Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
www.nead.unama.br<br />
Mais <strong>de</strong> um longo quarto <strong>de</strong> hora tinha-se já escoado após a saída da<br />
fascinadora amante do feitor, quando este <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> observar <strong>de</strong> perto o rosto <strong>de</strong><br />
Antonica, levant<strong>ou</strong>-se com precaução.<br />
Com menos ruído não <strong>de</strong>sliza a lágrima <strong>de</strong> resina pelo córtex do<br />
pessegueiro.<br />
A passos lentos caminh<strong>ou</strong> até junto da escrava adormecida e cham<strong>ou</strong>-a por<br />
três vezes; a preta não <strong>de</strong>u o mínimo sinal <strong>de</strong> ter acordado.<br />
Manuel João caminh<strong>ou</strong> então para a sala com a mesma cautela.<br />
Deitando um braço sobre a mesa e a cabeça sobre ele, Mariquinhas<br />
ressonava brandamente através dos lábios virgíneos o sono do cansaço e da f<br />
confiança.<br />
O lencinho branco, que diariamente trazia ao pescoço, havia-se <strong>de</strong>satado, e<br />
o corpinho, formando pela posição contrafeita da moça uma abertura côncava,<br />
<strong>de</strong>ixava ver o colo moreno. Assim as pétalas da rosa superpõem-se <strong>de</strong> modo que<br />
não só <strong>de</strong>ixam entrever-se mutuamente, mas flanqueiam ainda à vista a d<strong>ou</strong>rada<br />
região dos estames.<br />
Um tosco e mal limpo can<strong>de</strong>eiro bruxuleava ao lado <strong>de</strong> Mariquinhas, como<br />
se tentasse apagar-se para não dar lugar a que um olhar profano se atrevesse a<br />
<strong>de</strong>vassar tamanhas perfeições.<br />
Pé ante pé o feitor aproxim<strong>ou</strong>-se e par<strong>ou</strong> junto da adormecida. Contempl<strong>ou</strong>a<br />
com avi<strong>de</strong>z; correu-lhe <strong>de</strong> leve a mão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o alto da cabeça até a meio <strong>de</strong> uma<br />
das tranças que acompanhava o arfar do colo imaculado, e finalmente ajoelhandose,<br />
roç<strong>ou</strong> nos lábios entreabertos da moça um beijo, que alava-se no temor.<br />
O sonho <strong>de</strong> Mariquinhas era profundo como soem ser os da fadiga; a<br />
profanação pô<strong>de</strong> continuar.<br />
Ao primeiro beijo, seguiu <strong>ou</strong>tro e ainda <strong>ou</strong>tro, até que menos pela grosseria<br />
do atentado do que pela suscetibilida<strong>de</strong> do pudor, a moça <strong>de</strong>spert<strong>ou</strong> sobressaltada.<br />
Ao ver <strong>de</strong> joelhos o seu amante, ela que não podia adivinhar a torpeza <strong>de</strong><br />
que ele era capaz, não teve uma queixa a vibrar-lhe, mas antes uma carícia para<br />
perdoá-lo.<br />
— Eu não sabia que era santa, está fazendo oração? Olhe o oratório está<br />
aqui, eu abro-o.<br />
O crime espoj<strong>ou</strong>-se diante <strong>de</strong> tão graciosa impunida<strong>de</strong>; e à semelhança <strong>de</strong><br />
um forçado que, evadindo-se da prisão, encontra diante dos seus instintos maus,<br />
não a mão pesada do carcereiro, mas um dia límpido como o éter, um céu sereno e<br />
uma tranqüila floresta suspirando a bafagem farfalheira <strong>de</strong> um vento sem rancores, e<br />
ecoando o gazeado mavioso <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> passarinhos; e então ri aos planos<br />
sombrios <strong>de</strong> novas empresas; o feitor encontrando, ao retrair-se da sua baixeza e<br />
olhar velutino <strong>de</strong> Mariquinhas e a suavida<strong>de</strong> da sua palavra, riu interiormente a uma<br />
esperança lasciva.<br />
— Não fale alto, que po<strong>de</strong>m <strong>ou</strong>vir. Deixe que ao menos hoje eu esteja junto<br />
<strong>de</strong> você; é tão difícil isto.<br />
— Deveras? Pois você não vem sempre aqui.<br />
— Mas nunca tive uma vaza <strong>de</strong> dizer-lhe que lhe estimo muito, muito, como<br />
a ninguém neste mundo.<br />
— Pois agora já disse; o que quer mais?<br />
71