Motta Coqueiro ou a Pena de Morte - Unama
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www.nead.unama.br<br />
Estátua informe da escravidão, cujas falhas foram cheias com o asfalto do<br />
calab<strong>ou</strong>ço, argamassado com o sangue que os aç<strong>ou</strong>tes lhe tiraram do corpo, o<br />
<strong>de</strong>sgraçado folgava talvez na sua brutalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fera.<br />
Os brancos fizeram <strong>de</strong>le uma vítima; proibiram-lhe que afinasse os<br />
sentimentos pela compreensão exata da família, da religião e da pátria; <strong>de</strong>via ser-lhe<br />
grato po<strong>de</strong>r vingar-se <strong>de</strong> um dos seus opressores.<br />
Revolvendo nas mãos o gorro vermelho iludia porventura a impaciência que<br />
lhe causava a <strong>de</strong>mora da execução.<br />
Negaças <strong>de</strong> tigre antes <strong>de</strong> dar o bote à presa.<br />
O sacerdote acabava <strong>de</strong> rezar o prefacio, e a campainha do ajudante<br />
acompanhava a invocação dos santos, quando a campa funerária do irmão da<br />
Misericórdia aprego<strong>ou</strong> a retirada do préstito.<br />
O barulho dos que se levantavam para sair perturb<strong>ou</strong> o recolhimento <strong>de</strong>vido<br />
ao ato da celebração, e gran<strong>de</strong> parte do povo já estava <strong>de</strong> pé e <strong>de</strong> costas, quando a<br />
Hóstia, levantada pelo celebrante, alvej<strong>ou</strong> por cima do altar como uma estrela <strong>de</strong><br />
amor, perdida na escuridão do ódio.<br />
Lá fora rufaram as caixas os runruns contristadores, com que a justiça enluta<br />
ainda mais a perspectiva do túmulo; <strong>de</strong>pois o pregoeiro <strong>de</strong>clam<strong>ou</strong> ainda ama vez a<br />
sentença, e o préstito seguiu o seu caminho.<br />
A serenida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a saída da prisão não <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> iluminar a<br />
fisionomia do con<strong>de</strong>nado, persistia inalterada, porém a fraqueza do corpo <strong>de</strong>sdizia a<br />
fortaleza do ânimo.<br />
O <strong>de</strong>sventurado quase não andava, arrastava-se; e algumas vezes o<br />
sacerdote teve <strong>de</strong> ir-lhe em auxilio, para que não <strong>de</strong>sse em terra. Outras vezes o<br />
carrasco, impacientado pela morosida<strong>de</strong> do passo, impelia a vitima, que nem sequer<br />
dava mostras <strong>de</strong> censurá-lo por isso.<br />
Já os irmãos da Misericórdia, no <strong>de</strong>sempenho da sua caridosa missão,<br />
embarafustavam pelo meio dos curiosos que estacionavam no Rossio, e os<br />
soldados abriam caminho para a entrada do préstito.<br />
<strong>Motta</strong> <strong>Coqueiro</strong>, <strong>de</strong>sfigurado e trêmulo, ao <strong>ou</strong>vir os gritos que anunciavam a<br />
sua chegada, com a voz entrecortada disse ao sacerdote:<br />
— Aconselhe-lhes, meu padre, que não zombem <strong>de</strong> quem vai morrer.<br />
— Perdoa-lhes, irmão, eles não sabem o que fazem.<br />
Na embocadura do largo o pregoeiro cumpriu pela penúltima vez o seu<br />
<strong>de</strong>ver, e as caixas expandiram-se em rufos prolongados.<br />
Pela cara angulosa do carrasco pass<strong>ou</strong> um vago estremecimento,<br />
semelhante aos frêmitos elétricos que percorrem os lombos dos tigres, e ao mesmo<br />
tempo tom<strong>ou</strong> o aspecto metálico <strong>de</strong> uma camada <strong>de</strong> mercúrio.<br />
— Coragem, coragem, meu irmão; é chegado o transe <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro; exclam<strong>ou</strong><br />
o sacerdote para o sentenciado.<br />
— Peça a Deus por nós, meu padre.<br />
E caminh<strong>ou</strong>, seguro no braço pela calosa e ru<strong>de</strong> mão do carrasco.<br />
A p<strong>ou</strong>cos passos levantavam-se os dois esteios negros que sustentavam a<br />
máquina monstruosa da justiça humana.<br />
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