Antônio Luiz Vieira - ICHS/UFOP
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avalanche de fórmulas e prescrições para a fortificação do corpo e fortalecimento dos<br />
músculos: tônicos, vitaminas, limpeza corporal, ginástica, esportes, banhos de mar ou em<br />
estâncias termais, alimentação saudável, regularidade do descanso e moderação no sexo,<br />
etc., etc., os anarquistas, que recusam a ordem capitalista, respondem no estranho paradoxo<br />
de opostos em comunhão... As expectativas investidas quanto às possibilidades da ciência e<br />
da razão assumem uma devoção “messiânica”. Auto-controle e auto-disciplina, são palavras<br />
chaves nas prescrições ao comedimento, à pudicícia, à austeridade. Em favor dos<br />
fundamentos pedagógicos para a formação do homem novo, mobilizam um arsenal de<br />
censuras ao divertimento, ao gozo dos prazeres: a chácara e o grupo de estudos contra o<br />
bar, a bebida, o fumo, o sexo; a razão contra os sentidos; os cuidados higiênicos e<br />
disciplinares do corpo contra o desregramento das condutas. Enquanto recusam a ordem<br />
capitalista, os anarquistas convertem-se em agências de engendramento de habitus inscritos<br />
nas táticas e dispositivos estratégicos com que o poder estruturante da sociedade burguesa<br />
opera sobre as classes populares...<br />
Muito se poderia apelar em favor do discurso anarquista. Mas, mesmo que<br />
atenuássemos, e entendêssemos o inflexível racionalismo do discurso libertário e as<br />
prescrições a uma rígida moralidade e austeridade das condutas, como condição tática para<br />
a classe concentrar forças sobre os propósitos maiores e mais imediatos da luta<br />
revolucionária (“educar os sentidos” e elevar o intelecto de toda a classe), ainda assim,<br />
muito restaria por justificar o que parece ser bem mais que uma infeliz coincidência 25 ...<br />
A pergunta que nos fazemos é se não haveria qualquer coisa nessa trama onde se<br />
articula a disciplina lógica e a disciplina moral como método da organização tática da<br />
classe para empreender uma “luta de representações” contra o imaginário hegemônico<br />
irradiado pelas classes dominantes, que acaba funcionando como armadilha, em que as<br />
vanguardas tão zelosas de seus valores, acabam se auto-capturando na própria rede lançada<br />
pelo inimigo(?)<br />
Seja como for, é o próprio olhar de um anarquista, nada ortodoxo, é certo, que<br />
assinala a alegre necessidade do afastamento quer da disciplina moral quer da disciplina<br />
lógica que anima o positivismo tanto da intelectualidade orgânica das classes dominantes,<br />
quanto a intelectualidade orgânica do proletariado.<br />
Narrando a ruptura na vida cotidiana de um cidadão comum durante a festa<br />
carnavalesca, Lima Barreto afirma a importância daquele afastamento,<br />
“(...) Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da Diertoria<br />
dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de<br />
sua gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.<br />
(...) E então ele esquece tudo: a Pátria, a família, a humanidade.<br />
Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria<br />
durante dias seguidos.<br />
25 Em outro artigo, Praxis revolucionária versus o corpo, a festa e o divertimento, Cadernos do CEDHIS, nº<br />
27, 2º semestre de 2000, pp.22-24, e no terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, Recusa lúdica e<br />
recusa lógica, Uberlândia: UFU, 2002, “Nas redes do poder: racionalismo, trabalho e corpo no imaginário<br />
anarquista”, pp. 75-114, fazemos uma abordagem tanto dessa “razão messiânica” que anima o discurso<br />
anarquista, quanto do forte moralismo que o afasta das festas, dos divertimentos e das manifestações lúdicas<br />
da cultura popular.