Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
A qualida<strong>de</strong> do ofício que tinha no sítio impunha-lhe até como <strong>de</strong>ver esse<br />
percurso no turno em volta da casaria, e o amo que saísse fora e o encontrasse ali,<br />
não podia censurá-lo, antes teria motivo para elogios.<br />
A janela aberta explicava-se facilmente; para isto bastava dizer a verda<strong>de</strong>, e<br />
o resultado seria uma profusão <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimentos.<br />
Mas nem por isso a posição do feitor era menos embaraçosa. O que havia<br />
<strong>de</strong> fazer? Acordar a família? Pren<strong>de</strong>r a janela por fora?<br />
A notícia, dada a Francisco Benedito, seria motivo para uma explosão<br />
tremenda contra as filhas; subir ao peitoril para daí puxar a porta da janela e prendêla,<br />
era <strong>de</strong>masiado arriscado.<br />
Se passasse alguém e encontrasse-o em tal posição, não atribuiria por certo<br />
a uma idéia nobre o que visse, e a difamação correspon<strong>de</strong>ria à expulsão do sítio.<br />
O feitor recu<strong>ou</strong> involuntariamente, mas como se obe<strong>de</strong>cesse a uma força<br />
mágica <strong>de</strong> atração veio novamente colocar-se junto à janela.<br />
Aí conserv<strong>ou</strong>-se a princípio em uma imobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> montanha, contendo a<br />
respiração, para <strong>de</strong>pois exalá-la numa onda. Era a estátua da voluptuosida<strong>de</strong><br />
profanando com o seu hálito o santuário do pudor.<br />
O cicio do resfolegar das moças, que dormiam no quarto, <strong>de</strong>rramava-se no<br />
ambiente numa cadência mágica, e, se po<strong>de</strong> dizer a<strong>de</strong>siva.<br />
A mão aveludada e macia que se esmera numa carícia, o olhar meigo que<br />
se enlanguesce numa súplica, <strong>ou</strong> se abandona num consentimento, o lábio que se<br />
entrega morno <strong>de</strong> amor, são fontes <strong>de</strong> <strong>de</strong>lírios indizíveis, <strong>de</strong> sonhos inenarráveis. O<br />
respirar da mulher amada, <strong>ou</strong>vido pelo amante, fala primeiro à imaginação, penetrao<br />
suavemente <strong>de</strong> uma sensação que tem alguma c<strong>ou</strong>sa <strong>de</strong> angélica e ao mesmo<br />
tempo <strong>de</strong> infernal. Como um con<strong>de</strong>nsador elétrico atrai e repele; é ao mesmo tempo<br />
um incentivo à afoiteza e um anteparo à resolução. Faz pensar ao mesmo tempo na<br />
profanação e no cavalheirismo, e envolve o espírito em uma re<strong>de</strong> incômoda on<strong>de</strong> se<br />
misturam, matizados pelo mesmo colorido, fios que nos guiariam ao crime, a <strong>ou</strong>tros<br />
que nos levam até a abnegação.<br />
É que se imagina que o hálito exalado vem impregnado dos anseios do<br />
coração amado, das imagens que lhe povoam o cérebro, que <strong>de</strong>sejamos se estreite<br />
para tudo mais que não seja o pensamento do nosso amor; e esse imaginar<br />
sobreexcita-nos o egoísmo, que conta com o perdão e atreve-se por ele, ao mesmo<br />
tempo que a consciência levanta-se tentando combatê-lo e vencê-lo.<br />
A p<strong>ou</strong>co e p<strong>ou</strong>co o feitor foi movendo-se, a princípio tom<strong>ou</strong> a posição <strong>de</strong><br />
quem escuta, mas logo <strong>de</strong>sej<strong>ou</strong> mais do que <strong>ou</strong>vir. Coloc<strong>ou</strong> a cabeça sobre o peitoril<br />
e pôs-se a olhar.<br />
A tíbia clarida<strong>de</strong> da noite <strong>de</strong>ixava apenas perceber a alvura dos lençóis<br />
a<strong>de</strong>ridos às curvas formadas pelos corpos das adormecidas, mas a fantasia, esse<br />
clarão indiscreto que inunda os mais recônditos arcanos, esta divis<strong>ou</strong> talvez mais,<br />
muito mais.<br />
Gradativamente erguendo-se o feitor cheg<strong>ou</strong> a colocar até meio corpo <strong>de</strong>ntro<br />
da janela, e a firmar-se nos pulsos, para realizar o salto <strong>de</strong>ntro do quarto, mas o<br />
estalar das articulações obrig<strong>ou</strong>-o a <strong>de</strong>scer sobressaltado, e a recuar <strong>de</strong> novo.<br />
Arrast<strong>ou</strong>-o, porém, a vertigem do crime, e resoluto volt<strong>ou</strong> ao lugar <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
saíra.<br />
Apoiando-se então afoitamente sobre os punhos e erguendo-se<br />
vagarosamente, sent<strong>ou</strong>-se no peitoril. Então levant<strong>ou</strong> jeitosamente as pernas para<br />
passá-las pela janela. Mas a extrema cautela não pô<strong>de</strong> prevenir um <strong>de</strong>sastre; as<br />
pernas bateram na porta da janela e esta foi, guinchando, esbarrar na pare<strong>de</strong>. O<br />
56