12.04.2013 Views

descarregar PDF - Revista Atlântica

descarregar PDF - Revista Atlântica

descarregar PDF - Revista Atlântica

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Revista</strong> atlântica de cultura ibero-americana<br />

N.º 05 Outono Inverno 2006 2007 15C _ Instituto de Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

LUGARES DE PARTIDA<br />

LISBOA<br />

URBANO TAVARES RODRIGUES<br />

CIDADES INVISÍVEIS<br />

VALPARAÍSO<br />

NERUDA E A INVENÇÃO<br />

DE VALPARAÍSO<br />

SERGIO VUSKOVIC ROJO<br />

SANTOS DA CASA<br />

O DIABO<br />

E AS VIRGENS<br />

JULIO PANTOJA<br />

O QUE FAÇO EU AQUI<br />

CUIABÁ<br />

JOSÉ LUÍS PEIXOTO<br />

RESIDÊNCIAS NA TERRA<br />

MÁRIO CESARINY<br />

DUARTE BELO<br />

OUTRAS INQUIRIÇÕES<br />

PERTENÇA E CONTRADIÇÃO<br />

LÍDIA JORGE


Número 05 Outono Inverno 2006/2007<br />

<strong>Revista</strong> atlântica de cultura ibero-americana<br />

3 PERTENCER AO SUL João Ventura<br />

4 TODOS OS NOMES<br />

6 HERÓIS DO MAR<br />

A flor do sal João Mariano<br />

12 LUGARES DE PARTIDA<br />

Lisboa Urbano Tavares Rodrigues<br />

18 VAGA GENTE<br />

Tomé Álvares, um carpinteiro algarvio<br />

nas Índias do Mar Oceano Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

22 TRAVESSIAS<br />

Sem regresso Carmen Yáñez<br />

26 CIDADES INVISÍVEIS<br />

VALPARAÍSO<br />

28 Neruda e a invenção de Valparaíso Sergio Vuskovic Rojo<br />

36 A BIBLIOTECA DE BABEL<br />

Arquivo Histórico Ultramarino Caio Boschi<br />

42 SANTOS DA CASA<br />

O diabo e as virgens Julio Pantoja<br />

52 A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

54 A descoberta imperial do selvagem Boaventura de Sousa Santos<br />

58 As sociedades ameríndias da floresta tropical Jorge Couto<br />

70 Vasco Fernandes e a visão do Índio Bom Vítor Serrão<br />

74 CEM ANOS DE SOLIDÃO<br />

Doriselma (Guatemala) Grau Sierra Espriu e Roger Sogues Marco<br />

76 RIOS PROFUNDOS<br />

Douro José Manuel Fajardo<br />

84 ALTAS SOLIDÕES<br />

Aconcágua, a rainha das Américas João Garcia<br />

88 BESTIÁRIO<br />

O ovo do pinguim ou crónica de um amor maior Maria Adelina Amorim<br />

92 SABORES PRINCIPAIS<br />

Erotismo e gula na América, desde o tempo colonial Virginia Vidal<br />

100 ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM<br />

Portugal, sempre Luís Antônio de Assis Brasil<br />

104 O QUE FAÇO EU AQUI<br />

Cuiabá José Luís Peixoto<br />

106 CRUZEIRO DO SUL<br />

Pancho regressa ao mar Volodia Teitelboim<br />

110 ESTÁDIO DE SÍTIO<br />

Com o coração na boca (La Bombonera) Maria Mansilla<br />

116 A MARESIA DO MUNDO<br />

Mar absoluto António Ramos Rosa<br />

118 RESIDÊNCIAS NA TERRA<br />

Mário Cesariny Duarte Belo<br />

124 OUTRAS INQUIRIÇÕES<br />

Pertença e contradição Lídia Jorge<br />

132 A MUDANÇA DA TERRA<br />

O retratista de corações Luísa Monteiro<br />

134 A COMPANHIA DOS LIVROS João Ventura<br />

144 PROCEDIMENTOS DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA


Discorre Lídia Jorge, num belíssimo ensaio que<br />

publicamos nesta edição, sobre a noção de pertença, sobre a noção<br />

de cisma, traição ou singularidade, o que leva, também, a uma<br />

interpelação a nós próprios sobre o lugar de pertença da<br />

<strong>Atlântica</strong>.Terá esta revista um lugar de pertença? E, se sim,<br />

a que lugar pertence? Quais os territórios ambíguos que<br />

nela atravessamos? Na sua génese partimos da ideia de<br />

travessia oceânica, de aproximação de margens, de territórios,<br />

de regiões e, sobretudo, de representação de um<br />

certo imaginário ibero-americano. Diríamos, então, que a<br />

revista pertence aos portos e praias da memória partilhada<br />

entre as duas margens atlânticas, donde empreendemos,<br />

depois, a viagem de intromissão, de indagação através<br />

dos territórios sobrepostos da literatura, da história,<br />

da política, dos usos, das identidades para descobrir no<br />

rasto das vivências comuns iniciais a ressonância de um<br />

passado que irrompe no musgo da história. Mas ressonância<br />

que indicia todas as metáforas que este exercício<br />

de curiosidade partilhada persegue, como se a <strong>Atlântica</strong> fosse<br />

a região mais transparente onde, entre nós, se espelha a alma<br />

ibero-americana. Vozes múltiplas ecoam na revista como<br />

Fotografia de Paulo Barata<br />

Pertencer ao Sul<br />

João Ventura<br />

jventura_atlantica@yahoo.com<br />

num búzio onde se escuta a maresia do Sul.Vozes de navegantes<br />

da escrita que aqui deixam o seu rasto num conto,<br />

num poema, num ensaio, numa crónica, num testemunho,<br />

numa fotografia, cujo sopro continua a empurrar a<br />

revista cada vez mais para o Sul. A eles pertence também<br />

esta revista.<br />

Nesse movimento em direcção ao Sul, à utopia do<br />

Sul, para onde o promontório de Sagres parece apontar,<br />

guardamos, ainda, a herança do nosso próprio território<br />

de pertença pessoal, o Algarve. Porque é nesse Sul português<br />

que se faz a <strong>Atlântica</strong>, transportando consigo o lastro<br />

de uma terra em mudança, que muitas vezes já não reconhecemos,<br />

talvez já sem redenção, mas onde batem,<br />

ainda, as nossas horas mais íntimas. Por isso, embora<br />

nesta edição continuemos a navegar rumo ao Sul, aportando<br />

em Valparaíso sob os céus secretos do Cruzeiro do<br />

Sul, procurando Coloane em cada maré, ou atravessando<br />

os cem anos de solidão de um Chile que não esquece as feridas<br />

de um passado recente, é à Lisboa azul de muitas cores que<br />

regressamos, para logo descermos ao Algarve iluminado,<br />

ainda, pela brancura da flor do sal.


?????? TODOS OS NOMES 4<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

5<br />

ANTÓNIO RAMOS ROSA (Faro, Portugal) é um dos grandes poetas portugueses contemporâneos. Poeta das coisas primordiais,<br />

da luz, da pedra e da água, recebeu inúmeros prémios nacionais e estrangeiros, entre os quais o Prémio Pessoa, em 1998. A sua<br />

vasta obra poética e ensaística encontra-se publicada em inúmeros livros, revistas e antologias. BOAVENTURA DE SOUSA<br />

SANTOS (Coimbra, Portugal) é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor titular na Faculdade de<br />

Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin – Madison.<br />

É director do Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade. Tem trabalhos publicados<br />

sobre sociologia do direito, globalização, epistemologia, direitos humanos e democracia. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos<br />

em inglês, espanhol, francês, italiano e alemão. CAIO BOSCHI (Belo Horizonte, Brasil) é doutor em História Social pela<br />

Universidade de São Paulo e professor titular jubilado do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais<br />

(UFMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). É director do Centro de Pesquisa Histórica da<br />

PUC-Minas.Tem como área de investigação: História do Brasil, Arquivos Históricos e História da Expansão Portuguesa. CARMEN<br />

YÁÑEZ HIDALGO (Santiago do Chile) viveu o seu exílio na Suécia entre 1981 e 1997. Em Gijón (Astúrias) desde 1997, publicou<br />

aí o seu primeiro livro de poesia Paisaje de Luna Fría. Em 2002, foi-lhe atribuído o prémio de poesia Nicolás Guillén. Alas del Viento é o<br />

seu último livro. Actualmente, integra o conselho de redacção da revista do Salão do Livro Ibero-Americano de Gijón. DANIEL<br />

BARRACO (Buenos Aires, Argentina) iniciou a sua actividade fotográfica em 1980, depois de frequentar a Escola Superior de Belas-Artes<br />

de Mendoza, Argentina. Realizou vários trabalhos fotográficos para os diários Libération e Le Monde. Em 2000 recebeu, do Governo<br />

chileno, o Prémio de Mérito Artístico. Lecciona na Pontifícia Universidade Católica de Santiago do Chile, no âmbito do curso<br />

Património e Identidade. As suas fotografias integram diversas colecções internacionais. DUARTE BELO (Lisboa, Portugal) é licenciado<br />

em Arquitectura pela Universidade do Porto. Paralelamente à arquitectura, desenvolve actividade em fotografia. Desde 1986,<br />

tem percorrido Portugal num levantamento fotográfico de unidades de paisagem, formas primitivas de ocupação e domínio do território,<br />

lugares arqueológicos, aspectos das cidades e da suburbanidade, arquitecturas e vias de comunicação. São da sua autoria as<br />

fotografias da obra Portugal – O Sabor da Terra, desenvolvida com José Mattoso e Suzanne Daveau. Em aproximações à poesia portuguesa,<br />

publicou Ruy Belo – Coisas de Silêncio e O Leitor Escreve para que Seja Possível. Com Nuno Júdice, é autor de Esfera do Caos. O seu trabalho<br />

está representado em colecções públicas e privadas, em Portugal e no estrangeiro. GRAU SIERRA ESPRIU (Barcelona, Espanha)<br />

é cineasta documental, formado no Centro Nacional de las Artes, do México D.F. Com o apoio da UNESCO, realizou no México o<br />

seu primeiro documentário intitulado Última Palabra, sobre os últimos falantes das línguas indígenas do México. Actualmente prepara<br />

a realização de vários documentários para televisão sobre temas etnológicos e sociais em diversos países de África, América<br />

Latina e Ásia. O seu último projecto, ainda inacabado, é uma reportagem fotográfica, para a ONG Fundación Intervida, sobre problemáticas<br />

da infância em países como o Bangladesh, a Índia, o Senegal, a Guatemala e a Bolívia. HENRIQUE CAYATTE (Lisboa,<br />

Portugal) é presidente do Centro Português de Design e professor convidado da Universidade de Aveiro. Foi fundador e autor do<br />

design global, editor gráfico e ilustrador do jornal Público. Consultor para os projectos especiais de design da EXPO'98 e do respectivo<br />

plano de pormenor do recinto. Co-autor do sistema de sinalética e comunicação da EXPO’98. Co-autor e responsável pelo design da<br />

revista Egoísta. Comissário e autor do design de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. Entre os vários galardões, recebeu<br />

em 2003 o Prémio Nacional de Design e o Prémio Dibner Award. JOÃO GARCIA (Lisboa, Portugal) é o montanhista (alpinista<br />

/himalaísta) português com maior currículo. Das catorze montanhas com mais de 8000 metros de altitude existentes no Planeta,<br />

já ascendeu a oito delas. Foi o primeiro português a alcançar o cume do Evereste, sem recurso a oxigénio e sem carregadores de<br />

altitude. É actualmente o único português cameraman de altitude e de condições extremas, tendo realizado vários documentários<br />

sobre as suas expedições que têm sido transmitidos nas televisões portuguesas. João Garcia é autor dos livros A Mais Alta Solidão, que<br />

já vendeu mais de 30 mil exemplares, e Mais Além – Para Além do Evereste, lançado em Fevereiro deste ano. JOÃO MARIANO (Aljezur,<br />

Portugal) é fotógrafo. Editou e coordenou a fotografia do Grupo Forum, dirigiu o departamento de fotografia do portal Terravista e<br />

actualmente dirige a agência 1000olhos – Imagem e Comunicação. Publicou diversos álbuns, livros e catálogos, e expõe regularmente<br />

desde 1993. Colabora, eventualmente, com a revista Egoísta e com o semanário Dna. JOÃO VENTURA (Portimão, Portugal) é<br />

mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e pós-graduado em Ciências Documentais (área de<br />

Bibliotecas) pela Universidade de Lisboa. Foi leitor de Língua e Cultura Portuguesas na Universidade de Paris III e docente convidado<br />

na Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve. Entre 1998 e 2003, foi delegado regional do Ministério da<br />

Cultura no Algarve. Actualmente, desenvolve actividade na área da gestão cultural como director do projecto «Fórum Cultural de<br />

Portimão». JORGE COUTO (Lisboa, Portugal) é mestre em História do Brasil e professor assistente na Faculdade de Letras da<br />

Universidade de Lisboa. Foi presidente do Instituto Camões. Actualmente, é director da Biblioteca Nacional. É autor de diversas<br />

publicações sobre os Descobrimentos Portugueses, entre as quais a construção do Brasil. JOSÉ LUÍS PEIXOTO (Lisboa, Portugal)<br />

é licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova de Lisboa. Recebeu o Prémio Jovens Criadores (área de<br />

literatura) nos anos 1997, 1998 e 2000. Em 2001, o seu romance Nenhum Olhar recebeu o Prémio Literário José Saramago. Está<br />

representado em diversas antologias de prosa e de poesia nacionais e estrangeiras. É colaborador de diversas publicações nacionais<br />

e estrangeiras. Os seus romances estão publicados em França, Itália, Bulgária, Turquia, Finlândia, Holanda, Espanha, República<br />

Checa, Croácia, Bielorússia e Brasil. O seu último romance é O Cemitério de Pianos. JOSÉ MANUEL FAJARDO (Granada, Espanha) é<br />

jornalista e escritor, vivendo actualmente em Paris. Colaborou em vários jornais e revistas espanhóis como o El Mundo e o El País,<br />

assim como em publicações de Itália, França e América Latina. Foi redactor do programa da RTVE Tiempo de Papel. Enquanto residiu<br />

no País Basco, participou activamente no movimento cidadão pela paz e contra a ditadura do terrorismo, tendo também a seu cargo<br />

uma coluna de opinião no jornal El Mundo del País Basco. Entre as várias obras publicadas, conta-se a participação com diversos autores,<br />

como Luis Sepúlveda, Antonio Sarabia ou Rosa Montero, entre outros, nas antologias de relatos Contos Apátridas e Histórias do Mar.


Tem quatro romances editados em Portugal: Cartas do Fim do Mundo, Terra Prometida, Os Demónios à Minha Porta e Água na Boca. JULIO<br />

PANTOJA (Tucumán, Argentina) Fotodocumentarista, jornalista, criativo e editor, formou-se como arquitecto e técnico de fotografia<br />

na Universidade Nacional de Tucumán (Argentina). É docente universitário e dirige, com Gabriel Varsanyi, os Ateliers de<br />

Expressão e Fotodocumentalismo. A sua obra integra colecções públicas e privadas, como a do Museu Nacional de Belas-Artes<br />

(Argentina) e a da Casa das Américas (Cuba). É membro do Instituto Hemisférico de Performance e Políticas para as Américas da<br />

Universidade de Nova Iorque. As suas fotografias foram expostas em galerias da Argentina, Venezuela, Brasil, Chile, Nicarágua, El<br />

Salvador, Espanha, França, Estados Unidos, Holanda, Alemanha, Suíça e África do Sul. LÍDIA JORGE (Boliqueime, Portugal) é uma<br />

das mais prestigiadas romancistas portuguesas. É licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa. A partir de O Dia<br />

dos Prodígios (1979) tornou-se uma das mais importantes romancistas portuguesas. Recebeu vários prémios literários, entre os quais<br />

o Prémio Europeu Jean Monnet com a obra O Vale da Paixão (1998), em 2003, o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa<br />

de Escritores, com o romance O Vento Assobiando nas Gruas, e, em 2006, foi distinguida na Alemanha com a primeira edição do Albatroz,<br />

Prémio Internacional de Literatura da Fundação Günter Grass, atribuído pelo conjunto da sua obra. Acaba de publicar o romance<br />

Combateremos a Sombra. LUÍSA MONTEIRO (Albufeira, Portugal) é licenciada em Ciências da Comunicação e pós-graduada em<br />

Literaturas Românicas Modernas e Contemporâneas. Ao longo de 17 anos, exerceu jornalismo e publicou artigos literários em<br />

diversas revistas. Escreve essencialmente romances, embora também se dedique ao texto dramático, ensaio e biografia, poesia, crónicas,<br />

contos e novelas. Tem 17 obras publicadas, e diversos textos seus subiram já ao palco. Colabora regularmente com algumas<br />

revistas literárias. LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL (Porto Alegre, Brasil) é escritor com uma vasta obra publicada, tanto no<br />

Brasil como no estrangeiro. Em 1988, recebeu, com o romance Cães da Província, o Prémio Literário Nacional do Instituto do Livro<br />

e, ainda nesse ano, o Prémio Literário Erico Veríssimo pelo conjunto da sua obra. Em 1995, recebeu o Prémio Açoriano de Literatura<br />

com Pedra da Memória e Senhores do Século. MARIA ADELINA AMORIM (Lisboa, Portugal) é mestre em História do Brasil e autora de<br />

vários estudos sobre a missionação no Brasil e sobre a literatura de viagens. Investigadora do CLEPUL e membro da ACLUS, colaborou<br />

na organização do Dicionário de Lusofonia (Texto Editora, 2006). MARIA DA GRAÇA A. MATEUS VENTURA (Portimão,<br />

Portugal) é doutora em Letras pela Universidade de Lisboa. Fundadora do ICIA, foi vice-presidente da Direcção de 1995 a 2002,<br />

sendo presidente desde 2002. Foi professora visitante na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve no<br />

âmbito da Cátedra de Estudos Ibero-Americanos, da qual foi coordenadora executiva (2003-2006). É especialista em história da<br />

Ibero-América, com numerosos textos publicados nesta área, com destaque Os Portugueses no Peru ao Tempo da União Ibérica: mobilidade, cumplicidades<br />

e vivências (2005, INCM). MARIA MANSILLA (Buenos Aires, Argentina) é jornalista e coordenadora de redacção da revista<br />

Hecho en Buenos Aires.Tem artigos editados na National Geographic em espanhol, em Etiqueta Negra do Peru, ELLE (Argentina, México e Índia)<br />

e Página 12 (Argentina). É bolseira da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), presidida por Gabriel García Márquez. PAULO<br />

BARATA (Moçâmedes, Angola) é fotógrafo freelancer, colabora com a imprensa portuguesa e espanhola.Trabalha também como fotógrafo<br />

de cena para teatro e cinema, e making of para publicidade. Expõe desde 1999. ROGER SOGUES MARCO (Barcelona,<br />

Espanha) formou-se na Escola de Cinema da Catalunha, em Barcelona. É realizador e guionista de documentários onde aborda temáticas<br />

sociais relacionadas com a cultura, os direitos humanos, o meio ambiente e as desigualdades sociais, em países como Espanha,<br />

México, Guatemala, El Salvador e Estados Unidos. Actualmente, prepara o seu novo projecto documental relacionado com a recuperação<br />

da memória cultural. SERGIO VUSKOVIC ROJO (Illapel, Chile) Na campanha presidencial do Chile, em 1952, conheceu,<br />

em Valparíso, Pablo Neruda e Salvador Allende, com quem manteve amizade até à morte de ambos. Durante o Governo de<br />

Allende, foi alcaide de Valparaíso. Após o golpe de Estado de 1973, esteve encarcerado três anos, passando pelos campos de concentração<br />

de Puchuncaví e Ritoque. Durante os seus 11 anos de exílio, foi professor de filosofa na Universidade de Bolonha, em<br />

Itália. Actualmente, é professor de filosofia nas Universidades de Valparaíso e de Playa Ancha, e director do Centro de Estudos do<br />

Pensamento Latino-Americano e da revista Cuadernos del Pensamiento Latinoamericano. Escreveu várias obras sobre filosofia, sendo a última<br />

Filosofía Latinoamericana. URBANO TAVARES RODRIGUES (Lisboa, Portugal) é escritor, ficcionista, investigador e crítico literário. É<br />

professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro efectivo da Academia de Ciências de<br />

Lisboa e membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Sendo um dos mais prolíficos e prestigiados escritores da segunda<br />

metade do século XX em Portugal, a sua obra, que está traduzida em diversas línguas, atinge várias dezenas de títulos, entre<br />

conto, romance, crónica e ensaio. Em 2002, foi-lhe atribuído o Grande Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores<br />

e, em 2000, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. VÍTOR SERRÃO (Lisboa, Portugal) é doutor<br />

em História da Arte pela Universidade de Coimbra. É director do Instituto de História da Arte e coordenador do Departamento<br />

de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É membro efectivo da Academia Nacional de Belas-Artes e do<br />

ICOMOS, vice-presidente do CICOP-Portugal, comissário das exposições «Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco» (catálogo de<br />

1992: Prémio Nacional Gulbenkian de História da Arte) e «A Pintura Maneirista em Portugal – Arte no Tempo de Camões» (1995).<br />

É autor de diversos livros e estudos sobre arte portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco. VIRGINIA VIDAL<br />

(Santiago, Chile) é escritora e jornalista. Exilada em 1976, viveu na ex-Jugoslávia e na Venezuela até 1987. Os seus textos foram traduzidos<br />

e publicados em diversas línguas.Tem inúmeros artigos de crítica cultural em revistas e diários da Venezuela. O seu romance<br />

Cadáveres del Incendio Hermoso recebeu o Prémio María Luisa Bombal de Viña del Mar em 1989. Trabalhou no programa cultural do<br />

Canal 9 da Universidade do Chile. Integrou o conselho de redacção da revista Araucária. Actualmente, é directora da revista Anaquel<br />

Austral e directora da Sociedade de Escritores do Chile. VOLODIA TEITELBOIM (Chillán, Chile) é um dos nomes mais ilustres das<br />

letras chilenas e americanas do século XX. É um escritor multifacetado, autor de uma vasta obra, que inclui romances, crónicas,<br />

memórias, biografias e ensaios. Integrou a Geração de 38 e é autor das biografias de Gabriela Mistral,Vicente Huidobro, Jorge Luis<br />

Borges [Temas e Debates] e Pablo Neruda [Temas e Debates]. Foi galardoado com o Prémio Nacional de Literatura do Chile em 2002.


HERÓIS DO MAR 6 7<br />

A flor do sal<br />

João Mariano<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

As águas oceânicas da costa algarvia, aquecidas nos dias estivais<br />

no quadriculado das salinas, produzem um tempero de requinte:<br />

a flor do sal. Os cristais finos e transparentes, colhidos diariamente<br />

pelos marenotos, são o toque mágico dos sabores intemporais da<br />

comida mediterrânica.


Lisboa. Fotografia de Paulo Barata<br />

LUGARES DE PARTIDA 12 13<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Lisboa<br />

Urbano Tavares Rodrigues<br />

Esta é a Lisboa de Álvaro de Campos, pavorosamente<br />

perdida, cidade triste e alegre. A Lisboa azul de muitas<br />

cores, como a viu Pedro Tamen.A cidade de José Cardoso Pires,<br />

luminosa e enigmática, navegando sobre o Tejo. Cais de aventurosas<br />

e, também, dolorosas partidas ou precipitadas fugas para<br />

Urbano Tavares Rodrigues, que nos leva aqui pelos arredores<br />

da sua memória através de uma cidade que navega.


LUGARES DE PARTIDA 14<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata<br />

15<br />

Não tenho qualquer memória de Lisboa<br />

antes dos dez anos, idade em que vim do<br />

Alentejo para aqui fazer o exame de admissão<br />

ao liceu.<br />

Mas, se para mim começou por ser<br />

lugar de chegada, também é certo que,<br />

pela vida fora, Lisboa foi o meu cais de<br />

múltiplas partidas.<br />

Num plano menos pessoal, embora<br />

tudo isso ainda me toque e me respeite,<br />

pois sempre vivi um pouco na história e<br />

no futuro, Lisboa foi teatro, quantas<br />

vezes dramático, de aventurosas e também<br />

dolorosas partidas ou precipitadas<br />

fugas.<br />

Penso nos nossos navegadores de Quatrocentos<br />

e Quinhentos e nos soldados que<br />

os acompanharam às Áfricas, Índias e<br />

Brasis e que se tornaram, muitos deles,<br />

povoadores ou comerciantes. Penso no<br />

melhor da nossa intelectualidade, os judeus<br />

ameaçados ou expulsos pela Inquisição e<br />

que deitaram raízes na Holanda, em França<br />

ou demandaram as zonas do Bósforo, em<br />

procura de mais tolerância.<br />

E recordo a emigração económica para<br />

o Brasil, para os Estados Unidos e Canadá e,<br />

já em anos mais recentes, para a França,<br />

Suíça, Alemanha, Inglaterra... Como se<br />

Portugal, pátria madrasta, não conseguisse<br />

dar a seus filhos o sustento nem a paz de<br />

alma.<br />

E houve os exílios políticos, o dos<br />

liberais no século XIX, o dos antifascistas<br />

sob as ditaduras de Salazar e Caetano.<br />

E as lacrimosas partidas para as guerras,<br />

a de 14-18, no século XX, e depois a<br />

Guerra Colonial, com o seu aparato propagandístico<br />

e o sentimento de absurdo que<br />

muitos experimentavam, ao despedirem-se<br />

de Lisboa e das famílias, dos amores, dos<br />

projectos, no Cais da Rocha.<br />

Foi muito cedo, em 1949, depois de<br />

me licenciar e de me casar, que deixei a<br />

redacção do Diário de Notícias e, como leitor<br />

da Universidade de Montpellier, parti para<br />

os céus claros do Midi, ao encontro de um<br />

mundo mais culto, mais livre.<br />

Em Dezembro desse mesmo ano estava<br />

em Paris, a passar as férias do Natal,<br />

com alguma neve e muitas luzes, cinemas,<br />

teatros, chansonniers, caves existencialistas, os


imprescindíveis museus e passeios, com a<br />

Maria Judite (de Carvalho) deslumbrada e<br />

feliz.<br />

Nos seis anos que vivi em França, primeiro<br />

no Sul depois em Paris, visitei, ainda<br />

quase de saco às costas, a Suíça, a Bélgica e<br />

a Holanda, a Inglaterra e as duas Alemanhas<br />

e voltei muitas vezes a Portugal, por<br />

pouco tempo. Dessas andanças, mais ou<br />

menos demoradas, quase sempre de comboio<br />

ou de autocarro, deixei registos e<br />

vivências transpostas, figuras de carne tornadas<br />

em papel, cenários, episódios, nos<br />

meus primeiros contos e romances.<br />

O meu lugar de partida, nesse intervalo<br />

de existência, não foi Lisboa, mas<br />

Paris, de onde eu partia também para a<br />

leitura de infindáveis livros, nas bibliotecas<br />

e nas preciosas livrarias da Rive Gauche<br />

ou nos bouquinistes.<br />

Com o regresso definitivo a Lisboa,<br />

instalámo-nos na zona de S. Sebastião da<br />

Pedreira, perto das Picoas, mas não perdi o<br />

hábito dos meus tempos de estudante de<br />

passear pela Lapa, pela Madragoa, por toda<br />

a área ribeirinha, de Belém ao Terreiro do<br />

Paço e à Casa dos Bicos, a Alfama. Creio<br />

que essa constante atracção está muito marcada<br />

nos meus romances de fundo lisboeta,<br />

de Os Insubmissos a O Eterno Efémero ou Ao<br />

Contrário das Ondas.<br />

A paisagem do rio e da sua foz, dos<br />

cais, dos navios, velhos petroleiros, embarcações<br />

à vela sempre me fascinou.<br />

Em 1958, no ano da campanha eleitoral<br />

do general Humberto Delgado, fiz uma<br />

longa viagem até ao Brasil, onde meu<br />

irmão Miguel já estava exilado. Fui num<br />

paquete italiano, o «Ana C», em terceira<br />

classe, fazendo escala na Madeira e em<br />

Cabo Verde, outros lugares de partida, até<br />

ao lumioso milagre da chegada a<br />

Guanabara e depois a Santos, onde meu<br />

irmão me esperava para subirmos até ao<br />

planalto de São Paulo.<br />

Foi o Jorge Amado o meu cicerone no<br />

Rio, com ele vi o autêntico Brasil e vi as<br />

marcas de Portugal no Brasil, na arquitectura<br />

e nos seres humanos.<br />

Primeiro contacto com o Rio Grande<br />

do Sul, onde muito mais tarde havia de<br />

assistir a uma discussão do orçamento<br />

aberto e visitar, com a viúva de Vítor Jara,<br />

um acampamento dos Sem-Terra.<br />

Quantas partidas, quantas noites de<br />

farra nos cais de Lisboa.<br />

Não os olhei, esses cais, tal o Pessoa<br />

na Ode Marítima, como porta do mundo<br />

sonhado que dali se deseja, se espreita, se<br />

imagina, sem ousar viagem alguma que<br />

não seja interior.<br />

Foram as aerogares, para voos de curta<br />

ou de longa duração, os meus bem familiares<br />

lugares de partida: para Roma, para<br />

Paris (a minha rotina dourada de escritor,<br />

jornalista e professor de literatura francesa),<br />

Londres, Manchester, Colónia e Roma,<br />

Berlim; e mais tarde a Rússia, de São Petersburgo<br />

ao lago Baikal ou ao Norte da<br />

Sibéria. E Praga, sob um nevão desumano,<br />

Viena e Budapeste, Sófia, Belgrado...<br />

Um período do século XX então prestes<br />

a terminar.<br />

Amei cidades e mulheres, o exotismo<br />

ou o classicismo de paisagens diversas. Por<br />

vezes reencontrei, em fulgores de saudade,<br />

o Alentejo na Ásia Menor turca; o solo<br />

mediterrânico, os seus olivais de prata no<br />

Afeganistão, se bem me lembro perto de<br />

Kandahar.<br />

Gente tão diversa, mas sempre humana,<br />

quer no mistério de Cabul, durante a<br />

curta república do poeta Nur Mohamed<br />

Taraki, quer nos países do Médio Oriente,<br />

sempre em convulsão, quer na América<br />

Latina, apesar da violência de certos bairros,<br />

onde a miséria empurrava os mais<br />

pobres para o crime. Estive em Caracas, em<br />

Buenos Aires; vivi em Cuba, em 1962-63,<br />

a delirante euforia da vitória em Playa Girón.<br />

De Lisboa, nesse ano de 1963, em<br />

que conheci os «curros» do Aljube, andei<br />

por Florença, extasiado com os Botticelli,<br />

com a visão do Arno, com os Giotto da<br />

Piazza della Signoria, com os frescos do Fra<br />

Angelico.<br />

Voltei à Grécia, que já conhecia, mas<br />

desta vez de barco, com inolvidáveis paragens<br />

em Nápoles e na Sicília; vi teatro na<br />

Acrópole, percorri as igrejas bizantinas<br />

de Atenas; e fui a Delfos, à Acrocorinto;<br />

escutei os ecos da Sibila; repensei Teixeira-<br />

-Gomes, frente à harmoniosa paisagem<br />

helénica.


LUGARES DE PARTIDA 16<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Em Nova Iorque fiz da Broadway o meu<br />

centro, de começo sempre a olhar para<br />

cima, apesar da neve, para fixar bem os<br />

arranha-céus. Convivi com escritores e jornalistas<br />

e com alguns subi ao topo do<br />

Empire State Building, percorri Central Park e os<br />

museus, as galerias; ousei entrar em Harlem<br />

à hora do maior movimento, reconheci a<br />

China Town do cinema; e em Greenwich Village<br />

vieram até mim as sombras dos grandes<br />

escritores que ali moraram.<br />

Lisboa era a alegria da chegada, o retomar<br />

do trabalho, que aumentara com a<br />

ausência, e a serena reflexão não só sobre<br />

as terras desvendadas, mas, e talvez sobretudo,<br />

sobre a real dimensão das nossas<br />

cidades, o carácter um pouco bisonho do<br />

povo, sob o salazarismo. E o repensar dos<br />

nossos mitos, que com o tempo vêm<br />

mudando, neles permanecendo sempre,<br />

todavia, o sentimento da grandeza perdida,<br />

que desde D. João III e depois de Alcácer<br />

Quibir faz tocar as nossas guitarras de alma<br />

e nos leva a incessantemente partir, emigrar,<br />

ou maldizer da pequena Pátria que<br />

não torna a achar o segredo das vitórias,<br />

nem o resplendor da Índia, o ouro do<br />

Brasil. Por algum tempo, pouco, houve o<br />

sonho transformador de Abril, a curta epopeia<br />

da fraternidade, a euforia da mudança<br />

que trouxe até nós, no local onde a história<br />

avançava, gente de todo o mundo,<br />

coleccionadores de esperança.<br />

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata<br />

17<br />

O entusiasmo da partida, a vontade do<br />

novo esmoreceram um pouco em mim<br />

com o abrandar da curiosidade e da<br />

inquietação.<br />

Foi, no entanto, com renovada surpresa<br />

e enlevo, e por vezes desgostos e outras vezes<br />

exaltação, que visitei, como escritor e conferencista,<br />

a China e a Índia (1999 e 2002).<br />

Enquanto puder, continuarei regularmente<br />

a percorrer, de preferência acompanhado,<br />

os bairros ribeirinhos, de Alcântara<br />

e Alfama, Lisboa cidade-cais, e a prender<br />

mais uma vez o olhar nas velhas casas de<br />

azulejos, nos palacetes meio arruinados, a<br />

pedirem restauro, nas estreitas ruas onde o<br />

rio ressoa, da Lapa ou Santa Catarina às<br />

Janelas Verdes, ao Adamastor, à sardinha<br />

assada, à brisa picante onde o sol marinho<br />

e sobretudo a pimenta evocam as especiarias;<br />

e as mulheres continuam a balançar-se<br />

como no Sentimento de um Ocidental. Até me<br />

acontece relembrar poemas do Cancioneiro de<br />

Resende ou a Ode Triunfal de Pessoa.<br />

Lisboa, lugar de partida, às vezes definitiva,<br />

mas também lugar de chegada,<br />

ainda hoje orienta para o Tejo, de envolta<br />

com frustrações, mau passadio, direitos<br />

sociais a desaparecer, o sopro brando da<br />

viagem redentora. E por vezes há vozes que<br />

sussurram: com esta fuga dos jovens cérebros<br />

para o estrangeiro, também os meus<br />

filhos partirão. Eles que são tão dotados. Lá<br />

é que os portugueses se afirmam.


VAGA GENTE 18 19<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Tomé Álvares,<br />

um carpinteiro algarvio<br />

nas Índias do Mar Oceano<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Christoph Weiditz, 1529. Biblioteca Nacional, Madrid


1 Archivo General<br />

de Índias (Sevilha),<br />

Contratación,<br />

922ª, N.12<br />

VAGA GENTE 20 21<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

AGI (Sevilha), Testamento de Tomé Álvares, Contratación, 922A, nº12.<br />

Tomé Álvares, natural da cidade de<br />

Tavira, vizinho de Triana, enfermo do corpo<br />

e são da vontade, em seu perfeito juízo e<br />

entendimento, ditou um testamento 1 , poucos<br />

dias antes de falecer, a 18 de Março de<br />

1582, em Santiago de Guayaquil.<br />

Nasceu no reino de Portugal, filho de<br />

Lázaro Fernandes e de Inês Martim, e emigrou<br />

para Triana, bairro de marinheiros na<br />

margem direita do Guadalquivir, frente à<br />

cidade de Sevilha, reino de Espanha. Daqui<br />

partiu para as Índias do Mar Oceano com<br />

outros algarvios e andaluzes por companheiros.<br />

Instalou-se bem longe daqui, na margem<br />

oriental do Oceano Pacífico, na cidade<br />

portuária de Guayaquil, reino do Peru.<br />

Não sabemos a sua idade, apenas que,<br />

à data do seu testamento, os seus pais eram<br />

defuntos e não tinha filhos. Casara em<br />

Triana, segundo a ordem da Santa Madre<br />

Igreja Católica Romana, com Catalina Garcia,<br />

filha de Francisco Garcia e de Isabel Peres,<br />

naturais de Vila Nova de Portimão e vizinhos<br />

desse bairro marítimo. Tomé partiu<br />

para as Índias, Catalina ficou em Triana,<br />

com a mãe, cuidando da casa e da fazenda<br />

com a ajuda das negras que tinha ao seu<br />

serviço. O dote que levara consigo havia<br />

sido duplicado em bens pela habilidade do<br />

marido que, agora, no outro lado do mundo,<br />

falecia deixando-lhe apenas um testamento<br />

que pouco acrescentava àquilo que ficara<br />

por dizer: universal herdeira dos bens em<br />

Triana e de mais ou menos seiscentos<br />

pesos de prata corrente, cobradas as dívidas<br />

alheias e o salário de carpinteiro de ribeira<br />

do marido.<br />

Partira do Algarve para a Andaluzia,<br />

de Portimão ou Tavira para Aiamonte ou Sevilha<br />

em busca de uma viagem para a<br />

Índia, desassossego que não passava disso<br />

mesmo, desassossego por fortuna muitas<br />

vezes transformada em má sorte.Tomé não<br />

enriqueceu. Não tinha casa própria em<br />

Guayaquil, apenas um colchão, um cobertor,<br />

uma almofada e lençóis gastos. A roupa<br />

que vestia era modesta, o melhor ficou<br />

registado no testamento – um capote negro<br />

guarnecido de passamanes, uns imperiais<br />

negros de terciopelo e um velho saio azul.<br />

Entre os seus parcos bens, fez questão de<br />

nomear a ferramenta de carpinteiro com a<br />

qual ia construindo o barco que o alcaide<br />

ordinário de Guayaquil encomendara ao<br />

mestre António Fernandes e que lhe valeria<br />

os 280 pesos de salário por cobrar.<br />

Os seus albaceias eram o mestre de<br />

fazer navios e o alcaide ordinário da cidade.<br />

Testemunhas do testamento e dos últimos<br />

dias de vida de Tomé foram outros algarvios,<br />

como António Resio, mercador natural<br />

de Vila Nova de Portimão que era vizinho<br />

de Aiamonte e viajava de cá para lá do<br />

Atlântico ao Pacífico. António mal teve<br />

tempo de satisfazer uma vontade do seu<br />

amigo enfermo – comprar-lhe 36 pesos de<br />

queijos. Foi também António que trouxe<br />

para Sevilha os 120 ducados que Tomé<br />

devia aos herdeiros do bretão Francisco<br />

Martins. Chegado a Sevilha com cópia do<br />

testamento para Catalina, não resistiu à<br />

insistência desta para que lhe entregasse os<br />

ducados de prata. Isabel Fernandes, viúva<br />

do bretão, mandou António para a cadeia<br />

por este não lhe ter pago a dívida do carpinteiro<br />

defunto, e este vê-se envolvido<br />

num processo motivado pela má-fé da<br />

viúva do seu amigo. Coisas de mulheres,<br />

disputas de herdeiros.


Bem longe daqui a alma do nosso<br />

defunto, sepultado, conforme sua vontade,<br />

com o hábito de São Domingos, na capela<br />

de Nossa Senhora do Rosário, no mosteiro<br />

de S. Paulo, na cidade de Guayaquil, carecia<br />

do bom senso das partes mais que das missas<br />

de requiem cantadas e rezadas pelo cura e<br />

pelos religiosos da cidade.<br />

Triana, bairro de mareantes, era ninho<br />

de algarvios com ramificações familiares em<br />

todo o garb andaluz. O porto de Santiago de<br />

Guayaquil atraía os homens do mar pelas<br />

excelentes oportunidades resultantes da sua<br />

estratégica localização entre o Peru e o<br />

Panamá. Não é, por isso, de estranhar que aí<br />

encontremos marinheiros aos molhos, reunidos<br />

quando é necessário testemunhar as<br />

últimas vontades dos enfermos que insistem<br />

em fechar o círculo de uma relação familiar<br />

ditando um testamento que sintetiza a sua<br />

identidade e apazigua a sua consciência.<br />

Christoph Weiditz, 1529. Biblioteca Nacional, Madrid.<br />

De Sevilha, o Guadalquivir era o atalho<br />

para o Mar Oceano, devassado continuamente<br />

por mestres, marinheiros, pilotos e<br />

mercadores naturais do Algarve, vizinhos<br />

dos portos andaluzes, residentes ou estantes<br />

temporariamente nos portos indianos.<br />

Tomé Álvares, António Resio e António<br />

Fernandes ilustram o padrão de mobilidade<br />

dos portugueses e, particularmente, dos<br />

algarvios que se dispersaram num amplo<br />

território cuja fronteira fluida não era obstáculo<br />

eminente à busca de fortuna. Neste<br />

vaivém se foi formando a idiossincrasia da<br />

vaga gente que fez do Sul espaço de viagem<br />

e do Atlântico um mar de oportunidades.


TRAVESSIAS 22<br />

23<br />

Sem regresso<br />

Carmen Yáñez<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


Por vias sinuosas, clandestinas,<br />

atravessaram a noite densa<br />

de chacais, pesada de amargura.<br />

Era um tempo de renúncia no Chile.<br />

Renúncia das coisas e dos afectos<br />

deixados para trás. Um testemunho<br />

de quem atravessou a sombra.


TRAVESSIAS 24<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Já não estão<br />

os meus pais<br />

Nem o fogo<br />

que acenderam<br />

Carlos Liscano<br />

25<br />

Eu tinha uma casa, marido,<br />

filho, pais, um pequeno<br />

jardim de ervas aromáticas,<br />

algumas árvores que davam os<br />

seus frutos, um parreiral para<br />

as tardes estivais, uma rua,<br />

uma vereda até ao sul, uma<br />

cidade dentro de um país. Um<br />

país que um dia amanheceu<br />

sombrio e hostil.<br />

Suponho que começou ali a<br />

minha viagem, apesar de o ignorar<br />

naqueles primeiros tempos<br />

de horror. Eram os anos setenta e<br />

começava o êxodo.<br />

Muitos procuraram embaixadas,<br />

consulados, a Nunciatura<br />

da Igreja Católica, vias clandestinas<br />

entre os caminhos das cordilheiras<br />

para partir rumo à Argentina,<br />

ou pelo norte até ao Peru e<br />

à Bolívia, ludibriando os guardas<br />

fronteiriços. Procuravam uma<br />

via rápida de fuga desesperada<br />

para fugir dos institucionalizados<br />

e recém-estreados métodos<br />

de tortura, desaparecimento e<br />

morte quase certa. Nessa tentativa,<br />

grande parte deles ficaram<br />

pelo caminho: as mãos negras da<br />

ditadura chegavam até às entreabertas<br />

portas salvadoras para<br />

alcançar as presas. Assim, a ditadura<br />

aplicava o terrorismo de<br />

Estado em nome da Doutrina da<br />

Segurança Nacional, combatendo<br />

as ideias e o pensamento livre<br />

dos agora depostos opositores ao<br />

seu regime militar.<br />

Sergio Leiva Molina, militante<br />

socialista, tinha 34 anos,<br />

mulher e uma filha. Uns dias<br />

depois do golpe do 11 de Setembro<br />

de 1973, começou a ser<br />

perseguido e fugiu. Algumas<br />

semanas mais tarde, emergiu da<br />

sua clandestinidade; com uma<br />

escada feita de cânhamo e paus<br />

de bambu sobressaindo da sua<br />

mochila, disse-nos adeus e<br />

pediu-nos que cuidássemos da<br />

sua mulher e da sua filha Aleida.<br />

Nesse dia tentaria ludibriar a<br />

vigilância dos carabineiros que<br />

estavam de guarda à embaixada<br />

argentina; utilizaria a escada<br />

para saltar o muro das traseiras<br />

da embaixada, num sítio descampado<br />

e escuro. Não sei<br />

como o fez, mas conseguiu.<br />

Pensávamos que o nosso<br />

amado companheiro se encontrava<br />

a salvo, já a pedir asilo como<br />

refugiado, mas o seu espírito<br />

intrépido e solidário levou-o a<br />

contactar com outros que, como<br />

ele, tentavam dar o salto: assim,<br />

a sua improvisada e engenhosa<br />

escada aparecia e desaparecia do<br />

muro. Sergio assomava de vez<br />

em quando do outro lado para<br />

ver se algum fugitivo necessitava<br />

de ajuda; nesse caso, assobiava e<br />

voltava a lançar imediatamente a<br />

escada flexível.<br />

Salvou muitos, mas no dia 4<br />

de Janeiro de 1974, atraído por<br />

um ruído, assomou-se cautelosamente.<br />

Caiu destroçado pela<br />

bala assassina que o esperava,<br />

espreitando-o, incessantemente.<br />

A televisão, já nas mãos das hordas<br />

fascistas, emitiu a notícia<br />

entre comunicados militares<br />

sobre o recolher obrigatório,<br />

falseando-a com o característico<br />

tom distorcido que costumava<br />

imprimir à explicação dos assassinatos<br />

de Estado.<br />

Não sabíamos que o dia em<br />

que Sergio nos abraçou seria a<br />

última vez que o veríamos.<br />

Agora e depois de muitos anos,<br />

o seu nome é mais um dos que<br />

estão presentes no Memorial em<br />

honra das vítimas daqueles 17<br />

anos de ditadura, no Cemitério<br />

Geral de Santiago do Chile, mais<br />

um na categoria dos fuzilados.<br />

Creio que ali começou a esboçar-se<br />

a minha viagem, ainda<br />

sem regresso.<br />

Aos que conseguimos continuar<br />

em pé, despertava-nos a


constante vigília; por onde se<br />

espreitava, apareciam a crosta do<br />

medo, a ferida, a morte. Os<br />

funerais celebravam-se uma e<br />

outra vez com a presença sinistra<br />

de capangas e delinquentes a<br />

soldo; por todo o país proliferaram<br />

os cárceres clandestinos, as<br />

prisões e os desaparecimentos,<br />

mas resistia-se secretamente pelo<br />

regresso da democracia, em<br />

todas as cidades e de mil modos.<br />

Pode-se conviver com o medo,<br />

desafiá-lo, tomar partido, mas<br />

render-se-lhe não constitui uma<br />

vida digna, e esse pensamento<br />

foi o alento de muitos para continuarem<br />

a resistir apesar da<br />

repressão. No entanto, a pátria<br />

dividiu-se; as denúncias entre<br />

vizinhos opuseram cada família,<br />

cada bairro. O medo quebrava os<br />

laços; a resistência devia proteger-se<br />

até da sua própria sombra.<br />

Os que ficávamos despedíamo-nos<br />

de amigos e companheiros<br />

que partiam para o exílio.<br />

E eu continuava sem saber<br />

que, um dia, partilharia da sua<br />

sentença.<br />

Durante o Golpe Militar,Augusto<br />

Pinochet dirigiu o assalto<br />

a «La Moneda», o Palácio do<br />

Governo, a partir da Villa<br />

Grimaldi – a casa convertida em<br />

forte militar que passou a denominar-se<br />

Cuartel Terranova. No final<br />

de 1973, o local converteu-se na<br />

sinistra casa de tortura Villa Grimaldi<br />

sob o comando do general<br />

do Exército Manuel Contreras<br />

Sepúlveda, que recebia ordens<br />

directas do seu comandante-chefe<br />

Augusto Pinochet. Contreras era<br />

o chefe da DINA, posteriormente<br />

CNI.<br />

Muitos dos detidos-desaparecidos<br />

passaram por ali – estima-se<br />

que à volta de 5000 pessoas.<br />

A quase todas foram aplicadas<br />

diversas formas de tortura e<br />

vexames.<br />

Às três da manhã de um dia<br />

de Outubro de 1975, e durante<br />

o recolher obrigatório, pararam<br />

dois carros à porta da minha<br />

casa e desceram seis homens<br />

armados que me levaram, com<br />

os olhos vendados, à Villa<br />

Grimaldi perante uma viscosa<br />

personagem que consegui reconhecer<br />

muitos anos depois, graças<br />

ao testemunho de outros<br />

Pode-se conviver<br />

com o medo,<br />

desafiá-lo,<br />

tomar partido,<br />

mas render-se-lhe<br />

não constitui<br />

uma vida digna.<br />

prisioneiros que tinham passado<br />

pelas suas mãos: Osvaldo Romo<br />

Mena, torturador e violador.<br />

Apesar desta situação, não planeava<br />

a fuga e agarrava-me ao<br />

meu território.<br />

Avançava-se a pouco e pouco<br />

desafiando o medo.<br />

Eu e o meu filho refugiámo-nos<br />

no Sul do país, mas em<br />

1980 decidi voltar a Santiago.<br />

Soube que parte da organização<br />

da resistência tinha sido presa.<br />

Os militares foram a minha casa<br />

e deixaram-me em prisão domiciliária;<br />

nos primeiros meses do<br />

ano seguinte, dirigi-me aos<br />

Organismos do Alto-Comissariado<br />

das Nações Unidas e<br />

preparei-me para sair do país.<br />

Foram as horas mais tristes<br />

da minha vida; o meu filho<br />

separava-se dos seus brinquedos<br />

e dos seus avós, e tínhamos perdido<br />

o rasto do meu marido –<br />

Luis Sepúlveda. Eu deixava para<br />

trás todos os meus haveres,<br />

sonhos e pesadelos. Não voltaria<br />

a ver os meus pais durante mais<br />

de dez anos, e cada hora subtraía<br />

as raízes à minha vida.<br />

O país e a cidade tinham<br />

mudado. Regressaram os tempos<br />

democráticos, mas a casa está<br />

em ruínas, os meus pais faleceram,<br />

as árvores e o parreiral<br />

secaram, e as ervas aromáticas<br />

deram lugar às ervas daninhas.<br />

Se é certo que o exílio foi<br />

uma forma de castigo, uma condenação<br />

ao desmembramento<br />

familiar, também nos proporcionou<br />

uma visão original do<br />

mundo que marcou profundamente<br />

o nosso olhar; os diversos<br />

cenários geográficos proporcionaram-nos<br />

uma compreensão<br />

mais ampla do ser<br />

humano e, em particular, de nós<br />

próprios.<br />

Ao fim de muitos anos,<br />

consegui reunir-me com o meu<br />

marido e os meus filhos, consegui<br />

imprimir uma ordem afectiva<br />

ao nosso ambiente familiar e,<br />

hoje, vivo num país que escolhi<br />

por minha própria vontade. Da<br />

minha parte, sei que venci a<br />

morte emboscada na Villa Grimaldi<br />

e a que farejava atrás de<br />

cada esquina do desenraizamento:<br />

a bagagem não foi leve, mas<br />

a viagem valeu a pena.


CIDADES INVISÍVEIS 26 27<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

VALPARAÍSO<br />

Fotografias de Daniel Barraco<br />

Valparaíso é um velho balcão debruçado sobre o Pacífico.<br />

Viajantes, cineastas, poetas, pintores, fotógrafos gravaram<br />

a sua história sob os céus secretos do Cruzeiro do Sul.<br />

Mas quem melhor descobriu a sua alma profunda de porto<br />

de partidas e de chegadas foi Neruda, que a reinventou a partir<br />

da sua casa La Sebastiana, construída no cerro Florida.


CIDADES INVISÍVEIS 28<br />

Neruda<br />

e a invenção<br />

de Valparaíso<br />

Sergio Vuskovic Rojo<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

29


«Não será<br />

simplesmente<br />

[Valparaíso]<br />

o fantasma de uma<br />

cidade que nunca<br />

pôde pertencer<br />

inteiramente a<br />

nenhum presente?»<br />

Agustín Squella<br />

Sempre me questionei sobre<br />

a atracção que Valparaíso exerceu<br />

sobre Neruda desde a sua mocidade<br />

até à sua maturidade criadora.<br />

Num exemplar do diário La<br />

Nación de 1973, a poetisa Sara<br />

Vial reproduziu algumas das<br />

palavras que proferiu em Paris,<br />

depois de receber o Prémio Nobel:<br />

«Mais do que nunca sinto falta<br />

do Chile e, com Matilde aqui a<br />

meu lado, da nossa querida Valparaíso.»<br />

No Estádio Nacional, aquando<br />

do seu regresso de França,<br />

após renunciar à embaixada,<br />

começa a sua história pessoal:<br />

«Nasci no centro do Chile, criei-<br />

-me em La Frontera, iniciei a<br />

minha educação em Santiago,<br />

Valparaíso conquistou-me.»<br />

Vaticinando o seu encontro<br />

com a morte, escreveu docemente:<br />

«Em Isla Negra os espero,<br />

entre ontem e Valparaíso.»<br />

E desta preocupação nasceram<br />

em mim algumas reflexões<br />

filosóficas e sociais.<br />

Valparaíso é um lugar metafísico,<br />

situado para lá da física,<br />

para lá do tempo e do espaço,<br />

para lá da história, uma urbe parada<br />

no tempo, fora desta época e<br />

que, todavia, vive e muda constantemente,<br />

é um centro mágico<br />

da existência.<br />

É talvez a única povoação<br />

deste país que não foi fundada<br />

pelos espanhóis, mas sim, no seu<br />

estatuto nobiliário, por vários<br />

poetas e escritores. Desde Nicanor<br />

Parra, que fala de «Valparaíso<br />

afundada para cima», a Gon-


CIDADES INVISÍVEIS 30<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

zalo Rojas, que considera a cidade<br />

como «obscuridade que sobe,<br />

obscuridade que desce», ou a<br />

Joaquín Edwards Bello, que defende<br />

que «Valparaíso não impõe<br />

ideias feitas. Cada qual a imagina<br />

à sua maneira», exaltando o<br />

carácter tolerante da primeira<br />

cidade chilena que acolheu imigrantes<br />

de todo o mundo, especialmente<br />

da Europa.Até à chegada<br />

do cigano Rodríguez que descobriu<br />

que «Valparaíso amarra<br />

como a fome». Cidade milagrosa<br />

criada pelos «cerrenhos» e pelos<br />

poetas.<br />

Naturalmente que deste afã<br />

de criação não escaparia Pablo<br />

que, num livro chamado Geografía,<br />

criou uma orografia imaginária:<br />

«Vamos a Valparaíso, vamos<br />

ao insólito porto sem portas, à<br />

porta dos vastos mares. Valparaíso<br />

é mínima e universal, sórdida<br />

e gloriosa: Valparaíso obscura<br />

arde na areia do Pacífico como<br />

uma brasa fria, como uma estrela<br />

de mil pontas.Valparaíso usurpou-me,<br />

submeteu-me ao seu<br />

domínio, ao seu dislate:Valparaíso<br />

é um montão, é um racimo de<br />

casas loucas, é um pássaro que<br />

cai sobre a tua cabeça, é uma<br />

criança pobre no meio do ferro<br />

velho, é uma mulher angustiada,<br />

é uma distância.<br />

Um casal, uma cama, Valparaíso<br />

é uma escada e três cavalos,<br />

outra escada que conduz às nuvens<br />

e outra que nos convida às<br />

vidas alheias, à intimidade escorregadia<br />

que nunca conseguiremos<br />

partilhar senão com os degraus<br />

pisados por um milhão de<br />

pés que passaram enfiando-se<br />

nos lençóis de Domingo, quando<br />

tudo corre escadas acima, para os<br />

cerros, para as famílias numerosas,<br />

para a pobreza de cima, pobreza<br />

orgulhosa e férrea temperada<br />

em todos os combates de<br />

terra e mar.»<br />

31<br />

VALPARAÍSO<br />

É UM LUGAR<br />

METAFÍSICO, SITUADO<br />

PARA ALÉM DA FÍSICA,<br />

PARA LÁ DO TEMPO<br />

E DO ESPAÇO, PARA LÁ<br />

DA HISTÓRIA, UMA URBE<br />

PARADA NO TEMPO,<br />

FORA DESTA ÉPOCA<br />

E QUE, TODAVIA,<br />

VIVE E MUDA<br />

CONSTANTEMENTE,<br />

É UM CENTRO MÁGICO<br />

DA EXISTÊNCIA.<br />

Valparaíso não é uma cidade,<br />

pois, por muito que falemos<br />

da cidade, esta, na verdade, não<br />

existe: é uma confederação de 42<br />

cerros e um vale. E, como se não<br />

bastasse, é fácil constatar que não<br />

tem um centro. Cada um imagina-o<br />

como quer. Por isso, Lukas<br />

afirmava que Valparaíso é a única<br />

cidade do Chile que não se parece<br />

com Quillota: aqui não há<br />

uma Praça de Armas ou uma<br />

Praça Maior. E, no entanto, existe<br />

uma harmonia subjacente na sua<br />

desordem. Como cidade, padece<br />

de irrealidade, tanta que, às vezes,<br />

o duque de Goicolea exclama,<br />

surpreendendo-se a si mesmo:<br />

«Valparaíso não existe.» E, por<br />

isso, o poeta Arturo Morales lhe<br />

recomenda: «Não gires, a cidade<br />

não existe» (23.º poema itinerante),<br />

desinventando Valparaíso.<br />

Como é possível que os<br />

cemitérios desfrutem da melhor<br />

vista sobre o mar, já que todos<br />

estão no cimo de alguns cerros?<br />

Durante o terramoto de 1965,<br />

no cemitério n.º 2 quebraram-se<br />

vários mausoléus e sepulturas<br />

comuns, produzindo-se uma<br />

«chuva de mortos na cidade»,<br />

como anunciou o El Mercurio.<br />

Quem poderia imaginar que<br />

apareceria um leão afogado na<br />

praia de Las Gaviotas à saída do<br />

leito da avenida Argentina? Valparaíso,<br />

cidade de África?!<br />

Melhor, parece que é um<br />

estado de alma. Manuel Peña<br />

Muñoz, por sua vez, sentiu: «Nada<br />

mais triste que o Cerro Alegre.<br />

Sobretudo num Domingo de<br />

Outono, quando no meio da<br />

neblina aparece o tocador de realejo,<br />

pela rua Munich, a tocar<br />

Violetas Imperiais». Ou o «mote<br />

mei» que irrompe com o seu<br />

farol entre as cascatas de neblina<br />

que anunciam as primeiras gotas<br />

de chuva.<br />

Na realidade, verdadeiramente,<br />

Valparaíso padece de um<br />

sentimento de irrealidade que<br />

evidencia o seu tom metafísico,<br />

como história do ser de Valparaíso,<br />

no qual são frequentes as<br />

rajadas de vento norte e também<br />

os ventos de irracionalidade e os<br />

encontros fortuitos.<br />

O professor alemão, doutor<br />

em literatura, Thomas Brons, o<br />

primeiro que propôs que Valparaíso<br />

fosse declarada Património<br />

Cultural da Humanidade pela<br />

UNESCO em 1993, escreveu:<br />

«No plano simbólico, eu diria<br />

que esta cidade cresce em busca<br />

do seu centro desconhecido» e,<br />

na forma de haiku, «Valparaíso,<br />

porta aberta a qualquer ser».<br />

Procurando o seu centro,<br />

andaremos pelo vale, subiremos<br />

ou desceremos por qualquer<br />

escadaria, mas poderá ocorrer<br />

que alguma não levará a parte<br />

nenhuma, como a que existe na<br />

avenida Francia com Colón, na


esquina do Liceu Eduardo de la<br />

Barra, atrás da bomba de gasolina.<br />

Ou, então, sofreremos uma<br />

espécie de ilusão óptica ao observarmos,<br />

de cima, as casas do<br />

porto porque nos mostram cinco<br />

paredes em vez de quatro, sendo<br />

a quinta o tecto multicor.<br />

Este espírito de tolerância<br />

também foi intuído por Pablo<br />

Neruda que, ao escrever o livro<br />

Valparaíso, exerceu a sua função<br />

criadora com uma topografia<br />

imaginária na qual aparecem 50<br />

cerros, quatro ou cinco dos quais<br />

são fruto da sua imaginação prodigiosa,<br />

mas que tinham nomes<br />

muito bonitos como El Árbol Copado,<br />

Del Buey, Del Cardenal, e termina<br />

com um toque de realidade<br />

nomeando El Cerro de la Florida:<br />

«Neste cerro está a minha casa»,<br />

ainda que os vizinhos do cerro<br />

Bella Vista digam que a Sebastiana<br />

está no seu cerro. E reclamam<br />

porque o poeta se esqueceu de o<br />

nomear.<br />

O logos portenho exibe-se através<br />

de uma arquitectura contorcionista,<br />

com casas velhas desequilibradas,<br />

imbricadas umas nas<br />

outras, amparando-se mutuamente,<br />

nos bairros antigos, dentro<br />

de labirintos de becos sujos<br />

em terra batida, alguns tão estreitos<br />

como o caminho de uma<br />

mina subterrânea. Becos em<br />

ziguezague, com escadas e escadinhas<br />

deformadas, com os<br />

degraus a diferente altura que, de<br />

vez em quando, terminam numa<br />

parede cega ou em casas malignas,<br />

criando uma atmosfera de<br />

pesadelo, de medo, ao ter que<br />

percorrê-los de noite ou quando<br />

as sombras começam a cobrir o<br />

mundo. Becos propensos a<br />

encontros fortuitos, devidos à<br />

ocorrência de circunstâncias ou<br />

da cumplicidade inverosímil<br />

entre fenómenos opostos. Em<br />

total contradição com a ilumina-<br />

O LOGOS PORTENHO<br />

EXIBE-SE ATRAVÉS<br />

DE UMA ARQUITECTURA<br />

CONTORCIONISTA,<br />

COM CASAS VELHAS<br />

DESEQUILIBRADAS,<br />

IMBRICADAS UMAS<br />

NAS OUTRAS,<br />

AMPARANDO-SE<br />

MUTUAMENTE,<br />

NOS BAIRROS ANTIGOS,<br />

DENTRO DE LABIRINTOS<br />

DE BECOS SUJOS<br />

EM TERRA BATIDA.<br />

ção dos bares ou dos restaurantes<br />

do vale.<br />

Esta convivência entre a<br />

sombra e a luz constitui, em<br />

grande parte, o logos da Valparaíso<br />

oitocentista que ressuscitou no<br />

século XXI, transmitido pelas<br />

gerações anteriores no século<br />

XX, e que devemos transmitir às<br />

gerações do século XXI. O seu<br />

logos sempre foi e é aventureiro,<br />

perigoso e fascinante porque não<br />

cessa de atrair com os seus<br />

encantos e abismos. Valparaíso<br />

não liberta os que cativou, como<br />

sucede com o jovem poeta norte-<br />

-americano Todd Temkins e com<br />

o pintor francês Thierry Defert,<br />

Loro Coirón. Entretanto, Ennio<br />

Moltedo e Allan Browne mantinham<br />

erguida a bandeira dos<br />

portenhistas.<br />

O arquitecto Carlos Alberto<br />

Cruz sustenta que, «entre 1850 e<br />

1920, Valparaíso possui o conjunto<br />

mais homogéneo de arqui-<br />

tectura do século XIX que se<br />

conserva na América, o que, porventura,<br />

lhe granjeará, num futuro<br />

próximo, o estatuto de cidade-museu<br />

viva, tal como Quito,<br />

Veneza e Edimburgo» (El Mercurio,<br />

20.11.1994).<br />

Os cerros e o raio verde: ao<br />

caminhar pelos becos ou pelas<br />

escadas dos cerros, no segundo<br />

crepúsculo que anuncia a noite,<br />

sempre sopra algo misterioso,<br />

ambíguo, tão indefinível como o<br />

próprio nome da cidade que não<br />

admite o seu gentílico correspondente<br />

(a não ser que aceitemos<br />

«valparaisino», proposto,<br />

em italiano, pelo professor Mauricio<br />

Nocera), já que portenho se<br />

refere ao porto; mas o que a define<br />

são os cerros e a sua sismografia,<br />

áreas encantadas da imaginação<br />

e a partir dos quais se<br />

pode ver correr o azul-lavanda da<br />

atmosfera cristalina ou o raio<br />

verde. Fulgor infinito, o último a<br />

aparecer sobre o mar antes que o<br />

Sol se esconda nos crepúsculos<br />

claros do fim de tarde, ao cair da<br />

noite, e que eu pensava que só<br />

existia como metáfora num<br />

verso de Pablo Neruda, até que o<br />

vi afundar-se no horizonte límpido,<br />

acompanhado de Nenita e<br />

Rodolfo Pumpin, como testemunhas.<br />

Todos os cerros e não apenas<br />

os da fundação, isto é, Cordillera,<br />

Alegre e Concepción, têm casas<br />

solarengas com estruturas e<br />

andares de madeiras nobres –<br />

tepa, carvalho americano, pinho<br />

«oregón», lariço das Guaitecas<br />

– guardadas por portas com<br />

maçanetas de bronze em forma<br />

de punho ou de cabeça de leão e<br />

as janelas de guilhotina que emitem<br />

sons e ruídos característicos<br />

ao abrir ou fechar.<br />

As divisões da casa apresentam<br />

geralmente rodapés de madeira,<br />

às vezes de pau duro de Caiena,


CIDADES INVISÍVEIS 32<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

A ÂNSIA DE MAR,<br />

DE LIBERDADE<br />

E AVENTURA FOI O QUE<br />

CONTRIBUIU PARA QUE<br />

AS GERAÇÕES PASSADAS<br />

NOS LEGASSEM<br />

ESTE VALPARAÍSO<br />

DO SÉCULO XIX,<br />

A NÓS,<br />

GENTE DO SÉCULO XX,<br />

QUE TEMOS<br />

COMO MISSÃO<br />

DEIXÁ-LO, COMO<br />

HERANÇA CULTURAL,<br />

ÀS GERAÇÕES<br />

DO SÉCULO XXI,<br />

33<br />

trazido das Guianas e que, passado<br />

um século, ainda exalam uma<br />

suave fragrância vegetal. Os escritórios,<br />

as salas de jantar e os<br />

quartos de dormir possuem formosas<br />

lareiras construídas por<br />

operários ingleses, trazidos especialmente<br />

de Londres. Os móveis<br />

eram da famosa oficina Cruz<br />

Montt, de Santiago.<br />

O Palácio Baburizza e as casas<br />

Astoreca e Antoncit tinham as<br />

suas respectivas salas de música.<br />

Nas casas antigas, os jardins<br />

são pequenos: copihues 1 , alfazema,<br />

filodendros paraguaios, aspidistras,<br />

etc. Com sebes de trepadeiras<br />

e canteiros cobertos de<br />

aromáticos jasmins e, nos maiores<br />

das casas solarengas, podem<br />

encontrar-se palmeiras, palmas<br />

chilenas, araucárias e camélias.<br />

Manuel Rojas, no seu romance<br />

Lanchas en la Bahía, não<br />

deixou de se fixar no gosto portenho<br />

pelos jardins e pelas árvores,<br />

o que também é visível nas<br />

casas mais modestas: «Alguns<br />

ranchos pendiam dos muros dos<br />

cerros, ostentando vasos de<br />

barro com cravos, malvas, cardenales<br />

e achiras.»<br />

Sendo muito importante o<br />

património material – arquitectónico,<br />

urbanístico e doméstico,<br />

com uma vida vivida nas casas e<br />

nos becos –, não é menos importante<br />

o património espiritual,<br />

ético que aqui se construiu: a<br />

emigração multiétnica e de diferentes<br />

continentes produziu a<br />

virtude da tolerância, típica do<br />

ser portenho, que sabe que detém<br />

uma parte da verdade, mas não<br />

toda a verdade; no próprio cerro<br />

Concepción, a um quarteirão de<br />

distância, encontram-se a Igreja<br />

Luterana, alemã, e a Igreja Anglicana<br />

de São Paulo, inglesa. Perto<br />

delas está a Igreja de São Luís,<br />

católica, nas imediações da qual<br />

os mormones construíram, recentemente,<br />

a sua igreja.<br />

Os antigos comerciantes e<br />

industriais eram, por sua vez,<br />

homens de cultura e, em alguns<br />

casos, refinada; Don Joaquín<br />

Edwards Bello sustenta que «a<br />

cortesia e a boa educação de<br />

Valparaíso têm uma parte do<br />

cunho inglês».<br />

Este espírito de tolerância,<br />

de cavalheirismo nas maneiras e<br />

certo bom gosto é a base da


ausência de fanatismo que envolve<br />

a cidade e que encontramos<br />

reflectida nos resultados de morte,<br />

na sequência do golpe de 11 de<br />

Setembro, em comparação com<br />

o massacre que se verificou em<br />

Santiago e nas zonas agrárias.<br />

Encontramos também esta<br />

ausência de fanatismos num dos<br />

seus locais mais belos, o cemitério<br />

n.º 2. Aí, onde se manteve até<br />

hoje, D. Vicente Martínez de<br />

Morentín, falecido a 29 de Agosto<br />

de 1914, mandou inscrever no<br />

seu jazigo de mármore: «Quarto<br />

do dono da casa.» No mesmo<br />

cerro La Cárcel, encontra-se o primeiro<br />

cemitério de dissidentes<br />

do Chile.<br />

Este espírito de tolerância e<br />

esta ausência de fanatismo parecem<br />

encontrar uma das suas raízes<br />

na ânsia de mar e de vastidão<br />

que sempre esteve presente na<br />

cultura portenha. O romancista Salvador<br />

Reyes escreveu em Los Tripulantes<br />

de la Noche: «Nas tardes mais<br />

luminosas, o porto era um grande<br />

barco. Cortava as amarras e<br />

lançava-se empurrado pelo vento<br />

das grandes aventuras»; e Carlos<br />

León, em Hombre del Traje Blanco,<br />

também investigou sobre o seu<br />

sentido metafísico e a sua abertura<br />

ao mundo: «Valparaíso é uma<br />

terra diferente. Sobe à cabeça<br />

como un vinho generoso»; e, em<br />

Hombres de Palabras, transforma-o<br />

num amigo: «o porto de Valparaíso<br />

que escolhi para viver<br />

como a um amigo».<br />

A ânsia de mar levou «aquele<br />

chileno» à tripulação do capitão<br />

Acab em Moby Dick, de Herman<br />

Melville, ou «àquele portenho»<br />

que D. Benjamín Subercaseux<br />

encontrou nas ruas de Tóquio<br />

conduzindo um riquexó,<br />

segundo conta num velho Pacífico<br />

Magazine.<br />

A ânsia de mar, de liberdade<br />

e aventura é que contribuiu para<br />

que as gerações passadas nos<br />

legassem esta Valparaíso do século<br />

XIX, a nós, gente do século<br />

XX, que temos como missão<br />

deixá-la, como herança cultural,<br />

às gerações do século XXI, libertando-a<br />

da especulação idílica e<br />

fazendo suas as aquisições provadas<br />

pela história e pela estética.<br />

Sara Vial, no seu imprescindível<br />

Neruda en Valparaíso, recorda a<br />

advertência feita pelo poeta nesta<br />

mesma sala, quando eu era alcaide<br />

desta cidade: «Todos os dias,<br />

vemos que voa um edifício e que<br />

dá lugar a um caixote de cimento.<br />

Não sou inimigo dos caixotes<br />

de cimento, mas há que saber<br />

onde construí-los, uma vez que,<br />

depois, virão as queixas e as<br />

lamentações.»<br />

O orador oceânico Augusto<br />

D´Halmar, o eterno viajeiro pela<br />

passagem Elias, afirma que «o<br />

seu nome sugere distância, exotismo,<br />

aventura. O seu nome, só<br />

por si, infiltra já nas veias dos<br />

sedentários ou dos inquietos o<br />

feitiço da viagem»; ainda mais<br />

agora que é património cultural<br />

da Humanidade. «Vamos a Valparaíso»,<br />

venha a Valparaíso e invente<br />

a sua própria Valparaíso.<br />

1 Planta trepadeira que dá uma flor vermelha, muito formosa,<br />

por vezes de cor branca. (N. da T.)


CIDADES INVISÍVEIS 34 35<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


Arquivo Histórico<br />

Ultramarino<br />

Caio Boschi<br />

BIBLIOTECA DE BABEL 36<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

São livros (em grande parte encadernados<br />

em pergaminho e em carneira); são incontáveis<br />

papéis manuscritos, de diversa tipologia (como cartas,<br />

requerimentos, alvarás, ofícios, decretos, provisões);<br />

são plantas de diferentes núcleos urbanos<br />

e populacionais; são desenhos representativos,<br />

37<br />

por exemplo, da fauna e da flora ultramarinas;<br />

são fotografias de missões científicas, viagens...<br />

eis o que se pode encontrar no Arquivo Histórico<br />

Ultramarino se nos aventurarmos pelos quinze<br />

quilómetros de documentação que aí se guardam.<br />

Salão Pompeia, sala nobre do Palácio da Ega. Fotografia do Arquivo Histórico Ultramarino


BIBLIOTECA DE BABEL 38<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Ao lançar-se à aventura marítima que o glorificaria,<br />

Portugal já se apresentava como país que,<br />

desde sempre, cuidou de preservar testemunhos<br />

escritos sobre sua trajetória histórica. No momento<br />

inaugural dos Descobrimentos, uma torre<br />

albarrã do castelo de São Jorge passou a abrigar o<br />

Livro do Tombo. Em simultâneo, criou-se o cargo de<br />

guarda-mor da Torre do Tombo, cujo primeiro<br />

titular, recordemo-nos, foi, cumulativamente, o<br />

cronista do Reino, ninguém menos do que Fernão<br />

Lopes.<br />

A saga das navegações e<br />

das conquistas, mais do que,<br />

obviamente, fazer crescer a<br />

dimensão e o volume da<br />

massa documental, diversificou<br />

a sua tipologia e a sua<br />

natureza. Quando nada porque<br />

a Expansão exigia e trouxe<br />

consigo os relatos que lhe<br />

eram inerentes e o estabelecimento<br />

de novos órgãos administrativos.<br />

Os documentos produzidos<br />

e recebidos pelas autoridades<br />

e repartições, metropolitanas<br />

e ultramarinas, foram<br />

tendo a Torre do Tombo como<br />

seu desaguadouro e depósito<br />

naturais. O Império se<br />

ampliou, se complexificou. E<br />

teve vida longa! Proliferaram-se<br />

as fontes históricas a<br />

ele relacionadas.<br />

Há tempos, o Tombo deixou<br />

de ser o celeiro que alimenta<br />

e faz as delícias dos<br />

estudiosos da História do<br />

vasto império colonial português.<br />

Ainda que não exclusivo,<br />

o locus privilegiado para tais incursões é o<br />

Arquivo Histórico Ultramarino, o AHU, como se apresenta<br />

nos rodapés bibliográficos, ou o Ultramarino,<br />

como ficou cunhado no jargão de seus freqüentadores.<br />

Sucessor do Arquivo Histórico Colonial, o<br />

Ultramarino tem sede, desde 1929, no antigo Palácio<br />

da Ega, à Junqueira, isto é, nas cercanias de Belém<br />

e do Restelo, inserção espacial que bem condiz<br />

com a evocação da epopéia expansionista lusitana.<br />

A massa documental que lhe deu origem perten-<br />

39<br />

A saga das navegações<br />

e das conquistas,<br />

mais do que,<br />

obviamente,<br />

fazer crescer<br />

a dimensão e o volume<br />

da massa documental,<br />

diversificou<br />

a sua tipologia<br />

e a sua natureza.<br />

cia ao Ministério das Colónias e, na altura, estava<br />

custodiada no Arsenal da Marinha e na Cordoaria<br />

Nacional. A ela se aduziu, naquela circunstância, o<br />

Archivo da Marinha e Ultramar ou Secção Ultramarina da<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa. O objetivo da nova<br />

instituição era inequívoco: congregar, em um só<br />

local, a dispersa documentação respeitante às possessões<br />

portuguesas do Ultramar; organizá-la e<br />

tratá-la tecnicamente, para, de seguida, oferecê-la<br />

à consulta.<br />

O advento do Ultramarino, formalmente<br />

institucionalizado, em<br />

1931, pelo Decreto-Lei n.°19.869,<br />

se explica muito bem à luz da<br />

política estadonovista para as possessões<br />

ultramarinas portuguesas.<br />

Ou seja, a criação do novo órgão,<br />

para além de propugnar inerentemente<br />

pela centralização dos fundos<br />

arquivísticos relativos àqueles<br />

territórios, tinha claro propósito<br />

prático-político, porquanto passava<br />

a permitir às autoridades de<br />

então acesso mais rápido e eficaz<br />

a documentos que lhes facultassem<br />

melhor e mais vertical compreensão<br />

de realidades históricas<br />

nas quais a seiva colonialista lusitana<br />

ainda se mantinha forte e<br />

ativa.<br />

Apesar de as aparências equivocadamente<br />

nos levarem a assim<br />

considerá-lo, o acervo do Ultramarino<br />

não se esgota ou não se<br />

limita a documentos relativos às<br />

ex-colônias portuguesas. O correto<br />

seria dizer que se trata de fontes<br />

respeitantes a lugares e a coletividades<br />

nos quais os portugueses<br />

se fizeram presentes e com as<br />

quais (man)tiveram relações da mais variada natureza.<br />

Assim, nas amplas e agradáveis instalações do<br />

número 30 da Calçada da Boa Hora nos deparamos<br />

com as alentadas e variegadas espécies documentais.<br />

São livros (em grande parte encadernados<br />

em pergaminho e em carneira); são incontáveis<br />

papéis manuscritos, de diversa tipologia<br />

(como cartas, requerimentos, alvarás, ofícios,<br />

decretos, provisões); são plantas de diferentes<br />

núcleos urbanos e populacionais; são desenhos<br />

representativos, por exemplo, da fauna e da flora


ultramarinas; são fotografias de missões científicas,<br />

viagens oficiais e que documentam a vida nos<br />

espaços africanos e asiáticos de língua portuguesa,<br />

eis o que encontramos quando nos aventuramos<br />

nessa Babel de fundos ultramarinos que é o<br />

Arquivo Histórico Ultramarino. Enfim, um considerável<br />

repertório de fontes históricas sobre o<br />

passado colonial do Brasil (1548-1825), Timor<br />

(1642-1975), Macau (1603-1975), Índia (1509-<br />

-1960), Cabo Verde (1602-1975), Guiné-Bissau<br />

(1614-1975), São Tomé e<br />

Príncipe (1538-1975), Angola<br />

(1610-1975) e Moçambique<br />

(1608-1975). Lá também nos deleitamos<br />

com documentos sobre<br />

o Norte Africano (1596-1832),<br />

sobre a Serra Leoa, sobre as rela-<br />

ções luso-persas (entre 1589 e<br />

1798), sobre o Japão (em particular,<br />

sobre a missionação e a<br />

presença religiosa dos portugueses,<br />

séculos XVI-XVII), sobre<br />

a região platina (entre os séculos<br />

XVII e XIX) e sobre as ilhas<br />

da Madeira (1513-1834) e dos<br />

Açores (1607-1834).<br />

Totalizando 15 quilómetros<br />

de documentação textual, cartográfica<br />

e iconográfica, à qual se<br />

junta uma biblioteca com cerca<br />

de 14.000 títulos de livros e<br />

680 de periódicos, o acervo do<br />

AHU se estrutura hoje, grosso<br />

modo, em três grandes conjuntos<br />

(ou fundos) documentais: o do<br />

Conselho Ultramarino (século XVI a<br />

1833), o da Secretaria de Estado<br />

dos Negócios da Marinha e<br />

Domínios Ultramarinos, dita<br />

Secretaria de Estado da Marinha e<br />

Ultramar (1833 a 1910), e o do Ministério do Ultramar<br />

(1911 a 1975), sem esquecer de fundos menores<br />

e singulares, como os do Instituto de Apoio ao<br />

Retorno de Nacionais, da Agência Geral das<br />

Colónias, do Banco Nacional Ultramarino e da<br />

Procuradoria dos Estudantes Ultramarinos.<br />

Com tudo isso, ou melhor, a despeito da<br />

intenção original, o que se constata, tal como<br />

ocorre em quase todas as instituições do gênero, é<br />

que o acervo do Ultramarino não tem sentido de<br />

completitude, seja pelas idas-e-vindas da docu-<br />

Ao simbolizar<br />

a Babel<br />

dos fundos<br />

arquivísticos de povos<br />

e de cultura<br />

ibero-americanos,<br />

o Ultramarino se aninha,<br />

oportuna<br />

e adequadamente,<br />

à <strong>Atlântica</strong>.<br />

mentação como, por exemplo, as mudanças das<br />

instalações físicas e o trânsito de partes dos fundos<br />

ocorridos no início do Dezenove, aquando da<br />

transferência da sede da Monarquia para o Rio de<br />

Janeiro, ou as trajectórias diversas dos arquivos<br />

após a extinção dos organismos de Antigo<br />

Regime, como o Conselho Ultramarino, ou do<br />

Estado Novo, após o 25 de Abril de 1974, caso do<br />

Ministério do Ultramar, seja porque documentos<br />

concernentes à administração colonial, por distintas<br />

razões, permaneceram ou<br />

foram incorporados aos fundos<br />

arquivísticos de outros órgãos,<br />

como no caso dos que se quedaram<br />

ou afluíram para a Torre<br />

do Tombo, para a Biblioteca do<br />

Palácio Nacional da Ajuda, para<br />

a Divisão de Manuscritos da<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa<br />

ou para o Arquivo Histórico do<br />

Tribunal de Contas, seja, ainda,<br />

pela ação de impróprias condições<br />

de aclimatização no armazenamento<br />

ou pelo deletério manuseio<br />

e consulta, posto que<br />

estes nem sempre são realizados<br />

por consulentes conscienciosos.<br />

A riqueza documental do<br />

AHU, a pouco e pouco, vem<br />

sendo divulgada em meio a sistemática<br />

política de acessibilidade<br />

ao acervo. Sem desdouro<br />

pelos ingentes esforços e resultados<br />

que se expressaram em<br />

outros tempos, enfatizem-se<br />

algumas iniciativas levadas a<br />

cabo nas últimas duas décadas.<br />

Assim, enquanto do ponto de<br />

vista do espaço físico e da infra-<br />

-estrutura um moderno e apropriado<br />

edifício se construiu e se acoplou ao prédio<br />

histórico do AHU, novos e sofisticados<br />

equipamentos foram incorporados, e importantes<br />

empreendimentos se desenvolvem no que<br />

respeita à democratização de acesso aos fundos<br />

documentais.<br />

Exemplo ilustrativo dessa segunda diretriz é<br />

a que se configurou no âmbito do Projeto Resgate,<br />

implementado a partir de 1996, como expressão<br />

operacional da Comissão Luso-Brasileira<br />

para Salvaguarda e Divulgação do Património


BIBLIOTECA DE BABEL 40<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Plantas do Brasil, Jacaranda Caroba, c. 1801.<br />

Ilustração do Arquivo Histórico Ultramarino<br />

Documental – COLUSO. Trata-se de gigantesca<br />

operação que objectivou, no que respeita à documentação<br />

manuscrita avulsa sobre o Brasil depositada<br />

no AHU, conferir-lhe tratamento técnico e, a<br />

partir dele, elaborar instrumentos de busca e disponibilizar<br />

mais facilitadamente aquela documentação<br />

à consulta pública. Este propósito efectivamente<br />

se cumpriu com a correspondente microfilmagem.<br />

Significa dizer, então, que o conteúdo<br />

de mais de duas mil caixas de documentos foi organizado,<br />

lido, sumariado e catalogado, permitindo<br />

que os verbetes-sumários servissem de sinaléticas<br />

para os cerca de três milhões de fotogramas dos<br />

microfilmes. Ainda como parte do Projeto, microfilmaram-se<br />

os 759 Códices do Fundo da Secretaria<br />

do Conselho Ultramarino relativos ao Brasil. O<br />

producto mais patente e utilitário desses esforços,<br />

afora evidentemente a reprodução microfílmica, é<br />

uma colecção de 279 CD-ROM que, produzidos<br />

entre 1996 e 2002, foram ofertados a instituições<br />

universitárias e centros de investigação.<br />

41<br />

Ademais, cumpre salientar um efeito colateral<br />

desta iniciativa: o desejável intuito de estender as<br />

actividades do Resgate à documentação concernente<br />

às outras partes do império colonial português<br />

que se encontra igualmente armazenada no AHU.<br />

Ou mesmo de se efetuar a identificação definitiva<br />

e o tratamento arquivístico do Reino, núcleo composto<br />

por 500 caixas de documentos avulsos e cuja<br />

organicidade só agora começa a ser detectada e<br />

identificada criticamente.<br />

Com tais actividades e utilizando-se alargadamente<br />

os avanços tecnológicos, mais do que<br />

nunca vai sendo possível investigar e analisar, com<br />

maior segurança, o real sentido e significado do<br />

império ultramarino português. É nesse horizonte,<br />

pois, que conhecer a potencialidade informativa<br />

do acervo do AHU se apresenta como necessidade<br />

ímpar para, por exemplo, alcançarmos maior<br />

discernimento nem tanto sobre as afinidades existentes<br />

entre os lusofalantes, mas, sobretudo, das<br />

diferenças que nos singularizam.<br />

É flagrante o dinamismo no cotidiano do<br />

Ultramarino. Por conseguinte, tecer loas à qualidade<br />

do seu recheio documental implica conhecer as<br />

condições de acessibilidade ao mesmo. Nesse sentido<br />

e para finalizar, há que se referir a iniciativas,<br />

em grande parte já materializadas, concernentes<br />

quer ao tratamento técnico e à acomodação física<br />

do acervo, quer à informatização do acervo, quer,<br />

ainda, à produção e veiculação de instrumentos de<br />

pesquisa. Em outras palavras, abrem-se portas e<br />

janelas para que, quando nada, se possa desmonumentalizar<br />

a documentação ali recolhida. Ao simbolizar<br />

a Babel dos fundos arquivísticos de povos e de<br />

cultura ibero-americanos, o Ultramarino se aninha,<br />

oportuna e adequadamente, à <strong>Atlântica</strong>.<br />

Figurinos militares da Baía, 1806. Ilustração do Arquivo Histórico Ultramarino


SANTOS DA CASA 42 43<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

O diabo e as virgens<br />

texto e fotografias Julio Pantoja<br />

As celebrações oscilam entre sinceras promessas à Virgem<br />

e oferendas ao Diabo e a Pachamama;<br />

entre passeios familiares e o álcool ou o sexo urgente<br />

com alguma mascarinha. Coisas de santos da casa.


SANTOS DA CASA 44 45<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Em Oruro, tecto do continente<br />

e coração do altiplanalto<br />

boliviano, houve uma vez um<br />

grande centro cerimonial a<br />

quase 4000 metros de altitude.<br />

Ali, os índios urus adoraram,<br />

desde a Pré-história,<br />

Huari, deus da força<br />

e o fogo da montanha.<br />

Com o tempo, a cultura quechua fez<br />

seu esse deus, transformando-o em Zupay,<br />

que mais não é do que a versão indígena<br />

do Diabo da fé católica, o protector dos<br />

socavones, a que os mineiros chamam «El<br />

Tío» e ao qual levam como oferenda<br />

folhas de coca e cigarros para que não se<br />

aborreça, porque, se se aborrecer, provocará<br />

tremores de terra e desabamentos.<br />

Noutra etapa histórica de dualismo<br />

religioso, entre os anos 1700 e 1900, aproximadamente,<br />

a Pachamama andina (Mãe<br />

Terra) transformou-se na Virgem do<br />

Socavón, ampliando o sincretismo e a dinâmica<br />

da fé por intermédio desta mutação<br />

religiosa.<br />

Hoje, o seu templo está exactamente<br />

no lugar onde os bruxos e os feiticeiros<br />

faziam os seus conciliábulos. Ali mesmo,<br />

nessa igreja, também desemboca a galeria<br />

de uma velha jazida que, transformada<br />

num museu mineiro, é presidida pelo<br />

mesmíssimo Diabo. E para esse centro<br />

sagrado se dirigem ainda os que sentem<br />

nos seus espíritos o peso do misticismo<br />

milenário.<br />

Tudo isto foi sempre patrocinado pela<br />

Igreja Católica do colonizador espanhol<br />

que, durante séculos, procurou o modo<br />

de hegemonizar a religiosidade em todo o<br />

continente, ainda que à custa de esvanecer<br />

os seus contornos tradicionais.<br />

Os sacerdotes construíram os seus<br />

templos nos antigos lugares sagrados,<br />

para que os indígenas entrem nesses<br />

recintos, agora católicos, para cantarem e<br />

dançarem à sua maneira. Não lhes importava.<br />

O objectivo era transculturizar os<br />

que resistiam a crer na fé trazida de outro<br />

continente.<br />

As datas das celebrações, que a princípio<br />

tinham a ver com a estação das<br />

chuvas, foram-se ajustando a pouco e<br />

pouco aos feriados autorizados pelos<br />

padres e patrões, até ficarem definitivamente<br />

integradas no Carnaval do calendário<br />

oficial.<br />

Actualmente, tão curiosa mistura<br />

permite que, em cada ano, mais de<br />

40.000 peregrinos, na sua maioria disfarçados<br />

de diabos, e encabeçados pelo bispo<br />

da cidade, desfilem dançando ao longo de<br />

vários quilómetros, enquanto adoram ao<br />

mesmo tempo a Virgem católica e o<br />

Diabo.<br />

Dentro desse paradoxo, as celebrações<br />

oscilam entre sinceras promessas à Virgem<br />

e oferendas ao Diabo e a Pachamama,<br />

entre passeios familiares e o álcool ou o<br />

sexo urgente com alguma mascarinha.<br />

Coisas de virgens e diabinhos.


SANTOS DA CASA 46 47<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


SANTOS DA CASA 48 49<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


SANTOS DA CASA 50 51<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 52<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

52<br />

Tal como Waldseemüller se precipitou ao<br />

baptizar o Novo Mundo de América,<br />

também Colombo cometeu o erro fatal de<br />

designar os seus habitantes como índios.<br />

Pior que o termo foi o conceito que foi<br />

dando corpo a uma acesa polémica,<br />

representada por Bartolomeu de las<br />

Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, que<br />

duraria séculos e que, ainda hoje, segun-<br />

do o sociólogo Boaventura de Sousa<br />

Santos, alimenta preconceitos culturais<br />

subjacentes ao sistema capitalista.<br />

A generalização do termo índio a toda a<br />

América mistificou o retrato de um con-


tinente que apresentava, no alvor da<br />

modernidade europeia, uma óbvia com-<br />

plexidade cultural. Do México ao Peru,<br />

das ilhas caribenhas ao litoral brasileiro<br />

e ao rio da Prata, o panorama era muito<br />

diverso – de sociedades fortemente hie-<br />

rarquizadas a comunidades seminóma-<br />

das e recolectoras. Fiquemos, por ora,<br />

pelo Brasil, acompanhando Jorge Couto<br />

e Vítor Serrão. O primeiro apresenta-nos<br />

as comunidades pré-cabralinas, e o<br />

segundo, a representação do índio na<br />

pintura portuguesa de Quinhentos.<br />

Organização de Maria da Graça M. Ventura


A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

54 55<br />

O selvagem<br />

Boaventura de Sousa Santos<br />

É, ainda, o paradigma fundado na violência civilizadora<br />

do Ocidente que mobiliza subterraneamente os projectos<br />

de desenvolvimento, depois enfeitados com declarações<br />

de solidariedade e direitos humanos, escreve Boaventura<br />

de Sousa Santos no terceiro volume da Gramática<br />

do Tempo.Aqui fica um excerto dessa obra fundamental<br />

que visa fundar uma nova cultura política<br />

e um novo senso comum.<br />

Índio tupi. Albert Eckout, 1641. Copenhaga, National Museum of Denmark


1 Num dos relatos recolhidos<br />

por Ana Barradas, os índios<br />

são descritos como<br />

«(…) verdadeiros seres<br />

inumanos, bestas da floresta<br />

incapazes de compreender<br />

e fé católica (…), esquálidos<br />

selvagens, ferozes e vis,<br />

parecendo-se mais animais<br />

selvagens em tudo menos<br />

na forma humana (…)»<br />

(1992: 34).<br />

2 Rousseau, no seu<br />

«Discurso sobre a Origem<br />

da Desigualdade entre os<br />

Homens», publicado em<br />

1755, defende que o homem<br />

nasce bom e sem vícios<br />

– o bom selvagem –, mas<br />

é pervertido pela sociedade<br />

civilizada (Rousseau, 1971<br />

(1755).<br />

3 Num trabalho anterior,<br />

Frei Bartolomé de Las Casas<br />

denuncia a «destruição<br />

de África» (1996), através<br />

do roubo, comércio de<br />

escravos, etc.<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 56<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

57<br />

Se o Oriente é, para o Ocidente, o lugar<br />

de alteridade, o selvagem é o lugar da inferioridade.<br />

O selvagem é a indiferença incapaz<br />

de se constituir em alteridade. Não é o<br />

outro porque não é sequer plenamente<br />

humano 1 .A sua diferença é a medida da sua<br />

inferioridade. Por isso, longe de constituir<br />

uma ameaça civilizacional, é tão-só ameaça<br />

do irracional. O seu valor é o valor da sua<br />

utilidade. Só merece a pena confrontá-lo na<br />

medida em que ele é um recurso ou a via de<br />

acesso a um recurso. A incondicionalidade<br />

dos fins – a acumulação dos metais preciosos,<br />

a expansão da fé – justifica o total pragmatismo<br />

dos meios: escravatura, genocídio,<br />

apropriação, conversão, assimilação.<br />

Os jesuítas, despachados quase ao<br />

mesmo tempo, ao serviço de D. João III,<br />

para o Japão e para o Brasil, foram os primeiros<br />

a testemunhar a diferença entre o<br />

Oriente e o selvagem:<br />

«Entre o Brasil e esse vasto Oriente, a<br />

disparidade era imensa. Lá, povos de requintada<br />

civilização… Aqui florestas virgens e<br />

selvagens nus. Para o aproveitamento da<br />

terra pouco se poderia contar com sua rarefeita<br />

população indígena cuja cultura não<br />

ultrapassava a idade da pedra. Era necessário<br />

povoá-la, estabelecer na terra inculta a verdadeira<br />

«colonização». Não assim no<br />

Oriente, superpovoado, onde a Índia, o<br />

Japão e, sobretudo, a China haviam deslumbrado,<br />

em plena Idade Média, os olhos e a<br />

imaginação de Marco Polo» (Viotti, 1984: 12).<br />

A ideia do selvagem passou por várias<br />

metamorfoses ao longo do milénio. O seu<br />

antecedente conceptual está na teoria da<br />

«escravatura natural» de Aristóteles. Segundo<br />

esta teoria, a natureza criou duas partes,<br />

uma superior, destinada a mandar, e a outra<br />

inferior, destinada a obedecer. Assim, é<br />

natural que o homem livre mande no<br />

escravo, o marido, na mulher, o pai, no<br />

filho. Em qualquer destes casos, quem obedecer<br />

está total ou parcialmente privado da<br />

razão e da vontade e, por isso, é do seu<br />

interesse ser tutelado por quem tem uma e<br />

outra em pleno. No caso do selvagem, esta<br />

dualidade atinge uma expressão extrema,<br />

na medida em que o selvagem não é sequer<br />

plenamente humano: meio animal, meio<br />

homem, monstro, demónio, etc. Esta<br />

matriz conceptual variou ao longo do<br />

milénio e, tal como sucedeu com o Oriente,<br />

foi a economia política e simbólica da<br />

definição do «Nós», de Montaigne a Rousseau,<br />

de Bartolomé de Las Casas ao Padre<br />

António Vieira que esteve na base das visões<br />

positivas do selvagem, o «bom selvagem» 2 .<br />

No segundo milénio, a América e a<br />

África, enquanto «descobertas» ocidentais,<br />

foram o lugar por excelência do selvagem.<br />

E a América, talvez mais do que a África,<br />

dado o modelo de conquista e colonização<br />

no «Novo Mundo», como significativamente<br />

foi designado por Américo Vespúcio,<br />

o continente que rompia com a geografia<br />

do mundo antigo, confinado à Europa,<br />

à Ásia e à África. É a propósito da América<br />

e dos povos indígenas submetidos ao<br />

jugo europeu que se suscita o debate fundador<br />

sobre a concepção do selvagem no<br />

segundo milénio. Este debate que, contrariamente<br />

às aparências, está hoje tão em<br />

aberto como há quinhentos anos, inicia-se<br />

com as descobertas de Cristóvão Colombo<br />

e Pedro Álvares Cabral e atinge o seu clímax<br />

na «Disputa de Valladolid», convocada em<br />

1550 por Carlos V, em que se confrontaram<br />

dois discursos paradigmáticos sobre os<br />

povos indígenas e a sua dominação, protagonizados<br />

por Juan Ginés de Sepúlveda e<br />

Bartolomé de Las Casas. Para Sepúlveda<br />

(1979), fundado em Aristóteles, é justa a<br />

guerra contra os índios porque estes são os<br />

«escravos naturais», seres inferiores, animalescos,<br />

homúnculos, pecadores graves e<br />

invertebrados, que devem ser integrados na<br />

comunidade cristã, pela força, se for caso<br />

disso, a qual, se necessário, pode levar à sua<br />

eliminação. Ditado por uma moral superior,<br />

o amor do próximo pode, assim, sem<br />

qualquer contradição, justificar a destruição<br />

dos povos indígenas: na medida em<br />

que resistem à dominação «natural e justa»<br />

dos seres superiores, os índios tornam-se<br />

culpados da sua própria destruição. É para<br />

seu próprio benefício que são integrados<br />

ou destruídos.<br />

A este paradigma da descoberta imperial,<br />

fundado na violência civilizadora do<br />

Ocidente 3 , contrapôs Las Casas (1992) a sua<br />

luta pela libertação e emancipação dos<br />

povos indígenas das Américas, que conside-


ava seres racionais e livres, dotados de cultura<br />

e instituições próprias, com as quais a<br />

única relação legítima era a do diálogo<br />

construtivo assente em razões persuasivas<br />

«suavemente atractivas e exortativas da vontade».<br />

Fustigando a hipocrisia dos conquistadores,<br />

como mais tarde fará o Padre António<br />

Vieira, Las Casas denuncia a declaração<br />

da inferioridade dos índios como um artifício<br />

para compatibilizar a mais brutal exploração<br />

com o imaculado cumprimento dos<br />

ditames da fé e dos bons costumes. Pese<br />

embora o brilho de Las Casas, foi o paradigma<br />

de Sepúlveda que prevaleceu. Porque só<br />

esse era compatível com as necessidades do<br />

novo sistema mundial capitalista e colonial,<br />

centrado na Europa.<br />

No terreno concreto da missionação,<br />

dominaram quase sempre as ambiguidades<br />

e os compromissos entre os dois paradigmas.<br />

O padre José de Anchieta é talvez um<br />

dos primeiros exemplos. Tendo repugnância<br />

pela antropofagia e pela concupiscência<br />

dos brasis, «gente bestial e carniceira», o<br />

padre Anchieta acha legítimo sujeitar os<br />

gentios ao jugo de Cristo que «assim (…)<br />

serão obrigados a fazer, por força, aquilo a<br />

que não é possível levá-los por amor» 4 ,ao<br />

mesmo tempo que de Roma os seus superiores<br />

lhe recomendam que evite atritos<br />

com os portugueses, «pelo que importa<br />

mantê-los benévolos» 5 . Mas, por outro lado,<br />

tal como Las Casas, Anchieta embrenha-se<br />

no conhecimento dos costumes e das línguas<br />

indígenas e vê nos ataques dos índios<br />

aos portugueses o castigo divino «pelas<br />

muitas sem-razões que têm feito a esta<br />

nação, que dantes eram nossos inimigos,<br />

salteando-os, cativando-os, e matando-os,<br />

muitas vezes com muitas mentiras e enganos»<br />

6 . Quase vinte anos depois, haveria<br />

Anchieta de se lamentar que «a maior parte<br />

dos índios, naturais do Brasil, está consumida,<br />

e alguns poucos, que se hão conservado<br />

com a diligência e trabalhos da Companhia,<br />

são tão oprimidos que em pouco<br />

tempo se gastarão 7 .<br />

Com matizes vários, é o paradigma de<br />

Sepúlveda que ainda hoje prevalece na<br />

posição ocidental sobre os povos ameríndios<br />

e os povos africanos. Apesar de<br />

expulsa das declarações universais e dos<br />

discursos oficiais, é, contudo, a posição<br />

que domina as conversas privadas dos<br />

agentes do Ocidente no Terceiro Mundo,<br />

sejam eles embaixadores, funcionários da<br />

ONU, do Banco Mundial ou do Fundo<br />

Monetário Internacional, cooperantes,<br />

empresários, etc. É esse discurso privado<br />

sobre pretos e índios que mobiliza subterraneamente<br />

os projectos de desenvolvimento,<br />

depois enfeitados publicamente<br />

com declarações de solidariedade e direitos<br />

humanos.<br />

Maximiliano de Wied-Neuwied, «Caçador surpreendendo araras no Rio Grande de Belmonte» (Outubro de 1816).<br />

Aguarela e pena. Colecção Robert Bosch, Stuttgart<br />

4 Carta de 1.10.1554,<br />

em Obras Completas,<br />

volume 6: 79.<br />

5 Carta do general Everardo<br />

para o padre José Anchieta,<br />

de 19 de Agosto de 1579.<br />

Em Obras Completas,<br />

volume 6: 299.<br />

6 Carta de 8 de Janeiro de 1565,<br />

em Obras Completas,<br />

volume 6: 210.<br />

7 Carta a 7 de Agosto de 1583,<br />

em Obras Completas,<br />

volume 6: 338.<br />

SANTOS, Boaventura de Sousa.<br />

A Gramática do Tempo –<br />

para uma nova cultura política<br />

– Para um novo senso<br />

comum. A ciência, o direito e<br />

a política na transição paradigmática.<br />

Porto: Edições<br />

Afrontamento, 2006, volume<br />

4, cap. 5, pp. 173-175.


As sociedades ameríndias<br />

da floresta tropical<br />

Jorge Couto<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 58 59<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

«Mappa do Continente da Colonia do Sacramento, Rº. Grande de S. Pedro the a Ilha de S. Catharina com a Linha divizoria da Arraya ajustada pelo<br />

Tratado de Limites Celebrado entre as Corôas de Portugal e Castela em o anno de MDCCL», posterior a 1750. Biblioteca Pública Municipal do Porto


1 Cf. Aryon Dall’Igna<br />

RODRIGUES, Línguas<br />

Brasileiras. Para<br />

o conhecimento das<br />

línguas indígenas,<br />

São Paulo, 1987, pp. 41-98.<br />

2 Cf. Alfred MÉTRAUX,<br />

La Civilisation<br />

Matérielle des Tribus<br />

Tupi-Guarani, Paris, 1928,<br />

p. 312.<br />

3 Cf. Aryon Dall’Igna<br />

RODRIGUES, «A Classificação<br />

do Tronco Linguístico Tupi»,<br />

in <strong>Revista</strong> de<br />

Antropologia (São Paulo),<br />

12 (1964), pp. 103-104.<br />

4 Donald W. LATHRAP,<br />

O Alto Amazonas, trad.<br />

port., Verbo, Lisboa, 1975,<br />

pp. 81-84.<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 60<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

61<br />

Ao longo do milenar processo de<br />

povoamento do território que viria a<br />

denominar-se Brasil, verificou-se uma<br />

progressiva diferenciação linguística e<br />

civilizacional entre os descendentes dos<br />

primitivos povoadores. Por volta de 5000<br />

anos A.P. (Antes do Presente), registou-se<br />

um acentuado crescimento demográfico e<br />

ocorreram diversos movimentos migratórios<br />

que estiveram na origem do aparecimento<br />

de grupos populacionais crescentemente<br />

individualizados.<br />

Os ameríndios, que se fixaram no<br />

espaço brasílico e nas imediações das suas<br />

actuais fronteiras, são agrupados, de acordo<br />

com critérios linguísticos, do seguinte<br />

modo: troncos (Macro-Tupi e Macro-Jê);<br />

grandes famílias (Caribe, Aruaque e<br />

Arauá); famílias menores situadas a norte<br />

do Amazonas (Tucano, Macú e Ianomámi)<br />

e famílias menores estabelecidas a sul do<br />

mesmo rio (Guaicurú, Nambiquára,Txapacúra,<br />

Páno, Múra e Catuquína), bem como<br />

grupos isolados (Aricapú, Auaquê, Irántche,<br />

Jabutí, Canoê, Coiá,Trumai e outras) 1 .<br />

O tronco Macro-Tupi é constituído<br />

por sete famílias (Tupi-Guarani, Mundurucu,<br />

Juruna, Ariquém, Tupari, Ramarama<br />

e Mondé) que se dividem em vários grupos<br />

(línguas) e subgrupos (dialectos).<br />

Refira-se, a título exemplificativo, que o<br />

subgrupo Guajajara pertence ao grupo<br />

Teneteára, integrado, por sua vez, na família<br />

Tupi-Guarani, um dos sete ramos do<br />

Macro-Tupi.<br />

Desde o século XIX têm sido desenvolvidas<br />

diversas tentativas, iniciadas por<br />

Carlos Frederico von Martius (Leipzig,<br />

1867), para determinar o centro de dispersão<br />

da família Tupi-Guarani. Segundo<br />

Alfred Métraux, esse local situava-se na<br />

região limitada a norte pelo Amazonas, a<br />

sul pelo rio Paraguai, a este pelo rio Tocantins<br />

e a oeste pelo rio Madeira 2 . Por seu<br />

turno,Aryon Dall’Igna Rodrigues, baseado<br />

em elementos linguísticos e no método da<br />

glotocronologia, aponta a zona do rio<br />

Guaporé (alto Madeira) como centro de<br />

difusão dos falantes do tronco Macro-Tupi<br />

há 5000 anos A.P., sugerindo que a separação<br />

da família Tupi-Guarani ocorreu ao<br />

redor de 2500 anos A.P. 3 .<br />

Apoiados na análise comparativa das<br />

características da cerâmica amazónica e<br />

tupi-guarani e em estudos de natureza linguística,<br />

diversos antropólogos e arqueólogos<br />

(Evans, Meggers, Lathrap) defendem<br />

que o centro de diferenciação do tronco<br />

Macro-Tupi deve ser procurado na Amazónia.<br />

O último autor considera acertado<br />

localizar «a zona de origem da comunidade<br />

de idiomas prototupi-guarani na margem<br />

sul do Amazonas, um pouco abaixo da<br />

confluência do rio Madeira» (há cerca de<br />

5000 anos A.P.), apontando a foz do Amazonas<br />

como área de dispersão, ao redor de<br />

2500 anos A.P., dos falantes da «protolíngua<br />

tupi-guarani propriamente dita» 4 .<br />

Uma tese datada de 1982 e baseada<br />

nos métodos da glotocronologia sugere<br />

que o tronco Macro-Tupi teve a sua origem,<br />

por volta de 5000 anos A.P, na região<br />

situada entre os rios Jiparaná e Aripuanã,<br />

tributários da margem direita do rio<br />

Madeira, um dos afluentes do baixo Amazonas.<br />

Os recursos alimentares fornecidos<br />

pela borda meridional amazónica – zona<br />

de florestas entrecortadas de cerrados –<br />

terão possibilitado aos grupos de caçadores-recolectores<br />

do tronco Macro-Tupi, no<br />

período compreendido entre 4000 a 2000<br />

anos A.P., um importante acréscimo da<br />

densidade populacional que esteve na origem<br />

de um primeiro movimento de<br />

expansão geográfica e de diferenciação linguística<br />

que os conduziu a leste até ao alto<br />

Xingu, a oeste ao alto Madeira e a sul ao rio<br />

Guaporé, processo de que resultou a formação<br />

das sete famílias deste tronco e, consequentemente,<br />

a individualização dos<br />

Tupi-Guarani. Nesta fase, é altamente provável<br />

que tenham adquirido e desenvolvido<br />

as técnicas da domesticação de plantas,<br />

da fabricação de cerâmica, da confecção da<br />

rede-de-dormir e da navegação fluvial.<br />

Por volta do início da Era Cristã, o<br />

crescimento demográfico e os efeitos de<br />

um persistente surto de seca que afectava,<br />

desde cerca de 3000 anos A.P., a floresta<br />

equatorial amazónica, bem como a generalidade<br />

do território brasílico, provavelmente<br />

obrigaram os Tupi-Guarani a buscar<br />

novos nichos ecológicos que proporcio-


nassem condições de subsistência adequadas<br />

a horticultores da floresta tropical e<br />

ceramistas: zonas de mata situadas na proximidade<br />

de cursos de água navegáveis;<br />

áreas pouco acidentadas, húmidas, pluviosas<br />

e quentes ou, no mínimo, temperadas.<br />

Pelo contrário, as regiões semiáridas, montanhosas<br />

ou frias nunca despertaram o seu<br />

interesse.<br />

As migrações destas populações levaram-nas<br />

a ocupar, sobretudo, a vizinhança<br />

das terras banhadas pelos mais importantes<br />

rios e a progredir para sul, alcançando,<br />

pelo interior, há cerca de 1800 anos, os férteis<br />

vales do Paraguai, Paraná, Uruguai e<br />

Jacuí, bem como dos seus afluentes. A partir<br />

dessa área, irradiaram, posteriormente,<br />

para leste, ocupando paulatinamente a orla<br />

marítima compreendida entre o Rio Grande<br />

do Sul e o Ceará 5 .<br />

Das importantes movimentações empreendidas<br />

pelos Tupi-Guarani no decurso da<br />

presente Era resultou, por volta dos séculos<br />

VIII-IX, a sua separação em dois grupos linguísticos<br />

distintos: o tupi («pai supremo,<br />

tronco da geração») e o guarani («guerra»).<br />

O primeiro abrange as populações que se<br />

instalaram ao longo da maior parte da<br />

região costeira tropical; o segundo engloba<br />

os grupos que estabeleceram o seu habitat<br />

na área subtropical – Mato Grosso do Sul,<br />

região meridional do Brasil, Paraguai, Uruguai<br />

e Nordeste da Argentina – após expulsarem<br />

os seus primitivos ocupantes, povos<br />

exclusivamente caçadores-recolectores précerâmicos,<br />

tecnologicamente inferiores e<br />

criadores de indústrias líticas designadas<br />

por «Tradição Humaitá» 6 .<br />

Os Prototupi apropriaram-se das terras<br />

mais quentes da faixa atlântica, dedicando-<br />

-se à cultura da mandioca amarga, enquanto<br />

os Protoguarani colonizaram as terras temperadas,<br />

especializando-se no cultivo do<br />

milho 7 . O processo de diferenciação dos<br />

Tupiguarani repercutiu-se, também, nas<br />

tradições cerâmicas, tendo os Tupi desenvolvido<br />

a «subtradição pintada», e os Guarani<br />

a «subtradição corrugada».<br />

Uma proposta de reconstrução das<br />

migrações Tupi-Guarani – elaborada a partir<br />

dos resultados de investigações linguísticas,<br />

etnográficas e arqueológicas – adian-<br />

ta que a separação entre os Prototupi e os<br />

Protoguarani se terá verificado, há cerca de<br />

2500 anos A.P., numa área situada entre a<br />

foz do rio Madeira e a ilha de Marajó. Uma<br />

forte pressão demográfica teria impelido<br />

os Protoguarani para sul, através dos cursos<br />

dos rios Madeira e Guaporé, chegando, por<br />

volta do início da presente Era, ao sistema<br />

fluvial Paraná-Paraguai-Uruguai. Os Prototupi,<br />

por seu turno, estabelecidos na bacia<br />

amazónica, ter-se-iam fragmentado em<br />

vários subgrupos que, entre os séculos VI-XI,<br />

ocuparam paulatinamente o litoral até às<br />

proximidades do Trópico de Capricórnio,<br />

onde depararam com os Guarani. Iniciaram,<br />

então, a penetração no planalto meridional,<br />

estabelecendo-se a fronteira entre<br />

os dois grupos linguísticos ao sul do curso<br />

do Tietê 8 .<br />

O modelo explicativo mais recente<br />

sobre a origem e dispersão do tronco<br />

Macro-Tupi – que utiliza o método da<br />

reconstrução desenvolvido na linguística<br />

comparativa para determinar as relações<br />

genéticas entre as línguas e, desse modo,<br />

elaborar as respectivas árvores genealógicas<br />

– defende a hipótese de que este tronco<br />

linguístico teve o seu berço algures na<br />

região delimitada pelos afluentes orientais<br />

do Madeira e as cabeceiras dos rios Tapajós<br />

e Xingu, em áreas de altitudes da ordem<br />

dos 200 a 1000 metros e, em média, acima<br />

dos 500 metros, eventualmente o chapadão<br />

dos Parecis. No período compreendido<br />

entre 5 a 3000 anos A.P., ter-se-á iniciado o<br />

processo de dispersão dessas populações,<br />

numa área localizada aproximadamente<br />

entre as nascentes dos rios Madeira e<br />

Xingu, de que resultou a individualização<br />

das sete famílias do tronco Macro-Tupi,<br />

entre as quais assumiu posição de relevo a<br />

Tupi-Guarani.<br />

Há cerca de 2000 a 3000 anos, ter-se-á<br />

verificado a primeira grande movimentação<br />

expansionista da família Tupi-Guarani,<br />

que provocou a migração dos Cocama e<br />

dos Omágua para norte, rumo à região<br />

amazónica, dos Guaiaqui para sul, em<br />

direcção ao Paraguai, e dos Xirionó para<br />

sudoeste, onde penetraram em território<br />

actualmente pertencente à Bolívia. Seguidamente,<br />

eclodiu a fase de separação do<br />

5 Cf. Ernest C. MIGLIAZZA,<br />

«Linguistic Prehistory and the<br />

Refuge Model in Amazonia»,<br />

in Biological<br />

Diversification in the<br />

Tropics, ed. de G.T. Prance,<br />

Nova Iorque, 1982,<br />

pp. 497-519.<br />

6 Cf. Arno Alvarez KERN,<br />

«Les Groupes Préhistoriques<br />

de la région Sud-brésilienne<br />

et les changements des<br />

páleo-milieux: une analyse<br />

diachronique», in <strong>Revista</strong><br />

de Arqueología<br />

Americana<br />

(Cidade do México), 4 (1991),<br />

pp. 101-121.<br />

7 Cf. Pedro Ignácio SCHMITZ,<br />

«Migrantes da Amazónia:<br />

a tradição tupiguarani»,<br />

in Arqueologia<br />

Pré-Histórica do Rio<br />

Grande do Sul,<br />

pp. 301-302.<br />

8 Cf. José Proenza BROCHADO,<br />

«A Expansão dos Tupi e da<br />

Cerâmica da Tradição<br />

Policrômica Amazónica»,<br />

in Dédalo (São Paulo),<br />

27 (1989), pp. 65-82.


9 Cf. GREG URBAN, «A História<br />

da Cultura Brasileira segundo<br />

as Línguas Nativas»,<br />

in História dos Índios<br />

no Brasil, dir. de Manuela<br />

Carneiro da Cunha,<br />

São Paulo, 1992, pp. 92-100.<br />

10 Cf. Estêvão PINTO,<br />

Os Indígenas do<br />

Nordeste, vol. I,<br />

São Paulo, 1935, pp. 115-117.<br />

11 Cf. Idem, ibidem,<br />

pp. 136-137.<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 62<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

63<br />

núcleo central, que levou os Pauserna e os<br />

Cauaib para oeste, os Oiampi para as Guianas,<br />

os Caiabi e os Camaiurá para o curso<br />

do Xingu, os Tapirapé e os Teneteára para as<br />

imediações da foz do Amazonas, e os Xetá<br />

para o extremo sul do Brasil. Depois do ano<br />

1000 da nossa Era, ter-se-á verificado a<br />

última cisão da família Tupi-Guarani,<br />

dando origem aos grupos Tupi e Guarani 9 .<br />

Quando os tripulantes da armada de<br />

Cabral desembarcaram na Terra de Santa<br />

Cruz, os Tupi e os Guarani efectuavam<br />

denodados esforços para completar a conquista<br />

do litoral. Os seculares conflitos que<br />

se verificaram entre os vários grupos indígenas<br />

pela posse da faixa costeira foram<br />

provocados pela imperiosa necessidade de<br />

procurar dominar um nicho ecológico que<br />

fornecia alimentos abundantes, designadamente<br />

peixe, tartarugas, moluscos, crustáceos<br />

e sal, imprescindíveis para a dieta aborígene,<br />

sobretudo se se atender ao facto de<br />

que os recursos cinegéticos eram insuficientes<br />

para fornecer a quantidade de proteínas<br />

indispensável à sua conveniente<br />

nutrição.<br />

A ambição de uma comunidade ameríndia<br />

em exercer o domínio sobre uma<br />

região favorecida teria de se traduzir na<br />

conquista de uma parte da várzea amazónica<br />

ou da orla marítima. Naturalmente,<br />

ganhavam a disputa os grupos tribais mais<br />

coesos, numerosos e tecnologicamente<br />

mais bem apetrechados.<br />

Em 1500, osTupi ocupavam a mais significativa<br />

parcela da zona costeira compreendida<br />

entre o Ceará e a Cananeia (São<br />

Paulo), e os Guarani, estabelecidos exclusivamente<br />

a sul do Trópico de Capricórnio,<br />

dominavam a faixa litorânea situada entre a<br />

ilha da Cananeia e a lagoa dos Patos (Rio<br />

Grande do Sul), além de importantes<br />

regiões no interior desse espaço.<br />

A reconstituição da distribuição espacial<br />

dos grupos tribais aborígenes ao longo<br />

do litoral brasílico, no final do século XV-<br />

-início do século XVI, apresenta-se como<br />

uma tarefa problemática devido à escassez<br />

de elementos de origem indígena, à imprecisão<br />

dos testemunhos dos autores quinhentistas<br />

e à mobilidade das áreas fronteiriças<br />

decorrente do estado de guerra endé-<br />

mica existente entre os diferentes grupos<br />

autóctones. Conjugando as informações<br />

fornecidas por várias fontes, é, contudo,<br />

possível traçar um quadro geral aproximativo<br />

das diversas «nações» ameríndias que<br />

controlavam a costa e os sertões adjacentes<br />

nos primórdios de Quinhentos.<br />

A orla marítima era ocupada, no sentido<br />

norte-sul, pelos seguintes grupos tribais:<br />

o Aruaque habitava o Norte desde a foz<br />

do Oiapoque (Amapá) até à costa paraense,<br />

incluindo o delta amazónico e as respectivas<br />

ilhas, designadamente a de Marajó (território<br />

do grupo aruã, «pacífico») 10 ;o Tremembé<br />

(«alagadiço»), pertencente à família<br />

Cariri e ao tronco Macro-Jê, por seu lado,<br />

estava sobretudo fixado no Meio-Norte<br />

(Maranhão-Piauí), estendendo-se a sua<br />

área de influência das desembocaduras dos<br />

rios Gurupi (no limite sul do Pará) ao<br />

Camocim ou ao Mucuripe (Ceará) 11 .<br />

A partir, grosso modo, da foz do rio Jaguaribe<br />

(Ceará), entrava-se em território<br />

maioritariamente Tupi: os Potiguar («comedor<br />

de camarão») dominavam a zona costeira<br />

localizada entre aquele rio e o Paraíba;<br />

os Tabajara («senhor da taba») viviam no<br />

litoral situado entre o estuário deste curso<br />

de água e Itamaracá, e os Caeté («mata verdadeira»)<br />

predominavam no trecho de<br />

costa compreendido entre este marco geográfico<br />

e a margem norte do rio de São<br />

Francisco (Alagoas).<br />

Nos sertões nordestinos (serras da<br />

Borborema, dos Cariris Velhos e dos Cariris<br />

Novos e vales do Acarajú, do Jaguaribe, do<br />

Açú, do Apodi e do baixo São Francisco),<br />

refugiaram-se os Cariri («silencioso»), pertencentes<br />

ao tronco Macro-Jê, após terem<br />

sido expulsos do litoral pelos Tupi. Numa<br />

parcela do interior cearense (sobretudo na<br />

serra de Ibiapaba), do Rio Grande do Norte<br />

e da Paraíba imperavam os tabajaras.<br />

Os Tupinambá («descendentes dos Tupi»)<br />

ocupavam a costa desde a margem direita<br />

do São Francisco até à zona norte de Ilhéus,<br />

depois de terem vencido os seus anteriores<br />

habitantes; no entanto, a sua divisão em<br />

dois grupos rivais – o primeiro abarcando<br />

a área enquadrada pelos rios de São Francisco<br />

e Real (Sergipe), e o segundo senhoreando<br />

o litoral desde aí até ao Camamu –


deu origem a um estado de guerra permanente.<br />

Por outro lado, os moradores da<br />

região onde veio a ser edificada a vila do<br />

Pereira e, posteriormente, a cidade do Salvador<br />

eram inimigos dos habitantes das<br />

ilhas de Itaparica e Tinharé e da costa norte<br />

de Ilhéus, situação que provocava acesos<br />

combates entre aqueles bandos.<br />

Nos sertões baianos fixaram-se os<br />

Tapuia, os Tupina e os Amoipira («os da outra<br />

banda do rio»), um ramo segregado dos<br />

Tupinambá, após terem sido derrotados em<br />

sucessivas guerras quer entre si, quer com<br />

os Tupinambá. Aí viviam, também, os Ibirajara<br />

(«senhor do pau»), pertencentes ao<br />

grupo Caiapó da família Jê.<br />

Do estuário do Camamu (a norte de<br />

Ilhéus) até ao do Cricaré ou São Mateus<br />

(Espírito Santo), as zonas litorâneas pertenciam<br />

aos Tupiniquim («colaterais dos<br />

Tupi») que, contudo, se debatiam com as<br />

duras investidas dos Aimoré (vocábulo tupi<br />

que designa uma espécie de macacos), pertencentes<br />

à família Botocudo (Macro-Jê),<br />

que lhes disputavam o território. Nos sertões<br />

de Porto Seguro e do Espírito Santo<br />

viviam os Papaná, que foram forçados a<br />

abandonar o litoral devido aos ataques dos<br />

Tupiniquim e dos Aimoré. Os Goitacá<br />

(«nómadas») provinham do tronco Macro-<br />

-Jê e viviam no trecho de costa compreendido<br />

entre o rio Cricaré e o cabo de São<br />

Tomé, ocupando também o interior dessa<br />

região.<br />

A área costeira fluminense, delimitada<br />

pelo cabo de São Tomé e Angra dos Reis, era<br />

controlada pelos Tamoio («avô») – outro<br />

ramo dos Tupinambá – que dispunham,<br />

ainda, de algumas povoações mais a sul:<br />

Ariró, Mambucaba, Taquaraçu-Tiba, Ticoaripe<br />

e Ubatuba. Todavia, ainda restavam<br />

nessa área alguns núcleos de Temiminó<br />

(«netos do homem»), designadamente na<br />

ilha de Paranapuã ou dos Maracajá (actual<br />

ilha do Governador, na baía da Guanabara),<br />

que resistiam às constantes investidas dos<br />

seus implacáveis inimigos.<br />

O domínio do litoral paulista, localizado<br />

entre Caraguatatuba e Iguape-ilha Comprida,<br />

pertencia aos Tupiniquim que também<br />

viviam numa parcela do sertão. Os Guaianá<br />

(«gente aparentada») predominavam na<br />

Das importantes<br />

movimentações<br />

empreendidas<br />

pelos Tupi-guarani<br />

no decurso da presente<br />

Era resultou, por volta<br />

dos séculos VIII-IX,<br />

a sua separação em dois<br />

grupos linguísticos<br />

distintos: o tupi<br />

(«pai supremo,<br />

tronco da geração»)<br />

e o guarani («guerra»).


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 64<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

65<br />

zona de matas de pinheiro, a 300 metros<br />

de altitude, e na área de planalto correspondente<br />

à faixa que se estende de Angra<br />

dos Reis à Cananeia. Pertenciam à família<br />

Jê, devendo ser considerados antepassados<br />

dos actuais Caingangues.<br />

A partir da Cananeia, entrava-se no<br />

espaço dos Guarani e dos autóctones por eles<br />

assimilados ou «guaranizados» – conhecidos<br />

por diversas designações locais, nomeadamente<br />

Carijó, Tape, Patos e Arachã – que se<br />

estendia até à lagoa dos Patos, numa extensão<br />

de cerca de 80 léguas de costa. Estes<br />

tinham como vizinhos e adversários populações<br />

pertencentes aos grupos pampeanos:<br />

os Charrua, no Sudoeste, fixados em<br />

ambas as margens do rio Uruguai e respectivos<br />

afluentes, e os Minuano, no Sudeste,<br />

que detinham a posse do trecho de costa<br />

que se iniciava na lagoa dos Patos e alcançava<br />

o estuário platino (nas imediações do<br />

local onde, no século XVIII, viria a ser edificada<br />

a cidade de Montevideu).<br />

No decurso da longa luta pelo domínio<br />

do litoral, os Tupi-guarani – mais bem<br />

organizados, mais bem armados, dispondo<br />

das técnicas da agricultura de coivara e da<br />

cerâmica, bem como da construção de<br />

habitações, estruturas defensivas e canoas –<br />

derrotaram e expulsaram as populações<br />

que habitavam o litoral. Estas foram apodadas<br />

de Tapuia, vocábulo tupi que significa os<br />

«outros ou selvagens» e que era utilizado<br />

depreciativamente pelos vencedores com o<br />

sentido de «inimigos bárbaros». Esta denominação<br />

foi atribuída aos membros de<br />

todos os outros troncos linguísticos –<br />

sobretudo Jê – que ainda não tinham atingido<br />

o seu estádio civilizacional.<br />

Quando entraram em contacto com os<br />

portugueses, os Tupi transmitiram-lhes o<br />

seu menosprezo pelos povos Jê, tendo<br />

aqueles perfilhado idêntica posição e adoptado,<br />

inclusivamente, a expressão tapuia<br />

para designar todas as populações não pertencentes<br />

à família Tupi-Guarani. Os tapuias<br />

correspondiam, pois, na generalidade dos<br />

casos, às populações Jê.<br />

Os autores quinhentistas tinham clara<br />

consciência de que – anteriormente à chegada<br />

dos portugueses ao Brasil e até já<br />

depois do início da colonização – os gru-<br />

pos tribais do ramo tupi, constituídos<br />

por sociedades de horticultores-caçadores-<br />

-recolectores-pescadores, tinham derrotado<br />

e expulsado de grande parte do litoral brasílico<br />

os seus primitivos ocupantes, na sua<br />

maioria comunidades de caçadores-recolectores<br />

pertencentes ao tronco Macro-Jê,<br />

instalando-se nesses territórios.<br />

Estas sociedades caracterizavam-se pela<br />

prática de uma horticultura de raízes, pela<br />

importância vital da caça e da pesca, pela<br />

mudança periódica dos povoados, pela<br />

menor densidade populacional comparativamente<br />

com as sociedades de agricultura<br />

sedentária, bem como pela inexistência, na<br />

generalidade dos casos, de diferenciações<br />

sociais significativas, de tipos coercivos de<br />

organização do poder, do pagamento de<br />

tributos ou de formas institucionalizadas<br />

de religião.<br />

As populações que desenvolveram este<br />

modelo civilizacional estavam estabelecidas<br />

em largas faixas do Leste da América do<br />

Norte, no Norte do México, em algumas<br />

zonas da Colômbia e do Chile, nas ilhas<br />

ocupadas pelos Caribe e em grande parte da<br />

América do Sul, da Venezuela ao Paraguai.<br />

No litoral sul-americano – da costa<br />

caribenha da Colômbia até ligeiramente a<br />

sul do estuário platino (Argentina) – predominavam<br />

as sociedades semi-sedentárias,<br />

ou seja, comunidades de horticultores-caçadores-recolectores-pescadores<br />

que<br />

baseavam o seu modo de subsistência no<br />

cultivo intensivo de raízes, sem recurso à<br />

utilização do arado ou de adubos que são<br />

característicos da agricultura sedentária, na<br />

caça, na pesca, na colecta de animais, vegetais<br />

e matérias-primas, adoptando um<br />

padrão cultural chamado «cultura da floresta<br />

tropical».<br />

A generalidade dos grupos tribais da<br />

floresta tropical especializou-se na horticultura<br />

de raízes ou agricultura de coivara<br />

(«ramos secos que ficam nas terras depois<br />

de roçadas») caracterizada pelo cultivo<br />

através de mudas e não por semeadura.<br />

Na escolha das terras destinadas ao<br />

cultivo, davam preferência aos solos argilosos<br />

e a áreas com declives, de modo a permitir<br />

a drenagem da água e a evitar o apodrecimento<br />

das raízes.


As tarefas de preparação da mata para o<br />

cultivo exigiam grande esforço. Na época<br />

da estiagem, efectuava-se a limpeza preliminar,<br />

recorrendo-se a machados de pedra<br />

para cortar os arbustos. A etapa seguinte –<br />

passados dois meses para secar a lenha –<br />

consistia na queimada, geralmente em<br />

forma de círculo, fazendo fogueiras em<br />

torno das grandes árvores. Esta etapa ocorria<br />

antes das primeiras chuvas. Seguidamente,<br />

empregavam-se «bastões de cavar»<br />

(paus pontiagudos) para rasgar o solo e<br />

cavavam-se buracos, onde eram enterradas<br />

as mudas, recobrindo-os de terra.<br />

A área desmatada era dividida em parcelas<br />

distribuídas pelas famílias nucleares e<br />

cultivada, em média, durante três a quatro<br />

anos, sendo abandonada ao fim desse<br />

tempo. Deixava-se à natureza a tarefa de<br />

regenerar a cobertura vegetal destruída<br />

(processo que demorava entre 20 e 100<br />

anos), repetindo-se o mesmo procedimento<br />

noutro trecho da floresta.<br />

As espécies cultivadas variavam conforme<br />

as condições ecológicas. Os Tupi,<br />

que habitavam na faixa tropical, optaram<br />

pela mandioca, os Guarani, que colonizaram<br />

as terras subtropicais, preferiram o<br />

milho, e, nas regiões de planalto, os Jê cultivavam<br />

o amendoim. Além destes alimentos<br />

básicos, plantavam feijão, batata-doce, cará<br />

(inhame), jerimum (abóbora) e cumari<br />

(pimenta). Entre as plantas não alimentares,<br />

destacavam-se a purunga (cabaça), o<br />

jenipapo e o urucu (corantes), o algodão e<br />

o tabaco.<br />

A caça era mais abundante e diversificada<br />

nas proximidades de rios e lagoas – devido<br />

à abundância de alimentos – do que nas<br />

matas afastadas de cursos de água, relativamente<br />

pobres, pelo que os Ameríndios<br />

caçavam, nas zonas mais ricas, uma grande<br />

variedade de animais, nomeadamente antas,<br />

pacas, capivaras, cutias, caititus, queixadas,<br />

veados, preguiças, tamanduás, tatus, além<br />

de onças, macacos, aves e répteis.<br />

Entre os métodos de caça utilizados,<br />

figurava o mutá, posto de observação construído<br />

em árvores altas, até cerca de 15<br />

metros do solo, onde se instalavam os caçadores,<br />

aguardando a passagem dos animais<br />

para os atingir com flechas. Outra das téc-<br />

nicas empregues era o mundéu, armadilha<br />

que consistia em covas escavadas nos trilhos,<br />

recobertas de ramos e folhas, ou numa<br />

estacada de pau a pique, com uma só entrada<br />

dotada de um dispositivo que se fechava<br />

quando a presa lá entrava. Destinava-se a<br />

capturar as espécies de maior porte, designadamente<br />

a onça-pintada. Recorriam,<br />

ainda, à caça com laço e à utilização do<br />

fogo para forçar os animais a sair das tocas.<br />

Os aborígenes procuravam atrair a<br />

benevolência dos seres sobrenaturais, com<br />

o objectivo de garantir o sucesso da caçada.<br />

Utilizavam práticas mágicas como, por<br />

exemplo, esfregar o corpo com determinados<br />

vegetais ou ingerir infusões adequadas<br />

ao tipo de fauna que pretendiam abater.<br />

Os guerreiros Tupi apreciavam sobremaneira<br />

a ingestão da carne de espécies<br />

velozes, pois acreditavam que, ao comê-la,<br />

absorveriam a agilidade do animal abatido,<br />

rejeitando incluir na sua alimentação carne<br />

de espécies lentas.<br />

Quando habitavam na faixa costeira ou<br />

nas margens dos rios e das lagoas, os Ameríndios<br />

preferiam as actividades piscatórias<br />

que lhes davam abundantes e concentradas<br />

quantidades de peixe, moluscos e crustáceos,<br />

obtidas com menor dispêndio de energia<br />

e em menos tempo do que os exigidos<br />

pela caça.<br />

Os Tupi tinham predilecção pelo parati<br />

(tainha), que desova nos rios no mês de<br />

Agosto, época que aproveitavam para o<br />

capturar em grandes quantidades. Pescavam<br />

numerosas espécies de água salgada e<br />

doce e abatiam baleias e tubarões quando<br />

estes penetravam nos rios ou encalhavam<br />

na costa.<br />

Desenvolveram várias técnicas de<br />

pesca, que se revestiam de carácter essencialmente<br />

colectivo. Uma das mais eficientes<br />

consistia em utilizar venenos vegetais,<br />

nomeadamente o timbó, que atordoa e asfixia<br />

os peixes, solução que se transformou<br />

num hábito cultural profundamente arraigado<br />

nas populações indígenas da América<br />

do Sul. A eficácia deste método é atestada<br />

por um testemunho quinhentista que<br />

informa que, numa única operação desse<br />

tipo, eram «apanhados mais de doze mil<br />

peixes grandes».


A INVENÇÃO DA AMÉRICA<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

66 67<br />

Em 1500, os Tupi<br />

ocupavam a mais<br />

significativa parcela<br />

da zona costeira<br />

compreendida entre<br />

o Ceará e a Cananeia<br />

(São Paulo), e os Guarani,<br />

estabelecidos<br />

exclusivamente a sul do<br />

Trópico de Capricórnio,<br />

dominavam a faixa<br />

litorânea situada<br />

entre a ilha da Cananeia<br />

e a lagoa dos Patos<br />

(Rio Grande do Sul),<br />

além de importantes<br />

regiões no interior<br />

desse espaço.<br />

Uma variante mais complexa assentava<br />

na organização de pescarias nocturnas,<br />

atraindo os cardumes com archotes de<br />

facheiro, atordoando-os, em seguida, com<br />

essas plantas.<br />

Outra das técnicas consistia na construção<br />

de armadilhas nos perequês («estuário<br />

onde os peixes se reúnem para a desova»).<br />

Na época da piracema, em que os grandes<br />

cardumes migratórios penetravam nos rios,<br />

vedavam o piraiquê («entrada do peixe»),<br />

local de confluência das águas doce e salgada,<br />

e edificavam, com varas e esteiras, na<br />

altura da maré vazante, um pari (barragem<br />

com 3 metros de altura e 40 de comprimento).<br />

Cercavam o peixe, que era obrigado<br />

a vir à tona pela acção dos venenos,<br />

sendo, então, capturado em larga escala.<br />

Individualmente, os Tupi pescavam nas<br />

margens dos rios de águas claras e à beira-<br />

-mar, utilizando arco e flechas, algumas das<br />

quais com ponta de osso, e a pindaíba<br />

(«vara de pescar»).<br />

Utilizavam matérias-primas vegetais<br />

na confecção de cordões, cordas, fios,<br />

espremedores de polpa de mandioca (tipiti),<br />

peneiras, abanadores de fogo, esteiras,<br />

diversos tipos de cestos, gaiolas e armadilhas<br />

de pesca.<br />

Usavam os frutos da purunga que,<br />

depois de secos, serviam para o fabrico de<br />

cuias (cabaças) e de maracás (objectos mágico-religiosos).<br />

Seleccionaram variedades<br />

de algodão sul-americanas para a confecção<br />

da rede-de-dormir, difundindo o seu<br />

uso em todas as regiões por onde se expandiram.<br />

A cerâmica desempenhou um papel<br />

essencial na evolução civilizacional dos<br />

grupos indígenas, permitindo-lhes a preparação<br />

e conservação de alimentos. Dominavam<br />

a técnica da manufactura (com<br />

cozedura efectuada a céu aberto, sendo os<br />

objectos colocados directamente sobre a<br />

fogueira). A cerâmica tupi-guarani caracterizava-se<br />

pela técnica do alisado simples e<br />

pela pintura policroma com linhas vermelhas<br />

e pretas sobre fundo branco. Entre os<br />

utensílios produzidos, destacavam-se as<br />

grandes igaçabas (potes).<br />

Escolhiam madeiras leves para a feitura<br />

de jangadas e canoas. Algumas destas eram


de grandes dimensões (mais de 30 metros),<br />

sendo escavadas em troncos de árvore.<br />

Recorriam sobretudo ao ipê para fazer<br />

arcos, confeccionando as cordas com fibras<br />

vegetais longas de folhas de tucum ou<br />

casca de embaúba. Para as flechas, usavam<br />

normalmente ubá, sendo as pontas feitas<br />

de taquara (uma espécie de bambu), osso<br />

ou dentes aguçados (preferencialmente de<br />

tubarão), e o tacape (semelhante a uma<br />

clava ou maça) com madeira dura de jucá.<br />

Com o objectivo de tornar comestível a<br />

raiz da mandioca amarga, os Tupi sujeitavam-na<br />

a um complexo tratamento destinado a eliminar<br />

o ácido cianídrico.A polpa era espremida<br />

no tipiti (prensa destinada a extrair a<br />

água que continha a substância venenosa),<br />

amassada e, depois, assada ou torrada em<br />

grandes recipientes circulares de barro.<br />

A mandioca doce (aipim) era normalmente<br />

comida depois de descascada e assada<br />

directamente nas brasas. Os Guarani preferiam<br />

o milho, ingerindo-o cozido ou assado,<br />

procedendo também à secagem do<br />

grão maduro e inteiro.<br />

Comiam normalmente peixe fresco,<br />

depois de fervido em água. No entanto,<br />

podiam também consumi-lo moqueado,<br />

ou seja, cozinhado numa grelha confeccionada<br />

com varas de madeira verde (moquém).<br />

A carne era geralmente grelhada, constituindo<br />

excepção a da anta, que era cozida.<br />

Misturavam sal com pimenta e tomavam<br />

uma pitada dessa massa (juquiraí) sempre<br />

que ingeriam uma porção de alimento.<br />

Confeccionavam uma bebida – o<br />

cauim – a partir do aipim, do milho, da<br />

batata-doce, de seiva de palmeiras e de<br />

frutas (ananás e caju). Esta tarefa era<br />

cometida às moças que, após a cozedura<br />

da matéria-prima, a mastigavam, desencadeando,<br />

através da saliva, o processo de<br />

fermentação. Apresentava um aspecto<br />

turvo e espesso como borra, sendo consumida<br />

morna.<br />

Da dieta alimentar tupi-guarani faziam,<br />

ainda, parte frutos silvestres como maracujá,<br />

jabuticaba, araçá, cajá e mangaba,<br />

além de mel, ovos de pássaros, larvas, gafanhotos,<br />

abelhas e formigas.<br />

Nas sociedades ameríndias da floresta<br />

tropical, em que imperava a nudez, o corpo<br />

era interpretado como uma marca, sendo,<br />

por conseguinte, objecto de uma particular<br />

atenção.<br />

As pinturas protegiam dos raios solares<br />

e das picadas dos insectos. Além disso, a<br />

ornamentação corporal possuía uma linguagem<br />

simbólica, sendo certos padrões<br />

específicos do género e de grupos de<br />

idade, facto que revelava o estatuto do seu<br />

detentor.Acrescentavam, assim, uma segunda<br />

«pele» ao indivíduo: a social, que se sobrepunha<br />

à biológica. Os corantes mais usados<br />

eram o jenipapo (azul-escuro que, com a<br />

exposição ao sol, se torna preto) e o urucu<br />

(vermelho).<br />

Como o corpo humano era o lugar<br />

privilegiado para inscrições, os guerreiros<br />

eram escarificados no peito, nos braços,<br />

nas coxas e na barriga das pernas, marcas<br />

visíveis da sua valentia na guerra e na execução<br />

ritual de prisioneiros.<br />

A arte plumária constituía a mais importante<br />

expressão artística das populações da floresta<br />

tropical, tendo funções míticas, estéticas<br />

e rituais e contribuindo para a personalização<br />

do corpo. Os guerreiros prestavam particular<br />

atenção aos adornos plumários (diademas,<br />

coroas, toucados e coifas), cujos pássaros doadores<br />

(papagaios, araras, tucanos, canindés,<br />

etc.) e respectivas cores continham importantes<br />

cargas simbólicas. Os grandes chefes usavam,<br />

por vezes, mantos de penas, sendo<br />

conhecidos os de guará (íbis-rubra).<br />

As sociedades indígenas da floresta<br />

tropical adoptaram normalmente padrões<br />

de estabelecimento modestos, construindo<br />

núcleos pequenos e dispersos.<br />

A taba («aldeia») tinha, em geral, entre<br />

4 e 8 ocas e 30 a 60 famílias nucleares. Nos<br />

aglomerados costeiros residiam, em média,<br />

600 a 700 indivíduos, havendo, no entanto,<br />

variações regionais e tribais. Algumas<br />

dispunham de estruturas defensivas: as caiçaras<br />

(«paliçadas»).<br />

A oca («morada actual»), grande casa<br />

comunitária, era edificada em círculo, disposta<br />

à volta de um terreiro, a algumas<br />

dezenas de metros das vizinhas, abrigando<br />

uma família extensa. Aí viviam, em média,<br />

entre 85 a 140 pessoas.<br />

Os padrões de fixação eram condicionados<br />

pelas condições de subsistência.


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 68 69<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Uma vez que a permanência das populações<br />

num local era temporária (cerca de<br />

três a quatro anos), a precariedade da instalação<br />

determinava, naturalmente, o tipo de<br />

materiais utilizados na edificação das habitações:<br />

madeira, cipós e folhas de árvore<br />

para as coberturas.<br />

Os Tupi construíam estruturas habitacionais<br />

elípticas ou rectangulares, sendo as<br />

ligações entre os troncos feitas com trançados<br />

de embira. Dispunham de três pequenas<br />

aberturas, sendo duas localizadas nas<br />

extremidades e uma no centro que dava<br />

para o terreiro. O comprimento variava<br />

entre 40 metros para as menores e mais de<br />

160 para as maiores, oscilando a largura<br />

entre os 10 a 16 metros.<br />

Nas sociedades ameríndias, vigorava a<br />

divisão sexual do trabalho. Os homens executavam<br />

tarefas que implicavam esforço intenso,<br />

bem como actividades arriscadas. Às<br />

mulheres competiam os trabalhos produtivos,<br />

de recolecção, domésticos e de apoio<br />

nas expedições guerreiras terrestres ou<br />

marítimas.<br />

As bases da organização das comunidades<br />

ameríndias assentavam na família<br />

extensa, constituída por várias famílias<br />

nucleares que estavam ligadas entre si por<br />

laços de parentesco. Encontravam-se subordinados<br />

ao patriarca da oca: o principal.<br />

Verificava-se a existência da poligamia.No<br />

entanto, somente um reduzido número de<br />

indivíduos (o chefe, o feiticeiro e os grandes<br />

guerreiros) possuía várias mulheres, constituindo<br />

o seu número sinal de prestígio.<br />

O casamento avuncular, ou seja, do tio<br />

materno com a sobrinha, era a modalidade<br />

preferida pelos Tupi, sendo também comum<br />

entre primos cruzados.<br />

A regra residencial mais difundida era<br />

a da patrilocalidade (a esposa ia viver na oca<br />

do marido ou do sogro), favorecendo,<br />

assim, a forma patrilinear de descendência.<br />

Estas sociedades desenvolveram uma<br />

estrutura social com um reduzido grau<br />

de diferenciação, tendo, todavia, gerado<br />

alguns tipos de hierarquias.Verificava-se a<br />

existência de acentuadas tendências comunitárias<br />

e de fortes laços de solidariedade.<br />

Os Tupi-guarani adoptaram como<br />

forma de organização dominante o grupo<br />

local (correspondente a uma taba), que se<br />

situava numa posição intermédia entre a<br />

menor unidade vicinal (a oca) e o agrupamento<br />

territorial mais abrangente (o grupo<br />

tribal).<br />

Uma das características essenciais das<br />

sociedades tupi residia na falta de poder<br />

dos morubixabas («chefes»), bem como na<br />

inexistência de métodos coercivos. Os líderes<br />

desempenhavam as suas funções com<br />

base na persuasão, não podendo recorrer à<br />

ameaça do uso da força.<br />

Para o exercício da função de morubixaba,<br />

exigiam-se diversos requisitos, entre<br />

os quais se contavam a valentia, a ponderação,<br />

a generosidade, a posse de dotes oratórios<br />

(«senhor da fala»), a pertença a uma<br />

parentela poderosa e a aceitação favorável<br />

junto dos guerreiros da aldeia. As atribuições<br />

dos chefes eram muito reduzidas em<br />

tempo de paz, ganhando maior relevo em<br />

período de guerra.<br />

A instituição política básica era o<br />

«conselho dos chefes», formado pelo<br />

morubixaba, pajé, chefes das ocas e guerreiros<br />

prestigiados. Este órgão, frequentemente<br />

designado por «roda de fumadores»,<br />

tomava as decisões mais importantes<br />

referentes à taba: mudança de local de residência,<br />

organização de expedições guerreiras,<br />

definição da rede de alianças e fixação<br />

da data para a execução ritual dos prisioneiros.<br />

Nas sociedades Tupi-guarani, o complexo<br />

guerra-vingança-antropofagia desempenhava<br />

papel central, sendo a guerra a sua instituição<br />

fundamental.<br />

As decisões sobre a realização de expedições<br />

guerreiras destinadas a conquistar<br />

habitats privilegiados, superar tensões internas<br />

ou capturar inimigos eram alvo de cuidada<br />

ponderação.<br />

Os atacantes percorriam grandes distâncias<br />

por terra, rio ou mar até encontrarem<br />

uma taba inimiga. Escolhiam, normalmente,<br />

a lua cheia para efectuar o último<br />

trecho do percurso ao luar, desencadeando<br />

a investida ao alvorecer.<br />

Recorriam a diversos métodos para<br />

forçar os defensores a abandonar as paliçadas.<br />

Um deles consistia em atar mechas<br />

incendiárias (feitas de algodão embebido


em cera) às flechas que eram disparadas<br />

contra as coberturas das ocas. Outra táctica<br />

consistia em acender fogueiras onde lançavam<br />

pimenta, formando nuvens de gases<br />

tóxicos.<br />

Nos combates só podiam participar os<br />

homens pertencentes ao grupo Ava (a partir<br />

dos 25 anos). Primeiro, disparavam nuvens<br />

de flechas e, seguidamente, atacavam com<br />

grande algazarra, batendo com os pés e<br />

tocando buzinas ou instrumentos confeccionados<br />

com ossos humanos (braços e<br />

tíbias), tanto para excitar o ânimo dos atacantes<br />

como para amedrontar os defensores.<br />

Na luta corpo a corpo, utilizavam<br />

sobretudo o tacape, arma com que procuravam<br />

esmagar o crânio do inimigo.<br />

A antropofagia era uma prática corrente<br />

entre os Ameríndios, designadamente entre<br />

os Tupi-guarani.<br />

O cativo desempenhava um papel primordial<br />

nas relações interaldeias, devendo<br />

ser exibido nas povoações vizinhas. Geralmente,<br />

as tabas aliadas eram convidadas a<br />

participar no banquete canibal, transformando-o<br />

numa manifestação colectiva que<br />

consolidava as alianças.<br />

Na data aprazada, dava-se início à cauinagem,<br />

que geralmente durava três dias,<br />

acompanhada de cantos e danças. Este acto<br />

festivo antecedia o ritual antropofágico.<br />

Ao alvorecer do dia escolhido, o prisioneiro<br />

era lavado, enfeitado e amarrado<br />

pela cintura com a mussurana (corda grossa<br />

de algodão), sendo seguidamente conduzido<br />

ao centro do terreiro, onde se encontravam<br />

reunidos os convivas.<br />

Chegado o executor, profusamente<br />

enfeitado, recebia cerimonialmente o ibirapema<br />

(tacape cerimonial) com o qual iniciava<br />

uma dança junto do cativo, imitando as<br />

evoluções de uma ave de rapina.Terminada<br />

a gesticulação, o algoz e a vítima travavam<br />

um curto diálogo, findo o qual o executor<br />

esmagava o crânio do inimigo.<br />

Abatido o prisioneiro, escaldavam-no<br />

para lhe retirar a pele e esquartejavam-no.<br />

Algumas partes do corpo (braços e pernas)<br />

eram moqueadas, sendo as vísceras aproveitadas<br />

para fazer um cozinhado. Existiam<br />

regras para a distribuição do corpo da vítima,<br />

que era integralmente aproveitado.<br />

A visão cosmológica dos Tupi-guarani<br />

não atribuía a formação do Universo a um<br />

ser supremo, concebendo, antes, esse processo<br />

como resultante de sucessivas acções<br />

parciais e incompletas.<br />

As actividades criadoras de Monan e<br />

Maír teriam sido prosseguidas por heróis-<br />

-civilizadores – poderosos pajés e ancestrais<br />

míticos detentores de poderes transformadores<br />

especiais – transmissores de técnicas,<br />

ritos e regras sociais que permitiram aos<br />

homens ultrapassar o estado de bestialidade.<br />

Entre estes, destacava-se Sumé, a quem<br />

era atribuída a instituição da agricultura de<br />

coivara e da organização social. Outra personagem<br />

mitológica importante era Tupã,<br />

associado ao raio e ao trovão.<br />

Davam particular ênfase aos mitos cósmicos<br />

de sucessivas destruições do Mundo,<br />

pelo fogo ou pela água, conhecendo-se<br />

diversas versões do dilúvio.<br />

Acreditavam na possibilidade de uma<br />

parcela do ser encontrar, após a morte, o<br />

Guajupiá («aldeia das almas»), situado para<br />

além das altas montanhas.<br />

Um papel fulcral era desempenhado<br />

pelos homens que desempenhavam funções<br />

mágico-religiosas. Os pajés, munidos<br />

do maracá (cabaça decorada que imitava o<br />

rosto humano, atravessada por uma vareta,<br />

com sementes ou pedras que serviam de<br />

chocalho, funcionando como receptáculos<br />

das vozes dos espíritos e reproduzindo-as<br />

através do seu ruído), tratavam os doentes<br />

com ervas medicinais e com esconjuros,<br />

nomeadamente através do bafejo com tabaco,<br />

para afastar os espíritos. Efectuavam,<br />

também, profecias, recorrendo ao transe<br />

induzido pela intoxicação com tabaco.


Vasco Fernandes<br />

e a visão do Índio Bom:<br />

sinais de antropocentrismo<br />

no Calvário da Sé de Viseu<br />

Vítor Serrão<br />

A INVENÇÃO DA AMÉRICA 70 71<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Calvário, de Vasco Fernandes, c. 1535-40, óleo sobre madeira, 2423 x 2393 mm. Museu de Grão Vasco, Viseu, Portugal


A INVENÇÃO DA AMÉRICA 72 73<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Generalizou-se a ideia de que a imagem<br />

com que os europeus do século XVI<br />

viram os índios americanos foi sempre<br />

negativa. Na realidade, e pesem os termos<br />

com que Pêro Vaz de Caminha se lhes refere<br />

na sua célebre carta ao rei de Portugal, em<br />

Abril de 1500 (mas só no século XIX dada a<br />

conhecer à comunidade científica), o índio<br />

cedo deixaria de ser entreolhado como essa<br />

pessoa afável, solidária e, em consequência,<br />

cristianizável, com que o cronista da viagem<br />

de Pedro Álvares Cabral o descreveu.<br />

Assim, o índio seria, por natureza, um primitivo,<br />

isto é, um indomável bárbaro, antropófago<br />

e poligâmico, vivendo em estado de<br />

nudez, ou seja, um ser não integrável e sem<br />

alma. As estampas abertas nos livros quinhentistas,<br />

ou divulgadas por séries de gravados<br />

um pouco por toda a Europa, multiplicaram<br />

essa imagem do índio como selvagem<br />

preso a ritos tribais e a práticas troglodíticas<br />

e quase uma espécie de demónio.<br />

O grande painel do Calvário, exposto no<br />

Museu Grão Vasco em Viseu, vem contrariar<br />

de maneira taxativa esta visão do índio brasileiro<br />

e, ao integrar na simbologia do Bom<br />

Ladrão uma figuração de índio, mostrar<br />

que uma outra imagem, radicalmente<br />

oposta àquela, tinha espaços de adesão e<br />

ganhara foros de credibilidade nos meandros<br />

do Humanismo português. Trata-se<br />

por isso, também, de um dos aspectos que<br />

mais valoriza essa peça, já de per se uma das<br />

pinturas fundamentais para a compreensão,<br />

não só do universo artístico do seu<br />

autor, Vasco Fernandes (c. 1475-1542),<br />

mas um dos mais significativos testemunhos<br />

da plena adesão da cultura portuguesa<br />

do segundo quartel do século XVI aos<br />

valores clássicos italianos.<br />

Como é timbre das melhores obras do<br />

Renascimento internacional, trata-se de uma<br />

pintura eloquente, isto é, de uma peça de culto<br />

que visava tocar diversos públicos, assumir<br />

vários discursos e intervir num debate<br />

intemporal, projectado em outros tempos.<br />

O modo flagrante como a personagem do<br />

Bom Ladrão representado neste quadro se<br />

transmuda em índio brasileiro, ou seja,<br />

como uma espécie de elemento positivo que<br />

encarna a bondade inata e a possibilidade de<br />

missão evangélica à escala dos Novos Mun-<br />

dos, revela os propósitos de afirmação ideológica<br />

no seio das humanae litterae que, sob<br />

estímulo da Renascença e dos princípios<br />

neoplatónicos, viam nos povos primitivos<br />

contactados pelo processo das Descobertas<br />

portuguesas uma marca de dignidade da<br />

Criação e uma forma eficaz de, através do<br />

achamento de novas terras, se alargar a família<br />

cristã a outras comunidades de povos.<br />

Neste quadro pintado cerca de 1535, o<br />

artista representou o Gólgota, a cena mais<br />

transcendente da Paixão de Cristo, em composição<br />

de escala monumental, estruturada pela<br />

distribuição vertical das três cruzes. Ao centro,<br />

uma admirável figuração de Jesus Cristo<br />

sofredor, à hora de expirar, aparece ladeado<br />

por um Mau Ladrão, à direita, visto como um<br />

rebelde praguejador e, à esquerda, sofrendo<br />

de igual modo o suplício da crucifixão, um<br />

sereno e benfazejo Bom Ladrão, representado<br />

por um índio brasileiro, imagem obviamente<br />

alusiva à bondade inata dos povos pré-<br />

-colombianos, desprovidos da mancha do<br />

pecado original. A ocupar o espaço envolvente,<br />

duas dezenas de figuras dispostas em<br />

vários planos e formando grupos autónomos,<br />

desde os soldados romanos, a cavalo, à<br />

Virgem Maria, com as Santas Mulheres e o<br />

apóstolo São João, chorando em desespero,<br />

aos soldados romanos, de joelhos, que disputam<br />

a túnica de Jesus, jogando-a aos dados, a<br />

figurações de judeus assistentes, um deles<br />

bebendo vinho de um pichel. Num plano<br />

afastado à direita, o suicídio de Judas Iscariotes,<br />

com um diabo voador prestes a tomar-lhe<br />

a alma. Num segundo plano, à esquerda,<br />

desenha-se uma cidade acastelada com altas<br />

torres e cúpulas de arquitectura fantasista. O<br />

céu é representado com nuvens carregadas,<br />

ameaçando tempestade iminente.<br />

A presença do índio como Bom Ladrão<br />

mostra que o pintor Vasco Fernandes, e<br />

quem lhe encomendou a obra, dispunham<br />

de uma sólida visão humanística em relação<br />

aos povos antediluvianos, na crença de<br />

que se tratava de «gentes desprovidas de<br />

pecado original» e, por isso, sinal benfazejo<br />

de sentimentos apropriáveis para a causa<br />

do cristianismo. O cuidado com que o painel<br />

explora níveis múltiplos de leitura é<br />

deveras significativo. Dir-se-ia que estamos<br />

a ouvir as palavras de Caminha: «Parece-me


gente de tal inocência que se os homens entendessem, e<br />

eles a nós,que seriam logo cristãos,porque eles não têm,<br />

nem entendem em nenhuma crença, segundo parece<br />

(…), que se hão-de fazer cristãos e crerem em nossa<br />

santa fé porque (...) esta gente é boa e de boa simplicidade.<br />

E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer<br />

cunho que lhes quiserem dar. E porque Nosso Senhor,<br />

que lhes deu bons corpos e bons rostos como a bons<br />

homens». A verdade é que, cerca de 1535,<br />

Vasco Fernandes e o encomendante da obra<br />

fizeram valer esta visão humanística do<br />

índio, espécie de bom selvagem avant la lettre,<br />

num reflectido assomo de renovação. Esse<br />

princípio já se manifestara, três decénios<br />

antes, num dos quadros do retábulo do<br />

altar-mor da Sé de Viseu (c. 1502-1505),<br />

onde um índio tupinambá emplumado<br />

surge na figura do Rei Mago negro, Baltazar,<br />

na Adoração dos Magos (Museu Grão Vasco),<br />

uma presença que pode ter sugerido ao<br />

artista esta provocatória solução carregada<br />

de intenções humanísticas.<br />

Trata-se de uma das mais cuidadas criações<br />

da antiga pintura portuguesa, e não é<br />

de estranhar, por isso, que o discurso ideológico<br />

deste Calvário fosse estudado ao pormenor.<br />

À organização segura do espaço<br />

acresce um grande domínio da ciência<br />

perspéctica e, sobretudo, uma capacidade<br />

de tratar expressões humanas, num pathos<br />

inflamado de sentimentos contraditórios<br />

que oscilam entre o drama e a indiferença,<br />

tocando ora a mágoa do sacrifício, ora a<br />

crueza dos homens e a intolerância dos<br />

poderes instituídos. O desenho é excelente,<br />

a paleta quente e luminosa, o naturalismo<br />

dos tecidos e adereços concorre para a força<br />

transcontextual que faz deste quadro um<br />

unicum, permanente revitalizável para a<br />

encantação dos nossos olhares. Mesmo que<br />

as suas funções primeiras tenham sido<br />

modificadas desde que os novos gostos do<br />

século XVIII alteraram a decoração da Capela<br />

de Jesus, mudando o quadro para a<br />

sacristia da Sé e, muito depois, para o<br />

Museu criado no contíguo Paço Episcopal, a<br />

pintura de Vasco Fernandes continua a desafiar<br />

o tempo com a sedução das suas formas<br />

e a convicção da sua doutrina imaginizada.<br />

A encomenda desta grandiosa obra<br />

deve-se a D. Miguel da Silva, bispo de Viseu<br />

designado em 1525 e que dirigirá a dioce-<br />

se até 1540. Este bispo humanista, protector<br />

de Vasco Fernandes, é o responsável<br />

pelo ímpeto renovador que levou a velha<br />

cidade beirã a assumir-se como cenário de<br />

eleição para um desenvolvimento arquitectónico<br />

e urbanístico e para círculos de práticas<br />

de reflexão e debate humanístico,<br />

como o que se reunia nos jardins do palácio<br />

de Fontelo, sob inspiração do cultíssimo<br />

bispo, ele mesmo um amigo de Baldassare<br />

Castiglione, que não por acaso lhe<br />

dedicou o célebre Il Cortegiano. No âmbito<br />

da reforma que promove na Sé, D. Miguel<br />

da Silva levou a cabo a construção do novo<br />

claustro renacentista, em 1528, empregando<br />

um arquitecto por ele trazido de Itália,<br />

que pudera escolher quando assumira o<br />

cargo de embaixador de Portugal junto da<br />

Cúria romana. Francesco da Cremona, o<br />

autor do projecto, foi, de acordo com<br />

Rafael Moreira, muito inspirado na traça<br />

deste claustro da Sé de Viseu pelo famoso<br />

cortile do Palácio Ducal de Urbino, de Laurana<br />

e Francesco di Giorgio Martini.<br />

Obra de contradições e intensidades<br />

fulgurosas, o Calvário do Grão Vasco reúne<br />

em si o melhor do catecismo directo da tradição<br />

medieval, violenta e apocalíptica, que<br />

se revela na crueza com que é representado<br />

o suicídio de Judas e no pormenor em que a<br />

sua alma é tomada pelo demónio, e a força<br />

da novidade humanística no modo como o<br />

índio brasileiro incorpora, pleno da bondade<br />

e fraternidade cristãs, a figura do Bom<br />

Ladrão. Públicos distintos entendiam uma e<br />

outra mensagem e, por certo, as integravam<br />

nos seus discursos, debates e reflexões. Era<br />

um tempo em que o Humanismo cristão<br />

ainda tinha espaço para usar suportes figurativos<br />

de renovação nas práticas litúrgicas, ao<br />

contrário do que os ventos da Contra-Reforma<br />

iriam, a breve trecho, trazer. É por isso<br />

que o Calvário é uma das mais fortes peças da<br />

pintura portuguesa de todos os tempos: a<br />

expressividade das poses e o patetismo da<br />

expressão do sentimento religioso concorrem<br />

para captar uma dimensão de arrebatamento<br />

cósmico cheia de referências humanizadoras<br />

e de traços de tolerância. O pintor<br />

quis que a sua obra servisse como modelo<br />

para uma reflexão profunda sobre os mistérios<br />

da criação à luz da boa prática cristã.<br />

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

-- Maria José GOULÃO,<br />

«Do Mito do Homem<br />

Selvagem à Descoberta<br />

do “Homem Novo”:<br />

a representação do negro<br />

e do índio na escultura<br />

manuelina», Portugal<br />

e Espanha entre a<br />

Europa e Além-Mar,<br />

Actas do IV Simpósio<br />

Luso-Espanhol de<br />

História da Arte,<br />

Coimbra, 1988.<br />

-- Sylvie DESWARTE-ROSA,<br />

Imagens e Ideias em<br />

Portugal na Época dos<br />

Descobrimentos,<br />

Lisboa, Difel, 1992.<br />

-- Joaquim Veríssimo<br />

SERRÃO (intr.), Carta de<br />

Pero Vaz de Caminha,<br />

ed. Mar de Letras e ICEA<br />

(Instituto de Cultura<br />

Europeia e <strong>Atlântica</strong>),<br />

Ericeira, 2000.<br />

-- Manuel BATORÉO,<br />

«O índio na arte portuguesa<br />

do Renascimento»,<br />

Actas do Colóquio<br />

Da Visão do Paraíso<br />

à Construção<br />

do Brasil,<br />

II Curso de Verão da<br />

Ericeira, Mar de Letras,<br />

2001, pp. 123-133.<br />

-- Dalila RODRIGUES,<br />

Grão Vasco. Pintura<br />

portuguesa del<br />

Renacimiento<br />

(c. 1500-1540),<br />

Salamanca Ciudad<br />

Europea de Cultura, 2002.<br />

-- Vitor SERRÃO,<br />

O Renascimento e o<br />

Maneirismo, vol. 3<br />

da História da Arte em<br />

Portugal, Ed. Presença,<br />

Lisboa, 2002.


CEM ANOS DE SOLIDÃO 74 75<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Doriselma. San Marcos, Guatemala (2006)<br />

Doriselma<br />

fotografia de Grau Sierra Espriu<br />

texto de Roger Sogues Marco<br />

Doriselma tem nove anos e passa parte do seu tempo livre a brincar no interior de uma velha casa, da qual<br />

apenas restam as paredes, correndo de um lado para o outro com os seus irmãos ou desenhando as coisas<br />

que a rodeiam: a sua família, a sua casa ou os campos em redor, mas grande parte do seu tempo é dedicado<br />

a ajudar a mãe nos trabalhos domésticos.<br />

Telma é a mãe de Doriselma e dos seus três irmãos e uma irmã. Sozinha, tem a seu cargo toda a família.<br />

Desde que o marido a deixou há três anos, teve de se desenvencilhar sozinha para poder alimentar e criar os<br />

filhos. Na comunidade onde vive, La Grandeza, no interior da Guatemala, as oportunidades de encontrar trabalho<br />

para sobreviver eram bastante escassas e, durante algum tempo, vendeu os pêssegos que as pessoas da<br />

aldeia lhe deixavam apanhar.<br />

Como Telma, muitas mulheres têm dificuldades em encontrar um trabalho que as ajude a sustentar as suas<br />

famílias. São poucas as oportunidades que surgem e são ainda menores para pessoas sem formação e com<br />

escassos recursos para obtê-la. Muitas destas mulheres, tal como Telma, foram abandonadas à sua sorte pelos<br />

maridos e todos os dias têm de fazer um enorme esforço para sustentarem os seus familiares.<br />

Os filhos de Telma passaram grandes dificuldades após a saída do pai. A família teve de se mudar para um<br />

outro sítio e construir uma pequena casa para albergar os cinco miúdos. Foram os seus filhos e a vontade de<br />

lhes dar uma vida melhor que levaram Telma a participar no programa de produção de alimentos da ONG espanhola<br />

Intervida, que actua na zona.


Douro<br />

José Manuel Fajardo<br />

Uma viagem que é também a descida de um rio paralelo de<br />

vinho, ao longo de quase mil quilómetros, onde se oferece ao<br />

paladar o carácter dos néctares da Ribera del Duero, Rueda,Toro,<br />

Tierra de Vinos, Los Arribes, Douro e Porto. Vinhos e gastronomia<br />

das terras de dois países unidos pela corrente do Douro, em torno<br />

da qual se enlaça também a vida dos seus habitantes.<br />

Rio Douro. Fotografia de Paulo Barata<br />

RIOS PROFUNDOS 76<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

77


RIOS PROFUNDOS 78<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

79<br />

Há um silêncio de igreja no bosque. A<br />

furgoneta branca, amparada pelos ramos<br />

de um pinheiro majestoso, confunde-se<br />

com a neve que cobre as ladeiras dos Picos<br />

de Urbião. Não se pode avançar mais, o<br />

caminho é intransitável e à frente do carro<br />

só se vêem as pegadas do fotógrafo e<br />

outras mais pequenas, à beira do caminho,<br />

que parecem de casco de corço. Que procuram<br />

dois jornalistas e um cozinheiro em<br />

plena serra de Sória, debaixo de neve, nesta<br />

manhã cinzenta do primeiro frio invernal?<br />

A resposta parece simples: a nascente do<br />

rio Douro.<br />

É um velho projecto. Há muito tempo<br />

que Mitxel Vega, um palentino robusto<br />

radicado há mais de trinta anos na Biscaia,<br />

proprietário e cozinheiro do restaurante<br />

Mas como todos os desejos,<br />

ao tornar-se realidade,<br />

este sonho viajante<br />

tem as suas surpresas<br />

e dificuldades<br />

Egoki, sonha descer o rio Douro, desde os<br />

picos onde nasce até à foz, no Porto.<br />

Essa viagem é também a descida de<br />

um rio paralelo de vinho, ao longo de<br />

quase mil quilómetros, onde se oferece ao<br />

paladar o carácter dos néctares da Ribera<br />

del Duero, Rueda,Toro,Tierra de Vinos, Los<br />

Arribes, Douro e Porto.Vinhos e gastronomia<br />

das terras de dois países unidos pela<br />

corrente do Douro, em torno da qual se<br />

enlaça também a vida dos seus habitantes.<br />

Mas como todos os desejos, ao tornar-<br />

-se realidade, este sonho viajante tem as<br />

suas surpresas e dificuldades. A primeira<br />

está aqui, no meio desta paisagem coberta<br />

de neve: é impossível encontrar a nascente<br />

do rio. A pequena bacia dos Picos de<br />

Urbião alimenta-se de uma infinidade de<br />

riachos, arroios e cascatas que acabam por<br />

formar um leito, sem que se possa determinar<br />

qual deles é o principal.<br />

Como um desafio, o Douro anuncia,<br />

assim, que não está disposto a facilitar-nos<br />

a vida. Não foi em vão que o seu curso foi,<br />

outrora, fronteira, separando as terras cristãs<br />

das muçulmanas durante a Reconquista,<br />

sendo-o ainda hoje entre Espanha e<br />

Portugal. Na serra, o vinho ainda não está<br />

presente; é o bosque com os seus carvalhais<br />

e pinheirais que alimenta a indústria<br />

madeireira de vilas como Doruelo de la<br />

Sierra. E um pouco mais abaixo, antes de<br />

empreender a descida até às planícies do sul<br />

de Sória, Mitxel Vega recolhe na margem do<br />

rio uma estaca pintada de vermelho na<br />

ponta e atira-a à corrente a partir de uma<br />

das pedras que fazem de ponte rústica, na<br />

zona de Salduero. Enquanto a vê afastar-se,<br />

rio abaixo, murmura: «Recolho-a no Porto.»<br />

Desafio aceite.<br />

Depois de traçar uma ampla curva,<br />

para contornar a serra de Hinodejo, e passando<br />

a cidade de Sória, o Douro dirige,<br />

então, as suas águas para poente, pela planície<br />

que conduz aos vinhedos de El Burgo<br />

de Osma. Ali, no restaurante Virrey Palafox,<br />

uns feijões de El Burgo e um prato de<br />

lombo de cerdalí em escabeche («um cruzamento<br />

de porca e javali», como explica o<br />

criado de mesa) protegem os ossos do frio<br />

das neves dos Picos de Urbião. Um tinto de<br />

Penafiel, Ciancas crianza 1989, vem completar<br />

o trabalho calefactor e serve de breve<br />

apresentação dos vinhos da terra.<br />

Poucos quilómetros depois, a «buena<br />

ciudad» de San Esteban de Gormaz, como<br />

foi apelidada no Cantar del Mío Cid, emerge<br />

da névoa, à beira do Douro. Junto à ponte,<br />

um canal do século XII, o primeiro de<br />

Castela, acalma as suas águas perante o que<br />

parece ser um velho moinho, mas o ruído<br />

de maquinaria que dele emana revela que<br />

continua activo. Jaime García de Cárdenas,<br />

um economista descontraído e conversador,<br />

moleiro por tradição familiar, conta-<br />

-nos que o moinho é fábrica de farinha<br />

desde 1916 e mostra-nos como o rio alimenta<br />

a turbina eléctrica da empresa.<br />

Falámos da Primeira Guerra Mundial, «que<br />

foi muito boa para a fábrica», das máquinas<br />

alemãs que utiliza e, claro, dos vinhos<br />

da Ribera del Duero: «Antes não tinham<br />

muita fama porque eram demasiado áspe-


os, mas isso mudou. O único mal é que os<br />

preços subiram um pouco.»<br />

Não muito longe do moinho, abre as<br />

suas portas a Adega San José, a cooperativa<br />

da terra que é a primeira com denominação<br />

de origem Ribera del Duero que se<br />

encontra na província de Sória. Uma adega<br />

com vinte anos de idade, «a grande desconhecida»,<br />

como lamenta o seu gerente,<br />

Carlos de la Rica. Nela se oferece um cenário<br />

que a partir daqui irá acompanhar-nos<br />

em quase toda a viagem: o espectáculo dos<br />

grandes e modernos depósitos metálicos<br />

onde se fermenta a uva da última colheita,<br />

e os barris de carvalho americano onde o<br />

vinho forma o seu carácter, pacientemente,<br />

à espera de se converter «em vinho de<br />

crianza, de reserva ou grande reserva, consoante<br />

o tempo que passe guardado no<br />

barril e na garrafa antes de ser posto à<br />

venda», segundo explica Jerónimo Saez, o<br />

presidente da cooperativa.<br />

Um processo útil, pelo qual o vinho<br />

envelhece graças à lenta oxidação através<br />

da porosidade da madeira de carvalho. A<br />

produção desta cooperativa são os vinhos<br />

comercializados com o nome de Doce<br />

Linajes: crianzas e um reserva de 1991.<br />

Seguir o curso do rio é mergulhar<br />

num vasto reino vinícola que submerge as<br />

suas raízes no tempo. Do século XIII ao<br />

século XVI, Ribera del Duero abasteceu de<br />

vinho todo o reino de Castela, e o seu vestígio<br />

preserva-se, ainda, nas entranhas das<br />

suas cidades. Assim se passa em Aranda del<br />

Duero, sob cujas ruas e edifícios existe um<br />

labirinto de adegas antigas, verdadeiras catacumbas<br />

do vinho.<br />

Uma delas estende-se por baixo do<br />

restaurante El Lagar, e Carlos, o empregado<br />

de mesa, acede mostrá-la depois de termos<br />

ajustado contas com uma espetada de rins<br />

de cordeiro, uma salada de pimentos assados<br />

com atum e anchovas, uns enchidos<br />

ibéricos e duas garrafas de tinto: um<br />

Emílio Moro, crianza 1992, e um Tierra de<br />

Aranda, crianza 1989, este último tocado<br />

pela mão generosa da colheita de um ano<br />

que recebeu a classificação de Excelente na<br />

Ribera del Duero.<br />

A adega que se retorce por baixo do El<br />

Lagar é, na realidade, a antiga adega de um<br />

dos vinhos veteranos da região, El Torremilanos,<br />

de D. Pablo Peñalba, um dos adegueiros<br />

que, com mais insistência, defende<br />

a necessária irmandade entre todos os<br />

vinhos do Douro, particularmente entre os<br />

da Ribera e os do Porto. Corredores estreitíssimos,<br />

escadas abismais, antigos depósitos<br />

de pedra para a fermentação, tudo nesta<br />

adega, agora desactivada, evoca outros<br />

tempos em que os operários arrastavam os<br />

pesados odres cheios de vinho até àquelas<br />

profundezas, em busca da sua conversão<br />

alquímica em delícia. E, à superfície, a con-<br />

Corredores estreitíssimos,<br />

escadas abismais,<br />

antigos depósitos de pedra<br />

para a fermentação,<br />

tudo nesta adega,<br />

agora desactivada,<br />

evoca outros tempos<br />

em que os operários<br />

arrastavam<br />

os pesados odres<br />

cheios de vinho<br />

até àquelas profundezas,<br />

em busca da sua conversão<br />

alquímica em delícia.<br />

tinuação da história leva-nos, esta noite, ao<br />

moderno pub El Bulevar, onde, também, o<br />

vinho é tema de conversa, e Mitxel Vega<br />

recorda, desta vez à volta de umas taças de<br />

crianza de Torremón de 1992, as excelências<br />

de outro vinho que fez história na região e<br />

que hoje é raro encontrar: o crianza Callejo<br />

de 1989, elaborado em Sotillo de la Ribera.<br />

No dia seguinte, saímos a caminho de<br />

La Horra, passando pelas casas de adobe de<br />

Villalba del Duero, tão características da<br />

região. Sucedem-se vastos vinhedos em<br />

ambos os lados da estrada. São os «domínios»<br />

de D.Alejandro Fernández, o produtor


RIOS PROFUNDOS 80<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

81<br />

do tinto Pesquera que, conjuntamente com<br />

o clássico Vega Sicilia e o veterano Protos,<br />

formam o triunvirato que deu fama à<br />

Ribera del Duero. Boa parte da uva<br />

Pesquera é oriunda destes vinhedos.<br />

Mesmo antes de chegar a La Horra,<br />

um cartaz anuncia a propriedade La<br />

Ventosilla. Por detrás do seu discreto<br />

nome, esconde-se uma das mais prósperas<br />

explorações agrárias da região, exemplarmente<br />

alimentada pelas águas do Pai<br />

Douro, como familiarmente lhes chamam<br />

alguns moradores. O seu administrador,<br />

Alfonso Velasco, um engenheiro de «montes»,<br />

alto e musculado, de rosto definido e<br />

curtido pelo vento, propõe-nos que troquemos<br />

a nossa furgoneta pelo seu todo-o-<br />

-terreno para visitar a propriedade. Sábia<br />

decisão porque a água formou uma pista<br />

deslizante que faz avançar o veículo, de<br />

escorregão em escorregão, como sobre<br />

uma pista de gelo.<br />

Nos mais de mil hectares da propriedade<br />

há de tudo. Desde os altos choupais,<br />

que alguns trabalhadores podam com a<br />

ajuda de braços mecânicos, até às colinas<br />

onde «se esconde o javali, que depois se<br />

mete nos milheirais e não há quem o faça<br />

sair deles, por mais cães que lhes aticem»,<br />

queixa-se Velasco. Nada se desperdiça na<br />

Ventosilla: onde se plantou milho, agora há<br />

forragem para as três mil ovelhas da propriedade;<br />

e, na época de caça, soltam-se<br />

perdizes de criação, para organizar batidas.<br />

Junto à estrada podem ver-se os estábulos<br />

de 450 vacas leiteiras. E, no mesmo rio, lá<br />

em baixo, uma central eléctrica aproveita a<br />

água retida por uma pequena represa<br />

(«construiu-a o meu avô, que era delegado<br />

régio da Confederação do Douro»,<br />

explica Velasco), alimenta a propriedade de<br />

energia e ainda sobra para vender à<br />

Iberdrola.<br />

E o vinho, claro. Quatrocentos e cinquenta<br />

hectares de vinhedos plantados<br />

segundo a moderna técnica de espaldeira,<br />

em filas sustentadas por dois cabos, o que<br />

permite maior exposição ao sol e facilita a<br />

colheita mecânica de uvas Tinta del País, a<br />

uva utilizada tradicionalmente na elaboração<br />

do Ribera del Duero, e algumas outras<br />

uvas para experimentar, como as francesas<br />

Merlot e Cabernet Sauvignon, rainhas dos<br />

vinhos de Bordéus. «Este ano, vendi meio<br />

milhão de quilos de uva ao Alejandro através<br />

do Pesquera), mas fiquei com um<br />

milhão porque vamos fazer o nosso próprio<br />

vinho», explica Alfonso Velasco,<br />

enquanto nos mostra a moderna adega de<br />

Real Sitio de la Ventosilla, onde se trabalha<br />

na elaboração do vinho, sob a vigilância de<br />

Javier, um enólogo riojano que deve assistir<br />

ao parto deste primeiro néctar.<br />

A outra face desta aventura encontramo-la<br />

em La Horra, cuja velha cooperativa<br />

comercializa os vinhos Viña Valera.<br />

Fundada em 1957, é um expoente do cooperativismo<br />

vinícola da região, que coexiste<br />

com florescentes adegas privadas, como<br />

Viñedos e Bodegas, de Valbuena de Duero,<br />

onde a cantora Rocío Jurado e o toureiro<br />

Ortega Cano têm interesses, e cujo vinho<br />

Matarromera obteve os maiores galardões<br />

internacionais, segundo nos conta Pedro<br />

Ronda, vice-presidente da cooperativa de<br />

La Horra.<br />

Mas existe também uma terceira<br />

dimensão do vinho, da qual Pedro Ronda é<br />

também o expoente: a particular. A boa<br />

recordação da cozinha de Mitxel Vega faz<br />

com que Ronda abra as portas da sua<br />

”bodeguita” «como a de Felipe González,<br />

mas mais modesta», sorri. Nela, Pedro<br />

Ronda guarda o vinho que ele mesmo produz<br />

em casa, artesanalmente: um vinho<br />

jovem com uma leve cintilação carbónica<br />

que o torna vivo e alegre na boca e que<br />

provamos com alguns enchidos, rodelas de<br />

morcela frita e um salmão que ele mesmo<br />

defuma. É a irmandade do vinho, a que<br />

ultrapassa marcas e prestígios, a mesma<br />

que permite que se desfrute de um grande<br />

vinho ainda que não ostente o selo de<br />

denominação de origem, como acontece<br />

com o Mauro, elaborado por ele, em Tudela<br />

de Duero, ele que fora enólogo de Vega<br />

Sicilia, mas cuja localização se encontra<br />

fora do território demarcado para a denominação<br />

Ribera del Duero; uma irmandade<br />

que se prolongou no almoço que fizemos<br />

em Roa de Duero, no estupendo restaurante<br />

El Chuleta, cujo filho do proprietário<br />

é distribuidor de um clube de vinhos<br />

da Ribera.


Em Roa del Duero encontra-se precisamente<br />

a sede do Conselho Regulador da<br />

Denominação de Origem Ribera del<br />

Duero, um edifício moderno que abriga a<br />

instituição que mais tem contribuído para<br />

a modernização dos vinhos da região. Aqui<br />

se provam os vinhos das diferentes adegas,<br />

se classificam as colheitas segundo a sua<br />

qualidade, se autorizam as variedades de<br />

uva que podem ser utilizadas para conservar<br />

o carácter dos vinhos da região e se<br />

controla a produção. É o coração da Ribera<br />

del Duero, um coração que controlará e<br />

dará garantia de qualidade à torrente de<br />

litros de vinho que os quarenta milhões de<br />

quilos de uva colhidos este ano, na região,<br />

haverão de produzir.<br />

A cidade de Tordesilhas, que se situa<br />

já fora da Ribera, em terras de Valladolid,<br />

é um bom lugar para pernoitar e começar<br />

a perceber a presença portuguesa que presidirá<br />

ao último troço do trajecto do<br />

Douro. Aqui, em 1494, os reis de Portugal<br />

e de Castela dividiram o mundo, depois<br />

dos Descobrimentos, mediante um célebre<br />

tratado; tal como hoje, os dois países<br />

dividem os vinhos do rio que os separa e<br />

os une.<br />

Castronuño, pouco antes de chegar a<br />

Toro, ergue-se sobre a penha de La Muela,<br />

na majestosa curva do Douro, tudo choupais<br />

e patos. E a seus pés, precisamente<br />

sobre um toco de choupo, Mitxel Vega<br />

encontra uma colónia de cogumelos cuja<br />

colheita se dispõe a saltear na cozinha de<br />

um qualquer bar condescendente. O Pai<br />

Douro sabe mostrar-se generoso, embora<br />

os farelhões da cidade de Toro já anunciem,<br />

também, a violenta mudança do seu leito<br />

que nos espera.<br />

Se, outrora, os vinhos do Douro tiveram<br />

fama de ser duros e ásperos, essa fama<br />

continua, ainda hoje, a perseguir os vinhos<br />

de Toro. Contra ela lutam adegueiros como<br />

Manuel Fariña, homem inquieto e aberto<br />

às novidades do mundo do vinho, que<br />

coloca sobre a mesa o seu melhor argumento<br />

para acabar com a lenda de «vinhos<br />

para dar esfregas»: o seu jovem vinho<br />

«Fariña», um vinho que, por milagre climático<br />

raro, é o primeiro vinho de 96 que já<br />

se pode degustar.<br />

«Aqui utilizamos as variedades de uva<br />

Tinta de Toro, que é uma variedade da<br />

Tempranillo e da Garnacha, mas o terreno é<br />

muito quente, com muita pedra que conserva<br />

o calor», explica Fariña. «Isso faz<br />

com que a uva amadureça muito cedo, mas<br />

como a colheita se fazia ao mesmo tempo<br />

que no resto da Espanha, no final de<br />

Setembro, a uva chegava já com um elevado<br />

grau de álcool e por isso saíam uns<br />

vinhos tão fortes. Nós adiantámos a colheita<br />

um mês, de modo que a colhemos agora<br />

em plena maturação, mas mais suave. Além<br />

disso, ganhamos tempo, o que nos permite<br />

obter, em Novembro, o primeiro vinho<br />

do ano, um vinho jovem que entre nós se<br />

chama «Beaujolais de Toro». Apelido profético<br />

porque precisamente o ano passado,<br />

com o boicote internacional aos produtos<br />

O Pai Douro sabe mostrar-se<br />

generoso, embora os<br />

farelhões da cidade de Toro<br />

já anunciem, também,<br />

a violenta mudança<br />

do seu leito que nos espera.<br />

franceses pelos testes nucleares em Muroroa,<br />

Fariñas recebeu encomendas da Holanda<br />

para fazer chegar quantas garrafas pudesse<br />

de «beaujolais de Toro», em substituição<br />

do boicotado beaujolais francês. O resultado<br />

foi cem mil garrafas vendidas o ano<br />

passado e um bom gosto nas bocas holandesas,<br />

o que implicou o pedido de 200 mil<br />

garrafas para este ano.<br />

Apenas sete adegas têm a denominação<br />

de origem de Toro, mas na região produzem-se<br />

também outros vinhos chamados<br />

«Tierra del Vino», onde os adegueiros<br />

(inclusive alguns dos que fazem os vinhos<br />

de Toro, como Fariñas) se permitem experimentar<br />

outras variedades de uvas, como<br />

moscatel e albillo, para vinhos brancos doces.<br />

Para lá de Zamora e acrescentado pelas<br />

sucessivas barragens, o rio Douro colide


RIOS PROFUNDOS 82 83<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

com a serra do Mogadouro e desvia-se<br />

para sul, convertendo-se, durante cem quilómetros,<br />

em fronteira natural entre<br />

Portugal, situado na sua margem direita, e<br />

as terras espanholas que se estendem à sua<br />

esquerda. O terreno torna-se abrupto e,<br />

pouco a pouco, o rio interna-se num desfiladeiro<br />

sem fim que o acompanhará até à<br />

foz. Assim avança, encaixado e distante,<br />

fundido na paisagem e rodeado de solidões<br />

vertiginosas.<br />

Nessa fronteira, do lado espanhol e por<br />

entre as províncias de Zamora e Salamanca,<br />

produzem-se os vinhos de Los Arribes<br />

(Fermosella e a chamada Ribera de<br />

Salamanca), duros e agressivos. Pernoitámos<br />

em Vitigudino, onde um vinho de<br />

Valladolid, um Yllera de 1992, acompanha<br />

um leitão assado, e Mitxel Vega propõe<br />

abandonar a estrada de Portugal para nos<br />

aproximarmos do desfiladeiro do rio, em<br />

busca dos vinhedos que geram os violentos<br />

néctares da região.<br />

Não há maneira de ver o rio. Para lá<br />

das pastagens, é só barrancos, em cujas<br />

encostas e cumes se alinham vinhedos, varridos<br />

pelo vento, entre oliveiras e inesperadas<br />

laranjeiras, porque o microclima da<br />

região possibilita uma insuspeitada variedade<br />

de culturas. Nas imediações de<br />

Corporario, um cartaz que diz «A la playa»<br />

fez-nos seguir uma estrada infernal que<br />

termina num alto penhasco onde se vêem<br />

os restos do que deve ter sido um posto<br />

militar com troneiras. Ao lado, a base de<br />

um mastro de bandeira e um vinhedo já<br />

abandonado. Duas galinholas escapam de<br />

uma moita, com voo atordoado, para<br />

desespero de Mitxel, em cujo olhar brilha,<br />

por um instante, a cobiça do caçador veterano.<br />

E ali em baixo vê-se, por fim, o<br />

Douro serpenteante que espelha o sol frio<br />

da manhã. Do outro lado do abismo, as terras<br />

de Portugal.<br />

Quando, por fim, encontramos o desvio<br />

de «la playa», um caminho ziguezagueante<br />

conduz-nos directamente até à margem do<br />

rio, um retiro silencioso e imponente, ocasionalmente<br />

sobrevoado por cormorões,<br />

onde há uma minúscula praia de areia, amarelada<br />

de choupos, e um pequeno cais, promessa<br />

dos verões na fronteira.<br />

Mais a sul, na confluência com o rio<br />

Águeda, o Douro torna-se navegável e, em<br />

território espanhol, erguem-se as instalações<br />

desertas do porto de Vega de Terrón,<br />

que estão há um ano e meio à espera de<br />

serem inauguradas. Na margem portuguesa<br />

vêem-se tangerineiras e vinhedos vermelhos,<br />

mas não se vê vivalma. Falso.<br />

Vemos agora um homem apeado na berma<br />

da estrada. É o guarda do porto, Gabriel<br />

Hernández Berrocal, um antigo trabalhador<br />

da Iberduero que viveu, durante<br />

alguns anos, em Basauri e que ficou coxo e<br />

famoso porque uma árvore lhe caiu em<br />

cima («apareci no programa de televisão<br />

“Valor e Coragem”», explica com naturalidade).<br />

De momento, é o único beneficiário<br />

deste porto, chamado a facilitar o tráfego<br />

fluvial de mercadorias no dia em que as<br />

autoridades decidirem dar-se conta da sua<br />

existência. Mas semelhante privilégio não<br />

parece afectá-lo: «No Verão, vêm aqui os<br />

de Madrid e dizem-me: que bonito! Bom,<br />

mas eu não gosto!» E a paisagem, imponente<br />

e silenciosa, não parece ter nada a<br />

objectar à indiferença do seu guardião.<br />

No outro lado do rio, a povoação de<br />

Barca de Alva dá-nos as boas-vindas a<br />

Portugal, com um vinho da terra, um<br />

Vinha Lamedo rosado de 1992, que não<br />

tem nada que invejar, em virulência, os<br />

seus irmãos salamanquinos. Aqui começa<br />

uma tremenda viagem, uma espécie de<br />

montanha-russa interminável onde só ocasionalmente<br />

conseguimos avistar o Douro<br />

(assim se chama el Duero, em português),<br />

comprimido entre as inúmeras montanhas<br />

do Norte de Portugal. Os vinhedos galgam<br />

alturas inconcebíveis, assomam-se em terraços<br />

laboriosamente trabalhados para formar<br />

as quintas que haverão de alimentar as<br />

adegas dos vinhos do Douro e do Porto.<br />

Nesta região acontece um raro fenómeno.<br />

Entre Freixo de Espada à Cinta e<br />

Mesão Frio estende-se uma região vinícola,<br />

que tem o Douro como espinha dorsal,<br />

dividida em três partes: Baixo Corgo (a mais<br />

ocidental, de clima mais temperado e<br />

húmido), Douro superior (a mais oriental,<br />

mais quente, menos húmida e com vinhedos<br />

de maior altura) e Cima Corgo (a parte<br />

central, mais equilibrada em humidade e


temperatura). Nela se produzem ambos os<br />

tipos de vinho, porque os vinhedos do<br />

vinho do Porto não estão no Porto mas a<br />

cem quilómetros para o interior, nesta<br />

terra do Douro que tem a cidade de Peso<br />

da Régua como capital do vinho.<br />

Nela encontramos o enólogo da Casa<br />

do Douro (equivalente ao Conselho<br />

Regulador da Ribera del Duero), Eduardo<br />

Abade, um português de quarenta anos,<br />

nascido em Angola, que nos mostra as instalações<br />

da Casa enquanto nos fala dos<br />

vinhos da terra: «Os vinhos do Douro são<br />

vinhos normais, brancos e tintos, enquanto<br />

os do Porto são os vinhos con solera,envelhecidos,<br />

dulcificados e misturados com<br />

aguardente.» A região produz 10% dos<br />

vinhos portugueses e, desses 10%, 50%<br />

destina-se a «portos», cerca de 30% a<br />

vinhos do Douro e 20% ao que se chama<br />

vinhos da região, o equivalente aos vinhos<br />

sem denominação de origem que se fazem<br />

em Zamora ou em Valladolid. No total: 130<br />

milhões de litros de vinho de produção em<br />

1996. Todo um império, o que não é de<br />

estranhar se se pensar que esta região vinícola<br />

foi a primeira do mundo, delimitada e<br />

regulamentada no ano de 1756.<br />

Da sua valia, registe-se, durante o jantar<br />

no restaurante Varanda da Régua (sobranceiro<br />

à cidade), dois excelentes vinhos brancos<br />

frutados: um Quinta de Santa Júlia de<br />

1995 e um Quinta da Gaivosa do mesmo<br />

ano, mistura de uvas Malvasia e Códega, o<br />

primeiro,Vio Sinho e Ravigato, o segundo,<br />

que acompanham uma clássica caçarola de<br />

arroz de marisco.<br />

Por fim, sexta-feira pela manhã chegamos<br />

à cidade do Porto, empoleirada labirinticamente<br />

nas colinas que tutelam o<br />

Douro. Abaixo, na margem do rio, as<br />

velhas adegas dos vinhos do Porto alinham-se<br />

com solenidade britânica (não foi<br />

em vão o comércio destes vinhos com<br />

Inglaterra, a origem de tão frutífera indústria).<br />

Numa delas, governada no século<br />

passado pela chamada Rainha do Douro, a<br />

Senhora D. Antónia Ferreira, e que tem<br />

uma exótica avestruz como símbolo, recebe-nos<br />

Fernando Xavier, chefe de serviços<br />

da adega, homem baixo, magro, com um<br />

pequeno bigode e elegantemente vestido,<br />

que caminha com uma mão no bolso do<br />

casaco, como se se tratasse de um diligente<br />

funcionário da Coroa britânica na Índia,<br />

circunspecto e amável, anfitrião oportuno<br />

e preciso da visita às suas adegas frescas e<br />

formosas, onde os vinhos aprendem definitivamente<br />

o significado do verbo envelhecer.<br />

«Quando Felipe González era presidente,<br />

veio visitar-nos e demos-lhe a provar<br />

um vinho de 1815, em memória da<br />

Constituição de Cádis», comenta, sem que<br />

o abismo do tempo pareça incomodá-lo.<br />

Da adega, os vinhos do Porto saem<br />

como Tawny, a sua versão menos envelhecida,<br />

Ruby, com mais anos no barril, e portanto<br />

mais amadeirados, ou Vintage: aqueles<br />

vinhos de colheitas especialmente boas<br />

que são engarrafados aos dois anos e guardam,<br />

com o tempo, o seu primeiro e frutado<br />

aroma.<br />

À saída, à beira-rio, Mitxel Vega parece<br />

ter esquecido a estaca que lançou à água<br />

em Salduero, certamente vencido pela prodigalidade<br />

sábia do Douro, enquanto a<br />

recordação do Porto de 1937, que provámos<br />

à noite, ainda me fala no paladar das<br />

delícias de um tempo em que eu ainda não<br />

tinha nascido. É o milagre do vinho.<br />

Rio Douro. Fotografia de Paulo Barata


Aconcágua,<br />

a Rainha das Américas<br />

João Garcia<br />

ALTAS SOLIDÕES 84 85<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


ALTAS SOLIDÕES 86<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

87<br />

Já foi há muito tempo, mas, pela quantidade<br />

de vezes que repeti esta viagem,<br />

parece-me que foi apenas ontem que de lá<br />

cheguei. É assim que me acontece com os<br />

destinos de que gosto muito. Quem corre<br />

por gosto não cansa, diz o ditado. Com o<br />

Aconcágua acontece-me isso. E, sempre que<br />

lá volto, aprofundo mais um pouco, acrescento<br />

histórias e marcos à minha memória.<br />

Já escalei tanto na Patagónia argentina,<br />

como na Cordilheira Branca, no Peru.Volto<br />

sempre ao Aconcágua, o ponto mais perto<br />

do céu em que se pode estar no Continente<br />

Americano.<br />

Esta ascensão efectua-se durante o<br />

Verão local, Inverno na Europa. Nem sequer<br />

faz frio, mas a época natalícia ajuda a criar<br />

ambiente e quase nos faz crer que está frio.<br />

Enfim, chegamos a uma terra onde as<br />

pessoas vivem e se vestem de forma diferente<br />

e, assim, nos ajudam a despirmo-nos<br />

de preconceitos e a ser abraçados por uma<br />

cultura diferente. Bem podem dizer que<br />

somos «latinos», mas este nosso modo de<br />

estar quase fatalista, que o fado tão bem<br />

sabe retratar, faz-me admirar quem simplesmente<br />

canta canções alegres, apenas<br />

por ser alegre…<br />

Visto do ar, o Aconcágua sobressai<br />

como um monólito imponente. É a Rainha<br />

das Américas, tem mais de 6946 m de altitude,<br />

uma montanha de quase 7000 m,<br />

Visto do ar, o Aconcágua sobressai<br />

como um monólito imponente.<br />

É a Rainha das Américas, uma montanha<br />

de quase 7000 metros, mais alta do que<br />

qualquer outra no continente americano.<br />

mais alta do que qualquer outra no<br />

Continente Americano.<br />

A viagem propriamente dita começa<br />

em Santiago do Chile, onde após um breve<br />

período para descanso e aprovisionamentos<br />

nos deslocamos a La Parva, 50 km a norte da<br />

capital. É uma estação de esqui e, neste<br />

Verão tórrido, o nosso pedido de transporte<br />

espanta o motorista de táxi.<br />

A 50 km a norte de Santiago, já avistamos<br />

neves eternas. Aqui, a um dia de distância<br />

desta estância de esqui, escalamos o<br />

Cerro Plomo, de mais de 5000 m de altitude.<br />

São cinco dias que servem de aclimatação,<br />

em que damos tempo ao organismo para<br />

se adaptar ao ar rarefeito, devido à baixa de<br />

pressão atmosférica, ao frio, ao chão duro<br />

e ao desconforto de uma mochila pesada.<br />

Ao chegarmos ao seu cume, compreendemos<br />

o sentido do nome da montanha: plomo,<br />

chumbo, é o que sentimos nas pernas…<br />

Regressamos a Santiago, que agora já<br />

não nos é estranha e nos acolhe numa passagem<br />

de ano um pouco tardia, e apanhamos<br />

depois um autocarro para Mendonza,<br />

na Argentina. Embora o monte Aconcágua<br />

esteja praticamente na fronteira entre estes<br />

dois países, o acesso à montanha faz-se pelo<br />

lado argentino. É aqui que temos de pagar<br />

para entrarmos no seu Parque Nacional.<br />

Na viagem podemos admirar vales áridos,<br />

céu azul-escuro e, com sorte, talvez o


voo de um condor-de-colarinho-branco.<br />

No final das tortuosas curvas e contracurvas<br />

dos caracoles, podemos ver por breves<br />

momentos a majestosa face Sul do Aconcágua,<br />

desde a estrada que iremos refazer.<br />

Se Santiago é quente, então Mendonza<br />

está a escaldar em todos os sentidos… Na<br />

rua faz muito calor e toda a gente procura<br />

as sombras para passear à tarde. Aqui tratamos<br />

da logística e da burocracia para<br />

seguirmos viagem.<br />

Este intervalo na viagem também vale<br />

pelo repouso mental pois, ao contrário do<br />

que se pensa, escalar montanhas faz-se não<br />

só com as pernas, mas também com a força<br />

da mente. Se a mente não está bem, as pernas<br />

não correspondem…<br />

Seguem-se mais umas horas de viagem<br />

nos autocarros locais, económicos e pitorescos,<br />

e voltamos às grandes paisagens áridas<br />

e belas das montanhas. O grosso da<br />

bagagem é transportado por mulas e controlado<br />

por muleiros que seguram uma<br />

faca atrás das costas, presa numa faixa de<br />

tecido na cintura. O chicote que usam<br />

impõe respeito, e o seu chapéu típico protege<br />

do sol tórrido.<br />

Ao chegarmos ao Campo-Base, revejo<br />

amigos de todos os anos, alpinistas profissionais<br />

que, tal como eu, fazem regularmente<br />

expedições ao Aconcágua. Revejo a<br />

montanha, naturalmente bela, e sinto a<br />

Subimos com João Garcia<br />

ao tecto das Américas<br />

e como Neruda avistámos o mundo.<br />

refrescante temperatura da altitude. Os ventos<br />

da montanha nem sempre são amigos,<br />

mas a perseverança do homem ultrapassa as<br />

dificuldades e os elementos.A força de vontade<br />

para subir, mas também para descer.<br />

Porque o cume é apenas um ponto de<br />

retorno, a descida é o mais importante.<br />

Os ventos têm de estar connosco, as<br />

frágeis tendas onde pernoitamos são a<br />

nossa salvação em caso de mau tempo, de<br />

intempérie e instabilidade meteorológica,<br />

factores próprios das montanhas com os<br />

quais temos de estar preparados para lidar.<br />

Chegar lá acima é uma sensação incrível!<br />

Tenho casa em todas as montanhas<br />

deste Planeta e, quanto mais alto, mais belo<br />

é o pôr do Sol visto de minha casa.<br />

O regresso ao vale, esse, é a felicidade.<br />

Podemos respirar fundo, descansar e<br />

gozar em pleno. Temos ainda tempo,<br />

vamos ver o Pacífico, Valparaíso, Viñas del<br />

Mar… A suavidade do mar contrasta com<br />

a agressividade da montanha, a viagem<br />

está assim completa!


BESTIÁRIO 88 89<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

O Ovo do Pinguim<br />

ou Crónica<br />

de um Amor Maior<br />

Maria Adelina Amorim<br />

Oi filhote! Esse aí não é o Erich? Ilustração de Daniel Barraco


BESTIÁRIO<br />

Meu filhote,<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

90<br />

91<br />

Agora que te vais iniciar na grande viagem das<br />

neves eternas, ao lugar em que só os nossos casacos<br />

pretos polvilham de negro a brancura primacial<br />

dos tempos, quero contar-te uma história, a<br />

nossa história.<br />

Há muito, muito tempo, olhei para um grupo<br />

de pinguinas – era assim que carinhosamente tratávamos<br />

as mulheres da nossa tribo – e dei de<br />

caras, que é como quem diz, de bicos, com um<br />

pestanejar de olhos meio envergonhado, com um<br />

rosto discretamente inclinado sobre os ombros.<br />

Fiquei petrificado naquele corpo luzidio, fusiforme,<br />

naquelas penas sedosas, naquelas asas-barbatanas<br />

perfeitas. Finalmente, vi-a afastando-se com<br />

as amigas pinguinas, sob o poente coado do Pólo.<br />

Que porte, que elegância e que bom gosto: um<br />

vestido branco com um fraque negro, que lhe<br />

dava um ar de ambiguidade sedutora… Hoje<br />

todos querem copiá-la, e até vieram cá das terras<br />

quentes do Norte para tirar fotografias ao modelo.<br />

Dizem que nas capitais da moda é muito chique<br />

vestir à pinguim, uma espécie de ton sur ton, tão ao<br />

jeito da capital parisiense (sim, que por cá vemos<br />

o National Geographic, que sintonizamos directamente<br />

dos satélites com que resolveram poluir os nossos<br />

gelos, e sabemos muito bem onde ficam essas<br />

terras de selvagens, animais estranhos metidos em<br />

gaiolas de cimento e a correr de um lado para o<br />

outro dentro de máquinas que deitam muito<br />

fumo, umas bestas… a que chamam homens,<br />

parece).<br />

Contava-te eu que fiquei completamente congelado<br />

com aquele olhar. Naquele momento, congelei<br />

também uma ideia: aquela era a pinguina da<br />

minha vida, e andaria milhas atrás dela até a convencer<br />

a darmos as asas. E assim foi, anos depois<br />

casámos numa madrugada brilhante junto às<br />

águas frias onde nos conhecêramos e partimos de<br />

lua-de-mel para a Antárctida profunda. Foi assim<br />

que começámos a pensar em ti, a acalentar a ideia<br />

de pormos um ovo para nele depositarmos uma<br />

cria, que seria o espelho daquele amor austral.<br />

Nem sabes como eram lindas as noites consteladas<br />

em que caminhávamos, de barbatanas dadas,<br />

ouvindo o silêncio das estrelas. Um dia ela, a tua<br />

mãe, tornou a olhar para mim como da primeira<br />

vez e disse-me «estamos grávidos». Senti um<br />

arrepio na coluna – nunca devemos dizer espinha<br />

para não nos confundirem com os peixes – e dei-<br />

-lhe um beijo no bico. Abraçando-nos muito ternamente,<br />

fomos sentar-nos nas rochas a observar<br />

os leões-marinhos que tinham acabado de ter<br />

filhotes.<br />

Foi aí que começou a grande aventura, tínhamos<br />

de nos preparar para te levar para longe dos<br />

predadores e, numa espécie de peregrinação<br />

colectiva, iniciámos a longa viagem até ao interior<br />

gélido do continente. Eras um belo ovo, e era preciso<br />

levar-te cuidadosamente ao colo para não caíres,<br />

para te manteres quentinho junto às nossas<br />

penas e aos nossos corações. Assim andámos quilómetros<br />

adentrando os desertos das lonjuras infinitas.<br />

A meio da marcha, a tua mãe, com as outras<br />

pinguinas, tiveram de regressar aos mares para se<br />

alimentarem, e aí foi o momento crucial desta<br />

cruzada: era preciso trocarmos o ovo de um colo<br />

para o outro, mantendo-te sempre apoiado nas<br />

nossas asas-barbatanas. Finalmente, tinha-te agarradinho<br />

ao meu peito para continuarmos a jornada.<br />

Eu e os outros pais caminhávamos incessantemente<br />

em longas filas até ao sítio onde os nossos<br />

pais, avós, trisavós, enfim, tinham poisado os seus<br />

próprios ovos. Ao mesmo tempo, tu ias crescendo<br />

e ganhando força para quebrares a casca num dia<br />

dourado e róseo. Foi assim que, numa madrugada,<br />

aquele ovo, que eu e a tua mãe tanto cuidámos,<br />

abriu-se para deixar ver um pequeno pinguim<br />

preto todo dobradinho. Que susto quando te vi<br />

naquele aspecto: onde estavam as penas sedosas<br />

da tua mãe, o claro-escuro que nos identifica e dá<br />

carácter no meio daquela brancura sempre igual,<br />

as vestes elegantes que nos distinguem dos vulgares<br />

leões-marinhos, das focas, ou até das orcas<br />

que vemos passar ao longe, e das outras primas<br />

baleias que nos cumprimentam sempre com um<br />

jorro de água?<br />

Lentamente, enquanto te ensinávamos os<br />

elementares princípios da sobrevivência, foste<br />

ganhando cores e tomando o porte nobre e incon-


fundível da nossa espécie: repara como nas passereles<br />

da moda nos tentam imitar, pata aqui, pata<br />

acolá, tira casaco, põe casaco… e nas cerimónias<br />

que os homens fazem nos salões de festas, elas<br />

todas de preto comprido, eles vestimentando-se<br />

com casacas negras e camisas brancas… uma<br />

beleza.<br />

Era preciso avisar toda a família espalhada<br />

pelo mundo, o ramo hispânico que vive nas<br />

Galápagos (da ilha de San Cristóbal a Santa Cruz,<br />

da Genovesa à Fernandina, de Santa Fé a Santa<br />

Maria), o ramo australiano que se instalou na<br />

Nova Zelândia, e até o grupo mais exótico que<br />

vive na Namíbia, a sul de Angola. Eu e a tua mãe<br />

recorremos a toda a parafernália de técnicas de<br />

comunicação marítima, aérea, terrestre, e todos os<br />

amigos se disponibilizaram a levar os telegramas,<br />

das gaivotas aos albatrozes, dos ursos polares às<br />

tartarugas (não sorrias porque elas são verdadeiras<br />

campeãs de natação e conhecem os mares como<br />

ninguém, senão como teríamos avisado os primos<br />

africanos?), e até o tubarão-martelo participou<br />

fazendo sinais de morse.<br />

Foi assim que todos ficaram convidados para<br />

o grande dia do teu registo no mapa austral. Eras<br />

então um descendente do grande Reino da Animalia,<br />

Filo da Chordata, da Classe das Aves, da Ordem dos<br />

Ciconiiformes, da Família dos Spheniscidiae, e eras,<br />

como os orgulhosos dos teus pais, um pinguim-<br />

-imperador, ou seja, um Aptenodytes forsteri. Sim,<br />

porque para além do nosso Género, ainda há o<br />

pinguim-rei ou, mais propriamente, o Aptenodytes<br />

patagonicus e outros, como o pinguim-de-barbicha,<br />

o pinguim-saltador-da-rocha, o macaro, o das<br />

barbatanas, o real, o azul... e outros com nomes<br />

daquelas pessoas que não deviam ter mais nada<br />

para fazer e vieram dividir-nos, subdividir-nos,<br />

catalogar-nos, seleccionar-nos, como aquele Darwin<br />

ou o Humboldt. Imagina um pinguim chamado<br />

Sphenicus Magellanicus ou Sphenicus Humboldti, ou até o<br />

mendiculus e o demersus, que ficaram com estes<br />

nomes por viverem ali para o lado do Equador, e<br />

os outros no Continente Africano. Mas quem deu<br />

ordem àqueles mamíferos hominídeos para nos<br />

desenharem em árvores genealógicas (nem vejo<br />

quem foi o génio) cheias de ramos onde penduram<br />

os nossos retratos? Antigamente, só havia o<br />

avô e a avó pinguins, a mãe e o pai pinguins, os<br />

irmãos, filhos, tios e por aí adiante. Agora, a confusão<br />

é tão grande que já nem sabemos se perten-<br />

cemos à mesma família ou se somos parentes afastados.<br />

O que vale é que sabemos falar uma língua<br />

que eles, por mais estelas que descodifiquem,<br />

jamais conseguirão aprender. Pensam que sabem<br />

tudo, os vaidosos.<br />

Na verdade, não precisamos deles para nos<br />

ensinarem a nadar, a caminhar, a comer, a ficar<br />

grávidos e a pôr ovos. Por causa disso é que fugimos<br />

para muito longe daqui quando as pinguinas<br />

acham que os ovos que têm nas bolsas estão prontos<br />

(até nisso eles nos imitaram com aqueles cestos<br />

onde põem os filhos às costas, que compram<br />

naquelas lojas de instrumentos estranhíssimos<br />

onde deitam os filhos, que abanam, que têm rodinhas,<br />

chapéus de chuva, plásticos, cobertores,<br />

biberões, fraldas descartáveis, leite postiço, chuchas<br />

para calarem as crias… eu sei lá, têm-me<br />

contado coisas muito esquisitas daqueles animais<br />

humanos). Nós, ao menos, não precisamos de<br />

nada para além de amor, de vontade e de peixe no<br />

mar para vivermos e criarmos os nossos bebés-<br />

-pinguins. Até o que nós comemos tiveram de<br />

nomear, sim, porque têm a terrível obsessão de<br />

pôr nomes às coisas, aos lugares, aos bichos… não<br />

deixam nada sossegado com aqueles latinismos,<br />

que agora com a mania da era informática transformaram<br />

em inglesismos: à nossa comidinha<br />

chamam Kril, imagina bem. O que é que eles<br />

sabem daquela mistura que só nós conseguimos<br />

preparar tão bem, para lhe chamarem aquele<br />

nome feio? Vá lá a pinguinada entendê-los.<br />

Bom, filhote, agora que já fechei o guarda-jóias<br />

da família onde guardamos as nossas<br />

memórias, fico à espera do neto que hás-de trazer<br />

caminhando ao teu lado, quando regressares<br />

da grande viagem. Que os bons ventos protejam<br />

o teu ovo para o veres transmudado em pinguim.<br />

Mais um imperador para continuar a<br />

nossa história.<br />

Dá cá essas asas…


Erotismo e gula<br />

na América,<br />

desde o tempo colonial - I<br />

Virginia Vidal<br />

SABORES PRINCIPAIS 92 93<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Aqui, no Novo Continente, nesta terra minha sem nome,<br />

sem América, como lhe chamava Neruda, achava-se a mais<br />

esplêndida reserva de aves, peixes e animais desconhecidos,<br />

de frutas, hortaliça e especiarias, não só para saciar a fome,<br />

mas também como ritual amoroso e oferenda às divindades.<br />

Morning Grace, óleo de Martin Maddox, 1991 © Todos os direitos reservados ao autor


SABORES PRINCIPAIS 94<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

95<br />

Como os cozinheiros devem bater, coar e<br />

pisar, para transformarem a substância em<br />

deleitoso acidente para que assim satisfaça a<br />

vossa gulosa degustação! Dos duros ossos<br />

extraem o tutano e não desperdiçam nada que<br />

possa ser doce e suave para a garganta. De<br />

casca e picantes, de raízes e folhas se compõe o<br />

delicioso molho para o glutão,para lhe despertar<br />

um fresco apetite.<br />

[Chaucer, El cuento del perdonador]<br />

As receitas ou os segredos de cozinha<br />

dão o seu pequeno contributo para a felicidade<br />

humana, como proclama Pablo<br />

Neruda:<br />

Procuremos no mundo a mesa feliz.<br />

Procuremos a mesa onde se aprenda a comer.<br />

Onde se aprenda a comer, a beber, a cantar!<br />

A mesa feliz.<br />

A qualquer momento, a azáfama de<br />

Eros com as panelas permite inferir que<br />

erotismo e gula são caminhos de sabedoria,<br />

e não hesito em afirmar que boa parte<br />

do engenho humano se esmerou para<br />

encontrar elementos – alimentos – que<br />

outorguem juventude e poderes afrodisíacos<br />

a quem os ingerir.A procura da rota das<br />

especiarias não foi outra coisa senão isso,<br />

por exemplo, o cravinho ou giroflé, a<br />

pimenta em todas as suas fases, a noz-moscada<br />

com a sua delicada casca, para citar<br />

apenas algumas que conservariam as carnes<br />

nos longos invernos e animariam o<br />

corpo.<br />

Aqui no Novo Continente, nesta «terra<br />

minha sem nome, sem América», como lhe<br />

chama Neruda, havia a mais esplêndida<br />

reserva de aves, peixes e animais desconhecidos,<br />

de frutas, hortaliças e especiarias,<br />

não só para saciar a fome, mas também<br />

como ritual amoroso e oferenda às divindades.<br />

Semelhante sentido religioso estava<br />

incorporado no trigo para a farinha das<br />

hóstias e na videira para fabricar o vinho de<br />

consagração que os sacerdotes recém-chegados<br />

usavam na missa.Também traziam o<br />

azeite de oliveira, só para manter a luz,<br />

que, além de se usar para acender as lamparinas<br />

votivas e como santo óleo na admi-<br />

nistração dos sacramentos do baptismo,<br />

confirmação e extrema-unção, permitia<br />

temperar as saladas e dar-lhes um aroma<br />

celestial.<br />

Ah!, também traziam os citrinos que<br />

os árabes lhes ensinaram a cultivar, de<br />

modo que as saladas foram temperadas<br />

com limão e se acalmou a sede com sumo<br />

de laranja, e plantaram as amendoeiras a<br />

cuja semente o poeta cubano Lezama Lima<br />

prestou homenagem:<br />

Encanecida e escultórica serenidade da amêndoa<br />

Que recebe a embriaguez do mel feito escarcha<br />

de ambrosia.<br />

Os conquistadores – os senhores – da<br />

arte culinária tinham uma tradição que<br />

remontava ao grego Entidimo. Eles trouxeram,<br />

além dos cavalos, reses, porcos e aves<br />

de capoeira com a galinha como rainha,<br />

porque os ovos se converteram de imediato<br />

num alimento delicioso. Com o afã de<br />

cuidar das poedeiras, raramente se matava<br />

uma ave, de modo que este acontecimento<br />

só ocorria em ocasiões memoráveis e a sua<br />

canja era reservada para as mulheres depois<br />

de darem à luz, os convalescentes, os doentes<br />

com gripe, para festas de aniversário e<br />

outros acontecimentos especiais.<br />

Os naturais pescavam em mares e rios,<br />

caçavam na selva aves e mamíferos e obtinham<br />

as necessárias proteínas, mas os conquistadores<br />

trouxeram algo de novo: os<br />

animais domésticos que podiam ser criados<br />

pelos homens e estar ao alcance da<br />

mão. Assim proliferam as reses, os caprinos,<br />

os cordeiros, os porcos e as aves de<br />

capoeira, então as galinhas foram criadas e<br />

tratadas com muito amor, evitando matá-<br />

-las, para poderem dispor dos seus ovos.<br />

Também os escravos africanos contribuíram<br />

grandemente para a rica cozinha<br />

mágica americana com uma grande audácia<br />

para combinar produtos diversos e a<br />

incorporação de frutos que, sem serem<br />

necessariamente originários de África, ali<br />

tinham proliferado, como diversas espécies<br />

de bananas. Algo semelhante aconteceu<br />

com os cocos e o café. Este delicioso grão<br />

converteu-se na indispensável matéria que<br />

se serve à sobremesa. A poetisa mexicana


Rosario Castellanos soube evocar magistralmente<br />

esses tempos idos:<br />

Depois de comerem ainda ficam<br />

À volta da mesa. E ali fumam<br />

Os homens o seu charuto; as mulheres<br />

Prosseguem um labor paciente, cuja origem<br />

Mal se recorda. Un negro café fumega<br />

Em chávenas amiúde requeridas<br />

…………<br />

para sua plenitude este instante mais não quer<br />

que ser e passar.<br />

Quanto à cana-de-açúcar indiana, o seu<br />

cultivo viria a desenvolver-se apenas aqui.<br />

Dizer cana é dizer açúcar escuro, papelón,<br />

panela, chancaca. Quer dizer, uma infinidade<br />

de doces e geleias que vão desde os figos<br />

recheados ao manjar branco, do maçapão às<br />

amêndoas, e amendoins carapinhados, da<br />

doce marmelada aos chocolates de todas as<br />

formas e com todos os recheios possíveis.<br />

Isto é, guarapo e sumo doce destilado e envelhecido<br />

para convertê-lo em rum.<br />

Com razão, Brillat Savarin, o mestre da<br />

gastronomia, afirma na sua Fisiología del<br />

Gusto: «É precisamente nas colónias do Novo Mundo<br />

que o açúcar tem a sua origem.»<br />

DANÇA DO FOGO<br />

Não é exagerado afirmar que apetites<br />

nutritivos e venéreos andam de mãos dadas.<br />

Para despertá-los, procuram-se desde tempos<br />

imemoráveis fórmulas mágicas que se<br />

vão transmitindo de mães para filhas. No<br />

que concerne a cozer os alimentos, uma<br />

parte da humanidade descobriu que em terras<br />

americanas se conservavam todas as formas<br />

inventadas desde a descoberta do fogo.<br />

Não há homem que não goste de assar<br />

carne, entranhas e enchidos, aves e peixe na<br />

grelha (barbaboa, que é uma palavra taína, tal<br />

como tomate).<br />

Sobre um budare, que primeiro foi uma<br />

placa de argila para assar as tortilhas de cassabe<br />

e com o tempo se fundiu em ferro, cozem-<br />

-se as arepas do pequeno-almoço caribenho,<br />

amazónico e venezuelano.<br />

Nos campos chilenos, assa-se a tortilha<br />

de borralho, depois de amassada com farinha<br />

de trigo, salmoura, levedura e manteiga,<br />

entre cinzas resultantes do cisco de carvões<br />

vegetais queimados. Um pano alvo limpá-<br />

-la-á do seu véu cinzento antes de ser partida<br />

em fatias suculentas.<br />

Em Aysen, espeta-se um bom pedaço de<br />

rês num assador com forma de espada e<br />

põe-se num quincho 1 . Esta é uma tarefa de<br />

homens e cada aysenino cuida com desvelo<br />

do seu espeto e regula a distância do seu<br />

assado plantado para que não chegue a tocar a<br />

chama da lenha. Se é cordeiro plantado, o cachaço<br />

vai ora para baixo ora para cima, para que<br />

asse de forma igual e não se queime a pele.<br />

Dentro de um buraco com pedras a<br />

escaldar cozem-se mariscos, carnes e peixe<br />

no curanto 2 chilote.<br />

Al-Garib, o califa de Pirque, segue as<br />

indicações da sua esposa Lenka e traz<br />

pedras redondas e bem lavadas do rio Clarillo<br />

e aquece-as ao rubro num buraco<br />

cavado no chão. Depois, vão-se colocando<br />

sobre as pedras os pedaços de diversas carnes,<br />

as presas de ave, as linguiças, as prietas,<br />

até que a sua pele dourada sue. Entretanto,<br />

ela colocou sobre a mesa uma infinidade<br />

de saladas de todas as cores, aromas e sabores<br />

inimagináveis.<br />

Nas margens do lago Maracaibo, assam-<br />

-se sobre uma grelha os peixes recheados,<br />

bem envoltos em folhas de bananeira.<br />

Um forno de barro, montado tijolo a<br />

tijolo, com forma de iglô, por cuja pequena<br />

boca entra a lenha que arde até se converter<br />

em cinza para depois ser varrida e na<br />

obscura e ardente cavidade se ir assando<br />

nas minas a galleta minera; nos campos,<br />

assam-se a galleta camponesa, empadas, pães<br />

amassados, pastéis de milho e, no final,<br />

alfajores [doce típico feito de uma pasta de<br />

mel e amêndoas], biscoitos e outras delícias.<br />

Os melhores feijões 3 guisam-se numa<br />

panela de barro, e o pastel de milho assa-se<br />

em recipiente do mesmo material. Convém<br />

lembrar que as caçarolas, as bacias, as panelas<br />

e as platas de barro têm um efeito especial<br />

por serem amassadas, sobretudo por<br />

mão de mulher, com a mesma terra, de<br />

modo que fiquem impregnadas de energia,<br />

sonhos e aura.<br />

Nestas terras, tal como na longínqua<br />

China, ainda se assam os frangos no barro<br />

1 «Quincha», palavra quechua<br />

que designa quer um<br />

entramado de juncos<br />

com que se reforça um tecto<br />

ou parede de canas,<br />

quer uma parede feita<br />

de canas ou outro material<br />

semelhante que se costuma<br />

cobrir de barro.<br />

2 Na Argentina e no Chile,<br />

comida à base de legumes,<br />

marisco ou carne, cozida<br />

sobre pedras muito quentes<br />

num buraco que se cobre<br />

com folhas.<br />

3 «Poroto», do quechua<br />

purutu, designa uma<br />

espécie de feijão<br />

ou o seu guisado.


4 «Mazamorra»: doce de<br />

milho, na América do Sul.<br />

5 «Coyacucho», do quechua<br />

kocha, alga marinha<br />

comestível cujo talo pode<br />

atingir mais de três metros<br />

de comprimento e dois<br />

decímetros de largura.<br />

6 «Huesillo»: pêssego seco<br />

ao sol.<br />

7 «Mote», do quechua mutti,<br />

milho cozido com sal.<br />

SABORES PRINCIPAIS 96<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

envolvidos em penas, e tudo numa armadura<br />

de espessa lama que se ressequirá<br />

como couraça ao calor do lume e, quando<br />

for quebrada, deixará ver a ave cheirosa,<br />

bem cozida e sem penas e pele.<br />

Não faltam os pescadores que colocam<br />

sobre as brasas o seu peixe envolto em<br />

folhas de jornal bem molhadas em água do<br />

mar, ficando, depois, pegada ao papel a<br />

pele com escamas, enquanto brilha em<br />

todo o seu esplendor o excelente pitéu.<br />

A incorporação do azeite de oliveira e<br />

da banha de porco deu origem à fritura e às<br />

correspondentes fritadas. Esta forma de cozimento<br />

obriga o peixe a mergulhar e a chiar<br />

no líquido a ferver para cobrir-se de crosta<br />

crocante. De igual modo, fritam-se empadas,<br />

diversas frutas de sertã [pasta de farinha à<br />

qual se junta ovos e açúcar ou sal, feita de<br />

diferentes formas e frita depois em manteiga<br />

ou azeite], couve-flor e outras verduras<br />

panadas, diversas tortilhas e sopaipillas [massa<br />

que, bem amassada, frita e emelada, forma<br />

uma espécie de holueja grossa] amassadas<br />

com abóbora dourada e farinha de trigo.<br />

Antes da chegada dos espanhóis, existiam<br />

na nossa terra óleos excelentes que se<br />

destinavam a uso ritual, como o de uma ave<br />

chamada guácharo na Venezuela.<br />

OS DESTERRADOS<br />

97<br />

Entre os sucessivos exílios que nos foi<br />

dado viver, não esqueçamos o dos jesuítas.<br />

Essas ausências, às vezes, consolavam-se<br />

por vezes sentindo saudades das maravilhas<br />

perdidas, entre as quais sabores e cheiros.<br />

Isto consta na obra de frei Juan Ignacio<br />

Molina que evoca intensas algas marinhas:<br />

luche e cochachuyo, sem esquecer peixes e<br />

mariscos como os piures, o sempre americano<br />

milho para as humitas [no Chile, guisado<br />

feito com milho tenro], chuchoca e ulpo [no<br />

Chile, espécie de mazamorra 4 feita com farinha<br />

tostada e água fria] nem frutas como a<br />

murtilla [fruto chileno] para licor, mel de<br />

palma e lúcumas. Também o padre Manuel<br />

Lacunza, quando se distrai da escrita de La<br />

Venida del Mesías en Gloria y Majestad, sente uma<br />

intensa nostalgia e imagina-se numa viagem<br />

imaginária de retorno: após a chegada<br />

a Valparaíso onde se enfarta de peixes-rei e<br />

caranguejos, de ouriços e loucos, galopa<br />

até Santiago.Visita a sua avó, Dona Rafaela,<br />

e, enquanto conta as suas aventuras em Itália<br />

e fascina parentes e conhecidos com feitos<br />

reais e imaginários, come frangos, charquicán,<br />

caixinhas de doce, pão-de-ló e<br />

outras sobremesas que as suas tias freiras<br />

preparam nos respectivos conventos. Esse<br />

ensopado também está presente nas recordações<br />

de frei Molina: essa saborosa combinação<br />

de charqui [carne seca] ou tasajo [pedaço<br />

de qualquer carne] torrado e picado com<br />

batatas, abóbora, verduras da época, orégãos,<br />

cominho, ají de color.<br />

Não é, pois, de estranhar que, no<br />

decurso dos anos setenta e oitenta do século<br />

XX, os chilenos desterrados clamassem<br />

por esses mesmos condimentos, sem<br />

esquecer cochayuyo 5 , huesillo 6 , mote 7 , maçãs<br />

autênticas, sem faltar o utensílio de cobre<br />

para estrelar os ovos do pequeno-almoço,<br />

que dificilmente se en-contra em lojas de<br />

ferragens estrangeiras.<br />

SORTILÉGIOS ERÓTICOS<br />

À beira-mar ou nas faldas andinas, em<br />

vales e quebradas, homens e mulheres<br />

procuram, afanosos, os elementos para as<br />

nutrições de amor.Todo-poderoso e digno<br />

das mil e uma noites é o alajú no qual se<br />

combinam, em iguais proporções, amêndoas,<br />

nozes, pistáchios, pinhões, mel e pão<br />

ralado e torrado, como também os torrões<br />

de sésamo ou gergelim e o amendoim ou<br />

cacahuate, o caju, merey ou anacárdio que,<br />

juntamente com os pistáchios e as amêndoas,<br />

contribuirão com a sua secreta<br />

potência, incitando com as suas cores e<br />

sabores, sem esquecer as sementes de abóbora,<br />

nozes e amêndoas, favas e outros<br />

legumes torrados para renovar as capacidades<br />

amatórias.<br />

Todo o caraquenho que se preze toma<br />

o pequeno-almoço com um olho-de-boi, o<br />

cristalino, diluído em sumo de laranja e<br />

suco de beterraba crua; e é surrealista a<br />

imagem da caçarola cheia de olhos-de-boi<br />

entre parchitas leitosas, rodelas de ananás e<br />

outras delícias frutais dos trópicos.


Para os mesmos efeitos, bebem-se<br />

tanto o inocente vinho de missa com gema<br />

de ovo, como a urina de víboras embebida<br />

em conhaque: esta mistela é acompanhada<br />

com pedacitos de víbora crua, numa espécie<br />

de guisado, receita com a qual alguma<br />

cidade da China se celebrizou.<br />

O fervor afrodisíaco unido à ânsia de<br />

conseguir inextinguível potência não hesitou<br />

em extrair a bílis dos ursos malaios, em<br />

comer, directamente do crânio, os miolos<br />

de macacos vivos, em engolir um coração<br />

verdadeiro de cobra num copo de vinho,<br />

em beber como sopa o sangue de búfalo.<br />

Nem sequer o pão-nosso de cada dia,<br />

símbolo da comunhão e da partilha, do<br />

próprio alimento, se livra de aplicações<br />

eróticas; tanto assim é que, durante a Idade<br />

Média, em Inglaterra, havia mulheres que<br />

amassavam o seu pão, e o destinado ao seu<br />

amante passavam-no pela sua fonte venérea<br />

antes de o meterem no forno…<br />

Mas são os habitantes do Novo Mundo<br />

os possuidores da máxima sabedoria luxuriante,<br />

os conhecedores das subtis propriedades<br />

de plantas, flores, frutos e sementes e<br />

deram esse presente a todo o mundo.<br />

Frutas perfumadas e gloriosas como a<br />

anona, a parchita e a papaia.<br />

O que é que é mais usado para despertar<br />

os apetites e exprimir o amor? Os bombons!<br />

Sim, de cacau, originário das terras<br />

dos caracas que se implantou no México,<br />

cuja amêndoa torrada, triturada e misturada<br />

com açúcar e especiarias proporciona o<br />

estranho chocolate, a mais popular oferenda<br />

de amor, seguido pelo incomparável aroma<br />

da baunilha da orquídea que se utiliza em<br />

sobremesas, gelados e até em perfumes de<br />

mulher.<br />

Não vale a pena falar das propriedades<br />

do saboroso abacate nem do tomate que os<br />

sábios de Itália baptizaram de poma de oro e<br />

que, devido às suas espantosas propriedades,<br />

decidiram utilizar em todos os molhos imagináveis<br />

para acompanhar não só pastas, mas<br />

também frutos do mar e da terra.<br />

A abóbora, calabaza ou auyama, nas suas<br />

inúmeras variedades, cresce opulenta em<br />

todas as hortas do continente e esbanja<br />

cores na sua atractiva e dura casca para<br />

encobrir a tenra e abundante polpa de<br />

veludo amarela, famosa porque «engorda<br />

as pernas» às meninas e é o alimento mais<br />

são para os recém-nascidos que, depois do<br />

leite materno, começam por comer bananas<br />

e continuam com a sopinha de abóbora,<br />

outras verduras bem cozidas em caldo<br />

de posta ou peixe.<br />

O milho, dourado filho do Sol, é aproveitado<br />

tenro, tanto cozido para «o fecundo<br />

ofertório das maçarocas», no dizer de<br />

César Vallejo, com barbas e tudo, como sob<br />

a forma da infinita variedade de tamales, as<br />

hallacas, as humitas, e do incomparável pastel<br />

de milho à chilena. O grão seco serve para a<br />

chuchoca que engrossará o guisado de peru<br />

ou para a farinha que fará a massa das arepas<br />

ou a variedade incomparável da polenta.<br />

A batata 8 , originária de Chiloé, o território<br />

da magia, com as suas quatrocentas<br />

variedades começou por estender-se a toda<br />

a região andina, onde também se foi desidratando<br />

devido ao gelo para se transformar<br />

em chuño altiplânico, ainda que também<br />

se chame chuño à alva e fina fécula de<br />

batata que substitui a do milho. Depois<br />

partiu para o ultramar e apoderou-se do<br />

território europeu, tornando-se indispensável,<br />

quer fosse cozida, assada nas brasas<br />

ou no forno, frita, amassada com farinha<br />

ou convertida em matéria-prima para inúmeros<br />

pratinhos. Para os chilenos, a batata<br />

(papa) é o alimento por excelência, a tal<br />

ponto que a mãe diz ao seu filho, antes de<br />

amamentá-lo, «vou dar-te a papa», enquanto<br />

os homens que gostam de dizer piropos<br />

fazem corar uma mulher dizendo-lhe: «Qué<br />

papa!». Então, o fruto subterrâneo converte-<br />

-se em sinónimo de feminidade.<br />

O ají, com as suas inúmeras variedades,<br />

é o símbolo do picante e exaltante.<br />

Erótico por excelência, em tempos foi mais<br />

caro e apreciado que o sal.Todas as variedades<br />

deste luxurioso descarado têm por<br />

pátria os países da América, e no México<br />

chamam-lhe chile, nome de país. Seja verde,<br />

roxo, vermelho deslumbrante, amarelo,<br />

azulado, é sempre fonte de vitamina C. Há-<br />

-os pequenos, mas terrivelmente picantes,<br />

como o famoso ají de Cayena ou a variedade<br />

peruana de nome impublicável a que as<br />

vendedoras do mercado chamam colita de<br />

mono; vermelhos com sementes negras,<br />

8 Papa, do quechua, designa<br />

batata. Papa, em português,<br />

deriva do latim pappa<br />

e designa comida<br />

(para crianças).


9 Virginia Vidal, Oro,<br />

Veneno, Puñal, Brosquil<br />

Ediciones, Valência, 2002.<br />

SABORES PRINCIPAIS 98<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

como o rocoto; largos, estreitos, chatos, sempre<br />

saborosos, mais ou menos picantes.<br />

Existem chireles, pasillas, cachos de cabra, nomes<br />

que nunca mais acabam.<br />

Com o tempo, veio a constatar-se que<br />

os habitantes das diversas regiões americanas<br />

conferiam poderes afrodisíacos tanto às<br />

formigas culonas, apanhadas com um palito<br />

untado com mel e fritas, como à cobra-<br />

-cega macerada em rum.<br />

É claro que também se recorre a elementos<br />

menos drásticos e se atribui grande<br />

poder à sopa dourada, à pisca andina, às aboborinhas<br />

italianas com cebola, às bananasmacho<br />

fritas ou assadas, à salada de agriões<br />

e cebolas. São indiscutíveis os méritos do<br />

propoleo ou borra de favos de abelhas, ingerido<br />

em jejum.<br />

BRUXARIA<br />

99<br />

Em questões de bruxaria, era sábia a<br />

Quintrala, uma cruel personagem feminina<br />

exaltada pela sua imagem de erotismo<br />

superlativo: «A Quintrala transformava<br />

todas as suas comezainas no cúmulo do<br />

conduto erótico: desde as pantrucas servidas<br />

em alguidar de barro preto aos famosos<br />

feijões em travessa de prata das monjas<br />

dominicanas, passando pelos testículos<br />

rebuçados e por umas olorosas costeletas<br />

de cordeiro polvilhadas com salsa, menta,<br />

tomillo, alecrim e uma infinidade de ervas<br />

de cheiro, acompanhadas com batatas douradas<br />

e saladas de alface, Feijão verde, favas<br />

descascadas, aipos com abacate e nozes e<br />

outras frutas e outra guarnição de rodelas<br />

de tomate e corações de alcachofra envolvimos<br />

em folhas de agrião. 9 »<br />

Quando a Quintrala, a cruel feudatária<br />

colonial que entre os seus mortos conta<br />

uns quantos amantes, encostava ao seu<br />

peito de pele cor de canela a tortilha de rescoldo<br />

e começava a cortá-la em fatias e a oferecê-las<br />

a cada um dos seus admiradores,<br />

estes quase desmaiavam. Enquanto comia,<br />

«todos a olhavam deleitando-se com a<br />

visão dessa mão delicada no movimento de<br />

três dedos para pegar em cada pedaço de<br />

alimento e levá-lo à boca sem pressa. Ela,<br />

de vez em quando, deslumbrava-o com um<br />

cintilar dos seus olhos faladores e continuava<br />

muito comedida, preocupada em dar<br />

atenção a todos os seus hóspedes. Depois<br />

de saborearem uns deliciosos peixes-rei, a<br />

criada oferecia a cada um, para lavarem os<br />

dedos, uma tigela de barro preto cheia de<br />

água onde flutuavam rosas».<br />

A sacerdotisa crioula de Eros e Thanatos<br />

era fanática do afrodisíaco ají, grande<br />

consumidora de mistelas confeccionadas<br />

pelas freiras, às quais fornecia a sua própria<br />

aguardente, e não se coibia à hora das<br />

sobremesas, pois oferecia aos seus admiradores<br />

anonas que encobriam a sua alva<br />

polpa com um inquietante veludo verde,<br />

manjar dos deuses cujo nome índio quer<br />

dizer teta de mulher.<br />

Se de poderes revitalizantes se trata, por<br />

estas terras americanas também se enaltecem<br />

os poderes dos ovos crus de coruja, tão<br />

bons para manter um homem como para<br />

conservar a pureza da cútis, da tortilha de<br />

ovos de pomba, dos órgãos genitais de<br />

raposa, das iguanas e da pata de veado.<br />

Para conquistar e manter o ser amado,<br />

não se hesita em utilizar o coração da<br />

andorinha e o fígado de coelho, o sangue<br />

de novilho, diluído em aguardente, os testículos<br />

assados e a sopa de rabo de boi<br />

negro, os miolos e os testículos, o olho-de-boi<br />

cru cujo cristalino se dissolve em suco de<br />

frutas, em rum ou em vinho, o leite de ají,<br />

as tartarugas de mar e rio guisadas com<br />

alho, ají e cebola.<br />

CRUELDADE?<br />

E isto não é nada, pois se de paixão se<br />

trata, não há limites e não se sabe se por<br />

magia simpatética, aplica-se ao ser comestível<br />

o tratamento que se quereria dar ao objecto<br />

do desejo. Não se poderá afirmar que é<br />

mera crueldade, mas nisto das artes culinárias<br />

dá-se a transmutação da morte para a<br />

vida a fim de fortalecer debilidades, reparar<br />

energias, saciar a fome, tal como é indispensável<br />

sacrificar a rês, degolar o cordeiro,<br />

torcer o pescoço à galinha ou embebedar<br />

o peru ou guajolote (considerado por Brillat<br />

Savarin «um dos mais bonitos presentes


que o Novo Mundo ofereceu ao Velho Continente»),<br />

para que aquele adquira o seu<br />

máximo poder, sendo mantido sem comer<br />

nem beber durante um dia inteiro e dando-<br />

-se-lhe, finalmente, nozes e conhaque na<br />

véspera do seu sacrifício.<br />

O pato da ñusta apaixonada, de acordo com<br />

a antiga tradição de Huánuco, deve ser<br />

enterrado vivo, com a cabeça de fora, em<br />

pleno sol, para que a sua carne fique muito<br />

tenra e seja mais fácil depená-lo. Depois é<br />

degolado, esquartejado e fritam-se as presas<br />

em muita manteiga, temperam-se com<br />

um refogado consistente com muito ají<br />

rocoto, alhos, pimenta e cebolinhas picadas,<br />

deixando-o suar durante meia hora, antes<br />

de o servir com batatinhas cozidas.<br />

Mas no sul do sul do mundo, onde se<br />

ergue a selva sombria em torno dos lagos,<br />

na zona de Futrono ou Chihuío ou na ilha<br />

grande de Chiloé, preparam-se em misterioso<br />

ritual os guisados proibidos, a degustar<br />

só por homens. Em primeiro lugar, o<br />

ñachi. Escolhe-se o cordeiro, corta-se a<br />

jugular. Brota o sangue e vai a coalhar no<br />

picado de cebola, coentros e ají picado no<br />

alguidar. Mexe-se esse sangue temperado,<br />

ainda morno e já coalhado. Para preparar o<br />

apol, escolhe-se outro cordeirinho novo, de<br />

leite; dá-se-lhe um golpe no gasganete,<br />

abrindo a traqueia, e deitam-se pela abertura<br />

temperos idênticos, sem esquecer o ají.<br />

O animalzinho está vivo e pareciam não<br />

cessar esses estertores quase humanos que<br />

facilitam o tempero dos seus pulmões, e<br />

também do coração. Depois, abre-se a vítima<br />

de cima a baixo e arrancam-se-lhe os<br />

bofes, o fígado e o coração que se colocam<br />

sobre uma tábua de cortar ou sobre uma<br />

bancada rústica, saem as facas das suas bainhas<br />

e vão-se cortando as entranhas sanguinolentas<br />

em fatias e provando-as. Em<br />

alguns lugares existe uma ligeira variante:<br />

quando a água com sal já está a borbulhar<br />

numa caldeira, submergem-se e escaldam-<br />

-se as entranhas, sem soltá-las, na água a<br />

ferver, por uns instantes, sendo cortadas e<br />

comidas de imediato.<br />

Não se pense que se trata de uma<br />

crueldade do Novo Mundo, pois antes de<br />

sacrificarem, ao terceiro mês de vida, o<br />

famoso pato de Pequim, pregam-lhe as<br />

membranas das patas numa tábua e alimentam-no<br />

enfiando-lhe a comida pelo<br />

bico, para que o seu fígado se desenvolva e<br />

se torne um delicioso petisco e a sua carne<br />

fique muito tenra porque a imobilidade<br />

impede o seu endurecimento. Só se lhe dá<br />

de beber água da Fonte de Jade da Colina<br />

Perfumada. Depois de sacrificado e depenado,<br />

tiram-se-lhe as vísceras, cuidadosamente,<br />

sem o abrir, enche-se da mesma<br />

água e tapa-se o buraco com um pau, pincela-se<br />

com água açucarada, o que lhe dará<br />

o magnífico lacado e vai ao forno onde<br />

arde a madeira de uma árvore chinesa aromática<br />

que lhe dará um aroma subtil.<br />

Quando o chefe de cozinha leva a obra<br />

de arte à mesa, primeiro oferece-se ao ser<br />

predilecto o melhor pitéu, os miolos do<br />

pato; depois, o fígado hipertrofiado serve-<br />

-se assado e envolto em pimenta triturada<br />

(esta receita foi-nos dada no Restaurante El<br />

Pato de Pekín, pelo último cozinheiro da<br />

Imperatriz Viúva, homem idoso mas que<br />

em plena infância se tinha iniciado como<br />

ajudante na cozinha imperial).<br />

Para já não falar da sopa de tartaruga<br />

em que o animal é metido em água fria<br />

para ser cozinhado em fogo lento e, quando<br />

estica o focinho clamando por ar, frescura<br />

e água, vai sendo saciado com colheradas<br />

frescas do líquido elemento…


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 100<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Portugal, sempre<br />

Luís Antônio de Assis Brasil<br />

101<br />

Quando o avião da TAP aterrou no aeroporto<br />

de Ponta Delgada, na primeira de minhas tantas<br />

viagens aos Açores, senti-me voltando<br />

para minha outra casa, depois de 250 anos<br />

de ausência. É este o sentimento do escritor brasileiro<br />

Luís Antônio de Assis Brasil que, neste texto, respira<br />

algum cheirinho a alecrim.<br />

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata


ALGUM CHEIRINHO A ALECRIM 102<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

103<br />

Por que Portugal tanto interessa a nós, brasileiros,<br />

em meio à Babel da Europa? Por que não Bósnia<br />

ou Andorra? «Porque ali se fala português», é<br />

uma resposta. No entanto, essa língua portuguesa,<br />

com a qual mantemos identidade, não é rigorosamente<br />

a falada nas ruas de Lisboa ou de Évora. Identificamo-nos<br />

com uma língua mítica, fixada e enobrecida<br />

por Camões, romantizada por Eça e elevada<br />

ao mais expressivo patamar poético por Fernando<br />

Pessoa. Mesmo quem ignora os primeiros versos de<br />

Os Lusíadas sabe que a sedução linguística faz com<br />

tenhamos um vínculo extra-nacional e supra-étnico<br />

com Portugal.<br />

Há algo, porém, menos tangível, mas muito<br />

mais intenso, que edifica essa ponte de cumplicidade<br />

transoceânica. Refiro-me à História. País de raras<br />

instituições duradouras, em que os restaurantes<br />

morrem na adolescência e as revistas literárias<br />

sofrem da peste do sétimo número, o Brasil experimenta<br />

uma inegável nostalgia pelo passado. Necessitamos<br />

de mais séculos para além desses escassos<br />

500 anos de História escrita. É certo que temos os<br />

índios, que poderiam substancializar alguma estrutura<br />

arquetípica respeitável em nosso imaginário,<br />

mas a rarefação de seu legado material – ocorrida<br />

por culpa dos não-índios, diga-se – faz-nos sonhar<br />

com fortalezas, castelos e palácios. Nossas representações<br />

simbólicas mais eloquentes reiteram<br />

bordões principescos que chegam ao disparate de<br />

ungirmos mais de um rei para um único reino. Pelé<br />

e Roberto Carlos são os mais notáveis de uma série<br />

sem fim.<br />

Se o gaúcho que descende de alemães<br />

sonha em viajar ao Hunsrück,<br />

sua escala obrigatória e sentimental<br />

será Lisboa.<br />

Lisboa. Fotografia de Paulo Barata<br />

Essa saudade inata, saudade daquilo que não<br />

tivemos, nos faz voltar os olhos para o passado<br />

épico português, incorporando-o à nossa própria<br />

História coletiva e, por que não, à nossa minúscula<br />

história individual: quando o avião da TAP aterrou<br />

no aeroporto de Ponta Delgada, na primeira de<br />

minhas tantas viagens aos Açores, senti-me voltando<br />

para minha outra casa, depois de 250 anos de<br />

ausência. E esse é um sentimento comum a todos os<br />

brasileiros que visitam Portugal. Estando-se em Lisboa,<br />

na Praça da Figueira, o primeiro olhar vai para<br />

o Castelo de São Jorge, lá em cima, vigiando as eras.<br />

E respiramos, aliviados, porque ele existe e nos vincula<br />

a uma tradição que não é de hoje.<br />

Afirmei que esse sentimento é superior às<br />

etnias; é-o porque pertence a uma instância maior,<br />

relativa à cultura. Se o gaúcho que descende de alemães<br />

sonha em viajar ao Hunsrück, sua escala obrigatória<br />

e sentimental será Lisboa. Foi Regis Conte,<br />

um gaúcho ítalo-brasileiro, quem, com a sua Flávia,<br />

me apresentou, e à Valesca, os melhores vinhos do<br />

Alentejo, num memorável almoço no Solar dos Presuntos,<br />

às Portas de Santo Antão.<br />

Milton Nascimento, sem abdicar de suas generosas<br />

raízes afro-brasileiras, vai sempre a Lisboa e<br />

tem ali um imenso público.<br />

Assim, ao lembrarmos Portugal, estamos saudando<br />

não apenas a cultura sólida, não apenas a terra<br />

de nossos avós genéticos ou afetivos, mas estaremos<br />

comemorando também a nós mesmos, por possuirmos<br />

uma imaginação tão rica e criadora em relação a<br />

nosso passado – e nem por isso menos verdadeira.


Cuiabá<br />

José Luís Peixoto<br />

O QUE FAÇO EU AQUI 104 105<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Aqui não é o escritor que quer<br />

desaparecer, mas antes os outros<br />

que o dão como desaparecido numa<br />

pequena cidade perdida à beira<br />

do Pantanal. Ou como uma viagem<br />

de José Luís Peixoto não o levou<br />

a lado nenhum.


Eram os últimos dias de setembro. Ainda<br />

estava calor de verão em Lisboa, quando subi as<br />

escadas do avião que me iria levar a Cuiabá. No<br />

Rio de Janeiro, mudança de aeroporto, táxi,<br />

malas e, à noite, num avião pequeno, cheguei a<br />

Cuiabá. Fui levado ao hotel. Tudo perfeito? Tudo<br />

perfeito. Chegava para duas semanas de Brasil,<br />

das quais passaria uma em Cuiabá e a outra seria<br />

repartida entre Brasília e Rio de Janeiro. Da janela<br />

do meu quarto, olhava a avenida nocturna, de<br />

carros permanentes, e tentava recordar-me do<br />

pouco que tinha conseguido aprender sobre<br />

Cuiabá na internet, não muito. Apesar de toda a<br />

incerteza sobre aquele que poderia ser o meu<br />

destino na semana que começava, tinha um bom<br />

pressentimento, uma vez que vinha para participar<br />

num evento de literatura latino-americana, e<br />

o melhor lugar para encontrar literatura latino-<br />

-americana é, até prova em contrário, na América<br />

Latina. Acreditava que deveria existir alguma<br />

razão para Cuiabá ter o mesmo valor de Brasília<br />

somada ao Rio de Janeiro. Aquilo que eu ainda<br />

não podia saber era que os organizadores do<br />

evento, apesar de me terem comprado bilhete de<br />

avião e reservado quarto no hotel, não contavam<br />

com a minha presença, não me tinham colocado<br />

como participante de nenhum debate ou palestra<br />

e comportavam-se como se nunca me tivessem<br />

visto, lido ou imaginado.<br />

Admiro-me por estar a falar de Cuiabá há já<br />

várias linhas e ainda não ter referido que Cuiabá<br />

é, hiperbolicamente, o lugar mais quente do<br />

mundo. Nas suas ruas de cimento, o calor escorre<br />

através da pele em gotas grossas de óleo. A<br />

humidade vê-se no ar.A distância é menos nítida,<br />

os contornos da paisagem são esbatidos e a respiração<br />

é mais difícil. O ar é espesso, como se alimentasse.<br />

A gastar duas ou três T-shirts por dia,<br />

fiquei em Cuiabá, Mato Grosso, durante sete dias<br />

demasiado longos. Aquilo que me incomodava<br />

não era o calor ou a cidade, à qual dei poucas<br />

oportunidades. Aquilo que me incomodava era<br />

não ter conseguido continuar o trabalho que<br />

aqueles dias tinham vindo interromper, um<br />

romance. Incomodava-me também o ter de viajar<br />

quase clandestino, olhado de lado, conversando<br />

com ninguém, nos autocarros que transportavam<br />

pessoas do hotel para a feira do livro, única distracção.<br />

Era também assim na ocasião das refeições.<br />

Para chegar à hora e ao lugar correcto, tinha<br />

de andar sempre a ouvir conversas porque, ao<br />

contrário do que acontecia com os outros escri-<br />

tores, ninguém me informava de nada. Assisti a<br />

dois debates dos escritores presentes. Todos eles<br />

eram publicados exclusivamente na internet e<br />

anunciam, para os vinte desinteressados que se<br />

juntavam ali, que todos os grandes escritores<br />

actuais, os mais ousados, os mais vanguardistas,<br />

apenas publicavam na internet. Esses eram os<br />

escritores que estavam sempre – nos pequenos-<br />

-almoços, nos autocarros entre o hotel e a feira<br />

do livro, nos jantares. Além desses, houve dois<br />

que chegaram num dia e que partiram no outro.<br />

Tinham palestras em nome individual. Eram<br />

especiais. Um deles foi o escritor Milton Hatoum<br />

que tive a alegria de reencontrar e que, comigo,<br />

também não conseguiu compreender o que estava<br />

eu a fazer ali. A ele devo um passeio pela Chapada<br />

do Guimarães, depois de ter sido necessário<br />

convencer o distribuidor dos seus livros no Mato<br />

Grosso a levar-me com eles. Tirando isso, durante<br />

uma semana, assisti a programas sobre crimes<br />

na televisão do quarto de hotel, reparei nos chuveiros<br />

que esguichavam água do tecto da Feira do<br />

Livro de maneira a refrescar o ambiente e, finalmente,<br />

tive tempo para realinhar a minha posição<br />

no mundo. Até hoje, ainda não sei ao certo quem<br />

foi que me convidou e para quê.


Pancho regressa ao mar<br />

(Coloane, o mais anfíbio<br />

escritor chileno)<br />

Volodia Teitelboim<br />

CRUZEIRO DO SUL 106 107<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Nasceu na fronteira da terra e do mar, na ilha de Quemchi,<br />

lugar musical e húmido no sul do mundo. Por isso, era um<br />

escritor anfíbio. Na sua geografia austral tão bem mapeada<br />

nos seus livros, entre o silêncio e a natureza, entre a vida<br />

e a morte, entre a amplitude e a finitude, entre a tempestade<br />

e a calma, nessa fronteira do mundo e da alma,<br />

Francisco Coloane nasceu, morreu e regressa em cada maré.<br />

Francisco Coloane. Fotografia de Eric Facon – Le bar Floréal


CRUZEIRO DO SUL 108<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

109<br />

Da sua ilha natal de Quemchi,<br />

até Cabo de Hornos<br />

e à Antárctida, contemplava<br />

o coirón, o pasto<br />

das estepes magalhânicas,<br />

mas também<br />

fixava os olhos<br />

nos astros.<br />

Seu pai, capitão de baleeiro, afirmou no<br />

momento da sua morte: «Voltemos ao mar.».<br />

Quando chegou a hora do filho, este utilizou a<br />

mesma expressão paterna: «Voltemos ao mar.»<br />

Numa segunda-feira, 5 de Agosto de 2002,<br />

despediu-se secretamente de sua mulher Eliana.<br />

Transmitiu-lhe também a sua última vontade: não<br />

digas a ninguém que morri, espera dois dias.<br />

Então, cremem-me discretamente. Em seguida, tal<br />

como meu pai, regressarei ao mar.<br />

Sempre regressou ao mar o mais anfíbio dos<br />

escritores chilenos, com um pé na terra e outro na<br />

água. Renova-se o ciclo da natureza que esse autodidacta<br />

amava e que converteu, muitas vezes, em<br />

alegorias espantosas. Da sua ilha natal de<br />

Quemchi, até Cabo de Hornos e à Antárctida contemplava<br />

o coirón 1 , o pasto das estepes magalhânicas,<br />

mas também fixava os olhos nos astros.<br />

É um dos homens a quem mais ouvi falar das<br />

estrelas. No meio das borrascas da Terra do Fogo,<br />

sempre observou e amou a paisagem interminável<br />

e selvagem. Sabia que, para que este fosse um tema<br />

literário e se revestisse de uma grandeza trágica,<br />

era necessário que o ser humano a percorresse.<br />

Redescobre a aliança entre o homem e a natureza,<br />

mas também navega por dentro do caminhante<br />

dos últimos confins. Realiza a viagem interior,<br />

aventura-se nos nevadas e nos golfos misteriosos,<br />

às vezes inarráveis, na psicologia dos tristes, dos<br />

ternos, dos cruéis e dos solitários.<br />

Francisco Coloane incorporou nas letras universais<br />

as terras do fim-do-mundo. E fê-lo com<br />

uma das prosas mais precisas e cristalinas da literatura<br />

contemporânea. Completou o mapa íntimo<br />

dessas latitudes austrais, como Jack London o fez<br />

com os extremos setentrionais. Ali entraçou também<br />

o nó dramático: não a febre do ouro, mas a<br />

quimera do ouro, como um Chaplin trágico, não<br />

cómico, que concebe a desesperada busca da<br />

riqueza como uma missão titânica quase sempre<br />

infortunada.<br />

É, com Baldomero Lillo, o maior contista chileno<br />

do século XX. Coloane não é um observador<br />

ou recriador fotográfico, mas um homem que em<br />

cada palavra introduz uma entranha, certo estremecimento<br />

que se transmite aos leitores de muitas<br />

línguas. É eloquente e sintomático que, de repente,<br />

em França, quando fez oitenta anos, tenha sido<br />

descoberto como «o milagre Coloane». E que o<br />

saúdem e o façam seu em terras remotas. No futuro,<br />

quem ler as suas páginas sentirá, também, que<br />

está a descobrir algum ângulo desconhecido na


história do coração humano. O que escreveu continua<br />

a ser válido para todos os tempos, e as suas<br />

obras são traduzíveis para todos os idiomas porque<br />

ele falou numa linguagem única e insuperável: a<br />

da verdade, da sinceridade e também da esperança<br />

e da desolação do homem que procura a felicidade<br />

sem a encontrar.<br />

OS PIANOS DO OCEANO<br />

Neruda chamou-lhe «o filho da baleia branca»,<br />

em alusão ao livro de Melville, que Coloane<br />

leu apaixonadamente. Mas a verdade é que ele falava<br />

pouco de literatura. Quando citava livros, tratava-se<br />

de páginas trespassadas pelo sentido, pela<br />

tristeza, pela aventura arriscada, às vezes sombria,<br />

que chocava com o triunfo impossível.<br />

Procurava os amigos para partilhar, falar da vida.<br />

Naquelas conversas surpreendíamo-lo indignado<br />

perante as injustiças do mundo. Era um homem puro<br />

e correcto, ávido de amor.<br />

A sua vontade final de morrer em silêncio e<br />

de ocultar a notícia da sua morte durante quarenta<br />

e oito horas pareceu a muitos estranha. Creio<br />

que nunca antes houve um caso assim na literatura<br />

chilena. Seu pai, o inolvidável capitão de<br />

baleeiro, era desconhecido do grande público, um<br />

anónimo cuja morte quiçá fora registada em poucas<br />

linhas num diário de Magalhães. Ele quis morrer<br />

da mesma forma, em silêncio. Não necessitava<br />

de discursos no seu túmulo a recordar quão extraordinário<br />

escritor ele era. Sempre se sentiu incomodado<br />

com os elogios. Era homem de mar e de<br />

estepe que sempre quis estar em contacto com a<br />

água e dormir finalmente nas suas profundezas,<br />

como mais uma gota ou um grão de sal.<br />

Coincidência das coincidências, a primeira coisa<br />

que viu quando nasceu foi o oceano. Quando chegasse<br />

a sua hora, desejava regressar às suas origens<br />

insondáveis.<br />

Em França, vi-o num desses tormentosos festivais<br />

dedicados aos escritores navegantes. Contava, perante<br />

o deslumbramento do auditório, a história desse<br />

barco cheio de pianos que ia da Europa para o Chile e<br />

naufragou no Estreito de Magalhães.<br />

Com o tempo, o mar tornou-se músico porque<br />

os pianos começaram a falar e a cantar. Era uma<br />

melodia trespassada pelo enigma, executada no<br />

teclado, accionando as cordas interiores sacudidas<br />

pelo movimento oceânico. Ouviam-se sonatas,<br />

patéticas, como lamentos de afogados; allegros,tem-<br />

pestuosos ou insólitos harpejos, ressonâncias inauditas<br />

que cativavam os viajantes que cruzavam essas<br />

paragens de vida ou morte. Ao que parece, o relato<br />

de Coloane é verídico. Não me restam dúvidas de<br />

que, para ele, não era apenas real, considerava-o<br />

também uma expressão da beleza cósmica.<br />

Recordo Coloane como um ser comovido.<br />

Não esqueço o seu pranto incontido quando a sua<br />

esposa Eliana se encontrava na China e ele não<br />

podia viajar para a ver. Fisicamente, tinha traços de<br />

gigante harmonioso. Alguém o comparou a um<br />

touro, mas, na realidade, usava a sua força física<br />

para enfrentar o injusto, o prepotente, o que atropelava<br />

a dignidade das pessoas. Desde muito cedo<br />

que se definiu politicamente, entrando, primeiro,<br />

para o Partido Socialista e, depois, para o Partido<br />

Comunista. Nunca quis ser dirigente nem ocupar<br />

cargos. Considerava-se uma pessoa das bases. Queria<br />

viver, viver em plenitude, escrever, seduzido pela<br />

beleza e animado pela bondade. E há que usar a<br />

palavra bondade porque o define bem.<br />

Para Pancho, não há lugar para um adeus, mas<br />

sim para um até sempre. Nobre Irmão. Incomparável.<br />

Um dos homens mais puros que passaram<br />

entre a terra e os vendavais, para instalar-se agora<br />

na sua morada ancestral, a do pai: o mar de todas<br />

as tormentas e dos mais rasgados horizontes.<br />

1 No Peru e no Chile, designa uma planta gramínea, de folhas duras, muito utilizada para<br />

tectos de cabanas. (N. da T.)<br />

Um dos homens<br />

mais puros<br />

que passaram<br />

entre a terra e os vendavais.


111<br />

Com o coração na boca<br />

(La Bombonera)<br />

Maria Mansilla<br />

ESTÁDIO DE SÍTIO 110<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Há um lugar neste planeta onde, quando se diz boca, não se fala<br />

de anatomia, nem de fome, nem de beijos. No paralelo 56 e abaixo<br />

do Trópico de Capricórnio, a palavra começa com maiúscula.<br />

Pronunciá-la é nomear um bairro de Buenos Aires e, simultaneamente,<br />

um clube de futebol argentino.<br />

La Bombonera. Fotografia de João Ventura


ESTADO DE SÍTIO 112 113<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

[…] Boca revela<br />

a outra face:<br />

boémia, operária,<br />

anarquista,<br />

popular, parecida<br />

à Pequena Itália<br />

que os exilados da<br />

Europa oitocentista<br />

geraram.<br />

Há um lugar neste planeta<br />

onde, quando se diz «boca»,<br />

não se fala de anatomia, nem de<br />

fome, nem de beijos. No paralelo<br />

56 e abaixo do Trópico de<br />

Capricórnio, a palavra começa<br />

com maiúscula. Pronunciá-la é<br />

nomear um bairro de Buenos<br />

Aires e, simultaneamente, um<br />

clube de futebol argentino. Mas<br />

não se trata de um bairro qualquer,<br />

nem de uma equipa qualquer.<br />

A história que os une tem<br />

mais de 100 anos e é necessário<br />

contá-la porque já não a reconhecemos<br />

nas suas ruas.<br />

Da sua rambla é difícil imaginar<br />

que este porto de barcos oxi-<br />

dados fosse outrora um porto<br />

internacional; e que este rio<br />

imóvel, o Riachuelo, tivesse alimentado<br />

a sua gente. Mas quando<br />

alguém se submerge nos seus<br />

«becos», a Boca revela a outra<br />

face: boémia, operária, anarquista,<br />

popular, parecida à Pequena<br />

Itália que os exilados da Europa<br />

oitocentista criaram. As casas de<br />

chapa e madeira são o seu património.<br />

Mas não o único. Hoje, a<br />

popa é o rio, como fonte de trabalho<br />

e horizonte, a sua proa é o<br />

gigante de cimento que a Boca<br />

abraça: o estádio. Boca Juniors é a<br />

sua paixão e, ao mesmo tempo, a<br />

sua anestesia: acelera o pulso dos<br />

43.413 habitantes, cada vez que<br />

joga em casa.<br />

O clube, fundado em 1905<br />

por iniciativa de cinco italianos,<br />

pode contar com Maradona entre<br />

os seus adeptos e ter a celebridade<br />

do Manchester United, mas<br />

existe um segredo que o torna<br />

único: os seus seguidores conservam<br />

um valor de outros tempos,<br />

a incondicionalidade. «Estamos<br />

acostumados a sofrer», é o<br />

seu orgulhoso argumento. Como<br />

poderiam ter outro carácter, se<br />

foram esses estrangeiros determinados<br />

que impuseram o estilo?!<br />

Na Argentina, em cada 10<br />

adeptos de futebol, 4 são do Boca.<br />

Por isso os boquenses agem<br />

como se estivessem num mundo<br />

à parte. Como se vivessem em<br />

Roma na época do Império.<br />

«Ninguém pode morrer sem<br />

ter visto um superclássico entre o<br />

Boca e o River (o seu eterno<br />

rival). Claro que esse último e<br />

necessário acto da existência não<br />

deve concretizar-se em qualquer<br />

cenário, mas sim, infalivelmente,<br />

na Bombonera», sentenciou o<br />

diário inglês The Observer. Ficar no<br />

«peão» deste estádio, em forma<br />

de caixa de chocolates, é uma<br />

experiência inesquecível: os asso-<br />

bios dos fanáticos parecem uma<br />

invasão de gafanhotos. Como eles<br />

explicam melhor: «o estádio não<br />

palpita, vibra». Todos querem<br />

estar ali. Até a Coca-Cola teve de<br />

trocar a camisola vermelha e<br />

branca, coincidente com as cores<br />

do River, por uma preta e branca,<br />

para entrar.<br />

O clube que foi campeão do<br />

mundo tem uma infra-estrutura<br />

à altura das suas circunstâncias.<br />

Como «Shock room» e equipa de<br />

socorristas própria. Habitualmente,<br />

os guardiães da saúde curam<br />

entorses de tornozelo e quedas.<br />

Excepcionalmente… sim: aconteceu.<br />

Uma vez, deram assistência a<br />

um homem a quem tanta emoção<br />

tinha atacado o coração.<br />

«Todos têm medo de vir à<br />

Bombonera», disse o jogador<br />

Martín Palermo, em jeito de<br />

metáfora. É que a Boca é constituída<br />

por bancadas dispostas<br />

frente a frente. À volta de Caminito,<br />

os 100 metros mais turísticos<br />

de Buenos Aires, cortiços restaurados<br />

for export assemelham-se<br />

aos autênticos, que resistem<br />

como podem à ameaça de desmoronamento.<br />

A velha ponte de<br />

ferro une a Capital Federal, o<br />

distrito mais rico, com a província<br />

de Buenos Aires, uma das<br />

mais pobres. O clube brilha com<br />

murais de artistas famosos enquanto,<br />

em frente, pode ver-se<br />

outro mural estampado com<br />

fuligem. Por isso, nos dias de<br />

semana, a realidade do bairro,<br />

declarado, há anos, em emergência<br />

habitacional, suspende-se<br />

e emula dentro da Bombonera:<br />

nas aulas de alfabetização para<br />

adultos, de apoio escolar para<br />

meninos e meninas, de inglês,<br />

de guitarra, de fotografia, de<br />

xadrez. Mundos paralelos convivem<br />

no Boca e gritam, atraem-se,<br />

repelem-se. Mas nem sempre.<br />

Sempre, excepto aos domingos.


Mundos paralelos convivem no Boca<br />

e gritam, atraem-se, repelem-se.<br />

Mas nem sempre.<br />

Sempre, excepto aos domingos.


La Boca. Fotografia de João Ventura<br />

ESTÁDIO DE SÍTIO 114 115<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007


Mar absoluto<br />

António Ramos Rosa<br />

Fotografia de João Mariano<br />

A MARESIA DO MUNDO 116 117<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Que força admirável nos move e nos comove<br />

de puro instinto e de redonda força<br />

tão suave na sua descida de desejo<br />

de que nascente veio e sem história é o mar absoluto<br />

oh gravitação de delícia oh afluência marinha<br />

de vogais deliciosas de lascivos sorrisos<br />

e de melodias de uma só oferenda<br />

oh suave maravilha de que divino vigor<br />

oh mar sem máscaras de tantas bolhas suaves<br />

oh mar sequioso como um rei ébrio<br />

oh mar tão lento e tão lentamente imperador


Mário Cesariny<br />

Duarte Belo<br />

RESIDÊNCIAS NA TERRA 118 119<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

O objectivo era fotografar o universo criado por Mário Cesariny, e por si<br />

habitado, em Lisboa. Num lugar confinado, que pouco excedia um quarto<br />

pequeno, cabiam o espaço e o tempo infinitos. Por todo o lado existiam<br />

objectos que se abriam a uma pluridimensionalidade, que nos transportavam.<br />

Eram como janelas para espaços maiores e mais vastos. Retrato de uma vida<br />

e face de um homem.<br />

Fotografias de Duarte Belo de um trabalho encomendado por João Pinharanda para a Fundação EDP


RESIDÊNCIAS NA TERRA 120<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

121


RESIDÊNCIAS NA TERRA 122<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

123


N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Pertença e contradição<br />

Lídia Jorge<br />

OUTRAS INQUIRIÇÕES 124 125<br />

Terão os escritores um lugar de pertença? Poderão eles,<br />

simultaneamente, pertencer ao mundo, mas também a uma terra,<br />

a um lugar? Lídia Jorge transporta a herança de um lugar<br />

que olha o Sul a partir de Sagres. Mas transporta-se também<br />

na literatura onde se funde o segredo do mundo que se derrama<br />

nas páginas da sua escrita.Talvez, por isso, não haja aí<br />

qualquer contradição, antes uma dupla pertença.


1.<br />

Discorrer sobre a noção de pertença, como<br />

sobre a noção de cisma, traição ou singularidade,<br />

significa invocar um estado de lucidez<br />

e exercitar uma capacidade de raciocínio demonstrativo<br />

que, em geral, estão ausentes no<br />

processo que transforma o sujeito num escritor<br />

de ficção. No que me diz respeito, a simples<br />

invocação do tema transporta-me directamente<br />

até aos lugares ambíguos da Literatura, e a ideia<br />

de partilha da pessoa entre si e si mesma, como<br />

ser criador e como criatura, expressão de pertença<br />

para a qual os gregos encontraram definitivamente<br />

a palavra ethos, põe-me diante dos<br />

olhos, em vez de raciocínios, a última página<br />

da Ilíada na qual vejo o enterro de Heitor, o<br />

corpo cremado de Heitor, os seus restos mortais<br />

reunidos dentro duma urna de ouro, amortalhado<br />

sob o olhar dos Aqueus, como anúncio<br />

do enterro inevitável de Tróia. É assim, indo<br />

beber demasiado longe, que me chega a noção<br />

de corpo como metáfora da terra donde se vem<br />

e para onde se vai, porém, terra, porção de<br />

poeira nomeada com letra maiúscula, a que<br />

cada um chama de sua pátria. Como noutras<br />

situações se chama família, comunidade, mito<br />

ou língua.<br />

Contudo, a noção de pertença nem sempre<br />

é servida por imagem tão unívoca nem tão<br />

heróica como a representação do domador de<br />

cavalos, em prol da sua pátria, por mais brilhantes<br />

e rumorosas que sejam essas últimas<br />

viagens. Pelo contrário, este é um território<br />

sem caminhos direitos nem simplicidades<br />

fáceis.<br />

Começa pelo facto de que pertencer pressupõe<br />

antes de mais um génesis, o que significa, à<br />

Antes que nos cubra a pedra<br />

por lavrar<br />

antes que o lavrador perca<br />

a partilha<br />

Um monumento exacto há<br />

que erigir<br />

entre a Batalha e a Bastilha.<br />

Luiza Neto Jorge<br />

partida, que fazemos parte de alguma coisa que<br />

estava feita antes de nós e nos proporcionou o<br />

ser antes da existência. Significa sermos do<br />

mundo dos outros, termos nascido da vontade<br />

ou do desejo dos outros e não podermos ser<br />

independentes deles. A pertença ou, pelo menos,<br />

os grandes mitos da pertença começam aí e, por<br />

isso, para falar deles é inevitável percorrermos o<br />

território involuntário da infância.<br />

Aliás, para quem suspeita que a existência<br />

se desenvolve segundo um panorama de «regiões»<br />

sucessivas que se vão dando-à-luz umas<br />

às outras, a ideia de se descortinar nas vivências<br />

iniciais o indício de todas as metáforas da vida<br />

proporciona, no âmbito de questões como as da<br />

pertença, um munus inestimável de efeitos e causas<br />

legíveis – o nosso corpo como pertença de<br />

vários regaços, entre eles o da família. A segurança<br />

da paisagem como alimento para a concepção<br />

da terra, onde está a pátria. O discurso materno<br />

como alimento da fala onde está a língua. A permanência<br />

dos saberes iniciais transitáveis de<br />

geração em geração, como construção dos mitos.<br />

Ou a magia da vida sincrética, indistinção entre<br />

nome e coisa, relato e facto, como mãe inaugural<br />

da literatura. Tudo isso se pode encontrar a<br />

residir na infância, como lugar fundador onde<br />

as raízes mais fundas estão.<br />

Diz o senso comum que a pertença se fundamenta<br />

na configuração dos primeiros abraços,<br />

nas primeiras viagens através da terra, nas<br />

primeiras ligações ao mundo e à multidão, esse<br />

feixe de actos que nos atam aos outros e às coisas<br />

para sempre. Por isso pertencer, independentemente<br />

do lugar que aí se ocupa, significa<br />

ser do outro, de outra coisa, ser do mundo. E a


OUTRAS INQUIRIÇÕES 126 127<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

escrita vive disso, dessa sopa mágica indistinta<br />

que alimenta a Arte como interpretação do<br />

mundo.<br />

Mas o movimento da escrita, o impulso<br />

que revela o escritor não apenas como transmissor<br />

de heranças, antes como criador de<br />

novas paisagens da alma, bem como a energia<br />

que o pressupõe, é na metáfora da adolescência,<br />

essa outra região mental onde se desenha<br />

em todo o indivíduo a traição à sua tribo, que<br />

se deve procurar. Tenho para mim que é na<br />

repulsa pelo conhecido, repulsa contra a família,<br />

contra a terra natal, os mitos locais, a língua<br />

materna, os livros dos seus avós e da sua<br />

nação, que se faz o adolescente que deseja ser<br />

outro, ser diferente, fundar o seu próprio horizonte<br />

e o seu próprio tempo, ser pai de um<br />

novo mundo, ser patriarca duma nova tribo. À<br />

semelhança do escritor, e vice-versa, o adolescente<br />

quer conhecer os limites do universo<br />

para se auto-avaliar como aquele que deseja<br />

transpor o portal do desconhecido. Aliás, à<br />

imagem do adolescente, todo o escritor deseja<br />

inaugurar um olhar inovador sobre a realidade<br />

e a fantasia, e em geral, confessada ou inconfessadamente,<br />

é corrente vislumbrar o futuro<br />

da sua própria obra não como descendente<br />

mas como fundador. Por isso, em relação à<br />

noção de pertença, a Literatura aparece como<br />

um território armadilhado pela contradição de<br />

nela se negar o que não se pode alienar nem se<br />

consegue perder.<br />

2.<br />

É à luz desse duplo movimento de sedução<br />

pelos territórios da pertença e simultânea<br />

repulsa pelos mesmos que melhor entendo<br />

escritores cuja emoção literária me faz com<br />

frequência revisitar os seus livros. É assim, por<br />

exemplo, que entendo Curzio Malaparte, seu<br />

amor e aborrecimento pelo seu país, seu envolvimento<br />

e ódio pela Europa da sua época, a<br />

que chamou com desespero derradeiro de<br />

«Mãe Apodrecida». Ou Faulkner, do outro lado<br />

do Atlântico, ao mesmo tempo tão adverso e<br />

tão no âmago do seu Sul conservador norte-<br />

-americano, contra o seu meio contemporâneo<br />

ainda meio esclavagista, e em simultâneo rente<br />

à autopunição colectiva de que era parte e com<br />

a qual se confundia. Ou o contemporâneo<br />

Milan Kundera, inseparável do mundo checo<br />

de que se fez crítico, fugitivo e ao mesmo<br />

tempo, na força da sua dissensão, exímio<br />

porta-voz da afasia de um povo dominado de<br />

que na altura se auto-excluía. É assim que<br />

entendo Virginia Woolf, em cuja personalidade<br />

as correntes culturais que agitavam o Ocidente<br />

no princípio do século XX encontraram ressonâncias<br />

extraordinárias. Mas a impetuosidade<br />

criadora mais genial dessa figura singular<br />

parece ter-se formado contra outro tipo de<br />

pertenças – as próximas, as domésticas, as<br />

familiares, as nacionais, as do mundo íntimo<br />

contra o qual se forjou a elite de Bloomsbury.<br />

Antes de mais, uma fuga e um corte com a<br />

convenção inglesa. Aliás, em Portugal, o exemplo<br />

mais eloquente desse cisma continua a corporizar-se<br />

na figura de Eça de Queirós, escritor<br />

realista do século XIX que concretizou toda<br />

uma obra de carácter irónico excepcional, em<br />

torno da contradição entre a pertença negada e<br />

a espectacular fuga fingida em relação ao seu<br />

país. Distantes ou próximos, em todos vislumbro<br />

o mesmo movimento de dissidência, o<br />

mesmo desejo do caminhante incorrigível de<br />

ganhar o largo, ainda que carregando às costas,<br />

sem saber, a soleira da porta donde saiu para<br />

não mais voltar. Em relação à questão da pertença,<br />

é no meio desse tipo de contradição que<br />

me vejo.<br />

Contradição que é feita de múltiplos elementos,<br />

tecida de infidelidades várias e dissidências<br />

complexas em torno do que é a questão<br />

central entre ser e não ser, ou ser e não se<br />

conhecer a natureza do que se é.<br />

Como explicar a pertença, ou mesmo descrevê-la,<br />

se pertencer é uma questão central, e<br />

no entanto cada um começa por não saber definir-se<br />

enquanto pertencido? As próprias áreas da<br />

pertença se cruzam e mesclam indefinindo-se<br />

mutuamente. Muitas vezes tenho a ideia de<br />

que, mais do que à sociedade, pertenço às<br />

ideias. Mais do que à família, pertenço aos que<br />

amo. Mais do que à Língua, pertenço à Literatura.<br />

E, mais do que a mim mesma, pertenço à<br />

dúvida. O que significa que eleger campos de<br />

demonstração simplificados implica torná-los<br />

visíveis, mas ao mesmo tempo traí-los e, na<br />

complexidade da sua raiz, perturbá-los. Mas<br />

não resta outro caminho senão o das simples<br />

evidências.


3.<br />

Assim, a minha primeira ideia, antes de<br />

mais, é que acima de tudo pertenço ao<br />

mundo, ao mundo contemporâneo que me é<br />

dado viver, sendo aí, no seu campo de metamorfose<br />

contínua, que encontro o território<br />

adequado para perguntar e responder, suster e<br />

transformar, acções que mais faço coincidir<br />

com a vida.<br />

Ela própria me diz que pertencer significa,<br />

como primeiro dado, fazer parte do<br />

devir imparável que é o presente, que cada<br />

dia amanhece mais adiante e a cada momento<br />

funda uma nova era, como disse Musil, e cuja<br />

delimitação em termos geográficos não<br />

tem significado, ou pelo menos parece não ter.<br />

O meu campo de pertença, existência e observação<br />

coincide com um novo «admirável<br />

mundo novo», dele fazendo parte e dele aproveitando<br />

os benefícios de comunicação e<br />

conhecimento nunca antes imaginados, mas<br />

também contra ele reagindo no seu excesso<br />

de desumanidades várias. O meu sentido de<br />

pertença e sentimento de ser palpável, antes<br />

de tudo, define-se em função dos obstáculos à<br />

utopia para que aponta o progresso do<br />

tempo, como são os objectos inúteis, os<br />

objectos de fogo, os detritos, os efluentes ou<br />

a imparável pavimentação da terra, sabendo<br />

que lhes pertenço, mas que os combato como<br />

a castelos inimigos inexpugnáveis e ocupo<br />

grande parte dos meus dias em contenda com<br />

isso. Julgo mesmo que, em parte, escrevo<br />

sobre a ansiedade por uma espécie de harmonia<br />

imaginada e integro esses elementos<br />

como partes de um território de incursão e<br />

contenda, perante o mundo que se constrói a<br />

uma velocidade incontrolável e com uma<br />

opacidade ameaçadora. Uma espécie de pertença<br />

contenciosa, gerida sob a iminência do<br />

futuro, em torno duma globalidade genérica<br />

que contém homens lá dentro. Homens que<br />

não sei se vão ser livres. Então surge-me a<br />

ideia de que o território primeiro a que pertenço<br />

é o dos homens, na abstracção do conceito<br />

maiúsculo de Humanidade e na generalidade<br />

do Tempo.<br />

Mas isso não é verdade, ou pelo menos é<br />

apenas uma parte da verdade, no que diz respeito<br />

à profunda pertença.<br />

4.<br />

Quando ocorre ler o que escrevo, percebo<br />

até que ponto, de mistura com os elementos<br />

duma utopia dirigida ao futuro, de carácter<br />

pretensamente universal, transporto comigo o<br />

lastro dum passado histórico determinado e a<br />

raiz duma nação concreta. A própria avaliação<br />

que faço do presente e do futuro não está isenta<br />

dessa informação à qual, de forma involuntária,<br />

pertenço. A escrita, pelos actos involuntários<br />

que envolve, pelos gestos apelativos que<br />

não acautela, revela faces ocultas e indistintas<br />

de que nos julgamos destituídos. Na sequência<br />

da primeira imagem ocorrida, eu diria que,<br />

através dela, o ethos, ou os rostos dos Heitores<br />

que existem amortalhados, desfigurados, ou<br />

mesmo invertidos, dentro de cada um, falam<br />

por si sem auxílio de qualquer voluntariosa<br />

pertença. Ao lado de gestos displicentes ou até<br />

de desprezo propositado contra a nação, sem<br />

querermos,Tróias, na iminência de desaparecerem<br />

sob várias camadas de areia, reluzem dentro<br />

da nossa cabeça, na sua importância de<br />

cidadelas mentais. A escrita revela isso, como se<br />

não pudesse deixar de ser um espelho de faces<br />

que não conhecemos ou que, existindo, não<br />

gostamos de desvendar. Só assim entendo que,<br />

de mistura com o confronto que mantenho<br />

com o presente enquanto sua parte, me encontre<br />

envolvida com os mitos profundos que<br />

governam o imaginário dos portugueses e justaponha<br />

o enigma do tempo que passa ao enigma<br />

que empurra a configuração particular do<br />

meu país.<br />

Percebo, por exemplo, que transporto<br />

desde a infância a notícia duma espécie de<br />

proeza acontecida no dealbar do século XVI, de<br />

que os portugueses foram autores principais<br />

indiscutíveis. Concretamente, transporto um<br />

sentimento próximo da estupefacção, pelo<br />

facto de um pequeno país, na altura com pouco<br />

mais de um milhão de habitantes, ter sido<br />

capaz de entregar à Europa dois continentes até<br />

então desconhecidos e ter aberto por mar caminhos<br />

alternativos para se atingir os outros dois.<br />

Em suma, ter entregue a Terra redonda ao<br />

Mundo tal como ficou para sempre e com tudo<br />

o que se lhe seguiu. Embora rente aos mitos de<br />

grandeza também estejam as perplexidades e os<br />

mitos que lhe são opostos. Dificilmente consi-


OUTRAS INQUIRIÇÕES 128<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

129<br />

go ultrapassar imagens controversas desse tempo<br />

e sempre imagino, quando as nomeio, figuras<br />

como as de António Faria assaltando e pilhando<br />

barbaramente, segundo as páginas da Peregrinação,<br />

ou como as do seu vice-rei,Afonso de Albuquerque,<br />

conhecido pelos orientais como o<br />

«leão dos roubos do mar».Vejo, com a ajuda de<br />

Pessoa, «dedos decepados sobre amuradas» de<br />

barcos portugueses, imagens de crueldade infinita<br />

desencadeadas à sombra da bandeira de<br />

Cristo, abençoadas pela mitologia da época<br />

como uma luta limpa em favor da Fé e da fraternidade<br />

no céu, matéria formidável para a<br />

interminável continuação da «História Universal<br />

da Infâmia». Lados tenebrosos sobre os<br />

quais se estava a construir então uma futura<br />

modernidade saída em simultâneo da coragem<br />

e do abominável. De qualquer modo, mesmo<br />

quando só para visitar os seus lados escuros e<br />

os desdizer, vou lá, vou aos mitos do passado<br />

do meu país, como se eles concorressem de<br />

longe para a compreensão deste presente inapreensível<br />

onde me movo e contra o qual disputo,<br />

porque lhe pertenço.<br />

5.<br />

Então fico a pensar que o enigma dum<br />

tempo e duma nação se assemelha também ao<br />

enigma pessoal como partes infinitamente assimétricas<br />

mas da mesma espécie, e julgo que<br />

afinal, mais do que à questão do território e da<br />

História, pertenço ao enigma da natureza,<br />

sobretudo a comummente designada por natureza<br />

humana.<br />

De facto, interessa-me a pessoa, mais do<br />

que tudo, pertenço ao dilema da pessoa, ao território<br />

da sua intimidade, ocupo-me da sua<br />

composição, suspeitando que a divisão entre<br />

corpo e espírito é uma complexa equação sem<br />

resolução possível. E talvez seja esse o meu território<br />

de incursão e confronto, logo de existência<br />

e de pertença, que mais privilegio. A pessoa<br />

como contra-destino e destino. Nesse<br />

domínio, há muito que me encosto aos olhos<br />

alucinados de Emily Dickinson, proferindo<br />

com a ajuda dos seus lábios vivos palavras de<br />

sedição – «Poeira quieta, tu que foste damas e<br />

cavalheiros» (Cette paisible poussière fut messieurs et<br />

dames). Digo em voz alta. Eu mesma fico quieta<br />

e muda, à espera que a poeira se mova e se<br />

revele. Não revela. As próprias palavras na surpresa<br />

do seu encontro são a revelação. Não há<br />

outra. Então socorro-me dos escatológicos,<br />

aqueles que, desesperados pela ausência de um<br />

nome justo para o habitante do corpo, invectivam<br />

o corpo, o anatomizam e o descrevem<br />

como órfão de uma paternidade inominável, e<br />

o vêem ligado à terra e ao estrume como a<br />

ficha se liga à tomada. O biodegradável corpo<br />

exposto, na expectativa de nomeação, à espera<br />

de um princípio que o salve de ser nada. Ou<br />

penso, com a ajuda do austríaco Ernest Jandl, as<br />

suas próprias palavras – «la machine à merde est pour<br />

l’essentiel en toi/ miracle de la création, merveille chancelante/<br />

tu n’es ni son ingénieur ni son inventeur/ mais son<br />

propriétaire, gardien et profiteur». Pronuncio assim<br />

mesmo essas exactas palavras de abjecção, porque<br />

elas traduzem o sentimento dos que se sentem<br />

sem-terra de tudo ser só terra, se sentem sem-<br />

-corpo, de tudo ser só corpo, a ligação cortada<br />

entre o céu e a matéria. Cortada, como um estado<br />

decepado, um trauma. Eu própria acho que<br />

nunca escrevi nenhuma página que não tivesse<br />

essa inquietação implícita, mesmo quando não<br />

expressa. Mais do que a um lugar ou a uma viagem,<br />

pertenço à região desse ferimento e à<br />

inquietação que o sustenta.<br />

6.<br />

Só que, de novo, atrás do homem está a<br />

História, mesmo quando reduzido ao papel<br />

fantasioso de personagem comum. Na verdade,<br />

mesmo quando julgo o contrário, descubro<br />

que jamais escrevi apenas sobre a fotografia da<br />

mãe antiga colocada sobre a aba da mesa<br />

moderna. Sem o desejar, o mundo donde a mãe<br />

e a mesa procedem arrastam rios de tempo significativo<br />

e lugares habitados por gente histórica,<br />

fazendo confluir atrás de si todos os outros<br />

elementos de pertença. Em ficção, a espera de<br />

um laço salvador que una as metades do corpo,<br />

com a outra parte que o nomeie, toma a forma<br />

de personagens comuns que devem viver só por<br />

si e, em simultâneo, entroncam no destino de<br />

personagens herdadas de há séculos, por estranho<br />

que pareça. Talvez porque dos mitos – aos<br />

quais de novo voltamos – sobejem partes<br />

móveis que caminham activas ao encontro do


presente, desde que o presente ainda os continue<br />

a entender como traumas e coincidam consigo.<br />

É o caso do sebastianismo, entre nós, por<br />

exemplo.<br />

Trata-se da história dum jovem rei lunático,<br />

sem filhos, que desapareceu em luta contra<br />

cinco reis mouros, nos areias do Norte de África,<br />

no final do século XVI, e donde nunca mais<br />

voltou nem vivo nem morto, dando origem a<br />

uma expectativa de regresso salvador que foi<br />

passando de século em século. Figura real<br />

enlouquecida, misto de Quixote e Godot, foi<br />

permanecendo até hoje, no meu país, confundindo-se<br />

com a noção corrente de que o bem e<br />

o bom estão do lado de fora, que tudo o que há<br />

a fazer é deixar a porta aberta para que aquele<br />

que vem possa entrar. O mito é terrível pelo<br />

imobilismo que arrasta. Diria mesmo, aparentemente,<br />

desajustado à realidade actual. No<br />

entanto, como muitos outros, através de algumas<br />

personagens, percebo que eu própria o<br />

transporto, mesmo que deseje fugir do país que<br />

o contém e o renegue por deliberação tomada.<br />

Pois por que razão o não transportaria eu como<br />

os outros, como cada um? O universo duma<br />

população é feito por acaso de números abstractos?<br />

E não é quem escreve uma pessoa<br />

comum? Então por que razão, quando me pergunto<br />

sobre o destino do corpo e a natureza do<br />

seu habitante invisível, hei-de estar a salvo<br />

desse terrível fantasma que habita os cantos do<br />

meu país, alma sem corpo, fantasma no corpo<br />

de gerações e gerações sucessivas de gente que<br />

o perdeu e nunca o encontrou? É vergonha<br />

dizê-lo? – Quando menos me dou conta, percebo<br />

que, esgotado o vocabulário da dúvida, eu<br />

mesma pertenço aos fantasmas.<br />

Mas há mais.<br />

Por exemplo, durante séculos, o corpo geográfico<br />

do império funcionou como uma realidade<br />

descomunal. Desde o século XVI que os<br />

portugueses se gabavam, com a ajuda dos versos<br />

de Camões, de jamais se pôr o Sol nas terras<br />

de Portugal, aquém e além-mar, sendo África,<br />

depois da independência do Brasil, a jóia mais<br />

preciosa da coroa, destino transcendental da<br />

pátria. Mas no final do século XIX, estabelecida<br />

a disputa entre as potências europeias pelos<br />

domínios africanos, Portugal foi vencido pelos<br />

ingleses na contenda da partilha de África.<br />

Ainda hoje o hino nacional português, nascido<br />

na sequência do célebre mapa cor-de-rosa,<br />

mantém os vestígios desse terrível momento de<br />

perturbação. Acaso não se reconhece no refrão<br />

do hino nacional, «Heróis do Mar», a letra primitiva<br />

«Contra os bretões, marchar, marchar...»?<br />

Na altura, uma das formas encontradas<br />

para reagir à perda? Não admira que o ridículo<br />

e a perda sejam comportamentos que passam<br />

para os domínios próprios da Literatura,<br />

mesmo que ela seja, por natureza, muito mais<br />

transfiguração do que retrato.<br />

E setenta anos depois, em relação a esses<br />

mesmos domínios em África, não ficaria envolvido<br />

o país numa Guerra Colonial fora de<br />

horas, tão dolorosa que ameaçava fazer apodrecer<br />

todo o tecido social, e que viria a terminar,<br />

fora de horas também, por uma perda tão grande<br />

que ainda hoje não se consegue gerir com<br />

decência, nem do lado de cá nem do lado de lá?<br />

Pois talvez seja difícil a qualquer escritor da<br />

minha geração falar do corpo e do fluido que o<br />

anima, sem que a referência ao esfacelamento<br />

inglório de contingentes inteiros ocupe um<br />

lugar de destaque. É mesmo capaz de ser difícil,<br />

para uma pessoa que fez a guerra de África ou a<br />

acompanhou, e teve o seu primeiro embate<br />

com a morte desse modo e nessas paragens, de<br />

não perguntar pelo sentido do corpo, vendo<br />

diante de si gente esmigalhada, entregando o<br />

corpo à terra no meio do mato, por uma causa<br />

de nada. E quem diz o sentido do corpo diz o<br />

sentido do dever e do desejo, e do amor, talvez<br />

o da morte em primeiro lugar. A prova de que<br />

uma parcela de nós mergulha no terreno colectivo<br />

de que faz parte, sobretudo se parte das<br />

narrativas que o constroem ainda não estão<br />

fechadas.<br />

7.<br />

No caso do tempo presente, porém, todas<br />

as narrativas se encontram abertas, dispostas à<br />

transfiguração, sobretudo quando o presente<br />

que testemunhamos e vivemos se afigura<br />

enquanto problema. Há momentos e países que<br />

pela sua situação de aceleração histórica, ou<br />

por confluência de factos, se encontram mais<br />

disponíveis à transfiguração do que outros. No<br />

caso português, a própria natureza das mudanças<br />

ocorridas durante os últimos vinte cinco<br />

anos torna inevitável, ou pelo menos propicia


OUTRAS INQUIRIÇÕES 130<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

131<br />

fortemente, a criação do outro relato, o ficcional,<br />

aquele que Carlos Fuentes designa por<br />

«criação de uma segunda história que cega e<br />

diminui a dos historiadores de arquivo», baseada<br />

apenas na memória e nos projectos pessoais.<br />

A propósito da Literatura portuguesa recente, é<br />

corrente referir-se essa coincidência.<br />

Mas aí também, como em tudo o mais,<br />

sempre se pertence às conjunturas históricas<br />

por círculos concêntricos, de intensidade diferente<br />

e de vária natureza. Nesse domínio, mais<br />

do que ao meu país de há vinte cinco anos<br />

atrás, pertenço à determinação e ao acontecimento<br />

que lhe mudou o rumo. Pertenço à<br />

matéria palpável da alegria que aconteceu na<br />

sequência duma revolução que pôs termo à<br />

ditadura de meio século que se havia abatido<br />

sobre a sociedade portuguesa desde os longínquos<br />

anos vinte, até aos anos setenta, ditadura<br />

sustentada por elites sem qualquer noção de<br />

partilha e por um povo iletrado e supersticioso<br />

destituído, na sua generalidade, de qualquer<br />

noção de revolta. Pertenço ao dia em que essa<br />

cadeia de equilíbrio recíproco se quebrou, em<br />

que fui testemunha de como é possível inverter<br />

a marcha do que parece inevitável, pela<br />

força da coragem pessoal de um grupo. Pertenço<br />

a esse momento como a um ponto de<br />

encontro entre a justiça e a inversão do destino,<br />

em forma de gente, milhares de fotografias<br />

a preto e branco, com flores vermelhas. E porque<br />

essa certeza foi adquirida quando a juventude<br />

ainda se assemelhava à adolescência, ela<br />

incorporou-se no sangue, ou no genoma, ou<br />

seja onde for, e transformou-se numa espécie<br />

de segurança que me sustenta o ser. Ou<br />

melhor, esse momento habita comigo como<br />

um ente querido, tem corpo e ocupa espaço e<br />

reivindica gestos, como uma pessoa de família.<br />

Pertenço a esse momento como se pertence a<br />

uma geração, e penso mesmo que a minha<br />

geração, se existe enquanto consciência, está<br />

concentrada em torno desse acontecimento.<br />

Assim como pertenço à sociedade que daí saiu,<br />

a braços com a redefinição dos seus vizinhos,<br />

seus aliados, seus novos valores e duros percursos,<br />

suas metas demasiado altas para serem<br />

atingidas demasiado rápido. Uma sociedade na<br />

generalidade constituída por gente muito pobre<br />

que rapidamente deseja ser muito rica. Mais do<br />

que ser democrática ou estimar os valores da<br />

partilha, do saber e do discorrer livre. Porque<br />

uma parte dela, muito mais do que era suposto<br />

imaginar, continua a desejar prolongar<br />

estruturas mentais que faziam o mundo antigo.<br />

Nesse domínio, pertenço-lhe por repulsa e por<br />

mágoa. Pertenço-lhe por inevitabilidade de lhe<br />

pertencer. Por isso, mais do que à sociedade<br />

dentro da qual sou número e tenho um nome<br />

civil, pertenço ao mundo dos meios que a<br />

reproduzem por palavras, a lêem em termos<br />

críticos ou mais propriamente a alteram e a<br />

transfiguram. Pertenço-lhe com a mesma contradição<br />

com que pertenço ao tempo contemporâneo.<br />

8.<br />

Pertenças várias e inúmeras que funcionam<br />

como laços mas também como destinos e condenações,<br />

ou como matérias-primas, no caso<br />

de se encontrar o veículo que as transporta para<br />

o lugar do não-destino. Por exemplo, a Literatura,<br />

que em si mesma é um espaço de corte e<br />

liberdade. E que dizer sobre isso?<br />

Que pertenço à Literatura, campo das palavras<br />

libertas do real, e dentro dela à ficção, o<br />

terreno da transfiguração dos factos em actos<br />

simulados. Na verdade, a sua natureza e função<br />

consistem em escolher, inverter, desfigurar o<br />

que está dentro da matéria das pertenças, de<br />

modo a produzir-se uma nova realidade verdadeira,<br />

que não se opõe à realidade falsa, e nesse<br />

salto de qualidade e espécie consiste a criação,<br />

isto é, o acrescento de alguma coisa ao mundo<br />

que antes lá não estava. Naturalmente que se<br />

pertence à Literatura e à ficção sem a noção<br />

dessa importância. Começa-se por se pertencer<br />

porque sim, porque acontece, porque se tem a<br />

ideia, como leitor, de que se pode sonhar.<br />

Depois é que se entende que se pertence a uma<br />

matéria que se desprende da prisão do real,<br />

para dizer que ele não é suficiente, impondo-<br />

-lhe uma nova lógica, ou tornando-o visível nas<br />

suas partes vivas, lá onde havia um limbo amalgamado.<br />

E na participação dessa acção de liberdade<br />

consiste nascer o criador que é o leitor e é<br />

o escritor, diferentes, mas irmãos. Nascer e<br />

crescer no espaço de liberdade que permite<br />

abrir uma nova possibilidade entre as outras e,<br />

desse modo, à reprodução de qualquer dilúvio


terrível que esteja em nossa mente, sempre se<br />

pode juntar uma barca. Pelo menos, se outra<br />

não for, que seja a própria barca das palavras, a<br />

que melhor une um a outro.<br />

Ou, por outras palavras, a Literatura, e dentro<br />

dela a ficção, permite que a corrente falada<br />

em todas as direcções como uma matéria optativa<br />

permanente transforme o outro num igual a<br />

mim mesmo e se crie um corpo de afinidades<br />

consentidas, responsabilidades cruzadas e culpas<br />

divididas, já que procura atingir, através de<br />

cada personagem, simulacro de gente, o coração<br />

profundo do homem, esse local onde as<br />

diferenças se esbatem em torno daquilo que faz<br />

cada um dos implicados pertencer a um todo.<br />

Determinada noção profunda de comunidade<br />

só se aprende na Literatura. Nesse sentido, para<br />

alguns leitores da minha geração, o romance Por<br />

Quem os Sinos Dobram acabou por ser muito mais<br />

importante pela epígrafe que permitiu o título<br />

do que pela longa narrativa em si mesma.<br />

Hemingway apenas copiou, como portal da<br />

primeira página desse livro admirável, a invectiva<br />

de John Donne – «Nenhum homem é uma<br />

Ilha isolada; cada homem é uma partícula do<br />

Continente, uma parte da Terra; se um Torrão é<br />

arrastado para o Mar, a Europa fica diminuída,<br />

como se fosse um Promontório, como se fosse<br />

a Casa dos teus Amigos ou a Tua Própria; a<br />

Morte de qualquer homem diminui-me, porque<br />

sou parte do Género Humano. E por isso<br />

não perguntes por quem os sinos dobram; eles<br />

dobram por Ti».<br />

Pertenço à Literatura e dentro dela à ficção,<br />

por esse serviço que presta à totalidade, em<br />

torno dos desejos que nos são comuns, traduzidos<br />

em imaginação pela palavra liberta. Em<br />

Literatura, não há imobilização nem morte de<br />

Heitor. O monumento de pedra que não se<br />

ergueu entre a Batalha e a Bastilha está sempre<br />

a erguer-se. Um e outro são válidos sem a fronteira<br />

das palavras das línguas, agarradas à circunstância<br />

geográfica. Aliás, na contradição<br />

entre pertencermos e libertarmo-nos daquilo<br />

que pertence à Língua, que sempre escreve o<br />

modo do nosso pensamento antes de nós próprios<br />

podermos escrever, e connosco se confunde<br />

como parte do nosso corpo, a língua<br />

materna é uma liberdade e ao mesmo tempo<br />

uma condição insuficiente.<br />

Neste campo, seria mesmo uma falta não<br />

dizer que pertenço à Língua portuguesa. É com<br />

ela que estabeleço a minha luta e o meu confronto<br />

e os meus actos mais livres que são os de<br />

dizer. A exaltação das suas virtudes e possibilidades<br />

não pode ser regateada. Existem monumentos<br />

infindáveis de elogio à minha língua e<br />

concordo com todos eles. Mas por vezes dou<br />

por mim à procura de nuances que não apresenta,<br />

modos que impõe, liberdades que me tira ao<br />

lados das liberdades que dá. Talvez, como em<br />

todos os outros idiomas, faltem nela palavras<br />

para traduzir sentimentos complexos onde os<br />

vocabulários são simples. Faltam chaves. Faltam,<br />

por exemplo, termos para traduzir a voz<br />

dos seres que se movem e nos imitam nos actos<br />

do sono e do amor, mas não falam nenhuma<br />

linguagem que se entenda. Faltam as palavras<br />

para traduzir o que diríamos se fôssemos seres<br />

inanimados que não nos dizem nada e nos<br />

quais julgamos existir uma natureza significativa.<br />

Uma vez que somos pouco e o mundo da<br />

expressão é vasto, por que razão as línguas não<br />

são tão vastas, nem tão dúcteis, nem tão universais<br />

quanto sonhamos para que a Literatura seja<br />

um campo sem barreiras? De facto, a vocação<br />

da Literatura é fundir-se com o próprio segredo<br />

do mundo que permanentemente questiona,<br />

como se antes de nós tivesse havido um acto<br />

interrompido e as palavras acima das fronteiras<br />

das línguas ainda pudessem ligar o mundo ao<br />

seu sentido. Estar aí, saber que não posso sair<br />

desse dilema nem o posso resolver, é a minha<br />

pertença.


A MUDANÇA DA TERRA<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

132 133<br />

O retratista de corações<br />

Luísa Monteiro<br />

Praia da Rocha, anos 50. Arquivo Museu Municipal de Portimão


Pareciam sempre velhos, sempre branca<br />

a barba rala, ramela ao canto do olho<br />

cansado de tanto azul, sentados nas areias.<br />

Finas. Sul.<br />

Permanentes nos seus rolos de espuma,<br />

as ondas cantavam nas madrugadas<br />

molhadas a saudade da ternura das mulheres<br />

– e elas secando, secando na enxerga<br />

do desejo: como medusas lançadas ao sol.<br />

Tal gaivota alada, surgia então o acenar<br />

de uma grossa e calejada mão de remo e<br />

era a riso de feno que cheirava o mar; bafo<br />

molhado de pão. Chegavam sem amarras,<br />

embriagados de mar, oscilando, lembrando<br />

que não devia tardar a manhã para<br />

sonhar. (Amar).<br />

Depois, o arrieiro enchia as duas<br />

canastras de empreita, feitas de paciência e<br />

paixão num serão de sono e calafrios femininos.<br />

Enchiam-se de sardinhas, carapaus,<br />

safios, cheias ficavam como seios redondos<br />

prontos a amamentar, prontos a parir,<br />

era hora de partir.<br />

Como se de uma loucura se tratasse, o<br />

velho arrieiro enlaçava com um baraço as<br />

duas taças de vida, quais laços de cetim<br />

em roda de cinturas virgens, entrançava,<br />

cobiçava a forma fresca daquele festim<br />

(que embaraço pensar em coisa alguma<br />

que não fosse fincar os pés descalços na<br />

areia fina).<br />

Cada canastra na margem da vara,<br />

varada a testa de suor, toca a levantar, elevar<br />

aos magros ombros e carregar, toca a<br />

andar, do mar à lota, nunca afrouxar até<br />

arrear, gritar, propagandear, o preço baixar<br />

até que alguém o braço levante, «chui!»,<br />

era a forma de assinalar negócio tão marinheiro,<br />

incerto, matreiro... (Quanto<br />

menos malandro, mais o pão é traiçoeiro).<br />

Fazia-se então manhã ante os olhos,<br />

fria ante os dedos dos pés. A praia enchia-<br />

-se dos primeiros banhistas às riscas, risonhos,<br />

redondos, rosados, rolantes. E logo<br />

lá em cima no passeio, imponente, mágico<br />

(nada vale a pena se não for mágico), surgia<br />

o retratista, com o cavalo de madeira<br />

ao ombro (tentador) e uma senhora pernalta<br />

de saia preta na mão (assustadora).<br />

Todos sabiam o quanto ele mentia.<br />

Dizia-se dono do tempo. Entre a taberna e<br />

o barbeiro, o cigarro e o pano preto, o<br />

retratista prometia um passarinho em<br />

troca de 25 tostões. E a praia ficava deserta<br />

de crianças. Todas queriam chegar ao<br />

cavalo do tamanho de trazer pelo primeiro<br />

sono.<br />

E quando as mandava ficarem quietas,<br />

de laços brancos a penderem-lhe da testa<br />

sombria, parecia que o cavalo de madeira<br />

de cor esbatida pelo sol ganhava vida. (E se<br />

o cavalo agora voasse, se galopasse pelas<br />

ruas? Não haveria retrato com tons de<br />

espuma, madrugada e luas).<br />

O retratista mandava no tempo, até o<br />

mandava parar – para poder espreitar pelo<br />

grande e negro olho mágico os corações<br />

nervosos das crianças.<br />

Conta-se a história que houve um<br />

arrieiro velho que aguardou toda a manhã<br />

pelo passarinho, imaginando-o a esvoaçar<br />

a partir dos olhos azuis dos meninos que<br />

montavam o cavalinho de madeira pintado<br />

de branco, com uma sela amarela, ou<br />

então da saia preta em que o retratista<br />

mergulhava a cabeça, ou talvez da sua boca<br />

vermelha.<br />

Mas, à medida que as caixas metálicas<br />

de retratos instantâneos foram crescendo<br />

nas esquinas acolhedoras de maresia, o<br />

cavalinho foi apodrecendo na praia; há<br />

algas ainda a fazerem das farpas jangadas<br />

de saudade, porque já não há retratos com<br />

as cores da alma e laços brancos enfunados<br />

sobre a testa. Nem canastras, nem canastras...<br />

Os retratos de agora já não têm a aragem<br />

vinda do bater de asas do passarinho,<br />

aquele que renascia sempre que uma<br />

criança se sentava no dorso do cavalinho<br />

de sela amarela, com brisa de mar nos<br />

rolos de cabelo.<br />

Era assim há meio século. Agora, o<br />

retratista encontra-se escondido atrás da<br />

lua, com o manto da noite inteira sobre a<br />

cabeça; está a fotografar as ondas azuis, as<br />

que se levantam mais alto por causa da<br />

bater d’asas da alma do passarinho... e<br />

cada retrato, ainda pelo preço de 25 tostões.<br />

Sabe a modernidade que o velho<br />

arrieiro trocou o coração de mar por um<br />

retrato. Sem cavalo de madeira, nem sela<br />

amarela. E, talvez por timidez ou incerteza,<br />

ocultou o olhar com óculos de sol<br />

importados.


A COMPANHIA DOS LIVROS 134 135<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

Gastão Cruz A moeda do tempo ASSÍRIO & ALVIM<br />

O poeta derrama o corpo e as emoções na praia do poema, onde se espraiam as coisas contemporâneas e se escuta<br />

como num búzio o som do mundo que ecoa nos versos que escreve e na recordação dos versos de outros poetas.<br />

A infância, a memória, os amigos, a perda, a eternidade da morte. A experiência do tempo como experiência do<br />

mundo e da linguagem sujeita a um tratamento reflexivo que reconstrói o passado no presente. O mar, os barcos, as<br />

aves, as árvores como fulgurações de instantes do passado irrompendo no presente, coisas contemporâneas de uma<br />

vida/ que excede a minha vida e se confrontam com as ameaças de um mundo que um dia irá apagar [os versos]<br />

e a incerta esperança que o próprio mundo original seja a casa dos escritos [e] dos poetas que emudecem. Um livro<br />

de ondulações verbais onde se renovam as sonoridades do correr da água/ anterior à água das palavras.<br />

Joaquim Mestre O perfumista OFICINA DO LIVRO<br />

Romance atravessado por uma espécie de sopro de realismo mágico alentejano, cuja acção decorre, no primeiro quartel<br />

do século XX, num território particularmente pobre das margens do Guadiana, conta-nos a história de Manuel Gasparim,<br />

um perfumista apaixonado que cria aromas, faz misturas, inventa subtis olores que levam as mulheres à perdição, chegando<br />

mesmo, nas últimas páginas, a soltar-se um clima de loucura inebriante quando o intenso cheiro a benjoim percorre<br />

a vila inteira perante a perplexidade de todos. É um Alentejo profundo, atravessado pelas várias dimensões da vida,<br />

aquele que se derrama na planície e no silêncio deste livro, que retoma a melhor tradição dos escritores alentejanos, de<br />

que Manuel da Fonseca é o expoente máximo.<br />

Teolinda Gersão A mulher que prendeu a chuva SUDOESTE<br />

Uma nova editora, a Sudoeste [Sextante]. Um editor com a paixão dos livros, João Rodrigues. Um livro de contos de<br />

Teolinda Gersão. Pequenas histórias que são como mundos interiores, mundos de figuras erráticas, deslizantes, de<br />

mulheres cuja interioridade enigmática a autora persegue através de geografias distintas – Nova Iorque, Berlim,<br />

Florença, Lisboa – atravessadas pela morte e pela solidão. Um resto de memória atravessando a cortina do tempo para,<br />

numa fulguração do passado no presente, a realidade nos chegar como uma revelação, uma epifania profana que se<br />

abre à experiência quotidiana transfigurada. Gente em ruínas. Cidades a ruírem. Lisboa, como uma premonição.<br />

Lídia Jorge Combateremos a sombra DOM QUIXOTE<br />

Do outro lado da sombra é um país inteiro que se esconde. Um país que se afunda dentro de um autocarro que cai a um<br />

rio. Gente enredada numa teia pantanosa de mesquinhez, de mentira, de toda a espécie de tráficos silenciados. Uma<br />

omertà à portuguesa. Uma teia que não mostra os fios, apenas os nós. Um livro político? Nem tanto. Lídia Jorge prefere-o<br />

como uma ficção com um assomo político, em que Portugal se deita no divã. Psicanálise de um país à procura de uma pele<br />

nova. Um livro escrito num impulso de melancolia, mas também de raiva contra o nosso processo de revisão cíclica de marcar<br />

passo. Assombros: Osvaldo Campos, o meu Dom Quixote de estimação, as três mulheres, Maria London, a paciente magnífica,<br />

Rossiana, Ana Fausto, vidas de papel que se assemelham à vida de pessoas, um consultório de um psicanalista,<br />

um onirismo revelador, um país fantasmal, uma ficção com um assomo político. Um livro para combater a sombra.<br />

Enrique Vila-Matas Doutor Pasavento TEOREMA<br />

Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, é um meta-romance-ensaio onde se respira a mesma ironia shandiana dos<br />

livros anteriores do autor, agora utilizando um estilo mais sóbrio, menos impertinente, mas sempre com uma escrita<br />

culta, lúdica, provocatória quanto baste, que propõe uma desconstrução da figura do autor, concluindo, assim, a sua trilogia<br />

metaliterária (O mal de Montano, Bartlebly & Companhia e Doutor Pasavento). Ao mesmo tempo, trata-se de uma<br />

viagem às regiões inferiores de Robert Walser, que escrevia a lápis para estar mais perto do desaparecimento, do eclipse; de<br />

Emmanuel Bove, que parecia estar sempre à espera que o esquecessem; de Thomas Pynchon, que se esconde em Nova Iorque;<br />

de Kafka, que queria era continuar a existir sem ser incomodado; de Salinger, o escritor que vive em paz, oculto; de W. G.<br />

Sebald, para quem o desaparecimento sempre existiu; de Joseph Roth, que narra a viagem errática de um desaparecido. Uma<br />

poética da extinção.


Nuno Júdice As coisas mais simples DOM QUIXOTE<br />

Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos ou a mulher da fotografia – o quotidiano<br />

irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio. O<br />

tronco da figueira/ (é agora um) corpo de mulher nua; (…) e o figo que o poeta tem na mão (fá-lo) sentir os seus seios macios;<br />

há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H.<br />

Lawrence, Shelley, os poetas gregos –. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas,<br />

regressos, há um conceito de paisagem e uma imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente; na casa da Mexilhoeira<br />

Grande, Nuno Júdice escreve um livro à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso: descrições, narrações, personagens,<br />

memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As Coisas Mais Simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um,<br />

aquele que só os verdadeiros poetas têm.<br />

Urbano Tavares Rodrigues Ao contrário das ondas DOM QUIXOTE<br />

A ele se deve a recuperação de Manuel Teixeira-Gomes. A ele se deve, também, uma obra ficcional de enorme fôlego<br />

com mais de 40 títulos publicados desde 1952, indispensável para compreender o universo social do Portugal contemporâneo.<br />

Em Ao Contrário das Ondas tudo se passa numa Lisboa, entre a Lapa e as Avenidas Novas, num quadro mental<br />

que convoca referências culturais de uma burguesia de esquerda aí retratada com a agilidade e o desembaraço da<br />

escrita que se conhece em Urbano Tavares Rodrigues. Um olhar lúcido sobre as representações urbanas do país, com<br />

um misto de espanto e desencantamento face ao paradigma político actual. Uma crónica realista do tempo que passa.


INSTITUTO DE CULTURA IBERO-ATLÂNTICA<br />

Associação Cultural sem Fins Lucrativos e Pessoa Colectiva de Utilidade Pública DR II série, n.º 8, 11.01.06<br />

1995-2007<br />

MAIS DE UMA DÉCADA DE DIÁLOGO INTERCULTURAL<br />

www.institutoculturaibero-atlantica.pt<br />

SEDE: Largo Dr. Bastos n.º 13 8500-654 PORTIMÃO<br />

CONTACTOS: iciaptm@mail.telepac.pt Telef. 351 282 470822 Fax 351 282 470749


PROCEDIMENTOS DA ARBITRAGEM CIENTÍFICA<br />

Ponto 1.<br />

Da selecção de autores de textos e de imagens para publicação na <strong>Revista</strong> <strong>Atlântica</strong><br />

1.1. Os textos e as imagens podem ser solicitados a autores pelo Conselho Editorial ou pelo Director da <strong>Revista</strong>, de acordo com<br />

o seu mérito científico, artístico, literário ou cultural.<br />

1.2. As propostas formuladas pelos autores serão sujeitas a apreciação pelo Conselho Editorial, mediante os critérios definidos.<br />

Ponto 2.<br />

Dos critérios de selecção dos textos e imagens<br />

2.1. Os textos de natureza científica apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios:<br />

2.1.1. Rigor científico, aparato crítico.<br />

2.1.2. Clareza do discurso e correcção linguística.<br />

2.1.3. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção.<br />

2.2. Os textos de natureza literária apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios:<br />

2.2.1. Estética da linguagem.<br />

2.2.2. Clareza do discurso e correcção linguística.<br />

2.2.3. Coerência com a rubrica ou secção em que se integram.<br />

2.2.4. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção.<br />

2.3. Os textos de natureza cultural apresentados ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios:<br />

2.3.1. Actualidade do tema.<br />

2.3.2. Clareza do discurso e correcção linguística.<br />

2.3.3. Coerência com a rubrica ou secção em que se integram.<br />

2.3.4. Dimensão adequada a cada rubrica ou secção.<br />

2.4. As imagens apresentadas ao Conselho Editorial para publicação deverão obedecer aos seguintes critérios:<br />

2.4.1. A iconografia de arquivo deve mencionar adequadamente a fonte, de acordo com a norma.<br />

2.4.2. As fotografias, os desenhos ou as gravuras originais devem adequar-se esteticamente à concepção artística global<br />

da <strong>Revista</strong>, podendo ser reduzidas, ampliadas ou fragmentadas de forma a integrar-se nos textos que pretendem ilustrar.<br />

2.4.3. Todas as imagens deverão integrar-se com coerência nos conteúdos da <strong>Revista</strong>.<br />

2.5. Das antologias ou excertos de obras já publicadas:<br />

2.5.1. Todos os textos ou imagens já publicados, na totalidade ou em parte, só poderão ser reproduzidos com autorização<br />

escrita dos autores, editores ou arquivos, conforme o caso.<br />

2.6. Dos direitos de autor:<br />

2.6.1. Todos os textos ou imagens são da responsabilidade dos autores, em respeito absoluto pela apreciação vinculativa<br />

do Conselho Editorial.<br />

2.6.2. Todos os textos ou imagens terão a menção da autoria.<br />

2.6.3. Os textos traduzidos serão sempre sujeitos a concordância dos autores.<br />

2.6.4. Todos os textos ou imagens publicados são propriedade da <strong>Revista</strong> <strong>Atlântica</strong> por cedência de direitos dos respectivos<br />

autores.<br />

2.7. Da apreciação do Conselho Editorial:<br />

2.7.1. Eventuais propostas de alteração, correcção ou reformulação dos textos formuladas pelo Conselho Editorial terão de<br />

ser aceites pelos autores, sob pena de não publicação.


PUBLICAÇÃO SEMESTRAL<br />

EDIÇÃO<br />

Instituto de Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

(Associação Cultural, Pessoa<br />

Colectiva de Utilidade Pública,<br />

DR n.º 8, II Série, 11 de Janeiro<br />

de 2006)<br />

DIRECTOR<br />

João Ventura<br />

REDACÇÃO<br />

João Ventura<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

ASSISTENTE EDITORIAL<br />

Patrícia Canha<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

António Borges Coelho<br />

(Universidade de Lisboa<br />

- Portugal)<br />

Armando Martínez Garnica<br />

(Universidade Industrial de<br />

Santander - Colômbia)<br />

Caio Boschi (PUC Minas Gerais<br />

- Brasil)<br />

Gerardo Caetano (Universidade<br />

de la República, Montevideu<br />

- Uruguai)<br />

João de Melo (Portugal)<br />

Julio Pantoja (Argentina)<br />

Luis Sepúlveda (Chile)<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

(Portugal)<br />

Osvaldo Henrique Urbano<br />

(Universidade San Martín de<br />

Porres, Lima - Peru)<br />

PROJECTO EDITORIAL<br />

João Ventura<br />

PATROCÍNIO<br />

APOIOS<br />

IEFP Governo da República Portuguesa<br />

<strong>Revista</strong> atlântica de cultura ibero-americana<br />

DESIGN<br />

Atelier Henrique Cayatte<br />

com Susana Cruz e Cristina Viotti<br />

FOTOGRAFIA<br />

Daniel Barraco<br />

Duarte Belo<br />

Eric Facon<br />

Grau Serra Espriu<br />

João Garcia<br />

João Mariano<br />

João Ventura<br />

Julio Pantoja<br />

Paulo Barata<br />

CAPA E CONTRACAPA<br />

João Mariano<br />

COLABORARAM<br />

NESTA EDIÇÃO<br />

António Ramos Rosa<br />

Boaventura de Sousa Santos<br />

Caio Boschi<br />

Carmen Yáñez Hidalgo<br />

Daniel Barraco<br />

Duarte Belo<br />

Grau Sierra Espriu<br />

João Garcia<br />

João Mariano<br />

João Ventura<br />

Jorge Couto<br />

José Luís Peixoto<br />

José Manuel Fajardo<br />

Julio Pantoja<br />

Lídia Jorge<br />

Luísa Monteiro<br />

Luiz António de Assis Brasil<br />

Maria Adelina Amorim<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Direcção Regional de Educação do Algarve<br />

OS PEDIDOS DE ASSINATURA DA REVISTA E PERMUTAS DEVEM SER ENCAMINHADOS PARA:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Atlântica</strong> Instituto de Cultura Ibero-<strong>Atlântica</strong> Largo Dr. Bastos n.º 13 8500-654 Portimão - Portugal<br />

E-mail: info@revista-atlantica.com T. (351) 282 470 822 F. (351) 282 470 749<br />

A <strong>Revista</strong> aceita permuta | Piedese canje | We demande exchange | Demande l’échange<br />

Maria Mansilla<br />

Paulo Barata<br />

Roger Sogues Marco<br />

Sergio Vuskovic Rojo<br />

Urbano Tavares Rodrigues<br />

Vítor Serrão<br />

Virginia Vidal<br />

Volodia Teitelboim<br />

TRADUÇÃO<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Patrícia Canha<br />

REVISÃO & COPY DESK<br />

António José Massano<br />

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS<br />

Arquivo Histórico Ultramarino<br />

Arquivo do Museu Municipal<br />

de Portimão<br />

PROPRIEDADE<br />

Instituto de Cultura<br />

Ibero-<strong>Atlântica</strong><br />

Presidente<br />

Maria da Graça A. Mateus Ventura<br />

Vice-Presidente<br />

Valdemar Coutinho<br />

Vogais<br />

Margarida Mimoso Cunha<br />

José Gonçalves Canelas<br />

REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO<br />

Largo Dr. Bastos, n.º 13<br />

8500-654 Portimão<br />

E-mail: iciaptm@mail.telepac.pt<br />

T. (351) 282 470 822<br />

F. (351) 282 470 749<br />

PROMOÇÃO E PUBLICIDADE<br />

info@revista-atlantica.com<br />

pcanha.atlantica@gmail.com<br />

PRÉ-IMPRESSÃO<br />

Critério – Produção Gráfica, Lda<br />

IMPRESSÃO<br />

Norprint<br />

DISTRIBUIÇÃO<br />

ICIA<br />

ISSN<br />

1646-1002<br />

DEPÓSITO LEGAL<br />

219149/04<br />

Registo ICS<br />

124731<br />

PREÇO POR NÚMERO<br />

15 €<br />

SÓCIOS DO ICIA<br />

Gratuito<br />

ASSINATURA ANUAL<br />

25 €<br />

© Instituto de Cultura<br />

Ibero-<strong>Atlântica</strong> e autores<br />

dos textos e das fotografias<br />

www.revista-atlantica.com<br />

www.institutoculturaibero-atlantica.pt<br />

AGRADECE A GENEROSIDADE DOS AUTORES<br />

QUE TORNARAM POSSÍVEL ESTA EDIÇÃO.<br />

OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA EXCLUSIVA<br />

RESPONSABILIDADE DO[S] AUTOR[ES].<br />

APOIOS MEDIA


<strong>Revista</strong> atlântica de cultura ibero-americana | Número 05 Outono Inverno 2006 2007

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!