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Semântica - CCE - Universidade Federal de Santa Catarina

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

DEPARTAMENTO DE LÍNGUA E LITERATURA VERNÁCULAS<br />

Apresentando a semântica: uma introdução ao<br />

estudo do significado nas línguas naturais<br />

Profa. Roberta Pires <strong>de</strong> Oliveira<br />

pires@cce.ufsc.br<br />

Renato Miguel Basso<br />

rmbasso@gmail.com<br />

2007/1<br />

1


Módulo 1<br />

Introdução......................................................................................................................... 4<br />

1. Delimitando o campo da <strong>Semântica</strong> das Línguas Naturais. ..................................... 4<br />

1.1 O vasto domínio do Significado ....................................................................... 4<br />

1.2 O Significado Lingüístico................................................................................. 6<br />

2. O Conhecimento Semântico <strong>de</strong> um Falante ........................................................... 10<br />

2.1 Condições <strong>de</strong> Verda<strong>de</strong>.................................................................................... 11<br />

2.2 Composicionalida<strong>de</strong> ....................................................................................... 15<br />

2.3 Trama <strong>Semântica</strong> ............................................................................................ 18<br />

3. A noção <strong>de</strong> Significado .......................................................................................... 21<br />

3.1 Analisando uma língua ................................................................................... 24<br />

3.2 Decompondo sentenças .................................................................................. 27<br />

Módulo 2<br />

3.2.1 Predicados e Argumentos ....................................................................... 27<br />

3.2.2. Predicados <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um argumento .......................................................... 31<br />

A <strong>Semântica</strong> do Nominal................................................................................................ 36<br />

1. Nomes Próprios ...................................................................................................... 37<br />

2. Os pronomes........................................................................................................... 38<br />

3. A Descrição Definida ............................................................................................. 43<br />

3.1 A DD em Frege e em Russell ......................................................................... 47<br />

3.2 A Pressuposição.............................................................................................. 50<br />

3.3 Descrições Definidas Plurais.......................................................................... 54<br />

3.4 Nomes <strong>de</strong> Massa............................................................................................. 57<br />

4. Os Sintagmas Quantificados................................................................................... 60<br />

4.1 Sintagmas Quantificados não se referem a um indivíduo .............................. 60<br />

4.2 Quantificadores Generalizados....................................................................... 62<br />

4.3 Relações são proprieda<strong>de</strong>s matemáticas......................................................... 66<br />

4.4 Sintagmas quantificados na posição <strong>de</strong> objeto ............................................... 68<br />

4.5 Escopo <strong>de</strong> operadores ..................................................................................... 70<br />

2


Módulo 3<br />

O Sintagma Verbal – Tempo, Aspecto e Acionalida<strong>de</strong>.................................................. 74<br />

1 Papéis temáticos ..................................................................................................... 74<br />

2. Eventos ................................................................................................................... 79<br />

3. Tempo..................................................................................................................... 82<br />

4. TAspecto................................................................................................................. 86<br />

5. Acionalida<strong>de</strong>........................................................................................................... 95<br />

3


Módulo 1<br />

Primórdios<br />

1. Delimitando o campo da <strong>Semântica</strong> das Línguas Naturais.<br />

1.1 O vasto domínio do Significado<br />

O termo significado tem uma acepção muito mais ampla nas nossas conversas<br />

cotidianas do que na lingüística e ele é ainda mais restrito quando estamos pesquisando<br />

em semântica. É por isso que precisamos, antes <strong>de</strong> mais nada, ter clareza sobre o que se<br />

enten<strong>de</strong> por esse termo quando estamos estudando semântica. Por exemplo, no dia-a-dia<br />

conversamos sobre o significado da vida. Essa não é, no entanto, uma questão<br />

semântica, porque ela pergunta sobre o significado <strong>de</strong> algo que ocorre no mundo;<br />

enquanto um fenômeno no mundo, a vida, po<strong>de</strong> receber diferentes explicações,<br />

nenhuma <strong>de</strong>las semântica: a resposta dada pela biologia, pela bioquímica, pelas<br />

religiões. A semântica, no entanto, nada po<strong>de</strong> dizer sobre o significado da vida enquanto<br />

tal ou <strong>de</strong> qualquer outra “coisa” no mundo, porque ela explica apenas um tipo muito<br />

específico <strong>de</strong> fenômeno: o significado que atribuímos às sentenças e expressões <strong>de</strong> uma<br />

língua natural, uma língua que apren<strong>de</strong>mos no berço, sem aprendizagem formal. O<br />

máximo que a semântica po<strong>de</strong> dizer é o significado da palavra ‘vida’, algo que aparece<br />

nos dicionários.<br />

Consi<strong>de</strong>re um outro exemplo. É comum especularmos sobre o significado <strong>de</strong> um<br />

ato. Suponha que o João é o chefe da Maria e ele saiu apressado da sua sala em direção<br />

à sala do presi<strong>de</strong>nte da empresa. A Maria po<strong>de</strong> se perguntar o que significa essa saída<br />

brusca <strong>de</strong> João, o que será que houve para ele sair <strong>de</strong>ssa maneira, algo tão incomum.<br />

Mas, mais uma vez, essa especulação não é semântica, porque a pergunta não é sobre o<br />

significado <strong>de</strong> uma fala ou <strong>de</strong> uma expressão lingüística, mas <strong>de</strong> um ato <strong>de</strong> João no<br />

mundo. Contraste com a seguinte situação. João está expondo as metas da empresa para<br />

o próximo ano. E ele diz: O leiaute da nossa empresa precisa ser reformulado. E a Maria<br />

se pergunta: o que será que ‘leiaute’ significa? Neste caso sim estamos diante <strong>de</strong> uma<br />

indagação semântica, porque ela se pergunta sobre o significado <strong>de</strong> uma palavra, a<br />

palavra ‘leiaute’ e a resposta <strong>de</strong>ve ser um esclarecimento sobre o significado <strong>de</strong>ssa<br />

palavra usando outras palavras: leiaute é o projeto do <strong>de</strong>senho gráfico <strong>de</strong> uma empresa.<br />

Nesse caso, a Maria apren<strong>de</strong>u algo sobre a língua (e não sobre o mundo).<br />

4


Assim, uma primeira distinção a ser traçado, no vasto domínio do termo<br />

significado, separa o significado lingüístico, isto é aquele veiculado pelas línguas<br />

naturais, e o significado não-lingüístico, que compreen<strong>de</strong> o significado que se atribui a<br />

objetos (fatos) no mundo e a símbolos que não são parte das línguas naturais. Vejamos<br />

um exemplo <strong>de</strong>sse último caso. Imagine a seguinte situação: numa aula para arquitetos<br />

<strong>de</strong> interior, um instrutor explica o significado <strong>de</strong> símbolos que <strong>de</strong>vem constar num<br />

projeto arquitetônico para prédios:<br />

Esse símbolo, ele diz apontando para o sli<strong>de</strong> na tela, significa que há acesso para ca<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong> rodas. Esse uso do termo significado <strong>de</strong>ve fazer parte da lingüística? Se você<br />

respon<strong>de</strong>u negativamente, acertou. De fato, esse uso do termo não se refere ao<br />

significado lingüístico, embora na situação o falante esteja dando o significado <strong>de</strong> um<br />

símbolo. O problema é que este símbolo não é parte <strong>de</strong> uma língua natural. Ele é um<br />

símbolo não lingüístico, embora convencional.<br />

Consi<strong>de</strong>re agora uma outra situação. A polícia está procurando um casal que se<br />

per<strong>de</strong>u numa floresta. De repente, os policiais vêem fumaça no céu e um <strong>de</strong>les diz:<br />

significa que alguém fez uma fogueira. Mais uma vez, esse uso do significado não é<br />

lingüístico, porque se está atribuindo significado a um fenômeno no mundo. É o que<br />

ocorre quando, ao notarmos que uma criança está com febre, dizemos: significa que ela<br />

está doente. Veja que não se está esclarecendo o significado da palavra ‘febre’, mas o<br />

que ter febre no mundo po<strong>de</strong> estar indicando. A febre é um sinal <strong>de</strong> doença, mas não<br />

significa, lingüisticamente falando, doença. Em nenhum dos casos questiona-se sobre o<br />

significado <strong>de</strong> expressões lingüísticas; por isso eles não fazem parte do campo da<br />

semântica, cujo estudo se restringe ao significado lingüístico, isto é, aquele veiculado<br />

pelas línguas naturais.<br />

Chegamos, então, a um primeiro quadro, separando o significado lingüístico do<br />

significado não-lingüístico, para nos concentrarmos no significado lingüístico, isto é,<br />

aquele que ocorre nas línguas naturais.<br />

5


Significado Lingüístico x Significado Não-Lingüístico<br />

(veiculado através <strong>de</strong> uma língua natural)<br />

1.2 O Significado Lingüístico<br />

Convencionais x Não Convencionais<br />

(Natural)<br />

PARE<br />

Febre = Doença<br />

Uma primeira constatação é que não basta separar o significado lingüístico do<br />

significado não lingüístico para <strong>de</strong>limitar o campo da semântica, porque o significado<br />

lingüístico recobre áreas que não pertencem a essa disciplina; em particular a<br />

pragmática é uma disciplina da lingüística que estuda o significado lingüístico.<br />

Consi<strong>de</strong>re a seguinte situação discursiva: a Maria é a empregada <strong>de</strong> Joana. Ambas<br />

sabem que a roupa está estendida no varal. De repente, Joana profere (1):<br />

(1) Tá chovendo.<br />

A Maria mais que <strong>de</strong>pressa sai correndo para tirar a roupa do varal, enquanto ela diz:<br />

(2) Já tô indo tirar a roupa do varal.<br />

Veja que os atos <strong>de</strong> Maria, inclusive o ato lingüístico, não respon<strong>de</strong>m diretamente à<br />

sentença que Joana proferiu, mas <strong>de</strong>correm <strong>de</strong>la. Se atentarmos apenas para o<br />

significado da sentença, notamos que a Joana afirma que no momento em que ela<br />

profere a sentença é o caso que está chovendo e nada mais. Ela não pe<strong>de</strong> explicitamente<br />

para que a Maria recolha a roupa do varal. Mas é possível “<strong>de</strong>duzir” que foi isso que a<br />

Joana quis dizer se contextualizarmos a fala <strong>de</strong> Joana; isto é se atentarmos para outros<br />

elementos dados pela situação e que constituem o proferimento lingüístico: Joana e<br />

Maria sabem que a roupa está no varal, que Maria é a empregada, logo que é ela quem<br />

6


<strong>de</strong>ve cuidar dos afazeres da casa, que chuva molha a roupa, que o que a Joana disse é<br />

verda<strong>de</strong> (a Joana não está brincando),... Essas informações constituem o fundo<br />

conversacional no qual o proferimento <strong>de</strong> Maria se realiza e ele permite um raciocínio<br />

inferencial como: dada a situação, se a Joana disse que está chovendo é porque ela quer<br />

que eu tire a roupa do varal. Tanto a resposta quanto os atos <strong>de</strong> Maria mostram que ela<br />

enten<strong>de</strong>u o pedido indireto <strong>de</strong> Joana. Esse significado é também lingüístico, porque ele<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do que foi dito na situação, mas ele não é propriamente semântico, porque ele<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um cálculo inferencial a partir do significado da sentença, este sim objeto da<br />

semântica.<br />

Vejamos uma outra situação. Cláudia é a mãe <strong>de</strong> Pedro que está se preparando<br />

para sair para a escola. Ela nota que ele não está levando nem capa <strong>de</strong> chuva, nem<br />

guarda-chuva e ela sabe que está chovendo. Então, ela profere:<br />

(3) Tá chovendo.<br />

A fala da mãe leva Pedro a pegar o guarda-chuva antes <strong>de</strong> sair. A sentença em (3) diz<br />

exatamente o mesmo que a sentença em (1): no momento em que o falante profere a<br />

sentença é o caso que está chovendo. Mas as inferências mudaram, porque o fundo<br />

conversacional em que se dá a interação lingüística mudou. Nesse caso, os elementos na<br />

situação direcionam um outro raciocínio: Se a minha mãe disse que está chovendo é<br />

porque ela quer que eu leve o guarda-chuva.<br />

Tente imaginar uma outra situação em que o proferimento da sentença ‘Tá<br />

chovendo’ dispare uma outra interpretação inferencial. Eis alguns casos que você po<strong>de</strong><br />

explorar: pedido <strong>de</strong> carona, recusa para ir a algum lugar, convite para ficar em casa...<br />

Assim, mesmo restringindo a noção <strong>de</strong> significado para significado lingüístico<br />

po<strong>de</strong>mos ainda separar dois níveis <strong>de</strong> significado: um que está atrelado ao significado<br />

da sentença, a uma composição estrita do significado das palavras, e outro que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

do significado da sentença mais informações sobre a situação em que a sentença é<br />

proferida. Essa é a distinção entre o significado da sentença e o significado do falante,<br />

respectivamente. A semântica é o estudo do significado da sentença, enquanto cabe à<br />

pragmática o estudo do significado do falante.<br />

Não é difícil encontrar na literatura a distinção entre significado da sentença e<br />

significado do falante sendo estabelecida através da ausência ou presença do contexto<br />

para o cálculo do significado. Algo como: a semântica estuda o significado fora do<br />

7


contexto (“fora <strong>de</strong> uso”). No entanto, é preciso tomar cuidado com essa <strong>de</strong>finição<br />

porque a interpretação do sentido da sentença requer levar em consi<strong>de</strong>ração o contexto,<br />

a situação <strong>de</strong> fala. Por exemplo, o significado da sentença em (1) e em (3) é: no<br />

momento em que a sentença é proferida é o caso que está chovendo. Assim, essa<br />

sentença é verda<strong>de</strong>ira somente se quando o falante a profere é o caso que está chovendo.<br />

Note que incorporamos nessa <strong>de</strong>scrição o contexto, sem, no entanto, <strong>de</strong>ixar o plano do<br />

estabelecimento do significado da sentença.<br />

Vejamos um outro exemplo. A sentença:<br />

(4) Eu estou com fome.<br />

Significa que o falante, no momento em que profere a sentença, está num estado <strong>de</strong><br />

fome. Num dado momento, ela po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira na boca <strong>de</strong> um falante e falsa, na <strong>de</strong><br />

outro falante. Ou ela po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira para um falante num momento e falsa para o<br />

mesmo falante em outro momento. Sem levarmos em consi<strong>de</strong>ração o contexto, não há<br />

como estabelecer plenamente o significado <strong>de</strong>ssa sentença (e da maior parte das<br />

sentenças nas línguas naturais).<br />

Uma maneira mais segura <strong>de</strong> separar a semântica da pragmática é através da<br />

noção <strong>de</strong> intenção do falante: a pragmática busca reconstruir o que o falante quis dizer<br />

ao proferir uma sentença, qual era a sua intenção comunicativa 1 ; enquanto que a<br />

semântica tem como objetivo reconstruir o sentido da sentença. Ambas remetem ao<br />

contexto, mas o fazem com finalida<strong>de</strong>s distintas. À pragmática cabe o estudo das<br />

implicaturas, isto é, das inferências disparadas pelo uso <strong>de</strong> uma dada sentença num certo<br />

fundo conversacional; ao passo que à semântica cabe explicitar em que condições<br />

aquela sentença é usada para expressar o verda<strong>de</strong>iro. Consi<strong>de</strong>re a seguinte sentença:<br />

(5) Muitos alunos tiraram 10 na prova.<br />

Um falante, ao proferir essa sentença, implica que não foram todos os alunos que<br />

tiraram 10. Semanticamente, a sentença é verda<strong>de</strong>ira se foram muitos que tiraram 10 na<br />

prova. Note que se todos os alunos tiraram 10, a sentença é verda<strong>de</strong>ira. É por isso que a<br />

1 É importante notar que se trata <strong>de</strong> intenção comunicativa, isto é, o falante quer que o ouvinte perceba<br />

sua intenção ao proferir uma dada sentença. Há, evi<strong>de</strong>ntemente, outras intenções para além da<br />

comunicativa, mas essas não pertencem ao domínio da lingüística.<br />

8


informação <strong>de</strong> que nem todos tiraram 10 na prova é uma implicatura. Como o falante<br />

faz essa implicatura? Se adotarmos o mo<strong>de</strong>lo conversacional <strong>de</strong> Grice (1975),<br />

enten<strong>de</strong>mos que o falante é cooperativo, isto é, ele quer ser entendido. Eis a formulação<br />

<strong>de</strong>sse princípio em Grice: “Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida,<br />

no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional<br />

em que você está engajado.” (86) Se o falante soubesse que foram todos os alunos que<br />

tiraram 10 na prova, ele <strong>de</strong>veria ter dito isso, já que ele é cooperativo e essa informação<br />

é mais precisa do que a informação em (5). Se ele não o fez é porque ele não tem<br />

evidências <strong>de</strong> que é esse o caso, logo ele está implicando que não foram todos.<br />

Você po<strong>de</strong> estar dizendo: Mas que não foram todos não é dito? A sentença em<br />

(5) não diz que não foram todos, já que ela diz que foram muitos? Não, ela não diz isso.<br />

Po<strong>de</strong> parecer um pouco estranha essa afirmação <strong>de</strong> que a sentença em (5) não diz que<br />

não foram todos. Este é um exemplo do que Grice chamou <strong>de</strong> implicatura convencional,<br />

isto é, uma implicatura que ocorre sistematicamente, a menos que ela seja cancelada.<br />

Mas já vimos que o significado da sentença é apenas que muitos tiraram 10 e isso é<br />

verda<strong>de</strong> se todos tiraram 10. Além disso, o significado que po<strong>de</strong> ser cancelado não é<br />

semântico, mas uma implicatura e veja que po<strong>de</strong>mos cancelar que nem todos tiraram 10.<br />

Consi<strong>de</strong>re a situação abaixo:<br />

(6) Muitos alunos tiraram 10. Na verda<strong>de</strong>, todos.<br />

A sentença em (6) é muito tranqüila; não é uma contradição. Veja que nela a idéia <strong>de</strong><br />

que não foram todos os alunos é cancelada. Por isso esse significado é uma implicatura.<br />

A relação entre semântica e pragmática é bastante estreita e as questões<br />

levantadas pela pragmática requerem um estudo a parte. Nosso interesse é apenas<br />

separar o domínio da semântica. A discussão acima <strong>de</strong>ve ter permitido enten<strong>de</strong>r o<br />

seguinte quadro:<br />

<strong>Semântica</strong> Pragmática<br />

Significado da Sentença (SS) Significado do falante (SF)<br />

O que a sentença diz O que o falante quer dizer com a<br />

sentença que ele profere<br />

Implicaturas (Grice 1975)<br />

1.Crie um exemplo em que o sentido da sentença não coinci<strong>de</strong> com o sentido do falante.<br />

Explique o mais <strong>de</strong>talhadamente que você conseguir a passagem do SS para o SF.<br />

2.A sentença<br />

(1) João casou e teve filhos.<br />

Veicula uma or<strong>de</strong>m nos eventos: primeiro João casou e <strong>de</strong>pois teve filhos. Compare com:<br />

9


2. O Conhecimento Semântico <strong>de</strong> um Falante<br />

Já sabemos que o campo da semântica é o significa lingüístico da sentença. Sua<br />

pergunta básica é: o que um falante (<strong>de</strong> uma língua natural) sabe quando sabe o sentido<br />

<strong>de</strong> uma sentença qualquer <strong>de</strong> sua língua? Respon<strong>de</strong>r a essa pergunta é construir uma<br />

teoria sobre um tipo particular <strong>de</strong> conhecimento: o conhecimento que um falante tem do<br />

significado das sentenças (e palavras) <strong>de</strong> sua língua. Evi<strong>de</strong>ntemente, esse conhecimento<br />

é implícito, isto é, o falante tem esse conhecimento e o utiliza nas suas interações<br />

cotidianas, mas não sabe <strong>de</strong>screvê-lo, não o conhece conscientemente. Ele é como o<br />

conhecimento implícito que temos e que nos permite andar <strong>de</strong> bicicleta: sabemos andar<br />

<strong>de</strong> bicicleta, mas são poucos os que sabem os passos todos que permitem que an<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong> bicicleta. O mesmo ocorre com o conhecimento que temos do significado das<br />

sentenças: sabemos o que as sentenças da nossa língua significam, mas não sabemos<br />

<strong>de</strong>screver e explicar cientificamente esse conhecimento. Este é o objetivo do<br />

semanticista: <strong>de</strong>screver e explicar esse conhecimento. Uma investigação paralela e que<br />

tem recebido cada vez mais atenção, mas sobre a qual nada diremos nesse manual, é:<br />

como o falante adquire esse saber? Como é que a criança apren<strong>de</strong> a atribuir significado<br />

para sentenças <strong>de</strong> sua língua?<br />

Neste manual, vamos enfrentar, parcialmente, a primeira questão: o que um<br />

falante sabe quando sabe o significado <strong>de</strong> uma sentença qualquer <strong>de</strong> sua língua?<br />

Certamente, ele sabe em que condições uma sentença qualquer <strong>de</strong> sua língua é<br />

10


verda<strong>de</strong>ira. Ele também sabe compor e interpretar sentenças que nunca ouviu antes.<br />

Finalmente, ele sabe <strong>de</strong>duzir <strong>de</strong> uma sentença outras sentenças. Antes <strong>de</strong> lidar<br />

especificamente com cada um <strong>de</strong>sses conhecimentos, vamos exemplificá-los<br />

rapidamente. Suponha que alguém peça para você dizer o que a sentença em (1)<br />

significa. Você certamente sabe a resposta e uma maneira muito freqüente <strong>de</strong> explicar é<br />

dizer quando a sentença em (1) é verda<strong>de</strong>ira: a sentença em (1) significa que está<br />

chovendo quando o falante a profere. Esse seu conhecimento não se restringe,<br />

obviamente, a essa sentença, mas a qualquer outra; até mesmo a uma sentença que você<br />

nunca ouviu antes. Com toda certeza, você nunca ouviu ou leu a sentença abaixo:<br />

(7) Uma nuvem alaranjada tomou <strong>de</strong>vagarzinho o quarto <strong>de</strong> Sara.<br />

Mas você não tem qualquer problema em imaginar como o mundo <strong>de</strong>ve ser para que ela<br />

seja verda<strong>de</strong>ira, certo? Como você sabe isso? Ora, você sabe o que as palavras em (7)<br />

significam e sabe combiná-las, por isso você po<strong>de</strong> interpretar um número infinito <strong>de</strong><br />

sentenças. Veja que se você sabe que a sentença em (7) é verda<strong>de</strong>ira, você sabe outras<br />

sentenças:<br />

(8) Há um único quarto que é <strong>de</strong> Sara.<br />

(9) O evento ocorreu no passado.<br />

Esse outro conhecimento é <strong>de</strong>rivado do fato <strong>de</strong> que você enten<strong>de</strong>u a sentença em (7).<br />

Assim, quando sabemos o significado <strong>de</strong> uma sentença, sabemos, inevitavelmente, o<br />

significado <strong>de</strong> muitas outras sentenças que estão “enredadas” nela.<br />

2.1 Condições <strong>de</strong> Verda<strong>de</strong><br />

Como dissemos, um primeiro aspecto do conhecimento que um falante tem<br />

sobre o significado das sentenças que uma teoria semântica <strong>de</strong>ve capturar é o fato <strong>de</strong><br />

que ele sabe em que condições o mundo está para que a sentença seja verda<strong>de</strong>ira. É por<br />

isso que na semântica se afirma que o significado <strong>de</strong> uma sentença são as suas<br />

condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Sublinhe-se que se trata <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, isto é, o falante<br />

po<strong>de</strong> não saber se a sentença é efetivamente verda<strong>de</strong>ira ou falsa; o que interessa é que<br />

ele com certeza sabe em que condições ela po<strong>de</strong> receber um ou outro valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>:<br />

11


o verda<strong>de</strong>iro e o falso. Por exemplo, po<strong>de</strong>mos dizer precisamente em que condições a<br />

sentença em (10) po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira (suas condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>) sem que possamos<br />

verificar se ela <strong>de</strong> fato é verda<strong>de</strong>ira:<br />

(10) Tem 531 insetos no meu jardim neste momento.<br />

A semântica não lida com o uso da sentença, mas com a sentença em sua potencialida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uso.<br />

As condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> expressam o conhecimento mínimo que um falante tem<br />

quando ele sabe o que a sentença significa: o potencial <strong>de</strong> usa <strong>de</strong>ssa sentença. O mínimo<br />

que ele sabe, se ele enten<strong>de</strong> uma sentença, é separar o mundo em dois blocos: <strong>de</strong> um<br />

lado, as situações em que a sentença é verda<strong>de</strong>ira; <strong>de</strong> outro, aquelas em que ela é falsa.<br />

Ao ouvir a sentença em (1), ‘tá chovendo’, um falante do PB <strong>de</strong>limita dois “esboços” <strong>de</strong><br />

mundo:<br />

não (tá chovendo) – (1) é falsa tá chovendo – (1) é verda<strong>de</strong>ira<br />

<br />

<br />

<br />

O falante sabe que a sentença em (1) é falsa nos mundos à direita do quadro; e é<br />

verda<strong>de</strong>ira nos mundos à esquerda. É nesse sentido que uma sentença <strong>de</strong>senha um<br />

esboço <strong>de</strong> como o mundo <strong>de</strong>ve ser para que ela seja verda<strong>de</strong>ira, o que significa que ela<br />

também <strong>de</strong>senha os mundos em que é falsa. Assim, uma sentença estabelece uma<br />

relação entre linguagem e estados <strong>de</strong> mundo (ou mundos), 2 <strong>de</strong>ixando espaço para muita<br />

vagueza e in<strong>de</strong>terminação, dois fenômenos semânticos bem interessantes.<br />

O significado <strong>de</strong> uma sentença é sempre (e necessariamente) in<strong>de</strong>terminado,<br />

precisamente porque ele recobre inúmeras situações (no nosso exemplo, situações em<br />

que está uma chuva fraca, chuva com sol, chuva forte, chuvinha,...). A in<strong>de</strong>terminação<br />

<strong>de</strong>ve ser distinguida da vagueza, o fato <strong>de</strong> que muitas vezes não temos certeza se a<br />

sentença é verda<strong>de</strong>ira ou não em uma dada situação. Por exemplo, se no momento em<br />

2<br />

Ao dissermos isso estamos assumindo, sem discutir, uma vertente referencial do significado. Mais sobre<br />

o tema ao longo <strong>de</strong>ste manual.<br />

12


que (1) é proferida falante e ouvinte estão numa situação em que está uma chuvinha<br />

bem fininha po<strong>de</strong>ria ser difícil <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir se está ou não chovendo. Estamos, nessa<br />

situação, num caso limite em que tanto é possível afirmar que está chovendo, quanto<br />

que não está. Você diria que a cor da palavra ‘vermelho’ a seguir vermelho é vermelha?<br />

Ficar em dúvida mostra que o conceito <strong>de</strong> vermelho é vago, há casos em que não<br />

sabemos direito se po<strong>de</strong>mos dizer que é mesmo vermelho; alguns vão dizer que sim,<br />

outros que não. A in<strong>de</strong>terminação vem do fato <strong>de</strong> que uma mesma sentença é verda<strong>de</strong>ira<br />

em muitas situações diferentes, sem que o falante tenha dúvida sobre se a sentença se<br />

aplica ou não à situação. 3 Por exemplo, estamos numa situação que nenhum <strong>de</strong> nós tem<br />

dúvida sobre se está ou não chovendo; estamos <strong>de</strong> acordo que está chovendo. Mas são<br />

inúmeras as situações em que isso ocorre: está chovendo e frio; está chovendo e calor;<br />

está chovendo forte, muito forte, é uma tempesta<strong>de</strong>,...<br />

O significado <strong>de</strong> uma sentença estabelece, então, em que condições no mundo<br />

ela é verda<strong>de</strong>ira e, portanto, em que condições ela é falsa. Esse mo<strong>de</strong>lo permite<br />

enten<strong>de</strong>rmos como se dá a troca <strong>de</strong> informação através da linguagem. Suponha que um<br />

amigo seu telefona <strong>de</strong> São Paulo e pergunta:<br />

(11) Como está o tempo aí?<br />

Bom, ‘aí’ é um dêitico, isto é, uma expressão lingüística cujo significado só é<br />

plenamente <strong>de</strong>terminado (interpretado) se se levar em consi<strong>de</strong>ração a situação <strong>de</strong> fala.<br />

Trata-se assim <strong>de</strong> um elemento variável cuja interpretação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do contexto: se o<br />

ouvinte está em Salvador, ‘aí’ significa Salvador; se ele está em Manaus, significa<br />

Manaus e assim por diante. Os exemplos claros <strong>de</strong> dêiticos são os pronomes pessoais,<br />

como ‘eu’ e ‘você’: quando eu falo o ‘eu’ refere-se a mim que sou o falante e o ‘você’<br />

refere-se ao ouvinte, você; quando você fala, o ‘você’ passa a ser eu e o ‘eu’ passa a ser<br />

você. Confundiu? Então leia atentamente prestando atenção na presença e ausência <strong>de</strong><br />

aspas simples que indicam a língua-objeto, isto é, a língua que estamos explicando.<br />

Suponha que o ouvinte, a quem foi en<strong>de</strong>reçada a pergunta em (11), está em<br />

Florianópolis. Nesse caso, ‘aí’ significa Florianópolis, o lugar on<strong>de</strong> o ouvinte está.<br />

Logo, o falante pergunta sobre o tempo em Florianópolis, uma informação que o<br />

ouvinte tem, já que ele está em Florianópolis. Se o falante não sabe como está o tempo<br />

3 Ver Pires <strong>de</strong> Oliveira, Basso e Men<strong>de</strong>s e Souza (2006) para uma caracterização mais precisa da<br />

diferença entre vagueza e in<strong>de</strong>terminação.<br />

13


em Florianópolis, então seu estado <strong>de</strong> conhecimento inclui mundos em que chove em<br />

Florianópolis e mundos em que não chove em Florianópolis; é por isso mesmo que ele<br />

faz a pergunta sobre o tempo. Ao ouvir (1) como resposta, há uma mudança no estado<br />

<strong>de</strong> conhecimento do falante: agora ele sabe sobre o tempo em Florianópolis, ou seja, ele<br />

consegue <strong>de</strong>limitar, ao interpretar a sentença, o conjunto <strong>de</strong> mundos em que é verda<strong>de</strong><br />

que chove em Florianópolis no momento em que ele está.<br />

A maneira mais usual na semântica <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o fato <strong>de</strong> que o falante sabe em<br />

que condições uma sentença é verda<strong>de</strong>ira é utilizar o famoso Teorema-T (T <strong>de</strong> Tarski,<br />

1944):<br />

A sentença ‘Tá chovendo’ é verda<strong>de</strong>ira em Português Brasileiro se e somente se<br />

(abreviado sse) está chovendo no momento em que a sentença é proferida.<br />

Uma sentença-T po<strong>de</strong> parecer trivial, mas ela não é e é preciso enten<strong>de</strong>r o que está por<br />

trás <strong>de</strong>ssa sentença. Uma sentença-T expressa um conhecimento: o conhecimento sobre<br />

o significado da sentença. A impressão <strong>de</strong> trivialida<strong>de</strong> se explica porque tanto a língua<br />

objeto, aquela que queremos explicar (e que sempre aparece marcada formalmente,<br />

através das aspas simples), quanto a metalinguagem, a linguagem que utilizamos para<br />

explicar a língua objeto, isto é, para estabelecer as condições em que o mundo <strong>de</strong>ve<br />

estar para que a sentença seja verda<strong>de</strong>ira, são o português. Mas compare:<br />

(12) A sentença ‘ja ljublju tebja’ é verda<strong>de</strong>ira em russo se e somente se o<br />

falante ama o ouvinte no momento <strong>de</strong> fala.<br />

Nesse caso, a sentença-T parece menos trivial, porque a língua objeto é o russo e damos<br />

sua condição <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> usando o português como metalinguagem.<br />

A língua objeto não está sendo efetivamente usada, mas apenas mencionada;<br />

enquanto que usamos a metalinguagem. Suponha, por exemplo, a sentença ‘eu te amo’.<br />

Se ela é efetivamente usada o falante se compromete com o que ela diz, isto é, o falante<br />

está expressando o que sente com relação ao ouvinte. Mas veja que neste manual não<br />

estamos usando essa sentença, não estou expressando meu amor por você, leitor, que,<br />

aliás, eu nem sei quem é. O que ocorre neste manual é que mencionamos a sentença,<br />

tratamos <strong>de</strong>la como um objeto teórico, “fora <strong>de</strong> uso”, para tentarmos enten<strong>de</strong>r o<br />

significado que ela tem em uso. Já as palavras e sentenças na metalinguagem estão<br />

14


sendo usadas, isto é, utilizamos o conhecimento implícito sobre seu significado para<br />

explicar a língua-objeto; a metalinguagem remete ao mundo ou a um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mundo.<br />

Sinta a diferença entre ‘lua’ e lua. No primeiro caso, estamos falando sobre a palavra<br />

lua, enquanto no segundo estamos usando lua para nos referirmos ao objeto lua no<br />

mundo. A sentença em (13) faz sentido, a sentença em (14) não:<br />

(13) ‘Lua’ tem três letras.<br />

(14) Lua tem três letras.<br />

É por isso que a sentença em (15) expressa um conhecimento:<br />

(15) ‘Lua’ em português significa lua.<br />

1. Quais as condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> da sentença ‘João é casado’?<br />

2. Não é raro as crianças brincarem com uso e menção. Explique, através<br />

<strong>de</strong>sses conceitos, os diálogos abaixo:<br />

A. - Você sabe falar alemão?<br />

- Eu não. Você sabe?<br />

- Sei. Alemão.<br />

B. - Diz tatu bola, paca não.<br />

- Tatu bola, paca não.<br />

- Não, diz tatu bola, paca não.<br />

- Ah, tatu bola.<br />

3. A sentença em (1) está sendo usada neste manual? Explique a sua resposta.<br />

2.2 Composicionalida<strong>de</strong><br />

A segunda proprieda<strong>de</strong> que constitui o conhecimento semântico <strong>de</strong> um falante e<br />

que, portanto, <strong>de</strong>ve ser apreendida por uma teoria do significado lingüístico, é a<br />

composicionalida<strong>de</strong>. Quando um falante sabe o significado <strong>de</strong> uma sentença ele sabe<br />

não apenas suas condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, ele sabe também “compô-la” e “<strong>de</strong>compô-la”.<br />

15


Se o falante enten<strong>de</strong> a sentença em (1), ele sabe o significado <strong>de</strong> ‘estar’ e ‘chovendo’ e,<br />

na verda<strong>de</strong>, sabe que ‘chovendo’ se <strong>de</strong>compõe em ‘chov(e)-` e ‘-ndo’. Sabe ainda que<br />

essas “unida<strong>de</strong>s” mantêm o mesmo significado em infinitas sentenças em que elas<br />

po<strong>de</strong>m ocorrer. Por exemplo, veja que ‘chov(e)-` dá a mesma contribuição nos<br />

diferentes contextos em que aparece 4 :<br />

(16) a. Vai chover.<br />

b. Choveu ontem.<br />

c. Po<strong>de</strong>ria chover.<br />

Sabe ainda qual é a contribuição do progressivo, representado em (1) pela<br />

perífrase verbal ‘estar V+ndo’ (‘estou cantando’, ‘está falando’). Ele sabe que no<br />

contexto em que (1) é proferida, a perífrase indica progressivida<strong>de</strong>, isto é, o evento<br />

<strong>de</strong>scrito, o evento <strong>de</strong> chuva, está ocorrendo simultaneamente ao momento <strong>de</strong> fala, como<br />

aparece no esquema abaixo,<br />

momento <strong>de</strong> fala<br />

chove<br />

Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que a composicionalida<strong>de</strong> expressa o fato <strong>de</strong> que um falante<br />

sabe compor o significado <strong>de</strong> uma sentença a partir do significado <strong>de</strong> partes mínimas,<br />

isto é, o significado <strong>de</strong> uma expressão mais complexa é o resultado <strong>de</strong> uma composição<br />

<strong>de</strong> suas partes. No caso <strong>de</strong> (1), o falante “soma” o significado <strong>de</strong> ‘chov(e)-` mais o<br />

significado da perífrase ‘estar + -ndo’.<br />

A composicionalida<strong>de</strong> explica a criativida<strong>de</strong>, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estarmos a todo<br />

instante construindo e interpretando sentenças que nunca ouvimos antes. É muito<br />

provável que nenhum <strong>de</strong> vocês encontrou antes a sentença abaixo, mas nenhum <strong>de</strong> nós<br />

tem qualquer problema em interpretá-la, isto é, todos nós sabemos em que mundos ela é<br />

verda<strong>de</strong>ira:<br />

4<br />

De passagem, um falante também sabe que o significado <strong>de</strong> chover está relacionado com chuva, entre<br />

outros.<br />

16


(17) O gato azul está <strong>de</strong> ponta-cabeça.<br />

Essa sentença é verda<strong>de</strong>ira em todos os mundos em que há um único gato saliente no<br />

contexto e esse gato é azul e ele está <strong>de</strong> ponta-cabeça. Não temos problema algum para<br />

interpretá-la, porque conhecemos o significado <strong>de</strong> cada um dos termos que a compõem.<br />

Chomsky (1957, Syntactic Structures) foi um dos primeiro, na lingüística, a<br />

chamar atenção para o fato <strong>de</strong> que os falantes são criativos, porque produzem e<br />

interpretam sentenças que nunca ouviram antes. Este fato, aparentemente tão trivial,<br />

refutou tanto as teorias comportamentais da aprendizagem (que acreditam que as<br />

línguas humanas são aprendidas por estímulo e resposta) quanto as teorias<br />

estruturalistas sobre a linguagem humana (que entendiam que a linguagem era um<br />

conjunto “fechado” <strong>de</strong> sentenças). Chomsky mostra que a linguagem é aberta, infinita,<br />

in<strong>de</strong>terminada, mas previsível no sentido <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos “calcular” o novo, porque<br />

sabemos “construir” sentenças a partir do significado <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s mínimas (átomos) e<br />

regras <strong>de</strong> combinação, que são recursivas, isto é, se aplicam reiteradamente, em<br />

diferentes situações.<br />

Em (1), combinamos o significado <strong>de</strong> ‘chov(e)-` com o significado do<br />

progressivo, através <strong>de</strong> uma regra que permite combinar radicais verbais com a perífrase<br />

do progressivo, ‘estar –ndo’. Essa regra <strong>de</strong> combinação é a mesma que recorre em<br />

inúmeras outras sentenças da língua (como em ‘está nevando’, ‘está chuviscando’, ‘está<br />

amando’, ‘está falando’...).<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, um dos problemas que o semanticista enfrenta é <strong>de</strong>terminar<br />

quais são as unida<strong>de</strong>s mínimas e como elas são adquiridas pelo falante. A <strong>de</strong>terminação<br />

das unida<strong>de</strong>s mínimas para constituir o léxico <strong>de</strong> uma língua é uma tarefa bastante<br />

complexa e que se dá na interface com a morfologia. Consi<strong>de</strong>re, por exemplo, a<br />

sentença:<br />

(18) O João saiu apressado.<br />

Certamente, o léxico <strong>de</strong>ve conter um item para sair, uma raiz como ‘sa(i)-`, que se<br />

combina com diferentes flexões, cada uma <strong>de</strong>las conglomerando significados: ‘-u’<br />

indica 3 pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo. Compare com:<br />

(19) O João saia apressado.<br />

17


(18) e (19) não têm o mesmo significado e a diferença, neste caso, está no aspecto: o<br />

primeiro é perfectivo; o segundo, imperfectivo. Voltaremos ao aspecto no módulo 3.<br />

Veja que no léxico estão o radical e os sufixos tempo-aspectuais. Já ‘apressado’ é mais<br />

complicado: vamos colocá-lo no léxico nessa forma ou será que no léxico <strong>de</strong>ve aparecer<br />

apenas ‘pressa’ e ‘apressado’ ser gerado via uma regra <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação morfológica? Não<br />

vamos enfrentar essa problemática neste manual, porque nosso interesse é apresentar os<br />

conceitos básicos da semântica e enten<strong>de</strong>r os seus problemas. Bastamos a idéia <strong>de</strong> que<br />

há unida<strong>de</strong>s mínimas e regras recursivas para combiná-las. Esses dois ingredientes<br />

permitem explicar como enten<strong>de</strong>mos sentenças que nunca ouvimos antes.<br />

Quais são os átomos da sentença ‘O menino está triste’? O que significa cada um<br />

<strong>de</strong>les? Compare com ‘O menino é triste’.<br />

2.3 Trama <strong>Semântica</strong><br />

A terceira proprieda<strong>de</strong> que caracteriza o conhecimento semântico <strong>de</strong> um falante<br />

é sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>duzir sentenças <strong>de</strong> outras sentenças. O falante não sabe apenas<br />

em que condições uma sentença é verda<strong>de</strong>ira e (<strong>de</strong>)compô-la, ele sabe outras sentenças<br />

quando ele sabe uma sentença. Por exemplo, suponha que a sentença em (1) seja<br />

verda<strong>de</strong>ira (ou que ela seja consi<strong>de</strong>rada verda<strong>de</strong>ira). Neste caso, o falante também sabe<br />

que a sentença em (20) é falsa, que a sentença em (21) é verda<strong>de</strong>ira:<br />

(20) Não está chovendo.<br />

(21) Está caindo chuva.<br />

Se (1) for falsa, obtemos um resultado oposto e completamente previsível: (20) é<br />

verda<strong>de</strong>ira e (21) é falsa. Sabemos isso simplesmente porque enten<strong>de</strong>mos o que uma<br />

sentença significa e esse entendimento envolve conhecer outras sentenças que estão<br />

semanticamente relacionadas a ela.<br />

O par (1) e (20) exemplifica um caso <strong>de</strong> contradição: se (1) é verda<strong>de</strong>ira, (20)<br />

tem que ser (necessariamente) falsa e vice-versa. Em outros termos, suponha que A e B<br />

são sentenças quaisquer <strong>de</strong> uma língua, uma contradição ocorre quando:<br />

se A é V, B é F (e vice-versa).<br />

18


Sentenças contraditórias são sentenças que não po<strong>de</strong>m ser simultaneamente verda<strong>de</strong>iras:<br />

se está chovendo não po<strong>de</strong> ser o caso que não está chovendo (e vice-versa). Você po<strong>de</strong><br />

replicar o seguinte: mas às vezes a gente diz ‘tá e não tá chovendo’. É verda<strong>de</strong>, mas, em<br />

geral, esses são casos em que o falante está criando uma implicatura ou casos <strong>de</strong> limites<br />

vagos para os quais não há certeza sobre o uso da sentença. Em geral, é muito estranho<br />

afirmar contradições como ‘João é e não é homem’ e, por isso mesmo, elas ten<strong>de</strong>m a<br />

disparar implicaturas: o que o falante quer ao proferir uma sentença contraditória é<br />

implicar que algumas características do predicado se aplicam, enquanto outras não se<br />

aplicam. Assim, ao proferir a contradição acima o falante está implicando que em<br />

alguns aspectos João é homem e em outros não. Mas essa é uma maneira <strong>de</strong> resolver a<br />

contradição.<br />

A relação entre (1) e (21) é, ao mesmo tempo, <strong>de</strong> acarretamento e <strong>de</strong> sinonímia,<br />

que nada mais é do que um duplo acarretamento (o acarretamento em mão dupla). Uma<br />

sentença acarreta outra se em todos os contextos em que ela é verda<strong>de</strong>ira a outra<br />

sentença também é verda<strong>de</strong>ira, por isso dizemos que se há acarretamento uma sentença<br />

se segue necessariamente da outra. Por exemplo, se está chovendo, então é certo que<br />

está caindo chuva, afinal não é possível imaginar uma situação que esteja chovendo sem<br />

que caia chuva do céu (<strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> lado os usos metafóricos envolvendo ‘chover’, como<br />

por exemplo ‘está chovendo pétalas <strong>de</strong> rosa’; eles po<strong>de</strong>m ser explicados como<br />

implicaturas). Note ainda que a sentença em (21) acarreta a sentença em (1): se está<br />

caindo chuva, então está chovendo. Quando há duplo acarretamento, temos sinonímia.<br />

Acarretamento: Se A é V, então B é necessariamente V.<br />

Sinonímia: A acarreta B e B acarreta A.<br />

Note que a relação <strong>de</strong> acarretamento supõe uma “direcionalida<strong>de</strong>”: se A é V, então B é<br />

necessariamente V. A sinonímia é o acarretamento <strong>de</strong> mão dupla, porque ele vale nas<br />

duas direções. Mas nem sempre acontece <strong>de</strong> termos o duplo acarretamento. Por<br />

exemplo, a sentença em (22) acarreta a sentença em (23), mas o contrário não é<br />

verda<strong>de</strong>iro, logo não há sinonímia:<br />

(22) João preparou o almoço.<br />

(23) João fez algo.<br />

19


É claro que os mundos em que João cozinhou o almoço são mundos em que ele fez algo<br />

(há, portanto, acarretamento <strong>de</strong> (22) para (23)), mas os mundos em que João fez algo<br />

incluem outros mundos além daqueles em que João preparou o almoço, por exemplo<br />

mundos em que ele fez o jantar, mundos em que ele saiu <strong>de</strong> casa, em que ele levantou...<br />

(portanto (23) não acarreta (22)). Veja o gráfico <strong>de</strong> acarretamento abaixo, os balões<br />

indicam conjuntos <strong>de</strong> mundos: o conjunto <strong>de</strong> mundos em que a sentença em (22) é<br />

verda<strong>de</strong>ira está incluído no conjunto <strong>de</strong> mundos em que (23) é verda<strong>de</strong>ira:<br />

Mundos em que João preparou o almoço.<br />

Mundos em que<br />

João fez algo<br />

Consi<strong>de</strong>re, agora, a relação entre a sentença (22) e a sentença (24) abaixo:<br />

(24) João fez o almoço.<br />

Suponha que ‘preparar o almoço’ significa ‘fazer o almoço’. 5 Logo se (22) é<br />

verda<strong>de</strong>ira, (24) também é e vice-versa. Nesse caso, o conjunto <strong>de</strong> mundos em que (22)<br />

é verda<strong>de</strong>ira coinci<strong>de</strong> exatamente com o conjunto <strong>de</strong> mundos em que (24) é verda<strong>de</strong>ira.<br />

Temos, assim, um caso <strong>de</strong> sinonímia. A figura representando o conjunto <strong>de</strong> mundos é a<br />

seguinte:<br />

5 Este é <strong>de</strong> fato o caso no meu dialeto, mas já ouvi alunos dizerem que usam ‘preparar o almoço’ para<br />

indicar apenas o início do processo cuja culminância será o almoço pronto. Neste caso, não há sinonímia<br />

entre ‘preparar o almoço’ e ‘fazer o almoço’.<br />

20


Mundos em que João preparou o<br />

almoço<br />

=<br />

Mundos em que João fez o<br />

almoço.<br />

Há outras relações entre as sentenças (muitas vezes chamadas <strong>de</strong> “nexos”<br />

semânticos) que são objeto <strong>de</strong> estudos do semanticista, por exemplo, a pressuposição, a<br />

anáfora,... Voltaremos a elas ao longo <strong>de</strong>ste curso, por enquanto você <strong>de</strong>ve ter claro o<br />

conceito <strong>de</strong> acarretamento (e o <strong>de</strong> sinonímia, que é <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong>ste).<br />

A sentença ‘João matou’ acarreta ‘João cometeu um crime’?<br />

As sentenças ‘João é mais alto que Pedro’ e ‘Pedro é mais baixo que João’<br />

são sinônimas?<br />

3. A noção <strong>de</strong> Significado<br />

Este capítulo iniciou explicando a noção <strong>de</strong> significado para a semântica. Para<br />

essa disciplina, significado se restringe ao significado que as sentenças <strong>de</strong> uma língua<br />

têm, sem levar em consi<strong>de</strong>ração a intenção do falante. Mas mesmo essa noção restrita<br />

precisa ainda ser melhor compreendida. Essa foi uma das muitas contribuições <strong>de</strong> Frege<br />

para a semântica das línguas naturais. Frege, no famoso artigo “Sobre o Sentido e a<br />

Referência” (1892, “Über Sinn und Be<strong>de</strong>utung”), mostra que é preciso distinguir facetas<br />

no conceito <strong>de</strong> significado, porque se não separamos esses aspectos não enten<strong>de</strong>mos por<br />

quê as sentenças em (25) e (26) são semanticamente distintas, tendo em vista que em<br />

ambas se estabelece uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre dois nomes próprios:<br />

(25) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.<br />

(26) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tar<strong>de</strong>.<br />

A sentença em (25) é uma sentença analítica, isto é, ela é verda<strong>de</strong>ira sempre,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> como o mundo é; não importa, portanto, que mundos estamos<br />

21


consi<strong>de</strong>rando, porque vai ser sempre o caso que a sentença em (25) é verda<strong>de</strong>ira, por<br />

isso ela não é informativa. Note que em (25) se estabelece uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre o<br />

mesmo nome próprio. Um outro exemplo seria: ‘O João é o João’. 6<br />

Na sentença em (26) se estabelece uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre nomes diferentes; como<br />

em ‘O João é o João Paulo’. Nesse caso, temos uma sentença informativa: suponha que<br />

você sabe quem é o João, mas não sabe quem é o João Paulo; ao ouvir que ‘O João é o<br />

João Paulo’ você apren<strong>de</strong>u algo novo, que o João têm dois nomes: ‘João’ e ‘João<br />

Paulo’. É claro que a verda<strong>de</strong> (ou a falsida<strong>de</strong>) da sentença em (26) <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> como o<br />

mundo é. Não é necessário que o João tenha os nomes ‘João’ e ‘João Paulo’; há vários<br />

mundos em que isso não ocorre. O mesmo se aplica a sentença em (26): que ‘Estrela da<br />

Manhã’ e ‘Estrela da Tar<strong>de</strong>’ sejam dois nomes para um mesmo objeto no mundo é algo<br />

contingente (e não necessário). Há muitos mundos em que esses dois nomes referem-se<br />

a objetos diferentes. Sentenças como (26) são sintéticas, precisamente porque sua<br />

verda<strong>de</strong> ou falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> como o mundo é. No nosso mundo, a sentença em (26)<br />

é verda<strong>de</strong>ira.<br />

A teoria clássica <strong>de</strong> significado, a qual Frege se contrapôs, entendia que o<br />

significado <strong>de</strong> uma expressão era o objeto no mundo. Assim, o significado <strong>de</strong> ‘Estrela<br />

da manhã’ é o objeto no mundo, no caso o planeta Vênus. Mas se for esse o caso, como<br />

é que diferenciamos (25) e (26)? Se ambas são verda<strong>de</strong>iras, então elas se referem ao<br />

mesmo “objeto”. Se este é o caso, como é que percebemos que elas são diferentes?<br />

Como é que sabemos que ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tar<strong>de</strong>’ são dois nomes<br />

diferentes se o significado é objeto no mundo? Não há como. A solução proposta por<br />

Frege é distinguir aspectos do termo significado: quando sabemos o significado <strong>de</strong> uma<br />

sentença sabemos duas “coisas”: a que objeto ela se refere e o sentido da expressão, isto<br />

é o pensamento que está associado àquela expressão. O que diferencia (25) e (26) é o<br />

fato <strong>de</strong> que seu sentido é diferente; o pensamento que elas veiculam não é o mesmo,<br />

embora elas se refiram ao mesmo objeto.<br />

Frege mostrou, então, que a noção <strong>de</strong> significado comporta duas “facetas”,<br />

ambas objetivas, porque <strong>de</strong> domínio público: o sentido e a referência 7 . A referência é o<br />

6 Mais uma vez, proferir uma sentença analítica, que é obviamente verda<strong>de</strong>ira, provoca imediatamente<br />

uma implicatura. Se o falante está dizendo algo que é trivialmente verda<strong>de</strong>iro, e ele é cooperativo, então é<br />

porque ele está querendo dizer outra coisa. Por exemplo, no caso <strong>de</strong> ‘O João é o João’, que o ouvinte<br />

conhece o João e sabe que ele tem uma proprieda<strong>de</strong> muito acentuada, por exemplo, ele é extremamente<br />

meticuloso.<br />

7 De passagem, Frege distingue outros aspectos do significado, em particular a representação e a cor, mas<br />

nenhum <strong>de</strong>les é objetivo, por isso não interessam à semântica.<br />

22


objeto no mundo, enquanto que o sentido é o modo <strong>de</strong> apresentação do objeto, como<br />

conhecemos esse objeto, o caminho que nos leva até ele. Um mesmo objeto po<strong>de</strong> ser<br />

apresentado <strong>de</strong> diferentes maneiras, por caminhos diversos. Quando nos <strong>de</strong>paramos com<br />

um novo “caminho”, um novo sentido, apren<strong>de</strong>mos algo a mais sobre o objeto. Em (26)<br />

temos dois caminhos, ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tar<strong>de</strong>’, para uma única<br />

referência, o planeta Vênus, como mostra o <strong>de</strong>senho abaixo, enquanto em (25) temos<br />

um único caminho, ‘Estrela da Manhã’, para a referência:<br />

Sentença (25) Sentença (26)<br />

Estrela da Manhã Estrela da Manhã<br />

Estrela da Tar<strong>de</strong><br />

Como dissemos, quanto mais sentidos temos para chegar a um objeto, mais<br />

sabemos sobre esse objeto; po<strong>de</strong>mos abordá-lo através <strong>de</strong> mais entradas. Consi<strong>de</strong>re o<br />

seguinte exemplo. Suponha que o objeto do qual queremos falar é o indivíduo Hitler,<br />

esse indivíduo é alcançado pelo nome próprio ‘Adolf Hitler’. Mas po<strong>de</strong>mos alcançá-lo<br />

usando outras expressões que funcionam como um nome próprio, isto é, que permitem<br />

alcançar um e apenas um indivíduo. As <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas cumprem essa função, por<br />

isso mesmo Frege também as <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> nomes próprios. Eis algumas <strong>de</strong>scrições<br />

<strong>de</strong>finidas que alcançam Hitler, o indivíduo: ‘o marido <strong>de</strong> Eva Brown’, ‘o autor <strong>de</strong> Mein<br />

Kampf’, ‘o Führer’. Se, por exemplo, você não sabia que Hitler havia escrito Mein<br />

Kampf, ao interpretar a sentença ‘Hitler é o autor <strong>de</strong> Mein Kampf’ você apren<strong>de</strong>u algo a<br />

mais sobre Hitler; agora você tem mais um caminho para chegar até ele. Apren<strong>de</strong>mos<br />

sobre o mundo através <strong>de</strong> sentenças sintéticas.<br />

Cuidado! Não confunda o caso <strong>de</strong> (26) com a sinonímia! Em (26), NÃO temos<br />

um exemplo <strong>de</strong> sinonímia, porque há dois sentidos que são i<strong>de</strong>ntificados, i.e., há duas<br />

representações para o mesmo objeto. Na sinonímia temos um único sentido (um único<br />

caminho) veiculado por expressões distintas, por isso sinonímias são sentenças<br />

analíticas; veja o <strong>de</strong>senho para a sinônima acima. Eis um outro exemplo:<br />

23


(27) Maria é mulher <strong>de</strong> Pedro é o mesmo que Maria é esposa <strong>de</strong> Pedro.<br />

O que caracteriza a sinonímia é que elas expressam o mesmo pensamento (o mesmo<br />

conceito), o mesmo sentido, através <strong>de</strong> expressões distintas: ‘ser esposa <strong>de</strong>’ e ‘ser<br />

mulher <strong>de</strong>’ veiculam o mesmo conceito através <strong>de</strong> palavras diferentes. Se é o caso que a<br />

Maria é mulher <strong>de</strong> Pedro tem, necessariamente, que ser o caso que a Maria é esposa <strong>de</strong><br />

Pedro. Não é possível imaginar um mundo em que seja verda<strong>de</strong>iro que a Maria é a<br />

mulher <strong>de</strong> Pedro e outro em que é falso que ela é a esposa <strong>de</strong> Pedro. É diferente, é claro,<br />

usar ‘ser esposa <strong>de</strong>’ e ‘ser mulher <strong>de</strong>’, mas essa diferença não é semântica, não se dá no<br />

plano dos conceitos; essa diferença é sociolingüística: ‘esposa’ é uma palavra mais<br />

formal do que ‘mulher’. Nesse caso, trata-se <strong>de</strong> um único caminho para a mesma<br />

referência. Não há, portanto, acréscimo <strong>de</strong> informação sobre o mundo: se você já sabe<br />

que a Maria é mulher <strong>de</strong> Pedro, dizer que ela é esposa não acrescenta informação sobre<br />

o mundo. O que po<strong>de</strong> ocorrer é uma aprendizagem sobre a linguagem: apren<strong>de</strong>-se uma<br />

nova expressão, sem haver acréscimo <strong>de</strong> sentido. 8<br />

.<br />

1. Sabe-se que as expressões ‘os que têm pulmões’ e ‘os que têm coração’ se referem a<br />

exatamente o mesmo conjunto <strong>de</strong> indivíduos. Elas são sinônimas ou são dois sentidos<br />

diferentes? Justifique.<br />

2. As expressões abaixo são sinônimas? Explique<br />

(a) o único país que fala português na América Latina.<br />

(b) o Brasil<br />

(c) o maior país da América Latina<br />

3.1 Analisando uma língua<br />

Antes <strong>de</strong> mais nada, é importante salientar que todas as expressões <strong>de</strong> uma<br />

língua têm sentido e referência. Há dois tipos <strong>de</strong> “objetos” no mundo: as entida<strong>de</strong>s (ou<br />

indivíduos), que são objetos particulares, e os valores <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, isto é, o verda<strong>de</strong>iro e<br />

o falso. Este último é um objeto muito peculiar e é comum os alunos terem muita<br />

dificulda<strong>de</strong> em enten<strong>de</strong>r por quê precisamos <strong>de</strong>sses objetos, mas isso se <strong>de</strong>ve em parte a<br />

uma concepção muito “concretista” <strong>de</strong> objeto. Por exemplo, o número 2 refere-se a um<br />

objeto no mundo, mas esse objeto não é concreto. É comum encontrarmos a seguinte<br />

8<br />

De passagem, a idéia <strong>de</strong> que há sinonímia foi questionada severamente por Quine que aboliu a distinção<br />

entre analítico e sintético.<br />

24


crítica aos mo<strong>de</strong>los referenciais <strong>de</strong> semântica: a que objeto no mundo se refere a beleza?<br />

Mas essa crítica mostra apenas que o conceito <strong>de</strong> objeto foi mal compreendido, porque<br />

radicado na idéia <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um objeto concreto. Não é este o caso. Os mundos<br />

do semanticista são mo<strong>de</strong>los formais, constituídos por objetos entendidos<br />

matematicamente: valores para uma variável. É apenas por questões didáticas que em<br />

geral esses mo<strong>de</strong>los são apresentados através <strong>de</strong> exemplos concretos.<br />

Assim, no mo<strong>de</strong>lo semântico, os elementos da língua se referem ou a indivíduos<br />

(e conjuntos <strong>de</strong> indivíduos e conjuntos <strong>de</strong> conjuntos <strong>de</strong> indivíduos) ou a valores <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>. Nessa proposta, cuja base é Frege, há dois tipos <strong>de</strong> expressões na língua:<br />

expressões saturadas (ou completas) e expressões insaturadas (ou incompletas). As<br />

expressões saturadas se caracterizam por se referirem a um único objeto no mundo, um<br />

indivíduo ou um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Um nome próprio, por exemplo, é uma expressão<br />

saturada, porque se refere a um único indivíduo. Já um predicado, como ‘ser feliz’ é<br />

insaturado, já que ele não se refere a um indivíduo em particular.<br />

É bastante intuitivo enten<strong>de</strong>r que os nomes próprios, como ‘João’, ‘Maria’,<br />

‘Luís’..., se referem a um indivíduo em particular. 9 Menos intuitivo é o fato <strong>de</strong> que na<br />

semântica os nomes próprios têm sentido, porque o sentido é precisamente o que<br />

permite acessarmos um referente no mundo. Quando alguém diz ‘Hitler’ imediatamente<br />

acionamos uma referência, o indivíduo Hitler. Essa ponte da palavra para o mundo é o<br />

sentido. No caso das expressões saturadas, como os nomes próprios, essa ponte é entre<br />

uma expressão da linguagem e um único indivíduo no mundo.<br />

Nomes Próprios<br />

9 Estamos aqui trabalhando com um mo<strong>de</strong>lo bem simples, em que só há um indivíduo chamado ‘João’. E<br />

<strong>de</strong> fato na nossa vida é só aparentemente que há dois indivíduos chamados ‘João’, porque no fundo o<br />

nome próprio inclui o sobrenome.<br />

25


Linguagem Sentido Referência (Mundo)<br />

Hitler <br />

O sentido é, pois, uma função que associa a cada expressão da língua uma única<br />

referência no mundo. A maneira usual <strong>de</strong> implementarmos essa idéia na semântica é<br />

através <strong>de</strong> uma função <strong>de</strong> interpretação, normalmente representada por colchetes duplos<br />

[[ ]]. Assim, temos:<br />

[[ Hitler ]] = Hitler<br />

Linguagem MUNDO<br />

Entre os colchetes duplos temos linguagem, já do outro lado da equação temos um<br />

indivíduo. Note que estamos retornando à distinção entre língua-objeto e<br />

metalinguagem. O sinal <strong>de</strong> igual é precisamente a função <strong>de</strong> interpretação.<br />

Assim como os nomes próprios, as <strong>de</strong>scrições Definidas, ‘o menino <strong>de</strong> azul’, ‘o<br />

atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil’,..., também são expressões saturadas, porque se referem a um<br />

único indivíduo no mundo; por isso para Frege elas também eram nomes próprios. Uma<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida é uma expressão complexa que se compõe <strong>de</strong> um artigo <strong>de</strong>finido e<br />

um predicado e se refere a um e apenas um indivíduo no mundo. No próximo capítulo,<br />

veremos mais atentamente a estrutura semântica das <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas. Importa-nos,<br />

por enquanto, notar que elas se referem a um indivíduo em particular. Na sentença:<br />

(28) O Lula é o atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil.<br />

Temos uma sentença <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre um nome próprio ‘Lula’ e uma <strong>de</strong>scrição<br />

<strong>de</strong>finida ‘o atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil’. Trata-se, obviamente, <strong>de</strong> uma sentença sintética,<br />

26


porque é um acaso histórico que o atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil seja o Lula.<br />

Tanto o nome próprio quanto a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida se referem ao mesmo indivíduo no<br />

mundo, mas o fazem através <strong>de</strong> sentidos distintos (<strong>de</strong> funções diferentes):<br />

[[o atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil]] = Lula<br />

[[Lula]] = Lula<br />

O último caso <strong>de</strong> expressão saturada são as sentenças, como ‘João estuda’,<br />

‘Maria trabalha’, ‘Pedro ama João’... Sentenças obviamente não se referem a um<br />

indivíduo em particular no mundo, mas a um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Sentenças são<br />

verda<strong>de</strong>iras ou falsas. Uma sentença é uma expressão saturada porque ela expressa um<br />

pensamento completo e permite alcançarmos um objeto em particular: ou a verda<strong>de</strong> ou<br />

o falso. Uma expressão como ‘O menino que está <strong>de</strong> azul’ não expressa um pensamento<br />

completo, mas serve para apontar um indivíduo em particular no mundo – trata-se,<br />

portanto, <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida. Compare com ‘O menino que está <strong>de</strong> azul caiu da<br />

escada’. Neste caso, temos uma sentença, porque há um pensamento completo e<br />

po<strong>de</strong>mos, em confronto com um estado no mundo, afirmar se ela é verda<strong>de</strong>ira ou falsa.<br />

Como as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas, as sentenças são estruturas “complexas” e po<strong>de</strong>m,<br />

portanto, ser <strong>de</strong>scompostas em elementos menores. Esta <strong>de</strong>composição é o objeto <strong>de</strong><br />

estudos <strong>de</strong>ste manual. Por enquanto basta enten<strong>de</strong>r que sentenças são estruturas<br />

complexas saturadas que têm como referência um objeto em particular: ou a verda<strong>de</strong> ou<br />

a falsida<strong>de</strong>.<br />

3.2 Decompondo sentenças<br />

3.2.1 Predicados e Argumentos<br />

Decompor uma sentença em suas unida<strong>de</strong>s mínimas e mostrar as regras <strong>de</strong><br />

composição é um trabalho árduo que tem sido realizado pelos semanticistas ao longo <strong>de</strong><br />

gerações. Não é possível apresentar essas conquistas <strong>de</strong> uma única vez, porque há<br />

muitas questões que são, muitas vezes, bastante complexas. É por isso que essa<br />

<strong>de</strong>composição é feita por etapas. Vamos iniciar apresentando os conceitos mais básicos:<br />

os conceitos <strong>de</strong> argumento e predicado, que são os paralelos na sintaxe dos conceitos <strong>de</strong><br />

expressão saturada e insaturada, respectivamente.<br />

Consi<strong>de</strong>re a sentença em (29):<br />

27


(29) João estuda.<br />

Sua forma sintática po<strong>de</strong> ser grosseiramente representada por 10 :<br />

S<br />

SN SV<br />

N V<br />

João estuda<br />

Intuitivamente, o significado da sentença em (29) é função do significado <strong>de</strong><br />

suas partes (composicionalida<strong>de</strong>): ‘João’ e ‘estuda’. Essas partes comportam-se, no<br />

entanto, <strong>de</strong> modo muito diferente. ‘João’, como vimos, é um nome próprio e como tal se<br />

refere a um indivíduo específico no mundo, é por isso uma expressão saturada. Em<br />

termos sintáticos, ‘João’ é o argumento do predicado ‘estuda’, que é uma expressão<br />

insaturada porque ela não se refere a um objeto em particular no mundo (nem a um<br />

indivíduo, nem a um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>). Além disso, ela não é uma estrutura completa,<br />

porque não expressa um pensamento. Sem maiores informações, por exemplo, <strong>de</strong> quem<br />

é que estamos falando, ‘estuda’ não expressa um pensamento e nem é possível averiguar<br />

se é verda<strong>de</strong>iro ou falso. É por isso mesmo que essa expressão é insaturada, ela precisa<br />

<strong>de</strong> um “complemento” para se saturar. Uma vez saturada, ela vira uma sentença <strong>de</strong><br />

veicula um pensamento completo e po<strong>de</strong> se referir a um objeto em particular. ‘Estuda’<br />

tem uma posição aberta, que po<strong>de</strong> ser preenchida por diferentes argumentos, gerando,<br />

então, uma nova estrutura saturada:<br />

10 A representação arbórea popularizou-se <strong>de</strong>vido a Chomsky e ela mimetiza uma proprieda<strong>de</strong><br />

fundamental das línguas naturais: o fato <strong>de</strong> que os elementos lingüísticos se combinam hierarquicamente<br />

e não linearmente, como po<strong>de</strong>ríamos julgar se nos contentássemos com a nossa percepção da linguagem<br />

em que, aparentemente, um elemento se segue a outro .<br />

28


João<br />

Maria<br />

O menino que está <strong>de</strong> azul estuda<br />

Pedro<br />

O atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil<br />

.<br />

.<br />

.<br />

‘Estuda’ é um predicado, isto é, uma expressão insaturada que pe<strong>de</strong> uma<br />

complementação, uma saturação. Uma expressão insaturada é, portanto, uma expressão<br />

que tem pelo menos tem um lugar vazio (uma valência):<br />

_______ estuda<br />

Esse lugar po<strong>de</strong> ser preenchido por diferentes argumentos; cada argumento satura o<br />

predicado diferentemente, gerando sentenças diferentes: ‘João estuda’, ‘Maria estuda’,<br />

‘O menino que está <strong>de</strong> azul estuda’,... O resultado <strong>de</strong> saturarmos uma expressão<br />

insaturada é formar uma expressão saturada, uma sentença, que se refere a um objeto, o<br />

verda<strong>de</strong>iro ou o falso.<br />

Dissemos que todas as expressões da língua têm sentido e referência. A que<br />

‘estuda’ se refere? ‘Estuda’ é um predicado <strong>de</strong> um lugar, isto é, com uma posição aberta<br />

e por isso é chamado <strong>de</strong> predicado mono-argumental. Predicados <strong>de</strong> um lugar se<br />

referem a um conjunto <strong>de</strong> indivíduos; ‘estuda’ se refere ao conjunto dos indivíduos que<br />

têm a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudar.<br />

Vamos compor semanticamente a árvore acima. Começamos pelos nós<br />

terminais, isto é, as unida<strong>de</strong>s mínimas que, no caso da sentença em (29) são ‘João’ e<br />

‘estuda’. ‘João’ refere-se ao indivíduo <br />

[[ João ]] = <br />

29


‘estuda’ refere-se a um conjunto <strong>de</strong> indivíduos:<br />

[[estudar]] = {}<br />

S<br />

SN SV<br />

N V<br />

João estuda<br />

<br />

Precisamos, agora, <strong>de</strong> uma regra semântica que permite compor o SN com o SV. Essa<br />

regra se chama Aplicação Funcional e vamos apresentá-la informalmente, porque uma<br />

<strong>de</strong>finição formal requer conceitos que não dominamos. No exemplo acima (e este será<br />

sempre o caso quando estivermos no nó S), a aplicação funcional aplica a função<br />

‘estuda’ ao argumento ‘João’.<br />

Há duas maneiras <strong>de</strong> representarmos um conjunto: apresentamos os elementos<br />

que compõem o conjunto ou explicitamos a proprieda<strong>de</strong> que os elementos têm. No<br />

exemplo acima, explicitamos os elementos do conjunto. Eis mais um exemplo. Suponha<br />

que queremos explicitar o conjunto dos números naturais maiores que 1 e menores que<br />

4. Po<strong>de</strong>mos enumerar os elementos <strong>de</strong>sse conjunto: {2, 3}. Mas po<strong>de</strong>mos também dar a<br />

<strong>de</strong>finição do conjunto: { x / x é maior que 1 e menor que 4}. No primeiro caso, <strong>de</strong>mos a<br />

referência; no segundo, <strong>de</strong>mos o sentido. Po<strong>de</strong>mos fazer o mesmo com ‘estuda’.<br />

[[estuda]] = { x / x estuda}<br />

Em linguagem mais natural: o conjunto dos x tal que x estuda. A idéia da aplicação<br />

funcional é a seguinte: na extensão do SV temos o conjunto {x / x estuda}. Na extensão<br />

do SN temos João. A aplicação funcional permite substituir a variável por João,<br />

obtendo: a sentença ‘João estuda’ é verda<strong>de</strong>ira se e somente se João estuda. Essa é uma<br />

instância da sentença-T. Mas note que ela é o resultado <strong>de</strong> um cálculo, da soma das<br />

extensões (um outro nome para referência) <strong>de</strong> ‘João’ e ‘estuda’. Note ainda que<br />

chegamos às condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> da sentença e não a um resultado, ao o verda<strong>de</strong>iro ou<br />

ao falso. O resultado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> como o mundo é: se João tem mesmo a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

30


estudar, a sentença é verda<strong>de</strong>ira; caso contrário, ela é falsa. Na situação (ou mundo) que<br />

<strong>de</strong>senhamos acima, a sentença é verda<strong>de</strong>ira, porque João <strong>de</strong> fato tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

estudar.<br />

3.2.2. Predicados <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um argumento<br />

Até neste momento olhamos para um tipo especial <strong>de</strong> predicado, aquele que é<br />

saturado por um único argumento. Mas há predicados <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um lugar. Há<br />

predicados <strong>de</strong> dois argumentos (ou dois lugares), como: ‘amar’, ‘odiar’, ‘brigar com’;<br />

predicados <strong>de</strong> três argumentos, como: ‘comprar’, ‘dar’. Em termos lógicos, po<strong>de</strong>mos ter<br />

predicados <strong>de</strong> quantos argumentos quisermos ou precisarmos; isto é, po<strong>de</strong>mos ter<br />

predicados <strong>de</strong> n-argumentos. Mas não é este o caso das línguas naturais e há <strong>de</strong>bate<br />

sobre o tema: quantos argumentos no máximo po<strong>de</strong> ter um predicado <strong>de</strong> uma língua<br />

natural? Parece certo que há predicados <strong>de</strong> três lugares, como em:<br />

(30) João comprou o bolo para a Maria.<br />

Mas e o predicado ‘traduzir’, teria 4 argumentos? É possível tratá-lo como um<br />

predicado <strong>de</strong> quatro argumentos, sublinhados na sentença em (31):<br />

(31) Pedro traduziu A Ilíada do grego para o português.<br />

O ponto da discussão é o seguinte: argumentos <strong>de</strong>vem ser essenciais para a saturação do<br />

predicado. Em outros termos, um predicado que não tem todos os seus argumentos não<br />

está saturado, não expressa um pensamento completo. Veja que este é o caso <strong>de</strong>:<br />

(31) * Maria brigou com<br />

Temos, assim, certeza <strong>de</strong> que ‘brigar com’ requer dois argumentos para se saturar:<br />

(33) Maria brigou com o Pedro.<br />

31


É claro que po<strong>de</strong>mos ter outras “coisas”, mas elas serão adjuntos, que se caracterizam<br />

por não serem essenciais para a saturação do predicado, por isso eles po<strong>de</strong>m ser<br />

retirados sem prejuízo:<br />

(34) Maria brigou com o Pedro com uma faca.<br />

‘com uma faca’ é um adjunto, tanto que po<strong>de</strong>mos suprimi-lo e o predicado continua<br />

saturado, como aparece em (33).<br />

Reconsi<strong>de</strong>re, agora, o caso <strong>de</strong> ‘traduzir’. A pergunta é: ‘grego’ e ‘português’ são<br />

essenciais? A sentença abaixo é completa? O predicado ‘traduzir’ está saturado?<br />

(35) Pedro traduziu A Ilíada.<br />

Essas não são questões triviais e mais uma vez vamos ignorá-las, porque este é apenas<br />

um manual.<br />

Vamos agora olhar mais atentamente para predicados <strong>de</strong> dois lugares. Consi<strong>de</strong>re<br />

a sentença:<br />

(36) João ama Maria.<br />

Veja que há dois elementos saturados, ‘João’ e ‘Maria’, que se referem a indivíduos<br />

particulares no mundo. Assim, ‘ama’ é uma estrutura insaturada com dois lugares<br />

vazios:<br />

_____ ama ____<br />

A que esse predicado se refere? Recor<strong>de</strong>-se que predicados <strong>de</strong> um-lugar se referem a<br />

conjuntos <strong>de</strong> indivíduos. E predicados <strong>de</strong> dois lugares? Intuitivamente, um predicado<br />

como ‘ama’ se refere ao conjunto <strong>de</strong> indivíduos tal que o primeiro está numa relação<br />

amorosa com o segundo. Assim, predicados <strong>de</strong> dois ou mais lugares estabelecem<br />

relações entre indivíduos. E relações são or<strong>de</strong>nadas, isto é, alterar a or<strong>de</strong>m dos<br />

indivíduos numa relação po<strong>de</strong> alterar o valor da relação. Por exemplo, suponha que a<br />

sentença em (36) é verda<strong>de</strong>ira, isto é, João <strong>de</strong> fato ama a Maria. Se alterarmos a or<strong>de</strong>m<br />

dos argumentos, obtemos:<br />

32


(37) Maria ama João.<br />

Ora, as condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa sentença são totalmente diferentes das condições <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong> da sentença em (36), porque nessa se afirma que a Maria é quem está numa<br />

relação <strong>de</strong> amor com o João. Po<strong>de</strong> muito bem ser o caso que (37) é falsa. Por isso,<br />

dizemos que relações <strong>de</strong> dois lugares se referem a um conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados, em<br />

que o primeiro membro é o argumento externo do predicado, uma noção que veremos<br />

mais adiante. Pares or<strong>de</strong>nados são representados assim: . Essa<br />

representação diz que João está na relação tal com Maria. Já o par diz<br />

que é a Maria que está na relação tal com o João. Há, é claro, relações que são<br />

simétricas, por exemplo ‘ser casado com’: se A é casado com B, necessariamente B é<br />

casado com A. Nesse caso, a or<strong>de</strong>m dos argumentos não importa.<br />

Essa maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver a <strong>de</strong>notação (extensão ou referência) <strong>de</strong> um predicado<br />

<strong>de</strong> dois lugares é encontrada nos vários sistemas lógicos (no cálculo <strong>de</strong> predicados, por<br />

exemplo). Ela é uma representação “plana”, no sentido <strong>de</strong> que os dois argumentos estão<br />

em igualda<strong>de</strong>, embora eles estejam or<strong>de</strong>nados; como se eles preenchessem o predicado<br />

‘ama’ simultaneamente e não houve diferença estrutural entre eles. Sabemos, no<br />

entanto, que o argumento interno é mais “ligado” ao predicado do que o argumento<br />

externo. Há vários indícios <strong>de</strong>ssa assimetria entre os argumentos. Por exemplo, o<br />

argumento externo dispara extensões metafóricas do evento <strong>de</strong>scrito pelo verbo,<br />

enquanto que o argumento externo não po<strong>de</strong>:<br />

(38) a. matar uma barata.<br />

b. matar uma conversa.<br />

c. matar uma tar<strong>de</strong> assistindo televisão.<br />

d. matar uma garrafa.<br />

e. matar uma audiência.<br />

f. matar uma aula.<br />

Essa assimetria aparece claramente na representação sintática:<br />

33


S<br />

SN SV<br />

N V SN<br />

N<br />

João ama Maria<br />

Note que o argumento ‘Maria’, o argumento interno, está mais próximo do verbo ‘ama’;<br />

ele é interno ao verbo. O nó SV é a combinação <strong>de</strong> ‘ama’ com ‘Maria’, formando ‘ama<br />

Maria’; só <strong>de</strong>pois, no nó S é que o SV se combina com ‘João’. Esses passos <strong>de</strong><br />

interpretação não aparecem claramente quando afirmamos que a <strong>de</strong>notação <strong>de</strong> um<br />

predicado <strong>de</strong> dois lugares é um conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados.<br />

Semanticamente, saímos da referência do nó terminal ‘ama’, um predicado <strong>de</strong><br />

dois lugares, isto é um conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados, por exemplo: {,<br />

, , , }. Esse conjunto po<strong>de</strong><br />

ser apreendido pela <strong>de</strong>scrição:<br />

{ / x ama y}<br />

O conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados, em que x ama y.<br />

Realizamos a primeira operação semântica no nó SV, uma aplicação funcional,<br />

que preenche o argumento interno y, isto é, atribui um valor a este argumento, Maria.<br />

Assim, transforma-se o conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados no conjunto <strong>de</strong> indivíduos que ama<br />

Maria. O resultado é que no nó SV temos um predicado <strong>de</strong> um lugar, o predicado ‘ama<br />

Maria’, cuja referência é o conjunto <strong>de</strong> indivíduos que têm a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar<br />

Maria, ou:<br />

{ x / x ama Maria}<br />

O conjunto dos x tal que x ama Maria. No nosso exemplo trata-se do conjunto {João,<br />

Pedro, Joana}.<br />

Finalmente, realizamos novamente a aplicação funcional, que substitui o x por<br />

João e resulta em: A sentença ‘João ama Maria’ é verda<strong>de</strong>ira se e somente se João ama<br />

Maria. Mas este é o resultado <strong>de</strong> atribuirmos uma <strong>de</strong>notação para os nós terminais e <strong>de</strong><br />

34


combinarmos esses elementos da esquerda para a direita (ou seja, primeiro o argumento<br />

interno) através <strong>de</strong> duas aplicações funcionais.<br />

Essa apresentação da interpretação semântica é informal. Você <strong>de</strong>ve ter notado<br />

que nem mesmo <strong>de</strong>finimos o que é aplicação funcional. Nosso objetivo é apenas dar<br />

uma idéia <strong>de</strong> como funciona o processo <strong>de</strong> interpretação. Uma abordagem mais formal<br />

requer uma série <strong>de</strong> conceitos que não dispomos. Por exemplo, precisamos enten<strong>de</strong>r a<br />

relação <strong>de</strong> referência como funções e precisamos <strong>de</strong> um método para transformar<br />

funções <strong>de</strong> n-lugares em funções <strong>de</strong> um único lugar. Esse método foi inventado por um<br />

matemático chamado Schönfikeln, mas sua apresentação requer mais do que po<strong>de</strong>mos<br />

oferecer num manual introdutório.<br />

1. Faça a <strong>de</strong>rivação <strong>de</strong> ‘João o<strong>de</strong>ia Maria`<br />

2. Crie um mundo em que a sentença é falsa e outro, em que é verda<strong>de</strong>ira<br />

35


MÓDULO 2<br />

A SEMÂNTICA DO NOMINAL<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste módulo é <strong>de</strong>screver, com algum grau <strong>de</strong> precisão, as diferentes<br />

estruturas semânticas que <strong>de</strong>vem ser atribuídas ao sintagma nominal para que possamos<br />

apreen<strong>de</strong>r o seu significado. O sintagma nominal po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido como sendo o<br />

constituinte cujo núcleo é um nome, como: ‘João’, ‘o menino <strong>de</strong> azul’, ‘alguns<br />

meninos’. Vamos, inicialmente, <strong>de</strong>limitar um pouco melhor o objeto sobre o qual nos<br />

concentramos neste módulo, ou seja, as estruturas que po<strong>de</strong>m preencher a posição <strong>de</strong><br />

argumento <strong>de</strong> predicados, como em:<br />

(1) a. ______ ronca.<br />

b. _______ ama ________<br />

Consi<strong>de</strong>re a estrutura em (1a): como vimos no módulo 1, estamos diante <strong>de</strong> um<br />

predicado <strong>de</strong> um lugar. Há muitas maneiras <strong>de</strong> preencher a posição do argumento:<br />

(2) João ronca.<br />

(3) Ele ronca.<br />

(4) O menino ronca.<br />

(5) Aquele menino ronca.<br />

(6) Os meninos roncam.<br />

(7) Um menino ronca.<br />

(8) Algum menino ronca.<br />

(9) Todo menino ronca.<br />

(10) Todos os meninos roncam.<br />

(11) Menino ronca.<br />

36


Os preenchimentos po<strong>de</strong>m ainda ser mais variados se consi<strong>de</strong>rarmos a estrutura<br />

em (1b), porque po<strong>de</strong>mos combinar os tipos <strong>de</strong> sintagma que vimos <strong>de</strong> (2) a (11), por<br />

exemplo:<br />

(12) Um menino ama todos os professores.<br />

Seriam esses preenchimentos semanticamente idênticos? Será que em todos os<br />

casos acima o argumento que preenche o predicado ‘roncar’ se refere a um indivíduo<br />

em particular? A que se refere ‘os meninos’ em (6), por exemplo? Essas são questões<br />

intrincadas e teremos <strong>de</strong> nos contentar com uma panorama das respostas possíveis, nos<br />

aprofundando apenas em alguns aspectos.<br />

1. Nomes Próprios<br />

Já vimos, no módulo anterior, que a lacuna do argumento po<strong>de</strong> ser preenchida<br />

por um Nome Próprio como em:<br />

(13) a. João ronca.<br />

b. Maria ama João.<br />

Em (13a), o predicado ‘ronca’ é saturado pelo argumento ‘João’, um nome<br />

próprio que, como tal, se refere a um indivíduo específico no mundo. Em (13b), o<br />

predicado ‘ama’ é preenchido por dois nomes próprios, ‘João’ e ‘Maria’; como já<br />

vimos, nesse caso a relação <strong>de</strong> amor é <strong>de</strong> João para Maria, por isso dizemos que a<br />

extensão do predicado <strong>de</strong> dois lugares é um conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados.<br />

Uma das questões mais difíceis com relação aos nomes próprios, que ainda não<br />

encontra uma solução que seja consensual na filosofia da linguagem, mesmo já tendo<br />

sido o tema <strong>de</strong> inúmeros autores, po<strong>de</strong> ser assim formulada: como é que através <strong>de</strong> uma<br />

expressão lingüística (no caso, expressões <strong>de</strong> nomes próprios como “Albert Einstein”)<br />

chegamos a um indivíduo no mundo? Ou, reformulando a questão para usarmos uma<br />

boa analogia <strong>de</strong> Susan Haack, como é como “pescamos” os objetos no mundo através<br />

das expressões lingüísticas? Há duas maneiras principais <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rmos a essa<br />

questão quando pensamos em nomes próprios: uma <strong>de</strong>las, cujo mentor é Mill e que foi<br />

37


eavivada por Kripke, argumenta que o nome próprio se liga ao indivíduo no mundo<br />

através <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> batismo (na analogia da pesca, esta é a teoria do arpão: o<br />

objeto no mundo é alvejado pelo nome próprio), ou seja, não há mediação entre o nome<br />

próprio e o indivíduo, po<strong>de</strong>mos, grosso modo, dizer que o nome atinge diretamente o<br />

indivíduo nomeado; a outra maneira argumenta que o objeto no mundo é<br />

individualizado através <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas (é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> pescar), ou<br />

seja, uma expressão lingüística como um nome próprio, <strong>de</strong> algum modo, atribuiu a um<br />

dado indivíduo certas características que o individualizam, assim, diferentemente da<br />

primeira maneira <strong>de</strong> pensar, essa segunda maneira diz que chegamos aos indivíduos<br />

indiretamente, via características que eles possuem. O assunto é interessante, mas não<br />

vamos nos <strong>de</strong>ter nele. O que importa para nós é que o NP (nome próprio) se refere a um<br />

indivíduo em particular.<br />

[[João]] = João<br />

[[Maria]] = Maria<br />

2. Os pronomes<br />

Consi<strong>de</strong>re agora a sentença:<br />

(14) Ele ronca.<br />

Não é possível atribuirmos um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> a esta sentença sem sabermos <strong>de</strong> quem<br />

é que se está falando, isto é, sem atribuirmos um valor a ‘ele’, i<strong>de</strong>ntificando a quem<br />

‘ele’ se refere – em outras palavras, sem maiores informações contextuais, através do<br />

pronome ‘ele’ não sabemos do que se está falando, o pronome sozinho não po<strong>de</strong><br />

estabelecer um referente. Sabemos, contudo, por causa da morfologia do PB, que se<br />

trata <strong>de</strong> um único indivíduo (singular), que não é nem o falante nem o ouvinte (3ª.<br />

pessoa), do gênero masculino. Mas continua sendo impossível “pescar” o indivíduo ao<br />

qual se faz referência se não tivermos mais informações. Note ainda que, diferentemente<br />

do nome próprio, a referência do pronome é variável. Consi<strong>de</strong>re as seguintes situações;<br />

em cada uma há um único indivíduo saliente:<br />

38


S1 S2 S3 S4 S5<br />

<br />

Em cada uma das situações acima, ‘ele’ pega um indivíduo distinto. A idéia intuitiva é<br />

que o pronome tem sua referência variável, assim como as variáveis <strong>de</strong> uma equação<br />

matemática. Esse preenchimento da variável, no exemplo das situações acima, é dado<br />

pelo contexto imediato <strong>de</strong> interlocução: aponta-se para o referente. Assim, po<strong>de</strong>mos<br />

representar (14) como:<br />

(15) x{3 pessoa, masculino, singular} ronca.<br />

As indicações entre chaves <strong>de</strong>vem-se à morfologia do pronome. O x marca que se trata<br />

<strong>de</strong> uma variável, como fazemos usualmente na matemática.<br />

A interpretação da sentença em (14) <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrarmos o objeto sobre o<br />

qual estamos falando, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do “preenchimento da variável”. Este preenchimento<br />

po<strong>de</strong> se dar tanto na situação <strong>de</strong> fala, caso em que temos um dêitico, quanto pela<br />

seqüência discursiva, isto é, através da recuperação <strong>de</strong> um referente já introduzido<br />

anteriormente no discurso – neste caso, temos uma anáfora. Se lembrarmos da <strong>de</strong>finição<br />

<strong>de</strong> pronome que normalmente encontramos nas gramáticas normativas (“pronome é a<br />

palavra que substitui ou representa um substantivo”), vemos que é esse último tipo <strong>de</strong><br />

preenchimento que a gramática está <strong>de</strong>screvendo. No primeiro caso não há, literalmente<br />

falando, “substituição <strong>de</strong> substantivo”, o que já <strong>de</strong>monstra que a <strong>de</strong>finição da gramática<br />

é ina<strong>de</strong>quada.<br />

Exemplificamos abaixo os dois modos <strong>de</strong> preenchimento nos quadros abaixo (o<br />

índice i indica que se trata do mesmo indivíduo):<br />

dêixis anáfora<br />

Ele ronca<br />

O Joãoi está<br />

dormindo. Elei<br />

ronca.<br />

39<br />

Formatado: Inglês (EUA)<br />

Formatado: Inglês (EUA)


Na primeira situação, a variável é preenchida por um apontamento na situação<br />

<strong>de</strong> enunciação. Trata-se <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> ostensão, <strong>de</strong> dêixis. Já na segunda situação,<br />

sabemos que ‘ele’ se refere a João porque sua interpretação está ligada ao nome próprio<br />

‘João’, dito imediatamente antes.<br />

Embora a distinção entre dêixis e anáfora seja já tradicional na lingüística, os<br />

mo<strong>de</strong>los semânticos mais recentes a abandonaram, pois consi<strong>de</strong>ram que não há <strong>de</strong> fato<br />

uma diferença qualitativa, entre dêixis e anáfora, na forma <strong>de</strong> atribuir um valor a<br />

variável, já que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a situação <strong>de</strong> fala, o contexto, como uma série <strong>de</strong><br />

informações compartilhadas, um fundo conversacional, que é lingüístico. Essa é, na<br />

verda<strong>de</strong>, a única maneira <strong>de</strong> explicarmos que atribuímos um valor a uma variável em<br />

situações <strong>de</strong> fala em que o referente não po<strong>de</strong> ser ostensivamente apontado porque não<br />

está presente, e ele não foi introduzido no discurso anteriormente. Imagine que estamos<br />

num bar e um moço bêbado insiste em cantar muito alto. Suponha ainda que ninguém<br />

falou explicitamente sobre o assunto. De repente, o sujeito se levanta e vai embora e<br />

alguém da nossa mesa diz:<br />

(16) Ainda bem que ele saiu!<br />

Sabemos que ‘ele’ se refere ao sujeito bêbado, mas não houve apontamento nem<br />

falamos sobre ele antes.<br />

A semântica atual distingue tipos <strong>de</strong> anáfora, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do modo como ocorre<br />

a atribuição <strong>de</strong> valor à variável. Nos exemplos discutidos até o momento, essa<br />

atribuição seguiu sempre o mesmo método: atribua como valor para a variável o<br />

indivíduo que está mais saliente, quer porque ele está saliente via apontamento, via<br />

situação no mundo, ou via discurso (quando se fez referência discursiva a ele<br />

imediatamente antes). Esses são exemplos <strong>de</strong> pronome livre ou anáfora livre. No<br />

pronome livre o valor da variável é dado por uma função <strong>de</strong> interpretação que é sensível<br />

ao contexto. No módulo anterior, vimos a noção <strong>de</strong> função <strong>de</strong> interpretação, que é uma<br />

função que atribui a cada expressão da língua uma referência. Ela é constante para os<br />

nomes próprios, porque eles têm sempre a mesma referência. Mas esse não é o caso dos<br />

pronomes livres que, como vimos, têm referência variável: na situação 1, ‘ele’ se refere<br />

40


a ; na situação 2, a, e assim por diante. Para captarmos esse aspecto,<br />

relativizamos a função <strong>de</strong> interpretação a uma atribuição, isto é, a um certo valor<br />

atribuído a variável. A função <strong>de</strong> atribuição é geralmente representada por g:<br />

[[ele]] g1 = Pedro, isto é, o valor da variável x na atribuição g1 é Pedro<br />

[[ele]] g2 = João, isto é, o valor da variável x na atribuição g2 é João.<br />

Mas há um outro tipo <strong>de</strong> preenchimento da variável, exemplificado na sentença<br />

abaixo, que mostra que a <strong>de</strong>finição tradicional <strong>de</strong> pronome não po<strong>de</strong> estar correta,<br />

porque nem sempre é o caso que um pronome substitui um substantivo, ou mais<br />

precisamente, um sintagma nominal dado anteriormente:<br />

(17) Todo homem se ama.<br />

Na verda<strong>de</strong>, foi esse tipo <strong>de</strong> exemplo que Frege usou para mostrar que nas línguas<br />

naturais há variáveis no sentido matemático do termo. Note que o valor do pronome ‘se’<br />

em (17) não é dado pelo contexto, embora ele seja variável. Além disso, veja que a<br />

<strong>de</strong>finição que normalmente temos <strong>de</strong> pronome, “a palavra que substitui o nome”,<br />

simplesmente não se aplica ao caso em (17), porque se substituirmos o pronome pelo<br />

sintagma nominal ‘todo homem’ 11 , obtemos uma sentença que tem um significado<br />

diferente:<br />

(18) Todo homem ama todo homem.<br />

Em (18) se afirma que para cada homem é o caso que ele ama todos os outros homens.<br />

Não é isso o que diz (17). Para (17) ser verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ve ser o caso que cada homem ama<br />

a si mesmo. Suponha que nosso mundo seja habitado por apenas três homens: João,<br />

Carlos e Pedro. Para (18) ser verda<strong>de</strong>ira tem que ser o caso que João ama o João, o<br />

11 Nas <strong>de</strong>finições tradicionais <strong>de</strong> pronome, confira Cunha & Lindley, Cegalla, afirma-se que o pronome<br />

substitui um substantivo, mas evi<strong>de</strong>ntemente não po<strong>de</strong> ser esse o caso; para sermos caridosos, temos que<br />

enten<strong>de</strong>r que o pronome substitui um sintagma nominal:<br />

(1) O menino saiu. Ele estava triste.<br />

Se ‘ele’ substitui o substantivo, temos que a interpretação é: O menino saiu. Menino estava triste. Mas<br />

não é este obviamente o caso.<br />

41


Carlos e o Pedro; que o Carlos ama o Carlos, o João e o Pedro; e que o Pedro ama o<br />

Pedro, o João e o Carlos. (17), por sua vez, afirma que:<br />

(19) Para todo x que é homem é o caso que x ama x.<br />

Ou seja, João ama João, Carlos ama Carlos e Pedro ama Pedro – algo bem diferente do<br />

que temos para (18).<br />

Note que o valor da variável se altera <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do valor que atribuímos à<br />

primeira ocorrência da variável: se o valor da primeira ocorrência <strong>de</strong> x é João, então o<br />

valor da segunda ocorrência <strong>de</strong> x é João; se Pedro, Pedro... Às ocorrências <strong>de</strong> uma<br />

mesma variável <strong>de</strong>ve sempre ser atribuído o mesmo indivíduo. É por isso que dissemos<br />

que nesse caso a interpretação do pronome é presa: o seu valor <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do valor<br />

atribuído antes. Vamos voltar a essa questão quando falarmos sobre os quantificadores.<br />

Esse é, então, o outro tipo <strong>de</strong> pronome: o pronome preso. 12<br />

O raciocínio da substituição funciona para casos em que se recupera um<br />

sintagma cujo núcleo é um nome próprio. Consi<strong>de</strong>re os exemplos abaixo:<br />

(20) a. João se ama.<br />

b. O menino se ama.<br />

É plausível parafrasearmos a sentença em (20a) como (21a), mas para (20b) a questão é<br />

mais <strong>de</strong>licada, dado que a sentença em (21b) po<strong>de</strong> receber uma interpretação em que o<br />

primeiro sintagma pega um indivíduo e o segundo um outro indivíduo:<br />

(21) a. O João ama o João.<br />

b. O menino ama o menino.<br />

Tanto preso quanto livre um pronome se refere sempre, em cada atribuição, a um<br />

único indivíduo em particular. A diferença está na maneira como isso ocorre. Apenas<br />

12 Há ainda outros tipos <strong>de</strong> pronome, como os pronomes tipo-E (<strong>de</strong> Evans), sobre o qual nada falaremos.<br />

A sentença abaixo exemplifica um caso <strong>de</strong> pronome tipo-E:<br />

(1) Cada convidado comprou uma garrafa <strong>de</strong> vinho e serviu ela no jantar.<br />

Note que ‘ela’ se parece com uma anáfora presa porque ela vai variar conforme o valor atribuído à<br />

variável convidado: o convidado a trouxe a garrafa <strong>de</strong> vinho b e serviu b no jantar; o convidado c trouxe a<br />

garrafa <strong>de</strong> vinho d e serviu d no jantar e assim sucessivamente. O problema é que não é possível pren<strong>de</strong>r<br />

essa variável, sem gerar resultados exdrúxulos. Evi<strong>de</strong>ntemente, ela não po<strong>de</strong> ser uma variável livre.<br />

Então, é preciso um novo tipo <strong>de</strong> anáfora.<br />

42


com o pronome livre há uma relação <strong>de</strong> co-referencialida<strong>de</strong>, isto é, as expressões têm o<br />

mesmo referente, porque o pronome está ligado a um indivíduo, quer diretamente, via<br />

contexto, quer indiretamente via um outro elemento lingüístico, um nome próprio, por<br />

exemplo, ao qual ele está co-in<strong>de</strong>xado, isto é, tem o mesmo índice. No <strong>de</strong>senho<br />

representando a anáfora, usamos um mesmo índice ‘i’ para marcar que ‘ele’ é uma<br />

anáfora co-referencial <strong>de</strong> ‘João’. Como vimos, no exemplo em (17b), o pronome po<strong>de</strong><br />

ainda estabelecer um outro tipo <strong>de</strong> relação com o seu antece<strong>de</strong>nte: uma relação <strong>de</strong><br />

ligação, em que o valor da variável é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do valor atribuído anteriormente a uma<br />

outra variável, mas cujo valor não é dado através <strong>de</strong> uma relação <strong>de</strong> referência.<br />

Consi<strong>de</strong>re o exemplo em (17) mais uma vez. O sintagma ‘todo homem’ não se refere a<br />

um indivíduo em particular. Por enquanto não vamos discutir a sua referência. Importa<br />

perceber, o que é bastante intuitivo, que ele não <strong>de</strong>nota um indivíduo particular no<br />

mundo. Se é este o caso, não é possível que a variável co-refira. Este ponto ficará mais<br />

claro quando discutirmos o sintagma quantificado.<br />

3. A Descrição Definida<br />

A Descrição Definida (DD, <strong>de</strong> agora em diante), mesmo tendo uma forma<br />

lingüística aparentemente simples, coloca problemas extremamente complexos para a<br />

lingüística e a filosofia, por isso mesmo, conta com uma extensa literatura, na qual<br />

po<strong>de</strong>mos encontrar diferentes soluções para os vários problemas colocados pela DD.<br />

Mas é possível, contudo, distinguir duas gran<strong>de</strong>s vertentes teóricas para a DD: uma cuja<br />

fonte é Frege e enten<strong>de</strong> que a DD carrega uma pressuposição – essa é a visão que<br />

iremos adotar –; e outra, cuja origem está em Russel, que enten<strong>de</strong> que a DD é, na sua<br />

forma lógica, um sintagma quantificado.Antes <strong>de</strong> apresentar os contornos <strong>de</strong>ssas<br />

vertentes, é preciso enten<strong>de</strong>r o que é uma DD.<br />

Uma DD é uma expressão complexa construída por um artigo <strong>de</strong>finido (‘o’ ou<br />

‘a’) e um nome comum (um predicado), que po<strong>de</strong> ser acompanhado por modificadores.<br />

Um exemplo do primeiro caso é ‘o menino’, do segundo, ‘o menino que está sentado<br />

ali’; neste último caso, a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida está acompanhada <strong>de</strong> uma sentença relativa.<br />

Não vamos tocar na semântica da sentença relativa, embora este seja um tópico muito<br />

importante. Mesmo contando com uma estrutura mais complexa, semanticamente, a<br />

DD, assim como o nome próprio e o pronome, se refere a um indivíduo específico.<br />

Consi<strong>de</strong>re a sentenças abaixo é reflita sobre a <strong>de</strong>notação da DD:<br />

43


(22) João encontrou o atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil<br />

Suponha que essa sentença é proferida durante a gestão Lula. Qual é a referência <strong>de</strong> ‘o<br />

atual presi<strong>de</strong>nte do Brasil’? O indivíduo Lula. Tanto é que po<strong>de</strong>mos substituí-la pelo<br />

nome próprio ‘Lula’.<br />

(23) O autor <strong>de</strong> Syntatic Structure é americano.<br />

A DD ‘o autor <strong>de</strong> Syntatic Structure’ se refere ao indivíduo cujo nome é Noam<br />

Chomsky.<br />

Não são todas as ocorrências da estrutura “artigo <strong>de</strong>finido + nome comum” que<br />

são DDs. Consi<strong>de</strong>re, por exemplo, a sentença:<br />

(24) O leão tem juba.<br />

Há uma leitura da sentença em (24), em que o sintagma ‘o leão’ não se refere a um<br />

indivíduo em particular, mas a uma espécie. Nesse caso não temos uma DD, mas o que<br />

a literatura tem <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> uma Descrição Genérica. Nada falaremos sobre esse<br />

tópico neste manual.<br />

Como já dissemos, a estrutura da DD, representada abaixo, é mais complexa, se<br />

comparada com a do nome próprio, porque ela envolve uma operação <strong>de</strong> composição.<br />

Note que o sintagma nominal ‘o menino’ é bifurcado em dois nós irmãos: ‘o’ e<br />

‘menino’; ao passo que quando o SN é um nome próprio, não temos um sintagma<br />

ramificado:<br />

SN SN<br />

Np Det Nc<br />

João o menino<br />

Np = Nome próprio<br />

Det = Determinante<br />

Nc = Nome comum<br />

44


Na DD, é preciso ramificar o nó do SN, separando o artigo <strong>de</strong>finido (chamado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminante) do nome comum, que é um predicado 13 ; isso mostra que há uma operação<br />

semântica no nó SN que compõe o <strong>de</strong>terminante com o nome comum. Trata-se, mais<br />

uma vez, <strong>de</strong> uma operação <strong>de</strong> aplicação funcional e o resultado <strong>de</strong>ssa operação <strong>de</strong>ve ser<br />

a referência a um indivíduo em particular, saliente na situação discursiva:<br />

[[o menino]] = <br />

Compare as DDs em (25):<br />

(25) a. A estrela do Sistema Solar<br />

b. O menino<br />

É possível argumentar que a referência <strong>de</strong> (25a) é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto, pois se<br />

consi<strong>de</strong>rarmos apenas o nosso mundo ela será sempre o sol. Já a referência da DD em<br />

(25b) é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do contexto, como os pronomes, porque a referência <strong>de</strong> uma DD<br />

varia conforme o contexto; isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que uma DD contém uma variável.<br />

Algo que po<strong>de</strong> ser apreendido por: o x tal que x tem a proprieda<strong>de</strong> X. Em (25a), o x tal<br />

que x tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser a estrela do sistema solar; em (25b), o x tal que x tem a<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser o menino saliente na situação discursiva.<br />

Assim, o indivíduo ao qual uma DD se refere po<strong>de</strong> mudar conforme a situação.<br />

Por exemplo, a DD ‘o presi<strong>de</strong>nte do Brasil’ significa: o único x contextualmente<br />

saliente tal que x tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser presi<strong>de</strong>nte do Brasil. Veja que a extensão (i.e.<br />

referência) da DD muda conforme alteramos a situação: suponha que vamos avaliar a<br />

verda<strong>de</strong> da sentença:<br />

13 Predicados são estruturas insaturadas, que têm pelo menos uma lacuna em aberto para ser preenchida<br />

por um argumento. É bastante claro que um verbo intransitivo como ‘roncar’ seja um predicado, mas<br />

talvez não seja tão claro que nomes comuns, como ‘menino’, ‘cachorro’, sejam predicados, assim como<br />

adjetivos como ‘amarelo’, ‘azul’. Mas o raciocínio é simples. Consi<strong>de</strong>re a sentença abaixo:<br />

(1) Bidu é cinza.<br />

Suponha, o que não é implausível dado que há várias línguas que não têm esse verbo, que a contribuição<br />

semântica do verbo ‘ser’ seja apenas carregar traços <strong>de</strong> tempo, aspecto; isto é, ele não tem conteúdo<br />

semântico. Neste caso, ‘cinza’ pe<strong>de</strong> um argumento para se saturar. Além disso, predicados <strong>de</strong> um lugar<br />

são proprieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>notam conjuntos <strong>de</strong> indivíduos. Ora, ‘cachorro’, ‘cinza’ são proprieda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>notam<br />

conjuntos <strong>de</strong> indivíduos.<br />

45


(26) O presi<strong>de</strong>nte do Brasil viajou.<br />

Para <strong>de</strong>terminar o valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa sentença é preciso <strong>de</strong>terminar a referência da<br />

DD ‘o presi<strong>de</strong>nte do Brasil’. Suponha que estamos em 2005. A referência nesse caso é<br />

Lula. Suponha que estamos em 1963, a referência é Juscelino Kubischek. Agora,<br />

estamos em 1990, a referência é Fernando Collor <strong>de</strong> Melo. Depen<strong>de</strong>ndo do contexto, a<br />

referência da DD se altera.<br />

Consi<strong>de</strong>re, agora, a sentença:<br />

(27) O filho da Maria estuda Lingüística.<br />

Suponha a seguinte situação: o falante profere essa sentença num contexto em que você<br />

sabe com certeza que a Maria tem dois filhos: o João e o Pedro; <strong>de</strong> forma que você, o<br />

ouvinte, não consegue i<strong>de</strong>ntificar sobre quem o falante está falando. Nessa situação,<br />

você diria que a sentença em (27) é verda<strong>de</strong>ira, falsa, ou não é possível atribuir um valor<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong> a ela porque você não sabe <strong>de</strong> quem o falante está falando?<br />

Agora, imagine a mesma sentença proferida numa outra situação, uma situação<br />

em que você, ouvinte, tem certeza absoluta <strong>de</strong> que a Maria nunca teve filhos. Ao ouvir<br />

(27), você diria que a sentença é verda<strong>de</strong>ira, falsa ou simplesmente não é possível<br />

atribuir um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> a ela, porque o referente não existe?<br />

Em contraposição a essas situações em que não é fácil afirmar se a sentença em<br />

(27) tem um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, ela é claramente verda<strong>de</strong>ira se usada numa situação em<br />

que é conhecimento comum que a Maria tem um único filho e ele estuda lingüística; e é<br />

claramente falsa se esse único filho <strong>de</strong> Maria não estuda lingüística. Nesses dois últimos<br />

casos, a DD se refere a um único indivíduo. Nos dois casos anteriores, a referência da<br />

DD é problemática. No primeiro caso, porque há dois indivíduos que po<strong>de</strong>m ser<br />

tomados como sua referência; no segundo, porque não há nenhum indivíduo que po<strong>de</strong><br />

ser tomado como referência da DD.<br />

As teorias <strong>de</strong> Frege e Russell que mencionamos acima dão respostas diferentes<br />

para esses casos mais complicados, porque cada uma <strong>de</strong>las concebe a DD <strong>de</strong> forma<br />

distinta. A teoria fregeana abriu a perspectiva <strong>de</strong> que a DD carrega uma pressuposição<br />

<strong>de</strong> existência e unicida<strong>de</strong>; por sua vez, a teoria russelliana dá mais importância à<br />

intuição <strong>de</strong> que a DD afirma que existe um único indivíduo que satura o predicado da<br />

46


DD. A diferença entre pressupor que exista tal indivíduo e afirmar a sua existência<br />

produz resultados distintos, em particular com relação à negação.<br />

3.1 A DD em Frege e em Russell<br />

Frege introduziu essa questão discutindo o seguinte exemplo:<br />

(28) Quem <strong>de</strong>scobriu a órbita circular dos planetas morreu na miséria<br />

Note que a expressão ‘quem <strong>de</strong>scobriu a órbita circular dos planetas’ é uma oração<br />

relativa que se refere a um único indivíduo no mundo, no caso o astrônomo Johannes<br />

Kepler. Po<strong>de</strong>mos facilmente transformar a oração relativa numa DD: ‘o <strong>de</strong>scobridor da<br />

órbita circular’, que, como já sabemos, se refere a um único indivíduo. A questão é: a<br />

existência <strong>de</strong>sse único indivíduo é veiculada semanticamente pelo sintagma nominal,<br />

isto é, ela faz parte do conteúdo semântico do sintagma, ou ela é pressuposta? Frege<br />

afirma que ela é pressuposta, isto é, a informação <strong>de</strong> que há um único indivíduo que tem<br />

a proprieda<strong>de</strong> em questão faz parte do contexto.Se assim for, uma DD só é a<strong>de</strong>quada se<br />

proferida num contexto em que a pressuposição é verda<strong>de</strong>ira; por isso diz-se que a<br />

pressuposição restringe os usos a<strong>de</strong>quados <strong>de</strong> uma dada expressão. Em outros termos,<br />

só po<strong>de</strong>mos usar uma DD com felicida<strong>de</strong> em contextos em que a pressuposição está<br />

satisfeita – somente nesses contextos temos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atribuir a ela uma valor<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Assim, (28) só é feliz se (29) é consi<strong>de</strong>rada como verda<strong>de</strong>ira pelos<br />

interlocutores, isto é, se ela é parte do fundo conversacional compartilhado:<br />

(29) Existe uma única pessoa que <strong>de</strong>scobriu a órbita circular dos planetas.<br />

Para <strong>de</strong>monstrar que a pressuposição não é semântica, isto é, que ela não faz<br />

parte do sentido da sentença, Frege argumenta que a negação <strong>de</strong> uma sentença com<br />

pressuposição não é ambígua. Se a pressuposição fosse semântica, a sentença na<br />

negativa <strong>de</strong>veria ter duas interpretações diferentes; ou (i) a negação incidiria sobre a<br />

parte da sentença que diz que existe um único indivíduo que <strong>de</strong>scobriu a órbita circular<br />

dos planetas, ou (ii) a negação incidiria sobre a parte da sentença que diz que quem<br />

<strong>de</strong>scobriu a órbita circular dos planetas não morreu na miséria. Mas, diz Frege, este não<br />

é o caso. Vejamos um exemplo:<br />

47


(30) Kepler não morreu na miséria.<br />

Novamente, se a pressuposição <strong>de</strong> que há um único indivíduo Kepler fizesse parte do<br />

sentido da sentença, então a sentença em (30) <strong>de</strong>veria significar ou que Kepler não<br />

existiu ou que ele não morreu na miséria, porque a negação po<strong>de</strong>ria, nesse caso, atuar<br />

nesses dois lugares. Como ela não tem esses dois sentidos – intuitivamente ela só<br />

significa que Kepler não morreu na miséria –, a pressuposição não faz parte do sentido<br />

da sentença. É, portanto, uma condição <strong>de</strong> uso a<strong>de</strong>quado da expressão. Em outros<br />

termos, ninguém usa a<strong>de</strong>quadamente a sentença em (30) se não acredita que Kepler é o<br />

nome <strong>de</strong> um indivíduo em particular. Perceba como é estranho alguém proferir (30) se é<br />

senso comum que Kepler não existe...<br />

Vamos retornar a sentença (27) em seus usos “estranhos”. O que acontece, na<br />

visão <strong>de</strong> Frege, se essa sentença é usada quando a DD po<strong>de</strong> estar se referindo a dois<br />

indivíduos, o João e o Pedro? Simplesmente não po<strong>de</strong>mos afirmar que ela é verda<strong>de</strong>ira<br />

ou que ela é falsa, porque não conseguimos i<strong>de</strong>ntificar o referente. Sem sabermos <strong>de</strong><br />

quem o falante está falando não é possível afirmar que o predicado se aplica ou que ele<br />

não se aplica. O mesmo raciocínio vale para o caso em que não há referente para a DD.<br />

Se a DD não tem referente, se a Maria não tem filho, como afirmar que ele estuda ou<br />

que ele não estuda lingüística? A sentença não é nem verda<strong>de</strong>ira nem falsa; carece <strong>de</strong><br />

valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />

A maneira <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r essa problemática posta pelas DDs proposta por Russell,<br />

em seu famoso texto chamado “On Denoting” (1905), se afasta da visão semântica da<br />

pressuposição. Russell enten<strong>de</strong> que a existência e a unicida<strong>de</strong> são partes do conteúdo<br />

semântico da DD. Consi<strong>de</strong>re a famosa sentença <strong>de</strong> Russell:<br />

(31) O rei da França é careca.<br />

A forma lógica que ele propõe para essa sentença é a seguinte (em linguagem natural):<br />

(32) Existe um e apenas um rei da França e ele é careca.<br />

Compare com a proposta <strong>de</strong> Frege, em que a DD refere-se a um indivíduo e a<br />

informação <strong>de</strong> que esse indivíduo existe e é único é dada pelo contexto: na proposta<br />

48


fregeana, a sentença em (31) tem a mesma estrutura semântica <strong>de</strong> uma sentença em que<br />

a DD é substituída por um nome próprio, como:<br />

(33) Luis XVI é careca.<br />

Ou seja, tanto ‘o rei da França’ quando ‘Luis XVI’ se referem a um indivíduo. Não é<br />

isso o que está propondo Russell. Russell está propondo que, na forma lógica da<br />

sentença em (31), afirma-se que existe um e apenas um indivíduo que é rei da França e<br />

que ele é careca. Essa sentença é, na interpretação russelliana, uma sentença complexa,<br />

formada por duas sentenças: uma em que há um quantificador (um tipo particular <strong>de</strong><br />

operador) que indica a existência <strong>de</strong> apenas um rei da França e a outra sentença que<br />

afirma que o rei da França é careca. Note que na forma lógica em (32), há uma<br />

conjunção, ‘e’, unindo essas duas sentenças. Logo há dois modos da sentença em (31)<br />

ser falsa: ou não há rei da França ou há rei da França, mas ele não é careca. De modo<br />

que na proposta <strong>de</strong> Russell, a sentença negativa:<br />

(34) O rei da França não é careca.<br />

É, ao contrário do que prevê Frege, ambígua:<br />

(35) a. Não há rei da França<br />

b. Há rei da França e ele não é careca.<br />

Como dissemos, esses mo<strong>de</strong>los prevêem resultados diferentes se (31) é proferida<br />

na situação atual, em que não existe rei da França. Imagine que (31) é proferida hoje em<br />

dia <strong>de</strong> modo sério (isto é, o falante não está sendo irônico, ou fazendo uma metáfora, ele<br />

quer diz o que a sentença efetivamente diz). É conhecimento compartilhado que<br />

atualmente a França não tem rei. Logo, na visão <strong>de</strong> Frege, a pressuposição <strong>de</strong> que há um<br />

e apenas um indivíduo que é rei da França é falsa, porque não há tal indivíduo. Em<br />

outros termos, na visão fregeana, a DD não se refere a indivíduo algum; ela não “pesca”<br />

nenhum indivíduo, porque não há tal indivíduo. Se este é o caso, então a sentença<br />

simplesmente não tem valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>; não po<strong>de</strong>mos dizer se ela é falsa ou verda<strong>de</strong>ira.<br />

O raciocínio é o seguinte: como é possível afirmar ou negar <strong>de</strong> algo que não existe que<br />

ele é careca? Não é possível. Logo, a sentença não tem valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Na teoria<br />

49


usseliana, a sentença em (28), proferida na situação <strong>de</strong>scrita, é falsa, precisamente<br />

porque não há nenhum rei da França.<br />

Os julgamentos intuitivos divergem quanto à avaliação do valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma sentença em que a DD não se refere a um indivíduo, embora todos concor<strong>de</strong>m que<br />

a sentença certamente não é verda<strong>de</strong>ira. Alguns falantes têm a sensação <strong>de</strong> que ela é<br />

falsa, é essa a intuição em Russell, outros, mais próximos da intuição <strong>de</strong> Frege, dizem<br />

que não é possível atribuir um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> a esta sentença porque não po<strong>de</strong>mos<br />

predicar (mesmo que negativamente) sobre algo que não existe. Neste caso, ela não é<br />

nem verda<strong>de</strong>ira nem falsa. Logo, não é possível apelarmos para a intuição do falante<br />

para <strong>de</strong>finirmos qual é a melhor teoria para a DD. Mas, acreditamos que há sim<br />

argumentos favoráveis à teoria fregeana. Em particular, o fato <strong>de</strong> que a pressuposição se<br />

mantém quando operamos sobre a sentença é uma indicação <strong>de</strong> que seu estatuto é<br />

pressuposicional.<br />

3.2 A Pressuposição<br />

Vejamos mais um exemplo.<br />

(36) O menino caiu.<br />

Segundo o mo<strong>de</strong>lo fregeano, uma DD dispara uma pressuposição que restringe os<br />

contextos em que a sentença é usada a<strong>de</strong>quadamente. A DD presente em (36) pressupõe<br />

que há um único menino saliente no contexto; em outros termos só po<strong>de</strong>mos usar com<br />

felicida<strong>de</strong> a sentença em (36) se a pressuposição for verda<strong>de</strong>ira, isto é se houver um<br />

único menino saliente no contexto. Nessa teoria se negarmos a sentença, continua a ser<br />

verda<strong>de</strong>iro que há um menino saliente no contexto:<br />

(37) O menino não caiu.<br />

Intuitivamente, a sentença em (37) pressupõe que há um e apenas um menino saliente<br />

no contexto; o que ela nega é a informação posta, ou seja, que esse menino caiu. Não<br />

parece ser possível atribuir a (37) a interpretação <strong>de</strong> que não há um menino em<br />

particular, como prevê a teoria <strong>de</strong> Russell. Se esta é a nossa intuição, então temos um<br />

argumento a favor da teoria <strong>de</strong> Frege, o mo<strong>de</strong>lo que iremos assumir.<br />

50


Assim, nesse mo<strong>de</strong>lo, as DDs carregam uma pressuposição <strong>de</strong> existência (existe<br />

um) e unicida<strong>de</strong> (apenas um) indivíduo que tem a proprieda<strong>de</strong> em questão. Mas, o que é<br />

uma pressuposição? Vimos que a pressuposição restringe os contextos em que uma<br />

dada expressão lingüística é usada a<strong>de</strong>quadamente. Nesse sentido, a pressuposição é<br />

uma relação semântica (como a sinonímia, o acarretamento...). Ela já foi objeto <strong>de</strong><br />

inúmeras discussões tanto na filosofia quanto na lingüística. Há muitas maneiras <strong>de</strong><br />

enten<strong>de</strong>r a pressuposição, por isso mesmo, ela já foi objeto <strong>de</strong> inúmeras discussões tanto<br />

em filosofia quanto em lingüística; nesta seção, vamos nos contentar com uma breve<br />

incursão ao tema.<br />

O fato mais característico da pressuposição é que ela se mantém in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

como operamos com a sentença. Já vimos essa proprieda<strong>de</strong> com relação à negação: a<br />

pressuposição <strong>de</strong> que há um menino está presente tanto na interpretação <strong>de</strong> (36) quanto<br />

<strong>de</strong> (37) (que é a negação <strong>de</strong> (36)). Note ainda que mesmo operando sobre a sentença em<br />

(36) <strong>de</strong> diversos modos, a pressuposição <strong>de</strong> que há um único menino saliente no<br />

contexto se mantém:<br />

(38) a. O menino caiu?<br />

b. O menino caiu!<br />

c. Foi o menino que caiu.<br />

d. Se o menino caiu, o balanço quebrou.<br />

Este é o chamado Teste da Família Pressuposicional ou da p-família.<br />

Mas precisamos ainda dar a semântica da DD; por enquanto apenas explicitamos<br />

qual a sua condição <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação (ou <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>): uma DD, para ser feliz, <strong>de</strong>ve estar<br />

num contexto em que há um único referente que tem a proprieda<strong>de</strong> em questão. Uma<br />

maneira <strong>de</strong> implementar essa proposta é imaginar que o predicado ‘menino’ é restrito<br />

contextualmente, <strong>de</strong> forma que ele indica, no contexto, um conjunto unitário. O artigo<br />

<strong>de</strong>finido indica, então, esse indivíduo 14 . Seguindo essa idéia, po<strong>de</strong>mos atribuir a<br />

seguinte semântica a DD ‘o menino’:<br />

14 Essa proposta é <strong>de</strong>senvolvida por Heim & Kratzer (data)<br />

51


[[o menino]] = a função que tem como domínio o conjunto unitário <strong>de</strong>notado por<br />

‘menino’, dado contextualmente, e que retorna o único x tal que x tem a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ser menino no contexto em questão.<br />

Sem entrar na discussão mais técnica, a primeira parte <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>finição indica a<br />

pressuposição, isto é, só há, no contexto, um único indivíduo que satisfaz o predicado<br />

‘menino’, ou seja, o conjunto <strong>de</strong>notado por ‘menino’ no contexto é unitário. O artigo<br />

<strong>de</strong>finido refere-se, então, a esse indivíduo.<br />

Se nos concentrarmos agora um pouco mais sobre as pressuposições, veremos<br />

que elas não acontecem apenas nas DDs; ao contrário, as pressuposições são disparadas<br />

por muitos elementos das línguas naturais. Consi<strong>de</strong>re as sentenças:<br />

(39) Foi Pedro quem fez o bolo.<br />

(40) João reprovou <strong>de</strong> novo.<br />

(41) Maria parou <strong>de</strong> sair com o Pedro.<br />

(42) Paula continua a não se pentear.<br />

Você consegue ver pressuposições nessas sentenças? Quais são elas?<br />

Para <strong>de</strong>tectar a pressuposição, negue a sentença e reflita sobre qual é a informação que<br />

se mantém tanto na afirmativa quanto na negativa.<br />

Como dissemos, é controverso <strong>de</strong>finir pressuposição, mas costuma-se afirmar<br />

que uma pressuposição é aquilo que é tomado como verda<strong>de</strong>iro, como certo, para que<br />

uma dada sentença possa ter um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Mais formalmente, po<strong>de</strong>mos dizer<br />

que:<br />

A pressupõe B se para que A seja V ou F, B <strong>de</strong>ve ser V.<br />

Dizendo <strong>de</strong> outro modo: para que A tenha um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> (seja verda<strong>de</strong>ira ou<br />

falsa) é preciso que B seja verda<strong>de</strong>iro.<br />

Dissemos acima que a pressuposição contida em uma sentença mantém-se ao<br />

longo <strong>de</strong> operações que fazemos sobre essa sentença (negar, topicalizar), constituindo<br />

52


uma “família <strong>de</strong> sentenças” que divi<strong>de</strong> uma certa pressuposição. 15 Veremos agora com<br />

mais <strong>de</strong>talhe como isso acontece, através do exame das sentenças em (43).<br />

Intuitivamente, a informação compartilhada é que o João já reprovou antes, porque a<br />

expressão ‘<strong>de</strong> novo’ só po<strong>de</strong> ser usada com felicida<strong>de</strong> se já houve pelo menos um outro<br />

evento do mesmo tipo. Essa é a pressuposição. Vamos agora operar com a sentença:<br />

(43) a. João não reprovou <strong>de</strong> novo.<br />

b. Se João reprovou <strong>de</strong> novo, seu pai vai ficar enfurecido.<br />

c. O João reprovou <strong>de</strong> novo?<br />

d. Foi o João que reprovou <strong>de</strong> novo.<br />

e. O João po<strong>de</strong> reprovar <strong>de</strong> novo.<br />

É preciso cuidado com a sentença (43.a), porque ela é ambígua. Uma sentença<br />

ambígua tem duas interpretações, como veremos com mais <strong>de</strong>talhes na seção sobre<br />

quantificadores. Este é certamente o caso <strong>de</strong> (43.a), porque há nela dois operadores, a<br />

negação ‘não’ e o advérbio ‘<strong>de</strong> novo’. Estamos aqui diante <strong>de</strong> um outro fenômeno que<br />

iremos explorar mais adiante: a ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vido ao escopo dos operadores. Por<br />

enquanto, basta notar que em uma interpretação temos que João já reprovou antes, mas<br />

<strong>de</strong>ssa vez isso não aconteceu e, na outra, que mais uma vez não é o caso que João<br />

reprovou. Note que as pressuposições diferem num e no outro caso. Evi<strong>de</strong>ntemente, se<br />

nossa intenção é verificar a pressuposição <strong>de</strong> (40), temos que ficar com a interpretação<br />

<strong>de</strong> que ele já reprovou antes e que <strong>de</strong>ssa vez ele passou, porque é apenas nesse caso que<br />

(43.a) compartilha uma informação com (40). Na outra interpretação, João nunca<br />

reprovou, o que contradiz a afirmação em (40). Logo, não po<strong>de</strong> ser essa a intepretação.<br />

Consi<strong>de</strong>re, agora, (43.c) e se pergunte: o que é que está sendo perguntado?<br />

Pergunta-se se foi o caso que João mais uma vez reprovou. Logo, essa pergunta só faz<br />

sentido num contexto em que falante e ouvinte sabem que o João já reprovou antes.<br />

Essa é, então, a pressuposição, exatamente a mesma que aparece em (40): a sentença em<br />

(44).<br />

(44) João reprovou antes.<br />

15 Uma sentença po<strong>de</strong> ter mais <strong>de</strong> uma pressuposição. Consi<strong>de</strong>re o caso abaixo:<br />

(1) Foi o João quem tirou 10 na prova <strong>de</strong> ontem.<br />

Você consegue perceber duas pressuposições?<br />

53


Vemos essa pressuposição se mantém ao longo das sentenças em (43.a) – (43.e).<br />

É por isso que este é consi<strong>de</strong>rado o teste da pressuposição: a pressuposição se mantém<br />

numa família <strong>de</strong> sentenças. Se compararmos as sentenças em (43) e a sentença em (40),<br />

vemos que o que muda é a informação “nova” (ou posta, na terminologia da semântica<br />

argumentativa). Em (40), afirma-se que isso ocorreu novamente; em (43.a), nega-se que<br />

isso ocorreu novamente; em (43.b) coloca-se a hipótese <strong>de</strong> que isso tenha ocorrido<br />

novamente; (43.c), pergunta-se se isso ocorreu novamente; em (43.d) topicaliza-se a<br />

informação <strong>de</strong> que já ocorreu isso antes; finalmente, em (43.e) coloca-se a hipótese <strong>de</strong><br />

que isso tenha ocorrido <strong>de</strong> novo.<br />

Note que a pressuposição não se confun<strong>de</strong> com o acarretamento, embora esteja<br />

próxima. Consi<strong>de</strong>re o seguinte par <strong>de</strong> sentenças:<br />

(45) João reprovou no exame <strong>de</strong> novo.<br />

(46) João não foi aprovado no exame.<br />

(46) é acarretada por (45), já que se João reprovou, ele não foi aprovado, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> isso já ter ou não ocorrido antes. A sentença em (46) não é, no entanto, pressuposta,<br />

tanto que essa informação <strong>de</strong>saparece na negação, como em (43.a), em que se afirma<br />

que ele foi aprovado no exame, embora tenha reprovado antes. Há, no entanto, casos em<br />

que uma mesma sentença é tanto acarretada quanto pressuposta:<br />

(47) João saiu cedo.<br />

(48) João saiu.<br />

(48) é tanto pressuposta quanto acarretada por (47). Para verificar que ela é pressuposta,<br />

note que po<strong>de</strong>mos operar com (47) sem que a pressuposição seja afetada.<br />

3.3 Descrições Definidas Plurais<br />

Não é possível, num manual introdutório, discutir profundamente o problema<br />

dos plurais, vamos apenas apresentá-lo refletindo sobre as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas plurais.<br />

Consi<strong>de</strong>re a sentença em (6), repetida aqui por conveniência:<br />

54


(48) Os meninos roncam.<br />

Faz pouco tempo que a semântica lingüística conseguiu enten<strong>de</strong>r minimamente o plural.<br />

O trabalho mais relevante nesta área é Link (1983), um texto muito pouco legível para<br />

os não iniciados, embora sua proposta seja <strong>de</strong> interpretação bem fácil. 16 Link põe em<br />

funcionamento duas idéias: a idéia <strong>de</strong> que os conjuntos <strong>de</strong> indivíduos são organizados<br />

internamente e a idéia, pouco intuitiva, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos tratar um sintagma como ‘os<br />

meninos’ como se referindo a um tipo particular <strong>de</strong> indivíduo, um indivíduo plural. Sua<br />

proposta parte, então, da hipótese <strong>de</strong> que os indivíduos, que constituem o conjunto<br />

<strong>de</strong>notado pelo nome comum ‘menino’, estão organizados internamente <strong>de</strong> uma maneira<br />

que é relevante para a interpretação. Os indivíduos se organizam através <strong>de</strong> uma<br />

operação <strong>de</strong> “soma” mereológica que gera indivíduos <strong>de</strong> outros indivíduos. Vejamos<br />

como funciona esse mo<strong>de</strong>lo. Um nome comum como ‘menino’ refere-se, num certo<br />

mundo, a um conjunto <strong>de</strong> indivíduos. Vamos representar esses indivíduos utilizando<br />

letras minúsculas. Assim, a, b e c são os meninos que constituem a <strong>de</strong>notação <strong>de</strong><br />

‘menino’, e [[ ]] é a função <strong>de</strong> interpretação que faz a ponte entre a linguagem e o<br />

mundo:<br />

[[menino]] = { a , b , c }<br />

Até aqui não há nada <strong>de</strong> novo.<br />

Link introduz a idéia <strong>de</strong> que a partir do conjunto <strong>de</strong> meninos e através <strong>de</strong> uma<br />

operação <strong>de</strong> soma, representada por ⊕, construímos “indivíduos plurais” <strong>de</strong> indivíduos<br />

singulares. A idéia é que se temos João e Pedro po<strong>de</strong>mos somá-los num indivíduo<br />

João⊕Pedro. Atenção, João⊕Pedro é um indivíduo, um indivíduo constituído <strong>de</strong> outros<br />

indivíduos. Consi<strong>de</strong>rando o conjunto ‘menino’ acima, po<strong>de</strong>mos construir os seguintes<br />

indivíduos plurais: a ⊕ b, b ⊕ c, a ⊕ c, a ⊕ b ⊕ c. Este último é o indivíduo formado<br />

por todos os indivíduos atômicos. Os indivíduos atômicos são aqueles que não po<strong>de</strong>m<br />

mais ser “divididos”, sem que <strong>de</strong>ixemos <strong>de</strong> ter partes do conjunto ‘menino’. Nessa<br />

perspectiva, a referência do nome comum plural, ‘meninos’ é o conjunto <strong>de</strong> todas as<br />

somas geradas a partir dos indivíduos singulares (menos os indivíduos atômicos), isto é,<br />

no nosso exemplo:<br />

16 Uma introdução muito correta e acessível às idéias <strong>de</strong> Link é Wachowicz (1997).<br />

55


[[meninos]] = { a ⊕ b , a ⊕ c, b ⊕ c , a ⊕ b ⊕ c }<br />

Os indivíduos plurais constituem-se <strong>de</strong> partes que são da mesma “natureza” dos<br />

indivíduos que o compõem, isto é, eles são todos indivíduos <strong>de</strong> um mesmo tipo. Em<br />

outros termos, as somas têm sempre a mesma natureza das partes. Essa proprieda<strong>de</strong> é<br />

<strong>de</strong>nominada, a partir <strong>de</strong> Quine (1960), <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> da referência cumulativa. O<br />

conjunto <strong>de</strong>notado por ‘menino’ se compõe <strong>de</strong> uma soma que tem como partes<br />

mínimas, meninos singulares. Essas são chamadas partes próprias. Note, para contraste,<br />

que indivíduos singulares não exibem essa proprieda<strong>de</strong> da cumulativida<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>re<br />

um indivíduo menino atômico. As suas partes, digamos os pés, os braços, as pernas, o<br />

rosto não são partes próprias do conjunto ‘menino’ porque não são menino, não têm a<br />

mesma natureza <strong>de</strong> menino (um pé <strong>de</strong> um menino é uma parte do menino, mas não é um<br />

menino). Consi<strong>de</strong>re, agora, uma soma constituída <strong>de</strong> dois meninos. Se os separamos,<br />

continuamos a ter menino, meninos individuais. As partes próprias mínimas, isto é,<br />

aquelas que não po<strong>de</strong>m mais ser divididas sem que se mu<strong>de</strong> a natureza dos indivíduos<br />

que fazem parte do conjunto, são chamadas <strong>de</strong> átomos.<br />

A relação <strong>de</strong> parte e todo recebe a seguinte representação, <strong>de</strong>nominada<br />

reticulado (para ser mais exato, na figura abaixo temos um semi-reticulado, porque não<br />

incluímos o zero):<br />

a + b + c<br />

a + b a + c b + c<br />

a b c<br />

O reticulado é um objeto matemático com certas proprieda<strong>de</strong>s, em particular, ele é um<br />

conjunto or<strong>de</strong>nado pela relação “ser parte <strong>de</strong>”, comumente representada por ≤ . Assim, a<br />

é parte <strong>de</strong> a ⊕ b, a ⊕ c, a ⊕ b ⊕ c: a ≤ a ⊕ b; a ≤ a ⊕ c; a ≤ a ⊕ b ⊕ c.<br />

Neste quadro teórico, a sentença em (48) é interpretada da mesma maneira que<br />

uma sentença com uma DD singular, como ‘o menino’. Assim, ‘roncam’ (esqueça, por<br />

enquanto, a morfologia) é um predicado <strong>de</strong> um lugar que precisa ser preenchido por um<br />

argumento que se refere a um indivíduo e ‘os meninos’ é um indivíduo plural<br />

(indivíduos plurais são indivíduos).<br />

56


abaixo:<br />

Com este instrumental po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>screver a ambigüida<strong>de</strong> presente na sentença<br />

(49) Os meninos carregaram o computador.<br />

A sentença em (49) pressupõe que há um indivíduo plural saliente no contexto (pois<br />

trata-se <strong>de</strong> uma DD), mas ela po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira em duas situações muito distintas:<br />

1. Se cada um dos meninos carregou individualmente o computador. Nesse caso, o<br />

predicado ‘carregar o computador’ é distribuído para os indivíduos atômicos que<br />

compõem o indivíduo plural. Suponha que ‘os meninos’ se refere ao indivíduo plural<br />

João⊕Pedro. Na interpretação distributiva, João carregou o computador (sozinho) e<br />

Pedro fez o mesmo, carregou o computador (sozinho). Na sentença em (48) essa é a<br />

única interpretação possível, porque ‘ronca’ é um predicado (ontologicamente)<br />

distributivo (não dá para roncar juntos, né?).<br />

2. Se o computador foi carregado pelos meninos conjuntamente, em grupo. Neste caso,<br />

o predicado se aplica ao indivíduo plural, João e Pedro juntos carregaram o computador;<br />

nenhum dos dois carregou o computador sozinho. Este é um exemplo <strong>de</strong> leitura<br />

coletiva.<br />

Quantas são as interpretações possíveis da sentença: Cinco pesquisadores escreveram<br />

três textos?<br />

3.4 Nomes <strong>de</strong> Massa<br />

Uma outra questão diretamente associada ao plural, porque divi<strong>de</strong> com ele uma<br />

série <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s, e que também foi discutida e analisada por Link, é a distinção<br />

entre nomes contáveis e nomes <strong>de</strong> massa. Consi<strong>de</strong>re, por exemplo, a sentença abaixo:<br />

(50) O leite que está no copo está estragado.<br />

57


Você diria que ‘o leite’ se refere a um indivíduo? É um pouco estranho afirmar isso,<br />

embora seja claro que essa DD se refere a um tanto, a uma quantia particular <strong>de</strong> leite. O<br />

estranhamento vem <strong>de</strong> dizermos que esse tanto é um indivíduo, porque intuitivamente<br />

usamos indivíduo para “coisas” que são <strong>de</strong>stacáveis, enquanto inteiros, como objetos<br />

individualizados, como o menino, a ca<strong>de</strong>ira... Já leite não é uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacável. É<br />

essa a característica dos termos <strong>de</strong> massa: eles se apresentam como uma homogeneida<strong>de</strong><br />

em que não se <strong>de</strong>stacam unida<strong>de</strong>s. Embora essa distinção possa parecer natural, é<br />

interessante saber que nem todas as línguas a apresentam; e que há “objetos” que em<br />

algumas línguas são entendidos como contáveis e em outras como termos <strong>de</strong> massa. Por<br />

exemplo, a palavra ‘hair’ em inglês é <strong>de</strong> massa, mas ‘cabelo’ em português parece ter<br />

um comportamento às vezes massivo, às vezes contável. Consi<strong>de</strong>re o seguinte slogan:<br />

“X <strong>de</strong>ixa os seus cabelos macios”. Alguns lingüistas afirmam que o chinês, por<br />

exemplo, só tem termos <strong>de</strong> massa. No PB essa distinção está presente, como po<strong>de</strong> ser<br />

atestado por vários fatos lingüísticos, entre eles pelo fato <strong>de</strong> que termos <strong>de</strong> massa não se<br />

combinam com alguns quantificadores. Por exemplo, ‘muitos’ só se combina com<br />

nomes contáveis. As sentenças abaixo são estranhas, a menos que seja atribuído a<br />

‘farinha’ uma leitura contável (como, por exemplo, pacotes <strong>de</strong> farinha), porque não<br />

po<strong>de</strong>mos usar ‘muitos’ ou cardinais (cardinais são os numerais) com termos <strong>de</strong> massa:<br />

(51) a. * Muitas farinhas caíram no chão.<br />

b. * Três farinhas caíram no chão.<br />

Se adicionarmos um classificador, uma expressão como ‘pacote’, possibilitando uma<br />

contagem das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>limitadas pelo classificador, as sentenças ficam boas:<br />

(52) a. Muitos pacotes <strong>de</strong> farinha caíram no chão.<br />

b. Três sacos <strong>de</strong> farinha caíram no chã.<br />

Note ainda o contraste com as sentenças abaixo, em que não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

acrescentarmos nenhum classificador para que as sentenças sejam boas, porque temos<br />

um caso <strong>de</strong> nome contável:<br />

(53) a. Muitos meninos caíram no chão.<br />

b. Três meninos caíram no chão.<br />

58


Assim, nomes contáveis são aqueles que se referem a unida<strong>de</strong>s (átomos) que<br />

po<strong>de</strong>mos contar: ‘menino’ é um nome contável porque po<strong>de</strong>mos contar unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

menino. Eles aceitam plural, se combinam com ‘muitos’ e com cardinais diretamente,<br />

sem a mediação <strong>de</strong> um classificador. Nem todos os nomes comuns po<strong>de</strong>m se referir a<br />

átomos, unida<strong>de</strong>s discretas passíveis <strong>de</strong> serem contadas. Este é o caso <strong>de</strong> farinha: não há<br />

unida<strong>de</strong> (natural) <strong>de</strong> farinha (a não ser unida<strong>de</strong>s externas como pacote) Outro exemplo é<br />

o termo ‘água’. De um ponto <strong>de</strong> vista intuitivo (e não da teoria química) se dividimos<br />

água, continuamos obtendo água e água e água sem nunca chegarmos aos átomos (no<br />

sentido um tanto metafórico em que utilizamos o termo átomo, isto é unida<strong>de</strong>s<br />

perceptualmente discretas). Nomes comuns que têm essa proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> não ter átomos<br />

são chamados termos <strong>de</strong> massa ou massa.<br />

Você po<strong>de</strong> estar se perguntado algo como: mas eu conto água! Suponha que<br />

estou num restaurante e digo:<br />

(54) Quero duas águas.<br />

Aparentemente estou contanto unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água, mas basta um momento <strong>de</strong> reflexão<br />

para você perceber que em (54) há um classificador escondido (invisível) e que é ele<br />

quem está sendo contado; dada a situação é muito provável que o classificador seja<br />

‘garrafas’. É assim, aliás, que funciona o chinês: para indicar pluralida<strong>de</strong> ele precisa<br />

necessariamente <strong>de</strong> classificadores. Para enten<strong>de</strong>r consi<strong>de</strong>re o sintagma ‘três cavalos’.<br />

Nele temos um quantificador ‘três’ e o nome contável ‘cavalos’ no plural. Já em chinês,<br />

o conceito <strong>de</strong> três cavalos tem que ser construído como: três animais cavalo.<br />

Uma outra proprieda<strong>de</strong> dos nomes <strong>de</strong> massa é que eles não são pluralizáveis;<br />

assim como os nomes plurais. Afinal, apenas os nomes singulares contáveis po<strong>de</strong>m ser<br />

pluralizados. Consi<strong>de</strong>re o contraste:<br />

(55) a. * Caiu arrozes no chão.<br />

b. Caiu maçãs no chão.<br />

Os termos <strong>de</strong> massa também são consi<strong>de</strong>rados por Link como reticulados, mas que tem<br />

uma estrutura diferente dos reticulados <strong>de</strong> nomes contáveis, porque eles não têm<br />

59


átomos, eles só têm moléculas; isto é, eles são pluralizados, por isso eles não admitem<br />

plural.<br />

4. Os Sintagmas Quantificados<br />

4.1 Sintagmas Quantificados não se referem a um indivíduo<br />

Até agora vimos casos em que o Sintagma Nominal se refere a um indivíduo em<br />

particular: o nome próprio, o pronome (livre ou preso) e a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida. Tanto o<br />

pronome quanto a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>finida são variáveis que têm a sua referência <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

do contexto; ao passo que o nome próprio tem a mesma referência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

do contexto. Mas nem todos os sintagmas nominais se referem a um indivíduo; o que<br />

significa dizer que nem todos os sintagmas nominais são argumentos, porque<br />

argumentos são estruturas saturadas que enquanto tal se referem a um indivíduo ou a<br />

um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Obviamente, se são sintagmas sua referência não po<strong>de</strong> ser um<br />

valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que é a referência <strong>de</strong> sentenças. Os sintagmas quantificados são<br />

sintagmas que não se referem a um indivíduo em particular. Vejamos alguns exemplos<br />

<strong>de</strong> sentenças com esse tipo <strong>de</strong> sintagma:<br />

(56) Todos os meninos roncam.<br />

(57) Todo menino ronca.<br />

(58) Dois meninos roncam.<br />

(59) Nenhum menino ronca.<br />

(60) A maioria dos meninos ronca.<br />

Antes <strong>de</strong> apresentarmos a referência <strong>de</strong>sses sintagmas, vamos mostrar que esses<br />

sintagmas não se referem a um indivíduo, utilizando dois testes.<br />

O primeiro teste envolve acarretamento <strong>de</strong> subconjunto para conjunto. Por<br />

exemplo, a sentença:<br />

(61) João chegou ontem <strong>de</strong> manhã.<br />

Acarreta a sentença:<br />

60


(62) João chegou ontem.<br />

‘Ontem <strong>de</strong> manhã’ é um subconjunto <strong>de</strong> ‘ontem’ e a inferência é válida: se João chegou<br />

ontem <strong>de</strong> manhã, então ele chegou ontem. A generalização é: essa inferência é sempre<br />

válida se o sintagma nominal se referir a um indivíduo. Faça o teste com uma DD como<br />

‘o menino’ e verifique que a inferência funciona. Consi<strong>de</strong>re, agora, a sentença:<br />

(63) Exatamente um menino chegou ontem <strong>de</strong> manhã.<br />

Será que é possível inferir <strong>de</strong> (63) que ‘exatamente um menino chegou ontem’? Não,<br />

não é possível, porque po<strong>de</strong> ser o caso que um menino chegou ontem <strong>de</strong> manhã, outro,<br />

na hora do almoço e outro à tar<strong>de</strong>. Logo, não é o caso que exatamente um menino<br />

chegou ontem. Nesse caso, a inferência <strong>de</strong> subconjunto para conjunto não é válida.<br />

Faça o teste com ‘dois meninos’, ‘a meta<strong>de</strong> dos meninos’, ‘nenhum menino’ e verifique<br />

se a inferência funciona.<br />

O segundo teste é o da contradição. Sentenças em que o sintagma nominal se<br />

refere a um indivíduo, quando combinados com predicados que são contraditórios, são<br />

sentenças contraditórias. Por exemplo, o predicado ‘ser gordo’ e ‘ser magro’ são<br />

contraditórios porque, estritamente falando, não é possível ser, ao mesmo tempo, gordo<br />

e magro. Consi<strong>de</strong>re, agora, a sentença:<br />

(64) João é gordo e João é magro.<br />

A sentença em (64) é contraditória. Veja o que ocorre se substituímos ‘João’ por um<br />

sintagma quantificado:<br />

(65) Um menino é gordo e um menino é magro.<br />

Essa é uma sentença perfeita, não há qualquer traço <strong>de</strong> contradição, isso porque<br />

atribuímos a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser gordo a um menino e a <strong>de</strong> ser magro a outro menino; o<br />

que <strong>de</strong>monstra que o sintagma ‘um menino’ não se refere a um indivíduo em particular.<br />

61


A conclusão é que um sintagma quantificado não se refere a um indivíduo. A<br />

que, então, ele se refere?<br />

É muito comum a idéia <strong>de</strong> que ele se refere a um conjunto, em especial se<br />

consi<strong>de</strong>ramos o sintagma ‘todo menino’. A resposta intuitiva é: ‘todo menino’ se refere<br />

ao conjunto <strong>de</strong> meninos, mas ela nos leva a um beco sem saída. Por esse raciocínio<br />

temos que dizer que o sintagma ‘nenhum menino’ se refere ao conjunto vazio,<br />

representado por ∅. Você po<strong>de</strong> não ter notado, mas estamos utilizando, intuitivamente,<br />

a teoria <strong>de</strong> conjuntos para <strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> uma sentença. Por<br />

exemplo, na <strong>de</strong>scrição da interpretação <strong>de</strong> ‘João saiu’ chegamos ao resultado que ela é<br />

verda<strong>de</strong>ira se e somente se João pertence ao conjunto dos que saíram. Nesse quadro, a<br />

sentença:<br />

(66) Nenhum menino saiu.<br />

É verda<strong>de</strong>ira se o conjunto ∅ está contido no conjunto dos que saíram. Mas isso é uma<br />

trivialida<strong>de</strong>, dado que ele está sempre contido em qualquer conjunto (você <strong>de</strong>ve se<br />

lembrar que o conjunto vazio está contido em todos os conjuntos). No entanto, a<br />

sentença em (66) não é trivial. Essa <strong>de</strong>scrição não consegue, tampouco, fazer jus a nossa<br />

intuição. Ao usarmos (66) não estamos dizendo que o conjunto vazio saiu. Finalmente,<br />

se adotarmos essa <strong>de</strong>scrição, chegamos a resultados ina<strong>de</strong>quados. Consi<strong>de</strong>re, por<br />

exemplo, as sentenças:<br />

(67) Nenhum menino saiu rápido.<br />

(68) Nenhum menino saiu.<br />

‘saiu rápido’ é um subconjunto <strong>de</strong> ‘saiu’. Se em (67) dizemos que o conjunto vazio está<br />

contido no conjunto ‘saiu rápido’, então, necessariamente, ele está contido no<br />

superconjunto ‘saiu’. Mas se é assim, então a sentença em (67) acarreta a sentença em<br />

(68), o que vai contra a nossa intuição, porque ela nos diz que (67) po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira e<br />

(68) falsa; logo, não há relação <strong>de</strong> acarretamento.<br />

A conclusão é que o sintagma quantificado não se refere nem a um indivíduo<br />

nem a um conjunto! A que, então, ele se refere?<br />

4.2 Quantificadores Generalizados<br />

62


Consi<strong>de</strong>re, para iniciarmos nossa análise, a sentença em (57), ‘todo menino<br />

ronca’. O predicado ‘ronca’ pe<strong>de</strong> um indivíduo para se tornar saturado. Os nomes<br />

próprios, as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>finidas e os pronomes, singulares ou plurais, referem-se a<br />

indivíduos e são, portanto, candidatos naturais a preencherem a lacuna <strong>de</strong> ‘roncar’.<br />

Contudo, em (57) a lacuna do predicado é preenchida por um sintagma quantificado<br />

‘todo menino’, que não se refere a um indivíduo. Temos, portanto, um problema <strong>de</strong><br />

combinação: como vamos combinar ‘ronca’, que pe<strong>de</strong> um indivíduo, e ‘todo menino’,<br />

que não se refere a um indivíduo? Como vamos fazer para compor esses dois sintagmas<br />

se eles não se combinam? Como compor essas duas expressões? Seguindo mais uma<br />

vez uma sugestão <strong>de</strong> Frege, que nos ensinou a olhar para o sintagma quantificado por<br />

um viés que permite resolver nosso problema: um sintagma quantificado não é um<br />

argumento, mas um predicado <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m, um predicado que pe<strong>de</strong> outro<br />

predicado para se saturar. Antes víamos o predicado ‘ronca’ como sendo insaturado e<br />

pedindo um indivíduo para a sua saturação. Agora, vamos inverter a direção do olhar: é<br />

o sintagma quantificado, ‘todo menino’, que é uma estrutura insaturada; essa estrutura<br />

pe<strong>de</strong> um predicado para ser saturado.<br />

O sintagma quantificado é, pois, uma estrutura faltante que pe<strong>de</strong> um outro<br />

predicado para ser preenchida:<br />

Qualquer menino ______<br />

Veja abaixo algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> preenchimento <strong>de</strong>ssa lacuna:<br />

todo menino<br />

brinca<br />

chora<br />

faz arte<br />

canta<br />

joga bola<br />

se escon<strong>de</strong><br />

63


‘Ronca’, ‘brinca’, ‘joga bola’... são predicados que saturam o sintagma quantificado. É<br />

por isso que Frege disse que quantificadores são predicados <strong>de</strong> segunda or<strong>de</strong>m:<br />

predicados <strong>de</strong> predicados: ‘todo’ primeiro se combina com ‘menino’, gerando ‘todo<br />

menino’, <strong>de</strong>pois ele se satura com outro predicado, ‘ronca’. Se pensarmos na<br />

representação em árvore, dada abaixo, estamos olhando do Sintagma Quantificado para<br />

o Sintagma Verbal.<br />

Qual é a semântica <strong>de</strong>ssa estrutura <strong>de</strong> predicado <strong>de</strong> predicado? A proprieda<strong>de</strong><br />

com que<br />

o sintagma quantificado se combina, ‘ronca’, por exemplo, <strong>de</strong>screve o<br />

conjunto <strong>de</strong>notado pela proprieda<strong>de</strong> ‘menino’, já que todos os meninos roncam (mas<br />

nem todos os que roncam são meninos!). Assim chegamos a seguinte regra semântica:<br />

Todo N P é verda<strong>de</strong>ira se P é verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> todos os Ns.<br />

S<br />

SQ SV<br />

Q SN V<br />

Todo menino ronca<br />

Essa<br />

é a nossa intuição. Mas qual é exatamente a contribuição semântica do<br />

quantificador ‘todo’? O que ele faz? O quantificador é uma estrutura duplamente<br />

insaturada como o predicado <strong>de</strong> dois lugares, só que ele se satura com predicados,<br />

enquanto que o predicado <strong>de</strong> dois lugares se satura com indivíduos, veja o paralelo:<br />

(6 9) Todo<br />

menino ronca<br />

Quantificador predicado predicado<br />

(7 0) João ama<br />

Maria<br />

indivíduo predicado dois lugares indivíduo<br />

U m predicado <strong>de</strong> dois lugares, como ‘comer’, ‘amar’, ‘odiar’, estabelece uma relação<br />

entre dois indivíduos: no caso em (69), João estabelece uma relação <strong>de</strong> amor com a<br />

64


Maria. Da mesma forma, um quantificador estabelece uma relação entre duas<br />

proprieda<strong>de</strong>s, entre dois conjuntos <strong>de</strong> indivíduos. Em (70), ‘todo’ estabelece uma<br />

relação entre o conjunto dos meninos e o conjunto dos que roncam. Po<strong>de</strong>mos<br />

representá-la assim:<br />

Todo (Menino) Ronca<br />

No nosso caso, ‘menino’ é o chamado domínio do operador, porque ele explicita sobre<br />

o que é que vai ser feita a generalização, o domínio <strong>de</strong> uma dada generalização;<br />

enquanto que ‘ronca’ é o chamado escopo nuclear, porque ele indica qual é a<br />

proprieda<strong>de</strong> que vai ser atribuída ao domínio. Qual é a relação entre esses conjuntos? É<br />

uma relação <strong>de</strong> inclusão: o conjunto dos que ronca inclui o conjunto dos meninos, afinal<br />

todos os meninos roncam (mas há coisas que roncam e não são meninos):<br />

Menino ⊂ Ronca<br />

Menino<br />

Essa é teoria conhecida como a Teoria dos Quantificadores Generalizados: o<br />

quantificador<br />

é um predicado duplamente insaturado que estabelece uma relação entre<br />

conjunto dos meninos ∩ conjunto dos<br />

que roncam = ∅<br />

Ronca<br />

predicados. Esse mesmo raciocínio se aplica aos outros casos <strong>de</strong> quantificação.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, a relação entre os conjuntos vai mudar conforme o quantificador. Por<br />

exemplo, em (59), ‘Nenhum menino ronca’, se estabelece que entre os conjuntos dos<br />

que roncam e dos que são meninos não há intersecção; eles são conjuntos disjuntos,<br />

como mostra o <strong>de</strong>senho (1) mais abaixo.<br />

65


Assim, o que a sentença nos diz é que não há elemento que seja ao mesmo tempo<br />

menino<br />

e roncador; o que <strong>de</strong> fato capta nossa intuição sobre o sentido da sentença (59).<br />

Uma parte do trabalho dos semanticistas é <strong>de</strong>terminar qual é exatamente a<br />

relação que os quantificadores estabelecem e em muitos casos é bem difícil explicitar.<br />

Vejamos<br />

um exemplo não tão complicado. A sentença em (58), ‘Dois meninos roncam’,<br />

coloca um problema que ocupou a literatura por um certo tempo: sabemos que há uma<br />

intersecção entre os conjuntos dos meninos e dos que roncam; sabemos que nessa<br />

intersecção <strong>de</strong>ve haver dois indivíduos, como mostra o <strong>de</strong>senho (2) abaixo; mas será<br />

que são exatamente dois ou pelo menos dois? Um falante que profere (58) diz que são<br />

exatamente dois meninos que roncam ou que pelo menos dois meninos roncam? O<br />

problema fica mais complicado quando temos quantificadores que são altamente<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do contexto. Por exemplo, o que significa ‘muitos’? Suponha que temos<br />

uma sala <strong>de</strong> 100 alunos, <strong>de</strong>sses 10 passaram direto no ITA. Po<strong>de</strong>mos dizer que ‘Muitos<br />

alunos passaram no ITA’; porém, se 10 alunos <strong>de</strong> uma turma <strong>de</strong> 100 passaram num<br />

vestibular, po<strong>de</strong>mos dizer: ‘Poucos alunos passaram no vestibular’.<br />

Desenho (1) Desenho (2)<br />

menino ronca dois<br />

Como já dissemos, este curso é uma introdução, o que significa que muitas<br />

questões<br />

serão apenas sugeridas. Vamos apresentar duas: as proprieda<strong>de</strong>s matemáticas<br />

das relações<br />

e a interpretação dos sintagmas quantificados em posição <strong>de</strong> objeto.<br />

Dê a semântica das sentenças:<br />

(1) Um aluno ama o João.<br />

(2) Todos os alunos amam o João.<br />

(3) Dois alunos amam o João.<br />

(4) Nenhum aluno ama o João.<br />

4.3 Relações são proprieda<strong>de</strong>s matemáticas<br />

66


É muito comum ouvir a crítica <strong>de</strong> que usar uma metalinguagem lógico-<br />

matemática é um preciosismo dos semanticistas formais. De fato, esse é um requisito<br />

das ciências contemporâneas que utilizam como metalinguagem a lógica e a<br />

matemática, como um procedimento metodológico que permite construir uma teoria<br />

explícita e, portanto, verificável (e falsificável). A física é sempre um bom exemplo,<br />

pois basta como ela enten<strong>de</strong> os fenômenos da natureza<br />

matematicamente: força é massa<br />

vezes<br />

aceleração. Mas há um outro motivo, um tanto mais misterioso: po<strong>de</strong> ser que a<br />

natureza<br />

seja <strong>de</strong> fato matemática. Po<strong>de</strong> ser que ao traduzirmos a natureza num cálculo<br />

matemático vejamos aspectos <strong>de</strong>la que não seriam <strong>de</strong> outra forma <strong>de</strong>scobertos. Este é o<br />

caso com a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que os sintagmas quantificados são relações matemáticas: essa<br />

maneira <strong>de</strong> ver um fenômeno das línguas naturais permitiu enten<strong>de</strong>r aspectos que<br />

provavelmente permaneceriam ocultos fora <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista. Vamos exemplificar<br />

três aspectos, com o objeto único <strong>de</strong> mostrar que uma <strong>de</strong>scrição formal po<strong>de</strong> ser muito<br />

importante para enten<strong>de</strong>rmos o funcionamento <strong>de</strong> uma língua natural; por isso mesmo,<br />

não vamos nos <strong>de</strong>ter na apresentação formal das relações.<br />

Vamos explorar duas relações matemáticas: a reflexivida<strong>de</strong> e a conversativida<strong>de</strong>.<br />

Uma relação é reflexiva se para todo A, o par pertence a essa relação. O<br />

quantificador ‘todo’ é reflexivo porque o conjunto do domínio está contido no conjunto<br />

do escopo nuclear: ‘todo menino chora’. Para todo x que é menino, esse x também<br />

chora. Já o quantificador ‘algum’ não é reflexivo, porque nem todos os elementos que<br />

pertencem ao domínio do quantificador pertencem também ao escopo nuclear: em<br />

‘algum menino chora’ é o caso que nem todo menino chora.<br />

‘Nenhum’ é irreflexivo,<br />

porque para todo A é o caso que o par não pertence à relação. Agora veja que<br />

curioso:<br />

(71) a. * Tem todo menino no jardim.<br />

b. Tem algum menino no jardim.<br />

c. Não tem nenhum menino no jardim.<br />

Sempre que o quantificador for reflexivo ele vai ser agramatical em sentenças<br />

existenciais.<br />

De alguma forma, sabemos que a regra para inclusão em contextos<br />

existenciais é não ser reflexivo.<br />

67


Uma o utra proprieda<strong>de</strong> é a conversativida<strong>de</strong>. Para quaisquer conjuntos A e B, a<br />

relação entre e les é conservativa se e somente se o par pertencer à relação.<br />

Por<br />

exemplo, se o quantificador ‘todo’ for conservativo, então a equivalência abaixo<br />

<strong>de</strong>ve valer:<br />

(72) Todo menino ronca<br />

é equivalente a todo menino é menino que ronca.<br />

O que <strong>de</strong> fato é o caso. Se você prestar atenção no <strong>de</strong>senho acima, em que está<br />

representada a sentença ‘todo menino ronca’, verá que <strong>de</strong> fato esse é o caso, porque a<br />

intersecção dos dois conjuntos<br />

é o próprio A. Consi<strong>de</strong>re agora a sentença:<br />

(73) Somente menino chora.<br />

Será que ‘somente’ é conservativo? Não, não é. Veja que (74) não é equivalente a (73):<br />

(74) Somente menino é menino que chora.<br />

(73) é verda<strong>de</strong> numa situação em que apenas<br />

os meninos choram; po<strong>de</strong> haver menino<br />

que<br />

não chora, mas não po<strong>de</strong> haver coisas que choram e não são meninos. Já as<br />

condições <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> (74) são diferentes; ela po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>ira se outras coisas,<br />

além<br />

<strong>de</strong> meninos, choram. O curioso é que se <strong>de</strong>scobriu que todos os <strong>de</strong>terminantes das<br />

línguas natura is são conservativos. Assim, se algo é um <strong>de</strong>terminante, esse algo é<br />

conservativo.<br />

Logo, ‘somente’ não é um <strong>de</strong>terminante, embora, numa primeira olhada,<br />

ele possa parecer ser um <strong>de</strong>terminante, porque aparece imediatamente antes do nome.<br />

Este é, portanto, um instrumento importante para investigar as línguas naturais. Por<br />

exemplo, se estamos analisando uma língua que não conhecemos e queremos verificar<br />

se um dado item lexical é um <strong>de</strong>terminante, temos um método seguro para isso. Na<br />

literatura sobre comparativos, discute-se se o operador comparativo, o ‘mais’, por<br />

exemplo, é conservativo. Se sim, ele é um <strong>de</strong>terminante e po<strong>de</strong>mos, então, explicá-lo<br />

como um quantificador generalizado, isto é, como estabelecendo uma relação entre dois<br />

conjuntos.<br />

4.4 Sintagmas quantificados na posição <strong>de</strong> objeto<br />

68


Um problema difícil, cuja solução ainda não é <strong>de</strong> consenso na literatura, diz<br />

respeito à presença do sintagma quantificado na posição <strong>de</strong> objeto, como exemplificado<br />

abaixo:<br />

(75) João ama toda criança.<br />

Suponha<br />

que (75) seja uma sentença boa em PB . 17 O problema é o seguinte: não<br />

po<strong>de</strong>mos, na análise <strong>de</strong> (75), dizer que o sintagma quantificado se satura com um<br />

predicado<br />

<strong>de</strong> um lugar (uma proprieda<strong>de</strong>) simplesmente porque não é esse o caso, afinal<br />

o sintagma quantificado está na posição <strong>de</strong> argumento interno <strong>de</strong> ‘amar’, um predicado<br />

d e dois lugares! Lembre-se <strong>de</strong> que o quantificador<br />

relaciona dois conjuntos. On<strong>de</strong> estão<br />

os<br />

dois conjuntos em (75)? Há duas soluções na semântica contemporânea para esse<br />

problema; vamos apresentar apenas uma, não apenas porque ela é mais simples, mas<br />

também porque é a mais difundida na literatura atual. 18<br />

Nessa hipótese, mantém-se que o sintagma quantificado dá sempre a mesma<br />

contribuição, isto é, ele sempre se satura com um predicado <strong>de</strong> um lugar. Precisamos,<br />

então, <strong>de</strong> um mecanismo que permita fazer surgir da sentença em (75) um predicado <strong>de</strong><br />

um lugar. A solução é mover o sintagma quantificado para uma posição mais alta do<br />

que a sentença, como se estivéssemos numa estrutura <strong>de</strong> tópico, produzindo algo como:<br />

(76) Toda criança é tal que João ama ela.<br />

Ou, mais formalmente:<br />

(77) Toda criança xi, João ama xi<br />

Não vamos <strong>de</strong>strinchar (77), mas faremos três comentários. O primeiro é que<br />

apelar<br />

para movimento não é uma solução ad hoc, porque precisamos <strong>de</strong> movimento<br />

para explicarmos outros<br />

fenômenos das línguas naturais, por exemplo, os<br />

<strong>de</strong>slocamentos<br />

como ‘A Maria, o João ama’. Em segundo lugar, com (77) é possível<br />

17<br />

Particularmente, (75) parece um tanto estranha. Mas tal estranhamento é, muito provavelmente, <strong>de</strong>vido<br />

à semântica do ‘toda’. Não vamos nos incomodar com isso, porque o problema da interpretação do<br />

sintagma quantificado é o mesmo se substituímos ‘toda criança’ por ‘duas crianças’; então a questão da<br />

aceitabilida<strong>de</strong> específica da sentença (75) é irrelevante para este problema.<br />

18<br />

O leitor interessado na discussão sobre essas duas teorias po<strong>de</strong> consultar Portner (2005) e, <strong>de</strong>pois, Heim<br />

& Kratzer (2002).<br />

69


mostra r que o quantificador estabelece uma relação entre dois conjuntos. Um conjunto é<br />

o conjunto das crianças, o outro conjunto é dado pela sentença “aberta”: ‘João ama x’.<br />

Se pensarmos<br />

um pouco, vemos que essa sentença aberta po<strong>de</strong> ser transformada num<br />

conjunto: o conjunto das coisas que João gosta, {x : João gosta <strong>de</strong> x}. 19 Temos, então,<br />

dois conjuntos: o conjunto das crianças e o conjunto das coisas que João ama, O<br />

quantificador expressa então a relação <strong>de</strong> inclusão: o conjunto das crianças está incluído<br />

no conjunto as coisas que João ama. João ama outras coisas, mas se algo é criança, ele<br />

ama esse algo.<br />

O último comentário diz respeito a variável. Lembre-se que dissemos que há<br />

dois tipos <strong>de</strong> pronomes: o pronome livre e o pronome preso. Se você prestar atenção,<br />

verá que em (77) a variável está presa pelo quantificador, isto é, o valor <strong>de</strong>ssa variável<br />

vai co-variar com o valor da primeira variável. Se a primeira variável se referir a João, a<br />

segunda também vai se referir a João. Se a primeira se referir a Pedro, a segunda<br />

também vai se referir a Pedro e assim sucessivamente. Não po<strong>de</strong>mos dizer que<br />

pronomes<br />

presos por quantificadores são co-referencias, porque, como mostramos,<br />

sintagmas quantificados não se referem a indivíduos em particular; eles não são<br />

referenciais. Logo, a relação entre eles é <strong>de</strong> ligação.<br />

Faça a <strong>de</strong>rivação da sentença:<br />

(1) A Maria ama um professor.<br />

4.5 Escopo <strong>de</strong> operadores<br />

Consi<strong>de</strong>re a sentença abaixo:<br />

(78) Todos os alunos compraram um presente para o professor.<br />

Essa sentença coloca uma questão<br />

que tem ocupado as pesquisas em semântica: ela é<br />

ambígua,<br />

isto é, ela esboça dois tipos <strong>de</strong> situação completamente distintos, <strong>de</strong> tal forma<br />

que dada uma interpretação ela é verda<strong>de</strong>ira<br />

numa situação em que a outra interpretação<br />

é falsa. Vejamos as leituras possíveis:<br />

19 Essa é a intuição básica do cálculo lambda, um instrumento necessário para a semântica<br />

contemporânea, mas cuja apresentação extrapola os limites <strong>de</strong>sse manual. O leitor po<strong>de</strong> consultar Partee<br />

et all () para uma apresentação do tema.<br />

70


1. Os alunos todos em conjunto compraram um único presente e <strong>de</strong>ram esse<br />

presente<br />

para o professor.<br />

2. Cada um dos alunos comprou um presente para o professor. Nesta última<br />

situação, o professor recebeu tantos presentes quantos forem os alunos.<br />

A primeira interpretação é falsa<br />

na situação em que o professor recebeu vários<br />

presentes,<br />

enquanto a segunda é verda<strong>de</strong>ira nessa situação. A primeira é verda<strong>de</strong>ira se o<br />

professor recebeu um único presente e a segunda é falsa nessa situação. Chamamos a<br />

primeira interpretação <strong>de</strong> escopo<br />

invertido, por razões que já vão ficar claras. Po<strong>de</strong>mos<br />

representá-la no <strong>de</strong>senho em (1). Já a segunda é a leitura distributiva, porque se<br />

distribuem os presentes para os alunos, como mostra o <strong>de</strong>senho em (2).<br />

(1)<br />

(2)<br />

Alunos<br />

Presentes Alunos Presentes<br />

a 1 a 1<br />

b 2 b 2<br />

c 3 c 3<br />

d 4 d 4<br />

Na sentença em (78), há dois sintagmas quantificados, ‘todos os alunos’ e ‘um<br />

presente’. Mostramos que o sintagma ‘um presente’ tem que se mover para que seja<br />

possível <strong>de</strong>tectarmos os conjuntos que estão relacionados pelo quantificador. Mas<br />

apenas esse movimento não é suficiente para explicarmos a ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrita acima.<br />

Para isso precisamos que os dois sintagmas quantificados se movimentem. A literatura<br />

e m sintaxe tem apontado que o sintagma quantificado se move da sua posição original,<br />

c omo argumentamos na seção anterior, por razões <strong>de</strong> checagem <strong>de</strong> traço. Assim,<br />

sintagmas quantificados vão sempre se <strong>de</strong>slocar da sua posição <strong>de</strong> origem para uma<br />

posição mais alta, acima da sentença. Em (78), os sintagmas quantificados, ao se<br />

moverem, geram duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arranjo, representadas abaixo. Note que nessas<br />

configurações um sintagma ocorre antes do outro, indicando a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> aplicação das<br />

operações semânticas:<br />

(79) (todos os alunosi (um presentej (xi comprou yj))).<br />

(80) (um presentej (todos os alunosi (xi comprou yj))).<br />

71


Em (79), para cada aluno há um presente que ele comprou. Esta é a leitura distributiva.<br />

Nela o sintagma universal, ‘todos os alunos’, tem escopo sobre o existencial, ou seja,<br />

primeiro se aplica a intersecção, a operação do existencial, e <strong>de</strong>pois a inclusão. A or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong><br />

operação é a inversa em (80), em que o ‘um’ tem escopo sobre o ‘todos’. Neste caso,<br />

temos que há um presente para todos os alunos tal que eles compraram ele. Deve estar<br />

claro porque chamamos (80) <strong>de</strong> escopo invertido: o sintagma que,<br />

na forma superficial,<br />

aparece<br />

mais interno, se move para uma posição mais alta, invertendo o escopo aparente<br />

da sentença.<br />

Eis um outro exemplo do mesmo fenômeno que ficou famoso por conta <strong>de</strong> ter<br />

sido discutido por Chomsky para mostrar que há diferença entre sentenças passivas e<br />

ativas:<br />

(81) Todos os alunos <strong>de</strong>ssa sala falam duas línguas.<br />

Primeiro, perceba<br />

a ambigüida<strong>de</strong>:<br />

1. Duas línguas são tais que todos os alunos falam elas.<br />

2. Todos os alunos são tais que eles falam duas línguas.<br />

A ssim, po<strong>de</strong> ser que todos os alunos falem as mesmas duas línguas (inglês<br />

e português,<br />

por<br />

exemplo) ou po<strong>de</strong> ser que cada aluno fale duas línguas não as mesmas duas (João<br />

fala português e inglês, Maria fala inglês e chinês, Pedro árabe e espanhol). Em (81),<br />

temos,<br />

mais uma vez, dois sintagmas quantificados, ‘todos os alunos’ e ‘duas línguas’.<br />

Assim u m po<strong>de</strong> ter escopo sobre o outro. Na interpretação 1, ‘duas<br />

línguas’ tem escopo<br />

sobre ‘ todos’; enquanto que em 2 é ‘todos’ que tem escopo sobre<br />

‘duas línguas’. A<br />

ambigüida<strong>de</strong><br />

ocorre na ativa; a passiva, ‘Duas línguas são faladas por todos os alunos<br />

<strong>de</strong>ssa sala’, só comporta uma interpretação: há duas línguas que todos os alunos falam.<br />

Vimos que a ambigüida<strong>de</strong> das sentenças em (78) e (81) se explica através do<br />

conceito <strong>de</strong> escopo e <strong>de</strong> movimento. Ambigüida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse tipo são chamadas <strong>de</strong><br />

ambigüida<strong>de</strong>s semânticas. O escopo indica o alcance da operação semântica que está<br />

sendo realizada. Vejamos um exemplo simples <strong>de</strong> alcance <strong>de</strong> uma operação semântica:<br />

(82) João não ronca.<br />

72


O ‘não’<br />

atua (= tem escopo) sobre a sentença ‘João ronca’, negando-a. Veja que nessa<br />

<strong>de</strong>scrição o operador, o ‘não’, se move <strong>de</strong> sua posição interna, antes do verbo, para uma<br />

posição acima da sentença, exatamente para po<strong>de</strong>r ter escopo sobre ela. Neste caso não<br />

há ambigüida<strong>de</strong>, porque só há m operador; mas se na sentença houver dois operadores,<br />

um<br />

po<strong>de</strong> operar sobre o outro, gerando com isso resultados diferentes. Este é o caso<br />

tanto d e (78) quanto <strong>de</strong> (81), porque quantificadores são um tipo <strong>de</strong> operador. No<br />

exemplo<br />

abaixo, já discutido na seção sobre pressuposição, há dois operadores: ‘não’ e<br />

‘<strong>de</strong> novo’. Ocorre, então, que um po<strong>de</strong> ter escopo sobre o outro:<br />

(83):<br />

(83) João não reprovou <strong>de</strong> novo.<br />

Apresentamos abaixo as duas formas semânticas que po<strong>de</strong>m ser atribuídas a<br />

(84) Não (<strong>de</strong> novo (João reprovou))<br />

(85) De novo (não (João reprovou))<br />

(84)<br />

indica que primeiro aplicamos o ‘<strong>de</strong> novo’ sobre a sentença (em outros termos, ‘<strong>de</strong><br />

novo’, neste caso, tem escopo sobre ‘João reprovou’) obtendo ‘João reprovou <strong>de</strong> novo’<br />

e <strong>de</strong>pois<br />

aplicamos a negação, gerando: não é o caso que João reprovou <strong>de</strong> novo. Ou<br />

seja,<br />

ele já reprovou antes, mas <strong>de</strong>ssa vez ele não reprovou. Assim, ‘não’ tem escopo<br />

mais amplo<br />

do que ‘<strong>de</strong> novo’.<br />

Em (85), o operador ‘não’ tem escopo<br />

mais restrito; assim, ele age primeiro,<br />

atuando<br />

apenas sobre a sentença e gerando: ‘João não reprovou’. Em seguida aplicamos<br />

o ‘<strong>de</strong> novo’ e obtemos que mais uma vez não é o caso que João reprovou. Neste caso,<br />

‘<strong>de</strong> novo’ tem escopo mais amplo do que o ‘não’.<br />

São inúmeros os casos que po<strong>de</strong>m ser explicados através da noção <strong>de</strong> escopo.<br />

I<strong>de</strong>ntifique<br />

as duas interpretações da sentença:<br />

(1)<br />

João não gosta <strong>de</strong> todos os alunos<br />

Explique por que ela é ambígua.<br />

73


Módulo 3<br />

O Sintagma Verbal – Tempo, Aspecto e Acionalida<strong>de</strong><br />

Neste módulo, a nossa atenção estará centrada no verbo, enquanto núcleo da<br />

predicação e núcleo da sentença. No primeiro caso, estaremos atentando para a<br />

atribuição <strong>de</strong> papéis temáticos e para o verbo enquanto estrutura a ser completada, como<br />

uma espécie <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> para a formação <strong>de</strong> sentenças. No segundo caso, enten<strong>de</strong>remos o<br />

verbo enquanto núcleo da sentença, no sentido <strong>de</strong> que é ele que carrega informações<br />

sobre tempo, aspecto e acionalida<strong>de</strong>.<br />

1 Papéis temáticos<br />

Uma maneira interessante <strong>de</strong> pensar o verbo e contrapô-lo aos nomes é entendêlo<br />

como uma estrutura a ser completada, um predicado, como já vimos. Isso fica mais<br />

claro quando pensamos em sentenças como:<br />

(1) ? João beijou.<br />

(2) ? João <strong>de</strong>u o presente.<br />

Essas sentenças não são boas justamente porque temos a sensação <strong>de</strong> que falta algo, <strong>de</strong><br />

que o verbo ou a sentença não estão completos. Sabemos, intuitivamente, que o verbo<br />

‘beijar’ requer dois indivíduos para expressar uma relação completa: aquele que beija e<br />

aquele que é beijado. Do mesmo modo, sabemos que o verbo ‘dar’ requer três<br />

argumentos: aquele que dá alguma coisa, a coisa que é dada, e aquele que recebe a<br />

coisa. Utilizando uma metáfora vinda da química, dizemos que o número <strong>de</strong> argumentos<br />

que um verbo precisa para ter seu sentido completo é sua valência, por isso dizemos<br />

que um verbo é monovalente (1 argumento), bivalente (2 argumentos), trivalente e<br />

assim por diante.<br />

Vale lembrar que muitos substantivos e adjetivos também têm valência. Assim, quando<br />

dizemos algo como ‘João é diferente’ ou ‘João viu a <strong>de</strong>struição’, precisamos <strong>de</strong> um<br />

complemento para completar o sentido das palavras sublinhadas, que po<strong>de</strong> ser “do<br />

74


Pedro”, para o primeiro caso, e “da casa” para o segundo. Vale a pena notar ainda, no<br />

último caso, a presença <strong>de</strong> uma nominalização e do uso da preposição, comparando com<br />

‘João viu <strong>de</strong>struírem<br />

a casa.’<br />

Sentenças<br />

como (3) e (4) po<strong>de</strong>m ser formalizadas lançando mão da idéia <strong>de</strong> predicados<br />

e argumentos<br />

(constantes individuais ou variáveis). Usando o cálculo <strong>de</strong> predicado,<br />

po<strong>de</strong>mos representar<br />

(3) João beijou a Maria<br />

, como<br />

B(j,m) = João (j) estabelece uma<br />

relação <strong>de</strong> beijar (B) com Maria (m); e<br />

(4) João <strong>de</strong>u o presente para Tiago<br />

como<br />

D(j,p,t) = João (j), presente (p) e Tiago (t) estão na relação dar (D)<br />

No<br />

entanto, como já dissemos logo acima, nossa intuição <strong>de</strong> falante nos diz também que<br />

os argumentos do verbo não são iguais e nem se relacionam igualmente com o verbo;<br />

por isso as paráfrases para as sentenças oferecidas acima são um pouco <strong>de</strong>sconfortáveis.<br />

Sabemos que, por exemplo, o verbo ‘beijar’ relaciona-se assimetricamente com os seus<br />

argumentos porque um <strong>de</strong>les é aquele que beija, que realiza a ação, e o outro, aquele<br />

que é beijado, que sofre a ação do beijo. Para essas relações entre o verbo e seus<br />

argumentos a lingüística cunhou o nome papéis temáticos.<br />

Voltando à sentença (3), parece ser intuitivamente válido afirmar que ‘João’ é o<br />

AGENTE<br />

do verbo ‘beijar’ e ‘Maria’ seu o PACIENTE ou TEMA. Para a sentença (4),<br />

temos que ‘João’ é o AGENTE do verbo ‘dar’, ‘presente’ é o seu TEMA e ‘Tiago’ o seu<br />

BENEFICIÁRIO, aquele que recebe o presente (que se beneficia). Uma primeira<br />

75


<strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ssas etiquetas, que serve para os nossos propósitos, mas que merece mais<br />

elaboração, po<strong>de</strong> ser:<br />

AGENTE: ser consciente que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o evento em questão;<br />

PACIENTE ou TEMA: ser consciente ou não que sofre ou é o alvo do evento em<br />

questão;<br />

BENEFICIÁRIO: alvo do resultado <strong>de</strong> um evento;<br />

INSTRUMENTO:<br />

meio ou objeto através do qual o evento se realiza.<br />

Vale<br />

a pena dizer que essa assimetria aparece claramente nas representações sintáticas<br />

que adotamos<br />

no módulo anterior.<br />

SN<br />

S<br />

SV<br />

N V SN<br />

João<br />

AGENTE<br />

beijar N<br />

Maria<br />

PACIENTE<br />

A representação acima <strong>de</strong>ixa claro que o verbo transitivo, no caso ‘beijar’, se<br />

combina primeiramente com o argumento interno, ‘Maria’, gerando um<br />

predicado <strong>de</strong><br />

um<br />

lugar: ‘beijar Maria’. Este é o nível do SV. Agora esse predicado <strong>de</strong> um lugar se<br />

combina<br />

com o argumento externo, no caso ‘João’. Evidências e argumentos como<br />

estes , além da discussão sobre o que e quantos são exatamente os papéis temáticos,<br />

levam também a pensar sobre a sua necessida<strong>de</strong>. De fato, encontramos teorias que<br />

dispensam a idéia <strong>de</strong> papel temático e apreen<strong>de</strong>m a assimetria a que aludimos aqui<br />

através <strong>de</strong> outros mecanismos (o cálculo-lambda, por exemplo).<br />

76


Vamos, no entanto, adotar a hipótese dos papéis temáticos. É <strong>de</strong>vido, entre<br />

outros fatores, à atribuição <strong>de</strong> papéis temáticos diferenciados que não po<strong>de</strong>mos inverter<br />

a or<strong>de</strong>m dos argumentos <strong>de</strong> um verbo. Compare-se (3) e (3’):<br />

(3) João beijou a Maria.<br />

(3’) Maria beijou o João.<br />

Essas sentenças não dizem o mesmo, precisamente porque alteramos<br />

os papéis<br />

temáticos.<br />

Po<strong>de</strong>mos, portanto, dizer que o verbo é o núcleo da predicação porque é nele<br />

que encontramos quantos argumentos<br />

(ou papéis) são necessários para saturar uma dado<br />

predicado e qual a função (papéis) <strong>de</strong>sses argumentos.<br />

Contudo, como po<strong>de</strong>mos dar conta, através da análise exposta acima, do<br />

seguinte conjunto <strong>de</strong> sentenças?<br />

(5) João abriu a porta.<br />

(6) A porta abriu.<br />

Apesar da aparente simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas duas sentenças e das relações intuitivas entre<br />

elas, elas nos colocam problemas extremamente complicados. Um <strong>de</strong>les, o primeiro que<br />

veremos agora, refere-se à estrutura temática das sentenças; o segundo problema tem a<br />

ver com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embasarmos via uma meta-linguagem a inferência que<br />

po<strong>de</strong>mos fazer <strong>de</strong> (5) para (6), ou seja, se João abriu a porta, então a porta<br />

necessariamente foi aberta. A sentença (5) acarreta a sentença em (6) (mas não viceversa).<br />

Juntamente com a idéia <strong>de</strong> papéis temáticos, encontramos nas pesquisas<br />

lingüísticas idéias sobre “gra<strong>de</strong>” ou “hierarquia temática”. O que está por trás <strong>de</strong>sses<br />

nomes nada mais é do que a intuição <strong>de</strong> que alguns papéis temáticos são mais essenciais<br />

(por falta <strong>de</strong> um termo melhor) do que outros. Para que isso fique mais claro, pensemos<br />

nas sentenças abaixo, com os papéis temáticos <strong>de</strong> AGENTE (AG), INSTRUMENTO<br />

(IN) e TEMA (TE) indicados:<br />

(7) João (AG) cortou o pão (TE) com a faca (IN).<br />

(8) João (AG) cortou o pão (TE).<br />

77


(9) * João<br />

(AG) cortou com a faca (IN).<br />

(10) ? A faca (IN) cortou o pão (TE).<br />

(11) * O pão cortou.<br />

(12)<br />

O pão (TE) foi cortado com a faca (IN).<br />

(13) João (AG) quebrou a televisão (TE) com a chave <strong>de</strong> fenda (IN).<br />

(14) João (AG) quebrou a televisão (TE).<br />

(15)<br />

* João (AG) quebrou com a chave <strong>de</strong> fenda (IN).<br />

(16) ? A chave <strong>de</strong> fenda (IN) quebrou a televisão (TE).<br />

(17) A televisão<br />

quebrou.<br />

(18) A televisão (TE) foi quebrada com a chave <strong>de</strong> fenda (IN).<br />

Através do contraste entre as sentenças (7), (9) e (10),<br />

e (13), (15) e (16), po<strong>de</strong>mos<br />

dizer que,<br />

para os verbos ‘cortar’ e ‘quebrar’, a hierarquia temática é AGENTE ><br />

TEMA > INSTRUMENTO. Isso quer dizer, entre outras coisas, que é mais fácil (por<br />

falta<br />

<strong>de</strong> um termo melhor) <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fora da estrutura <strong>de</strong> sentenças formadas com esses<br />

verbos o INSTRUMENTO do que o TEMA, e o TEMA do que o AGENTE.<br />

O que chamou muito a atenção dos lingüistas foram as sentenças (11) e (17), que<br />

<strong>de</strong>ixamos,<br />

propositalmente, sem a indicação <strong>de</strong> papel temático. Esse fenômeno é<br />

conhecido como “alternância ergativa” e somente alguns verbos do português o<br />

apresentam. Além <strong>de</strong> ‘quebrar’, você consegue pensar em outros que exibem essa<br />

alternância ergativa?<br />

Os verbos intransitivos são muito mais complexos do que as gramáticas<br />

tradicionais po<strong>de</strong>m sugerir e muitos esforços já foram feitos para sistematizar essa<br />

classe, principalmente <strong>de</strong>ntro da sintaxe gerativa. Entre os resultados da pesquisa<br />

lingüística,<br />

está a divisão ulterior da classe dos intransitivos em: inacusativos,<br />

inergativos, verbos <strong>de</strong> alternância ergativa, verbos apresentacionais...<br />

Quanto à questão inferencial, sabemos que da sentença (5) inferimos (6); intuímos que<br />

(6) é acarretada por (5). Mas qual é o problema aqui? Ao formalizar essas sentenças na<br />

meta-linguagem que estamos utilizando, teremos algo como:<br />

(5’)<br />

A(j,p) = João está na relação <strong>de</strong> abrir com a porta. João é o AGENTE e a porta é o<br />

TEMA.<br />

78


(6’) A’(p) = a porta está na <strong>de</strong>notação <strong>de</strong> abrir, ou seja, é um elemento do conjunto das<br />

coisas abertas.<br />

O problema com essa análise é que formalmente<br />

temos dois predicados distintos: em<br />

(5’) ‘abrir’ é um predicado <strong>de</strong> dois lugares, uma relação entre João<br />

e uma porta em<br />

particular, ao passo que em (6’) ‘abrir’ é um<br />

predicado <strong>de</strong> um lugar; uma proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma porta particular. Foi por isso que utilizamos duas representações distintas, A e A’.<br />

A ina<strong>de</strong>quação <strong>de</strong>ssa análise está no fato <strong>de</strong> que o<br />

79<br />

falante sabe que (5) e (6) se<br />

relacionam. Sabe mais, sabe<br />

que a porta tanto em (5) quanto em (6) é sempre o que<br />

sofre a ação <strong>de</strong> ser aberta, e que ela não é agente em (6). Sabe<br />

ainda que esse mesmo<br />

tipo<br />

<strong>de</strong> relação entre (5) e (6) ocorre em outros pares na língua (sentenças em (19) e<br />

(20)) e em outros não (as sentenças em (21) e (22)):<br />

(19) Maria <strong>de</strong>rreteu o queijo.<br />

(20) O queijo <strong>de</strong>rreteu.<br />

(21) João comprou o livro.<br />

(22) * O livro comprou.<br />

Da fato, através das consi<strong>de</strong>rações que fizemos aqui, não parece que uma<br />

resposta para o problema <strong>de</strong> explicar essas inferências esteja em uma consi<strong>de</strong>ração mais<br />

<strong>de</strong>talhada dos papéis temáticos, mas, antes, em uma exploração maior da forma lógica<br />

das sentenças e dos predicados envolvidos nelas. Veremos um pouco disso abaixo.<br />

2. Eventos<br />

Até o momento, trabalhamos com a idéia <strong>de</strong> que a referência<br />

<strong>de</strong> um verbo <strong>de</strong><br />

dois<br />

lugares, por exemplo, é um conjunto <strong>de</strong> pares or<strong>de</strong>nados <strong>de</strong> indivíduos. Mas há<br />

uma outra maneira, talvez mais intuitiva, <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a referência <strong>de</strong> “verbos”, que foi<br />

introduzida pelo filósofo Donald Davidson (1967). O problema colocado por Davidson,<br />

muito parecido aliás com o que estamos lidando aqui, é o seguinte: como é que<br />

conseguimos<br />

<strong>de</strong>screver as relações <strong>de</strong> acarretamento existentes entre as sentenças<br />

abaixo:<br />

(23) Brutus apunhalou César às 3 horas da tar<strong>de</strong> com seu punhal <strong>de</strong> ouro.


(24) Brutus apunhalou César às 3 horas da tar<strong>de</strong>.<br />

(25) Brutus apunhalou César com seu punhal <strong>de</strong> ouro.<br />

(26) Brutus apunhalou César.<br />

As sentenças <strong>de</strong> (23) a (26) são <strong>de</strong>scritas como o losango <strong>de</strong> acarretamento abaixo: (23)<br />

acarreta (24), (25) e (26), e (24) e (25) acarretam (26):<br />

(23)<br />

(24) (25)<br />

(26)<br />

Acrescente-se a este quadro o fato <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos continuar inserindo adjuntos<br />

adverbiais<br />

à sentença em (23) “infinitamente” (claro que vamos ter problemas <strong>de</strong><br />

processamento, mas eles se <strong>de</strong>vem a nossa memória curta):<br />

(27) Brutus apunhalou César às 3 horas da tar<strong>de</strong> com seu punhal <strong>de</strong> ouro com<br />

a mão esquerda na sala <strong>de</strong> visitas no momento em que Maria entrou...<br />

Sabemos que se trata sempre<br />

do mesmo acontecimento, que po<strong>de</strong> ser cada vez mais<br />

“ esmiuçado”. Porém, como já dissemos, na análise lógica clássica temos que dizer que<br />

cada uma<br />

das sentenças <strong>de</strong> (23) a (27) constituem um predicado diferente. Ora, não é<br />

isso o que os falantes enten<strong>de</strong>m. Além do mais, a sentença em (26), por exemplo, é<br />

sinônima da sentença em (28):<br />

(28) Ocorreu o apunhalamento <strong>de</strong> César por Brutus.<br />

A idéia <strong>de</strong> Davidson é que sentenças <strong>de</strong> ação (ou, para nossos propósitos, predicados<br />

v erbais) se referem a eventos.<br />

Nas sentenças <strong>de</strong> (23) a (28) falamos sempre sobre o<br />

m esmo even to: o assassinato <strong>de</strong> César por Brutus. E a formalização é bastante elegante<br />

80


e atraente, pois sugere apenas uma modificação na estrutura<br />

lógica. Essa mudança nos<br />

obriga a ter, a o lado dos indivíduos e proprieda<strong>de</strong>s (predicados) , uma outra entida<strong>de</strong>: o<br />

e vento, simbolizado por “e”. Vejamos abaixo uma sugestão <strong>de</strong> formalização para as<br />

sentenças<br />

(23), (25) e (27):<br />

(23’) ∃e(Apunhalar(e) & AGENTE(Brutus, e) & PACIENTE<br />

(César, e) & às 3 horas da<br />

tar<strong>de</strong>(e)<br />

& COM(punhal, e) & DE (Brutus, punhal) & DE (ouro, punhal)<br />

Lemos: existe um evento <strong>de</strong> apunhalar, e o agente <strong>de</strong>ste evento é Brutus, e o paciente é<br />

César, e este evento ocorreu às 3 da tar<strong>de</strong>, e este evento ocorreu com o punhal <strong>de</strong> ouro<br />

<strong>de</strong> Brutus.<br />

(25’) ∃e(Apunhalar(e) & AGENTE(Brutus, e) & PACIENTE (César, e) &<br />

COM(punhal, e) & DE (Brutus, punhal) & DE (ouro, punhal)<br />

(27’) ∃e(Apunhalar(e) & AGENTE(Brutus, e) & PACIENTE (César, e) & às 3 horas da<br />

tar<strong>de</strong>(e) & COM(punhal, e) & DE (Brutus, punhal) & DE (ouro, punhal) & COM(mão<br />

esquerda <strong>de</strong> Brutus, e) & EM(sala <strong>de</strong> visitas, e) & EM(no momento em que Maria<br />

entrou, e)<br />

A inferência, por exemplo, <strong>de</strong> (23’) para (25’) é trivial, pois tudo o que orbita o evento<br />

po<strong>de</strong> ser visto como um <strong>de</strong> seus predicados, e eles estão numa relação <strong>de</strong> conjunção<br />

(&), passíveis, portanto, <strong>de</strong> serem “apagados”, como ocorre em (25’) com o predicado<br />

“ às 3 horas da tar<strong>de</strong>(e)”.<br />

Não há apenas essas evidências (lingüísticas) <strong>de</strong> que na sentença, apesar <strong>de</strong> não aparente<br />

em sua estrutura superficial, há um evento. Pensemos em sentenças como:<br />

(a) João contemplou o pôr do sol e isso o emocionou.<br />

(b) Nádia viu o jogo e Ivan também.<br />

Muitos filósofos e lingüistas vêem no sentido dos elementos<br />

em itálico um nexo<br />

(anáfora) que po<strong>de</strong> ser facilmente explicado recorrendo-se à noção <strong>de</strong> evento. Assim<br />

sendo, quais seriam as possíveis paráfrases <strong>de</strong>ssas duas sentenças?<br />

81


Até aqui, já vimos que o verbo po<strong>de</strong> ser visto como uma matriz <strong>de</strong> lugares a<br />

serem preenchidos para termos uma sentença completa, sendo, portanto, o “coração”<br />

das sentenças; vimos também que ele relaciona diferentemente os seus argumentos, e,<br />

por fim, que uma maneira interessante <strong>de</strong> darmos conta <strong>de</strong> nossas intuições sobre<br />

inferência<br />

<strong>de</strong> sentenças verbais é através da noção <strong>de</strong> evento, que, além <strong>de</strong> ser elegante,<br />

conserva tudo o que dissemos sobre o verbo como matriz e sobre papéis temáticos. Mas<br />

há ainda muito mais a ser dito sobre o papel dos verbos. Nas seções abaixo<br />

trataremos,<br />

respectivamente, do tempo verbal, noção central para o estudo do verbo, bem como do<br />

aspecto e das classes acionais.<br />

3.<br />

Tempo<br />

O que as gramáticas costumeiramente chamam “tempo<br />

verbal” são, <strong>de</strong> fato,<br />

formas<br />

morfológicas que carregam muitas informações além daquela que po<strong>de</strong>ríamos<br />

chamar <strong>de</strong> “temporal”. Convém, então, separar logo <strong>de</strong> início a morfologia do verbo e<br />

as noções que comporão o “lado semântico” das formas verbais. Assim, por “tempo<br />

verbal” enten<strong>de</strong>remos as formas em que um verbo po<strong>de</strong> aparecer flexionado, sua<br />

morfologia, o que encontramos nas gramáticas sob os nomes <strong>de</strong> “pretérito perfeito (do<br />

indicativo)”,<br />

“presente (do indicativo)”, “futuro (do indicativo)”. Aos sentidos das<br />

formas verbais que se relacionam com o tempo, ou, melhor dizendo, com a localização<br />

temporal <strong>de</strong> eventos, chamaremos <strong>de</strong> “referência temporal”.<br />

Uma boa maneira <strong>de</strong> sistematizar as referências temporais dos verbos, até hoje<br />

muito utilizada pelos lingüistas,<br />

é a que foi proposta pelo filósofo e lógico Hans<br />

Reichenbach,<br />

em 1947. O tratamento das referências temporais por ele proposto leva em<br />

conta três “momentos”, a saber: o momento <strong>de</strong> fala (MF), que é o momento em que a<br />

sentença é proferida; o momento <strong>de</strong> evento (ME), que é o momento em que o evento<br />

propriamente dito ocorre; e o momento <strong>de</strong> referência<br />

(MR), que é um momento<br />

utilizado para estabelecer a localização<br />

<strong>de</strong> um evento para além da especificação dada<br />

pelo MF, obrigatório em tempos como o mais-que-perfeito do indicativo.<br />

Além <strong>de</strong>sses momentos, lançaremos mão aqui <strong>de</strong> uma outra noção, proposta em<br />

Bertinetto (1982), que é a localização temporal (LT); a LT indica em<br />

que momento (do<br />

tempo,<br />

i.e., hora ou data) o ME ocorre; facultativa na especificação da referência<br />

temporal <strong>de</strong> eventos, a LT virá entre parêntesis.<br />

82


Para ilustrar o papel <strong>de</strong>sses momentos e o modo <strong>de</strong> funcionamento <strong>de</strong> sua<br />

sistematização, tomemos as sentenças abaixo, seguidas <strong>de</strong> suas respectivas<br />

caracterizações:<br />

(29) João está lendo o jornal (agora).<br />

ME(LT), MF (lê-se ME simultâneo a MF) ou ME(LT) = MF<br />

Ou seja, o evento <strong>de</strong> “João ler o jornal” (ME) dá-se concomitantemente ao proferimento<br />

<strong>de</strong> tal sentença (MF) (mais precisamente “agora” (LT)).<br />

Se pensarmos o tempo como uma linha direcionada, teremos a seguinte representação:<br />

ME=MF<br />

(30) Pedro reformava a casa (no ano passado).<br />

ME(LT) – MF (lê-se ME antes <strong>de</strong> MF) ou ME(LT) < MF<br />

O evento <strong>de</strong> “Pedro reformar a casa” (ME) se <strong>de</strong>u em momento anterior ao proferimento<br />

<strong>de</strong>ssa sentença (MF) (mais precisamente “no ano passado” (LT)).<br />

O <strong>de</strong>senho na linha do tempo será, então:<br />

ME MF<br />

(31) Antonio comprou um computador no ano passado.<br />

ME(LT) – MF (lê-se ME antes <strong>de</strong> MF)<br />

O evento<br />

<strong>de</strong> “Antonio comprar um computador” (ME) se <strong>de</strong>u em momento anterior ao<br />

proferimento <strong>de</strong>ssa sentença (MF) (mais precisamente “no ano passado” (LT)).<br />

(32) Célio vai chegar tar<strong>de</strong> (amanhã).<br />

MF – ME(LT) (lê-se MF antes <strong>de</strong> ME) ou MF < ME(LT)<br />

83<br />

Formatado: Inglês (EUA)<br />

Formatado: Inglês (EUA)


O evento<br />

<strong>de</strong> “Célio chegar” (ME) dar-se-á em um momento posterior ao proferimento<br />

<strong>de</strong>ssa sentença (MF) (mais precisamente “amanhã” (LT)).<br />

Faça o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong><br />

(32) na linha do tempo.<br />

(33) Leandro tinha encontrado a chave antes <strong>de</strong> ir embora (ontem).<br />

ME(LT) – MR – MF (lê-se ME antes <strong>de</strong> MR e MR antes <strong>de</strong> MF) ou ME(LT) < MR <<br />

MF<br />

O evento <strong>de</strong> “Leandro encontrar a chave” (ME) se <strong>de</strong>u em um momento anterior ao<br />

evento<br />

<strong>de</strong> “Leandro ir embora” (MR) e Leandro foi embora antes do proferimento <strong>de</strong>ssa<br />

sentença (MF) (mais precisamente “ontem” (LT)).<br />

Faça<br />

o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> (33) na linha do tempo.<br />

Com relação à referência temporal, <strong>de</strong>vemos ressaltar pelo menos três pontos. O<br />

primeiro refere-se ao caráter dêitico do MF, momento a partir do qual é estabelecido<br />

todo o “cálculo temporal”, ou seja, qualquer evento é “coinci<strong>de</strong>nte”, “passado” ou<br />

“futuro” em relação, inicialmente, ao momento<br />

em que é proferido, isso “confirma a<br />

intuição corrente <strong>de</strong> que o fundamento direto ou indireto da interpretação das formas<br />

verbais flexionadas em tempo é a [...] referência à própria situação <strong>de</strong> enunciação”<br />

(Ilari, 1997:15).<br />

Nem sempre é o MF que tem esta função. Quando se trata <strong>de</strong> um texto histórico, por<br />

exemplo,<br />

este momento dêitico que se toma como referência para se localizar um evento<br />

po<strong>de</strong> ser estabelecido discursivamente. Os eventos em itálico são computados em<br />

função do MF, que agora é 1812:<br />

“Era 1812, pouco antes da Batalha <strong>de</strong> Borodino. A antecipação da batalha que se seguia<br />

era palpável. Napoleão acaba <strong>de</strong> acordar. Ele está se preparando para inspecionar as<br />

tropas<br />

e ver que elas estão preparadas para a batalha que irá <strong>de</strong>terminar o <strong>de</strong>stino da<br />

Europa.” (adaptado <strong>de</strong> Hornstein, 1991, p. 11).<br />

Um segundo ponto a ser consi<strong>de</strong>rado é a relevância do MR. Conforme as<br />

consi<strong>de</strong>rações acima, esse momento aparece apenas em tempos como o mais-que<br />

perfeito<br />

e o “futuro perfeito”, como ‘tinha feito’ (‘fizera’) e ‘terá feito’,<br />

respectivamente. A razão disso é que<br />

essas referências temporais localizam eventos<br />

levando em conta não somente o MF, mas necessariamente<br />

um outro momento. Essa<br />

84


necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um MR po<strong>de</strong> ser confirmada através do seguinte exemplo: uma pessoa<br />

ao iniciar uma conversa, dificilmente apontaria para um mapa e diria algo como (34),<br />

preferencialmente à (35), pois não há nenhum<br />

MR em (34) para o tempo composto e<br />

nenhum<br />

contexto a partir do qual ele po<strong>de</strong> ser retomado:<br />

(34) (?) Olhe! Essa é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu tinha cursado o primário.<br />

(35) Olhe! Essa é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu cursei o primário.<br />

A sentença (34), no entanto, seria perfeitamente natural se precedida <strong>de</strong> algo que possa<br />

servir <strong>de</strong> MR. Imaginemos a mesma situação, porém<br />

agora quando alguém diz algo<br />

como (36):<br />

(36) Lembra<br />

do que eu disse ontem?. . . Olhe! Essa é a cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu tinha cursado o<br />

primário.<br />

De fato, no trabalho <strong>de</strong> Reichenbach, os 3 momentos estão presentes em todas as<br />

<strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> referências temporais, e o MR ora está junto ao ME, ora ao MF, sendo<br />

portanto um ponto <strong>de</strong> disputa e controvérsia. Alguns autores apontam nessa diferença <strong>de</strong><br />

distribuição referências<br />

temporais diferentes, outros a mantêm, mas não se pronunciam<br />

em<br />

relação ao seu papel. O trabalho já citado <strong>de</strong> Hornstein (1991), por exemplo, propõe<br />

que as estruturas <strong>de</strong> referência temporal sejam articuladas em dois momentos, sendo que<br />

o MR <strong>de</strong>ve relacionar-se com o ME e o MF in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente, para que <strong>de</strong>pois<br />

possamos obter uma única fórmula final. De uma forma ou <strong>de</strong> outra, há também autores<br />

que afirmam que o MR está presente<br />

apenas e em todos os tempos compostos. Talvez<br />

seja <strong>de</strong>mais concordar que o MR está presente em todos os tempos compostos; antes<br />

preferimos, mais mo<strong>de</strong>stamente, apontar sua necessida<strong>de</strong> (obrigatorieda<strong>de</strong>) em tempos<br />

como o “futuro perfeito” e o pretérito-mais-perfeito, assumindo que as referências<br />

temporais estabelecidas por esses tempos são complexas, no sentido <strong>de</strong> assumirem<br />

(necessariamente)<br />

dois pontos <strong>de</strong> referência, MF e MR.<br />

Dê as fórmulas temporais, utilizando o que apresentamos até aqui, das sentenças abaixo:<br />

(a) João comeu o bolo todo ontem, à meia-noite.<br />

(b) Maria vai ver o filme só amanhã.<br />

(c) Pedro e Tiago estão brigando na minha frente!<br />

85


(d) Às 5 horas, o João tinha chegado.<br />

E o que acontece para uma sentença como:<br />

(e) Joana vai dormir até mais tar<strong>de</strong>?<br />

Um último ponto a ser salientado é que, recorrendo apenas à referência temporal, é<br />

impossível<br />

distinguir tempos que a gramática separa e que usamos em contexto muitos<br />

distintos; esse é caso do pretérito perfeito e do imperfeito, como vimos acima, que<br />

veiculam, conforme po<strong>de</strong>mos ver pelas formas associadas a eles, um evento que<br />

acontece antes<br />

do momento <strong>de</strong> fala (como nas sentenças (30) e (31)). A diferença entre<br />

o pretérito perfeito e o imperfeito é, na verda<strong>de</strong>, uma diferença aspectual, noção essa<br />

totalmente distinta da noção <strong>de</strong> referência temporal, pois não é dêitica e não tem a ver<br />

com a localização<br />

<strong>de</strong> evento em uma reta do tempo, mas sim com a representação ou<br />

apresentação<br />

que o falante faz do evento quando o veicula.<br />

4. Aspecto<br />

Diferentemente do “tempo verbal”, o aspecto verbal é pouco tratado em nossas<br />

gramáticas tradicionais que, <strong>de</strong> resto, quando mencionam esse fenômeno o fazem muito<br />

timidamente, como se se tratasse apenas <strong>de</strong> uma idiossincrasia do português. Esperamos<br />

que ao fim <strong>de</strong>ssa seção tenhamos conseguido mostrar que não se trata disso, mas antes<br />

<strong>de</strong> um fenômeno muito rico e complexo, que po<strong>de</strong> ser expresso por diversas maneiras<br />

em uma mesma língua e nas várias línguas.<br />

Para começo <strong>de</strong> conversa, tomemos algumas sentenças:<br />

(37) João estava lendo o livro ontem, das 14h00 às 16h00.<br />

(38) João leu o livro ontem, das 14h00 às 16h00.<br />

Supondo<br />

que se trata do mesmo livro, do mesmo João e das mesmas datas e horas, qual<br />

é a diferença entre essas sentenças? Como já adiantamos na seção acima, essa diferença<br />

não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> referência temporal, pois ambas as sentenças têm a mesma fórmula (<br />

ME(LT) – MF ). Será que João fez algo<br />

<strong>de</strong> diferente em (37) e (38)?<br />

86


Na verda<strong>de</strong>, a resposta po<strong>de</strong> ser “sim” ou “não”, mas só po<strong>de</strong>remos respon<strong>de</strong>r a<br />

ela<br />

no fim <strong>de</strong>ssa seção. Por ora, diremos que se trata sim do mesmo evento, que é “ler o<br />

livro”, e diremos que a diferença entre as sentenças está na escolha que o falante faz<br />

para representar tal evento, em outras<br />

palavras, a diferença entre (37) e (38) resi<strong>de</strong> no<br />

fato<br />

<strong>de</strong> que na primeira sentença o evento é veiculado como po<strong>de</strong>ndo estar inconcluso e,<br />

na<br />

última, como concluso. A essa diferença reservaremos o termo “aspecto”.<br />

Quando o evento em questão é apresentado como concluso ou como não mais<br />

em andamento, diremos que essa representação é perfectiva; quando o evento é<br />

apresentado como inconcluso ou em andamento, diremos que essa representação é<br />

imperfectiva.<br />

Na literatura lingüística, a discussão sobre aspecto é muito viva e os autores<br />

po<strong>de</strong>m ter, às vezes, opiniões radicalmente diferentes, e encontramos por causa disso<br />

uma proliferante terminologia. Po<strong>de</strong>mos encontrar a idéia <strong>de</strong> “representação espacial do<br />

aspecto”, com o uso <strong>de</strong> intervalos fechados e abertos. Assim, o aspecto perfectivo<br />

respon<strong>de</strong> por intervalos fechados que encerram o evento, e o imperfectivo por intervalos<br />

abertos,<br />

que são extrapolados pelo evento:<br />

(a)<br />

João lia o livro ontem.<br />

ler o livro<br />

ontem<br />

(o evento extrapola os limites <strong>de</strong> “ontem”; o momento do evento contém o momento <strong>de</strong><br />

referência)<br />

(b) João leu o livro ontem.<br />

ler o livro<br />

ontem<br />

(o evento está encerrado (contido) nos limites <strong>de</strong> “ontem”)<br />

Ilari (1997, pp. 44 e 45) traz um belo exemplo disso, no qual nos inspiramos e a partir<br />

do qual propomos o seguinte exercício:<br />

Dê uma representação espacial para o aspecto das seguintes sentenças:<br />

87


(a ) Em 1998, o Brasil exportava carne para a Rússia.<br />

(b) Em 1998, o Brasil exportou carne para a Rússia.<br />

A sentença ‘e ainda exporta’ po<strong>de</strong> ser continuação discursiva <strong>de</strong> (a) e (b)?<br />

Vejamos mais claramente esse contraste com o par <strong>de</strong> sentenças abaixo:<br />

(39) (*) João foi para casa, mas resolveu não ir mais, no meio do caminho.<br />

(40) João ia (estava indo) para casa, mas resolveu não ir mais, no meio do caminho.<br />

Em (39),<br />

o evento <strong>de</strong> João ir para a casa é representado perfectivamente, ou seja, como<br />

concluso, e isso através da forma <strong>de</strong> pretérito perfeito do verbo ‘ir’, ‘foi’. Um evento<br />

dado como concluso não po<strong>de</strong> ser interrompido ou ter sua conclusão negada; é por isso<br />

que a sentença (39) é estranha. Por sua vez, a sentença (40) é perfeitamente natural,<br />

trazendo os mesmos elementos e tratando do mesmo evento, João ir para a casa. A única<br />

diferença em relação à sentença (39) é que (40) representa o evento imperfectivamente,<br />

portanto,<br />

em andamento ou inconcluso, fato que permite que ele seja interrompido ou<br />

que neguemos sua conclusão.<br />

Pelos mesmos motivos, ou seja, representar o evento como concluso, a sentença<br />

(41)<br />

soa estranha, ao passo que (42) não:<br />

(41) (*) Maria chegou quando João pintou o quadro 20 .<br />

(42) Maria chegou quando João pintava o quadro<br />

Uma outra característica<br />

que distingue a representação aspectual perfectiva da<br />

imperfectiva<br />

é que a primeira apresenta uma proprieda<strong>de</strong> que chamaremos <strong>de</strong><br />

isomorfismo,<br />

termo que usaremos para um tipo particular <strong>de</strong> iconismo, pelo qual a<br />

or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong> eventos perfectivos em uma sentença é isomorfa (igual/<br />

correspon<strong>de</strong>nte) à or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> ocorrência dos eventos no mundo<br />

(ou no mundo <strong>de</strong> uma<br />

dada narrativa); o mesmo não se dá com eventos imperfectivos. Vejamos um exemplo,<br />

retirado <strong>de</strong> uma crônica <strong>de</strong> L. F. Veríssimo (1982)<br />

(“s” está por sentença):<br />

20<br />

Essa sentença po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato, receber uma interpretação segundo a qual Maria chegou no exato momento<br />

em que João terminou <strong>de</strong> pintar o quadro; interpretação essa, <strong>de</strong> resto, completamente diferente da que<br />

atribuímos<br />

a (41).<br />

88


(43) [Estavam na casa <strong>de</strong> campo, ele e a mulher (s1). Iam todos os fins-<strong>de</strong>-semana (s2).<br />

Era<br />

um casa gran<strong>de</strong>, rústica, copiada <strong>de</strong> revista americana, e afastada <strong>de</strong> tudo (s3).<br />

Não tinha telefone (s4). O telefone mais próximo ficava a sete quilômetros<br />

(s5). O<br />

vizinho<br />

mais próximo ficava a cinco (s6). Eles estavam sozinhos (s7). A mulher só ia<br />

para acompanhá-lo (s8). Não gostava da casa <strong>de</strong> campo (s9). Tinha <strong>de</strong> cozinhar com<br />

lenha<br />

enquanto ele ficava mexando no jardim, cortando a grama, capinando, plantando<br />

(s10).] Foi da janela da cozinha que ela viu ele ficar subitamente teso e largar<br />

a enxada,<br />

como se a enxada tivesse lhe dado um choque (s11). Ela correu para a porta da cozinha<br />

e gritou (s12).<br />

As informações dadas das sentenças <strong>de</strong> s1 a s10 entre colchetes e em itálico, todas no<br />

pretérito imperfeito e representando os eventos imperfectivamente, <strong>de</strong> fato, não<br />

possuem uma or<strong>de</strong>m temporal muito rígida, possibilitando que as sentenças sejam<br />

invertidas ou apresentadas fora da or<strong>de</strong>m original:<br />

(44) [Eles estavam sozinhos (s7). A mulher só ia para acompanhá-lo (s8). Não gostava<br />

da casa <strong>de</strong> campo (s9). Tinha <strong>de</strong> cozinhar com lenha enquanto ele ficava mexando no<br />

jardim, cortando a grama, capinando, plantando (s10). Estavam na casa <strong>de</strong> campo, ele<br />

e a mulher (s1). Não tinha telefone (s4).<br />

O telefone mais próximo ficava a sete<br />

quilômetros<br />

(s5). O vizinho mais próximo ficava a cinco (s6). Era um casa gran<strong>de</strong>,<br />

rústica, copiada <strong>de</strong> revista americana, e afastada <strong>de</strong> tudo (s3). Iam todos os fins-<strong>de</strong>-<br />

semana (s2).] Foi da janela da cozinha que ela viu<br />

ele ficar subitamente teso e largar a<br />

enxada,<br />

como se a enxada tivesse lhe dado um choque (s11). Ela correu para a porta da<br />

cozinha e gritou (s12).<br />

O que garante, por exemplo, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar as sentenças <strong>de</strong> 8 a 10 não é o<br />

tempo empregado, mas sim a coesão <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada por “a mulher”, que é o único<br />

referente do discurso ao qual é possível atribuir o conteúdo das sentenças 9 e 10, ‘não<br />

gostar da casa <strong>de</strong> campo’ e ‘ter <strong>de</strong> cozinhar com lenha’..., respectivamente; o mesmo<br />

processo ocorre na seqüência <strong>de</strong> 4 a 6. Já para as sentenças 11 e 12, fora, portanto, da<br />

parte entre colchetes e sem itálico <strong>de</strong> (44), a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inversão é vetada. Uma<br />

seqüência como:<br />

89


(45) Ela correu para a porta da cozinha e gritou (s12). Foi da janela da cozinha que ela<br />

viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse lhe dado um<br />

choque (s11) 21 ,<br />

parece não fazer muito sentido. Nesse caso, a or<strong>de</strong>m temporal dos eventos veiculados<br />

no pretérito perfeito, ou seja, perfectivamente, é também um fator <strong>de</strong> coesão textual que<br />

<strong>de</strong>ve ser mantido porque apresenta os eventos na or<strong>de</strong>m em que ocorrem <strong>de</strong> fato,<br />

enca<strong>de</strong>ando-os.<br />

Um último teste ao qual po<strong>de</strong>mos recorrer para enquadrar os eventos numa das<br />

duas perspectivas<br />

aspectuais é a compatibilida<strong>de</strong> com adjuntos do tipo ‘durante / por X<br />

tempo’: somente<br />

eventos perfectivos são compatíveis com tais adjuntos em uma leitura<br />

semelfactiva, i.e., on<strong>de</strong> não há repetição:<br />

(46) (Ontem, no fim da tar<strong>de</strong>,) João falou com Maria durante/por 20 minutos (e voltou<br />

para casa).<br />

(47)<br />

(*) (Ontem, no fim da tar<strong>de</strong>,) João falava com Maria durante/por 20 minutos (e<br />

voltava para casa).<br />

A sentença (46) é boa tanto com a leitura do trecho entre parêntesis, quanto sem essa<br />

leitura. A sentença (47), porém, só é boa se interpretada <strong>de</strong> uma maneira na qual há<br />

repetições <strong>de</strong> eventos, interpretação que se torna altamente improvável quando se leva<br />

em conta os trechos entre parêntesis. Note, no entanto, que a sentença em (47) se torna<br />

aceitável se acrescentamos uma outra sentença, no perfectivo: ‘quando a luz apagou’.<br />

Neste caso, incluímos um outro evento que ocorre durante o evento <strong>de</strong> falar ao telefone.<br />

O adjunto está medindo o tempo que o evento <strong>de</strong> falar ao telefone estava durando até a<br />

ocorrência<br />

da falta <strong>de</strong> luz.<br />

Os aspectos perfectivos e imperfectivos são, com efeito, apenas uma macrodivisão<br />

que po<strong>de</strong> ser ainda subdividida <strong>de</strong> ambos os lados. O problema é que<br />

dificilmente encontramos um acordo entre dois pesquisadores sequer sobre quais seriam<br />

essas subdivisões... no que tange ao perfectivo, para muitos ele não possui subclasses.<br />

Para o caso dos imperfectivos, há consenso em diferenciar pelo menos duas subclasses:<br />

21<br />

Aqui não consi<strong>de</strong>raremos<br />

a interpretação <strong>de</strong> que a personagem masculina tenha ficado “subitamente<br />

teso” <strong>de</strong>vido ao grito da personagem feminina, pois essa não é a interpretação original. O ponto a notar<br />

aqui<br />

é que, com relação a tempos imperfectivos, a troca da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sentenças, além <strong>de</strong> não implicar em<br />

seqüências<br />

mal-formadas, não altera a interpretação original.<br />

90


o imperfectivo habitual e o imperfectivo progressivo. Vejamos um pouco mais sobre<br />

isso, mas antes, para facilitar a exposição e evitar confusões com essa vasta<br />

nomenclatura, apresentamos um quadro com as sistematizações aspectuais:<br />

habitual<br />

O aspecto imperfectivo habitual se<br />

caracteriza por apresentar o evento sob um<br />

ponto<br />

<strong>de</strong> vista no qual ele se repete por um dado período <strong>de</strong> tempo, como nos exemplos<br />

abaixo:<br />

(48) João tomava banho.<br />

(49) João tomava banho<br />

naquele verão.<br />

ASPECTO<br />

imperfectivo perfectivo<br />

progressivo<br />

Contudo, quando falamos em repetição <strong>de</strong> eventos, temos <strong>de</strong> tomar cuidado para não<br />

nos confundirmos com iterativida<strong>de</strong>, termo que reservaremos para eventos que são<br />

constituídos <strong>de</strong> repetições. Isso po<strong>de</strong> ficar mais claro com os exemplos abaixo, em que a<br />

sentença em (50) se refere a um evento iterativo e a sentença em (51) a um habitual.<br />

Notamos também que é possível combinar a habitualida<strong>de</strong> com a iterativida<strong>de</strong>, como na<br />

sentença em (52) (o trecho entre parênteses tem a função <strong>de</strong> facilitar as leituras aqui<br />

propostas):<br />

(50) João está tossindo. – evento iterativo<br />

(51) João sempre fica gripado nos invernos. – evento habitual<br />

(52) João está tossindo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ficou gripado (há umas duas semanas). – evento<br />

iterativo habitual<br />

Muito já se disse sobre o aspecto progressivo, talvez muito mais do que sobre os outros<br />

aspectos, e a razão disso po<strong>de</strong> ser que, para expressar esse aspecto, encontramos formas<br />

morfológicas específicas em várias línguas formas. Outra razão é que o progressivo<br />

91


ficou associado ao chamado “paradoxo do imperfectivo”. De fato, a forma progressiva<br />

em português é muito rica e aparece em boa parte dos paradigmas flexionais dos verbos<br />

(nem sempre com o mesmo sentido...):<br />

(5 3) João está assando o bolo.<br />

(54)<br />

João esteve assando o bolo.<br />

(55)<br />

João estava assando o bolo.<br />

(56)<br />

João estará assando o bolo.<br />

.. .<br />

Contudo,<br />

notaremos aqui somente duas das características mais marcantes <strong>de</strong>sse aspecto<br />

(Bertinetto<br />

1991, p. 42, trad. nossa):<br />

i – a existência <strong>de</strong> um instante <strong>de</strong> focalização, no qual o processo vem sendo<br />

observado no pleno curso <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento;<br />

ii – um estado <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação<br />

além do instante <strong>de</strong> focalização.<br />

Como nos exemplos abaixo:<br />

92<br />

com relação à continuação do processo para<br />

(57) Naquele momento, João dormia profundamente. (i)<br />

(58) Naquele momento, João estava dormindo profundamente. (i)<br />

(59) João estava dormindo profundamente, quando foi acordado por Maria. (ii)<br />

Como<br />

ilustra o ponto (ii) acima, os eventos veiculados neste aspecto não são<br />

compatíveis com advérbios que fazem alusão<br />

à conclusão <strong>de</strong>stes mesmos eventos,<br />

<strong>de</strong>vido às características apontadas acima. Exemplos (para as sentenças abaixo não<br />

serão consi<strong>de</strong>ras interpretações habituais):<br />

(60)<br />

(?)João estava comendo em duas horas.<br />

(61) João estava comendo por duas horas.


Responda para cada das sentenças abaixo, justificando (dizendo os “porquês”), a<br />

seguinte pergunta:<br />

- Ele / ela acabou <strong>de</strong> fazer?<br />

(a) João pintou o quadro em 2 dias.<br />

(b) Jonas leu o livro por 1 semana.<br />

(c) Maria digitou o trabalho por 1 hora.<br />

(d) Pedro correu <strong>de</strong> manhã.<br />

Pela mesma razão, aludir à conclusão ou ao ponto final do evento, os advérbios<br />

culminativos (‘até às 14:00hs’), <strong>de</strong>limitativos (‘das 14:00hs às 14:30hs’) e<br />

circunscritivos (‘entre 14:00hs e 14:30hs’), também não são incompatíveis:<br />

(62) (?)Quando cheguei, João comia (estava comendo) até às 14:00hs.<br />

(63) (?)Quando cheguei, João comia (estava comendo) das 14:00hs até às 14:30hs.<br />

(64) (?)Quando cheguei, João comia (estava comendo) entre<br />

14:00hs e 14:30hs.<br />

Contudo<br />

temos que, sem a oração “quando cheguei”, esta combinação, pelo menos em<br />

português, é possível:<br />

(a) João estava comendo até às 14:00hs.<br />

(b) João estava comendo das 14:00hs até às 14:30hs.<br />

(c) João estava comendo entre 14:00hs e 14:30hs.<br />

O que possibilita essa aceitabilida<strong>de</strong>? Ou seja, qual a diferença entre a presença e a<br />

ausência <strong>de</strong> “quando cheguei”?<br />

Um caso bem mais problemático para literatura e que tem como alguns <strong>de</strong> seus<br />

ingredientes o ponto (ii) acima e o aspecto progressivo é o chamado “paradoxo do<br />

imperfeito”. Vejamos esse pretenso paradoxo com as sentenças abaixo:<br />

(65a) João estava atravessando a rua ontem.<br />

≠><br />

(65b) João atravessou a rua ontem.<br />

(66a)<br />

João estava correndo ontem.<br />

93


=><br />

(66b) João correu ontem.<br />

O contraste entre essas duas sentenças<br />

é que a partir <strong>de</strong> (65a) não po<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos inferir<br />

(65b) (em outros termos, (65a) não acarreta (65b)), mas <strong>de</strong> (66a) po<strong>de</strong>mos inferir (66b)<br />

((66a) acarreta (66b)). Vamos enten<strong>de</strong>r o que acontece<br />

aqui em suas etapas:<br />

1)<br />

para enten<strong>de</strong>r o que quer dizer uma sentença como (65a), mesmo no progressivo, é<br />

preciso contar com o final do evento que ela veicula, com ele terminado, justamente<br />

para saber como é esse evento (isto é, ‘atravessar a rua’ se refere a um evento <strong>de</strong><br />

atravessar a rua até o final);<br />

2) contudo, o progressivo nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber o fim do evento, porque nos apresenta o<br />

evento no seu <strong>de</strong>senrolar;<br />

3) se precisamos do evento concluso para entendê-lo (ponto (1)), e o progressivo<br />

nos<br />

impe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> saber sobre o fim do evento (ponto (2)), não conseguiremos enten<strong>de</strong>r<br />

corretamente a sentença que contém tal evento;<br />

4) porém, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, damos<br />

conta disso, i.e., enten<strong>de</strong>mos (65a).<br />

É na relação entre esses quatro passos, principalmente na aparente contradição entre (3)<br />

e (4), que resi<strong>de</strong> algo <strong>de</strong> paradoxal... mas preferimos,<br />

como muitos outros autores,<br />

chamar essa situação <strong>de</strong> quebra-cabeças. Para montá-lo, falta, entretanto, ainda uma<br />

peça.<br />

Notamos que, se colocarmos em paralelo as sentenças (65a, b) e (66a, b), elas<br />

têm as mesmas características:<br />

(65a) aspecto imperfectivo progressivo / ME(LT) – MF<br />

(66a)<br />

aspecto imperfectivo progressivo / ME(LT) – MF<br />

(65b) aspecto perfectivo / ME(LT) – MF<br />

(66b)<br />

aspecto perfectivo / ME(LT) – MF<br />

Por<br />

que então somente (66a) permite a inferência para (66b), e (65a) não permite para<br />

(66b)? Há alguma diferença entre os<br />

eventos <strong>de</strong> (66a, b) e (65a, b)?<br />

94


Há sim, e, intuitivamente, po<strong>de</strong>mos dizer que atravessar a rua é um evento que<br />

tem um fim, que é justamente chegar do outro lado da rua; mas correr não tem um fim,<br />

não<br />

tem um limite, em si mesmo.<br />

Diferenças como essa são fundamentais para o estudo dos verbos, e, na seção<br />

abaixo, veremos que, para compor o domínio tempo-aspectual, ao lado da referência<br />

temporal e do aspecto, resta ainda estabelecermos o “sub-domínio” da acionalida<strong>de</strong><br />

(a<br />

chamada<br />

Aktionsart), responsável por noções como télico (do grego “telos”, fim),<br />

atélico, estativo, durativo, etc.<br />

5. Acionalida<strong>de</strong><br />

Recapitulando, temos que a referência temporal e o aspecto são os componentes que nos<br />

dão, respectivamente, a localização <strong>de</strong> um evento na linha do tempo e a representação<br />

<strong>de</strong> sua completu<strong>de</strong> ou incompletu<strong>de</strong>.<br />

Contudo, há ainda uma terceira noção que<br />

<strong>de</strong>sempenha um papel fundamental no estudo dos fenômenos pertencentes ao domínio<br />

tempo-aspectual: a acionalida<strong>de</strong>.<br />

Por acionalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r<br />

o tipo <strong>de</strong> evento, especificado <strong>de</strong> acordo com um número limitado <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong>s relevantes […]. As oposições básicas são aquelas entre<br />

eventos pontuais vs. durativos, télico vs. atélicos e estátivos vs.<br />

dinâmicos. Isso nos permite isolar as seguintes quatro classes:<br />

estativos, ativida<strong>de</strong>s, accomplishments e achievements. (Bertinetto,<br />

1994, p. 392, trad. nossa).<br />

Vejamos<br />

com mais <strong>de</strong>talhes o que isso, e esses nomes aparentemente estranhos (e<br />

também “intraduzíveis”), quer dizer.<br />

Em primeiro lugar, não estamos aqui diante <strong>de</strong> características dêiticas dos<br />

eventos; <strong>de</strong> fato, com relação a isso temos<br />

apenas que olhar para a referência temporal<br />

(e também para a categoria <strong>de</strong> pessoa, mas<br />

isso é outra história...). Parece então que o<br />

que<br />

temos aqui é algo que <strong>de</strong>ve ser como o aspecto, não-dêitico, e também, quem sabe,<br />

apenas do nível “das <strong>de</strong>scrições” dos eventos. Porém, um argumento contra a unificação<br />

<strong>de</strong> aspecto e acionalida<strong>de</strong> é que po<strong>de</strong>mos utilizar o mesmo aspecto<br />

com acionalida<strong>de</strong>s<br />

diferentes, tendo resultados lógico-lingüísticos diferenciados; mostrar isso é justamente<br />

95


o objetivo<br />

<strong>de</strong> (65) e (66). A melhor saída parece mesmo ser que na acionalida<strong>de</strong> o que é<br />

consi<strong>de</strong>rado é o tipo, ou classe do evento, e, essa classe ou tipo, po<strong>de</strong> sofrer todas as<br />

operações aspectuais e também aparecer<br />

em todas as referências temporais possíveis.<br />

Com efeito,<br />

essa seria uma situação i<strong>de</strong>al, mas veremos que, apesar <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos sim<br />

combinar os três domínios, essas combinações não são completamente livres, há<br />

restrições sobre elas, e nem sempre as combinações resultam no mesmo. Antes, porém,<br />

<strong>de</strong> as analisarmos, <strong>de</strong>vemos saber o seguinte: quais são os tipos ou classes <strong>de</strong> eventos?<br />

Mais que isso, como individualizá-las?<br />

Essas são questões muito complexas e aqui, para efeitos didáticos e <strong>de</strong><br />

exposição, faremos o inverso: apresentaremos as classes acionais que têm maior<br />

consenso<br />

na literatura, explorando algumas <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s, para então expor e<br />

discutir os fatores que levem à sua individualização.<br />

As classes que trabalharemos aqui são:<br />

a) estativos<br />

b) ativida<strong>de</strong>s<br />

c) accomplishments<br />

d) achievements<br />

Os estativos são aqueles predicados <strong>de</strong>, ou<br />

seja, como elação<br />

aos estativ<br />

22 aos quais não correspon<strong>de</strong> uma dinamicida<br />

o próprio nome diz, se referem a estados; não po<strong>de</strong>mos dizer, com r<br />

os, que acontece alguma coisa. Exemplos seriam:<br />

(67) João está com fome / com dor <strong>de</strong> cabeça / cansado / feia<br />

(68)<br />

Maria é alta / magra / jovem / feia<br />

Às ativida<strong>de</strong>s correspon<strong>de</strong>m os eventos<br />

dinâmicos que não têm um fim previsível e que<br />

po <strong>de</strong>m,<br />

por isso mesmo, continuarem in<strong>de</strong>finidamente:<br />

(69) João correu / nadou / passeou / trabalhou / jogou bola.<br />

22 Preferimos usar “predicados” porque não há consenso na literatura sobre se <strong>de</strong>vemos classificar como<br />

estativo (ou ativida<strong>de</strong>, accomplishment, achievement) o verbo, o predicado verbal ou a sentença.<br />

96


Chamamos os estativos e as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atélicos, por não possuírem um fim<br />

previsível. As duas outras classes acionais, os accomplishments e os achievements,<br />

possuem um ponto final previsível e são, portanto, chamados <strong>de</strong> télicos. Exemplos<br />

<strong>de</strong>ssas classes, respectivamente seriam:<br />

(70) João pintou o quadro / cortou a grama / <strong>de</strong>senhou o retrato / revelou a foto<br />

(71) João tirou a foto / acertou o alvo / achou o quadro / chegou do trabalho<br />

Diferente das outras três classes acionais, os achievements não “levam tempo” para<br />

acontecer, dão-se em um instante e são chamados, por causa disso, <strong>de</strong> não-durativos, ao<br />

passo que os estativos, ativida<strong>de</strong>s e accomplishments são durativos.<br />

Apresentamos abaixo, em forma <strong>de</strong> quadro, uma sistematização inicial <strong>de</strong>ssas<br />

c lasses através dos traços [± dinâmico], [± télico]<br />

e [± durativo]:<br />

classes [± dinâmico] [± télico] [± durativo] exemplos<br />

estativo - - + ter fome<br />

ativida<strong>de</strong> + - + correr<br />

acc omplishment + + + escrever a carta<br />

achievement + + - atingir o topo<br />

Vejamos agora como po<strong>de</strong>mos chegar até essas quatro classes. Uma sugestão<br />

interessante para tanto é tomar alguns eventos e veiculá-los sob os diferentes aspectos e<br />

procurar<br />

por fenômenos inferenciais semelhantes àqueles que vimos no final da seção<br />

anterior:<br />

(72)<br />

João estava construindo a casa. ≠> João construiu a casa. (accomplishment)<br />

(73) João estava passeando. => João passeou. (ativida<strong>de</strong>)<br />

(74) João estava ganhando a corrida. ≠> João ganhou a corrida.<br />

(achievement)<br />

(75)<br />

João estava tendo dor <strong>de</strong> cabeça => João teve dor <strong>de</strong> cabeça. (estativo)<br />

Se<br />

seguirmos o teste que apresentamos aqui, conseguimos individualizar duas classes <strong>de</strong><br />

eventos: 1) aqueles que permitem a inferência do progressivo para o perfectivo e 2)<br />

aqueles que não permitem tal inferência. Como já aludimos acima, a diferença entre eles<br />

é que os eventos da classe 2) têm um fim, ao passo que esse não é o caso para<br />

os<br />

97


eventos da classe 1). A essa proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> eventos <strong>de</strong> terem ou não um fim (previsível,<br />

não arbitrário) damos o nome <strong>de</strong> telicida<strong>de</strong>; e assim, temos eventos télicos (classe 2)) e<br />

atélicos (classe 1)). A tabela acima captura isso ao atribuir o traço [+ télico] para<br />

accomplishments e achievements, os eventos télicos.<br />

A literatura nos apresenta, além <strong>de</strong>sse teste, uma outra bateria <strong>de</strong>les, lançando<br />

mão agora <strong>de</strong> adjuntos preposicionados, principalmente ‘em X tempo’ e ‘por X tempo’,<br />

nos quais ‘X tempo’ se refere a uma quantida<strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong> tempo. Assim, ativida<strong>de</strong>s,<br />

alguns<br />

estativos e alguns accomplishments são compatíveis com ‘por X tempo’, mas<br />

não os achievements:<br />

(76) João correu por vinte minutos. ativida<strong>de</strong>s<br />

(77) João pintou o quadro por vinte minutos. accomplishments<br />

(78) ? João ganhou a corrida por vinte minutos. achievements<br />

(79)<br />

João teve dor <strong>de</strong> cabeça por 10 minutos. estativos<br />

O adjunto ‘em X tempo’ só é compatível com accomplishments e achievements:<br />

(80) ? João correu em vinte minutos. ativida<strong>de</strong><br />

(8 1) João pintou o quadro em vinte minutos. accomplishment (82)<br />

João ganhou a corrida em vinte minutos. achievement<br />

(83) ? João<br />

teve dor <strong>de</strong> cabeça em 10 minutos. estativos<br />

Até agora, separamos accomplishments a achivements (compatíveis com ‘em X tempo’)<br />

<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />

e estativos (incompatíveis com ‘em X tempo’); separamos também<br />

achievements<br />

<strong>de</strong> todos os outros (incompatível com ‘por X tempo’); falta ainda<br />

individualizar os estativos. Para tanto, vale notar que os estativos nunca po<strong>de</strong>m<br />

ser<br />

retomados por ‘fez o mesmo’:<br />

(84) ? João sabe latim e Maria faz o mesmo.<br />

Como recapitulação, po<strong>de</strong>mos dizer que a classificação acional separa os eventos <strong>de</strong><br />

acordo com as seguintes proprieda<strong>de</strong>s, que po<strong>de</strong>m ser simplesmente tratadas como<br />

traços binários, [± durativo], [± estativo] e [± télico].<br />

98


Verbos durativos são compatíveis com adjuntos do tipo ‘por X tempo’; verbos<br />

télicos são compatíveis com adjuntos do tipo ‘em X tempo’; e verbos estativos são<br />

incompatíveis com construções como ‘João X e Maria faz o mesmo’, on<strong>de</strong> “X” está por<br />

um evento estativo. A tabela abaixo sumariza as compatibilida<strong>de</strong>s e, pela sua<br />

combinatória, <strong>de</strong>fine as classes o que a literatura conhece como “classes vendlerianas”<br />

(em homenagem ao filósofo húngaro Zeno Vendler, primeiro a postular essas quatro<br />

classes):<br />

Compatibilida<strong>de</strong><br />

com:<br />

em X tempo por X tempo fazer o mesmo<br />

[± télico] [± durativo] [± estativo] classe vendleriana<br />

sim sim sim accomplishment<br />

sim não sim achievement<br />

não sim sim ativida<strong>de</strong><br />

sim/não sim/não não estativo<br />

Uma questão relativa a esses traços, tratada por muitos autores (cf. Rothstein, 2004), é:<br />

dado que temos 3 traços, a combinatória <strong>de</strong>les permitiria 8 classes, por que só<br />

apresentamos 4? Não abordaremos essa questão aqui, mas três<br />

possíveis vias <strong>de</strong><br />

resposta seriam: (i) mostrar que realmente há incompatibilida<strong>de</strong>s<br />

entre os traços e por<br />

isso<br />

só 4 classes; (ii) buscar outros traços, talvez menos traços, e evitar tantas<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> combinação e incompatibilida<strong>de</strong>; e (iii) permitir mais classes através<br />

<strong>de</strong> testes do mesmo tipo ou apelando para outros critérios.<br />

O que se diz, em síntese, nesse quadro é que: uma ativida<strong>de</strong> (durativa, não-estativa e<br />

atélica) é compatível com adjuntos<br />

‘por X tempo’ e com ‘fazer o mesmo’, e<br />

incompatível<br />

com adjuntos ‘em X tempo’; um accomplishment (durativo, não-estativo e<br />

télico) é compatível com ‘em / por X tempo’ e ‘fazer o mesmo’; um achievement (não-<br />

durativo,<br />

não-estativo e télico) é incompatível somente com ‘por X tempo’; por fim, os<br />

estativos, como traço mais relevante, são incompatíveis com ‘fazer o mesmo’.<br />

O quadro que apresentamos parece ser bastante abrangente e dá conta <strong>de</strong> fatos<br />

interessantes relacionados aos predicados verbais do português.<br />

Porém, como já era <strong>de</strong><br />

99


100<br />

se esperar,<br />

o quadro não contempla todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> classes acionais que<br />

encontramos no português. Assim, ao lado dos accomplishments, achievements,<br />

ativida<strong>de</strong>s e estativos, vale a pena apresentar a classe acional dos predicados ou verbos<br />

incrementais.<br />

A principal característica <strong>de</strong>ssa classe é a <strong>de</strong> que seus membros apresentam certa<br />

ambigüida<strong>de</strong> em relação ao traço da telicida<strong>de</strong>, ou seja, a existência e alcance <strong>de</strong> um fim<br />

intrínseco e previsível. Vejamos um exemplo:<br />

(85) O nível da água subiu<br />

Com essa sentenç a não po<strong>de</strong>mos dizer que o nível da água está alto (para um padrão<br />

<strong>de</strong><br />

altura do nível da água conte xtualmente <strong>de</strong>finido), mas apenas que está mais alto,<br />

assim<br />

teríamos acarretamento apenas <strong>de</strong> (85) pa ra (86), mas não <strong>de</strong> ( 85) para (87):<br />

(86) O nível da água está<br />

alto.<br />

(87)<br />

O nível da água está mais alto.<br />

Outras duas características <strong>de</strong>ssa classe acional merecem ser mencionadas: a primeira<br />

<strong>de</strong>las refere-se à sua formação: em sua maioria, os predicados incrementais <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong><br />

adjetivos, como engordar, emagrecer, abaixar, envelhecer, encompridar, etc.; a segunda<br />

característica <strong>de</strong>sses predicados é que por trás <strong>de</strong>les sempre há a presença <strong>de</strong> uma<br />

escala. Se falamos que alguém “engordou”, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r que esse alguém “andou”<br />

adiante numa escala <strong>de</strong> gordura, está mais gordo, ou ainda que tem um grau maior <strong>de</strong><br />

gordura; o mesmo para envelhecer: quem está mais velho está<br />

mais adiante numa escala<br />

<strong>de</strong><br />

ida<strong>de</strong>. Repare que se usamos termos como “mais adiante” é porque estamos<br />

estabelecendo um tipo <strong>de</strong> comparação. Assim, se alguém engordou ou envelheceu,<br />

andou um tanto nas suas respectivas escalas relativamente a um ponto anterior nessas<br />

mesmas escalas.<br />

(88) João engordou.<br />

(mais magro)<br />

-------|-----------------------------|---------- (mais gordo) escala <strong>de</strong> gordura<br />

João João<br />

(5 anos antes) (pronunciamento da sentença (88))


101<br />

Procure outros exemplos <strong>de</strong> verbos e predicados verbais que apresentam o mesmo<br />

comportamento e diga quais seriam as escalas por trás <strong>de</strong>les.<br />

A classe<br />

acional dos estativos também po<strong>de</strong> ser subdivida em, pelo menos, estativos<br />

permanentes e não-permanentes. Os estativos não-permanentes são aquele que<br />

permitem adjuntos como ‘pela manhã toda’, ‘por<br />

1 hora’, e os permanentes, justamente,<br />

por<br />

durarem o tempo todo, não permitem esse tipo <strong>de</strong> adjunto:<br />

(89)<br />

João teve fome / dor <strong>de</strong> cabeça a manhã inteira. estativo não-permanentes<br />

(90) * João foi alto / homem a manhã inteira. estativos permanentes<br />

Além disso, alguns estativos permitem o uso do imperativo e outros não:<br />

(91) Fique parado!<br />

(92) * Tenha dor cabeça!<br />

(93)<br />

* Seja alto!<br />

Procure uma sistematização para os estativos abaixo:<br />

(a) João está gordo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último verão.<br />

(b) João é gordo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último verão.<br />

(c) João esteve gordo por muitos anos.<br />

(d) João foi gordo por muitos anos.<br />

(e) (?) João estava gordo ontem.<br />

(f) (?) João era gordo ontem.<br />

(g) João está insolente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último verão.<br />

(h) João é insolente <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o último verão.<br />

(i)<br />

João esteve insolente por muitos anos.<br />

(j) João foi insolente por muitos<br />

anos.


(k) João estava insolente ontem.<br />

(m) João era insolente ontem.<br />

(n) (?) João está baixo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último verão.<br />

(o) (?) João é baixo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último verão.<br />

(p) (?) João esteve baixo por muitos anos.<br />

(q) João foi baixo por muitos anos.<br />

(r)<br />

(?) João está baixo esta tar<strong>de</strong>.<br />

(s) (?) João é baixo esta tar<strong>de</strong>.<br />

102<br />

Como vimos, apenas os accomplishments e os achievements são compatíveis com ‘em<br />

X tempo’. Porém, vale notar que suscitam interpretações diferentes:<br />

(94) João leu o livro em 1 semana.<br />

(95) João chegou em 1 hora.<br />

Para (94), po<strong>de</strong>mos dizer que João ficou lendo o livro por 1 semana até acabá-lo, mas<br />

para (95) não faz sentido dizer que João ficou chegando por 1 hora até acabar <strong>de</strong><br />

chegar... isso simplesmente não faz sentido!<br />

O que acontece aqui é que ‘em X tempo’ se<br />

aplica a coisas distintas em (94) e em (95).<br />

Para o caso <strong>de</strong> (94), o adjunto se aplica a eventos que constituem o<br />

accomplishment, e para (95) ele se aplica ao que po<strong>de</strong>mos chama <strong>de</strong> “fase preparatória”<br />

do achievement. Tomemos o exemplo<br />

abaixo:<br />

(96) João achou a chave em 20 minutos<br />

De fato, não é o “achado” da chave que leva 20<br />

minutos, mas sim uma fase preparatória<br />

<strong>de</strong>sse “achado”, constituída por sua vez<br />

<strong>de</strong> vários eventos e que <strong>de</strong>signamos<br />

normalmente com o verbo ‘procurar’. Vejamos agora:<br />

(97) (?) João achou a chave aci<strong>de</strong>ntalmente<br />

em 20 minutos.


Essa sentença causa estranheza justamente porque o advérbio ‘aci<strong>de</strong>ntalmente’ veta a<br />

fase preparatória, que é on<strong>de</strong> se<br />

aplica ‘em 20 minutos’.<br />

103<br />

Por falar em achievements, vale a pena mencionar que eles po<strong>de</strong>m ser também<br />

subdividos. Alguns <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>m ser usados no progressivo e outros não:<br />

(98) João estava ganhando a corrida.<br />

(99) (?) João esta se assustando com o quadro.<br />

Além disso, em <strong>de</strong>terminados contextos,<br />

alguns achievements po<strong>de</strong>m ter uma leitura<br />

pontual (um único evento aconteceu)<br />

e outros, uma leitura <strong>de</strong> repetição:<br />

(100)<br />

João estava saindo <strong>de</strong> casa.<br />

(101) João estava batendo na porta.<br />

Temos<br />

uma única saída em (100), mas várias batidas em (101).<br />

Proponha mais testes e uma sistematização<br />

para o seguinte conjunto <strong>de</strong> dados:<br />

(a) Quando João entrou, a bala estava atingindo o alvo.<br />

(b) Quando João entrou, Maria estava batendo na porta.<br />

(c) Quando João entrou, Maria estava pulando/ dando um pulo.<br />

(d) (?)Quando João entrou, Maria estava se impressionando (com o quadro).<br />

(e) (?)Quando João entrou, Maria estava se assustando (com o filme).<br />

Depois <strong>de</strong>ssa rápida exposição <strong>de</strong> assuntos tão complexos, po<strong>de</strong>mos dizer, como<br />

recapitulação geral, que a referência temporal localiza<br />

<strong>de</strong>iticamente os eventos em uma<br />

linha<br />

do tempo orientada; o aspecto refere-se à representação do evento feita pelo<br />

falante, como concluso ou inconcluso; e, por fim, a acionalida<strong>de</strong> refere-se à natureza do<br />

evento, se ele é ou não durativo, estativo ou possui um ponto final previsível<br />

(telicida<strong>de</strong>).<br />

Vale também lembrar que ainda há muito sobre o que falar com relação às<br />

categorias que apresentamos aqui, suas restrições e interações.<br />

Porém, falta ainda muito


104<br />

mais para ser dito sobre o verbo, entre os assuntos principais estão: o modo, a pessoa, a<br />

alternância <strong>de</strong> voz, etc...


105

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