Antônio Luiz Vieira - ICHS/UFOP
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nossa vitalidade, todos os brilhos de nosso espírito,<br />
todas as energias de nosso caráter...” 7<br />
A pulsão dessa vontade ecumênica de separar-se do passado, de reformar o espaço e<br />
engendrar uma nova mentalidade, expressa-se, com Olavo Bilac, num verdadeiro estado de<br />
“gratificação catártica”, sob o emblema dos golpes das picaretas:<br />
“No aluir das paredes, no ruir das pedras, no<br />
esfarelar do barro, havia um longo gemido. Era o<br />
gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso,<br />
do Opróbio. A cidade colonial, imunda, retrógrada,<br />
emperrada nas suas velhas tradições, estava<br />
soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais<br />
que desabavam. Mas o hino claro das picaretas<br />
abafava esse protesto impotente. Com que alegria<br />
cantavam elas – as picaretas regeneradoras! E como<br />
as almas dos que ali estavam compreendiam bem o<br />
que elas diziam, no seu clamor incessante e rítmico,<br />
celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da<br />
arte! 8<br />
Indignado desprezo se repetirá diante de um inesperado “espectro do passado” - a insidiosa<br />
alegria da festa popular - que quebra a elegância da etiqueta dos novos habitus para<br />
macular a beleza higiênica do espaço reformado da nova civilização...<br />
“(...) naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o<br />
asfalto polido, entre as fachadas ricas dos prédios<br />
altos, entre as carruagens e automóveis que<br />
desfilavam, o encontro do velho veículo, em que os<br />
devotos bêbados urravam, me deu a impressão de um<br />
monstruoso anacronismo: era a ressureição da<br />
barbárie, era a idade selvagem que voltava como a<br />
alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar<br />
a vida da idade civilizada... 9<br />
A demora seria infinita na constelação das representações utópicas das elites: a<br />
“República dos Médicos”, onde os corpos seriam saudáveis e a luz da razão anularia os<br />
efeitos danosos da paixão e dos sentidos 10 . Ou no extremo, a própria higiene “gênica” do<br />
7<br />
Assim se expressa em artigo publicado na Revista da família acadêmica, em junho de 1888, aos 22 anos de<br />
idade, o então alferes-aluno Euclides da Cunha. A citação foi extraída de Celso CASTRO, Os militares e a<br />
república, RJ: Jorge Zahar, 1995, p. 124.<br />
8<br />
Olavo Bilac. “Crônica”, mar. 1904. Citado em N. SEVCENKO. Op. Cit., p. 31.<br />
9<br />
Olavo Bilac. “A Festa da Penha”. Kosmos. RJ, out. 1906. Citado em Rachel SOINET.A subversão pelo<br />
riso. RJ: Fund. Getúlio Vargas, 1998, p.22.<br />
10<br />
Em MACHADO, Roberto et. Al. Danação da norma – medicina social e constituição da psiquiatria no<br />
Brasil. RJ: Graal, 1978, encontra-se a análise de um grande repertório da literatura médica daquele contexto e<br />
do projeto de uma “República dos Médicos”.