Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
como a flor da canema apertar nos braços, e beijar a sua ama; a lembrança do<br />
castigo, e a se<strong>de</strong> da vingança não sairiam da alma da negra. A cobra ofendida<br />
espera para matar <strong>ou</strong> para morrer.<br />
A escuridão esten<strong>de</strong>u-se no interior do quarto.<br />
A esta hora ainda o espião aventurava-se através da mata em <strong>de</strong>manda do<br />
p<strong>ou</strong>so, em que o esperava o seu companheiro.<br />
O homem, que durante anos assanhara gradualmente o sonho <strong>de</strong> seva<br />
<strong>de</strong>sforra contra Francisco Benedito, <strong>de</strong>pois da refeição começ<strong>ou</strong> a passear <strong>de</strong> um<br />
para <strong>ou</strong>tro lado do escon<strong>de</strong>rijo, traindo, apesar da estagnação do semelhante, uma<br />
impaciência febril.<br />
Por vezes aviv<strong>ou</strong> o fogo, engatilh<strong>ou</strong> a espingarda, e alimp<strong>ou</strong> no saco a folha<br />
das foices, recomeçando <strong>de</strong>pois o seu automático passeio.<br />
Afinal, par<strong>ou</strong> e tir<strong>ou</strong> da bainha uma larga faca e olhando-a e correndo-lhe o<br />
<strong>de</strong>do pelo fio, rosn<strong>ou</strong> entre um sorriso:<br />
— Deves estar envergonhada da minha fraqueza. Eu já não te mereço o<br />
gume que corta no ar um fio <strong>de</strong> cabelo da raça do meu inimigo. Perdão, minha<br />
companheira.<br />
E os lábios da fera p<strong>ou</strong>saram, e <strong>de</strong>moraram-se num beijo longo sobre a<br />
lâmina pálida e lanceada da arma. Era o idílio do crime, alumiado por um braseiro, a<br />
fazer lembrar as cenas que a imaginativa religiosa <strong>de</strong>senha nas grutas inflamadas<br />
do inferno.<br />
Interrompido bruscamente o beijo, o facínora disse resolutamente:<br />
— Não cedo, não quero ce<strong>de</strong>r nem uma gota <strong>de</strong> sangue da geração que há<br />
longos anos con<strong>de</strong>nei. Que me importa a mim que <strong>ou</strong>tros queiram vingar-se?<br />
Nenhum tem sofrido mais do que eu. Tenho mulher e não penso nela; tenho filho e<br />
fujo <strong>de</strong> afagá-lo; e, coitadinho, quando eu volto a casa vem esperar-me no terreiro<br />
para pedir-me a benção. Mulher e filho agra<strong>de</strong>cem-me o p<strong>ou</strong>co que posso conseguir<br />
com as horas <strong>de</strong> trabalho r<strong>ou</strong>badas à minha vingança; choram <strong>de</strong> alegria, e eu nem<br />
<strong>de</strong>moro-me para consolar-lhes as contínuas sauda<strong>de</strong>s.<br />
Qual é o <strong>ou</strong>tro que tem igual direito ao sangue da raça amaldiçoada? Ódio<br />
<strong>de</strong> dois dias, sem raízes e sem sacrifícios, eis o que <strong>de</strong>seja partilhar comigo a<br />
vingança! Não cedo, não quero ce<strong>de</strong>r. É minha, minha só a vida da família indigna;<br />
só eu hei <strong>de</strong> saciar-me no seu sangue. Juro!<br />
Quase ao romper d'alva o espião reuniu-se ao seu companheiro.<br />
— Chega amanhã à noite; amanhã, amanhã, exclam<strong>ou</strong> ele, parando diante<br />
do taciturno companheiro.<br />
O silêncio <strong>de</strong>ste impressionando-o profundamente, pergunt<strong>ou</strong>-lhe o espião,<br />
mordido pelo <strong>de</strong>speito:<br />
— Então vosmecê não se alegra.<br />
— Não.<br />
— Pois não vai acabar os seus <strong>de</strong>sgostos.<br />
151