Hélio Rebello Cardoso Júnior - ICHS/UFOP

TRÊS PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS NA RELAÇÃO ENTRE
FILOSOFIA E HISTÓRIA: memória; amizade; dizer a verdade
Hélio Rebello Cardoso Jr
Professor de Filosofia UNESP
herebell@hotmail.com
C.V. http://lattes.cnpq.br/7428964121614007
Líder de Grupo http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0330701C9P631W
Resumo: as relações interdisciplinares entre Filosofia e História tornam-se
efetivas em alguns dos principais problemas práticos que a contemporaneidade
apresenta. São eles, os problemas da memória, da amizade e da verdade.
Esses problemas serão discutidos, separadamente, na forma de paradoxos. 1)
o paradoxo da memória e do esquecimento: deve haver uma imbricação entre
esquecer e lembrar – imbricação esta que se embotou historicamente – onde
esquecer é a condição de se viver um presente em relação ao qual o passado
é um “não mais querer livrar-se” ao invés de um “não mais poder livrar-se”; 2) o
paradoxo da amizade e do silêncio: a amizade, inclusive para exercer o
pensamento, deve passar pela prova do silêncio e da amnésia, tendo em vista
a quantidade demente de falas e de imagens nas quais ela está imersa e nas
quais o amigo é ofuscado; 3) o paradoxo de falar a verdade e mudar: só há
verdade quando, ao mesmo tempo, deixa-se de ser aquilo que se é e torna-se
diferente; ou, ainda, falar a verdade não leva a uma estabilidade, mas a uma
mudança no modo de ser.
Na filosofia da história um dos principais problemas, senão o mais
importante, é o do sentido. Teríamos razão para acreditar que a História
caminha em um sentido determinado? Em caso positivo, isto é, se os atos e
acontecimentos não estão deixados totalmente ao acaso, o sentido histórico

esboça uma melhora ou, ao contrário, uma piora da vida humana em seu curso
temporal?
O presente artigo, ao invés de discutir o sentido da história em caráter
geral, procura fazê-lo a partir de problemas práticos e cotidianos que se tornam
urgentes devido às circunstâncias históricas em que os mesmos se
apresentam e afetam nossas vidas. Por razões que se explicitarão na
seqüência, alguns dos problemas em que acredito observar essa urgência
quanto à determinação do sentido histórico, são o da memória, o da amizade e
o de dizer a verdade. A questão geral que envolve a todos é que o sentido de
cada um coloca-se numa complexa relação de continuidade com termos que
supostamente os excluem, ou seja, da memória com o esquecimento; da
amizade com o silêncio; e da verdade com a mudança.
Para Nietzsche, o esquecimento é uma faculdade ativa que deve ser
exercida, assim como a memória. O contato da história com a vida, ensina
Nietzsche, envolve um difícil equilíbrio, pois circunstancial e pragmático, entre a
lembrança e o esquecimento. Um primeiro aspecto desse equilíbrio é prático,
pois sem o esquecimento não se poderia alcançar nenhuma felicidade, nem
mesmo seria possível viver. Um segundo aspecto apresentaria diretamente o
problema histórico envolvido nesse equilíbrio, pois o sentido da história
humana se colocaria no estreito limite entre um esquecimento como força
primeira para que seja possível à memória fazer valer as promessas
contraídas. Sigamos de acordo com essa ordem.
Para Nietzsche (1987) o esquecimento é um poder sem o qual não se
pode alcançar nenhuma forma de felicidade. O esquecimento permite prolongar

a sensação da felicidade, pois se uma felicidade diminuta puder estender-se,
então, ela valerá mais do que uma grande felicidade que fosse apenas
transitória. Tanto nas felicidades menores quanto nas maiores, o que define
essencialmente uma felicidade é: “o poder esquecer ou, dito mais
eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-
historicamente” (NIETZSCHE, 1987, p.22). Conhecer a felicidade é também
tornar os outros felizes e, para fazê-lo, é necessário esquecer o passado, para
livrar-se da vertigem e do medo e colocar-se no “limiar do instante” e para
neste manter-se “como uma deusa de vitória (...) é possível viver quase sem
lembrança, e mesmo viver feliz (...) mas é inteiramente impossível, sem
esquecimento, simplesmente viver” (NIETZSCHE, 1987, p.22).
O esquecimento, neste caso, não é um esquecimento passivo, como
uma memória que se apaga com o passar do tempo. Então, o esquecimento de
que se fala aqui é ativo, somente essa atividade nos coloca numa relação
direta com a felicidade através da dialética das dimensões do tempo acima
resumida. Vejamos isso com mais calma.
Para Nietzsche, esquecer ativamente é o que permite afirmar a vida. O
esquecimento não é passivo, no sentido de que ele não é a artimanha do
ressentido que não suporta mais viver e que por isso enxerga no tempo uma
panacéia para suas dores; o esquecimento ativo é uma questão de exercício,
esquece-se por vontade. Porém, essa atividade do esquecimento é de difícil
acesso, não apenas porque ela implica uma mudança na relação com o tempo;
ela é igualmente afetada por certas vicissitudes históricas.
Com efeito, na história da humanidade, o esquecimento acabou por ser
paralisado ou entorpecido, pois a felicidade se tornou passiva (1998, p.29).

Esse entorpecimento, segundo Nietzsche, surge de uma inversão da relação
entre o esquecimento e a memória, que, a princípio, se afigurava positiva e
saudável. Historicamente, o esquecimento teria de vir antes da memória, pois
para todo animal, para toda a vida, o mais importante é o ar fresco da
felicidade. Porém, enquanto animal, ao contrário dos outros animais, o homem
passaria por uma imposição paradoxal; é que ele deveria conciliar o
esquecimento com a capacidade de fazer promessas. É esse paradoxo que
torna o animal humano, de acordo com Nietzsche. O esquecimento, nesse
homem ativo, é interrompido episodicamente pela memória para que ele possa
afirmar e manter uma promessa contraída, no entanto, o exercício e a
execução dessa promessa dependeriam da força do esquecimento.
A convivência paradoxal entre o esquecimento e a memória altera a
relação do passado com o presente, pois prometer não é apenas um “não-
mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida”, mas é o “não-mais-
querer-livrar-se, um prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória
da vontade (...) sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer”
(NIETZSCHE, 1998, p.148). A faculdade do esquecimento permite então que o
passado e, portanto, as promessas nele contraídas e mantidas na memória não
se tornem pesos e imposições, já que se pode “prosseguir querendo o já
querido”.
O esquecimento não é só uma vis inartie, como crêem os
espíritos superfinos; antes é um poder ativo, uma faculdade
moderadora, à qual devemos o fato de que tudo quanto nos
acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à
nossa consciência durante o estado da “digestão” (que poderia
chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice
processo da assimilação corporal tão-pouco fatiga a

consciência. Fechar de quando em quando as portas e janelas
da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do
mundo subterrâneo dos nossos órgãos; fazer silêncio e tábua
rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as
funções mais nobres para governar, para prever, para
pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira
oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade ativa, desta
vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a
tranqüilidade, a etiqueta. Donde se colige que nenhuma
felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum
gozo poderia existir sem a faculdade do esquecimento
(NIETZSCHE, 1998)
Então, o paradoxo do esquecimento e da lembrança, na sua forma mais
simples é o seguinte: deve haver uma imbricação entre esquecer e lembrar –
imbricação esta que se embotou historicamente – onde esquecer é a condição
de se viver um presente em relação ao qual o passado é um “não mais querer
livrar-se” ao invés de um “não mais poder livrar-se”.
Vamos, em seguida, a algumas questões e apontamentos para um
suposto conceito de amizade, destacando, outra vez, o paradoxo que a envolve
com o problema do sentido em nossa contemporaneidade.
Por que se fica amigo de alguém?
Ora, o que nos apaixona no amigo pode ser algo singular ou banal, mas
é sempre um traço que nos desafia, porque foge a uma explicação totalizante.
Isso nos conquista e, então, chegamos à conclusão de que passamos a ser
amigos de alguém, e que é essencial que a outra parte também o seja. Cada
um pode se lembrar de seus próprios amigos, de como uma amizade começou.
Eu, por exemplo, um dia estava passando por um período muito triste. Sem
mais nem menos, um sujeito que era apenas meu colega disse que precisava

que eu atravessasse certo pátio da escola, fingindo que conversávamos, como
se nos entendêssemos há muito tempo. Atendi a seu pedido maluco! Ora, eu
não fiquei sabendo se aquele gesto tinha algum propósito concreto, de
interesse particular do colega, e que só ele sabia, ou se era um puro delírio. Eu
nunca fiquei sabendo, nem perguntei, mas a partir de então eu já sabia que era
amigo dele e que isso não poderia ser mudado, que era independente de mim.
Praticar aquela pequena loucura com ele me colocou em um outro mundo e, de
repente, eu estava menos infeliz. As amizades começam sempre quando
somos tomados por essas forças estranhas, mesmo que o acontecimento seja
tranqüilo e nem tão estranho como o que me tornou amigo de outro nesse
episódio aqui resumido.
Outra pergunta: ser amigo muda historicamente? Há modos históricos
de ser amigo?
Sempre se escreveu muito sobre a amizade no Mundo Antigo. Ela
sempre foi um princípio sem o qual seria impossível pensar; também não era
possível viver em um mundo democrático sem que as relações tivessem um
quê de igualdade, como numa reunião de amigos; da mesma forma, amizade
entre os antigos sempre foi considerada um meio de conhecer a si mesmo,
sem ter um amigo era impossível saber a verdade sobre si, etnão, a amizade
era uma espécie de exercício ascético. Bem, não somos mais gregos, nem
cristãos, nem somos pessoas do século XIX, então, necessariamente nossas
amizades não podem acontecer como se fôssemos gregos, cristãos ou
pessoas do séc. XIX. Por isso é importante compreender o que os antigos
sabiam sobre a amizade, mas isso não resolve nosso problema.

O que mais caracteriza a amizade hoje em dia, creio eu, é que tudo o
que podemos trocar com os amigos, os momentos, as lembranças, as idéias,
os risos, quase tudo, está mais ou menos codificado. Então, as amizades se
povoam de um sentimento de que não há nada de novo a se viver, suas forças
se exaurem. Não que a amizade em outros tempos não tivesse seus
desgastes, seu anticlímax e suas traições, mas hoje em dia ela é contaminada
por uma espécie de cansaço que atinge as relações de um modo geral. É
estranho! As possibilidades e os meios de se fazer amigos se ampliaram muito
e quase sempre fazemos amizades com grande rapidez e variedade, mas há o
problema de como continuá-las sem que o referido cansaço das relações
sobrevenha. O grande desafio em ser amigo hoje em dia é como fazer para
nos desvencilharmos desse sentimento de vazio, por mais amplas e
numerosas que sejam nossas amizades, quer elas envolvam ou não outras
relações como a casamento, a convivência com um filho, ensinar um aluno ou
a internet, por exemplo.
Isso implica que ser amigo hoje passe, muitas vezes, por uma espécie
de silêncio, ser amigo não é falar nem trocar experiências ou ter o ombro que
conforta, mas sofrer de amnésia junto com alguém. É a condição de não
cairmos no abismo de termos de viver isso e aquilo, de termos que sentir isso
ou aquilo, para provarmos que se tem um amigo. Esse não era um problema
dos gregos, nem dos cristãos medievais, muito menos de meus avós, suspeito
que não era também o de meus pais.
Então o que chamar de amizade, em nosso tempo?
Eu diria que a amizade é a expansão das relações, de qualquer relação,
para além de suas supostas codificações. Esse conceito de amizade pode ser

praticado sem muita dificuldade, já que existem uma série de relações que não
se ajustam a este ou aquele padrão. Aliás, as relações desviantes são até mais
numerosas que as relações codificadas, penso eu. Mais é difícil enxergá-las,
pois são sempre mais provisórias e transitórias do que aquelas que tomamos
pela verdadeira amizade. Isso não quer dizer que elas sejam efêmeras;
provisório aqui significa que elas acontecem de costume num corpo a corpo
com as outras, à sombra daquelas mais codificadas e estabelecidas. As
relações provisórias são como subprodutos das outras, mais codificadas ou
das quais esperamos mais.
Por exemplo, se eu crio uma criança que não é meu filho biológico.
Certo, eu posso adotar essa criança. Essa é a situação normal; existe um
processo judicial de adoção no fim do qual eu serei o pai, de direito, daquela
criança. Mas e se o caso não for de adoção, se os pais que são conhecidos,
parentes, pedissem que a suposta criança more em nossa casa, comigo e com
minha verdadeira família, até que seus verdadeiros pais resolvam tal
dificuldade financeira ou outra? Como vou resolver isso? Eu não sou pai legal,
como manter uma criança assim em minha casa: ela não pode viajar sem
permissão, não posso matriculá-la numa escola sem autorização do
responsável? E na hora de responder pelo desempenho escolar dela, internar
num hospital, etc.?
Do ponto de vista social e institucional, esse é um tipo de relação que
coloca os envolvidos numa espécie de vácuo ou silêncio. Se observarmos bem
ao nosso redor, essa e muitas outras situações evocam algo semelhante
àquele antigo compadrio, só que nós já não vivemos em um mundo onde essa
relação teria uma motivação religiosa ou paternalista, como outrora. São,

portanto, situações provisórias que ficam sufocadas por uma legalidade que
não dá trégua, apesar de que, em seu caráter provisório ela não seja menos
necessária. A amizade, num sentido amplo, é aquilo que nutre essa
necessidade do provisório.
Mas, além da provisoriedade, em que mais a amizade, hoje, tem a ver
com o silêncio e menos com a convivência falante ou confessional, como no
passado?
Vejamos um exemplo contemporâneo.
O filósofo Deleuze e o escritor Dionys Mascolo trocaram algumas
poucas cartas em 1988; nelas temos encontramos uma reflexão sobre a
maneira se é amigo em nosso tempo (DELEUZE, 2003). Eles estão de acordo
sobre o fato de que amizade continua sendo a condição para pensar e para
procurar o prazer da companhia, entretanto, os amigos não são mais como os
os gregos que se encontravam para conversar em torno de um determinado
objeto ou assunto cujo conceito se queria conquistar. Ser amigo não significa
mais necessariamente estabelecer um diálogo, já que a amizade penetrou uma
área movediça onde é difícil para dois ou mais amigos caminharem. Isso
acontece, pois o diálogo que se trava livremente entre amigos está cercado por
uma louca produção de discursos que penetra e exaure o próprio veio inventivo
da amizade. Como diz Deleuze de modo peremptório: “estamos trespassados
de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira
nunca é muda nem cega” (DELEUZE, 1977, p. 177).
Os diálogos da amizade são inseminados por regimes discursivos
gerados alhures e que capturam sua produtividade a fim de endurecer
dispositivos de controle. Enfim, a quantidade demente de falas e imagens

espreita o diálogo entre amigos e por isso mina a capacidade que a amizade
tinha de promover o conhecimento de si, a discussão cidadã e o exercício do
pensamento. Em meio a esses percalços, ser amigo é uma tarefa que começa
a passar por percursos anômalos, aparentemente paradoxais, pelos quais ser
amigo é passear com o amigo por zonas de penumbra e de silêncio, visto que,
hoje, não é necessário, nem recomendável, assevera Deleuze, “que se fale
com o amigo, que se partilhe lembranças com ele, mas, ao contrário, é com ele
que se passa por provas como amnésia, a afasia, necessárias a todo
pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 107).
Esse silêncio, muitas vezes, não é sinônimo de nada dizer. Eu me
lembro agora de um exemplo literário que pode dar uma idéia do que significa
“passar por provas como a amnésia”. Um dos personagens de Kafka escrevia
cartas para sua noiva ou namorada, não lembro exatamente. Escrevi-as, não
para fazer um relatório se sua vida e, por isso, ficar mais próximo ou mais
familiar com relação à amada. Ele contava a ela seus sonhos, minuciosamente,
fossem eles estranhos ou sem sentido. E ainda instruía a moça a não
responder-lhe no sentido de interpretá-los; não lhe interessava saber a verdade
que anunciavam ou que estaria por trás de sua atividade onírica. Ele pedia que
a namorada relatasse seus próprios sonhos, principalmente porque os que ele
lhe havia contado teriam um efeito necessário sobre os dela, causando uma
espécie de difusão onírica. Essa é a espécie de diálogo onde se promove uma
amnésia como linha de fuga que se coloca para as amizades contemporâneas.
Mas, é claro, que as amizades, mesmo as íntimas, envolvem inserção em
instituições socialmente estabelecidas e isso complica o problema que aqui
descrevemos de forma um tanto simples.

Então, o paradoxo da amizade e do silêncio na sua forma mais simples é
o seguinte: a amizade, inclusive para exercer o pensamento, deve passar pela
prova do silêncio e da amnésia, tendo em vista a quantidade demente de falas
e de imagens nas quais está imersa e nas quais o amigo é ofuscado.
O problema de falar a verdade também está envolvido em certas
circunstâncias que põem em evidência a clássica discussão a respeito de
sentido histórico. Afinal, qual o sentido de dizer a verdade e como isso afeta
nossa existência, historicamente falando?
Em suas pesquisas a respeito do Mundo Antigo, em um de seus últimos
textos, Foucault (1983) mostra que, durante a Antiguidade Greco-Romana e
até os primeiros séculos da Era Cristã, existiam regras culturalmente vigentes a
respeito de dizer a verdade (parrhesia – etimologicamente, “dizer tudo”). Isso
significa que alguém que diz a verdade não pode se esconder atrás de
qualquer efeito retórico, pois precisa dizer exatamente o que tem em mente,
sem nada omitir. Então, o falante não pode esconder nada do ouvinte, ele
precisa se aproximar o máximo possível do que está pensando, o sujeito que
diz pela sua boca coincide com a consciência que pensa dentro dele, com sua
opinião. Dessa forma, a parrhesia, falar a verdade difere de convencer alguém
de uma verdade. A parrhesia, portanto, não é, em primeira instância, uma
relação do falante com sua audiência, na qual ele levaria em conta as opiniões
daqueles a quem fala mesmo que não fossem as suas próprias, procurando
retoricamente precaver-se de reações contrárias para melhor convencer seus
ouvintes. Antes de qualquer coisa, a parhesia é uma relação do falante com o
que ele diz; é um exercício de si para consigo mesmo através da fala.

A partir dessas primeiras observações, pode-se pensar que a parrhesia
era um exercício de disciplina individual, uma espécie de fala consigo mesmo
ou oração meramente sussurrada. Mas, na verdade, falar a verdade envolvia
uma atividade coletiva, pois na relação entre o falante e sua audiência estava
pressuposta uma diferença social e por isso mesmo a verdade era perigosa
para quem a proferia. Além disso, a parrhesia deve distinguir-se da mera
verborragia daquele que fala desatinadamente para um plenário, perante o qual
fazer o uso da palavra é prerrogativa em uma democracia. Ela distingue-se
igualmente da confissão de quem abre a palavra e descreve em detalhe todos
os movimentos de seu coração, supondo que a confissão, nesse sentido, o
aproximaria de Deus. A parrhesia, então, não seria nem um direito democrático
nem um exercício cristão.
Para nós, quer dizer, hoje, um falante qualquer possui uma crença ou
opinião e procura provar que ela é verdade através da reunião de provas que
confiram à sua opinião o caráter de evidência. Ele procura prová-lo, antes de
tudo, para si mesmo. Somente a partir dessa operação mental será possível
fazer com que uma crença corresponda à verdade. Já, quanto à parrhesia dos
Antigos, a operação não era mental, mas verbal, através da fala o falante sabia
que sua opinião coincidia com a verdade e não tinha dúvida de que estava na
posse da verdade. O falante não tinha de provar que o que dizia era verdade
através de uma operação mental, pois a prova de que ele tinha acesso à
verdade eram qualidades morais. E ele devia dispor destas, não apenas para
garantir-lhe acesso à verdade, mas também para ter a autoridade de comunicá-
la a outras pessoas. Por isso a maior prova de que o falante diz a verdade era
a coragem de dizer algo diferente do que a maioria acreditava, de modo que

não é totalmente correto afirmar que aquele que fala a verdade prova que o diz,
pois ele é apenas reconhecido pelo público como sendo capaz desse ato.
A coragem de dizer a verdade não era a única qualidade moral pela qual
se reconhece aquele que realmente fala a verdade, já que a prova da verdade
implicava sempre um perigo ou risco para aquele que a proferia. Por exemplo,
quando falamos a um amigo a verdade, apesar de que isso possa ferir seus
sentimentos e, até, deturpar ou destruir nossa amizade, estamos praticando
uma espécie de parrhesia, isto é, nós temos de ter a coragem de falar apesar
do risco que ela acarreta. Nesse sentido, falar a verdade também é uma
relação para consigo mesmo, pois quem fala escolheu o risco de dizê-la ao
invés de acomodar-se em um mundo onde a verdade permanece calada; o
falante não pode conviver com a ideia de que é falso para consigo mesmo.
A parrhesia requeria coragem e trazia um risco, como dissemos, porque
ela contrariava a audiência ou o interlocutor com uma verdade que este não
queria ouvir. Nesse sentido, isso pode se confundir, por exemplo, com a
autoridade de um professor. Eu, falando aqui de cima, com meus títulos e
experiência, ao ensinar Filosofia estaria praticando uma espécie de parrhesia,
pois eu sei que o falo é verdade. E eu corro o risco de ser constestado, algum
pode vir e demonstrar que aquilo que venho falando é besteira e que existe
outra verdade maior e mais evidente. Mas, como vimos, a parrhesia não é uma
questão de demonstração da verdade. O professor fala e deve falar verdade,
mas, como ele tem autoridade com relação aos alunos ou sua audiência os
riscos são menores ou são minorados por sua posição proeminente. Então,
não temos parrhesia quando o falante ocupa posição de maior poder que seu
interlocutor. Pelo contrário, aquele que fala a verdade tem sempre menos

poder do que seu interlocutor. É uma condição de dizer a verdade, tem de
haver um degrau social ou de status: o falante tinha de provocar a ira ou ferir o
interlocutor, pois a verdade que ele profere atinge a própria posição de poder
de quem ouve. Pela mesma razão, a parrhesia é pouco praticada por aqueles
que estão por cima; aqueles que têm algum poder, certamente, podem falar a
verdade, mas pouco arriscam com isso. A verdade sempre vem debaixo,
daquele que está em posição de inferioridade.
Com todas essas características principais, a atividade de falar a
verdade nos conduz a um paradoxo. É que sua prática não significa apenas
que aquele o enunciador e o interlocutor mudam sua opinião, pois eles mudam
também seu modo de vida. Sendo assim, só se pode dizer que temos uma
verdade, no sentido grego da parrhesia, quando a verdade tem um efeito
prático sobre a conduta de nossa vida, quando a verdade dita, que contraria ou
provoca a ira do interlocutor, leva a um outro conhecimento ou a uma verdade
para além daquela que foi colocada em cheque. Então, o paradoxo de falar a
verdade e mudar, na sua forma mais simples é o seguinte: só há verdade
quando, ao mesmo tempo, deixa-se de ser aquilo que se é e torna-se
diferente; ou, ainda, falar a verdade não leva a uma estabilidade, mas a
uma mudança no modo de ser.
A questão dos paradoxos acima descritos e, portanto, do sentido
histórico dos mesmos, como aventamos inicialmente, é o de seu caráter
operatório. Afinal, como garantir que esses paradoxos funcionem na prática?
Como explicar sua vigência?

A memória, a amizade e a verdade podem ser definidas como relações
que acontecem entre indivíduos. E, se elas são um problema histórico não
devem dizer respeito apenas a relações entre indivíduos isolados, uma vez que
tais relações precisam ter validade para multidões. Por isso, vamos nos
aproximar de uma, assim chamada, teoria das multidões, a fim de indicar a
legitimidade de se pensar a memória, a amizade e a verdade. O mais
importante, como se observará, é que a teoria das multidões nos permite
entender os três termos paradoxais, isto é, o esquecimento, o silêncio e a
mudança como estando intrinsecamente ligados, respectivamente, à memória,
à amizade e à verdade. E isso basta para entendermos de uma maneira
diversa o paradoxo contido naqueles pares de termos.
Multidão é um conjunto de indivíduos em uma coleção independentemente de
sua ordem ou arranjo. Por exemplo, [A, B, C] e [C, B, A] são as mesmas coleções
porque elas têm a mesma multidão, embora diversamente organizadas (CP 1 6.648-651).
"Por uma coleção", diz Peirce, "eu quero dizer qualquer coisa que é u'd por tudo que
tem uma certa qualidade ou descrição geral, e por nada mais" (CP 4.170). Se qualquer A
é uma unidade ou indivíduo de B, então A é u de B (A é unidade de B) ou,
reciprocamente, "B é u'd por A" (ibidem.), ou seja, B é um todo que tem A como sua
unidade. Mas B só é uma coleção se partilha com A certa qualidade comum, de modo
que se A tem alguma qualidade a, então B é u’d por A através daquela determinada
qualidade.
As unidades de uma coleção não pertencem necessariamente ao mesmo
"universo de discurso" (CP 4.171), de forma que tipos diferentes de unidades
1 PEIRCE, C.S.. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Ed. by: C. Hartshorne & P. Weiss
(v. 1-6); A. Burks (v. 7-8). Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-58. 8 v; abreviado a partir de
agora como CP, seguido do número do volume e após o ponto, o parágrafo correspondente, de acordo
com notação consagrada pelo uso.

constituintes são possíveis, principalmente, há unidades em uma coleção que possuem
identidade distinta, enquanto outras não a possuem, na medida em que se comportam
como meras possibilidades. As coleções com unidades que detêm identidade individual
são "coleções discretas" (CP 4.175) Comparativamente, pode-se dizer que as coleções
discretas são maiores ou menores, mas se a coleção não corresponde a nenhuma
existência extensivamente determinável, isto é, cujas unidades tenham identidade
individual, então ela cessa de ser uma coleção discreta para formar uma multiplicidade
contínua, isto é, cujas unidades não têm distinção individual. Tendo em vista esses
fundamentos para uma teoria das coleções e multidões, podemos fazer uma primeira
aproximação com os conceitos aqui discutidos. Memória, amizade e verdade formam
coleções discretas, posto que suas unidades, os indivíduos mantêm identidade distinta.
Já esquecimento, silêncio e mudança formariam multiplicidade contínuas onde as
unidades não possuem identidade individual, posto que são passagens de estados, de
combinações e recombinações, de ritmos e encontros, que se desprendem da compleição
discreta formadas pela memória, amizade e verdade, respectivamente.
Essas associações são preliminares e francamente insuficientes, pois se a teoria
das multidões é de fato útil quanto à qualificação de nossos paradoxos de partida, então
ela precisa explicar de que modo se dá a gênese da memória, amizade e da verdade em
uma coleção discreta de indivíduos. Da mesma forma, precisamos saber como funciona
a multiplicidade contínua e qual seu comportamento com relação à coleção discretas. É
que as coleções discretas não estão definitivamente separadas das multiplicidades
contínuas, pois um tipo específico de coleção discreta abriga unidades que, embora
individualmente distintas, o são apenas vagamente, como se fossem a premonição das
multiplicidades contínuas. Em outras palavras, esse tipo especial de coleção discreta –
determinada, mas menos definida - vive dentro de outras coleções discretas.

Na verdade, a fronteira entre coleções discretas e multiplicidades contínuas é
mais difícil de traçar do que fizemos parecer na primeira abordagem, por isso certa
precisão terminológica e conceitual se faz necessária, como alertáramos. Há coleções
discretas, por um lado, que incluem unidades sem identidade individual misturadas com
outras individualmente distintas; por outro lado, há coleções discretas que só possuem
unidades sem identidade assinalável. A tarefa mais complexa e estimulante sobre a
teoria das multidões de Peirce, que aqui tomamos como referência será o
estabelecimento destas progressões entre coleções discretas, pois isso envolve
essencialmente o problema das relações que geram e regram as multidões, tendo em
vista o caso, como assinalamos, de multiplicidades contínuas, como a do esquecimento,
do silêncio e a da mudança vivendo dentro de coleções discretas, como a da memória,
da amizade e da verdade.
As coleções discretas são discriminadas segundo suas regras matemáticas de
formação, de acordo com a terminologia peirceana, em: "enumerável", "denumerável",
"abnumeral ou pós-numerável", visto que discreto significa que as unidades da coleção
possuem identidade, mesmo que esta seja apenas genérica ou aproximadamente
designada. Quanto à coleção enumerável, ela poder ser descrita principalmente através
de três características:
a) uma coleção enumerável partilha o mesmo caráter a despeito de seus
diversos arranjos;
b) a mais importante característica, que uma coleção enumerável partilha
com outra qualquer, é a propriedade lógica que assegura “que se uma
coleção enumerável for contada, o processo de contagem eventualmente
chegará ao fim pela exaustão da coleção” (CP 4. 184; NEM 3.49).

c) a parte de uma coleção numerável não pode ser maior e tem de ser menor
com relação ao todo do qual ela é parte.
Em uma coleção de amigos, por exemplo, tendo em vista critérios estatísticos, a
multidão poderia ser dividida em tantas coleções enumeráveis capazes de agrupar seus
indivíduos. Por exemplo, poderíamos ter uma coleção dos homens e mulheres brancas,
dos homens e mulheres negros e dos homens e mulheres mestiços, se o critério de
contagem fosse étnico. Da mesma forma, teríamos coleções enumeráveis segundo um
critério religioso: amigos católicos, protestantes, evangélicos, seguidores de cultos
afros, budistas, etc. Outras coleções poderiam ser formadas de acordo com quantas
identidades fossem possíveis, a fim de definir as unidades constituintes discretas em
uma coleção. Poderíamos dizer que uma maioria seria representada por uma dessas
coleções definidas segundo critérios diversos, dado que, por exemplo, em um país onde
a maioria numérica da população fosse branca e católica, então o padrão representativo
seria dado por uma das coleções em face das demais possíveis.
Mas, sabemos que para as complexas redes sociais isso não é verdade, pois o
alinhamento das relações de amizade transgride coleções discretas tão simples como as
enumeráveis. Os negros são amigos de brancos, os católicos de protestantes, etc. Sendo
assim, precisamos entender como se formam relações concretamente em situações mais
complexas que as possíveis em coleções enumeráveis , pois neste caso é como se os
indivíduos somente tivessem entre si traços identitários como traço de união.
Em situações mais complexas, as relações de amizade são formadas por um
equivalente geral através da axiomatização das unidades de cada coleção enumerável
considerada para sua composição. Quanto a esse tipo de formação, é preciso
entendermos como se constitui uma coleção denumerável.

A coleção denumerável tem uma regra de formação simples. Tomemos a
coleção de todos os números inteiros, colocando-os em uma linha (1,2,3,…) e para cada
número seja associado seu dobro (2,4,6…) A coleção dos dobros é uma parte a coleção
de partida, uma vez que cada número da segunda coleção, cada dobro, é um número
inteiro (todos os números pares possíveis). Assim, o todo e a parte estariam numa
relação de um para um, de modo que o todo e a parte seriam iguais. Essa nova situação
escapa às propriedades que caracterizam as coleções numeráveis, por isso a igualdade
entre a parte e o todo é chamada de “coleção denumerável” (CP 4.188; NEM 3.52-53).
Uma relação de amizade, numa sociedade complexa, forma-se como uma
coleção denumerável, embora a regra de formação não seja tão simples quanto no
exemplo anterior. A coleção que forma a amizade no sentido denumerável não é igual à
dos traços identitários de cada coleção enumerável de partida (brancos, negros,
mestiços, etc; prontentas, católicos, seguidores de religiões afro, budistas, etc.). Ela é,
propriamente, uma coleção dessas unidades cuja regra de reunião não é étnica nem
religiosa, já que os brancos podem ser amigos de negros e os budistas de protestantes,
etc. Essa regra de formação obedece, naturalmente, aos grupos de opinião que formam
correntezas dentro do conjunto de todos os possíveis amigos (enumeráveis). A coleção
denumerável da amizade é um estado momentâneo das coleções enumeráveis que
formam o universo de indivíduos que podem ser amigos. Ela conjuga a estabilidade das
unidades com plena identidade, nos grupos discretos, com combinações e
recombinações passageiras que rompem essa identidade e a tornam vaga. Nesse sentido
é que a parte e o todo são iguais. A parte, a maioria, é uma transformação denumeral do
todo de partida.
Obviamente, o espectro de variação denumeral depende das combinações e
recombinações das unidades enumeráveis (identidades distintas). A amizade é uma

flutuação em torno desses pontos discretos. Mas, o que acontece com o silêncio, como e
por que pode ele se tornar um agente de desarranjo, mesmo da amizades menos
simplistas ilustradas pela relação denumeral? Qual a necessidade do silêncio dentro das
coleções discretas, como multiplicidade contínua que passa por dentro delas?
Diversamente, seja dos arranjos enumeráveis seja dos denumerávis, coleções
pós-numeráveis ou abnumerais possuem como sua principal característica a seguinte
regra: que a partir de uma primeira unidade colocada na extremidade esquerda de uma
linha horizontal, a próxima unidade para o lado direito teria as mesmas características,
mas isso não seria verdade para todas as unidades que viriam depois. O silêncio
participa da amizade em uma coleção abnumeral, pois esta não exclui os indivíduos,
mas os coloca numa relação tal que a regra de formação denumeral não mais funciona,
desfazendo amizades axiomatizáveis em fluxos de opinião. Peirce chama a primeira
coleção abnumeral de “coleção primoposnumeral” e a define assim:
Há algo que é verdadeiro para a primeira unidade e que se é
verdadeiro para qualquer unidade é sempre verdadeiro para a
próxima unidade à direita, que, no entanto, não é verdadeiro para
todas as unidades (CP 4.201)
Isso significa que na coleção primoposnumeral a regra de formação transgride a
amizade denumeral, pois a primeira unidade e a seguinte à direita apresentam caráter
denumerável, mas as multidões que formam essas duas primeiras unidades estão
relacionadas de tal forma que a partir da terceira unidade não há características
partilháveis. Estas outras unidades são abnumerais, pois se soltam das coleções
denumeráveis e se tornam independentes. Elas não são mais a igualdade entre o todo e a
parte como na relação denumeral e por isso não flutuam em torno das unidades
enumeráveis de partida. A coleção pósnumeral é o conjunto das regras de combinações
e recombinações das unidades enumeráveis quando essas regras são consideradas

exteriores e anteriores às coleções denumeráveis e enumeráveis cujas unidades elas
possam vir a relacionar. Então ela é a coleção das relações por elas mesmas,
configurando um conjunto fluido ou transformacional. A coleção pósnumeral não
possui mais elementos cuja identidade seja distinta, como para as coleções enumeráveis,
e não misturam unidades que possuem identidade individual discreta e outras com
identidade individual vaga, como na coleção denumerável da maioria. Ela só possui
unidades desse último tipo. Esse é o silêncio em uma multidão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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