social: “O génio de Roosevelt foi pôr<br />
em prática a ideia de que a América não<br />
tem de ser um lugar onde as nossas aspirações<br />
individuais estão em conflito com<br />
o bem comum; é um sítio onde uma coisa<br />
torna a outra possível […]. Salvaremos a<br />
Segurança Social da privatização […] e,<br />
ao fazê-lo, afirmaremos a nossa crença de<br />
que estamos todos ligados como um único<br />
povo – preparados para partilhar os riscos<br />
e as recompensas para benefício da cada<br />
um e para o bem de todos.”<br />
bLoCo De notAs<br />
O paradigma neoconservador foi dominante<br />
na política americana durante quase<br />
três décadas, apesar do parêntesis Clinton.<br />
Em 2008, a herança de Reagan esgotou as<br />
suas virtualidades. O colapso bolsista, a<br />
recessão económica e a crise política – conforme<br />
sustentou Francis Fukuyama –<br />
devem-se a razões intrínsecas ao modelo<br />
neoconservador, desde a definição minimalista<br />
do papel do Estado na economia à<br />
oposição sistemática a quaisquer reformas<br />
no domínio da segurança social e da<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 3
saúde pública, sem esquecer a visão hegemónica<br />
da política externa americana,<br />
hostil à maior parte das instituições internacionais.<br />
No plano externo, escreve<br />
Fukuyama, “a grande tragédia de George<br />
W. Bush foi convencer-se que – após o 11<br />
de Setembro – podia ser Churchill a opor-<br />
-se a Hitler ou ser Reagan na altura da<br />
queda do Muro de Berlim, através do<br />
recurso ao poder militar americano no<br />
Médio Oriente”.<br />
Este contexto ajuda a compreender o sentido<br />
de retomar a inspiração de Roosevelt,<br />
num mundo em que as funções do Estado<br />
são muito diversas dos anos 30. A capa da<br />
Time, depois de vencidas as eleições pelo<br />
candidato democrata, trazia um Barack<br />
Obama disfarçado de FDR, de chapéu alto<br />
e boquilha, ao volante de um descapotável<br />
dos anos 40. Ao longo da campanha, Obama<br />
cultivou dois registos: o Presidente consensual<br />
e suprapartidário (alguns preferiram<br />
escrever “pós-partidário”) e o Presidente<br />
progressivo, herdeiro do legado “liberal”<br />
4<br />
bLoCo De notAs<br />
(no sentido de social-<br />
-democrata). Estas duas<br />
atitudes nem sempre se<br />
ajustarão da melhor<br />
forma. Pressupõem uma<br />
actuação presidencial<br />
pragmática de forma a<br />
arbitrar as tensões e encaminhá-las<br />
num sentido positivo.<br />
Alguns acusam o novo Presidente de ter<br />
elevado demasiado as expectativas dos americanos<br />
e do mundo. Deste modo, a desilusão<br />
seria certa. Contudo, o optimismo de<br />
Obama não foi mero resultado da estratégia<br />
de campanha. O próprio legado de George<br />
W. Bush obrigava a colocar alto a fasquia da<br />
esperança. O ex-Presidente texano deixou<br />
atrás de si ruínas sobre ruínas, desde o<br />
Iraque e a Faixa de Gaza às empresas destruídas<br />
na voragem da crise económica e<br />
financeira. Sem a vaga de entusiasmo desencadeada<br />
na América e no mundo, Obama<br />
não disporia da confiança que lhe permitirá<br />
conciliar os excessos de prudência de uns<br />
‘ obama cultivou dois registos:<br />
o presidente consensual<br />
e pós-partidário e o presidente<br />
progressivo, social-democrata.<br />
’<br />
com a impaciência de outros. Esse crédito<br />
de confiança terá limites temporais. É razoável<br />
fazê-los coincidir com o final do ano I<br />
da era Obama.<br />
Referências:<br />
Francis Fukuyama, “A <strong>New</strong> Era”, American Interest, Janeiro-<br />
-Fevereiro, 2009.<br />
Jacklin Easton (org.), Inspire a Nation: Barack Obama’s Most<br />
electrifying Speeches from day One of His Campaign Through His<br />
Inauguration, Publishing 180, Nova Iorque, 2009 (National-<br />
Press-Club-Obama-Speech).<br />
Paul Krugman, The Conscience of a Liberal, Nova Iorque,<br />
W.W.Norton, 2007.<br />
Paul Krugman, “Franklin Delano Obama?”, <strong>New</strong> York Times,<br />
10 de Novembro de 2008.<br />
Cartoon de obama com características de roosevelt proclamando a sua conhecida frase “A única coisa de que devemos ter medo é o próprio medo”<br />
adaptada, com ironia, ao contexto actual.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
VICTOR MELO/O RETRATO<br />
Por ocasião dos noventa anos da escala do<br />
Presidente norte-americano Roosevelt nas<br />
ilhas açorianas do Faial e São Miguel, o<br />
Governo Regional dos Açores e a <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> organizaram o I Fórum<br />
Açoriano Franklin D. Roosevelt com o apoio<br />
da Presidential Library, sediada em Hyde<br />
Park, nos arredores de Nova Iorque. Durante<br />
Laços atlânticos<br />
Políticos, diplomatas, investigadores e professores portugueses e americanos<br />
partilharam com o público açoriano as problemáticas das relações<br />
entre os estados Unidos e Portugal e o papel dos Açores.<br />
A valorização declarada do potencial geoestratégico dos Açores<br />
para o esforço de guerra no quadro do controlo do Atlântico foi<br />
salientada por Carlos César que defendeu que “com o intensificar<br />
da opção africana por parte do Pentágono […] e o processo<br />
de especialização e relocalização do AFRICOM” as Lajes serão o<br />
três dias, no Teatro Micaelense, em Ponta<br />
Delgada, discutiram-se as relações transatlânticas<br />
na opinião pública europeia e americana.<br />
O II Fórum está previsto para 2010<br />
em Angra do Heroísmo.<br />
Políticos, diplomatas, investigadores e<br />
professores portugueses e americanos partilharam<br />
com o público açoriano as pro-<br />
A exposição documental “roosevelt”, adquirida pela FLAD, foi inaugurada por ocasião do Fórum.<br />
mais tarde, seguiu para a horta e será apresentada em várias ilhas açorianas.<br />
AFriCom<br />
para as Lajes<br />
blemáticas das relações entre os Estados<br />
Unidos e Portugal e o papel dos Açores;<br />
as questões político-diplomáticas actuais;<br />
as reformas em curso nas organizações<br />
internacionais e a actual ordem mundial;<br />
os desafios pós-globalização e muitos<br />
outros temas de que lhe damos conta nos<br />
artigos que se seguem.<br />
local mais vantajoso a todos os níveis, de diplomáticos a logísticos.<br />
“O Estado português deve ter uma palavra rápida, clara e<br />
favorável aos Açores neste assunto”.<br />
O presidente do Governo Regional dos Açores fez estas declarações<br />
no âmbito do Fórum Roosevelt. Carlos César considerou<br />
o encontro “um marco muito positivo no aprofundamento do<br />
relacionamento da FLAD com a Região Autónoma dos Açores”,<br />
reconhecendo toda a actualidade a Roosevelt que, “por direito<br />
próprio, (tem) um lugar de destaque na galeria das grandes<br />
figuras políticas do século XX”.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 5
6<br />
Azores connection<br />
Roosevelt permaneceu apenas três dias em São Miguel mas essa<br />
visita marcou-o de tal forma que, quando já era Presidente (1933-<br />
-1945), encomendou a Charles E. Ruttan um quadro do navio<br />
USS dyer, tendo a bandeira portuguesa hasteada e o porto de<br />
Ponta Delgada como fundo. A pintura esteve sempre junto da<br />
sua secretária, na residência de Hyde Park, em Nova Iorque.<br />
Já no final da Segunda Guerra, quando propôs que se erguesse<br />
um edifício para a sede das Nações Unidas “do tipo do Empire<br />
State Building”, defendeu que nos EUA ficassem apenas “os<br />
arquivos e o respectivo pessoal”. As conferências, dizia, deveriam<br />
realizar-se a meio do Atlântico, nos Açores: “Já lá estive uma vez.<br />
Em frente da minha casa, cresciam, lado a lado, palmeiras e<br />
abetos. Têm um clima maravilhoso.”<br />
[ Patrícia Fonseca, 10 de Julho de 2008 ]<br />
Concretizar<br />
o sonho de Roosevelt<br />
Curiosamente, esta iniciativa (Fórum Roosevelt) – que a organização<br />
quer realizar de dois em dois anos e de forma rotativa<br />
em Ponta Delgada, Angra do Heroísmo ou Horta – é um pouco<br />
o concretizar de um sonho de Franklin D. Roosevelt.<br />
[ Lumena Raposo, 16 de Julho de 2008 ]<br />
O primeiro<br />
dos grandes debates<br />
Confiemos que, depois de outras iniciativas de carácter cultural<br />
e formativo ultimamente realizadas, o “I Fórum Açoriano Franklin<br />
D. Roosevelt” seja o primeiro dos grandes debates que ajudem<br />
a compreender e prospectivar melhor os Açores e o seu posi-<br />
revistA De imprensA<br />
estudante universitária intervém no Fórum.<br />
cionamento no mundo de hoje e do futuro, a partir de um<br />
passado que muito nos ensina.<br />
Passado, presente e futuro formam a trilogia geradora da identidade<br />
singular que constitui o Povo Açoriano. Uma realidade<br />
indestrutível que nenhum amanho político poderá destruir.<br />
[ Gustavo Moura, 16 de Julho de 2008 ]<br />
Um corpo de conhecimento<br />
O fórum valeu por si [...] mas só por isso não serve os interesses<br />
da Região de forma significativa, pelo menos tendo presentes<br />
aqueles que nos parecem ser os interesses dos Açores<br />
enquanto região geo-estratégica por excelência. Este encontro,<br />
que se irá repetir de dois em dois anos – sempre em locais<br />
diferentes dos Açores, pelo que nos é dado entender –, deve,<br />
quanto a nós, constituir-se como um grande momento de exposição<br />
e debate de pensamento novo sobre a realidade e os interesses<br />
específicos dos Açores nas matérias em causa.<br />
[ Armando Mendes, 19 de Julho de 2008 ]<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Novas utilizações<br />
para a Base das Lajes<br />
Hoje, os aviões têm uma maior autonomia de voo e é cada vez<br />
menos imperativo que tenham de reabastecer nas Lajes.<br />
Claro que, logisticamente, a Base das Lajes continua a desempenhar<br />
um importante papel nas nossas operações militares no<br />
Médio Oriente e no Iraque, em particular.<br />
Contudo, temos visto reduções recentes no nosso contingente<br />
nas Lajes e isso implicará também, eventualmente, a redução de<br />
empregos que disponibilizamos aos portugueses nas Lajes.<br />
[ 20 de Julho de 2008, entrevista com o embaixador Thomas<br />
Stephenson (por Paulo Simões/Rui Jorge Cabral) ]<br />
Lisboa e Açores<br />
revistA De imprensA<br />
Para os militares norte-americanos, as Lajes poderão ser uma base<br />
extremamente importante para o apoio logístico e operacional às<br />
operações do Africom, o novo comando militar que se tornará<br />
operacional em Outubro. Se olharmos para o mapa, vemos que a<br />
base nos Açores é ideal para o pré-posicionamento de equipamento,<br />
trânsito ou estacionamento de forças de operações especiais e<br />
reabastecimento americano em direcção a África. As Lajes também<br />
são vistas pela Força Aérea dos EUA como ideais para o treino dos<br />
novos caças F-22 Raptor.<br />
Num discurso (no Fórum Roosevelt) em Ponta Delgada, Carlos<br />
César, presidente do Governo Regional dos Açores, exigiu que Lisboa<br />
conclua rapidamente as negociações que tem vindo a manter desde<br />
há bastante tempo com os EUA sobre estes dois assuntos. Exigiu<br />
também que a resposta nacional seja sim. Os Açores têm todo o<br />
interesse político e orçamental em desempenhar o seu papel no<br />
“Sim, nós podemos!” euro-atlântico de Barack Obama. Lisboa tem<br />
dúvidas. Porquê?<br />
[ Miguel Monjardino, 21 de Julho de 2008 ]<br />
Centralidade dos Açores<br />
nas relações transatlânticas<br />
Existem no mundo inúmeras potências, mas nenhuma delas<br />
consegue actualmente a hegemonia de outrora. Franklin<br />
Delano Roosevelt era um visionário, um homem que esteve<br />
para além do seu tempo, tendo delineado o conceito que<br />
levou à formação das Nações Unidas, da qual pensou tornar-<br />
-se Secretário-Geral. Nos seus planos incluía o sonho de transferir<br />
a sede de Genebra – onde tinha funcionado a Sociedade<br />
das Nações – para Nova Iorque e para a cidade da Horta.<br />
[ Alexandre Pascoal, 22 de Julho de 2008 ]<br />
Factura Obama<br />
A figura do antigo Presidente americano não podia<br />
ter sido mais inspiradora, lembrando-nos a grandeza<br />
da América e a eterna dívida dos europeus para<br />
com ela. A iniciativa, que decorreu sob o tema geral<br />
das relações transatlânticas na opinião pública europeia<br />
e americana, não podia ter vindo mais a propósito.<br />
Tal como muitos analistas europeus, muitos<br />
dos intervenientes (incluindo eu própria) chamaram<br />
a atenção para este excesso de entusiasmo, advertindo<br />
para a factura que Obama pode apresentar à<br />
Europa a troco da sua vontade de imprimir à política<br />
externa norte-americana uma mudança que, em<br />
muitos aspectos, vai ao encontro daquilo que a<br />
Europa deseja.<br />
[ Teresa de Sousa, 23 de Julho de 2008 ]<br />
“Utilizados”<br />
é o que temos sido...<br />
Em extenso e cuidado discurso, o presidente do<br />
“Governo dos Açores” (como ultimamente se intitula,<br />
muito embora a Constituição revista continue a chamar-<br />
-lhe Governo Regional…) afirmou que “não gostamos<br />
de estar isolados nem de nos sentirmos utilizados”.<br />
Convirá, a propósito, precisar o que é isto de nos “sen-<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 7
tirmos utilizados”. Porque “utilizados” é o que, historicamente,<br />
sempre temos sido, como habitantes de um território estrategicamente<br />
importante.<br />
[ Álvaro Monjardino, 26 de Julho de 2008 ]<br />
8<br />
Transformar acordo<br />
em tratado internacional<br />
É tempo de transformar este acordo num Tratado Internacional,<br />
sujeito a aprovação pela Assembleia da República e pelo Congresso<br />
dos Estados Unidos.<br />
Admitimos que, no âmbito de novas e diferentes negociações<br />
de um Tratado Internacional sobre facilidades de utilização da<br />
Base das Lajes, pode encontrar-se a oportunidade para que a<br />
questão laboral, muitas vezes envolta em conflito, tenha um<br />
futuro entendimento claro e exequível, sem pôr em causa a<br />
dignidade e soberania de nenhum dos Estados.<br />
Para esta pretensão devemos contar com o prestígio da nossa<br />
diáspora e dos congressistas de ascendência açoriana.<br />
[ José Manuel Bolieiro, 31 de Julho de 2008 ]<br />
Estudantes participam<br />
no sonho açoriano de Roosevelt<br />
No essencial, a <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> para o Desenvolvimento<br />
(FLAD) realizou o sonho do político americano: especialistas de<br />
várias áreas e diferentes nacionalidades, e alguns finalistas de<br />
universidades portuguesas, reuniram-se […] para discutir as<br />
relações transatlânticas.<br />
O local de encontro foi Ponta Delgada, em São Miguel, essa<br />
terra onde o presidente americano só esteve uma vez. Foi amor<br />
à primeira vista. O evento tem o nome do sonhador. É o I Fórum<br />
Açoriano Franklin D. Roosevelt, onde a Universidade de<br />
Coimbra marcou presença com docentes, investigadores e<br />
estudantes. Mário Mesquita, coordenador da Comissão<br />
Organizadora do Fórum e Membro do Conselho Executivo da<br />
FLAD, conta que a ideia do Fórum nasceu “da vontade de criar,<br />
nos Açores, um espaço de reflexão sobre política internacional<br />
e estratégia”. Porquê nestas ilhas? “Fala-se muito dos Açores<br />
como um lugar estratégico em casos de guerra, mas a ideia<br />
que emana da visão de Roosevelt é que este lugar também<br />
pode servir à construção da paz e é a paz, e não a guerra, que<br />
queremos discutir”.<br />
revistA De imprensA<br />
mário soares e bernardino Gomes na visita à Casa e ao Jardim José do Canto.<br />
Nenhum dos alunos presentes hesita em afirmar que Roosevelt<br />
é um homem que vale a pena homenagear. É o presidente do<br />
Governo Regional dos Açores, Carlos César, que numa frase sintetiza<br />
o motivo: “Franklin Roosevelt empenhou-se em garantir<br />
que o papel da América a nível da política internacional fosse<br />
recordado pela disseminação da paz, pela força da razão e não<br />
pela força das armas, e este é um exemplo que o mundo contemporâneo<br />
precisa urgentemente de relembrar”. Manuel Porto,<br />
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,<br />
mostra-se “a favor do Estado, mas de um bom Estado”.<br />
[ Martha Mendes, revista RL, n.º 22 ]<br />
O sonho da reorganização<br />
de uma ordem mundial pacífica<br />
O encontro multidisciplinar que a <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
organizou em Ponta Delgada […] teve como efeméride de referência<br />
a passagem de Franklin Roosevelt pelos Açores durante a<br />
Primeira Guerra Mundial.<br />
Uma estada pelo arquipélago que lhe ficou como recordação encantatória<br />
e que, no entardecer da vida lhe terá feito sentir o desejo,<br />
não realizado, de ali regressar para esperar o fim dos dias.<br />
Mas, para além da recordação da histórica e acidental passagem pelo<br />
arquipélago, a referência que enquadrou as intervenções foi o sonho<br />
da reorganização de uma ordem mundial pacífica que animou a<br />
sua visão de futuro, para além da vitória militar na guerra de 1939-<br />
-1945, contra os demónios interiores europeus.<br />
[ Adriano Moreira, 19 de Agosto de 2008 ]<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
POR JAmes rooseveLt<br />
Mensagem ao Fórum<br />
O neto de Roosevelt não pôde estar presente mas participou<br />
com uma mensagem de abertura (por vídeo), agora transcrita,<br />
que valoriza o Fórum, dedicado ao seu avô, e o impulso que<br />
este dará ao fortalecimento dos laços dos dois lados do Atlântico.<br />
Chamo-me James Roosevelt Junior e é um prazer<br />
e um privilégio para mim saudar, em nome da<br />
família Roosevelt, os participantes neste primeiro<br />
Fórum Franklin D. Roosevelt sobre Relações<br />
Transatlânticas. Como sabem, o meu avô, o<br />
Presidente Franklin D. Roosevelt, visitou Ponta<br />
Delgada, na ilha de São Miguel, de 16 a 18 de<br />
Julho de 1918, quando era subsecretário da<br />
Marinha dos Estados Unidos da América. Chegou<br />
a bordo de um contratorpedeiro da marinha americana,<br />
o USS dyer, que efectuava a sua viagem<br />
inaugural. No seu diário e nas suas cartas à minha<br />
avó Eleanor Roosevelt e à sua mãe, Sarah Delano<br />
Roosevelt, escreveu muitas observações maravilhosas<br />
sobre a beleza da ilha que estava a visitar e<br />
sobre a utilidade das conversações que manteve<br />
com autoridades governamentais durante a sua<br />
visita. Espero que este Fórum assinale o relançamento<br />
da era de relações transatlânticas que foram<br />
tão importantes no tempo do meu avô. Para ele,<br />
as relações transatlânticas estavam no cerne da<br />
política externa dos Estados Unidos. É certo que o<br />
meu avô tinha uma visão mundial, mas considerava<br />
que os interesses comuns das nações banhadas<br />
pelo oceano Atlântico eram tão importantes que<br />
tinham de estar no cerne da política americana.<br />
Nos últimos anos, afastámo-nos desse projecto e<br />
espero que este Fórum dê um novo impulso a esse<br />
importante objectivo, colocando-o de novo no<br />
centro das relações externas dos Estados Unidos.<br />
O tema desta conferência, “As Relações<br />
Transatlânticas e a Opinião Pública Europeia e<br />
<strong>Americana</strong>”, é muito importante no mundo de<br />
hoje. Penso que o cepticismo bem como a falta de<br />
confiança e respeito mútuo que têm caracterizado<br />
as relações transatlânticas nos últimos anos prejudicam<br />
todas as pessoas do mundo, mas especialmente<br />
as populações de ambos os lados do<br />
Atlântico. Julgo, portanto, que a concentração renovada<br />
de atenção que este Fórum irá trazer segue<br />
inteiramente a tradição do serviço prestado pelo<br />
meu avô à presidência de Woodrow Wilson, durante<br />
e após a I Guerra Mundial, e como Presidente<br />
dos Estados Unidos durante quatro mandatos, nas<br />
décadas de 1930 e 1940. Estamos a viver um tempo<br />
diferente, um tempo difícil, e todos o sabemos.<br />
Mas é um tempo em que se têm registado também<br />
grandes progressos e que nos pode trazer um grande<br />
futuro de relações calorosas se nos concentrarmos<br />
novamente nos nossos interesses comuns. Por<br />
conseguinte, em nome da família Roosevelt, desejo<br />
agradecer aos organizadores deste Fórum por<br />
terem reunido importantes decisores políticos e<br />
porta-vozes de ambos os lados do Atlântico com<br />
o objectivo de nos levar a empenharmo-nos novamente<br />
nos nossos verdadeiros interesses como<br />
nações e, também, como cidadãos do mundo.<br />
Desejo-vos as maiores felicidades nas vossas sessões<br />
de trabalho e nas vossas deliberações, e aguardo<br />
com expectativa a oportunidade de tomar conhecimento<br />
dos efeitos duradouros que este Fórum<br />
produzirá na política mundial, e, principalmente,<br />
na política externa das nações de ambos os lados<br />
do Atlântico. Muito obrigado.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 9
30<br />
De olhos postos no mundo<br />
Na Sala Oval, Franklin delano Roosevelt fixa um ponto no enorme globo terrestre.<br />
Talvez o Mediterrâneo. O mar que sempre foi a sua paixão<br />
e as viagens que lhe proporcionou.<br />
Não admira que uma das suas primeiras<br />
recordações fosse a do poder do mar. Em<br />
1885, na sua primeira travessia do<br />
Atlântico, o pequeno Franklin, com apenas<br />
três anos, viajava de Inglaterra para<br />
os Estados Unidos quando o seu barco<br />
foi atingido por fortes ondas que invadiram<br />
a cabina onde a família Roosevelt<br />
estava instalada e levaram o seu brinquedo<br />
predilecto.<br />
POR sArA pinA*<br />
Cynthia Koch, directora da Biblioteca<br />
Franklin D. Roosevelt, conta que os<br />
Roosevelt passavam anualmente vários<br />
meses na Europa. A 30 de Janeiro de 1882,<br />
quando Franklin Delano Roosevelt nasceu,<br />
em Nova Iorque, a família tinha regressado<br />
de uma longa viagem. Nove meses<br />
antes do nascimento estavam na Europa,<br />
como indica o diário da sua mãe Sara,<br />
uma mulher muito viajada que deslum-<br />
brava o seu filho único com contos de<br />
aventuras de viagens por mar.<br />
Depois de alguns anos a viver na<br />
Alemanha, Franklin Delano Roosevelt<br />
ingressou no colégio de Groton, perto de<br />
Boston, cujo lema – apoiar os mais desfavorecidos<br />
– resultava da convicção de que<br />
os americanos privilegiados devem ajudar<br />
a resolver os “males nacionais e internacionais”.<br />
Em Harvard cursou Direito, mas<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />
em 1915, passando revista a cadetes enquanto subsecretário de estado da marinha.<br />
o que realmente o fascinava era ser editor<br />
do jornal estudantil Harvard Crimson.<br />
Franklin Delano Roosevelt pertencia a<br />
uma família rica e com muitas ligações<br />
políticas. Theodore Roosevelt, o Presidente<br />
norte-americano de 1901 a 1909, era seu<br />
primo e tio da sua mulher – Eleanor.<br />
Embora a carreira profissional tenha<br />
começado pela advocacia, FDR cedo iniciou<br />
o serviço público. Em 1913, foi compensado<br />
pelo seu apoio à eleição para a<br />
Presidência de Woodrow Wilson com o<br />
cargo de subsecretário de Estado da<br />
Marinha e durante a I Guerra Mundial era<br />
o “número dois” na linha de comando.<br />
Foi com a participação da América na I<br />
Guerra Mundial que Roosevelt viajou até<br />
aos Açores para depois seguir para França<br />
e outras regiões da Europa. A visita a São<br />
Miguel foi muito marcante para FDR que<br />
“encomendou” ao pintor Charles Ruttan<br />
um quadro a óleo do destroyer USS dyer – o<br />
vaso de guerra que o transportou à Europa,<br />
ancorado no porto de Ponta Delgada.<br />
Talvez não fosse a sua pintura favorita,<br />
mas esteve sempre colocada por cima da<br />
sua secretária, no escritório da residência<br />
de Hyde Park.<br />
“Ponta Delgada está à vista e alguns dos<br />
nossos barcos encontram-se no porto […]<br />
Quando chegámos ao porto ouvimos dizer<br />
que, no momento exacto em que nos<br />
encontrávamos parados, um submarino<br />
foi visto em perseguição de um barco<br />
português, ao largo do quebra-mar. É claro<br />
que teríamos sido um alvo fácil, mas, se<br />
o submarino nos viu, decidiu evitar os<br />
destroyers, como qualquer submarino prudente<br />
faz”, escrevia Roosevelt no seu diário<br />
a 16 de Julho de 1918.<br />
Roosevelt foi recebido pelo comandante<br />
da base de Ponta Delgada, almirante Dunn.<br />
Numa carta para a mulher Eleanor, revelou-<br />
-se muito satisfeito com a organização militar<br />
e a recepção dos portugueses. Mas o que<br />
o deslumbrou foi a paisagem: “subitamente<br />
chegámos à orla do que foi, em tempos,<br />
uma enorme cratera, tendo no fundo um<br />
cenário maravilhoso – várias aldeias, vales<br />
e jardins, lagos azul-escuro e nascentes de<br />
onde se desprendem nuvens de vapor”.<br />
Para Cynthia Koch, “FDR viu no solo açoriano<br />
um lugar neutro onde os líderes se<br />
pudessem encontrar e debater políticas”.<br />
De tal maneira que em 1945, numa conferência<br />
de imprensa, enquanto Presidente,<br />
diria: “Tenciono conseguir um edifício<br />
semelhante ao Empire State Building [para<br />
as Nações Unidas] apenas para os<br />
‘ quando chegámos ao porto ouvimos dizer que, no<br />
momento exacto em que nos encontrávamos parados,<br />
um submarino foi visto em perseguição de um barco<br />
português, ao largo do quebra-mar.<br />
’<br />
o barco onde viajava roosevelt no porto de ponta Delgada, num óleo de Charles ruttan,<br />
exposto no gabinete de trabalho do presidente.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 31<br />
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />
arquivos e respectivo pessoal, e, em seguida,<br />
fazer com que as conferências se realizem<br />
em parte do tempo, numa das ilhas<br />
dos Açores. Já lá estive uma vez. Em frente<br />
da minha casa cresciam, lado a lado,<br />
palmeiras e abetos. Têm um clima maravilhoso”.<br />
Para FDR o arquipélago açoriano significava<br />
esse ponto, quase neutro, entre a Europa<br />
e a América, onde os decisores políticos se<br />
podiam encontrar e debater as ideias que<br />
ditavam os acontecimentos mundiais.<br />
“Em 1932, depois de uma dura luta,<br />
Roosevelt tornou-se o candidato à presidência<br />
nomeado pelo Partido Democrata.<br />
FDR fascinou o público ao voar até<br />
Chicago para aceitar a nomeação, onde<br />
prometeu um <strong>New</strong> Deal para o povo americano”,<br />
explica Cynthia Koch, e continua:<br />
“FDR palmilhou a nação de lés a lés, percorrendo<br />
uma distância recorde de apro-<br />
3<br />
no avião a caminho de Chicago para a nomeação à candidatura a presidente pelo partido Democrata.<br />
ximadamente 20 mil quilómetros, por<br />
todo um país devastado por uma crise<br />
económica e humana que durava há três<br />
anos e se tornava cada vez mais grave”.<br />
O resultado dessa campanha foi a vitória<br />
democrata no ano seguinte. A 4 de<br />
Março de 1933, Roosevelt tomou posse<br />
como o 32.º Presidente dos Estados<br />
Unidos, numa altura em que a nação<br />
estava à beira do colapso.<br />
“Algumas vozes, levantadas pelo desespero<br />
e pelo medo, chegaram mesmo a<br />
pedir que o novo presidente suspendesse<br />
o governo constitucional e assumisse<br />
poderes quase ditatoriais”, conta a directora<br />
Koch. Mas Roosevelt manteve-se dialogante.<br />
Aos compatriotas, respondeu:<br />
“A única coisa que devemos recear é o<br />
próprio medo.”<br />
Na verdade, segundo as palavras de<br />
Cynthia Koch, “em termos humanos, a<br />
maior mudança foi talvez a nova sensação<br />
de um objectivo comum que FDR promoveu,<br />
falando com clareza e sinceridade<br />
à imprensa e ao povo americano”.<br />
Poucos dias depois de ter tomado posse,<br />
iniciou uma série de programas de rádio<br />
chamados “Conversas à Lareira” e que<br />
foram os primeiros discursos presidenciais<br />
dirigidos exclusivamente a uma audiência<br />
de rádio. “O estilo era informal e coloquial,<br />
dando a impressão de que o<br />
Presidente estava realmente a falar com as<br />
pessoas na sala”. Durante os doze anos de<br />
Roosevelt na Presidência, viriam a realizar-<br />
-se mais de 30 “Fireside chats”. A seguir<br />
a cada programa, a Casa Branca era inundada<br />
por telegramas e cartas. Cynthia Koch<br />
sustenta que “pela primeira vez, os americanos<br />
encetaram um diálogo nacional<br />
com o seu Presidente sobre o futuro e o<br />
destino da nação”.<br />
Os primeiros meses como Presidente<br />
foram marcados por uma actividade tão<br />
intensa por parte de Roosevelt que ficaram<br />
conhecidos como os “Primeiros Cem<br />
Dias”. Foi nesta altura que foi lançado o<br />
<strong>New</strong> Deal – 15 diplomas legislativos que<br />
visavam garantir comida, abrigo e trabalho<br />
para os necessitados, estruturar a<br />
reforma da banca, ajudar os agricultores<br />
empobrecidos e terminar com a proibição<br />
de cerveja e álcool, o que levantou<br />
a moral nacional.<br />
Na opinião da bibliotecária, “Franklin<br />
Roosevelt tinha um instinto de poder e a<br />
vontade necessária para o exercer. A II<br />
Guerra Mundial – com as suas operações<br />
militares à escala mundial, complexas coligações<br />
internacionais e problemas económicos<br />
e sociais – era um grande palco em<br />
que o Presidente assumiu um papel fulcral.<br />
Roosevelt foi, em todos os sentidos,<br />
o comandante-chefe da nação. Tomou<br />
decisões militares, políticas e reuniu um<br />
grupo dos melhores estrategas que lhe<br />
prestavam contas directamente”.<br />
Roosevelt detinha a principal posição na<br />
coligação de guerra das 26 nações aliadas,<br />
que ele denominou “Nações Unidas”. “À<br />
medida que a guerra avançava, FDR foi<br />
assumindo cada vez mais as funções de<br />
mediador e decisor principal do grupo”,<br />
diz Koch, acrescentando: “Ao longo da<br />
guerra, o Presidente Roosevelt frisou repetidas<br />
vezes a importância de reforçar a<br />
coligação. A diplomacia foi o que caracterizou<br />
a sua acção de liderança durante<br />
a II Guerra”.<br />
Na manhã de 12 de Abril de 1945,<br />
a II Guerra Mundial entrou no seu 2049.º<br />
dia. Tinham morrido já quase 50 milhões<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
de pessoas, e muitos mais milhões estavam<br />
feridos ou tinham perdido as suas<br />
casas. Na Europa, Adolf Hitler vivia num<br />
bunker subterrâneo enquanto os soldados<br />
soviéticos se preparavam para invadir a<br />
capital alemã e o primeiro campo de<br />
concentração era libertado pelas tropas<br />
russas. O Presidente norte-americano<br />
acordou exausto na sua casa de férias, na<br />
Geórgia. Poucas horas depois daquilo que<br />
parecia apenas uma “dor de cabeça”,<br />
Franklin D. Roosevelt morria, de uma<br />
hemorragia cerebral.<br />
Franklin D. Roosevelt viveu tempo suficiente<br />
para saber que a vitória estava<br />
garantida. Menos de um mês depois da<br />
sua morte, a Alemanha rendeu-se aos<br />
Aliados. Os últimos dias da sua vida<br />
foram dedicados ao mundo do pós-guerra,<br />
preparando as bases legislativas e<br />
logísticas da Organização das Nações<br />
Unidas (ONU).<br />
FDR morreu dias antes da data marcada<br />
para o discurso que iria proferir na sessão<br />
de abertura da conferência de fundação<br />
da ONU. Na véspera do dia em que morreu,<br />
trabalhou num discurso sobre o<br />
mundo do pós-guerra: “A simples con-<br />
roosevelt um dia antes de morrer a trabalhar na intervenção para a formação das nações unidas.<br />
quista dos nossos inimigos não é suficiente.<br />
Os americanos devem cultivar a ciência<br />
das relações humanas – a capacidade de<br />
todos os povos, de todos os tipos, viverem<br />
juntos e trabalharem juntos no mesmo<br />
mundo, em paz”.<br />
* com susAnA pAuLA<br />
Cynthia Koch, directora da biblioteca presidential Franklin D. roosevelt, foi a primeira oradora do Fórum roosevelt e iniciou a sua apresentação<br />
afirmando que “roosevelt teria ficado muito feliz com estas conferências”. A biblioteca foi parceira da organização deste encontro.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 33<br />
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />
VICTOR MELO/O RETRATO
34<br />
Actualidade do pensamento<br />
de roosevelt<br />
Alan Henrikson, director de estudos diplomáticos da The Fletcher School of Law<br />
and diplomacy, da Tufts University, traçou o perfil de Roosevelt como “figura histórica”.<br />
em entrevista explica a importância do arquipélago e a actualidade do pensamento de Roosevelt,<br />
mesmo se comparado com o do novo Presidente dos estados Unidos, Barack Obama.<br />
Roosevelt era um homem do mundo, viajava<br />
muito. Na sua opinião, por que motivo os Açores<br />
lhe causaram tão boa impressão?<br />
Os Açores representavam para Roosevelt<br />
um ponto fulcral, uma espécie de eixo<br />
mental e visual, à volta do qual começou<br />
a desenvolver mais claramente a sua noção<br />
do limite de hemisfério ocidental e de uma<br />
Comunidade Atlântica. O final da guerra<br />
constituía o palco de uma nova ordem<br />
mundial, na qual imaginava<br />
que os Açores poderiam,<br />
eventualmente, vir a tornar-se<br />
o principal quartel-general,<br />
uma vez que a maioria dos<br />
estados soberanos do mundo<br />
se encontrava na Europa e no<br />
hemisfério ocidental, incluindo<br />
todas as repúblicas americanas.<br />
Poderia haver<br />
reuniões nos Açores e/ou no<br />
Pacífico. Há ainda a referir<br />
aquilo a que o seu Vice-<br />
-Presidente, Henry Wallace,<br />
chamava a sua espectacular e<br />
especial memória. Segundo<br />
ele, Roosevelt conseguia lembrar-se<br />
não só do aspecto das<br />
coisas, como também se<br />
recordava de informação<br />
específica acerca de lugares,<br />
como distâncias, e até das<br />
marés e dos ventos de algumas<br />
zonas de costa. Reparava<br />
em todos os detalhes de uma<br />
cena ou paisagem. Os Açores<br />
impressionaram-no profundamente.<br />
POR AnA brAsiL E António viCente<br />
Actualmente, os aviões americanos já não têm<br />
de fazer escala no meio do Atlântico para poderem<br />
chegar a outros lugares do mundo. A base<br />
aérea da ilha Terceira ainda continua a ser importante<br />
para os objectivos militares dos EUA?<br />
É um facto que, com os aviões de longo<br />
alcance, se tornou muito fácil sobrevoar o<br />
Atlântico e ultrapassá-lo, sem qualquer escala.<br />
Durante a Guerra do Kosovo, os bombardeiros<br />
americanos Stealth levantavam voo<br />
“obama terá, da mesma forma que roosevelt, um conhecimento directo<br />
de outras partes do mundo”, diz Alan henrikson.<br />
da base da Força Aérea de Whiteman, no<br />
Missouri, voando sobre Belgrado e voltando,<br />
sem parar. No entanto, tinham de ser abastecidos<br />
sete vezes por aviões em diversos<br />
pontos da viagem. Isto ilustra bem a necessidade<br />
de posições intermédias na cadeia<br />
logística, associadas a aeronaves de diferentes<br />
níveis tecnológicos e para diferentes fins.<br />
Além disso, estas posições intermédias têm<br />
de ser abastecidas e apoiadas. É necessário<br />
que tenham equipamentos de<br />
comunicação que sejam absolutamente<br />
fiáveis e seguros.<br />
Por conseguinte, na minha<br />
VICTOR MELO/O RETRATO<br />
opinião, provavelmente, seria<br />
melhor pensar nos Açores<br />
como um importante centro<br />
intermédio, do que como um<br />
principal ponto estratégico.<br />
Por outro lado, também é um<br />
facto que a geoestratégia é<br />
muito importante no contexto<br />
mais lato do problema que<br />
enfrentamos. Se houver um<br />
problema humanitário que<br />
necessite de operações de<br />
assistência em qualquer parte<br />
de África, por exemplo, pode<br />
acontecer que a velocidade<br />
não seja o mais relevante, mas<br />
sim a capacidade de carga.<br />
Numa situação do género,<br />
poderiam usar-se aeronaves<br />
mais lentas. Este seria o<br />
segundo exemplo de uma<br />
situação em que os Açores<br />
seriam importantes. O terceiro<br />
seria no caso de estarmos<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
FDR PRESIDENTIAL LIBRARy<br />
perante um problema sensível do ponto de<br />
vista político, que necessitasse de acção imediata;<br />
se fosse necessário chegar a algum<br />
lugar rapidamente, sem atrair muita atenção.<br />
Uma outra situação, muito semelhante a<br />
esta, poderia ser a necessidade de haver reuniões<br />
rápidas entre dirigentes para consulta<br />
aos níveis mais altos, como a que aconteceu<br />
em 2003 com Bush, Blair, Aznar e<br />
Barroso.<br />
O senhor é um dos principais especialistas em<br />
Franklin Delano Roosevelt. Ainda fica surpreendido<br />
perante algumas situações em que FDR é<br />
citado ou referido?<br />
As suas ideias, que muitas pessoas naquela<br />
altura julgavam não passarem de palavras<br />
– como as “Quatro Liberdades” –,<br />
eram de tal maneira grandes que foi<br />
possível adoptá-las em contextos completamente<br />
diferentes. Para mim, um desenvolvimento<br />
surpreendente foi a forma<br />
como o ex-secretário-geral das Nações<br />
Unidas, Kofi Annan, se referiu às “Quatro<br />
Liberdades”, de Roosevelt, quando apresentou<br />
o seu Relatório do Milénio. Citou<br />
especialmente a libertação das necessidades<br />
materiais e a libertação do medo –<br />
dando-lhes talvez a melhor definição<br />
existente de “segurança humana”, um<br />
novo termo que, entretanto, se institucionalizou<br />
em todo o mundo.<br />
É da opinião que, com a evolução da ordem mundial,<br />
será dada maior atenção aos pequenos estados?<br />
Sim. Em especial nas questões climáticas,<br />
no problema geopolítico relativo às zonas<br />
de conflito e na liderança moral no que<br />
toca a reagir às situações humanitárias. Isso<br />
acontecerá devido ao contexto diplomático.<br />
Do sistema das Nações Unidas fazem parte<br />
192 países. Eram apenas pouco mais de 50<br />
quando a ONU foi criada. Consequentemente,<br />
a ONU está a tornar-se uma instituição<br />
composta por pequenos países. Graças a<br />
este princípio de igualdade soberana e, uma<br />
vez que na Assembleia Geral todos os votos<br />
são iguais, o Conselho de Segurança é pressionado<br />
a alargar-se.<br />
Roosevelt era uma figura muito inspiradora. Pensa<br />
que o mundo anseia por este tipo de líder político,<br />
que muitos parecem ver em Obama?<br />
Sim. Muitas pessoas acreditam – e eu partilho<br />
dessa esperança – que Obama terá,<br />
da mesma forma que Roosevelt, um conhecimento<br />
directo de outras partes do mundo.<br />
Obama tem experiência; e não me refiro<br />
a experiência em política externa, mas sim<br />
a “experiência externa”. O seu pai era queniano,<br />
visitou a Índia e diversas regiões<br />
africanas. Chegou mesmo a viver na<br />
Indonésia. Na qualidade de membro do<br />
Foreign Relations Committee (comissão de<br />
fiscalização das relações externas do Senado<br />
americano), também viajou muito.<br />
Independentemente do que possam ser os<br />
objectivos das suas políticas, a compreensão<br />
alargada que tem de diversos contextos<br />
geográficos e sociais dar-lhe-á um determinado<br />
tipo de visão. Um exemplo disso<br />
mesmo é a sua proposta para um fundo<br />
global para a educação no valor de 15 mil<br />
milhões de dólares. Obviamente, não<br />
seriam apenas os EUA a assegurar o respectivo<br />
financiamento. Ainda não foi dada<br />
grande atenção a esta proposta. Entre outras<br />
coisas, Obama afirmou que “O facto de<br />
haver crianças, por exemplo, no Médio<br />
Oriente, que não sabem ler, pode, a longo<br />
‘ As suas ideias, [...] como as “quatro Liberdades”,<br />
eram de tal maneira grandes que foi possível<br />
adoptá-las em contextos completamente diferentes.<br />
prazo, constituir um perigo potencial para<br />
os EUA, bem como para a própria região”.<br />
Relativamente às suas propostas para a<br />
educação nos EUA tem dado ênfase às idades<br />
preescolares. Talvez seja o resultado do<br />
seu trabalho com as comunidades em<br />
Chicago – onde se apercebeu de como são<br />
decisivos esses anos para as famílias afro-<br />
-americanas – e provavelmente também<br />
da experiência acumulada nos quatro anos<br />
vividos na Indonésia durante a sua juventude,<br />
ou mesmo de tudo o que viu no<br />
Quénia. O facto de Obama defender – tal<br />
como FDR provavelmente o teria feito –<br />
não apenas a liberdade de expressão, a<br />
liberdade religiosa e a libertação do medo,<br />
como também a liberdade de aprender em<br />
qualquer lugar do mundo, mostra que tem<br />
um grande potencial.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 35<br />
’
36<br />
os Açores: entre os<br />
estados unidos e portugal<br />
A admiração dos micaelenses pelos Estados<br />
Unidos foi gerada, nas palavras de Carlos<br />
Enes, pelo sentimento de “abandono”<br />
por parte do Governo central e pelos<br />
apoios prestados pelas forças americanas.<br />
Começavam a manifestar-se tendências separatistas<br />
em São Miguel e na colónia emigrada<br />
na Nova Inglaterra. Alguns açorianos<br />
queriam distanciar-se do Governo do continente<br />
e, porventura, ligar-se aos Estados<br />
Unidos. Foi nesse clima que Franklin<br />
D. Roosevelt desembarcou no arquipélago.<br />
Os discursos de Franklin D. Roosevelt<br />
em Ponta Delgada não ultrapassaram os<br />
limites das palavras de protocolo. Roosevelt<br />
valorizou, no entanto, a posição estratégica<br />
dos Açores, a ponto de considerar o<br />
apoio concedido pela base naval de Ponta<br />
Delgada às forças aliadas mais importante<br />
do que a própria participação portuguesa<br />
no teatro de guerra europeu: “Portugal<br />
entrou na aliança europeia, mas os Açores<br />
fazem mais do que isso, pelas condições<br />
especiais da sua posição estratégica”.<br />
A atitude de não ingerência dos Estados<br />
Unidos nos assuntos internos portugueses<br />
e de repúdio de envolvimento em ensaios<br />
separatistas reflectia a orientação geral da<br />
política externa definida pelo Presidente<br />
Wilson, que se caracterizava pela ideia de<br />
uma arbitragem americana a nível internacional<br />
– uma espécie de leadership moral<br />
a exercer pelos Estados Unidos, com vista<br />
à defesa da paz e a espalhar pelo mundo<br />
os benefícios da democracia.<br />
Com a II Guerra Mundial, como explicou<br />
o professor Luís Andrade, os estrategas dos<br />
Estados Unidos multiplicavam os sinais de<br />
preocupação com o arquipélago português,<br />
a fim de demover a diplomacia salazarista<br />
da sua posição de neutralidade e<br />
obter a anuência do Governo português<br />
com vista à instalação de uma base militar<br />
nas ilhas atlânticas.<br />
Em discurso proferido, Roosevelt ameaçava,<br />
de forma implícita, com a possibi-<br />
POR mArtA Amorim E susAnA pAuLA<br />
lidade de ocupação dos Açores e de Cabo<br />
Verde: “Nós e as Américas – quando e<br />
onde quer que os nossos interesses forem<br />
atacados e a nossa segurança ameaçada<br />
– decidiremos onde deveremos colocar as<br />
nossas Forças Armadas e onde estabeleceremos<br />
a nossa posição militar estratégica,<br />
sem termos a mais ligeira hesitação para,<br />
servindo-nos das Forças Armadas, repelir<br />
qualquer ataque”.<br />
Em resposta, Salazar enviou contingentes<br />
militares para as ilhas. O Presidente Carmona<br />
efectuou uma viagem de reafirmação de<br />
soberania, sob o slogan “Aqui é Portugal”.<br />
Os Aliados e as potências do Eixo interpretaram<br />
estas medidas como “símbolo da<br />
vontade de Portugal em não deixar ocupar<br />
as suas possessões atlânticas por qualquer<br />
potência e sob qualquer pretexto”.<br />
Após o fim da II Guerra Mundial e o<br />
início da Guerra Fria, os Estados Unidos<br />
vão permanecendo nos Açores com inúmeras<br />
concessões ao Estado português.<br />
Como afirmou António José Telo, “Portugal<br />
foi o único país não democrático convidado<br />
para membro fundador da NATO; o<br />
único pequeno poder que, em 1961-63,<br />
conseguiu mudar aspectos importantes da<br />
política americana em África”.<br />
O historiador e director do Instituto de<br />
Defesa Nacional concluiu: “Em múltiplas<br />
crises e conjunturas nos últimos dois<br />
séculos, Portugal tem desempenhado<br />
funções e cumprido missões que estão<br />
aparentemente acima dos seus recursos<br />
e força relativa. Essa capacidade tem sido<br />
essencial para a criação do Portugal contemporâneo<br />
e deve-se a um conjunto<br />
multifacetado de factores. Os Açores e a<br />
sua posição estratégica são um dos principais<br />
e, em muitas das crises e situações<br />
concretas, são o principal”.<br />
“As bases e as relações bilaterais com os estados unidos: um século de entendimentos”<br />
foi a conferência apresentada ao Fórum por António José telo.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
VICTOR MELO/O RETRATO
Na opinião do embaixador de Portugal<br />
em Washington, João Vallera, a relação<br />
transatlântica só “ganhará força” se fizer<br />
coincidir a sua agenda com a agenda mundial.<br />
Por isso se têm desenvolvido esforços<br />
na busca de “plataformas comuns”, no<br />
âmbito de uma agenda que, segundo<br />
Vallera, se foca em questões específicas,<br />
como o comércio a vários níveis ou os<br />
entraves à circulação de pessoas e bens, à<br />
defesa europeia e as ligações à NATO. Mas<br />
também em grandes questões globais,<br />
como o Iraque, o terrorismo, a luta contra<br />
a pobreza ou a emergência de novas<br />
potências mundiais, como a China.<br />
O embaixador assumiu esperar da capital<br />
norte-americana “uma atitude mais<br />
atenta e mais adepta a escutar as reacções<br />
do exterior”. Afinal, segundo notou, assiste-se<br />
a “um movimento de considerável<br />
recentragem da política americana”, favorável<br />
a uma “significativa reaproximação<br />
com a Europa”.<br />
No entanto, realçou o embaixador, “a<br />
capacidade de alterar componentes básicos<br />
da política externa americana é muito<br />
limitada, visto que boa parte das opções<br />
de fundo da actual Administração vão trazer<br />
consequências para a próxima”.<br />
Ao apresentar João Vallera, o director<br />
da SIC Notícias, António José Teixeira,<br />
citou Robert Kagan quando este refere que<br />
actualmente os Estados Unidos estão em<br />
Marte e a Europa em Vénus. Ou seja,<br />
enquanto o objectivo dos europeus se<br />
centra no “equilíbrio de interesses” e na<br />
“resolução pacífica dos conflitos”, os norteamericanos<br />
“não acreditam que estejamos<br />
assim tão perto do sonho” da “paz perpétua”<br />
e da estabilidade mundial.<br />
... tAmbém pArA o Ambiente<br />
O embaixador dos Estados Unidos em<br />
Portugal, Thomas Stephenson, focou na<br />
sua intervenção o tema e optou por falar<br />
plataformas<br />
comuns...<br />
POR CLAúDiA GAmeiro,<br />
JoAnA FernAnDes E mArCo Leitão siLvA<br />
o embaixador dos estados unidos em portugal falou da política energética.<br />
da política energética que se tornou “o<br />
assunto político mais importante que<br />
põe em resto o bem-estar futuro”.<br />
Segundo o embaixador: “Os Estados<br />
Unidos e a Europa precisam de agir em<br />
três áreas: reduzir a dependência dos<br />
combustíveis fósseis; aumentar a eficácia<br />
energética e conservação; e desenvolver<br />
fontes de energia renováveis e alternativas”.<br />
Lembrando a estreita cooperação<br />
entre Portugal e os Estados Unidos,<br />
Thomas Stephenson exortou cidadãos e<br />
instituições a prosseguirem na defesa do<br />
ambiente. “Todos temos de criativamente<br />
trabalhar para garantir um mundo<br />
seguro e functional para os nossos<br />
filhos”. “Mesmo que não existisse ameaça<br />
climática, tínhamos toda a urgência<br />
em pôr fim à dependência energética<br />
relativamente aos combustíveis fósseis.<br />
Mas esta ameaça existe, e a resposta tem<br />
de ser imediata”, afirmou Viriato<br />
Soromenho-Marques, que atribui à<br />
União Europeia o papel de recolocar os<br />
Estados Unidos no caminho do combate<br />
à crise ambiental e climática.<br />
O assessor do presidente da Comissão<br />
Europeia para a área do ambiente lembrou<br />
que este não é um problema novo: “Esta<br />
crise de alterações climáticas, esta crise<br />
ambiental, já exige medidas há décadas.<br />
A diferença é que agora são muito mais<br />
urgentes”, disse.<br />
Soromenho-Marques garantiu que a resposta<br />
europeia a este problema está já em<br />
marcha: “Esta é uma época de mudança<br />
e o ambiente é o nosso calcanhar de<br />
Aquiles. A dívida climática terá de ser paga<br />
cêntimo por cêntimo, e só unidos vamos<br />
conseguir fazê-lo.”<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 37<br />
VICTOR MELO/O RETRATO
“A realidade contemporânea atravessa uma<br />
crise global que tem consequências sociais<br />
como o aumento da imigração e dos refugiados”,<br />
disse Pierre Hasner, director do<br />
Centro de Estudos de Relações Internacionais<br />
de Paris, e acrescentou: “Num mundo cada<br />
vez menos centrado na Europa e nos EUA<br />
é necessário acabar com posturas de domínio<br />
e permanente doutrinação em relação<br />
aos outros países. Precisamos hoje de políticas<br />
flexíveis que possam dar resposta aos<br />
problemas que atravessamos.”<br />
Perante os desafios globais, Pierre Hasner<br />
recordou a fórmula da democracia e da<br />
38<br />
relações transatlânticas<br />
que futuro?<br />
POR sArA pinA*<br />
economia de mercado como sistemas político<br />
e económico naturais da humanidade,<br />
que, “mesmo sendo soluções imperfeitas<br />
é bom lembrar que todas as suas alternativas<br />
falharam”.<br />
Para Adriano Moreira, presidente da<br />
Academia das Ciências de Lisboa e professor<br />
emérito da Universidade Técnica de<br />
Lisboa, a resposta aos desafios globais<br />
passa pela aliança das civilizações que<br />
“exige reorganização da governança mundial<br />
e não a multiplicação de centros de<br />
poder em desafio armado”.<br />
Na sua intervenção sobre a temática<br />
“A Reforma da NATO e a Relação<br />
Transatlântica”, sustentou que é “um projecto<br />
que fácil e repetidamente demonstra<br />
um desajustamento entre o modelo observante<br />
de que se parte e o modelo observado<br />
que configura a realidade actual”.<br />
O professor de Relações Internacionais<br />
considera que o que se verifica é que<br />
“o unilateralismo da Administração<br />
republicana de Washington instalou uma<br />
divisão de pareceres e atitudes entre os<br />
membros do Conselho de Segurança,<br />
que também o são da NATO, e que igualmente<br />
pertencem à União Europeia”.<br />
mário soares (esq.) e Adriano moreira (dir.) com miguel monjardino durante a visita à Casa e ao Jardim José do Canto, propriedade de Augusto Athayde,<br />
parte do programa social do Fórum. roosevelt percorreu o parque em 1918.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
SARA PINA
Adriano Moreira vai mais longe e afirma<br />
que “talvez não seja difícil reconhecer<br />
uma mudança na avaliação das ideias<br />
paradigmáticas de Ocidente, Atlântico,<br />
identidade cultural ou aliança global das<br />
democracias”.<br />
Quanto ao futuro da NATO, Adriano<br />
Moreira, apoiando-se no balanço que Alain<br />
Joxe fez do estado do mundo em 2008,<br />
prevê que “a NATO arrisca deixar de funcionar<br />
consistentemente como aliança,<br />
para ser antes um lugar de confronto entre<br />
a grande estratégia americana e a grande<br />
diplomacia europeia”. Quanto ao futuro<br />
do Ocidente, o<br />
professor também<br />
não hesita: “Não<br />
será possível que a<br />
circunstância que<br />
rodeia os ocidentais<br />
se altere substancialmente<br />
sem<br />
que o sistema de<br />
governança, segurança<br />
e defesa<br />
tenha de reorganizar<br />
a atitude, a<br />
definição e a resposta<br />
a dar à situação actual do mundo.”<br />
“A versão europeia dominante aponta<br />
para uma definição e consolidação de<br />
fronteiras amigas”, garante, ainda, Adriano<br />
Moreira, que defende que “o globalismo<br />
exige reinvenção da governança, fronteiras<br />
amigas, e consciência de que a casa<br />
comum, a Terra, é o alvo das reais ameaças<br />
que a todos rodeiam e que exigem<br />
uma aliança das civilizações; as forças<br />
militares não são dispensáveis, mas devem<br />
ser forças tranquilas e não instrumentos<br />
de unilateralismo”.<br />
A concluir, Adriano Moreira põe a tónica<br />
no poder político. “É a decisão política<br />
que vai determinar o acentuar da deriva<br />
ou o regresso ao pensamento de Wilson<br />
e Roosevelt, aos grandes princípios proclamados<br />
quando o mundo celebrou aquela<br />
alegria coberta de lágrimas que foi a<br />
paz de 1945 e a criação da ONU.”<br />
Na sua intervenção, Mário Soares reforçou<br />
a ideia de que os Estados Unidos se<br />
terão enganado no inimigo ao atacarem<br />
o Afeganistão envolvendo a NATO, uma<br />
“ocupação sem saída” e atacando depois<br />
o Iraque (sem o aval da ONU) e procurando<br />
combater os terroristas sem<br />
nenhum respeito pelos direitos humanos,<br />
casos de Guantánamo e Abu Ghraib.<br />
“O prestígio da América no mundo foi<br />
posto em causa de forma quase irremediável”,<br />
considera Mário Soares, pois o<br />
“unilateralismo da política americana<br />
que pretendia ser o polícia e o juiz do<br />
mundo, marginalizando a ONU, classificando<br />
alguns países, de acordo com<br />
critérios morais e religiosos, como pertencendo<br />
ao ‘eixo do mal’ verificou-se<br />
não ter qualquer consistência”.<br />
“É indispensável por isso mudar de<br />
paradigma, a globalização desregulada,<br />
fruto de um capitalismo selvagem, dito<br />
de casino, só conduz à concentração da<br />
riqueza em cada vez menos mãos e a<br />
mais pobreza nos países desenvolvidos<br />
e no mundo em geral. A globalização<br />
‘ num mundo cada vez menos centrado<br />
na europa e nos euA é necessário acabar<br />
com posturas de domínio e permanente<br />
doutrinação em relação aos outros<br />
países. precisamos hoje de políticas<br />
flexíveis que possam dar resposta<br />
aos problemas que atravessamos.<br />
’<br />
tem de ser consensualmente regularizada<br />
para se poder criar uma nova ordem<br />
internacional que assegure a paz e o<br />
desenvolvimento sustentável entre os<br />
povos e as nações.”<br />
Para Mário Soares, “um afro-americano<br />
no gabinete oval da Casa Branca<br />
representa por si só uma revolução cultural<br />
nos EUA e no mundo”. Soares<br />
comparou a vitória de Obama com a<br />
vitória de Roosevelt nos anos de 1930.<br />
Foi um ponto de viragem que, agora,<br />
passados quase oitenta anos, se repete.<br />
O fundador do Partido Socialista disse<br />
também que “curiosamente a América<br />
parece estar a sair de um ciclo trágico<br />
com o final do último mandato do<br />
Presidente Bush. Com as eleições presidenciais,<br />
a consciência política, o sentido<br />
de responsabilidade, o pioneirismo<br />
e o idealismo americanos parecem ter<br />
despertado como por milagre”.<br />
“A situação na Europa muda se soprar<br />
um novo vento político na América”,<br />
considera Soares. O que significa que<br />
os laços entre a Europa e a<br />
América se tornarão<br />
mais estreitos<br />
e fecundos.<br />
Mais intensas<br />
serão<br />
também as<br />
r e l a ç õ e s<br />
Portugal-Estados Unidos. José Medeiros<br />
Ferreira, antigo ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros, referiu que “apesar de Portugal<br />
ter querido sempre manter relações bilaterais<br />
com os Estados Unidos, estes sempre preferiram<br />
os contactos multilaterais através da<br />
OCDE, da NATO […] Mas os Açores sempre<br />
desempenharam um papel fundamental<br />
como uma âncora nas relações entre os dois<br />
países”.<br />
Medeiros Ferreira perspectivou que, no<br />
futuro, os Açores “tanto poderão ser um<br />
teatro de articulação euro-atlântico como<br />
um teatro de repartição de missões científicas,<br />
tecnológicas, de segurança e<br />
defesa. Entre a repartição de missões e<br />
repartição de ilhas por zonas de influência”.<br />
Sempre num quadro em que<br />
“oceanos e espaços comunicam mais<br />
entre si nesta fase de globalização”, o<br />
arquipélago “deve continuar a ser um<br />
factor de segurança e de articulação do<br />
espaço atlântico, ajudando a garantir a<br />
liberdade de circulação aeronaval entre<br />
continentes e entidades políticas dos<br />
dois lados do oceano”.<br />
* com FAbiAnA CoeLho, João CAritA<br />
E mArthA menDes<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 39<br />
SARA PINA
“Hoje ninguém pensa que os americanos<br />
podem tudo sozinhos”, disse Judite de<br />
Sousa (RTP) ao apresentar Schlesinger que,<br />
à margem deste encontro, deu uma entrevista<br />
exclusiva à Paralelo.<br />
Qual terá sido, na sua opinião, a razão principal<br />
para a criação das Nações Unidas (ONU) e como<br />
terá Roosevelt conseguido mudar as atitudes isolacionistas<br />
dos EUA?<br />
A questão central era a II Guerra Mundial.<br />
Como, certamente, se recordará, na I Guerra<br />
Mundial morreram 30 milhões de pessoas<br />
e na II Guerra Mundial morreram 60<br />
milhões. Assim, os delegados de São<br />
Francisco tinham a consciência de que se<br />
devia fazer tudo para evitar uma III Guerra<br />
Mundial. Foi por este motivo que a ideia<br />
das Nações Unidas de Roosevelt tocou no<br />
nervo da população americana e mundial.<br />
Tem-se falado muito acerca de uma possível<br />
reforma da ONU. Pensa que o Conselho de<br />
Segurança poderá vir a concordar que há uma<br />
necessidade de mudança?<br />
Em 2005 os Estados-membros das Nações<br />
Unidas reuniram-se e concordaram que<br />
eram necessárias algumas reformas. De<br />
facto, talvez se contem mesmo entre as<br />
reformas mais profundas de toda a história<br />
da ONU: a criação de algumas agências<br />
para ajudar a resolver o problema de<br />
Estados falidos, de um Fundo para a<br />
Democracia que financia países interessados<br />
em estabelecer um sistema democrático, e<br />
da Comissão de Consolidação da Paz que<br />
também deverá fornecer ajuda económica.<br />
Há ainda a famosa cláusula, o chamado<br />
princípio da “responsabilidade de proteger”,<br />
que permite ao Conselho de Segurança<br />
40<br />
A América de volta<br />
às nações unidas<br />
Stephen Schlesinger, investigador da Century Foundation e antigo director do World Policy<br />
Institute na <strong>New</strong> School, comentador da Time e da CNN, interveio no Fórum<br />
para falar dos desafios que a ONU enfrenta.<br />
POR AnA brAsiL E rui vALLerA<br />
o comentador da Time e da Cnn afirmou à Paralelo que:<br />
“o desastre do iraque acabou por fortalecer a onu.”<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
VICTOR MELO/O RETRATO
intervir num país que esteja a cometer<br />
genocídio contra o seu próprio povo. Isto<br />
é particularmente importante porque,<br />
segundo a Carta das Nações Unidas, não é<br />
permitido à ONU interferir nos assuntos<br />
internos de qualquer país, coisa que, no<br />
entanto, esta cláusula passou a admitir.<br />
Também houve reformas que possibilitaram<br />
uma melhor definição dos princípios éticos,<br />
para que não possa voltar a acontecer<br />
um escândalo semelhante ao do programa<br />
“Petróleo por Alimentos”. Houve ainda<br />
alguns esforços concertados para lidar com<br />
o terrorismo. O problema que se põe é que<br />
a ONU não consegue estabelecer uma definição<br />
de terrorismo que seja aceite por<br />
todos os países. Por isso, a sua acção contra<br />
o terrorismo tem sido limitada. O que<br />
a ONU terá de fazer futuramente é ter um<br />
papel muito mais activo no<br />
controlo das armas de destruição<br />
maciça, químicas,<br />
biológicas e nucleares. Mas,<br />
de momento, os recursos de<br />
que dispõe neste âmbito são<br />
limitados.<br />
Certas correntes de opinião defendem<br />
que as Nações Unidas passem<br />
a ter um papel muito mais activo em situações<br />
como a do Darfur. À luz destes novos poderes, acha<br />
que é natural que tal venha a acontecer?<br />
O problema é que, no Conselho de<br />
Segurança, há cinco nações que têm direito<br />
de veto e que podem impedir qualquer<br />
intervenção. Assim, no caso do Darfur,<br />
a China continua a vetar qualquer acção<br />
directa por parte do Conselho de Segurança,<br />
‘ o que a onu terá de fazer<br />
futuramente é ter um papel muito<br />
mais activo no controlo das armas<br />
de destruição maciça, químicas,<br />
biológicas e nucleares.<br />
’<br />
“uma das possibilidades de reforma do Conselho de segurança seria através do aumento<br />
dos membros não-permanentes”, afirma schlesinger.<br />
uma vez que vai buscar o seu petróleo ao<br />
Sudão e não está interessada em perder o<br />
acesso aos combustíveis. E, se não for a<br />
China, é a Rússia que não concorda com<br />
a intromissão da ONU nos assuntos internos<br />
de outro país.<br />
Quando se fala da necessidade de reforma, geralmente<br />
referem-se as alterações no Conselho<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 41<br />
UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER
de Segurança. Pensa que isto poderá vir a<br />
acontecer?<br />
Não penso que isso possa vir a acontecer;<br />
pelo menos, não para já. Em 2005, houve<br />
um grande esforço no sentido de reformar<br />
o Conselho de Segurança. Mas, o problema<br />
é, antes de mais, o facto de os membros<br />
permanentes poderem vetar qualquer<br />
reforma que não lhes agrade. Em segundo<br />
lugar, os países que preenchem os requisitos<br />
necessários para virem a fazer parte<br />
do Conselho de Segurança como membros<br />
permanentes – como é o caso da Alemanha,<br />
do Japão, da Índia, do Brasil e da África<br />
do Sul – têm dificuldade em convencer as<br />
suas próprias regiões de que deveriam<br />
tornar-se membros do Conselho.<br />
A realidade actual é muito diferente da de 1945.<br />
Não obstante, os membros permanentes da ONU<br />
continuam a ser os mesmos. Pensa que as decisões<br />
do Conselho de Segurança ainda têm legitimidade<br />
no mundo?<br />
Em relação a essa questão, vou argumentar<br />
de uma forma que pode soar um pouco a<br />
provocação. Há um velho ditado americano<br />
que diz: “Se não está estragado, não é preciso<br />
arranjá-lo.” Com isto quero dizer que<br />
também se pode argumentar que o Conselho<br />
de Segurança está a funcionar bastante bem<br />
desta forma, mesmo não sendo representativo.<br />
Uma das formas de mudar as coisas<br />
seria através do aumento dos membros não-<br />
-permanentes. Actualmente há 15 países no<br />
4<br />
Conselho de Segurança. Se, por exemplo, se<br />
aumentassem para 21, teríamos mais seis<br />
países com mandatos de dois anos, o que<br />
pelo menos alargaria um pouco a representação<br />
de outras regiões do mundo. Na minha<br />
opinião, essa é uma solução possível e é<br />
bastante provável que venha a acontecer nos<br />
próximos dez anos.<br />
O problema do veto é suficiente para explicar a<br />
incompatibilidade que se tem observado entre os<br />
EUA e a ONU, particularmente nas últimas duas<br />
ou três décadas?<br />
Se olharmos para o passado, para o que<br />
aconteceu em 1945, em São Francisco,<br />
veremos que os Estados Unidos deixaram<br />
bastante claro que, se não lhes fosse dado<br />
direito de veto, abandonariam a conferência.<br />
Isto significa, de certa forma, que o<br />
direito de veto mantém os EUA na ONU.<br />
No entanto, é um facto que os EUA contornaram<br />
o direito de veto, desafiando<br />
frontalmente o Conselho de Segurança e<br />
agindo sozinhos aquando da invasão do<br />
Iraque. Também é verdade que, durante a<br />
crise do Kosovo em 1998, a Rússia vetou<br />
qualquer acção por parte da ONU, e os<br />
Estados Unidos provocaram uma intervenção<br />
por parte da NATO, contornando,<br />
também aqui, a decisão das Nações Unidas.<br />
Portanto, há várias formas de contornar a<br />
questão do veto, mas são consideradas<br />
controversas porque vão contra a Carta<br />
das Nações Unidas.<br />
A ONU tem capacidade para contrabalançar as<br />
acções unilaterais dos EUA?<br />
Creio que sim. Aliás, no fim foi o que<br />
acabou por acontecer no caso do Iraque.<br />
Após Bush ter dado ordens para a invasão,<br />
todos se voltaram contra ele, excepto a<br />
Grã-Bretanha. Consequentemente, a reacção<br />
de Bush foi voltar ao Conselho de<br />
Segurança para pedir a autorização para a<br />
ocupação do Iraque por parte dos EUA,<br />
autorização essa que o Conselho de<br />
Segurança acabou por lhe conceder.<br />
Para o cidadão comum, a ONU perdeu relevância<br />
após a invasão americana do Iraque?<br />
Na altura em que tudo isto aconteceu,<br />
havia bastante receio que a ONU pudesse<br />
vir a ter o mesmo destino da Sociedade<br />
das Nações, ou seja, que viesse a desaparecer.<br />
No entanto, ironicamente, penso<br />
que o desastre do Iraque acabou por vir<br />
a fortalecer a ONU, porque, desde então,<br />
Bush foi forçado a retroceder e tem-se<br />
mantido com as Nações Unidas.<br />
Na sua opinião, haverá grandes divergências<br />
entre a ONU e o novo Presidente dos Estados<br />
Unidos?<br />
Obama será um forte apoiante da ONU.<br />
Um dos seus primeiros actos políticos será<br />
o de explicar às Nações Unidas que a<br />
América está de volta como membro<br />
pleno.<br />
segundo schlesinger, “obama será um forte apoiante da onu”. Fotografia tirada em 2007, do então candidato a candidato<br />
com ban Ki-moon, secretário-geral das nações unidas.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
UN PHOTO By EVAN SCHNEIDER
participação luso-americana<br />
“Investir na educação é uma forma de unir laços”,<br />
donzelina Barroso, consultora da JB Fernandes Memorial Trust na <strong>Fundação</strong> Rockefeller,<br />
defende o investimento na educação para unir os portugueses dos dois lados do Atlântico.<br />
Donzelina Barroso sugere que se faça uso<br />
das remessas dos emigrantes portugueses<br />
nos EUA e que se atraiam investidores para<br />
a filantropia: “É preciso mostrar que há<br />
onde investir. E que vale a pena fazê-lo na<br />
educação.”<br />
Para Elmano Costa, professor da<br />
California State University, a união e integração<br />
passa por aproximar os portugueses<br />
emigrados nos Estados Unidos da<br />
política norte-americana. “A comunidade<br />
portuguesa nos Estados Unidos vive numa<br />
situação económica desfavorável, tem<br />
baixa escolaridade e há muitos que ainda<br />
não têm nacionalidade americana. Têm<br />
pouco poder político...”, mas esta tendência<br />
está a alterar-se.<br />
João Luís Medeiros referiu-se à comunidade<br />
portuguesa emigrante nos Estados<br />
Unidos como “caixeiros-viajantes da saudade”.<br />
Na perspectiva do antigo deputado<br />
à Assembleia Regional dos Açores e<br />
Assembleia da República, o percurso de<br />
vida das gerações que, durante todo o<br />
século XX, trocaram a Europa pela América,<br />
deve ser recordado. E a língua portuguesa,<br />
diz o orador, é um forte traço dessa<br />
memória. “É muito importante que se<br />
continue a falar e a ensinar português na<br />
América do Norte», disse.<br />
imAGens mútuAs<br />
John Glenn, director de Política Externa<br />
do German Marshal Fund apresentou o<br />
“Transatlantic Trends” – um projecto promovido<br />
pelo German Marshall Fund of the United<br />
States e pela Compagnia di San Paolo, com o<br />
apoio FLAD, da Fundación BBVA e da Tipping<br />
Point Foundation, que procura avaliar as atitudes<br />
americanas e europeias sobre a relação<br />
transatlântica e os desafios globais.<br />
Para John Glenn, este inquérito anual<br />
permite concluir que “uma atitude anti-<br />
-Bush, na Europa, não se traduziu em antia-<br />
POR ALexAnDre soAres E JoAnA FernAnDes<br />
mericanismo”. Em relação a Portugal,<br />
apesar da presença americana na Base das<br />
Lajes, há moderação no desejo de cooperação<br />
com os EUA. As ambições portuguesas<br />
passam, por exemplo, pelo desejo do<br />
país assumir um papel mais interventivo<br />
na cena internacional (80 por cento); bem<br />
como nas organizações internacionais em<br />
que participa, como a NATO (81 por cento<br />
defendem uma acção mais visível).<br />
Antiga directora-geral da Comissão<br />
Europeia e Visiting Scholar de Harvard,<br />
Renée Haferkamp discordou das conclusões<br />
do inquérito: “A Europa é, neste<br />
momento, claramente ‘antiamericana’”,<br />
defendeu.<br />
Segundo Teresa de Sousa, do jornal<br />
Público, a crescente distanciação entre a<br />
Europa e os EUA justifica-se porque “os<br />
momentos edificantes da relação transatlântica,<br />
como a II Grande Guerra, o <strong>New</strong><br />
Deal, ou a queda do muro de Berlim são<br />
momentos de cooperação histórica que<br />
se tornam cada vez mais distantes no<br />
tempo”. A jornalista acredita que “os europeus<br />
vivem há cinquenta anos num clima<br />
de prosperidade e paz que os faz desvalorizar<br />
a ideia de que os americanos foram<br />
os seus grandes protectores”.<br />
Duarte Freitas, deputado ao Parlamento<br />
Europeu, argumentou na mesma linha de<br />
Teresa de Sousa, mas disse que “Bush foi<br />
uma boa desculpa para razões muito mais<br />
profundas que justificam o antiamericanismo<br />
actual”. As gerações mais novas,<br />
sublinhou, não têm na memória os<br />
momentos centrais da relação entre as<br />
duas potências.<br />
Donzelina barroso defendeu a captação de investimentos na educação.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 43<br />
VICTOR MELO/O RETRATO
new Deal: a política social sem medo<br />
A expressão “<strong>New</strong> deal” tornou-se um rótulo<br />
dos tipos de mudanças que FdR traria à economia<br />
americana mergulhada na depressão.<br />
O debate sobre a função e o lugar do Governo na vida americana e na<br />
economia, que teve início na década de 1930, prossegue nos nossos dias<br />
e também na mesa-redonda que juntou Teodora Cardoso, presidente do<br />
Conselho Directivo da FLAD e administradora do Banco de Portugal;<br />
Álvaro Dâmaso, presidente da Agência de Promoção do Investimento nos<br />
Açores; Eduardo Paz Ferreira, professor da Faculdade de Direito da<br />
Universidade de Lisboa; e Manuel Porto, professor da Faculdade de Direito<br />
de Universidade de Coimbra.<br />
Álvaro Dâmaso caracterizou o <strong>New</strong> Deal como um fármaco, serviu<br />
para melhorar a vida dos americanos e recuperar a confiança, “um<br />
novo Estado, regulador, onde existe a mão visível da regulação”.<br />
Roosevelt conseguiu ultrapassar a enorme crise em que se encontravam<br />
os Estados Unidos, desafios que agora também Obama encontra, comentou<br />
Paz Ferreira.<br />
Teodora Cardoso comparou os diferentes modelos socioeconómicos.<br />
Apontou o dedo ao modelo mediterrânico, aplicado em Portugal, porque<br />
“devido ao aumento das despesas de protecção social, os serviços<br />
públicos gerais são descuidados para diminuir essas despesas […]<br />
Portugal precisa de repensar o seu modelo […] para gerar produtividade<br />
e emprego”.<br />
44<br />
POR susAnA pAuLA<br />
mais meios<br />
para a defesa europeia<br />
“Defesa e Segurança nas Relações<br />
Transatlânticas” foi o tema da mesa-redonda<br />
presidida por Manuela Franco, diplomata<br />
e antiga secretária de Estado dos<br />
Negócios Estrangeiros e da Cooperação,<br />
com a participação de José Cutileiro,<br />
embaixador e antigo secretário-geral da<br />
UEO, Ricardo Rodrigues, deputado à<br />
Assembleia da República, Paulo Casaca,<br />
deputado ao Parlamento Europeu, Rui<br />
Paulo Figueiredo, adjunto do gabinete do<br />
primeiro-ministro e presidente do Instituto<br />
Transatlântico Democrático, e Miguel<br />
POR mArGAriDA pimentA<br />
Monjardino, professor da Universidade<br />
Católica Portuguesa.<br />
José Cutileiro centrou a sua intervenção<br />
nas relações entre a Europa e os EUA, frisando<br />
que a maioria dos países da União<br />
Europeia está na NATO e que as relações<br />
económicas entre a Europa e os EUA são<br />
as mais fortes entre quaisquer dois grupos<br />
do mundo. Criticou ainda os baixos orçamentos<br />
de defesa dos Estados europeus.<br />
Ricardo Rodrigues destacou nesta sua primeira<br />
intervenção a importância estratégica<br />
do arquipélago e da sua Zona<br />
Cartoon do <strong>New</strong> York Herald (4 de março de 1933).<br />
Económica Exclusiva: “Os açorianos são<br />
filhos da geografia.” Salientou, ainda,<br />
a importância do acordo entre Portugal<br />
e os EUA que fixa a Base das Lajes.<br />
O alerta para más interpretações do federalismo<br />
europeu foi dado por Paulo Casaca<br />
– o federalismo de Schuman surge por<br />
influência americana e não pretende a<br />
criação de um Estado unido com o objectivo<br />
de concorrer com os EUA.<br />
Rui Paulo Figueiredo salientou alguns<br />
aspectos que têm prejudicado a imagem<br />
americana aos olhos dos europeus, como<br />
o unilateralismo e o descuidar dos valores<br />
ocidentais, cujo exemplo mais gritante é<br />
Guantánamo.<br />
Miguel Monjardino abalou a discussão<br />
dizendo que a Europa precisa de mais<br />
meios para a defesa. A Europa tem estado<br />
dependente dos EUA e “Yes, we can”<br />
é um discurso que engloba também os<br />
europeus.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
MARGARIDA PIMENTA
VICTOR MELO O<br />
pontes sobre o oceano<br />
papel desempenhado por Portugal no diálogo transatlântico<br />
foi o objectivo traçado por uma das mesas-redondas<br />
do I Fórum Açoriano Franklin Roosevelt.<br />
Como moderadora da mesa, a cônsul-geral<br />
de Portugal em Boston, Manuela Bairos, reconheceu<br />
que Portugal é hoje “um trunfo para<br />
a Europa, no que diz respeito às relações<br />
transatlânticas”, sobretudo por causa dos<br />
“laços hoje existentes entre Portugal e os<br />
Estados Unidos”. Laços, referiu a cônsul, que<br />
nos últimos tempos têm permitido o desenvolvimento<br />
de projectos de parceria estratégica<br />
em diversas áreas (como a ciência e a<br />
tecnologia) entre os dois países. Como exemplo,<br />
Manuela Bairos apontou o projecto de<br />
construção de um centro de observação das<br />
alterações climáticas na ilha Graciosa, resultante<br />
de um protocolo assinado com a<br />
Universidade de Massachusetts.<br />
Ian Lesser, do German Marshall Fund,<br />
preferiu referir-se sobretudo à União<br />
Europeia e à forma como, do outro lado<br />
do Atlântico, os Estados Unidos encaram o<br />
POR mArCo Leitão siLvA<br />
posicionamento dos 27 Estados-membros:<br />
“Estamos hoje a assistir a um renascimento<br />
do diálogo em questões como a energia<br />
ou a segurança”, disse.<br />
O deputado do PSD à Assembleia<br />
Legislativa dos Açores, José Manuel Bolieiro,<br />
destacou a importância dos Açores, encarados<br />
por Washington como um parceiro<br />
estratégico do ponto de vista militar – razão<br />
que explica as novas parcerias militares.<br />
Deixou um desafio ao Governo português:<br />
“Porque não redigir um novo Tratado de<br />
Cooperação Militar, que seja aprovado tanto<br />
pelo Congresso dos Estados Unidos, como<br />
pela Assembleia da República?”.<br />
André Bradford destacou a importância<br />
actual dos Açores enquanto vantagem negocial<br />
do ponto de vista diplomático: “Hoje,<br />
o arquipélago assume-se até como mediador<br />
entre os dois lados do Atlântico.”<br />
André bradford defendeu a posição do arquipélago como mediador entre os dois lados do Atlântico.<br />
roosevelt<br />
e os Açores em livro<br />
Com a primeira<br />
edição do Fórum<br />
Açoriano Franklin<br />
D. Roosevelt<br />
sobre Relações<br />
Transatlânticas foi<br />
lançado o livro<br />
Franklin Roosevelt e os<br />
Açores nas duas<br />
Guerras Mundiais,<br />
uma iniciativa<br />
conjunta do<br />
Governo Regional<br />
dos Açores e da<br />
FLAD. Rui de Vallera, da <strong>Fundação</strong>, apresentou<br />
o livro que homenageia o importante<br />
papel do Presidente Roosevelt na política<br />
internacional do século passado, bem como<br />
a atenção que prestou as questões geopolíticas<br />
suscitadas pela posição geográfica do<br />
arquipélago dos Açores.<br />
Coordenado pelo professor Luís Nuno<br />
Rodrigues, este trabalho editado pela<br />
FLAD, com o apoio do IPRI, reflecte a história<br />
da relação pessoal que se estabeleceu<br />
entre Franklin Roosevelt e o arquipélago<br />
dos Açores.<br />
Novas interpretações sobre a evolução<br />
das relações luso-americanas durante o<br />
século XX, assim como novas perspectivas<br />
sobre a história açoriana são apresentadas<br />
nesta edição bilingue (em português e<br />
inglês), composta por 10 capítulos escritos<br />
por 10 autores, quatro americanos e<br />
seis portugueses.<br />
À biografia de Franklin Roosevelt, por<br />
Cynthia Koch, directora da Biblioteca<br />
Presidencial e do Museu Franklin D.<br />
Roosevelt, em Nova Iorque, seguem-se três<br />
capítulos por Carlos Enes, José Medeiros<br />
Ferreira, e Álvaro Monjardino, que abordam<br />
o tema da I Guerra Mundial, aprofundando<br />
realidades distintas da história<br />
açoriana durante esse período e obviamente<br />
da passagem do Presidente norte-americano<br />
pela Horta e Ponta Delgada.<br />
Os cinco capítulos seguintes, da autoria<br />
de Adam Seipp, Luís Andrade, Luís Nuno<br />
Rodrigues, Warren Kimball e Philip Mundy,<br />
tratam o período da II Guerra Mundial.<br />
Para finalizar, António José Telo dá-nos um<br />
panorama geral sobre a existência e a razão<br />
de ser de bases estrangeiras em Portugal<br />
durante as duas guerras mundiais do<br />
século XX e o período da Guerra Fria.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 45
RUI OCHôA<br />
46<br />
portuGAL/euA<br />
Apresentação do livro Carlucci vs. Kissinger: Os EUA e a Revolução Portuguesa<br />
um olhar sobre a revolução de Abril<br />
a partir de Washington<br />
Com o desafio em mente, e sem a pretensão de sistematizar uma vez mais<br />
o processo de transição iniciado pelo 25 de Abril de 1974,<br />
Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá partiram para o terreno e investigaram.<br />
À distância de mais de trinta anos, é hoje<br />
conhecido o profundo interesse que a alvorada<br />
democrática portuguesa teve em<br />
Washington. Entre dúvidas e receios, os<br />
Estados Unidos acompanharam de perto<br />
os primeiros passos da “ebulição democrática”<br />
portuguesa. Para a História, ficou o<br />
famoso conflito entre o antigo embaixador<br />
dos Estados Unidos em Portugal, Frank<br />
Carlucci, e o secretário de Estado norte-<br />
-americano, Henry Kissinger, com olhares<br />
díspares sobre o futuro (ainda) incerto do<br />
sistema político português.<br />
Conhecer as preocupações e diferendos<br />
suscitados na Casa Branca pela afirmação<br />
das forças revolucionárias de esquerda<br />
(durante o célebre Verão Quente de 1975),<br />
POR mArCo Leitão siLvA<br />
abre por isso mesmo caminho a uma nova<br />
perspectiva, vinda de fora, acerca da alvorada<br />
democrática em Portugal. Com o desafio<br />
em mente, e sem a pretensão de<br />
sistematizar uma vez mais o processo de<br />
transição iniciado pelo 25 de Abril de<br />
1974, Bernardino Gomes e Tiago Moreira<br />
de Sá partiram para o terreno e investigaram.<br />
Com base em material de arquivo<br />
nacional e norte-americano, os dois autores<br />
reconstituíram os traços essenciais do<br />
diferendo entre o embaixador Frank<br />
Carlucci e o secretário de Estado Henry<br />
Kissinger: Carlucci, mais optimista em relação<br />
ao futuro da democracia portuguesa,<br />
e Kissinger, céptico face a um processo<br />
conduzido pela esquerda revolucionária,<br />
Carlos Gaspar (ipri), rui machete (FLAD) e o ministro dos negócios estrangeiros Luís Amado.<br />
que poderia colocar Portugal sob influência<br />
soviética, num mundo então bipolar,<br />
marcado pela Guerra Fria.<br />
Assim nasce a obra Carlucci vs. Kissinger: Os<br />
eUA e a Revolução Portuguesa, editada pela Dom<br />
Quixote. Reconhecendo o valor da obra,<br />
a FLAD propôs-se promovê-la numa sessão<br />
de apresentação pública.<br />
Rui Machete, presidente da FLAD, marcou<br />
presença na sessão e deixou elogios àquilo<br />
que considerou ser um “excelente trabalho<br />
de investigação”, dada a luz que lança sobre<br />
aspectos até agora desconhecidos, tomando<br />
como exemplo os juízos de valor tecidos<br />
pela Administração norte-americana acerca<br />
da condução do processo revolucionário.<br />
Sobre o diferendo entre Carlucci e Kissinger,<br />
Rui Machete não tem dúvidas: é o embaixador<br />
quem “acaba por ganhar a aposta”<br />
sobre o futuro da democracia portuguesa.<br />
Afinal, “Mário Soares não foi o Kerenski<br />
da revolução, como Kissinger profetizava”.<br />
Um comentário que fez sorrir o antigo<br />
Presidente, também presente na sessão de<br />
apresentação da obra.<br />
Mas onde uns viram conflito, outros<br />
inferiram meras divergências. Jaime<br />
Gama, presidente da Assembleia da<br />
República, acredita que não terá havido<br />
propriamente um conflito entre Carlucci<br />
e Kissinger, mas apenas uma divergência<br />
de posições. Convidado especial para a<br />
apresentação da obra, Jaime Gama confessou-se<br />
espantado com o tipo de materiais<br />
a que os dois investigadores tiveram<br />
acesso. Com a ajuda do arquivo norteamericano,<br />
Tiago Moreira de Sá e<br />
Bernardino Gomes consultaram registos<br />
de conversas telefónicas, transcrições de<br />
conversas de gabinete e outros documentos<br />
que fazem parte do segredo de Estado<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
RUI OCHôA<br />
– elementos documentais que traduzem<br />
o íntimo funcionamento do sistema político<br />
norte-americano. “Os únicos segredos<br />
acabam por estar na cabeça daqueles<br />
que dirigem”, ironizou Jaime Gama.<br />
Ao expor os meandros do acompanhamento<br />
norte-americano do processo revolucionário,<br />
com base em documentos até<br />
hoje desconhecidos, Tiago Moreira de Sá<br />
diz ter compreendido agora a “complexidade<br />
da tarefa dos protagonistas” da transição<br />
democrática. E já de olhos postos<br />
em 2009, o investigador do Instituto<br />
Português de Relações Internacionais<br />
(IPRI) deixou um apelo: “Os 35 anos da<br />
revolução [de 25 de Abril de 1974] vão<br />
ser uma boa oportunidade para tornar a<br />
História da democracia portuguesa um<br />
pouco mais conhecida.” Ao colega investigador,<br />
Bernardino Gomes deixou também<br />
elogios sentidos.<br />
portuGAL/euA<br />
os autores do livro, bernardino Gomes (à esq.) e tiago moreira de sá entre o casal soares.<br />
‘ tem sido uma<br />
experiência inspiradora<br />
ver um país a emergir<br />
de 50 anos de ditadura,<br />
estar ao pé de uma nova<br />
fase de totalitarismo e<br />
recuperar por vontade do<br />
povo […] é um caso único<br />
na história do mundo.<br />
’<br />
Sobre as divergências entre Carlucci e<br />
Kissinger que serviram de mote ao livro,<br />
Bernardino Gomes deixou uma citação do<br />
embaixador, proferida no Congresso<br />
durante o período de transição democrática<br />
– um exemplo do optimismo que<br />
Carlucci quis transmitir à Administração<br />
norte-americana, face ao futuro político<br />
português: “Tem sido uma experiência<br />
inspiradora ver um país a emergir de 50<br />
anos de ditadura, estar ao pé de uma nova<br />
fase de totalitarismo [período do PREC]<br />
e recuperar por vontade do povo […]<br />
É um caso único na História do mundo.”<br />
Acompanhando de perto a definição do<br />
sistema político, Washington acabaria por<br />
influenciar também o rumo de Portugal.<br />
Afinal, diz Carlos Gaspar, director do IPRI,<br />
“se a política norte-americana [em relação<br />
a Portugal] tivesse sido diferente, o desfecho<br />
democrático da revolução poderia<br />
não ter existido”.<br />
Para a apresentação do livro foi convidado<br />
o ex-embaixador dos Estados Unidos<br />
em Portugal, Frank Carlucci, que não pôde<br />
contudo estar presente, tendo ainda assim<br />
enviado aos autores uma mensagem, cujo<br />
conteúdo Rui Machete revelou: “O livro<br />
é um relato apaixonante e factual. Foi<br />
muito interessante para mim ler telegramas<br />
que fiz… E ainda mais interessante<br />
ler as observações depreciativas que o<br />
Henry [Kissinger] fez sobre mim.” Um<br />
conflito que ficou para a História de<br />
Portugal e dos Estados Unidos. Um olhar<br />
sobre a alvorada da democracia portuguesa,<br />
a partir do outro lado do Atlântico,<br />
agora registado em livro por Bernardino<br />
Gomes e Tiago Moreira de Sá.<br />
Entrevista a Tiago<br />
Moreira de Sá<br />
paralelo [p] o que foi que mais o surpreendeu<br />
na investigação que fez para esta<br />
obra?<br />
tiago moreira de sá [tms] A ligação intensa<br />
e constante dos Estados Unidos aos<br />
militares moderados, e em particular a<br />
Melo Antunes e ao seu grupo, foi uma<br />
dessas revelações: os Estados Unidos chegaram<br />
até a prometer apoio militar aos<br />
militares moderados, caso tal fosse necessário,<br />
por altura do 5 de Novembro! Para<br />
além disso, surpreendeu-me o facto de a<br />
perspectiva de Kissinger ter sido muito<br />
mais do que uma simples teoria: foi de<br />
facto uma política que, em determinado<br />
momento, idealizou para Portugal. Um<br />
outro aspecto tem que ver com o papel-<br />
-chave desempenhado por Donald Rumsfeld<br />
(na altura chief of staff do Presidente<br />
Ford), que permitiu o acesso e o apoio<br />
directos da Casa Branca a Carlucci.<br />
[p] Do “mano a mano” entre Carlucci e<br />
Kissinger, quem saiu vencedor?<br />
[tms] Tendo em conta o resultado final<br />
para a democracia em Portugal, diria que<br />
Carlucci foi vencedor, no sentido em que<br />
a estratégia por ele defendida para o<br />
nosso país acabou por se concretizar, ou<br />
seja, a vitória da via democrática em<br />
Portugal.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 47
48<br />
portuGAL/euA<br />
A “caixa de ferramentas”<br />
do diplomata<br />
A Comunidade das democracias lançou nos estados Unidos um manual destinado<br />
a diplomatas com o objectivo de os ajudar na promoção da democracia,<br />
enquanto no desempenho das suas funções junto de nações cujas forças vivas<br />
aspirem a viver num regime pluripartidário.<br />
A Comunidade das Democracias, uma<br />
organização internacional que congrega<br />
125 países de vários continentes, lançou<br />
nos Estados Unidos um manual destinado<br />
a diplomatas com o objectivo de os ajudar<br />
na promoção da democracia, enquanto no<br />
desempenho das suas funções junto de<br />
nações cujas forças vivas aspirem a viver<br />
num regime pluripartidário. O evento teve<br />
lugar na Embaixada de Portugal, país<br />
que preside actualmente à Comunidade<br />
POR FiLipe vieirA*<br />
e que será igualmente o Estado anfitrião<br />
de uma cimeira ministerial marcada para<br />
o Verão de 2009, em Lisboa.<br />
Com um prefácio de Vaclav Havel, o<br />
arquitecto da “Revolução de Veludo” na<br />
República Checa, o manual é considerado<br />
a “caixa de ferramentas” dos diplomatas<br />
e baseia-se em múltiplas experiências vividas<br />
em experiências bem-sucedidas de<br />
transições para a democracia na Ucrânia,<br />
no Chile, na África do Sul, na Serra Leoa<br />
e na Tanzânia.<br />
Como sublinhou João de<br />
Vallera, o embaixador de<br />
Portugal, durante a sessão<br />
de lançamento, “o manual<br />
reconhece que a democracia<br />
não pode ser exportada ou<br />
importada, mas que tem<br />
que ser desenvolvida pelos<br />
cidadãos dos países em<br />
causa”. Vallera sublinhou, a<br />
propósito, que “tanto a<br />
sociedade civil como os<br />
governos podem beneficiar<br />
da utilização do manual,<br />
obtendo um melhor conhecimento<br />
do que podem<br />
esperar dos diplomatas, que<br />
na diplomacia pública dos<br />
dias de hoje representam<br />
também eles as suas próprias<br />
sociedades civis”. Este<br />
conceito foi reafirmado<br />
durante a intervenção de<br />
Paula Dobriansky, a subsecretária<br />
de Estado americana<br />
para a Democracia e<br />
Questões Globais, uma das<br />
mais influentes personalida-<br />
‘ os diplomatas<br />
“são emissários não<br />
apenas dos chefes<br />
de estado, mas também<br />
dos povos das suas<br />
democracias”.<br />
’<br />
des do gabinete de Condollezza Rice.<br />
A premissa perfilhada pela Comunidade<br />
das Democracias e expressa por Bronislaw<br />
Mistzal, director do Secretariado<br />
Permanente da organização, é a de que<br />
“nos nossos dias, a diplomacia em democracia<br />
deve reflectir os valores fundamentais”<br />
e a de que os diplomatas “são<br />
emissários não apenas dos chefes de<br />
Estado, mas também dos povos das suas<br />
democracias”.<br />
O objectivo último deste Manual do<br />
diplomata para o Apoio ao desenvolvimento da<br />
democracia é o de treinar o corpo diplomático<br />
dos países membros. A ideia inicial<br />
foi lançada pelo embaixador americano<br />
Mark Palmer, com base na sua experiência<br />
na Hungria durante a transição daquele<br />
país do comunismo para a democracia.<br />
O projecto acabou por ser concretizado<br />
por uma equipa liderada pelo diplomata<br />
canadiano Jeremy Kinsman em parceria<br />
com a Escola Woodrow Wilson de Serviços<br />
Públicos e Internacionais, da Universidade<br />
de Princeton. Kinsman pretende a colaboração<br />
futura do Colégio da Europa, em<br />
Bruges, tendo em vista a realização de dois<br />
workshops regionais.<br />
* Jornalista em Washington dC<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA<br />
No dia 27 de Setembro de 1957, a ilha açoriana do Faial acordava em sobressalto.<br />
era a erupção de um vulcão, no mar, perto dos Capelinhos. durante um ano, erupções<br />
vulcânicas e tremores de terra ameaçaram a região. As cinzas cobriram plantações e os<br />
terramotos destruíram aldeias, deixando mais de um milhar de pessoas sem tecto.<br />
Ninguém morreu, o que muitos consideraram um milagre.<br />
e uma nova vida nasceria...<br />
A tragédia dos Capelinhos, relembrada em<br />
várias cerimónias e comemorações o ano<br />
passado, foi um marco na história dos Açores.<br />
É este acontecimento que abre as portas para<br />
uma nova vaga de emigração para os Estados<br />
Unidos, numa escala sem precedentes.<br />
Há cinquenta anos, o impacto de um<br />
acontecimento geológico que arrasou<br />
casas e destruiu os meios de subsistência<br />
agrícolas, foi devastador. Uma pequena<br />
os Capelinhos<br />
e a emigração açoriana<br />
POR CLArA pinto CALDeirA<br />
ilha portuguesa, rural e pobre, tornou-se<br />
alvo de muitas atenções. Mota Amaral,<br />
presidente do Governo Regional dos<br />
Açores entre 1976 e 1995, embora muito<br />
novo na época, lembra que “durante<br />
semanas e meses, os Açores foram notícia,<br />
com direito a reportagens na imprensa<br />
internacional. Muitos cientistas do ramo<br />
visitaram o vulcão, que se tornou uma<br />
espécie de laboratório natural”. Gerou-se<br />
Aprovado o Azorean refugee Act, muitos tentaram embarcar no primeiro avião para os estados unidos<br />
(foto de Alfredina silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />
também uma enorme onda de solidariedade<br />
em todos os açorianos e nas comunidades<br />
emigrantes. São precisamente as<br />
comunidades residentes nos Estados<br />
Unidos que levam a cabo um movimento<br />
de sensibilização que chegará ao<br />
Senado, envolvendo o futuro Presidente<br />
John F. Kennedy, num tempo em que um<br />
acordo formal sobre a permanência americana<br />
nas Lajes estava a ser negociado.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 49
históriA De umA Lei<br />
As condições de vida difíceis tornaram as<br />
gentes açorianas emigrantes desde o século<br />
XIX. Os Estados Unidos eram um dos<br />
destinos preferenciais, tal como o Canadá<br />
e o Brasil. Mas se a seguir à ratificação da<br />
Constituição americana a abertura à emigração<br />
era considerável, num país ainda<br />
em construção, o século XX inaugura as<br />
restrições mais severas à chegada de estrangeiros,<br />
sobretudo depois da I Guerra<br />
Mundial. Nativos estabelecidos receavam<br />
a chegada de ideais diferentes, como o<br />
comunismo e o socialismo, e os sindicatos<br />
da indústria viam na mão-de-obra barata<br />
uma ameaça às suas reivindicações laborais.<br />
Deste contexto resulta, nos anos de 1920,<br />
a aprovação do sistema de cotas, que limita<br />
a imigração a 150 mil europeus por<br />
ano. A cota era estabelecida por nacionalidade:<br />
cada país tinha direito à entrada de<br />
dois por cento do número total de cidadãos<br />
seus já residentes nos Estados Unidos.<br />
Quando o vulcão dos Capelinhos assola o<br />
Faial, apenas 400 portugueses tinham acesso<br />
garantido ao sonho americano.<br />
Mais próxima do pesadelo, a época é<br />
particularmente dura nos Açores. Mota<br />
Amaral afirma: “As décadas de 50 e 60<br />
foram de grandes dificuldades económi-<br />
50<br />
portuGAL/euA<br />
cas nos Açores, com falta de emprego e<br />
salários muito baixos.” Em pleno Estado<br />
Novo, as ilhas continuam a carecer de<br />
desenvolvimento e o isolamento<br />
é muito sentido.<br />
Entre os anos de 1920 e<br />
1950, a população do<br />
arquipélago aumentou em<br />
cerca de 100 mil, fixando-<br />
-se nas 328 mil pessoas, o<br />
que agravava as condições<br />
de sobrevivência.<br />
Os acontecimentos nos<br />
Capelinhos extremam uma<br />
situação já muito complicada.<br />
A resposta da comunidade<br />
açoriana nos Estados<br />
Unidos é imediata. Atentos à evolução do<br />
ano negro, através da imprensa luso-americana<br />
e por correspondência com familiares,<br />
iniciam um processo de sensibilização<br />
política, reunidos em torno de Joseph Perry<br />
Jr., representante do Estado eleito por<br />
Rhode Island, do Partido Democrata,<br />
americano descendente de faialenses.<br />
Congressistas e senadores de estados com<br />
população portuguesa foram inundados por<br />
cartas e telegramas, e nem o Presidente<br />
Eisenhower pôde ficar indiferente. É então<br />
que John Pastore, amigo pessoal de Joseph<br />
Perry Jr., leva ao Senado uma proposta que<br />
autorizava vistos à população afectada pela<br />
tragédia dos Capelinhos.<br />
‘ nativos estabelecidos receavam<br />
a chegada de ideais diferentes,<br />
como o comunismo e o socialismo,<br />
e os sindicatos da indústria viam<br />
na mão-de-obra barata uma ameaça<br />
às suas reivindicações laborais.<br />
’<br />
Neste processo, emerge um apoiante<br />
determinante: John F. Kennedy, senador de<br />
Massachusetts, futuro Presidente dos<br />
Estados Unidos. Conhecido pelas suas posições<br />
anticotas, viria mesmo a publicar nesse<br />
ano um pequeno ensaio sob o título<br />
A Nation of Immigrants, em que defendia a<br />
abolição daquele sistema, argumentando<br />
que “não respondia às necessidades nacionais<br />
nem garantia os objectivos internacionais<br />
numa era de interdependência<br />
entre nações”. No Senado, defende a tradição<br />
hospitaleira do país, e acrescenta:<br />
o vulcão em actividade há cinquenta anos (foto de manuel Cristiano da silva, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA<br />
Kennedy recebendo uma placa de agradecimento como símbolo de gratidão dos faialenses<br />
(foto de António rosa Furtado, no livro Capelinhos: A Volcano of Synergies).<br />
“Este é um caso trágico que merece atenção<br />
em todos os sentidos, particularmente<br />
porque as pessoas dos Açores provaram<br />
já ser excelentes cidadãos.” O senador<br />
Hagen, também apoiante da medida, fala<br />
assim dos açorianos: “Quase sem excepção,<br />
são pessoas de grande carácter e<br />
capacidade de realização. Subscrevem os<br />
princípios do nosso governo e instituições<br />
económicas. São diligentes. Gostam<br />
de aprender.” Vários senadores, entre os<br />
quais Kennedy, sublinham ainda a existência<br />
de boas relações entre Portugal e<br />
os Estados Unidos.<br />
As relações entre os dois países são marcadas,<br />
desde sempre, pelas questões atlânticas.<br />
Durante a I Guerra Mundial, os<br />
americanos estabeleceram uma base naval<br />
em Ponta Delgada, apenas para fins militares.<br />
A partir da II Guerra Mundial instalam-se<br />
nas Lajes de forma informal. O<br />
primeiro acordo começa a desenhar-se<br />
ainda bilateralmente, antes do tratado da<br />
Aliança do Norte, em 1949. Depois, em<br />
1951, e já nas duas plataformas negociais,<br />
os americanos estabelecem um acordo<br />
provisório com Portugal, que se vai estendendo<br />
ao longo de seis anos. Em 1957,<br />
quando a Natureza mostra a sua fúria, os<br />
políticos ainda tentavam entender-se, em<br />
condições difíceis de harmonizar. Medeiros<br />
Ferreira, açoriano, professor universitário<br />
na área da História das Relações Inter-<br />
nacionais e ex-ministro dos Negócios<br />
Estrangeiros, situa o processo legislativo<br />
americano sobre a imigração neste âmbito:<br />
“A erupção dos Capelinhos vai dar a<br />
oportunidade, que considero sincera, mas<br />
que se pode englobar nesse contexto, de<br />
os EUA mostrarem que estão atentos e<br />
solidários com a dimensão civil e humana<br />
das relações luso-americanas.”<br />
The Azorean Refugee Act, aprovado a 2<br />
de Setembro de 1958, concedeu vistos a<br />
1500 famílias. Dois anos depois, uma actua<br />
-lização da medida concedeu mais 500<br />
vistos. “Se tivéssemos ficado, a pobreza<br />
perseguia-nos para o resto da vida. Foi uma<br />
coisa má que se tornou boa.” As palavras<br />
são de Leonilda Andrade, da Praia do Norte,<br />
uma das seis mil pessoas que se estima<br />
terem saído do Faial entre 1958 e 1960.<br />
E não só faialenses emigraram. Todas as<br />
ilhas beneficiaram da abertura à imigração,<br />
com o apoio do governador da Horta<br />
Freitas Pimentel, mas com alguma resistência<br />
de Salazar, que tentou, com pouco<br />
sucesso, cooptar pessoas para as colónias.<br />
A lei de 1958 é considerada o primeiro<br />
passo rumo à grande reforma de 1965,<br />
que aboliu as cotas de emigração, já sob<br />
a égide do Presidente John F. Kennedy,<br />
com reflexos profundos nos Açores.<br />
A emiGrAção AçoriAnA:<br />
um retrAto em evoLução<br />
Desde os Capelinhos, até à década de 1980,<br />
a emigração açoriana para os Estados<br />
Unidos não parou de crescer. Nesta época,<br />
a população no arquipélago diminuiu um<br />
terço. Só no final da década de 1970 se<br />
verifica um abrandamento da chegada de<br />
açorianos aos Estados Unidos.<br />
Mota Amaral aponta alguns factores<br />
explicativos: “A arrancada do desenvolvimento<br />
nos Açores, com a implantação do<br />
regime autonómico democrático, modificou<br />
as expectativas.” A importância dos<br />
fundos europeus para o desenvolvimento<br />
da região e a evolução da própria sociedade<br />
americana também contribuíram<br />
para o país deixar de ser visto como a<br />
terra da abundância.<br />
Embora a emigração tenha abrandado, a<br />
população portuguesa nos Estados Unidos<br />
não parou de crescer, engrossada pelas<br />
segunda e terceira gerações. Neste momento,<br />
cerca de um milhão de pessoas de origem<br />
portuguesa vive nos Estados Unidos,<br />
e cerca de metade provém dos Açores.<br />
Os níveis de educação dos portugueses<br />
emigrados têm vindo a melhorar, embora<br />
seja no ensino universitário que o caminho<br />
ainda está por percorrer. Medeiros<br />
Ferreira salienta o seguinte: “Há duas ou<br />
três universidades na Costa Leste que têm<br />
departamentos de estudos portugueses e<br />
que têm bastante visibilidade desse ponto<br />
de vista. Começa a haver uma maior integração<br />
universitária.”<br />
A nível económico, as pessoas de origem<br />
portuguesa têm rendimentos familiares<br />
10 por cento superiores aos da<br />
população em geral e a percentagem de<br />
pobreza é menor.<br />
TESTEMUNHOS<br />
Carmen monteiro<br />
A erupção dos Capelinhos acabou com a<br />
vida tal como a conhecíamos no Capelo.<br />
Fomos enviados para a Horta, para viver<br />
em asilos, depois para uma aldeia vizinha<br />
[…] A minha mãe, Olívia, escreveu para a<br />
prima na América, que tinha visto uma vez<br />
há vinte anos atrás, para lhe pedir patrocínio<br />
à nossa emigração. Nunca tínhamos<br />
saído da pequena ilha do Faial, e muito<br />
menos viajado num avião, mas aí estávamos<br />
nós a partir de avião para uma nova<br />
vida nos Estados Unidos.<br />
miguel Canto e Castro<br />
Eu vivia em Los Banos há quatro anos<br />
quando a primeira vaga de imigrantes dos<br />
Açores chegou a Merced County. Estávamos<br />
em 1959. A cidade de Los Banos recebeu<br />
cerca de 1 famílias de sinistrados, da ilha<br />
do Faial. Começaram a trabalhar em leitarias<br />
e como ajudantes das vacarias logo<br />
que chegaram.<br />
Para a elaboração deste artigo foi consultado<br />
o livro Capelinhos: A Volcano of Synergies,<br />
Azorean emigration to America (2008), Tony<br />
Goulart (coord.), São José, Califórnia:<br />
Portuguese Heritage Publications of<br />
Califórnia.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 51
5<br />
portuGAL/euA<br />
Luís dos santos Ferro<br />
ou a engenharia das artes<br />
O encontro foi no Grémio Literário, inevitavelmente.<br />
Ali, está em casa, o halo de<br />
Eça permeando as salas que sabe de cor.<br />
“Era aqui que eles, Os Vencidos da Vida,<br />
vinham muito.” Na biblioteca, prontamente<br />
reservada após o jantar, o serão não teve<br />
pressa. Amável, urbano, sem pedantismos<br />
– assim se nos apresenta Luís dos Santos<br />
Ferro, engenheiro de formação que um<br />
“Tenho prazer de viver, e vivo bem de muitas maneiras.”<br />
POR sóniA GrAçA*<br />
decisivo pendor artístico consagrou, metade<br />
da carreira, à cultura. O ex-director da<br />
FLAD aceitou falar de si à Paralelo. Que<br />
falem dele. “Uma extravagância! Caí das<br />
nuvens…”<br />
Nascido a 12 de Julho de 1939 em<br />
Lisboa, Luís Ferro é bafejado pelo amor<br />
exclusivo dos pais, com quem divide<br />
morada largos anos na Rua do Andaluz.<br />
O primeiro ciclo de sete anos no Liceu<br />
Camões revela um aluno próspero, com<br />
jeito para as línguas, em especial o francês,<br />
que apura na Alliance Française. Em casa,<br />
o pai, professor de Letras, corrige a aritmética<br />
e sugere leituras; a mãe, devotada<br />
ao lar, aplana a disciplina com uns lances<br />
sobre o piano. Curioso por natureza, Luís<br />
Ferro correspondia e, aos 16 anos, vence<br />
em 1972, no aeroporto de Lisboa, com o pianista Arthur rubinstein, a marquesa de Cadaval e nella rubinstein.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
EDUARDO GAGEIRO
um concurso da Alliance com um ensaio<br />
precoce sobre L’existentialisme est un Humanisme,<br />
de Sartre, que o leva a Paris.<br />
Mas o verdadeiro apelo era o da ciência,<br />
o da experimentação. “Nunca quis ser<br />
filósofo ou professor de literatura”, sintetiza.<br />
Dispensado do exame de admissão,<br />
escolhe em 1956 o Instituto Superior<br />
Técnico para cursar Engenharia Químico-<br />
-Industrial, num tempo em que os caloiros<br />
eram recebidos com um concerto da<br />
Orquestra Sinfónica Nacional. Entre a teoria<br />
e o laboratório, Luís Ferro volteia toda<br />
a matemática que sabia. Em Química<br />
Analítica, arrebata 18 valores, convencendo<br />
Fraústo da Silva, à data professor assistente,<br />
que lhe captou outros interesses:<br />
“Era inteligente e trabalhador, mas estava<br />
apaixonado pela arte e pela música. Em<br />
parte talvez por minha culpa, que também<br />
sou devoto de ópera.”<br />
Embalado pela Emissora Nacional, vai<br />
ao São Carlos noites sucessivas, já então<br />
seduzido por Mozart e Wagner: primeiro<br />
com bilhetes de claque, mais tarde convidado<br />
assíduo para o camarote de crítica<br />
do musicólogo João de Freitas Branco.<br />
João Furtado Coelho, colega de curso e<br />
professor jubilado de Matemática, era<br />
cúmplice na afinidade: “Gostávamos de<br />
música clássica, de ir a exposições e<br />
temos em comum um certo sentido de<br />
humor.” A camaradagem flui na Juventude<br />
Musical Portuguesa, espécie de conservatório<br />
laico que trazia ao Tivoli notáveis<br />
artistas internacionais a baixos cachets.<br />
Eleito secretário-geral entre 1963 e 1975,<br />
Luís Ferro alarga repertórios e cresce<br />
como auditor, sob a pedagogia amiga de<br />
Freitas Branco, que também colaborava<br />
na revista Arte Musical.<br />
Em 1960 e no ano seguinte, estagia em<br />
dois laboratórios nos arredores de Paris,<br />
e trava conhecimento com Louis de<br />
Broglie, Nobel de Física; pretexto suficiente<br />
também para investigar Eça de Queirós,<br />
eterno ideal literário, e recuperar locais<br />
biográficos. Philippe Mayer, proprietário<br />
da primeira casa do escritor em Neuilly-<br />
-sur-Seine, deixa-se cativar pelo jovenzinho<br />
e, décadas mais tarde, dá-lhe<br />
permissão para ali colocar uma placa<br />
comemorativa do 150.º aniversário<br />
do nascimento de<br />
Eça – descerrada por Jorge<br />
Sampaio e patrocinada pelo<br />
Grémio. Em 1996, era<br />
Sarkozy maire de Neuilly.<br />
“Fez os contactos e preparou<br />
tudo com minúcia”,<br />
atesta José Manuel dos<br />
Santos, à data assessor de<br />
Sampaio para os assuntos<br />
portuGAL/euA<br />
culturais. “Tem uma memória histórica,<br />
um sentido da tradição e gosta dos pequenos<br />
e grandes rituais.”<br />
Isso era evidente já em 1961, quando<br />
se soube que a última morada, onde Eça<br />
faleceu, estava ameaçada. De volta a<br />
Portugal, todo espírito de missão, escreve<br />
um artigo alarmado no diário de Lisboa<br />
e remete-o à filha do escritor,<br />
D. Maria Eça de Queiroz, que vivia em<br />
Tormes. Rápida sintonia entre duas gerações,<br />
desfiam memórias à lareira e trocam<br />
correspondência até 1970, ano em que<br />
faleceu a guardiã do espólio. “Nunca estive<br />
tão perto do Eça como nessa altura.<br />
Conheci manuscritos que ninguém mais<br />
conheceu pela simples razão de que ela<br />
confiou em mim.” Mais tarde escreveria<br />
um longo artigo evocativo para o dicionário<br />
compilado por Alfredo Campos Matos,<br />
outro queirosiano de quem, nos idos de<br />
1960, se fez amigo e interlocutor privilegiado:<br />
“O coleccionismo e a bibliofilia<br />
são duas facetas dessa paixão. Uso muitas<br />
vezes o arquivo dele para trabalhos que<br />
vou publicando.” Sintra era o cenário de<br />
muitos serões de tertúlia e música, ambos<br />
vizinhos em casas alugadas (todas as<br />
férias e fins-de-semana) pela marquesa<br />
de Cadaval – na sua residência, entre jantares<br />
e concertos, perambulavam artistas<br />
de todo o mundo e inclusive o último<br />
rei de Itália, Humberto II. Graças a ela,<br />
Luís Ferro depura o humanismo e a<br />
melomania: “Era o testemunho vivo de<br />
uma história, tinha antepassados grandiosos.<br />
Através dela conheci figuras como<br />
Rubinstein, Rostropovitch, Barenboim<br />
ou Jacqueline du Pré.”<br />
o treino DA enGenhAriA<br />
Em 1963, deixa o Instituto Superior<br />
Técnico com uma média de 15 valores.<br />
A disciplina serviu-lhe de base para a boa<br />
performance, primeiro no Laboratório de<br />
Física e Energia Nuclear; depois na<br />
Sociedade Nacional de Sabões, onde se<br />
mantém até 1980 à frente dos Estudos e<br />
Projectos, lado a lado com o proletariado.<br />
O director técnico, Luís Núncio, tinha nele<br />
um colaborador de ouro: “Era muito perfeccionista.<br />
Até as saídas preparava com<br />
grande precisão, os hotéis sempre bem<br />
escolhidos.” O fascínio das viagens e um<br />
pensamento ecuménico cedo se revelaram.<br />
“Tem uma paixão particular por Veneza<br />
e orientou-me na primeira visita, há muitos<br />
anos. Também foi através dele que<br />
conheci René Huyghe, no Grémio, e<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 53
D.R.<br />
54<br />
portuGAL/euA<br />
santos Ferro (o primeiro à esquerda) com um grupo de músicos de várias nacionalidades no Congresso<br />
da Juventude musical, em Florença, 1971. o segundo a contar da direita é o maestro álvaro Cassuto.<br />
Com saul bellow, nobel da Literatura, e bernardino Gomes no auditório da FLAD.<br />
quando expus pintura nos Estados Unidos,<br />
em 1983, não deixou de me dar contactos<br />
interessantes”, testemunha o pintor e<br />
amigo de infância Eduardo Nery.<br />
Instalado o PREC (Processo Revolucionário<br />
em Curso), com os patrões desorientados,<br />
os salários estagnam. Ferro não se acostuma<br />
e sai, com brio: “Cheguei a participar<br />
numa greve, coisa impensável para os<br />
engenheiros! No fim, tive direito a um<br />
louvor da comissão de trabalhadores.”<br />
Os cinco anos seguintes, passados na<br />
empresa Lorilleux Lefranc, seriam os derradeiros<br />
como engenheiro.<br />
A mudança nunca lhe foi penosa,<br />
sobretudo porque a intuía e preparava.<br />
Em 1985, torna-se evidente que a sua é<br />
uma rara história feliz em que uma<br />
escolha não elimina definitivamente<br />
outra. Tinha acabado de ouvir falar da<br />
FLAD quando, nesse Outono, Teresa<br />
Gouveia, recém-eleita secretária de<br />
Estado da Cultura de Cavaco Silva, o<br />
convida para seu chefe de gabinete:<br />
“Escolhi-o pelas qualidades de carácter<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
D.R.
e pela inteligência. É uma pessoa culta,<br />
bem relacionada no meio e é meu<br />
amigo.” Durante um ano, garante todos<br />
os despachos e lança speeches precursores<br />
sobre mecenato, que seria lei em Agosto<br />
de 1986. “Ajudou-me a preparar e a<br />
lançar todo esse sistema”, destaca Teresa<br />
Gouveia. A indiferença política é nele,<br />
mais do que nunca, sinónimo de eficácia<br />
e subtileza. “Numa relação que tanto<br />
podia dar ensejo à concórdia como à<br />
discórdia, os nossos tempos na Secretaria<br />
de Estado serviram para cimentar um<br />
reencontro permanente e fraternal que<br />
se prolongou até hoje”, certifica Manuel<br />
Villaverde Cabral, então director da<br />
Biblioteca Nacional, salientando:<br />
“Profissional rigoroso e penetrante, o<br />
Engenheiro continua a ser, para mim,<br />
de conselho sempre útil e fiável.” “Está<br />
lá, chefe Luís?” – dirige-se-lhe o amigo<br />
e historiador José-Augusto França, à data<br />
comissário da Exposição de Arte<br />
Portuguesa do Século XIX (Paris), que<br />
aproveita a ocasião para exercitar a cumplicidade:<br />
“Tem um humor queirosiano<br />
muito interessante, uma ironia latente<br />
e um pessimismo activo.” Demais amigos<br />
ouvidos pela Paralelo são unânimes<br />
neste capítulo.<br />
o FLoresCer nA FLAD<br />
Chamado a concurso na FLAD, Bernardino<br />
Gomes, administrador até 2003, cede ao<br />
currículo e às referências: “Uma pessoa<br />
inteligente e articulada. Muitos me diziam<br />
que era formidável, organizado e interessado<br />
em questões culturais.” Luís Ferro<br />
esteve com ele na definição de políticas<br />
para a cultura, um dos sectores menos<br />
financiados. No seu gabinete, com vista<br />
para o Tejo, incontáveis foram os projectos<br />
que estudou e as bolsas de estudo que<br />
ajudou a confiar ora a americanos que<br />
vinham, ora a portugueses que iam.<br />
A Gulbenkian partilhou, por exemplo, o<br />
apoio a estudos portugueses em universidades<br />
americanas: “Telefonava-me quando<br />
chegava um pedido que dissesse<br />
respeito a ambas as fundações. Falávamos<br />
de forma franca e chegámos sempre a<br />
acordo”, diz João Pedro Garcia, director<br />
do Serviço Internacional da Gulbenkian,<br />
fixando um pormenor curioso: “Após<br />
vinte e cinco anos de contactos, sugeriu<br />
que nos tratássemos por tu. Fiquei muito<br />
orgulhoso.” Teresa Alves, académica da<br />
Faculdade de Letras, viu apoiadas pela<br />
FLAD três sabáticas num programa de intercâmbio<br />
de docentes com a Georgetown<br />
University: “Somos hoje a única faculdade<br />
que oferece uma licenciatura em<br />
portuGAL/euA<br />
Com José-Augusto França no museu Angers, em França (outubro de 2000).<br />
estudos norte-americanos. Não fosse o<br />
Engenheiro e isto não existia.”<br />
Além da Colecção de Arte, eminentes<br />
foram os projectos das fundações de<br />
Serralves e Vieira da Silva – artista de<br />
quem Luís Ferro é amigo desde os estágios<br />
em Paris. “Era o elo de ligação, foi<br />
a Paris sondar-lhe a adesão e falou com<br />
historiadores para o catalogue raisonné”, destaca<br />
Marina Ruivo, directora da <strong>Fundação</strong><br />
Arpad Szenes – Vieira da Silva. Numa das<br />
viagens, Bernardino Gomes recorda-se de<br />
um desvelo invulgar: “A Vieira pediu que<br />
levássemos urze de Sintra. Não sei como<br />
é que o engenheiro conseguiu, mas<br />
fomos com urze no avião.” Em duas décadas,<br />
muitas personalidades foram recebidas<br />
na <strong>Fundação</strong>, entre elas, George<br />
Steiner, em 2002, encontro convertido<br />
em amizade.<br />
Bernardino Gomes não hesita na retrospectiva:<br />
“É muito interessante nele a transformação<br />
de uma visão clássica em algo<br />
mais avant-garde. Não se pode pensar hoje<br />
na FLAD sem pensar no trabalho dele e<br />
na capacidade intelectual indiscutível. Era<br />
paciente, sabia dizer não com elegância.”<br />
Teresa Gouveia corrobora: “Tem a coragem<br />
moral e a generosidade de dizer sempre<br />
a verdade, por mais difícil que seja, e isso<br />
é uma qualidade raríssima.”<br />
O hoje consultor da FLAD retemperase<br />
na música (tem um camarote no São<br />
Carlos que partilha com Teresa Gouveia<br />
e outros amigos) e na bibliofilia – quer<br />
“reler”. Aqui e ali, bustos omnipresen-<br />
tes de Eça, fotografias dedicadas de<br />
Soares e de Sampaio (cujas comissões<br />
de honra apoiou, embora sempre apartidário),<br />
medalhas sucessivas. E, inesperada,<br />
uma parede coberta de nus<br />
femininos desvendando um refinado<br />
hedonismo. “Tenho prazer de viver, e<br />
vivo bem de muitas maneiras.”<br />
* Jornalista do semanário Sol<br />
Internacionalização<br />
do Grémio Literário<br />
Sócio desde 1971, Luís Ferro integra o<br />
Conselho Literário há treze anos e<br />
frequentemente substitui José-Augusto<br />
França na presidência, quando este se<br />
ausenta a Paris. Além de conferências,<br />
encontros com escritores e apresentações<br />
de filmes, o núcleo trata de organizar a<br />
cerimónia anual de aniversário do Eça.<br />
Expressivo tem sido também o papel do<br />
engenheiro na internacionalização do<br />
Clube. “Graças a ele, temos hoje cerca<br />
de 135 clubes estrangeiros com quem<br />
nos correspondemos. É um sócio cheio<br />
de iniciativa”, diz o actual presidente<br />
Macedo e Cunha.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 55<br />
D.R.
56<br />
portuGAL/euA<br />
obama ou mcCain<br />
quem elegeram os media<br />
para a presidência?<br />
Há muito que se questiona a influência dos media em períodos eleitorais.<br />
Até que ponto são os jornalistas e os comentadores responsáveis<br />
pela eleição dos governantes.<br />
Será que as diferenças no tratamento jornalístico<br />
das várias candidaturas influenciam<br />
as vitórias e as derrotas dos<br />
candidatos? Estudos sobre a cobertura jornalística<br />
das campanhas como o do Pew<br />
Research Center dão pistas que ajudam a<br />
compreender o tema.<br />
Após a derrota nas eleições presidenciais<br />
contra Ronald Reagan, em 1984, Walter<br />
Mondale convocou uma conferência de<br />
imprensa para anunciar o seu afastamento<br />
da política e aconselhar o seu partido<br />
a não voltar a nomear um candidato sem<br />
perfil mediático. Mondale interpretou os<br />
resultados eleitorais através das opiniões<br />
dos comentadores e dos jornalistas que<br />
apontavam a sua “imagem pouco apelativa”<br />
como a principal causa da derrota.<br />
Para tentar explicar situações como esta<br />
e compreender a influência dos media na<br />
escolha dos candidatos, vários estudiosos<br />
têm-se dedicado ao estudo do papel que<br />
os media desempenham nas eleições.<br />
Actualmente, os media são a principal fonte<br />
de informação política para a grande<br />
maioria dos cidadãos e não só divulgam<br />
a informação sobre a campanha e os candidatos,<br />
como também a seleccionam,<br />
tratam, reorganizam e comentam.<br />
Apesar de ainda persistir alguma falta de<br />
consenso em relação ao grau de influência<br />
dos media, uma vez que – entre outras razões<br />
– é bastante difícil estabelecer uma relação<br />
directa entre a exposição aos media e a alteração<br />
do comportamento eleitoral, pois este<br />
pode ser influenciado por inúmeros outros<br />
factores, é relativamente consensual entre<br />
vários autores que os media influenciam, pelo<br />
menos, a percepção dos contextos em que<br />
as decisões são tomadas.<br />
POR susAnA sALGADo*<br />
Noelle-Neumann, por exemplo, no seu<br />
livro A espiral do Silêncio (1980) chamou a<br />
atenção para a influência do clima da<br />
opinião sobre as decisões das pessoas e<br />
defendeu a importância desta pressão da<br />
opinião dominante, dada a natureza social<br />
das pessoas e o seu receio de isolamento.<br />
Ora, são os media que, para além de informarem<br />
sobre os candidatos e as suas<br />
‘ os media têm tendência para<br />
enquadrar a cobertura das eleições<br />
como narrativas de competição<br />
e baseiam-se nos resultados<br />
das sondagens para apresentar<br />
os candidatos e tratar as suas<br />
imagens e mensagens.<br />
’<br />
propostas, dão informação sobre as posições<br />
existentes, através da divulgação de<br />
sondagens e da interpretação que os jornalistas<br />
e os comentadores fazem dos<br />
vários eventos da campanha e do desempenho<br />
dos candidatos.<br />
os CAnDiDAtos<br />
Com o objectivo de caracterizar a forma<br />
como os media trataram as candidaturas<br />
presidenciais de 2008, o estudo realizado<br />
pelo Pew Research Center através do<br />
Project for Excellence in Journalism analisou<br />
a cobertura jornalística da campanha<br />
durante seis semanas, o período entre as<br />
convenções e o último debate presidencial<br />
(de 8 de Setembro a 16 de Outubro), num<br />
total de 2412 peças jornalísticas provenientes<br />
de 48 órgãos de informação.<br />
Os dados analisados apontam para a existência<br />
de dois fenómenos na cobertura<br />
mediática. O primeiro relaciona-se com<br />
táctica e estratégia e explica que o candidato<br />
que foi visto como o<br />
vencedor teve uma cobertu-<br />
ra noticiosa mais favorável.<br />
O segundo aponta para o<br />
efeito de reforço e de eco<br />
dos media, e está intimamente<br />
relacionado com o peso<br />
que as sondagens têm nas<br />
campanhas. A divulgação de<br />
estudos de opinião quase<br />
diariamente conduz a que<br />
o impacto de praticamente<br />
todos os acontecimentos<br />
seja medido e depois analisado<br />
pelos media. Cada acontecimento<br />
ou declaração da<br />
campanha eleitoral tem, neste sentido, três<br />
ecos: primeiro, realiza-se a cobertura noticiosa<br />
que dá a conhecer o que aconteceu;<br />
depois, o efeito é medido através dos estudos<br />
de opinião; e, por fim, as reacções às<br />
sondagens são conhecidas, examinadas e<br />
comentadas. Todo este processo acaba por<br />
ampliar a relevância de alguns factos e<br />
declarações e essa selecção é, em grande<br />
medida, realizada pelos jornalistas. Este<br />
tipo de efeito está geralmente presente no<br />
trabalho dos media, mas ganha uma especial<br />
importância em contextos eleitorais,<br />
devido à divulgação quase permanente de<br />
sondagens.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
RAINER JENSEN/EPA/LUSA<br />
Não é por acaso que quando são analisados<br />
os temas das peças jornalísticas verifica-<br />
-se que a maioria foca o carácter, o passado<br />
e o desempenho dos candidatos nos eventos<br />
da campanha e nas sondagens.<br />
No entanto, nesta campanha, a crise<br />
financeira e o estado da economia<br />
impediram que a cobertura jornalística<br />
se centrasse quase exclusivamente nos<br />
aspectos estratégicos da campanha e na<br />
competição entre os candidatos. Estes<br />
últimos assuntos estiveram presentes na<br />
maioria das peças jornalísticas, mas<br />
contrariamente a eleições anteriores<br />
essa presença foi menor e isso deveu-se<br />
à atenção atribuída ao tema “economia”.<br />
De qualquer forma, os valores do<br />
estudo apontam para cerca de 53 por<br />
cento da cobertura jornalística centrada<br />
em Politics, isto é, as estratégias, as tácticas<br />
e o desempenho dos candidatos<br />
nas sondagens de opinião, e apenas 20<br />
por cento sobre Policy, o que significa<br />
portuGAL/euA<br />
os assuntos enfatizados nos media são os mesmos que as pessoas usam para avaliar os candidatos.<br />
o noticiar dos temas mais importantes<br />
para o país no momento da eleição e<br />
as propostas dos candidatos para os<br />
ultrapassar. É interessante referir neste<br />
contexto que autores como Iyengar e<br />
Kinder (<strong>New</strong>s that Matters: Television and<br />
American Opinion) defendem que os<br />
assuntos enfatizados nos media durante<br />
a campanha eleitoral, são os mesmos<br />
que as pessoas usam para avaliar os<br />
diferentes candidatos e as suas propostas<br />
eleitorais.<br />
houve FAvoreCimento?<br />
Em Setembro, devido à situação preocupante<br />
de dois dos maiores bancos de investimento,<br />
o Lehman Brothers e o Merrill<br />
Lynch, e da seguradora AIG, a cobertura<br />
jornalística sobre a crise financeira e a economia<br />
subiu de quatro para 40 por cento e<br />
o estudo do Pew Research Center demonstrou<br />
ainda que simultaneamente a cobertu-<br />
ra positiva da candidatura de Barack Obama<br />
também aumentou, o que significa que a<br />
crise acabou por favorecer a candidatura<br />
democrata. Por um lado, Obama representa<br />
a oposição às políticas seguidas pelo actual<br />
Presidente, mas, por outro, os esforços de<br />
John McCain para se associar à resolução<br />
da crise, chegando a anunciar a suspensão<br />
da campanha e a tentar cancelar o primeiro<br />
debate presidencial, acabaram por ser prejudiciais<br />
à sua imagem.<br />
McCain teve nesta altura mais cobertura<br />
mediática que Obama, mas essa maior<br />
visibilidade foi essencialmente negativa.<br />
De facto, mais notícias não significaram<br />
boas notícias para o candidato republicano.<br />
E quando o tema das notícias foi a<br />
economia, McCain teve uma cobertura<br />
mais negativa (55 por cento) que positiva<br />
(15 por cento), enquanto a tendência<br />
foi oposta para o seu adversário – Obama<br />
teve uma cobertura mais positiva (36 por<br />
cento) que negativa (23 por cento).<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 57
RON SACHS/LUSA<br />
Estes valores chamam também a atenção<br />
para a importância dos enquadramentos<br />
que os jornalistas escolhem quando dão<br />
notícias acerca dos candidatos. Os enquadramentos<br />
jornalísticos encorajam determinadas<br />
percepções e interpretações e são<br />
uma forma, entre outras, de olhar para a<br />
realidade e de arrumar a cobertura noticiosa,<br />
organizando, assim, o mundo tanto<br />
para os jornalistas que escrevem as notícias,<br />
como para os leitores dessas notícias.<br />
Desta forma, num contexto de crise económica<br />
e financeira, de instabilidade e de<br />
desconfiança dos cidadãos, enquadrar o<br />
discurso político e as propostas de um<br />
candidato presidencial de forma positiva<br />
e fazer o contrário com o outro candidato,<br />
pode induzir nos eleitores a ideia de<br />
que o primeiro está mais preparado para<br />
lidar com os problemas do país e é a<br />
melhor opção eleitoral.<br />
Não obstante as várias diferenças nos<br />
sistemas político e mediático dos dois<br />
países, é interessante apontar aqui uma<br />
semelhança com as eleições presidenciais<br />
de 2006 em Portugal. Durante a campanha<br />
58<br />
portuGAL/euA<br />
eleitoral, a crise económica foi um tema<br />
com forte presença nos media e isso pode<br />
ter influenciado os eleitores, acabando por<br />
beneficiar o candidato com mais preparação<br />
nessa área específica e o que mais<br />
mencionou o tema na sua campanha. Não<br />
obstante o Presidente da República não<br />
ter, em Portugal, poderes executivos ou<br />
legislativos, os media transmitiram frequentemente<br />
a ideia de que um político com<br />
formação em Economia poderia vigiar<br />
melhor as acções do Governo e cumprir<br />
melhor a sua função de fiscalização.<br />
Não só a economia, mas também a avaliação<br />
jornalística da estratégia das duas<br />
candidaturas foi mais favorável a Obama.<br />
Entre outros factores, contribuíram para<br />
isso, por exemplo, os seus bons resultados<br />
nas sondagens e o facto de os seus apoiantes<br />
revelarem mais entusiasmo. Igualmente<br />
a cobertura mediática dos três debates<br />
presidenciais não se revelou favorável a<br />
McCain, pois mesmo quando o seu desempenho<br />
foi considerado bom, ele nunca foi<br />
visto como o vencedor dos debates. Por<br />
exemplo, na semana do último debate<br />
(de 12 a 16 de Outubro), as peças jornalísticas<br />
divulgadas sobre Obama foram 50<br />
por cento positivas, 31 por cento neutras<br />
e 19 por cento negativas, enquanto no<br />
caso de McCain os valores foram de apenas<br />
sete por cento positivas, 24 por cento<br />
neutras e 69 por cento negativas.<br />
Os dados divulgados são tanto mais interessantes<br />
quando se verifica que a cobertura<br />
favorável tem reflexos nas sondagens<br />
de opinião, pois quanto mais positiva a<br />
cobertura jornalística, mais intenções de<br />
voto o candidato recolhe, uma tendência<br />
registada nas duas candidaturas em<br />
períodos diferentes. Estes dados, que relacionam<br />
cobertura favorável com bons<br />
resultados nas sondagens e que esclarecem<br />
sobre o tipo de tratamento jornalístico da<br />
mensagem dos políticos, são certamente<br />
importantes para quem se interessa pela<br />
questão da influência dos media nas eleições<br />
e, num plano mais geral, se questiona<br />
sobre se os media apenas reflectem ou<br />
antecipam a opinião pública.<br />
*Investigadora de media e política e docente na Universidade<br />
Nova de Lisboa<br />
enquadrar o discurso político de um candidato de uma forma positiva pode induzir nos eleitores a ideia de que é a melhor opção eleitoral.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
D.R.<br />
portuGAL/euA<br />
Liderança no século xxi<br />
A FLAd e o Governo Regional dos Açores, em colaboração com a Harvard Kennedy<br />
School, trouxeram a Portugal um curso de liderança considerado um dos melhores<br />
do mundo. Professores da instituição norte-americana e executivos portugueses discutiram<br />
na ilha Terceira os desafios que se colocam a quem exerce a liderança no século XXI.<br />
A repetir este ano.<br />
Ao longo de uma semana, cerca de cinquenta<br />
executivos, quadros de empresas privadas,<br />
da administração pública e de organizações<br />
não governamentais, vindos de vários pontos<br />
do País, foram confrontados com desafios<br />
que avaliaram a sua capacidade de<br />
liderança. Uma iniciativa da FLAD, que convidou<br />
três professores da Harvard Kennedy<br />
School, uma das mais prestigiadas instituições<br />
mundiais na área da formação avançada<br />
de executivos – Maxime Fern, Hugh<br />
O’Doherty e Martin Linsk –, para tomar as<br />
rédeas nesta acção inovadora.<br />
Segundo Paulo Zagalo e Melo, director<br />
para a área da Educação, Ciência e<br />
Tecnologia da FLAD, este curso de<br />
“Liderança no Século XXI” é uma acção<br />
pioneira em Portugal. “Muitas vezes criticamos<br />
as nossas organizações, não pela<br />
falta de recursos, mas pela falta de liderança.<br />
Obviamente, é possível melhorar,<br />
há técnicas para tal e especialistas que<br />
estudam precisamente essas técnicas, e,<br />
POR ArmAnDo sALvADo<br />
portanto, esta é a razão para a FLAD ter<br />
investido neste curso”, explicou.<br />
De acordo com os formadores, Portugal<br />
tem uma cultura onde a subserviência ainda<br />
ocupa um lugar importante. A este respeito,<br />
Martin Linsk anotou mesmo que “existe<br />
uma profunda diferença para com a autoridade<br />
na cultura portuguesa, e nós acreditamos<br />
que se pode exercer a liderança em<br />
qualquer posição que se ocupe numa organização;<br />
não é um exclusivo do topo”.<br />
Os três professores da Harvard Kennedy<br />
School procuraram mostrar que ninguém<br />
nasce líder. Aprendem-se, sim, comportamentos<br />
de liderança. “Nós tentamos dar-<br />
-lhes ferramentas e ideias sobre como fazer<br />
progressos face aos desafios de liderança.<br />
Também usamos o grupo como um estudo<br />
de caso, porque acreditamos que a<br />
oportunidade de exercer liderança surge<br />
todos os dias, em família, à mesa do jantar,<br />
na nossa vida profissional”, salientou<br />
Martin Linsk.<br />
Alunos, professores e organizadores do Curso de Liderança na terceira, Açores.<br />
A professora Maxime Fern diz mesmo que<br />
há que separar a ideia de autoridade da de<br />
liderança, porque uma não pressupõe a<br />
outra: “O principal objectivo deste curso<br />
é ajudar as pessoas a separarem a confusão<br />
existente entre o que é a liderança e a autoridade,<br />
e como essa distinção entre as duas<br />
ideias leva as pessoas a fazerem aquilo a<br />
que chamamos ‘trabalho adaptativo’.”<br />
Hugh O’Doherty, também ele professor em<br />
Harvard, assegura: “Para exercer a liderança<br />
não é preciso ter uma personalidade característica,<br />
com carisma. A liderança é uma<br />
actividade que as pessoas podem escolher<br />
exercer com ou sem autoritarismo. Ser líder<br />
é ter capacidade para mobilizar um grupo.”<br />
Reflexão, empenho e atenção pelo<br />
grupo que se lidera, três conceitos fundamentais<br />
que saíram deste curso. Os professores<br />
da Harvard Kennedy School<br />
deixaram uma mensagem clara: todos<br />
podem ser líderes, mesmo que não se<br />
esteja no topo da hierarquia.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 59
RUI OCHôA<br />
60<br />
portuGAL/euA<br />
daniel Okrent, o primeiro provedor do leitor do The <strong>New</strong> York Times,<br />
esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro – O Provedor.<br />
Falou, também, sobre a campanha e as eleições presidenciais norte-americanas.<br />
Daniel Okrent fez a sua declaração de interesses<br />
depois de apresentado por José Carlos<br />
Abrantes e confessou-se apoiante do novo<br />
Presidente norte-americano. Estas foram as<br />
primeiras eleições, desde que começou a<br />
carreira de jornalista, em que pôde tomar<br />
partido por algum dos candidatos. Por isso,<br />
o agora escritor e consultor não teve problemas<br />
em assumir que chegou a contribuir<br />
financeiramente para a campanha do<br />
senador democrata.<br />
Para o ex-editor da Time, houve três tópicos<br />
que se destacaram na eleição de Barack<br />
Obama: “O primeiro, a vitória de um<br />
homem negro numa nação com a história<br />
dos Estados Unidos da América; em segundo<br />
lugar, o entusiasmo por um homem<br />
eloquente, com um discurso diferente<br />
daquilo a que estamos habituados; e por<br />
último, o nível de esperança das populações,<br />
pois vimos muita gente habitualmente<br />
distante da política a envolver-se<br />
directamente na campanha.” Por outro lado,<br />
Daniel Okrent acredita que “Obama tam-<br />
“obama é um homem<br />
extraordinário”<br />
POR rui CAtALão<br />
bém ganhou com a presença dos jornalistas<br />
porque tinha uma história melhor do<br />
que McCain: ia ser o primeiro presidente<br />
negro, enquanto o candidato republicano<br />
não tinha nada de diferente, de novo”.<br />
Estas eleições presidenciais permitiram<br />
também confirmar uma tendência já<br />
conhecida, como explicou o autor de<br />
O Provedor. “Os leitores/telespectadores procuram<br />
acima de tudo órgãos de informação<br />
que reforcem as suas convicções. Se vemos<br />
algo que está de acordo com aquilo em<br />
que acreditamos, o jornalista é imparcial.<br />
Se vemos alguma coisa que choque com<br />
as nossas crenças, dizemos que é parcial.”<br />
Da mesma forma, o ex-provedor do Times<br />
reconheceu uma aproximação e um maior<br />
interesse em notícias sobre política, “apesar<br />
de as pessoas estarem mais interessadas em<br />
artigos sobre sondagens e a horse race do que<br />
propriamente nos artigos sobre os candidatos<br />
e as suas ideias e propostas”.<br />
Na conferência promovida pela FLAD,<br />
Joaquim Vieira e Patrícia Fonseca marca-<br />
paula vicente da FLAD entre os dois antigos provedores,<br />
José Carlos Abrantes (Dn), à esquerda, e Daniel okrent (nYt).<br />
ram presença quase como se fossem entrevistadores.<br />
Os dois jornalistas interpelaram<br />
Daniel Okrent por diversas vezes, registando<br />
igualmente alguns comentários. Para<br />
o actual provedor do Público, “as eleições<br />
norte-americanas foram sinónimo de alegria<br />
genuína, num ambiente de festa idêntico<br />
ao 25 de Abril em Portugal”. Já a<br />
jornalista da Visão destacou a singularidade<br />
do discurso de Barack Obama, “numa<br />
forma de fazer política que não jogava<br />
com as regras normais”.<br />
Apesar de acreditarem nas capacidades<br />
do novo Presidente norte-americano,<br />
Daniel Okrent e os seus interlocutores<br />
mostraram-se de acordo quanto à posição<br />
dos media face a Obama: “A partir da<br />
tomada de posse, a imprensa vai ser<br />
muito mais crítica, vai haver uma mudança<br />
como da noite para o dia”, garantiu<br />
Daniel Okrent.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA<br />
michael schudson<br />
era uma vez uma democracia<br />
desafiar o senso comum sobre as origens e o percurso da democracia americana<br />
e lembrar as funções democráticas do jornalismo foram ideias centrais da conferência<br />
de Schudson sobre “A Cidadania e os Media”.<br />
Os fundadores da nação americana<br />
teriam estranhado estes<br />
tempos de voto universal e<br />
secreto em que os eleitores têm<br />
ao seu dispor complexos e<br />
volumosos guias informativos e<br />
em que são seriamente encarados<br />
como “cidadãos informados”.<br />
Há dois séculos e meio,<br />
enfatiza o professor da<br />
Universidade de San Diego<br />
(Califórnia) e de Columbia<br />
(Nova Iorque), não se esperava<br />
que avaliassem por si próprios<br />
questões públicas. Os<br />
Founding Fathers não simpatizavam<br />
com a publicidade de<br />
procedimentos governamentais,<br />
negligenciavam a educação<br />
pública e desencorajavam a participação<br />
pública informal nos<br />
assuntos legislativos.<br />
Cem anos depois da fundação<br />
dos EUA, o voto continuava a<br />
ser uma questão de “bebidas,<br />
dólares e drama”, raramente<br />
algo de mais elevado. Um exemplo:<br />
em Nova Jérsia, por volta<br />
de 1880, pelo menos um terço<br />
do eleitorado contava receber<br />
um punhado de dólares no dia<br />
das eleições. O voto não expressava<br />
uma forte convicção nas<br />
melhores políticas públicas mas<br />
uma lealdade similar à dos adeptos<br />
das equipas de futebol.<br />
Na actualidade tais evocações<br />
desafiam ideias feitas sobre as<br />
origens e o percurso da democracia<br />
americana. Foram os<br />
reformadores do final do século<br />
XX, não os pais fundadores, que deram<br />
um passo decisivo para conformar os americanos<br />
ao “ideal do cidadão informado”.<br />
E as “novidades” sucederam-se. Os parti-<br />
POR CArLA mArtins*<br />
shudson: “As pessoas procuram romance nas actividades políticas”.<br />
‘ na América do século xix, o voto não<br />
expressava uma forte convicção<br />
nas melhores políticas públicas mas<br />
uma lealdade similar à dos adeptos<br />
das equipas de futebol. Cem anos<br />
depois da fundação dos euA,<br />
o voto continuava a ser uma questão<br />
de “bebidas, dólares e drama”,<br />
raramente algo de mais elevado.<br />
’<br />
dos esforçam-se por oferecer um programa<br />
que promete boas políticas mais do<br />
que bons empregos. O sistema abriu-se a<br />
uma “revolução de direitos”.<br />
poLítiCA sem FALsos<br />
morALismos<br />
Ao traçar esta, em última análise,<br />
“antropologia da democracia”,<br />
Schudson não ilude com<br />
pureza um campo animado, ao<br />
invés, por interesses. “Votar é<br />
uma prática tão cultural quanto<br />
moral”, mas não se confunda<br />
“votar, estar informado ou<br />
aderir a organizações cívicas<br />
com virtude pessoal ou espírito<br />
público”. Homens e mulheres<br />
também se mobilizam<br />
porque preferem o gossip político<br />
ao das celebridades ou do<br />
desporto. E procuram romance<br />
nas actividades políticas.<br />
Neste devir democrático,<br />
quais os papéis que cumprem<br />
os media noticiosos? São sete,<br />
segundo a sistematização de<br />
Schudson. A começar por informar<br />
o público e investigar os<br />
poderes. Mas também a de criar<br />
empatia social. Hoje a democracia<br />
sofre com a apatia.<br />
O investigador recordou a<br />
conversa de um editor com<br />
uma afro-americana, em 1980,<br />
quando Carter e Reagen disputavam<br />
a Presidência. A<br />
senhora não iria votar. “Estou<br />
muito ocupada e muito cansada,<br />
dá demasiado trabalho”.<br />
O editor não considerava que<br />
os jornalistas pudessem fazer<br />
alguma coisa para que ela<br />
mudasse de ideias. Excepto<br />
contar a sua história e levar a<br />
sociedade, pelo menos aqueles<br />
que votam e aqueles que têm o poder de<br />
tomar decisões, a vê-la e a compreendê-la<br />
com compaixão.<br />
* Professora da ULHT<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 61
6<br />
CArtA brAnCA<br />
Um jantar no Havai<br />
‘ A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista<br />
foi pedido um discurso, breve que fosse, em português.<br />
não entenderiam, é certo, o significado das palavras,<br />
mas a sonoridade da língua traria de volta a nostalgia<br />
de anos passados.<br />
’<br />
Não foi fácil convencer o adido de Imprensa da Embaixada dos<br />
Estados Unidos em Lisboa – vivíamos a segunda metade dos<br />
anos de 1980 – a incluir as ilhas do Havai no roteiro de uma<br />
viagem profissional.<br />
O jornalista convidado, signatário desta crónica, argumentou<br />
com a presença de descendentes de emigrantes açorianos de<br />
outras décadas – mas, valha a verdade, o apelo do mito turístico<br />
daquelas ilhas do Pacífico era uma outra motivação inconfessável.<br />
Para um ilhéu, seria, entre outras coisas, uma oportunidade<br />
única para um mergulho na famosa praia de Waikiki, nos arredores<br />
de Honolulu...<br />
Depois de uma negociação pormenorizada entre diplomata e<br />
jornalista, lá seguiu para Washington uma proposta de itinerário<br />
que acabou por incluir duas das ilhas descobertas pelo capitão<br />
Cook. Com alguma surpresa para ambos, a proposta de percurso<br />
veio devolvida com aprovação integral.<br />
As cinco semanas então passadas nos Estados Unidos foram uma<br />
experiência de vida fascinante para um jovem jornalista que tinha,<br />
na altura, um conhecimento limitado de outras paragens.<br />
O contacto com o melting pot, em inúmeras cambiantes, deixou<br />
marcas que perduraram. E, curiosamente, acabou por ser no<br />
Havai que aconteceu o episódio que inspira esta crónica e que<br />
ficou na memória com um registo singular de emoção.<br />
mário bettenCourt<br />
resenDes*<br />
À chegada a Maui, o guia destacado para acompanhar o jornalista<br />
avisou que o programa incluía um jantar com algumas<br />
dezenas de descendentes de emigrantes. Ao tomar conhecimento<br />
da visita de um português, para mais açoriano, a comu-<br />
nidade local luso-descendente tinha feito questão em celebrar<br />
uma presença que era, nesses tempos, conforme se percebeu,<br />
uma raridade.<br />
No dia marcado, num restaurante de montanha, em cenário<br />
paradisíaco – a ilha é, toda ela, um prodígio de beleza natural<br />
– meia centena de convivas receberam, com particular<br />
afabilidade, o jornalista e o seu guia. Eram, na sua esmagadora<br />
maioria, pessoas já na terceira idade, nascidos localmente,<br />
filhos ou netos de emigrantes. E que falavam, apenas,<br />
a língua inglesa.<br />
A surpresa veio na altura dos brindes. Ao jornalista foi pedido<br />
um discurso, breve que fosse, em português. Não entenderiam,<br />
é certo, o significado das palavras, mas a sonoridade da língua<br />
traria de volta a nostalgia de anos passados.<br />
O jornalista levantou-se e, perante uma plateia atenta, cumpriu<br />
a missão. No final, recebeu uma das mais entusiásticas – e certamente<br />
a mais comovente – salva de palmas da sua vida.<br />
* Jornalista, provedor dos leitores do Diário de Notícias<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
RUI COUTINHO
D.R.<br />
No Committee of Concerned Journalists,<br />
no National Press Building, em Washington<br />
DC, dez jornalistas portugueses frequentaram<br />
duas intensas semanas do curso de<br />
soCieDADe<br />
o jornalismo americano visto<br />
do lado de dentro<br />
dez jornalistas portugueses estiveram nos eUA com bolsas de curta duração, ao abrigo<br />
dos programas “Alfredo Mesquita” e “José Rodrigues Miguéis”, criados pela FLAd,<br />
para favorecer o intercâmbio entre os dois países na área jornalística.<br />
aperfeiçoamento para profissionais midcareer.<br />
O curso incluiu conferências e visitas<br />
de trabalho, por exemplo, às redacções<br />
(online e edição impressa) do Washington Post.<br />
Os mais actuais problemas com que se<br />
depara o jornalismo foram discutidos<br />
pelos professores do Committee e outros<br />
convidados para conversar com a turma<br />
lusa de jornalistas.<br />
Este curso nos EUA resulta de bolsas de<br />
curta duração da FLAD, ao abrigo dos programas<br />
“Alfredo Mesquita” (jornalistas<br />
dos Açores) e “José Rodrigues Miguéis”<br />
(jornalistas do continente) para favorecer<br />
o intercâmbio entre os dois países na área<br />
jornalística. Os bolseiros começaram por<br />
viajar até aos Açores, onde contactaram<br />
com representantes das instituições locais<br />
e visitaram órgãos de comunicação social<br />
e pontos turísticos.<br />
Já nos EUA, os jornalistas fizeram o<br />
International Visitor Leadership Program,<br />
de formação sobre as especificidades do<br />
sistema norte-americano, organizado pelo<br />
Departamento de Estado e pela embaixada<br />
norte-americana em Lisboa.<br />
As duas bolseiras açorianas do programa<br />
“Alfredo Mesquita” beneficiaram, ainda,<br />
de uma semana na região de Boston onde<br />
contactaram com várias instituições ligadas<br />
à comunidade emigrada na região.<br />
Patrícia Fonseca (Visão), Ana Catarina<br />
Santos e Cristina Lai Men (TSF), Filipe<br />
Santos Costa (expresso), Maria João Guimarães<br />
e Catarina Gomes (Público), Catarina Neves<br />
(SIC) e Ana Luísa Rodrigues (RTP) foram<br />
os jornalistas do continente seleccionados,<br />
e Vanda Mendonça (diário Insular) e Filipa<br />
Simas (RTP Açores) as jornalistas açorianas<br />
que participaram no programa.<br />
Cada bolseiro elaborou um pequeno<br />
depoimento que reproduzimos nas páginas<br />
seguintes, depoimentos que testemunham<br />
alguns dos acontecimentos por eles<br />
vividos.<br />
Este ano, em Junho, outros 10 jornalistas<br />
portugueses serão formados pelo Committee<br />
of Concern Journalists em Washington.<br />
Grupo de jornalistas à chegada ao Washington<br />
post para reunião de trabalho.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 63
Washington Post<br />
e weather reports<br />
64<br />
POR AnA LuísA roDriGues*<br />
Mesmo habituados a conhecer personalidades<br />
ou lugares míticos, o entusiasmo era<br />
indisfarçável na visita ao Washington Post.<br />
Ao caminhar pelos dois pisos da redacção,<br />
o sentimento misturou a contenção<br />
– afinal, “do lado de lá” estavam colegas<br />
de profissão – e a curiosidade de espreitar<br />
cada cantinho.<br />
Numa ala, open spaces a perder de vista com<br />
centenas de secretárias, noutra, gabinetes<br />
para os seniores. Em cada estaminé, os<br />
metros quadrados conquistados por muralhas<br />
de dossiês e papéis ao monte – doença<br />
endémica de qualquer redacção.<br />
Tínhamos encontro marcado com Debora<br />
Howell, ombusdman do Washington Post. Mas<br />
mais do que a entrevista, “entrar no cenário”<br />
foi o que me fez verdadeiramente<br />
vibrar.<br />
Surpreendentemente, a redacção do<br />
Washingtonpost.com, edição online do jornal,<br />
fica do outro lado do rio Potomac, no<br />
estado da Virgínia.<br />
Noventa pessoas alimentam uma plataforma<br />
que origina 250 milhões de page<br />
viewers por mês, segundo Jonathan Krim,<br />
editor da página web. As mudanças no jornalismo,<br />
da cultura free que impera na web,<br />
do melhor perfil para o jornalista do futuro<br />
foram temas de conversa.<br />
Antes da saída, a surpresa. As vidraças<br />
da redacção permitiam uma vista cinematográfica<br />
sobre o temporal que em<br />
minutos varreu a zona. Chuva grossa<br />
batida a vento, trovões e clarões a encarregarem-se<br />
dos jogos de som e luz. E luz<br />
também se fez sobre um dos mais intrigantes<br />
mitos norte-americanos: a obsessão<br />
com o boletim meteorológico, os<br />
tão famosos weather reports que têm até<br />
direito a canais de TV. Percebi que não<br />
é uma paranóia!<br />
O temporal fez cancelar o jantar dessa<br />
noite. Opção mais radical do que a intempérie…<br />
Duas horas depois, o sol voltava<br />
a brilhar e as pessoas enchiam as ruas,<br />
memória lavada do temporal.<br />
Um dia pode ter várias caras. É como se<br />
a variedade da meteorologia se afinasse<br />
pelo diapasão do próprio país. E uma das<br />
impressões mais fortes que se pode trazer<br />
dos Estados Unidos é justamente a diversidade<br />
do caldo norte-americano, qual<br />
manta de retalhos. * RTP<br />
soCieDADe<br />
Da democracia<br />
na América<br />
A festa de Obama, a retirada de Hillary e o entusiasmo<br />
da sociedade civil nestas eleições presidenciais.<br />
Para um jornalista de política, estar nos EUA<br />
em ano de eleições presidenciais é uma<br />
sorte. Estar em Washington na semana em<br />
que terminaram as primárias do Partido<br />
Democrata mais disputadas de sempre, é a<br />
sorte grande. Poder assistir ao comício em<br />
que Hillary Clinton abandonou a corrida e<br />
deu o seu apoio a Barack Obama é um<br />
jackpot. Foi a esse jackpot que os bolseiros da<br />
FLAD puderam assistir in loco: o comício de<br />
7 de Junho foi o momento em que a primeira<br />
mulher que esteve à beira de ser<br />
candidata à Presidência dos EUA deu o seu<br />
apoio ao primeiro afro-americano candidato<br />
à Presidência por um dos principais<br />
partidos. Quatro dias antes, alguns de nós<br />
já tinham “participado” numa das muitas<br />
centenas de festas organizadas por todo o<br />
país pelos apoiantes de Obama para assistir,<br />
POR FiLipe sAntos CostA*<br />
saída de hillary – jackpot para os bolseiros<br />
da FLAD.<br />
em directo, aos resultados das derradeiras<br />
primárias dos democratas. Em ambos os<br />
casos – no ambiente familiar do café<br />
Busboys & Poets e no cenário imponente<br />
do National Building Museum; na festa do<br />
vencedor e na retirada do vencido –, testemunhámos<br />
o melhor da democracia nos<br />
EUA: mais do que discursos inspirados e<br />
inspiradores (que os houve!), o entusiasmo<br />
de uma sociedade civil que, contrariando<br />
a tendência dos últimos anos e a previsão<br />
dos académicos, se mobiliza e arregaça as<br />
mangas para defender aquilo em que acredita.<br />
* expresso<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
FILIPE SANTOS COSTA
o sonho<br />
da emigração<br />
POR FiLipA simAs*<br />
Uma viagem ao passado e ao futuro, ao<br />
mesmo tempo, parece algo pouco real assim<br />
contado, mas a busca de contactos e ligações<br />
com a emigração açoriana na zona da Nova<br />
Inglaterra, nos Estados Unidos da América,<br />
foi sinceramente uma descoberta.<br />
Traduz-se num sentimento misto de<br />
orgulho por quem vingou e de admiração<br />
por aqueles que se arriscaram, em tempos<br />
difíceis, por terras imensas sem qualquer<br />
apoio ou até comunicação.<br />
Viajo, confortável, num jipe conduzido<br />
por motorista, mas ao que parece está<br />
mais perdido do que eu. Vive há mais de<br />
vinte anos nesta região e pouco ou nada<br />
conhece.<br />
Ao longo da viagem apercebo-me que<br />
esta é a realidade de uma boa parte dos<br />
emigrantes do arquipélago.<br />
Vivem a cerca de três horas de Boston e<br />
nunca visitaram a cidade.<br />
soCieDADe<br />
Penso em como o isolamento das ilhas<br />
se prolonga do outro lado do Atlântico.<br />
Num programa organizado minuciosamente<br />
pelo professor Onésimo de Almeida<br />
conhecemos o outro lado. São luso-descendentes<br />
que hoje se destacam na comunidade<br />
onde vivem e até a nível nacional<br />
e internacional.<br />
Para contar o caminho para os sucessos<br />
lusos nem é preciso ir muito longe.<br />
Micaelense de origem, Onésimo Teotónio<br />
de Almeida é hoje professor catedrático<br />
no Departamento de Estudos Portugueses<br />
e Brasileiros da Brown University, em<br />
Providence. Tem tido um papel relevante<br />
na divulgação do português em terras<br />
americanas.<br />
No seu dia-a-dia multiplica-se entre<br />
aulas, conferências, reuniões e esquiços<br />
para a sua próxima publicação. Uma azáfama<br />
própria de quem gosta do que faz.<br />
Confesso que através da caneta de<br />
Onésimo dou por mim a viajar neste<br />
sonho açoriano.<br />
E porque o espaço é curto para uma imensidão<br />
de sentimentos, deixo escrever quem<br />
tão bem soube expressá-los em palavras:<br />
“How far that little candle throws his beams!<br />
So shines a good deed in a weary world.”<br />
(William Shakespeare). * RTP (Açores)<br />
baltimore:<br />
prioridade às notícias locais<br />
POR CristinA LAi men*<br />
A preto e branco, os retratos estão alinhados numa das paredes da enorme recepção.<br />
São pelo menos 15 os repórteres do The Baltimore Sun, vencedores do Prémio Pulitzer,<br />
que formam esta galeria de notáveis. Somos recebidos pela editora do The Sun online,<br />
Mary Hartney, e pelo editor adjunto Harry Merritt, que não escondem as dificuldades<br />
do histórico jornal do estado de Maryland. A pouco mais de 50 quilómetrosde<br />
Washington DC, a redacção do The Baltimore Sun não escapou aos cortes orçamentais nos<br />
últimos anos, mas tenta adaptar-se ao novo desafio que representa a internet. Com uma<br />
média de idade que ronda os 50 anos, os jornalistas passaram a andar com câmaras<br />
de vídeo – 25 por cento dos profissionais já têm o equipamento no saco de<br />
reportagem. São em menor número, trabalham mais e, no final do mês, ganham o<br />
mesmo. Assim obrigam os tempos de crise que se vivem no The Baltimore Sun, que afectam<br />
também a cobertura dos acontecimentos internacionais.<br />
Cada vez mais, a prioridade vai para as notícias locais. É esse o mote do vizinho The<br />
Baltimore Times, um jornal destinado à comunidade negra que representa quase 40 por<br />
cento da população do estado de Maryland. Quando a América pode vir a ter, pela<br />
primeira vez, um Presidente negro, a fotografia a preto e branco de Barack Obama<br />
ocupa toda a primeira página de uma das últimas edições. A redacção jovem e reduzida<br />
do The Baltimore Times destaca as boas notícias que envolvem a comunidade negra –<br />
“daisies and roses”, nas palavras do editor Ron Williams, que adianta: “Quando a<br />
América se constipa, nós apanhamos uma pneumonia.” * TSF<br />
A excelência<br />
no jornalismo<br />
POR CAtArinA neves*<br />
Imagine que está a conduzir um carro e<br />
ao mesmo tempo tem de lhe mudar o<br />
óleo. É impossível, mas é também o exemplo<br />
perfeito para ajudar a compreender o<br />
momento que a comunicação social norteamericana<br />
atravessa.<br />
De acordo com Mark Jurkowitz, director<br />
do Project for Excellence in Journalism, há<br />
dois conceitos que marcam o antes e o<br />
agora: economia e novas tecnologias. Como<br />
se fosse obrigatório definir um a. I. (antes<br />
da Internet) e um d. I. (depois da Internet).<br />
A. I., os chamados velhos media norte-americanos<br />
tinham grandes redacções, um<br />
público fiel e um dia inteiro para preparar<br />
a notícia. D. I., as televisões norte-americanas<br />
perderam um milhão de espectadores<br />
por ano, a publicidade desceu 10 por cento,<br />
só em 2007, e há jornais, como o Boston<br />
Globe, que rescindem contratos com todos<br />
os correspondentes.<br />
É num período, para muitos assustador,<br />
de mudança como o actual que nasce o<br />
Pew Research Center’s Project for Excellence<br />
in Journalism. Trata-se de uma organização<br />
independente que se dedica à investigação<br />
do comportamento dos meios de comunicação<br />
social nos Estados Unidos. Tem como<br />
objectivo fornecer, a quem produz as notícias<br />
e a quem as consome, uma análise<br />
estatística que permita uma melhor compreensão<br />
do que é veiculado pelos media.<br />
O Project for Excellence defende que a<br />
quantificação da realidade é um instrumento<br />
mais útil do que a crítica da mesma.<br />
A página www.journalism.org, que funciona<br />
como um arquivo, permite-nos saber<br />
que, nas 70 mil notícias recolhidas ao longo<br />
do último ano, dois temas marcaram a agenda<br />
dos media: o Iraque e a campanha presidencial.<br />
Descobrimos também que, ao<br />
contrário do que o público parece pensar,<br />
a cobertura da campanha de Hillary Clinton<br />
e de Barack Obama foi equilibrada. E que<br />
Obama foi alvo de um tratamento mais negativo<br />
do que aquele que foi dado a Clinton.<br />
Nestes dias agitados e incertos, é gratificante<br />
saber que jornalistas e investigadores<br />
reúnem, analisam e guardam as estórias<br />
de todos os dias. A bem da memória futura.<br />
Na esperança de que os motores dos<br />
jornais, das rádios e das televisões continuem<br />
a ressoar e que o carro, já com o<br />
óleo mudado, não pare. * SIC<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 65
PATRíCIA FONSECA<br />
Estarão os jornais condenados a desaparecer? Se sobreviverem,<br />
como serão daqui a dez anos? Serão os jornalistas de imprensa<br />
treinados para fazerem vídeos, tirar fotos e recolher sons?<br />
Estivemos quinze dias à volta de uma mesa, numa sala fechada,<br />
em Washington, a reflectir sobre estas e outras questões e a pôr<br />
em causa o jornalismo que praticamos, numa redacção do outro<br />
lado do Atlântico. Os mediadores deste debate foram formadores<br />
do Committee of Concerned Journalists, instituição que reuniu<br />
66<br />
soCieDADe<br />
As notícias<br />
que ficaram no museu<br />
É difícil escolher o que impressiona mais<br />
no <strong>New</strong>seum. Há destroços de repórteres<br />
de guerra, um computador, um caderno,<br />
POR mAriA João GuimArães*<br />
um carro baleado, pedaços de histórias<br />
que acabaram bem ou muito mal (está<br />
lá o passaporte de Daniel Pearl, morto<br />
manchetes de jornais de todo o mundo, expostos no newseum, que noticiaram o 11 de setembro.<br />
uma pausa preocupada<br />
POR CAtArinA Gomes*<br />
pelos taliban). Há fotos que se tornaram<br />
imagens icónicas com uma explicação.<br />
Destas, a mais impressionante será a<br />
fotografia do abutre que, ao longe,<br />
espreita uma criança africana, num estado<br />
de subnutrição extremo, enrolada,<br />
sozinha no chão de poeira, prestes a<br />
morrer. Foi tirada no Sudão, na fome de<br />
1993. A foto, descobre-se no museu das<br />
notícias, tem uma outra história trágica<br />
para além da que vemos na imagem.<br />
O fotógrafo, Kevin Carter, não tocou na<br />
criança – as autoridades do Sudão tinham<br />
dito expressamente que não deveria<br />
haver qualquer contacto por causa do<br />
perigo de contágio. O fotógrafo ganhou<br />
um prémio Pullitzer com esta foto –<br />
tendo recebido de imediato milhares de<br />
cartas indignadas questionando-o porque<br />
não tinha ajudado a criança. Carter acabou<br />
por se suicidar em 1994, pouco<br />
depois de receber o prémio. Esta foto,<br />
esta história, é apenas um pequeno fragmento<br />
de todo o espólio existente no<br />
<strong>New</strong>seum, e este não se esgota no grande<br />
espaço da Pennsylvania Avenue, em<br />
Washington: pode visitar-se o site na net<br />
e ver, por exemplo, primeiras páginas<br />
de jornais de todo o mundo – e, entre<br />
estes, o Público, o Jornal de Notícias, o diário<br />
de Coimbra e o diário As Beiras.<br />
* Público<br />
um conjunto de jornalistas, editores, proprietários e académicos<br />
para pensarem o presente e o futuro da profissão. Nestas manhãs<br />
e tardes de reflexão foi reconfortante verificar que muitos dos<br />
problemas sentidos nos Estados Unidos e em Portugal são idênticos:<br />
fuga de leitores para o jornal online sem que as receitas<br />
publicitárias tenham acompanhado essa transferência, cortes de<br />
pessoal, desinvestimento em histórias de investigação que consomem<br />
mais tempo. Porém, as soluções, embora ainda não<br />
tenham sido encontradas, estão a ser procuradas naquele país há<br />
mais tempo. Uma coisa é certa, o sistema mediático (sobretudo<br />
no caso da imprensa) está em convulsão e vive um momento de<br />
busca desenfreada de um novo paradigma que o salve da ameaça<br />
de um fim iminente. O problema, dizia um dos formadores,<br />
“é que temos de mudar o óleo do carro ao mesmo tempo que<br />
o continuamos a conduzir”. * Público<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Açorianos na política<br />
POR vAnDA menDonçA*<br />
Em Rhode Island, o mais pequeno estado norte-americano, com<br />
apenas um milhão e 50 mil habitantes, os portugueses e luso-<br />
-descendentes representam 10 por cento da população. No<br />
Congresso Estadual esse número sobe para 12 por cento – dos<br />
75 membros da Câmara dos Representantes nove têm origem<br />
portuguesa, enquanto no Senado quatro dos 38 eleitos são de<br />
shiuhhh!!!<br />
You’re visiting<br />
the united<br />
states senate!<br />
POR AnA CAtArinA sAntos*<br />
Peguei no mapa a preto e branco com as<br />
duas mãos e o papel colou-se aos dedos,<br />
húmidos. Tremia ligeiramente. Os olhos<br />
ávidos varreram o esboço do hemiciclo,<br />
enquanto percorria com os dedos os desenhos<br />
das secretárias que tinham os sobrenomes<br />
inscritos. De frente para a mesa<br />
do Vice-Presidente dos EUA, contei, da<br />
esquerda para a direita, “Uma, duas…<br />
Aqui está: Obama na primeira fila, segunda<br />
mesa da esquerda”. Duas filas atrás,<br />
outro nome que busquei desde o início:<br />
Clinton, na última fila. “Hillary, na última<br />
fila?!” Sorri.<br />
Já só faltava um. Respirei fundo e foquei-<br />
-me de novo no mapa. “Ala republicana<br />
no lado direito, McConnel não, Dole também<br />
não, finalmente detectei-o. “Cá está<br />
– McCain na terceira fila, sexta cadeira.<br />
Fantástico!” Tinha identificado os lugares<br />
onde estariam sentados os senadores que<br />
queria ver ao vivo.<br />
Entrei na sala do Senado entusiasmada.<br />
Sem telemóvel, sem máquina fotográfica<br />
ou bloco de notas. Nada. E em silêncio<br />
absoluto. A sessão decorria com apenas<br />
dois solitários senadores. Um, de pé, falava<br />
enquanto apontava para um cartaz; o<br />
outro, sentado no lado oposto, tomava<br />
notas. Todas as outras secretárias estavam<br />
soCieDADe<br />
vazias. Nem sinal de Obama, Hillary ou<br />
McCain…<br />
No Senado norte-americano, os senadores<br />
assistem às sessões nos seus gabinetes através<br />
de circuito interno de vídeo. Na belíssima<br />
sala do Senado estão apenas os membros da<br />
mesa e a peculiar figura, por já tão inusual,<br />
da dactilógrafa. Circula elegantemente pela<br />
sala com os óculos na ponta do nariz, uma<br />
franja de cabelo negro e, sempre de pé, dedilha<br />
velozmente na máquina de escrever que<br />
carrega ao peito.<br />
Habituada, como estou, ao clamor do<br />
Parlamento português, o contraste foi abismal.<br />
Entreabri a boca, quase soltei uma<br />
ascendência lusa. Eleito pela primeira vez em 1998, com apenas<br />
20 anos, Daniel da Ponte foi o segundo mais jovem senador a<br />
assumir o cargo. Filho de pais açorianos, oriundos da ilha de<br />
São Miguel, fez do aumento do ordenado mínimo estadual uma<br />
das suas bandeiras. Em relação à comunidade portuguesa de<br />
Rhode Island, considera que “está muito mais integrada na sociedade<br />
americana do que em Massachusetts”. A educação e a participação<br />
política são, no entanto, os principais desafios. Em sua<br />
opinião, “as ligações entre os Açores e Portugal e os Estados<br />
Unidos são cada vez mais estreitas”. “Entre as novas gerações,<br />
é cada vez mais ‘fashionable’ conhecer as raízes”, diz.<br />
* diário Insular<br />
‘ entrei na sala do senado<br />
entusiasmada. [...]<br />
nada. nem sinal<br />
de obama, hillary<br />
ou mcCain…<br />
’<br />
exclamação. Não tive sequer tempo para<br />
tal. Atrás de mim sussurraram: “Shiuhhh,<br />
M’am. This is the US Senate!” * TSF<br />
Ana Catarina santos (tsF) nos corredores de Capitol hill.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 67<br />
D.R
D.R<br />
Foi cruzando as crateras adormecidas<br />
dos vulcões açorianos que o grupo verdadeiramente<br />
se conheceu. Já sabíamos<br />
os nomes uns dos outros, já tínhamos<br />
trocado algumas palavras de circunstância,<br />
mas foi ali, na ilha de São Miguel,<br />
sob um céu imenso e o mar a perder de<br />
vista, esforçando-nos por alcançar o<br />
cume de uma serra, que criámos os primeiros<br />
laços. Respeitou-se o ritmo de<br />
68<br />
soCieDADe<br />
Azores connection<br />
Já sabíamos os nomes uns dos outros, já tínhamos trocado algumas palavras<br />
de circunstância, mas foi ali, na ilha de São Miguel, sob um céu imenso<br />
e o mar a perder de vista, esforçando-nos por alcançar o cume de uma serra,<br />
que criámos os primeiros laços.<br />
POR pAtríCiA FonseCA<br />
os jornalistas que participaram no programa (com excepção de Filipa simas) e os dois membros da FLAD em são miguel.<br />
quem tinha os músculos mais adormecidos,<br />
estendeu-se a mão a quem temia<br />
as alturas, dividiram-se bolachas e água<br />
com os desprevenidos... Dez quilómetros<br />
à conversa, com pausas para fotografias<br />
e gargalhadas inesperadas, que terminaram<br />
nesta foto de grupo, no cume com<br />
vista para o nordeste da ilha, com as<br />
lagoas rasa e comprida a nossos pés. Ali,<br />
a meio caminho entre o continente<br />
europeu e o americano, descobrimos as<br />
coordenadas da vida de cada um e desenhámos<br />
o primeiro esboço do mapa da<br />
nossa amizade. Seremos sempre “o<br />
grupo de Washington”, onde aprendemos<br />
e crescemos tanto. Mas teremos<br />
sempre de agradecer aos Açores estes<br />
instantes de claridade, que nos abriram<br />
o coração para o que estava para vir.<br />
* Visão<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
portuGAL/euA<br />
só a literatura vence o tempo<br />
“Asas sobre a América”, ciclo de conferências sobre o encontro de escritores portugueses<br />
com autores norte-americanos pretendeu “captar um público jovem”, “apelar à leitura<br />
e ao diálogo”, afirmou Mário Mesquita * , administrador responsável pela área da Cultura.<br />
Breve síntese sobre a misteriosa arte de escrever.<br />
Apresentado por Filipa Melo, o ciclo reuniu<br />
no auditório da FLAD estudantes e<br />
professores universitários, escritores, editores,<br />
tradutores e visitantes de diversas<br />
áreas do conhecimento.<br />
Segundo William Faulkner (1897-1962),<br />
o escritor fará tudo para escrever mesmo<br />
“roubar a própria mãe”. Para concluir um<br />
livro estará disposto a perder a “honra,<br />
o orgulho, a decência, a segurança e a<br />
felicidade”. Afectada, ao longo de toda a<br />
vida, por várias doenças graves, Carson<br />
McCullers (1917-1967) chegará “a atar<br />
uma caneta ao pulso para poder escrever”,<br />
sem parar. Afinal, o que poderá destruir<br />
um artista? “Nada”, dizia Faulkner. Nada,<br />
a não ser “a morte”.<br />
Os oito escritores norte-americanos até<br />
agora apresentados no ciclo “Asas sobre a<br />
América”, para lá das particularidades<br />
biográficas e das diferenças de estilo literário,<br />
partilham o princípio de que escrever<br />
não é viver menos, pelo contrário, sem<br />
a experiência da literatura, o mundo é<br />
insuficiente, e mesmo incompreensível.<br />
Indispensável ao acto criador, a solidão,<br />
levada a um ponto extremo, não é para<br />
eles um empobrecimento mas uma forma<br />
de estar perto da Natureza e da sua humanidade<br />
interior, incluindo nela o pavor,<br />
o caos e a desumanidade implícitas.<br />
Como lembrou Gonçalo M. Tavares, o<br />
escritor é aquele que “repara”, e no caso de<br />
Philip Roth (n. 1933), “mestre da lentidão”<br />
– autor, entre outras obras, de Pastoral<br />
<strong>Americana</strong>, 1997 –, o que se detém a observar<br />
um personagem, considerando o mínimo<br />
pormenor como um indício revelador.<br />
“Escritor omnívoro”, “enraizando a literatura<br />
no quotidiano de cada personagem”,<br />
também Saul Bellow (1915-2005) parte de<br />
um “detalhe” para reflectir sobre “a condição<br />
humana”. “A essa atenção ao detalhe eu<br />
chamaria força erótica”, explicou Rui Zink,<br />
tradutor de Ravelstein 2000, último romance<br />
do Nobel da Literatura 1976.<br />
POR susAnA neves<br />
sem a experiência da literatura o mundo é insuficiente e mesmo incompreensível.<br />
Viver de forma “pacata” como Flannery<br />
O’Connor (1925-1964) não a impediu<br />
de “desenvolver uma vida interior sulfúrica”,<br />
resumiu Pedro Mexia. Enquanto a<br />
progressiva reclusão de Emily Dickinson<br />
(1830-1886) no seu quarto em Amherst<br />
foi, segundo Ana Luísa Amaral, uma<br />
maneira “simbólica”, “dramatizada” e<br />
“ambígua” de comunicar com o mundo<br />
e afirmar a sua personalidade literária.<br />
Pela leitura de excertos de várias obras<br />
– entre elas, O Coração É Um Caçador Solitário,<br />
1940, de Carson McCullers, feita por Inês<br />
Pedrosa, ou através da expressiva interpretação<br />
de Saudação a Walt Whitman, de<br />
Álvaro de Campos, apresentada pelo actor<br />
João Grosso – foi possível verificar que,<br />
na sua essência, a escrita é um organismo<br />
musical, um detonador de imagens,<br />
transversal ao espaço, vencedor desse<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 69<br />
RUI OCHôA
“Infinito Idiota”, que a cáustica McCullers,<br />
entendia ser o “Tempo”.<br />
As palavras têm o poder de “fazer parar<br />
a linguagem”, lembrou Manuel António<br />
Pina a propósito do “imagismo” em Ezra<br />
Pound (1885-1972), ou seja, projectam<br />
uma “aparição” mental em quem as lê.<br />
Ao mesmo tempo “memória” e “matéria<br />
viva”, as palavras não pertencem ao autor,<br />
imbuídas que estão de vida própria, desafiam-no,<br />
evocando um tecido complexo<br />
de “afluências”.<br />
Walt Whitman (1819-1892) não foi a<br />
única influência na invenção de Álvaro de<br />
Campos, defendeu o investigador e tradutor<br />
norte-americano Richard Zenith. Para<br />
Fernando Pessoa, o autor de Folhas de erva,<br />
1855, não foi um “pai” mas um “profeta<br />
irmão” que o ajudou a libertar-se do despotismo<br />
da unicidade para passar a um<br />
nível superior de conhecimento em que<br />
se redescobre numa nova unidade: a de<br />
ser múltiplo.<br />
Ler um escritor é, portanto, ser contaminado<br />
e iniciado pela sua rede de influências<br />
ou “afluências” artísticas e literárias,<br />
70<br />
portuGAL/euA<br />
perder-se nele e percebê-lo para lá de<br />
qualquer apriorismo.<br />
“O facto de viver no Sul não o torna<br />
mais compreensível”, justificava Flannery<br />
O’Connor, feroz opositora da “literatura<br />
documental”. Yoknapatawpha, território imaginado<br />
por Faulkner, poderá nunca ser<br />
encontrado apesar de ser situado no<br />
Mississipi.<br />
Alguns dos debates mais participados<br />
de “Asas sobre a América” centraram-se<br />
no clássico binómio livre arbítrio vs predestinação.<br />
Na opinião de Lídia Jorge, o<br />
autor de O Som e a Fúria, 1931, William<br />
Faulkner, considerando “a fragilidade do<br />
Homem” tendeu a colocá-lo “face a uma<br />
Totalidade com a qual é preciso nego-<br />
ciar”. Para definir a noção de liberdade<br />
em O’Connor, a americanista Teresa Alves<br />
leu na introdução de Sangue Sábio, 1962:<br />
“O livre arbítrio não significa uma única<br />
vontade mas muitas vontades a agirem<br />
conflituosamente numa pessoa.” Por isso,<br />
a “integridade de alguém reside no que<br />
esse alguém não é capaz de fazer”. Em<br />
suma: “A liberdade é um mistério.”<br />
As abusivas “regularizações” da obra de<br />
Emily Dickinson, desde a publicação dos<br />
primeiros poemas no jornal Springfield daily<br />
Republican, ainda durante a vida da escritora,<br />
até às sucessivas edições póstumas,<br />
reveladas por Ana Luísa Amaral, são um<br />
exemplo de como a integridade de uma<br />
obra pode ser ameaçada por preconceitos<br />
‘ Ler um escritor é ser contaminado e iniciado<br />
pela sua rede de influências ou “afluências”<br />
artísticas e literárias, perder-se nele e percebê-lo<br />
para lá de qualquer apriorismo.<br />
’<br />
Apresentação de Lídia Jorge na mesa com Filipa melo, coordenadora do ciclo “Asas sobre a América”. Ao fundo, a imagem de William Faulkner.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009<br />
RUI OCHôA
de ordem machista, linguística e epistemológica.<br />
Ser “o único canguru entre a<br />
beleza” custou a Dickinson a reclusão e<br />
a censura, mas graças à persistência, em<br />
escrever e fazer-se publicar também através<br />
de cartas, a força do seu talento acabaria<br />
por reemergir intacta na edição<br />
fac-similada da sua obra, em 1991.<br />
“Escrever, tal como o entendo, é uma<br />
forma de ser”, afirma Manuel António Pina,<br />
para quem a poesia, à semelhança do autor<br />
de Os Cantos, 1925-1969, e Jorge Luis<br />
Borges, tem a ver com “a música”, “a entoação”,<br />
“uma certa respiração da frase”.<br />
O mistério da literatura é como o mistério<br />
do mundo, escapa às fórmulas, antecipa<br />
e projecta novos leitores.<br />
um hino À poesiA<br />
Apesar de a leitura das obras de Whitman<br />
anteceder a criação heteronímica de<br />
Fernando Pessoa, e de o “acariciador de<br />
vida” ter provocado uma perturbação<br />
“absoluta” ao autor de Mensagem, 1934,<br />
influenciando-o a nível literário e estético<br />
mas também numa ordem mais “secreta”,<br />
ou seja, libertando-o “sensorial e sexualmente”,<br />
Richard Zenith defendeu que os<br />
heterónimos pessoanos resultam de uma<br />
amálgama de influências, das quais se<br />
destaca a influência literária arcana de<br />
Shakespeare.<br />
Saudação a Walt Whitman, assinado por Álvaro<br />
de Campos, em 1915, resposta ao poema<br />
canto Salut au Monde!, 1856, de Whitman,<br />
seria uma espécie de “poema de solidariedade”<br />
de Pessoa a um escritor “profeta<br />
irmão”, um “hino à poesia”, “uma paródia”,<br />
“um pastiche”, “um estupro”, feito<br />
pelo “hiper consciente” Fernando Pessoa.<br />
Interessado no estilo de escrita do autor<br />
norte-americano, apreciando, sobretudo,<br />
a sua atitude “inclusiva” face a todas as<br />
manifestações do real, Pessoa não reconhecia<br />
na consciência uma fonte exponencial<br />
de felicidade. E em vez de “acariciador de<br />
vida” como Whitman, cultivava a “arte do<br />
fingimento”. Existia “gloriosamente pela<br />
imaginação”.<br />
DA impossibiLiDADe<br />
em DeFinir A AmériCA<br />
No debate subordinado ao tema “Ensino<br />
da Literatura Norte-<strong>Americana</strong> em<br />
Portugal”, os americanistas Carlos<br />
Azevedo (Universidade do Porto), Teresa<br />
Alves (Universidade de Lisboa) e Mário<br />
Avelar (Universidade Aberta) defenderam<br />
que a América não é tanto uma “fabricadora<br />
de mitos”, opinião expressa pelo<br />
ensaísta Eduardo Lourenço, na primeira<br />
portuGAL/euA<br />
“escrever, tal como o entendo, é uma forma de ser”, manuel António pina e Filipa melo.<br />
sessão deste ciclo de conferências [ver<br />
Paralelo n.º 2] mas, sobretudo, um espelho<br />
onde se têm projectado algumas das expectativas<br />
europeias. No ano em que se celebra<br />
o cinquentenário do ensino da<br />
literatura norte-americana em Portugal,<br />
os aspirantes a americanistas poderão<br />
contar com múltiplas “leituras das narrativas<br />
fundadoras da identidade americana”,<br />
“o questionamento dos clássicos”<br />
e o estudo de alguns dos “temas preferenciais”:<br />
a “questão da identidade”, “o<br />
herói rebelde”, a “discrepância entre a<br />
promessa e a realidade”, “o desejo de<br />
evasão”, “a fuga” e a “viagem”. O “multiculturalismo”<br />
e a “interinfluência das<br />
artes” nos Estados Unidos são ainda contemplados<br />
nos programas universitários<br />
portugueses porque sem esta abordagem<br />
transversal não é possível compreender<br />
“a ideia da América”, na opinião de<br />
Teresa Alves, um “mundo que não acaba”<br />
e por isso é indefinível.<br />
*Público, 21 de Fevereiro de 2008<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 71<br />
RUI OCHôA
Twentieth Century Portugal:<br />
A Historical Overview<br />
José miguel sardica<br />
Universidade Católica Editora, 008<br />
7<br />
Portugal<br />
contemporâneo<br />
POR mAriA ináCiA rezoLA<br />
Em 2003, António Costa Pinto leva a cabo<br />
uma iniciativa relativamente inédita no<br />
panorama nacional: reúne contributos de<br />
académicos de diferentes áreas de especialização<br />
(história, economia, política,<br />
cultura, artes, etc.) e publica, em Nova<br />
Iorque, Contemporary Portugal. Politics, Society<br />
and Culture 1 . Esta ambiciosa e bem conseguida<br />
obra propunha-se fornecer a especialistas,<br />
estudantes e ao público em geral<br />
uma visão do Portugal contemporâneo,<br />
abordando, para o efeito, aspectos tão<br />
diversos como a política, questões coloniais,<br />
relações internacionais, economia,<br />
movimentos migratórios, mudança social,<br />
literatura, arte, etc. Nesse mesmo ano,<br />
Manuel Baiôa, Paulo Jorge Fernandes e<br />
Ribeiro de Meneses publicam um excelente<br />
balanço, também em língua inglesa,<br />
sobre a história política do século XX português<br />
2 . Ainda que com âmbitos diferentes,<br />
estes dois trabalhos acabaram por se<br />
tornar indispensáveis a todos os investigadores<br />
estrangeiros que desejam iniciar<br />
um estudo sobre o Portugal contemporâneo<br />
ou acompanhar os mais recentes<br />
desenvolvimentos académicos operados<br />
neste domínio.<br />
Apesar destes progressos, o público não<br />
especialista continuava a não dispor de uma<br />
obra de síntese que lhe permitisse ter uma<br />
visão rápida mas rigorosa da história recente<br />
de Portugal. É essa, em nosso entender,<br />
a grande lacuna que Twentieth Century Portugal,<br />
A Historical Overview vem colmatar. Mas não<br />
é esse apenas o seu mérito.<br />
Livros<br />
estante FLAD<br />
O seu autor, José Miguel Sardica, há<br />
muito que nos habituou a trabalhos de<br />
inegável e reconhecida qualidade 3 . Não é<br />
por acaso que no início do estudo tem<br />
preocupação de esclarecer o seu âmbito,<br />
objectivos e limitações. O seu propósito<br />
– familiarizar um público “generalista”<br />
estrangeiro com a história contemporânea<br />
portuguesa – e as naturais “contingências”<br />
de espaço de uma obra deste tipo, levaram-no<br />
a optar por se situar no plano da<br />
história institucional e política, recolhendo<br />
e sintetizando as investigações que<br />
neste âmbito se têm produzido.<br />
Tendo como ponto de partida os três grandes<br />
ciclos do século XX português –<br />
República (1910-1926), Ditadura (1926-<br />
-1974) Democracia (1974-década de<br />
1980) – Sardica estrutura o seu trabalho<br />
em 20 capítulos de maneira a clarificar<br />
com maior precisão as suas evoluções<br />
e momentos de viragem. A opção pela<br />
síntese – não se espere encontrar novos<br />
factos ou pesquisa original, alerta o<br />
autor – não o impede de assumir uma<br />
posição quanto a alguns dos aspectos mais<br />
polémicos da história recente de Portugal.<br />
‘ posições polémicas, reveladoras<br />
do domínio do tema e capacidade<br />
reflexiva do autor, que apenas<br />
contribuem para tornar mais<br />
aliciante a leitura da obra.<br />
’<br />
Veja-se, a este respeito, o seu posicionamento<br />
sobre a democraticidade do regime<br />
republicano português, a família política<br />
em que situa a ditadura salazarista ou o<br />
papel que atribui a alguns dos protagonistas<br />
da Revolução portuguesa. Posições<br />
polémicas, reveladoras do domínio do<br />
tema e capacidade reflexiva do autor, que<br />
apenas contribuem para tornar mais aliciante<br />
a leitura da obra.<br />
A sinopse é complementada com quatro<br />
importantes anexos – acrónimos, cronologia,<br />
biografias e bibliografia – em que,<br />
mais uma vez, o autor deixa patente a sua<br />
mestria. Apesar de a sua área de especialidade<br />
ser o século XIX em boa hora aceitou<br />
este difícil desafio.<br />
Uma observação apenas, relativamente<br />
secundária, sobre as opções gráficas e a<br />
conhecida resistência dos editores às notas<br />
de rodapé. Mais uma vez, como acontece<br />
em muitas outras obras, a estratégia de<br />
“encaixar” as notas entre o final do corpo<br />
do texto e os anexos não foi, em nosso<br />
entender, a melhor.<br />
Balanço final: um livro há muito esperado<br />
que cumpre bem os seus propósitos<br />
de divulgação da história contemporânea<br />
a um público estrangeiro generalista.<br />
1 Pinto, António Costa (ed.), Contemporary Portugal. Politics, Society<br />
and Culture. Nova Iorque: Columbia University Press, 2003.<br />
2 Baiôa, Fernandes, e Meneses, Ribeiro de, “The political<br />
history of twentieth-century Portugal”, in e-JPH, vol. 1,<br />
n.º 2, Inverno de 2003, pp. 2-18.<br />
3 Doutor em História, docente da Faculdade de Ciências<br />
Humanas da Universidade Católica Portuguesa e membro<br />
do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura dessa<br />
mesma universidade, é autor de diversos artigos em<br />
revistas especializadas de história e diversos livros sobre<br />
história política, institucional e cultural de Portugal. Os<br />
seus estudos sobre o franquismo, a regeneração, ou as<br />
biografias de José Maria Eugénio de Almeida e o duque<br />
de Ávila e Bolama são obras incontornáveis da historiografia<br />
contemporânea portuguesa.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Vulcão dos Capelinhos<br />
– Memórias 1957- 007<br />
victor hugo Forjaz (editor-coordenador)<br />
OVGA – Observatório Vulcanológico<br />
e Geotérmico dos Açores,<br />
Ponta Delgada, 007<br />
Sobre o vulcão<br />
POR FrAnCisCo beLArD<br />
Jornalista freelance<br />
Esta obra colectiva de 826 páginas pesa<br />
cerca de três quilos, mas o seu peso científico<br />
e historiográfico é muito superior às<br />
quantidades enunciadas. A sua apresentação<br />
pública a 27 de Setembro de 2007 na<br />
Sociedade Amor da Pátria, na cidade da<br />
Horta, comemorou a erupção dos<br />
Capelinhos cinquenta anos antes, acontecimento<br />
natural e histórico que como tal<br />
foi sentido na altura, emocionando os<br />
Açores e o País, e tendo consequências<br />
próprias de um abalo que não era apenas<br />
sísmico. O alarme causado pelo despertar<br />
do vulcão (só adormeceria por volta de 24<br />
de Outubro de 1958) ultrapassou as<br />
dimensões do mero susto, embora grande;<br />
muitas pessoas emigrariam, nomeadamente<br />
para os Estados Unidos (ver o recente<br />
volume coordenado por Tony Goulart,<br />
Capelinhos: A Volcano of Synergies – Azorean emigration<br />
to America, 2008, San José: Portuguese<br />
Heritage Publications of California,<br />
452 pp.). Casas ficaram sob lava e cinzas<br />
(massa que no litoral viria a conformar<br />
uma península, aumentando a área da ilha),<br />
jornais, rádios, fotografias, filmes, artigos<br />
e livros repercutiram as alterações geomorfológicas<br />
no local e o que daí resultou para<br />
a paisagem e para o tecido social. Depois<br />
houve obras de construção e reconstrução,<br />
e estudos científicos da tectónica e do vulcanismo<br />
das ilhas, dando utilidade ao fenómeno;<br />
sem isso ficaria confinado a pesados<br />
custos, ainda que sem perda de vidas. Victor<br />
Livros<br />
Hugo Forjaz, então adolescente, mudou de<br />
projecto profissional e veio a ser o nome<br />
porventura mais conhecido dos geólogos<br />
e vulcanólogos que aprofundaram e divulgaram<br />
a lição dos Capelinhos, coisa que<br />
continua a fazer, como comprova o volume<br />
identificado, ao qual pude aceder num dos<br />
momentos comemorativos (ver expresso/<br />
”Actual”, 13 de Outubro de 2007).<br />
Prefaciado pelo presidente do Governo<br />
Regional dos Açores, Carlos M. Martins do<br />
Vale César, o livro recolhe contributos<br />
importantes, como (sigo o índice e perdoem-me<br />
omissões) os de Júlio Quintino<br />
(que assinou o relatório do Serviço<br />
Meteorológico Nacional sobre a erupção<br />
submarina ao largo da ponta oeste do Faial<br />
e a cerca de um quilómetro da costa, junto<br />
aos ilhéus dos Capelinhos, e mais tarde o<br />
levantamento geomagnético da<br />
ilha para o aludido SMN),<br />
Frederico Machado (engenheiro<br />
e director de Obras Públicas a<br />
quem se devem, em 1958-1959,<br />
notícias científicas preliminares),<br />
Orlando Ribeiro e Raquel Soeiro<br />
de Brito, John Scofield, Haroun<br />
Tazieff, A. de Castello Branco, F.<br />
Moitinho de Almeida, Georges<br />
Zbyszewski, Octávio da Veiga<br />
Ferreira, C. F. Torre de Assunção,<br />
José Custódio de Morais, José<br />
Correia da Cunha, J. A. Sacadura<br />
Garcia, Viriato Campos, Adrian F.<br />
Richards et alia, A. de Mendonça<br />
Dias, W. H. Parsons, J. W. Mulford,<br />
Victor Hugo Forjaz, Aaron C.<br />
Waters et alia, Guy Camus, Alwyn<br />
Scarth e Jean-Claude Tanguy,<br />
Ricardo Madruga da Costa, Zilda<br />
de Melo França, e ainda Filipe M.<br />
Porteiro, Frederico Cardigos,<br />
Helder Fraga e equipa do projecto<br />
OGAMP, etc. O volume inclui<br />
fotografias a preto e branco (coevas)<br />
e a cores (mais recentes),<br />
mapas, esboços geológicos e<br />
outros registos documentais, a<br />
que acrescem testemunhos de ou<br />
sobre uma dúzia de observadores<br />
e investigadores do fenómeno,<br />
relatórios, recortes de imprensa...<br />
Não ignoro que esta recensão, breve para<br />
a dimensão do objecto e sobretudo para<br />
o seu alcance histórico e científico, padece<br />
de aridez. Que esta não vos iluda; o<br />
livro contém informação rica e diversificada,<br />
apta a seduzir os leigos que quase<br />
todos somos, ficando a ser obra de referência<br />
e consulta sobre contextos geofísicos,<br />
geográficos e sociológicos que a<br />
natureza e a história apontam como problemas<br />
permanentes dos Açores, ou seja,<br />
também nossos como povo, e um legado<br />
para a comunidade científica internacional.<br />
“Capelinhos foi um mundo de aprendizagens”,<br />
escreve V. H. Forjaz na página<br />
821 do livro que com boas razões ele acha<br />
curto, em epílogo que une retrospectiva<br />
e prospectiva, no ponto da situação de um<br />
caso não encerrado.<br />
‘ [...] o livro contém informação<br />
rica e diversificada, apta a seduzir<br />
os leigos que quase todos somos.<br />
’<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 73
Drawings in Spain<br />
and Portugal<br />
Revista Master Drawings, vol. 45,<br />
nº 3, Outono de 007<br />
Master Drawings Association,<br />
Nova Iorque<br />
74<br />
desenhos<br />
portugueses<br />
POR CArLos mourA<br />
docente de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais<br />
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa<br />
Observava Bernard Berenson, na introdução<br />
desse autêntico monumento de connoisseurship<br />
que é o seu livro sobre os<br />
desenhos dos pintores florentinos, que o<br />
conhecimento sobre a autoria de um qualquer<br />
desenho nunca pode ser estritamente<br />
científico. Porque não mensurável, nem<br />
reversível ou demonstrável, tal conhecimento<br />
é, no máximo, apenas plausível.<br />
Donde a extrema latitude do debate crítico<br />
neste domínio, necessariamente atribuicionista<br />
dado o carácter fragmentário<br />
e aleatório das peças em estudo. Visando<br />
a elaboração do corpus dos diferentes artistas<br />
do passado, o esclarecimento dos nexos<br />
entre a sua obra gráfica e a pintura, a<br />
escultura ou outras realizações estéticas,<br />
a reconstituição de colecções e o seu significado<br />
cultural, ele supõe um elevado<br />
grau de especialização em constante descoberta<br />
e revisão. Os núcleos dos museus,<br />
bibliotecas, fundações e colecções (públicas<br />
e privadas), além das obras avulsas<br />
constantemente lançadas no mercado,<br />
integram assim todo um campo de investigação<br />
pertencente à história da arte.<br />
Ocupando nele um lugar cimeiro, a<br />
revista Master drawings é seguramente a<br />
mais importante publicação internacional<br />
sobre a matéria. Herdeira da Old Master<br />
drawings anterior à II Guerra Mundial,<br />
congrega no seu corpo redactorial e de<br />
Livros<br />
colaboradores os mais reputados<br />
especialistas mundiais. Os<br />
artigos e as recensões críticas<br />
nela publicados são, por isso,<br />
trabalho de ponta e uma referência<br />
não apenas para o académico,<br />
mas também para o<br />
público culto amante da arte.<br />
Dedicado a Espanha e Portugal,<br />
o número de Outono de 2007<br />
conferiu, pela primeira vez,<br />
algum destaque ao estudo dos<br />
desenhos de artistas portugueses<br />
ou de estrangeiros conservados<br />
em colecções nacionais. Com<br />
particular realce para o contributo<br />
de Nicholas Turner, e as<br />
novas revelações sobre Vieira<br />
Lusitano trazidas em excelente<br />
e bem documentado artigo.<br />
Autor de variados livros,<br />
nomeadamente sobre o desenho<br />
italiano, conservador no<br />
Departamento de Desenhos e<br />
Gravuras do British Museum e<br />
curador dos desenhos do Paul<br />
Getty Museum de Los Angeles, Turner<br />
ocupara-se já, em 2000, do catálogo da<br />
exposição dos desenhos dos Mestres europeus<br />
em Colecções Portuguesas (Cambridge e Lisboa)<br />
e colaborara no da exposição de Vieira<br />
Lusitano (Museu de Arte Antiga). Daí o<br />
interesse pela obra gráfica do pintor português,<br />
cuja prática italiana, próxima da<br />
técnica do desenho à pena e aguada de<br />
Francesco Trevisani e das composições a<br />
giz de Benedetto Luti, originou uma vasta<br />
produção, longe de estar completamente<br />
identificada. Dois estudos para um Martírio<br />
de São Lourenço, em Acireale (Catânia) e<br />
Liverpool, são assim propostos para o<br />
primeiro período romano de Vieira,<br />
enquanto uma Coroação de d. João V (antes<br />
atribuída a Joseph Werner, o Jovem) e uma<br />
alegoria (considerada de um anónimo<br />
florentino), ambas parisienses, ingressam<br />
igualmente no catálogo do artista, a par<br />
de outras folhas mais tardias. Contam-se,<br />
entre estas, uma notável Minerva (colecção<br />
particular) e um Orfeu, de Würzburg, dado<br />
até agora ao círculo de Carlo Maratta, com<br />
o qual alguns dos seus desenhos devem<br />
andar confundidos. Como as sete folhas<br />
da Albertina de Viena, em que se inclui<br />
uma versão da Alegoria da Pintura, independentemente<br />
de outras relacionadas sobretudo<br />
com gravuras.<br />
Num artigo mais breve, Eduardo Batarda<br />
Fernandes divulga ainda a existência da<br />
colecção da Faculdade de Belas-Artes do<br />
Porto, e das novas aquisições de desenhos<br />
italianos, espanhóis e holandeses que o<br />
apoio mecenático para ela permitiu encaminhar.<br />
Havendo a registar, por último,<br />
uma notícia crítica sobre os desenhos de<br />
Fernando Calhau, presentes na retrospectiva<br />
intitulada “Convocação I e II”, realizada<br />
em 2006-2007 no Centro de Arte<br />
Moderna da <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian,<br />
em Lisboa. Da autoria de Philippe-Alain<br />
Michaud, discorre sobre o universo poético<br />
deste artista contemporâneo, falecido<br />
recentemente, e as suas composições sobre<br />
papel de registos cromáticos totalizantes<br />
(também na colecção da FLAD).<br />
E por aqui se fica a parte relativa à arte<br />
portuguesa, um tanto desequilibrada em<br />
relação à espanhola, sempre mais visível<br />
pelo respectivo acervo e produção<br />
bibliográfica.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Voices from the Islands:<br />
An Anthology of Azorean<br />
Poetry<br />
John M. Kinsella<br />
(Selection and translation)<br />
007, Gávea-Brown Publications<br />
Vozes do mar<br />
POR nuno CostA sAntos<br />
O cliché que associa os Açores à poesia<br />
não é, sabemo-lo, descabido. A verdade<br />
é que, desde há muito, tem nascido no<br />
arquipélago vasta produção poética,<br />
de diferentes tonalidades e vocações,<br />
muita dela marcada pela sempre<br />
invocada melancolia brumosa<br />
das ilhas. Outra ideia recorrente (de<br />
quem conhece os dois lugares,<br />
claro) que não é de todo delirante<br />
é aquela que faz uma ponte entre<br />
os Açores e a Irlanda – em termos<br />
paisagísticos e de universo. Voices<br />
from the Islands, uma antologia de<br />
poesia açoriana organizada por um<br />
irlandês, faz pois confluir dois<br />
lugares-comuns que fazem sentido.<br />
A edição é da Gávea-Brown, editora<br />
que tem publicado várias antologias<br />
poéticas, de Eugénio de<br />
Andrade a Jorge de Sena, passando<br />
pelos açorianos Emanuel Félix e<br />
José Martins Garcia.<br />
Na introdução, John Kinsella faz<br />
um retrato equilibrado e interessante<br />
das características essenciais<br />
da poesia – e da literatura – açoriana.<br />
Kinsella encontra alguma<br />
unidade nos temas – o mar, a emigração<br />
e (sobretudo) o isolamento<br />
insular, criador de um território<br />
literário autónomo e de uma linguagem<br />
própria. Nomes como os<br />
de Pedro da Silveira, Onésimo<br />
Teotónio de Almeida, Eduardo<br />
Livros<br />
Bettencourt Pinto e Diniz<br />
Borges são referidos justamente<br />
como responsáveis<br />
pelo aprofundamento<br />
da ideia de “poesia açoriana”,<br />
quer através da<br />
recolha de textos quer<br />
através do pensamento e<br />
da reflexão.<br />
Há uma referência importante ao poeta<br />
Roberto de Mesquita, florentino que,<br />
tendo vivido no século XIX na ilha das<br />
Flores, escreveu uma poesia influenciada<br />
pela densidade e pela pose de Baudelaire<br />
e Verlaine. Mas também se recordam<br />
Côrtes-Rodrigues, o homem do Orpheu<br />
nos Açores, a geração do seminário de<br />
Angra do Heroísmo, publicações como<br />
Gávea e Atlântida e o desenho que os emigrantes<br />
deram ao lirismo das ilhas. São<br />
trazidas ao texto as ideias de “açoriani-<br />
‘ são trazidas ao texto as ideias de “açorianidade”<br />
e a polémica (estafadíssima, diga-se)<br />
em volta da questão da “literatura açoriana”,<br />
bem resolvida num parágrafo aqui transcrito<br />
da autoria de onésimo Almeida.<br />
dade” e a polémica (estafadíssima, diga-<br />
-se) em volta da questão da “literatura<br />
açoriana”, bem resolvida num parágrafo<br />
aqui transcrito da autoria de Onésimo.<br />
Mas também se fala de “portugalidade”.<br />
Um sentimento que se resume numa boa<br />
frase de um dos poetas aqui presentes, o<br />
emigrante Heitor Aghá-Silva: “Só sei chorar<br />
em português” (curiosamente a palavra<br />
“saudade” não é sempre traduzida da<br />
mesma maneira – umas vezes aparece<br />
como “yearning”, outras como “nostalgia”).<br />
Fica a faltar na introdução<br />
uma breve nota sobre os “novos”<br />
– alguns deles aqui representados,<br />
como Mário Cabral e Rui Machado,<br />
e apesar de tudo reveladores de uma<br />
especificidade literária própria, a necessitar<br />
de enquadramento.<br />
O melhor do livro está claramente<br />
no prazer com que se lê a versão<br />
em inglês de alguns poemas maiores<br />
da poesia açoriana – por exemplo,<br />
“As raparigas lá de casa”, de<br />
Emanuel Félix, resulta muitíssimo<br />
bem na versão “The girls at home”.<br />
Outro exemplo: “Eu não sou quem<br />
fiquei; o meu delito”, de José<br />
Martins Garcia, continua a ser perfeito<br />
como “I am not the one who<br />
stayed; my crime”. Fica claro neste<br />
livro que os poetas açorianos são,<br />
nos seus melhores representantes,<br />
excelentes e maiores. O pior está<br />
nalgumas escolhas de autores e poemas<br />
menos consistentes e mais<br />
questionáveis – que têm o natural<br />
efeito de desequilibrar o retrato.<br />
Voices from the Islands, por ter os poemas<br />
no original e em inglês, pode<br />
também funcionar como uma boa<br />
antologia para quem, no continente,<br />
nada conhece da poesia açoriana<br />
além dos nomes clássicos.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 75<br />
’
The Americans<br />
robert Frank<br />
Steidl, 008. Fotografias de Robert<br />
Frank e prefácio de Jack Kerouac<br />
(1ª edição, 1958)<br />
76<br />
Retratos<br />
da América<br />
POR CLArA pinto CALDeirA<br />
Em 1958, a Guerra Fria dominava o mundo,<br />
Eisenhower era o Presidente dos Estados<br />
Unidos, a corrida espacial estava lançada,<br />
ainda existia segregação racial naquele país,<br />
e os grandes movimentos sociais estavam<br />
por vir.<br />
Livros<br />
Nesse ano, Robert Frank publicava a obra,<br />
agora reeditada, The Americans – um retrato<br />
da América profunda, que resultou de uma<br />
viagem de vários meses por todos os cantos<br />
do país que o fotógrafo suíço escolheu para<br />
viver, no início da década. Como afirma Jack<br />
Kerouac, que prefaciou a obra, ao abrir estas<br />
páginas feitas a preto e bran-<br />
co, e outros contrastes, “não<br />
se sabe se uma jukebox é mais<br />
triste do que um caixão”.<br />
Robert Frank retrata um país<br />
de cowboys, de bandeiras patrióticas,<br />
de carros modernos,<br />
do advento da televisão, mas<br />
também de fissuras entre<br />
raças, assimetrias sociais e<br />
feridas de pobreza. Embora algumas imagens<br />
nos confrontem com símbolos onde a alma<br />
existe sem a presença humana, a maioria<br />
das fotografias seleccionadas por Robert<br />
Frank têm gente dentro. Ou melhor, americanos.<br />
Alguns anos antes de conseguir a<br />
bolsa do Guggenheim que lhe permitiu<br />
realizar este livro, Robert Frank declarou à<br />
revista Life o que queria transmitir ao público<br />
com as suas imagens. Desejava que, ao<br />
olhar uma fotografia sua, as pessoas se sentissem<br />
como quando querem ler um bom<br />
verso duas vezes. Kerouac dá-lhe razão,<br />
‘ embora algumas imagens nos confrontem<br />
com símbolos onde a alma existe<br />
sem a presença humana, a maioria das<br />
fotografias seleccionadas por robert Frank<br />
têm gente dentro. ou melhor, americanos.<br />
’<br />
ao classificar este livro como um poema,<br />
acrescentando que muitos livros de poesia<br />
podem ser escritos sobre ele. Trata-se de um<br />
olhar humano e delicado sobre a diversidade<br />
americana do final dos anos de 1950,<br />
uma viagem por dentro da alma de um país<br />
em mutação.<br />
Robert Frank dedicou-se também ao cinema,<br />
abandonando temporariamente a fotografia.<br />
Acompanhou a geração beatnik,<br />
documentando a sua realidade e protagonistas.<br />
As suas afinidades com Kerouac,<br />
nome fundamental deste movimento, estenderam-se<br />
à tela, num filme narrado pelo<br />
escritor (Pull Miss daisy). Entre várias obras<br />
consideradas marcos do cinema avant-gard,<br />
destaca-se o polémico documentário sobre<br />
uma digressão dos Rolling Stones, que teve<br />
algumas restrições de exibição, suscitadas<br />
pela própria banda. A ligação à sétima arte<br />
parece natural ao folhear The Americans,<br />
em que a linguagem cinematográfica e<br />
documental está já presente. Sempre atento<br />
aos aspectos mais controversos da realidade,<br />
e sem observar restrições, a vida de Robert<br />
Frank divide-se, desde então, entre estas duas<br />
formas artísticas. Em 1996 foi distinguido<br />
com o prémio do Hasselblad Center, na<br />
Suíça, seu país natal.<br />
Reeditada pela Steidl, em 2008, com prefácio<br />
original de Jack Kerouac, The Americans<br />
mantém-se uma obra intemporal. Porque,<br />
para compreender o presente, é importante<br />
contemplar o passado, décadas depois do<br />
final dos anos de 1950, o legado fotográfico<br />
do american trotter continua a ser poético.<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
Ainda hoje não é difícil que os desenhos de António Sena<br />
levantem dúvidas em muitos de nós relativamente ao seu estatuto.<br />
À primeira vista poderiam passar por meras folhas de<br />
rascunho, lugares onde alguém se demorou a organizar notas<br />
avulsas, como se num aturado processo de negociação do pensamento.<br />
Estão lá os números e as cifras, os seus indiscerníveis<br />
segredos, a medir esforços na rápida caligrafia. Estão lá as hesi-<br />
CoLeCção FLAD<br />
António sena<br />
Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511<br />
tações e os recuos, na sua energia insurgente, concretizada<br />
naquele paradoxo tão comum de querer apagar riscando por<br />
cima. Estão lá manchas, nódoas, borrões e toda a espécie de<br />
sinais e indícios que normalmente não nos ocorreria mencionar<br />
no inventário das coisas prováveis numa obra de arte.<br />
Também por isso, é absolutamente legítimo que tenhamos<br />
dúvidas quanto ao estatuto destes desenhos – que os encaremos<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 77<br />
FOTOGRAFIA
como provocações e que lhes respondamos na exacta proporção<br />
do confronto que estimulam. É legítimo, e é sobretudo<br />
desejável, ou não fossem estas provocações parte integrante das<br />
obras que aqui se apresentam, e cuja singularidade deve tanto<br />
ao universo dos interesses particulares de António Sena, quanto<br />
ao contexto artístico que as viu nascer.<br />
Iniciada em meados da década de 1960, a obra de António<br />
Sena cedo se sintonizou com as propostas da arte internacional<br />
da época. As influências que a pop art, o informalismo, a arte<br />
conceptual ou mesmo a arte minimal tiveram nos primeiros<br />
anos de produção deste artista, materializaram-se em pinturas<br />
e desenhos que, lenta mas objectivamente, testaram uma síntese<br />
possível para esta diversidade de propostas e enquadramentos<br />
formais. A incorporação de iconografias e processos do<br />
quotidiano, conjugada com a procura sistemática da requalificação<br />
do gesto, da instrumentalização do signo, e da poética<br />
da repetição, reuniram-se no estabelecimento de um programa<br />
estético que extraiu desta súmula a sua identidade própria.<br />
Os desenhos que aqui encontramos são um testemunho directo<br />
desta identidade e deste esforço de síntese. Na sua impressio-<br />
António Sena nasceu em Lisboa em 1941. Tendo iniciado o<br />
seu percurso académico no Instituto Superior Técnico e na<br />
Faculdade de Ciências de Lisboa, Sena abandona a formação<br />
na área científica para se inscrever na Sociedade Cooperativa<br />
de Gravadores Portugueses. Em 1965 parte para Londres<br />
como bolseiro da <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian, cidade<br />
onde frequenta a St. Martin’s School of Arts, e onde reside<br />
até 1975.<br />
Regressado a Lisboa, Sena conjuga a prática artística com a<br />
78<br />
CoLeCção FLAD<br />
nante contenção de meios, não só podemos identificar os<br />
resíduos de toda esta conjuntura, mas também o carácter idiossincrático<br />
da obra de Sena, e uma vitalidade pouco frequente<br />
em obras do chamado modernismo tardio. Realizadas em 1979,<br />
estas peças poderiam certamente servir para ilustrar as oscilações<br />
ocorridas no advento do pós-modernismo. Contudo, a sua energia<br />
é claramente moderna, feita de extremadas contradições que<br />
procuram coabitar no espaço da obra. Porque, se olharmos bem,<br />
estes desenhos inscrevem-se em folhas que parecem meras páginas,<br />
compõem-se de linhas que por vezes são traços, usam uma<br />
cor que nunca domina, promovem um rigor que nunca ordena,<br />
prometem uma mensagem que não comunica, e estão terminados<br />
na forma de um projecto. No fundo, estes desenhos são arte<br />
sem o parecer. E se é por isso que são provocações, é também<br />
por isso que são relevantes: pelo quanto resistem ao paradigma,<br />
pelo quanto desafiam as nossas expectativas e põem a nu as bases<br />
do nosso juízo estético e o índice de liberdade que lhe concedemos.<br />
bruno mArChAnD<br />
actividade docente, tendo sido professor de Pintura no Ar.Co.<br />
entre 1978 e 199 .<br />
De entre as exposições que realizou desde 1964, destacam-se<br />
a sua participação na LIS’79 – que lhe valeu o 1º prémio deste<br />
certame – bem como as individuais “Obras sobre Papel” e<br />
“Pintura”, ambas no Centro de Arte Moderna da <strong>Fundação</strong><br />
Calouste Gulbenkian (Lisboa, 1990 e 00 , respectivamente), e<br />
a antológica “Pintura/Desenho 1964- 003” no Museu de Arte<br />
Contemporânea de Serralves (Porto, 003).<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009
CoLeCção FLAD<br />
Sem título, 1979, grafite, aguarela e aguada sobre papel, 50 × 70 cm, Inv. 511<br />
Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009 79<br />
FOTOGRAFIA
Revista tRimestRal de<br />
Política externa e<br />
Assuntos Internacionais<br />
editada pelo<br />
INSTITUTO PORTUGUÊS DE<br />
RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
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www.ipri.pt<br />
80<br />
21<br />
12,50<br />
21 MAR : 2009 : TRIMESTRAL<br />
RELAÇÕES<br />
INTERNACIONAIS<br />
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Paralelo n. o 3 | INVERNO | PRIMAVERA 2009