Hélio Rebello Cardoso Júnior - ICHS/UFOP
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espreita o diálogo entre amigos e por isso mina a capacidade que a amizade<br />
tinha de promover o conhecimento de si, a discussão cidadã e o exercício do<br />
pensamento. Em meio a esses percalços, ser amigo é uma tarefa que começa<br />
a passar por percursos anômalos, aparentemente paradoxais, pelos quais ser<br />
amigo é passear com o amigo por zonas de penumbra e de silêncio, visto que,<br />
hoje, não é necessário, nem recomendável, assevera Deleuze, “que se fale<br />
com o amigo, que se partilhe lembranças com ele, mas, ao contrário, é com ele<br />
que se passa por provas como amnésia, a afasia, necessárias a todo<br />
pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 107).<br />
Esse silêncio, muitas vezes, não é sinônimo de nada dizer. Eu me<br />
lembro agora de um exemplo literário que pode dar uma idéia do que significa<br />
“passar por provas como a amnésia”. Um dos personagens de Kafka escrevia<br />
cartas para sua noiva ou namorada, não lembro exatamente. Escrevi-as, não<br />
para fazer um relatório se sua vida e, por isso, ficar mais próximo ou mais<br />
familiar com relação à amada. Ele contava a ela seus sonhos, minuciosamente,<br />
fossem eles estranhos ou sem sentido. E ainda instruía a moça a não<br />
responder-lhe no sentido de interpretá-los; não lhe interessava saber a verdade<br />
que anunciavam ou que estaria por trás de sua atividade onírica. Ele pedia que<br />
a namorada relatasse seus próprios sonhos, principalmente porque os que ele<br />
lhe havia contado teriam um efeito necessário sobre os dela, causando uma<br />
espécie de difusão onírica. Essa é a espécie de diálogo onde se promove uma<br />
amnésia como linha de fuga que se coloca para as amizades contemporâneas.<br />
Mas, é claro, que as amizades, mesmo as íntimas, envolvem inserção em<br />
instituições socialmente estabelecidas e isso complica o problema que aqui<br />
descrevemos de forma um tanto simples.