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Antônio Luiz Vieira - ICHS/UFOP

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MESSIANISMO DA RAZÃO: REPRESENTAÇÕES DA UTOPIA<br />

O discurso anarquista nas redes da episteme racionalista<br />

<strong>Antônio</strong> <strong>Luiz</strong> <strong>Vieira</strong> •<br />

“Progredir, melhorar... esgota-se a<br />

ampulheta,<br />

Palpita o regular cronômetro. O<br />

aeroplano –<br />

Abelha solta da colmeia do Planeta –<br />

Sobrepaira à charrua, em terra, e à nau,<br />

no oceano<br />

É a civilização. A fórmula obsoleta<br />

Cede lugar aos novos ideais do<br />

pensamento humano.<br />

(...)”<br />

Hermes Fontes<br />

Soneto em A Vida, ano I, nº 1,<br />

30/11/1914<br />

“A energética vem assim iluminar<br />

e simplificar a sociologia. Aplicando-a a<br />

todos os problemas da sociologia e da<br />

moral penso ter realizado o voto de<br />

Ostwald quando propõe aos sociólogos<br />

a introdução dela no estudo dos<br />

fenômenos de sua especialidade (...)”.<br />

José Oiticica, A Vida, ano I, nº 1,<br />

1914.<br />

Se o exercício de compreensão de um certo contexto e de sua trama tem licença para<br />

deslocar-se comparativamente tanto no espaço, quanto no tempo, iniciaremos com uma<br />

digressão, e esperamos não nos perder nela, como aquele pintor que desapareceu na própria<br />

paisagem que pintava...<br />

Durante o século XIX, na ainda Rússia dos tzares, se difunde através de uma rica<br />

literatura, o perfil resoluto do homem-novo, radicalmente engajado na luta pela supressão<br />

da velha ordem social e na conseqüente criação de um novo mundo. Todas as gerações de<br />

revolucionários russos se inspirarão nos personagens niilistas que pontilham a literatura<br />

engajada e de propaganda revulocionária daquela época. Tchernichevski tornou-se o<br />

emblema do escritor engajado. Seus personagens configuraram o paradigma para várias<br />

gerações de revolucionários, dos quais o bolchevique será o modelo mais acabado. Lenin<br />

citava Tchernichevski com propositada frequência.<br />

• Mestre em História Social, na linha “Política e Imaginário”, pela Universidade Federal de Uberlândia.<br />

Professor da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto –SP.


Mas o quê tornava aqueles personagens tão atrativos e inspiradores a todo ativista<br />

revolucionário?<br />

Alain Besançon 1 , em seu estudo sobre a intelligentsia russa, procura responder à<br />

pergunta fazendo um reconhecimento psicanalítico tanto de Tchernichevski quanto da<br />

constelação de seus personagens. Em sua exposição ele deixa claro o quê tornava o homem<br />

novo, o personagem-emblema, em atraente modelo à militância revolucionária de então:<br />

O auto-controle e a auto-disciplina são a marca do herói tchernichevskiano.<br />

A idéia subjacente àqueles romances de propaganda revolucionária seria oferecer o<br />

exemplo de uma conduta metódica, através da qual alcançar-se-ia o perfeito domínio de si<br />

mesmo, demonstrando o triunfo completo de uma consciência racional sobre os sentidos e<br />

os desejos. O homem-novo, consciente das exigências de uma auto-preparação para as<br />

tarefas revolucionárias, submete-se a uma reeducação total de suas faculdades: disciplina<br />

física, disciplina intelectual, disciplina afetiva, disciplina sexual. Como máquinas<br />

pensantes, sem sofrimento nem conflitos interiores, tornam-se a vanguarda na preparação e<br />

conquista da sociedade futura.<br />

No ensaio Le Principe Anthropologique em Philosophie, Tchernichevski<br />

fundamenta, com forte positivismo teórico, os pressupostos filosóficos para a formação<br />

dessa personalidade maquínica e sem vida interior, que constitui o homem novo: “primeiro,<br />

a filosofia vê o homem o que vêem a medicina, a fisiologia e a química; segundo, as<br />

ciências naturais adquiriram já um tal progresso que fornecem abundantes materiais para<br />

uma solução correta dos problemas morais” 2 .<br />

Contudo, diante da arrogância megalomaníaca das convicções que animam o<br />

homem novo, em sua busca penitencial de verdades cartesianas e claras, a voz de<br />

Dostoievski, insidiosamente, lança as dúvidas. Através de personagens como Raskolnikov,<br />

Kirsanov, ele também frequentava a alma do homem novo, mas nele procurando sempre o<br />

que se encontra oculto...<br />

O caráter metafísico da dúvida dostoievskiana é bem sintetizado no seguinte<br />

comentário,<br />

“... se se consegue descobrir a fórmula de todos os nossos desejos, e de<br />

todos os nossos caprichos, quer dizer, donde provém, em que leis se baseia<br />

seu desenvolvimento, como se reproduzem, para que objetivos tendem em<br />

tais e tais casos etc., é provável então que o homem se reduzirá<br />

imediatamente à classe de uma simples engrenagem, pois um homem<br />

despojado de desejo, de vontade, é apenas um parafuso, uma simples<br />

transmissão!” 3 .<br />

A arrogante auto-afirmação da personalidade do homem novo, o típico niilista russo<br />

do século XIX, já havia sido bem caracterizada, antes dos romances de propaganda de<br />

Tchernichevski, por I. Turguéniev em seu romance Pais e Filhos. No desenrolar de toda a<br />

trama, Basarov, o personagem niilista, move incansavelmente a metralhadora giratória de<br />

seu intelecto atlético vivamente interessado pelos progressos da ciência. Em uma conversa<br />

alusiva aos alemães, diante do comentário (provocativo) de um certo interlocutor, que<br />

1 BESANÇON, Alain. O inconsciente – o episódio da prostituta em Que fazer? e em O subsolo, in: LE<br />

GOFF, J. e NORA, P. (Orgs.). História – novos objetos, RJ: Francisco Alves, 1976, pp.33-51.<br />

2 Citado em BESANÇON, A. Op. cit., p. 47.<br />

3 Id. Ibid., p. 39.


lembrava que os mesmos (os alemães), além de terem demonstrado progresso nas ciências,<br />

ainda tinham homens do pensamento como “um certo Schiller”, ou “um certo Goethe”, ao<br />

que o herói niilista retruca certeiro: “um bom químico é vinte vezes mais útil que qualquer<br />

poeta” 4 . Diante da Natureza, a mesma lógica instrumental: “a própria Natureza nada tem<br />

de interessante... não é um templo e sim uma oficina em que o homem trabalha” 5 .<br />

Durante todo o tempo, o discurso do heroi niilista movimenta-se no curto circuito de<br />

uma lógica que reduz à inutilidade toda e qualquer arte, assim como inútil e absurdo se lhe<br />

afigurava o amor. A Natureza torna-se matéria a ser quantificada pela linguagem exata do<br />

pensamento lógico, e esmigalhada pela produtividade técnica do trabalho. No centro da<br />

ação, um Eu-máquina que proclama sua Era no auto-elogio da ausência de conflito<br />

interior...<br />

Em nossa opinião, a força afirmativa que anima esse discurso niilista no sentido da<br />

auto-desciplina e de uma total racionalização do pensamento, tanto quanto o discurso<br />

anarquista, que se configurou no Brasil, no contexto delimitado, é estruturada pelos<br />

mesmos mecanismos de produção de saberes constitutivos do “campo epistemológico”, que<br />

a ordem burguesa emergente engendra e mobiliza contra a ordem tradicional em declínio,<br />

tanto lá quanto aqui.<br />

Em nosso caso, o universo mental em que gravitam as elites intelectuais, no<br />

contexto da virada do século XIX para o século XX, é estruturado pelo positivismo<br />

racionalista e cientificista: nas ciências sociais, ou nas ciências médicas, nos meios<br />

militares, ou entre os políticos, nos círculos intelectuais e literários, Augusto Comte era<br />

fundamento teórico e doutrinário às práticas de produção de conhecimentos.<br />

De Sílvio Romero a Euclides da Cunha, de Olavo Bilac a Monteiro Lobato, um<br />

catálogo de nomes confirmaria a extensão enciclopédica da produção de discursos e de<br />

saberes que se movimenta sob a força estruturante do racionalismo cientificista, e cujo<br />

marco originário indicativo da densidade ideológica dessa configuração intelectual,<br />

encontra-se naquilo que foi denominado por “Geração de 70” 6 .<br />

A conjuntura do programa da Regeneração, que empreendeu à reforma urbana e<br />

sanitária do Rio de Janeiro, no governo de Rodrigues Alves, serve de paradigma para<br />

indicar os impactos sociais dessa mentalidade emergente amalgamada pelo pensamento<br />

positivo e cientificista. Investidos por uma vontade ecumênica de soterrar o passado, os<br />

reformadores querem dele separar-se pelo ato demiúrgico da criação de um novo homem e<br />

de um novo mundo:<br />

“Hoje, os nossos ideais são, de fato, os verdadeiros e<br />

os únicos materiais para a prodigiosa construção da<br />

civilização pátria – nós, os operários do futuro, e que<br />

devemos em breve atirar na ação toda a fortaleza de<br />

4<br />

TURGUÉNIEV, Ivan. Pais e filhos. SP: Abril Cultural, 1971, p. 36.<br />

5<br />

Id. Ibid., p.56.<br />

6<br />

Uma análise contextualizada dessa geração de intelectuais, encontramos em SEVCENKO, Nicolau.<br />

Literatura como missão. SP: Brasiliense, 1989, especialmente, cap.II – O exercício intelectual como atitude<br />

política: os escritores-cidadãos. Também, PAIM, <strong>Antônio</strong>. História das idéias filosóficas no Brasil. SP:<br />

Grijalbo, 1967, ver A mentalidade positivista, pp.192-239.


nossa vitalidade, todos os brilhos de nosso espírito,<br />

todas as energias de nosso caráter...” 7<br />

A pulsão dessa vontade ecumênica de separar-se do passado, de reformar o espaço e<br />

engendrar uma nova mentalidade, expressa-se, com Olavo Bilac, num verdadeiro estado de<br />

“gratificação catártica”, sob o emblema dos golpes das picaretas:<br />

“No aluir das paredes, no ruir das pedras, no<br />

esfarelar do barro, havia um longo gemido. Era o<br />

gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso,<br />

do Opróbio. A cidade colonial, imunda, retrógrada,<br />

emperrada nas suas velhas tradições, estava<br />

soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais<br />

que desabavam. Mas o hino claro das picaretas<br />

abafava esse protesto impotente. Com que alegria<br />

cantavam elas – as picaretas regeneradoras! E como<br />

as almas dos que ali estavam compreendiam bem o<br />

que elas diziam, no seu clamor incessante e rítmico,<br />

celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da<br />

arte! 8<br />

Indignado desprezo se repetirá diante de um inesperado “espectro do passado” - a insidiosa<br />

alegria da festa popular - que quebra a elegância da etiqueta dos novos habitus para<br />

macular a beleza higiênica do espaço reformado da nova civilização...<br />

“(...) naquele amplo boulevard esplêndido, sobre o<br />

asfalto polido, entre as fachadas ricas dos prédios<br />

altos, entre as carruagens e automóveis que<br />

desfilavam, o encontro do velho veículo, em que os<br />

devotos bêbados urravam, me deu a impressão de um<br />

monstruoso anacronismo: era a ressureição da<br />

barbárie, era a idade selvagem que voltava como a<br />

alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar<br />

a vida da idade civilizada... 9<br />

A demora seria infinita na constelação das representações utópicas das elites: a<br />

“República dos Médicos”, onde os corpos seriam saudáveis e a luz da razão anularia os<br />

efeitos danosos da paixão e dos sentidos 10 . Ou no extremo, a própria higiene “gênica” do<br />

7<br />

Assim se expressa em artigo publicado na Revista da família acadêmica, em junho de 1888, aos 22 anos de<br />

idade, o então alferes-aluno Euclides da Cunha. A citação foi extraída de Celso CASTRO, Os militares e a<br />

república, RJ: Jorge Zahar, 1995, p. 124.<br />

8<br />

Olavo Bilac. “Crônica”, mar. 1904. Citado em N. SEVCENKO. Op. Cit., p. 31.<br />

9<br />

Olavo Bilac. “A Festa da Penha”. Kosmos. RJ, out. 1906. Citado em Rachel SOINET.A subversão pelo<br />

riso. RJ: Fund. Getúlio Vargas, 1998, p.22.<br />

10<br />

Em MACHADO, Roberto et. Al. Danação da norma – medicina social e constituição da psiquiatria no<br />

Brasil. RJ: Graal, 1978, encontra-se a análise de um grande repertório da literatura médica daquele contexto e<br />

do projeto de uma “República dos Médicos”.


corpo, tão procurada nos Congressos de Eugenia e que, afinal, não deixou de ser uma<br />

“política pública”... 11<br />

Essa proliferação discursiva é ilustrativa da emergência de um novo Estado que<br />

rapidamente transformava o padrão das relações com a sociedade civil: criando instituições<br />

e agenciando saberes que se conjugavam numa rede de dispositivos, o Estado centralizou as<br />

estratégias que quebrou o modelo da família tradicional, reestruturando-a em um novo<br />

padrão sob a tutela do saber médico e psiquiátrico; engendrou mecanismos de controle da<br />

infância, da mulher, da sexualidade conjugal; reformulou o espaço urbano esquadrinhado-o<br />

pelo detalhamento normativo de novas posturas; sanitarizou os ambientes e higienizou os<br />

corpos com as práticas da limpeza, da disciplina e do comedimento das atitudes; excluiu do<br />

livre trânsito e privou da liberdade os inúteis, os loucos, ou os que significavam ameaça ou<br />

perigo, os delinqüentes, criminosos e vadios. Reforma do espaço, reestruturação da família<br />

sob nova tutela, disciplina dos corpos e exclusão dos indesejáveis e inúteis, consumavam o<br />

teatro da nova ordem.<br />

E, diante desse irradiação de dispositivos e estratégias institutivas de novos<br />

discursos e práticas sociais, se deslocarmos o olhar para o campo em que se produzem os<br />

discursos e as práticas sociais anarquistas, encontraremos o paradoxo de uma estranha<br />

oposição que se conjuga... É como se os anarquistas respondessem: Querem austeridade<br />

moral? Somos austeros; querem disciplina? Somos disciplinados; querem pudicícia? Somos<br />

pudicos; querem higiene? Somos higiênicos; querem o corpo saudável? Somos saudáveis;<br />

querem que sejamos produtivos? Somos produtivos; querem educação? (nós o somos,<br />

temos jornais, escolas, universidades, bibliotecas, centros de estudos, etc.). Com um<br />

detalhe, somos austeros, disciplinados, pudicos, higiêncos, saudáveis, educados e<br />

produtivos, muito mais do que querem! 12<br />

O racionalismo cientificista enquanto força estruturante do universo mental da<br />

intelectualidade orgânica do anarquismo, não é de difícil reconhecimento. O diálogo<br />

frequente, nem sempre amistoso, entre publicistas da Igreja Positivista do Brasil, e<br />

publicistas dos periódicos anarquistas, é indicativo dessa confluência epistêmica.<br />

A revista Kultur, em seu primeiro número, março de 1904, publica uma matéria de<br />

Kropotkin, intitulada “A filosofia positiva”, na qual, descontadas as críticas ponderadas<br />

feitas pelo autor, há toda uma identidade teórica com a visão da ciência do positivismo<br />

comteano. E, se conviermos que não era pequena a influência de Kropotkin sobre os<br />

anarquistas brasileiros, não é exagero estendermos a eles essa mesma identidade teórica.<br />

Um comentário bem circunstanciado da grande receptividade do conceito de ciência<br />

elaborado pelo positivismo, no movimento operário, anarquista e socialista, tanto<br />

internacionalmente quanto no Brasil, é feito por Jacy Alves de Seixas 13 .<br />

A autora lembra, entre outros fatos, que Neno Vasco, militante anarquista de origem<br />

portuguesa, fez traduções de vários textos de Kropotkin e Eliseu Réclus, autores estes cujos<br />

trabalhos gozaram de grande difusão nos círculos anarquistas brasileiros.<br />

11 MACIEL, Maria Eunice de S. A eugenia no Brasil, Anos 90. Porto Alegre, nº 11, julho/1999, pp.121-143,<br />

traça um quadro detalhado das propostas e práticas da política de eugenia no Brasil nas primeiras décadas do<br />

século XX.<br />

12 A reunião de artigos e ensaios organizada por Edgard LEUENROTH, Anarquismo – roteiro da libertação<br />

social. RJ: Ed. Mundo Livre, 19... , é ilustrativa dessa conjunção entre discurso anarquista e o discurso<br />

produzido pelas agências dos saberes-poderes do Estado.<br />

13 SEIXAS, J. A de. Op. cit., ver capítulo 3 – Le role du positivisme et du darwinisme social dans la penseé<br />

socialiste et anarchiste au Brésil, pp. 82-97.


Se não há grande embaraço em reconhecer no universo mental do movimento<br />

anarquista, a mesma matriz estruturante da episteme do pensamento das elites intelectuais,<br />

que estão à frente das estratégias que procuram consolidar a sociedade burguesa urbanoindustrial<br />

no Brasil na passagem do século XIX ao século XX, então, o embaraço não<br />

poderá ser maior ao procurarmos por correlações entre os discursos e as representações<br />

elaboradas nesses dois campos do imaginário social.<br />

Simplificando os recortes para evitar maiores dificuldades, correlacionaremos três<br />

campos onde as representações elaboradas pelas elites intelectuais, que gravitam nas<br />

agências do poder, e as representações elaboradas pelos intelectuais anarquistas, se<br />

competem, no surpreendente antagonismo em que se conjugam...<br />

Num primeiro plano, e para facilitar a passagem às demais imagens, vamos tomar a<br />

noção de progresso e de ciência e a enorme força com que essas noções são representadas<br />

no imaginário das elites intelectuais, irradiando-se por todo o imaginário social.<br />

O impacto de uma imagem como a locomotiva – uma máquina movimentando-se<br />

em velocidade – deve ter provocado tanto encanto quanto o aeroplano, que o poeta da<br />

epígrafe evoca para expressar a serena decisão de despedir-se do passado, com seus mitos,<br />

suas lendas, suas ilusões. A ciência e seus feitos inundou de certezas o pensamento das<br />

elites intelectuais emergentes e reformadoras, fosse qual fosse a identidade políticoideológica<br />

ou projeto da transformação social.<br />

Um comentário de E. Hobsbawn 14 , no desenvolvimento que ele dá à discussão da<br />

ideologia no sociedade burguesa do século XIX, é revelador desse magnetismo da ciência<br />

no imaginário da intelectualidade. Ele cita as palavras com que em 1861 Cournot, um<br />

economista e estatístico, expressara o fenômeno,<br />

“O fato de acreditar em verdades filosóficas saiu tanto de moda<br />

que nem o público nem nenhuma academia se dispõe a receber<br />

mais obras desse tipo, exceto como produtos de puro academicismo<br />

ou curiosidade histórica.” 15<br />

Em seguida, Hobsbawn complementa com o seguinte,<br />

“Ninguém duvidava do progresso, tanto material como intelectual,<br />

já que parecia tão óbvio para ser negado. Este era, sem dúvida, o<br />

conceito dominante da época.” 16<br />

Já não prenunciara Nietzsche, e com toda razão (se é que se pode falar de “razão”<br />

em seu nome...), quando diz n’ A Gaia Ciência que, após sacrificar, em seu altar, todos os<br />

deuses do passado, a ciência, ela própria, se convertia no último e mais astuto de todos os<br />

deuses?<br />

Sem exagerar, podemos dizer que os homens de ciência e as elites intelectuais<br />

laicas, de um modo geral, moviam-se por um verdadeiro “messianismo da razão” contra a<br />

metafísica, a religião, e todo o universo simbólico da cultura popular.<br />

O pensamento racional enche de vigor o intelecto, ao contrário do pensamento<br />

religioso, que além de ser uma ilusão, é “preguiçoso”, como o vadio que não quer trabalhar,<br />

para sintetizar o raciocínio de Benjamin Mota, um militante anarquista,<br />

14 HOBSBAWN, Eric Joan. A era do capital, 1848-1875. RJ: Paz e Terra, 1977, cap. XII – Ciência, Religião,<br />

Ideologia.<br />

15 Apud. HOBSBAWN, E. J. Op. cit., p. 261.<br />

16 Id. Ibid., p.262.


“O exercício da razão nobilita o homem; o bálsamo da crença e o<br />

consolo da fé o tornam comparável ao vadio que mendiga para não<br />

trabalhar.” 17<br />

A grande receptividade da poesia parnasiana (com sua exatidão cartesiana) entre os<br />

anarquistas, bem como o distanciamento que os mesmos assumiram em relação ao<br />

movimento modernista de 22, e toda a renovação estética que mesmo anunciava, também<br />

pode ser denotativo, de certa forma, de uma resistência ao afastamento de uma estética<br />

racionalista.<br />

A intensa mobilização em todos os círculos anarquistas no Brasil, em prol de uma<br />

“educação racional”, também é ilustrativo dessa razão messiânica que anima o universo<br />

mental dos anarquistas. Indiscutivelmente, a proposta pedagógica de um ensino racional,<br />

elaborada por F. Ferrer 18 , no final do século XIX, adotada e amplamente difundida entre os<br />

anarquistas brasileiros, teoricamente estava muito adiante do ensino que se encontrava<br />

instituído e que, nem de longe, era capaz de atender à maioria da população das classes<br />

populares.<br />

As várias moções discutidas e que configuraram as Resoluções Sobre a Educação<br />

aprovadas no Segundo Congresso Operário Brasileiro, em 1913, bem como o grande<br />

número de artigos publicados na imprensa operária, em todo o período, definem muito bem<br />

os referenciais teóricos da Escola Racionalista 19 . Apenas para ilustrar, entre os inúmeros<br />

congêneres, citaremos algumas passagens do plano que os fundadores de uma Escola<br />

Moderna em Porto Alegre publicaram n’A Lanterna em 1914. Nele há uma clara<br />

visibilidade das estratégias que visam operar por métodos racionais à disciplina tanto do<br />

corpo (“indivíduo-matéria”), a “educação dos sentidos”, quanto do espírito (“indivíduointeligência”),<br />

a “educação intelectual”, mas também a preparação ética para o trabalho:<br />

“(...) Tudo é solidário na obra universal. O indivíduo-matéria<br />

e o indivíduo-inteligência se completam por meio do conjunto<br />

universal, da mesma forma porque este se completa por meio<br />

do indivíduo.<br />

(...) Subordinando-se a esses princípios e às lições dos<br />

mestres que definem a Razão como a máxima potência<br />

intelectual, a luz que guia o espírito humano nas concepções<br />

cósmicas até ao Infinito e o Absoluto, a Escola de Ensino<br />

Racional assume de educadora dos sentidos e das forças<br />

intelectuais.<br />

(...) Sob o ponto de vista social o Racionalismo que se<br />

procura pôr em prática coloca em primeiro plano o trabalho<br />

para evitar os inconvenientes de avolumar, de futuro, já não o<br />

proletariado oprimido, mas a multidão de vadios escravos da<br />

fome e naturais inimigos da sociedade” 20<br />

17 MOTA, Benjamin. Rebeldias. SP: Typographia Brasil, 1890.<br />

18 GUARDIA, Francisco Ferrer. La escuela moderna. Madrid: Ediciones Jucar, 1976.<br />

19 Ver A Voz do Trabalhador. Ano VI, 1º de Outubro de 1913, Nº s 39-40.<br />

20 A Lanterna. São Paulo, 02/01/1915. Apud. RODRIGUES, E. O Anarquismo – na escola, no teatro, na<br />

poesia. RJ: Achiamé, 1992, pp. 56,57.


Não obstante o valor da proposta de uma educação laica e pedagogicamente<br />

inovadora, bem como a autonomia e a força do movimento operário, que cria em todas as<br />

regiões do país, em várias cidades, grande número de escolas fundamentadas nesta<br />

proposta, temos de levar em conta que além da ênfase na formação de um intelecto<br />

fortemente racional, encontra-se também todos os preceitos para a formação do corpo<br />

saudável, pela higiene, pela ginástica, pela disciplina e preparação para o trabalho<br />

produtivo, preceitos estes que se conjugam com toda uma produção de discursos elaborados<br />

sobretudo pela medicina social 21 , que num verdadeiro cerco à família, através de vários<br />

mecanismos operam à “captura” da infância para a tutela de um saber-poder que quer<br />

justamente tornar seus corpos higiênicos, saudáveis, robustos, disciplinados, e produtivos.<br />

A propósito dessa conjunção de projetos e representações, na curiosa situação em<br />

que as representações e as táticas que os círculos operários, e no caso, os anarquistas,<br />

elaboram e operam, acabam nas redes dos dispositivos e das estratégias do poder, um outro<br />

dado (colhido meio acidentalmente no percurso da investigação) também poderá ser<br />

ilustrativo. E, mais importante, talvez seja mesmo indicativo (ao menos como sinalização)<br />

de um momento de reformulação ou rearticulação de estratégias com que o poder opera<br />

sobre a cultura popular.<br />

Trata-se de uma argumentação de Maria Lacerda de Moura. A autora, que sempre<br />

procurava em suas publicações dar ênfase aos problemas da mulher, sua educação, a<br />

conquista de autonomia e liberdade, num processo que a “duras penas” estaria se<br />

desenvolvendo, em determinado momento se depara com algo que, rapidamente, parecia<br />

estar pondo a perder o pouco que fora conquistado: os novos meios de comunicação, as<br />

revistas e o cinema, magnetizaram a atenção das moças e adolescentes, arrastando-as das<br />

possibilidades educativas dentro de uma formação intelectual que realmente lhes permitiria<br />

conquistar mais autonomia e liberdade, para a pura frugalidade mundana das colunas<br />

sociais. Vejamos suas colocações:<br />

“(...) De sorte que a rotina, a religião apertou o cérebro feminino<br />

no círculo de ferro dos dogmas e do pecado, enfaixou a razão da<br />

mulher, conservou infantil o seu cérebro e, agora que o problema<br />

da educação vai sendo encarado seriamente pelos Binet,<br />

Claparède, Faurè, Montessori, Pizzoli, por antropologistas, e<br />

psiquiátras, higienistas e sociólogos; agora que estas investigações<br />

científicas nos indicam novo rumo, positivo, racional, fugindo dos<br />

contos de fadas, das tradições com que os povos primitivos<br />

embalam a imaginação ardente das crianças pequenas e grandes;<br />

agora nos aparece o cinematógrafo inventando outros contos de<br />

fadas ainda mais perigosos porque podem ser experimentados na<br />

tela da vida. E das leituras de Xavier de Montepin, a mulher passou<br />

à leitura de aventuras de artistas de cinema!” 22<br />

A passagem é um caleidoscópio. Primeiro, indica aqueles dispositivos que na<br />

sociedade burguesa emergente (mesmo não sendo excluídos) perderam eficácia estratégica<br />

sobre os corpos – a religião, as implicações morais do pecado. Segundo, enumera todas as<br />

21<br />

Conf. MACHADO, R. et. al. Op. cit., ver Escola, pp. 295-305. Também COSTA, Jurandir F. Op. cit., ver<br />

cap. 5 – Adultos e Crianças, pp. 153-206.<br />

22<br />

MOURA, Maria L. de. Renanscença, nº 3, São Paulo,03/04/1923. Apud. LEITE, Miriam L.M. Maria<br />

Lacerda de Moura e o anarquismo, in: PRADO, ª Arnoni (Org.) Libertários no Brasil. SP:Brasiliense,1986,<br />

p.92.


agências dos novos dispositivos estratégicos que operam o controle dos corpos (e, no caso<br />

específico, a tutela do corpo feminino) – a educação, os médicos, psiquiatras, higienistas,<br />

“antropologistas”, sociólogos. Terceiro, antevê, com perplexidade (e resistência estética, a<br />

exemplo do cinema) toda a mudança nas táticas do poder na operação do domínio sobre as<br />

classes populares e trabalhadoras, com a difusão progressiva dos meios de comunicação de<br />

massa, que irão configurar a “indústria cultural”. Mas, poucas dúvidas podem nos restar<br />

quanto ao fato de que as representações elaboradas pela militante libertária, no campo das<br />

táticas para a mulher conquistar maior autonomia, se encontram presas na mesma rede dos<br />

dispositivos irradiados pelo poder e institutivos dos novos habitus na sociedade burguesa.<br />

Um último termo para relativizar esse jogo de representações entre imaginários<br />

sociais que se conflitam, mas que ao mesmo tempo se reduzem a um mesmo universo<br />

epistêmico. Tomaremos por referência as noções de energia / calor / trabalho, elaboradas<br />

pela termodinâmica.<br />

Durante o século XVIII, e sobretudo durante o século XIX, o desenvolvimento da<br />

termodinâmica, as teorias sobre o calor e a combustão, promoveu a representação do corpo<br />

segundo a imagem de uma “máquina energética”. O próprio Lavoisier analisara a<br />

respiração em termos de combustão. Para Lavoisier, analogamente a processos comoa<br />

combustão do carvão, o que ocorre no corpo através da absorção de oxigênio e da<br />

eliminação de gás carbônico pela respiração, não seria outra coisa senão a queima do<br />

material fornecido pelo sangue, produzindo “calor vital”. O corpo passa a ser visto, antes de<br />

tudo, como produtor de energia.<br />

Esse modelo de representação do corpo, “corpo energético”, promoverá profundas<br />

mudanças nos habitus corporais no século XIX e inícios do século XX. Haverá, mesmo,<br />

uma estreita analogia entre as representações da cidade pelo saber técnico e científico dos<br />

urbanistas e as representações do corpo pela medicina social e sanitária: ambos são<br />

concebidos como uma “máquina energética”. Nela, otimiza-se o trabalho, a respiração deve<br />

ser pura e oxigenante, os fluxos devem ser desobstruídos, as insalubridades removidas, todo<br />

desperdício evitado, tudo deve ser saudável e os resultados capitalizam-se em energias<br />

acumuladas disponíveis. Para a cidade, canais de drenagem, arejamento e alargamento dos<br />

espaços, remoção dos acúmulos inúteis e insalubres, racionalização dos fluxos e do tempo;<br />

para o corpo, águas medicinais, banhos, fortificantes, depurativos, ginástica, esporte,<br />

respiração. Em suma, limpar, desobstruir, remover, economizar, e produzir energias 23<br />

Nos deparamos com esse modelo de representação corporal de forma<br />

paradigmática, em pelo menos dois textos anarquistas. Nas duas matérias, ambas bastante<br />

longas, publicadas por partes em vários números da revista A Vida, em 1914. Um, de José<br />

Oiticica, intitulado O Desperdício das Energias Femininas, que em 1919 voltou a ser<br />

publicado no periódico O Germinal, outro, composto, com toda certeza, pelo grupo de<br />

editores d’A Vida, intitulado Catecismo Anarquista. Nos dois textos, os autores vão longe<br />

nas teorizações do modelo, inclusive com grande vivacidade conceitual.<br />

José Oiticica aborda a questão da mulher na sociedade capitalista, o casamento, a<br />

maternidade, a desvalorização do trabalho doméstico, o domínio masculino, relacionando à<br />

23 Essa correlação entre as representações da cidade e do corpo como “máquina energética”, nesse contexto da<br />

expansão urbana e industrial do Brasil é bem apresentada por SAN’TANNA, Denise B. O receio dos<br />

trabalhos perdidos: corpo e cidade, Projeto História, SP,(13), Jun., 1996, pp. 121-128. Indicações<br />

importantes também podem ser colhidas em VIGARELLO, Georges. O trabalho dos corpos e do espaço,<br />

Projeto História, SP, (13), Jun. 1996, pp. 07-20.


propriedade, ao Estado, à religião, etc., articulando toda a análise com o conceito de<br />

energia, através de oposições como uso racional das energias / desperdício, sempre tendo<br />

em meta que a equação uso ótimo das energias / desperdício mínimo, só poderá verificar-se<br />

com a supressão do trabalho assalariado, da propriedade, do Estado, da forma de<br />

casamento, etc. O autor define as energias humanas como sendo de cinco espécies: físicas,<br />

intelectuais, morais, práticas e sociais. Na análise de cada uma, vai construindo inferências<br />

que indicam o bloqueio existente na sociedade capitalista para o livre desenvolvimento das<br />

mesmas. No andamento da análise, vai se definindo cada vez mais claramente uma visão do<br />

espaço social tanto quanto do corpo, como sistemas que produzem energias, usam-nas, e as<br />

poupam, por formas variadas consoante o maior ou menor desenvolvimento havido do<br />

potencial das energias humanas. Um corpo bem alimentado e saudável, higienizado e<br />

limpo, disciplinado pela ginástica, comandado por um intelecto bem formado, e por uma<br />

sólida moralidade: eis a representação do corpo como máquina energética, uma máquina de<br />

produtividade em todos os sentidos.<br />

Para configurar os termos do discurso, cito o Catecismo, pela precisão da imagem.<br />

Após considerações sobre o universo e a terra, a partir dos conceitos de energia e trabalho,<br />

e das formas de transformação dessas duas categorias, o Catecismo responde à pergunta:<br />

“- E o homem que representa?<br />

O homem é um aparelho em que se passam essas transformações<br />

sob a aparência de vida”.<br />

E mais adiante, a resposta se completa,<br />

“- (...) de modo que, em última análise, o homem é um<br />

transformador de calor solar acumulado em calor vital que se<br />

perde. Esse princípio geral foi descoberto por Sadi Carnot em<br />

princípio do século XIX.”<br />

O Catecismo continua o seu diálogo e procura indicar o caminho “científico” e<br />

“exato” para a solução dos problemas morais,<br />

“- Pode então definir a vida humana?<br />

É um equilíbrio instável de energias de tipo superior no organismo<br />

do homem e cujo fim é um desprendimento de calor inaproveitável.<br />

Essa noção esclarece o problema social?<br />

É a chave segura da sua solução. Até agora as soluções tem se<br />

baseado em hipóteses mais ou menos fantasiosas. A religião por<br />

exemplo (...)<br />

Um problema tão importante como este deve assentar numa noção<br />

exata, num princípio universal do qual dependa diretamente e<br />

necessariamente todos os atos humanos. Essa noção, como<br />

veremos, nos fornece a definição precisa e científica do bem e do<br />

mal e portanto da moral, o que até hoje não foi feito.” 24<br />

A correlação dessas imagens com as representações produzidas pelos discursos dos<br />

saberes agenciados pelo poder e que operam como dispositivos estratégicos de<br />

normatização social e irradiação de práticas, nos parece por demais estreita.<br />

Contra o racionalismo cientificista da intelectualidade orgânica da ordem burguesa<br />

emergente, contra a “ética do trabalho” que centraliza a nova configuração social, contra a<br />

24 Catecismo Anarquista, A Vida, ano I, nº 5, 31/03/1915.


avalanche de fórmulas e prescrições para a fortificação do corpo e fortalecimento dos<br />

músculos: tônicos, vitaminas, limpeza corporal, ginástica, esportes, banhos de mar ou em<br />

estâncias termais, alimentação saudável, regularidade do descanso e moderação no sexo,<br />

etc., etc., os anarquistas, que recusam a ordem capitalista, respondem no estranho paradoxo<br />

de opostos em comunhão... As expectativas investidas quanto às possibilidades da ciência e<br />

da razão assumem uma devoção “messiânica”. Auto-controle e auto-disciplina, são palavras<br />

chaves nas prescrições ao comedimento, à pudicícia, à austeridade. Em favor dos<br />

fundamentos pedagógicos para a formação do homem novo, mobilizam um arsenal de<br />

censuras ao divertimento, ao gozo dos prazeres: a chácara e o grupo de estudos contra o<br />

bar, a bebida, o fumo, o sexo; a razão contra os sentidos; os cuidados higiênicos e<br />

disciplinares do corpo contra o desregramento das condutas. Enquanto recusam a ordem<br />

capitalista, os anarquistas convertem-se em agências de engendramento de habitus inscritos<br />

nas táticas e dispositivos estratégicos com que o poder estruturante da sociedade burguesa<br />

opera sobre as classes populares...<br />

Muito se poderia apelar em favor do discurso anarquista. Mas, mesmo que<br />

atenuássemos, e entendêssemos o inflexível racionalismo do discurso libertário e as<br />

prescrições a uma rígida moralidade e austeridade das condutas, como condição tática para<br />

a classe concentrar forças sobre os propósitos maiores e mais imediatos da luta<br />

revolucionária (“educar os sentidos” e elevar o intelecto de toda a classe), ainda assim,<br />

muito restaria por justificar o que parece ser bem mais que uma infeliz coincidência 25 ...<br />

A pergunta que nos fazemos é se não haveria qualquer coisa nessa trama onde se<br />

articula a disciplina lógica e a disciplina moral como método da organização tática da<br />

classe para empreender uma “luta de representações” contra o imaginário hegemônico<br />

irradiado pelas classes dominantes, que acaba funcionando como armadilha, em que as<br />

vanguardas tão zelosas de seus valores, acabam se auto-capturando na própria rede lançada<br />

pelo inimigo(?)<br />

Seja como for, é o próprio olhar de um anarquista, nada ortodoxo, é certo, que<br />

assinala a alegre necessidade do afastamento quer da disciplina moral quer da disciplina<br />

lógica que anima o positivismo tanto da intelectualidade orgânica das classes dominantes,<br />

quanto a intelectualidade orgânica do proletariado.<br />

Narrando a ruptura na vida cotidiana de um cidadão comum durante a festa<br />

carnavalesca, Lima Barreto afirma a importância daquele afastamento,<br />

“(...) Durante o ano todo, Morcego é um grave oficial da Diertoria<br />

dos Correios, mas, ao aproximar-se o carnaval, Morcego sai de<br />

sua gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua.<br />

(...) E então ele esquece tudo: a Pátria, a família, a humanidade.<br />

Delicioso esquecimento!... Esquece e vende, dá, prodigaliza alegria<br />

durante dias seguidos.<br />

25 Em outro artigo, Praxis revolucionária versus o corpo, a festa e o divertimento, Cadernos do CEDHIS, nº<br />

27, 2º semestre de 2000, pp.22-24, e no terceiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, Recusa lúdica e<br />

recusa lógica, Uberlândia: UFU, 2002, “Nas redes do poder: racionalismo, trabalho e corpo no imaginário<br />

anarquista”, pp. 75-114, fazemos uma abordagem tanto dessa “razão messiânica” que anima o discurso<br />

anarquista, quanto do forte moralismo que o afasta das festas, dos divertimentos e das manifestações lúdicas<br />

da cultura popular.


(...) ele não era mais a disciplina, a correção, a lei, o regulamento;<br />

era o coribante inebriado pela alegria de viver. Evoé, Bacelar!<br />

Morcego é uma figura e uma instituição que protesta que protesta<br />

contra o formalismo, a convenção e as atitudes graves.<br />

Eu o bendisse, amei-o, lembrando-me das sentenças falsamente<br />

proféticas do sanguinário positivismo do Senhor Teixeira Mendes.<br />

A vida não acabará na caserna positivista enquanto os<br />

“morcegos” tiverem alegria... 26<br />

26 BARRETO, Lima. O Morcego, in: Crônicas Escolhidas. SP: Ática/ Folha de São Paulo, 1995, p.80.

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