Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
Num acesso <strong>de</strong> fúria o feitor, com os olhos injetados <strong>de</strong> sangue, os lábios e<br />
as mãos trêmulos, segur<strong>ou</strong>, entretanto, resolutamente da faca, que parecia fascinálo.<br />
Olh<strong>ou</strong> para o teto e em seguida levant<strong>ou</strong> o braço tendo a ponta da faca<br />
voltada contra o peito; mas o instrumento assassino caiu-lhe da mão e o <strong>de</strong>sgraçado<br />
caiu sobre um mocho, colocado junto à mesa, e escon<strong>de</strong>u a cabeça entre os braços.<br />
Entre o silêncio gemeram os pios ag<strong>ou</strong>reiros da coruja.<br />
Sobre tamanha angústia a noite pass<strong>ou</strong> <strong>de</strong>scuidosa, como a criança que<br />
brinca junto <strong>de</strong> um leito <strong>de</strong> moribundo. É que a natureza é surda e cega para a<br />
pequenez humana: carregada <strong>de</strong> sombras <strong>ou</strong> inundada <strong>de</strong> luz, a vida do soberano<br />
dos seres criados não <strong>de</strong>svia uma linha a prescrita or<strong>de</strong>m da criação.<br />
Para recompensar-nos <strong>ou</strong> punir-nos só nos resta a serenida<strong>de</strong> do bem <strong>ou</strong> as<br />
torturas do mal que praticamos.<br />
O céu <strong>ou</strong> o inferno edificamo-los nós mesmos diariamente a jorros <strong>de</strong><br />
honesto heroísmo <strong>ou</strong> a golpes <strong>de</strong> infame covardia: para o primeiro a consciência,<br />
tranqüila, nebulosa, cria as constelações da paz e da virtu<strong>de</strong>; para o segundo<br />
espessa-nos a memória as trevas relampeantes do remorso.<br />
Ao romper do dia ninguém po<strong>de</strong>ria dizer quão amargurosas tinham sido as<br />
horas da noite para o contraditório caráter do feitor.<br />
Despertado ao torpor, que o avassalara, pelo barulho dos escravos, Manuel<br />
João acompanh<strong>ou</strong>-os até o terreiro com aparente bom humor, levando o seu<br />
recalcar <strong>de</strong> sofrimentos ao ponto <strong>de</strong> sorrir benevolamente à repetição da censura,<br />
que na véspera lhe havia sido feita pelo amo.<br />
Este or<strong>de</strong>n<strong>ou</strong>-lhe que no mesmo instante <strong>de</strong>sse providências para começar<br />
o carreto das ma<strong>de</strong>iras, a fim <strong>de</strong> serem embalsadas por Francisco Benedito, seu<br />
filho e <strong>ou</strong>tros empregados que mais tar<strong>de</strong> contrataria.<br />
Ao concluir a or<strong>de</strong>m, <strong>Motta</strong> <strong>Coqueiro</strong>, misturando a aspereza à<br />
longanimida<strong>de</strong>, disse para o feitor:<br />
— Mas veja bem, Sr. Manuel João, é preciso não per<strong>de</strong>r tempo; não faça<br />
como ontem.<br />
— Um dia não são dias, respon<strong>de</strong>u-lhe Manuel João, e meu amo o verá.<br />
Des<strong>de</strong> esta hora a gente do sítio pôs-se em ativida<strong>de</strong> e quando o sol a pino<br />
elevava intensamente a temperatura do ambiente, os bois já não eram vistos,<br />
ruminando tranqüilamente à sombra das árvores anosas; ao contrário,<br />
com os músculos distendidos, as gran<strong>de</strong>s e roxas línguas pen<strong>de</strong>ntes, as<br />
grossas ventas <strong>de</strong>smesuradamente abertas, caminhavam a passo lento e regulado,<br />
arrastando após si imensas zorras, que sulcavam o campo ao peso <strong>de</strong> enormes<br />
toras falquejadas.<br />
Na casa <strong>de</strong> Francisco Benedito o dia correu através <strong>de</strong> comentários acerca<br />
da janela aberta.<br />
A maioria opinava por uma explicação muito natural aos espíritos educados<br />
na mais grosseira superstição.<br />
— Isto, dizia a velha, há <strong>de</strong> ser aviso <strong>de</strong> algum conhecido que morreu <strong>ou</strong><br />
não tarda muito a morrer.<br />
Chiquinha, porém, conserv<strong>ou</strong>-se impressionada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o amanhecer, e<br />
sendo naturalmente risonha, não tivera uma expansão durante o dia.<br />
58