Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
www.nead.unama.br<br />
fossem proferidos, resultassem-lhe embora da mudança gran<strong>de</strong>s prejuízos<br />
pecuniários.<br />
Essas mudanças rápidas e bruscas explicavam-se por uma frase:<br />
— Todo o caboclo é cismático, em dando para uma c<strong>ou</strong>sa é como o burro<br />
quando empaca. O melhor é <strong>de</strong>ixá-lo.<br />
Itabapoana, já bastante afastada da localida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> cujo nome soava mal aos<br />
<strong>ou</strong>vidos <strong>de</strong> Herculano, agrad<strong>ou</strong> extraordinariamente ao inconstante trabalhador.<br />
Ai <strong>de</strong>viam correr os últimos dias <strong>de</strong> sua vida sem ambições e, por isso<br />
mesmo, talvez sem mágoas.<br />
Oficial <strong>de</strong> ferreiro, conciliava o trabalho com a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação, ora<br />
malhava aqui, ora limava acolá, e o pequeno salário era por ele recebido com a<br />
alegria <strong>de</strong> quem satisfaz facilmente a sua sobrieda<strong>de</strong>.<br />
O in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte viver do velho, e por seu lado, o amor do trabalho e bom<br />
caráter do filho, acabaram por dissipar a antipatia, e até mesmo transformá-la <strong>de</strong><br />
alguma forma em boa vonta<strong>de</strong> para com ambos.<br />
Dez anos <strong>de</strong>correram assim, <strong>de</strong>z anos tranqüilos, felizes e poetizados pela<br />
<strong>de</strong>dicação filial e pelo reconhecimento paterno.<br />
Ao lusco-fusco <strong>de</strong> um dia dos meados <strong>de</strong> 1876, um preto velho, magro e<br />
roto, bateu à porta do casebre em que, fora da vila, residia Herculano.<br />
A hospedagem é uma lei inviolável para o indígena; a porta foi aberta<br />
imediatamente.<br />
O preto e Herculano estremeceram involuntariamente ao fitarem-se, e<br />
entretanto não se conheciam. Era a repulsão inata da inocência e do crime.<br />
Trocadas as primeiras saudações, o preto pediu simplesmente a Herculano<br />
lhe obsequiasse com uma brasa para acen<strong>de</strong>r o cigarro.<br />
— É quase noite, camarada, pon<strong>de</strong>r<strong>ou</strong> o caboclo; p<strong>ou</strong>se aqui e saia <strong>de</strong><br />
manhã.<br />
— Não posso, respon<strong>de</strong>u o preto; Fidélis não po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong>scanso, resmung<strong>ou</strong><br />
o <strong>de</strong>sventurado.<br />
Quando o preto <strong>de</strong>sapareceu, Herculano que ficara à soleira da porta e<br />
acompanhava-o com os olhos, exclam<strong>ou</strong> sinceramente comovido:<br />
— É um <strong>de</strong>les; adivinha-me o coração que é um <strong>de</strong>les! Ainda sofrem, e<br />
sofrerão sempre.<br />
Longo tempo o caboclo permaneceu numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>soladora; em seguida,<br />
porém, sacudiu os ombros, levant<strong>ou</strong>-se e entr<strong>ou</strong> para o casebre.<br />
Mas a tranqüilida<strong>de</strong> habitual trocara-se-lhe em agitação; e em breve, não<br />
po<strong>de</strong>ndo acalmar-se, saiu para distrair-se.<br />
Quando volt<strong>ou</strong> ao casebre <strong>de</strong>it<strong>ou</strong>-se para não mais levantar-se.<br />
A varíola fez-se instrumento da justificação <strong>de</strong> um nobre caráter.<br />
Des<strong>de</strong> que sentiu que não po<strong>de</strong>ria salvar-se, ao sacudir um dos penosos<br />
<strong>de</strong>lírios, Herculano cham<strong>ou</strong> para junto <strong>de</strong> seu leito o entristecido Marcolino.<br />
— Tenho uma gran<strong>de</strong> confissão a fazer-te, meu filho; disse o enfermo.<br />
— Est<strong>ou</strong> pronto para <strong>ou</strong>vi-la e guardá-la até a minha morte.<br />
203