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Hélio Rebello Cardoso Júnior - ICHS/UFOP

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TRÊS PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS NA RELAÇÃO ENTRE<br />

FILOSOFIA E HISTÓRIA: memória; amizade; dizer a verdade<br />

<strong>Hélio</strong> <strong>Rebello</strong> <strong>Cardoso</strong> Jr<br />

Professor de Filosofia UNESP<br />

herebell@hotmail.com<br />

C.V. http://lattes.cnpq.br/7428964121614007<br />

Líder de Grupo http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0330701C9P631W<br />

Resumo: as relações interdisciplinares entre Filosofia e História tornam-se<br />

efetivas em alguns dos principais problemas práticos que a contemporaneidade<br />

apresenta. São eles, os problemas da memória, da amizade e da verdade.<br />

Esses problemas serão discutidos, separadamente, na forma de paradoxos. 1)<br />

o paradoxo da memória e do esquecimento: deve haver uma imbricação entre<br />

esquecer e lembrar – imbricação esta que se embotou historicamente – onde<br />

esquecer é a condição de se viver um presente em relação ao qual o passado<br />

é um “não mais querer livrar-se” ao invés de um “não mais poder livrar-se”; 2) o<br />

paradoxo da amizade e do silêncio: a amizade, inclusive para exercer o<br />

pensamento, deve passar pela prova do silêncio e da amnésia, tendo em vista<br />

a quantidade demente de falas e de imagens nas quais ela está imersa e nas<br />

quais o amigo é ofuscado; 3) o paradoxo de falar a verdade e mudar: só há<br />

verdade quando, ao mesmo tempo, deixa-se de ser aquilo que se é e torna-se<br />

diferente; ou, ainda, falar a verdade não leva a uma estabilidade, mas a uma<br />

mudança no modo de ser.<br />

Na filosofia da história um dos principais problemas, senão o mais<br />

importante, é o do sentido. Teríamos razão para acreditar que a História<br />

caminha em um sentido determinado? Em caso positivo, isto é, se os atos e<br />

acontecimentos não estão deixados totalmente ao acaso, o sentido histórico


esboça uma melhora ou, ao contrário, uma piora da vida humana em seu curso<br />

temporal?<br />

O presente artigo, ao invés de discutir o sentido da história em caráter<br />

geral, procura fazê-lo a partir de problemas práticos e cotidianos que se tornam<br />

urgentes devido às circunstâncias históricas em que os mesmos se<br />

apresentam e afetam nossas vidas. Por razões que se explicitarão na<br />

seqüência, alguns dos problemas em que acredito observar essa urgência<br />

quanto à determinação do sentido histórico, são o da memória, o da amizade e<br />

o de dizer a verdade. A questão geral que envolve a todos é que o sentido de<br />

cada um coloca-se numa complexa relação de continuidade com termos que<br />

supostamente os excluem, ou seja, da memória com o esquecimento; da<br />

amizade com o silêncio; e da verdade com a mudança.<br />

Para Nietzsche, o esquecimento é uma faculdade ativa que deve ser<br />

exercida, assim como a memória. O contato da história com a vida, ensina<br />

Nietzsche, envolve um difícil equilíbrio, pois circunstancial e pragmático, entre a<br />

lembrança e o esquecimento. Um primeiro aspecto desse equilíbrio é prático,<br />

pois sem o esquecimento não se poderia alcançar nenhuma felicidade, nem<br />

mesmo seria possível viver. Um segundo aspecto apresentaria diretamente o<br />

problema histórico envolvido nesse equilíbrio, pois o sentido da história<br />

humana se colocaria no estreito limite entre um esquecimento como força<br />

primeira para que seja possível à memória fazer valer as promessas<br />

contraídas. Sigamos de acordo com essa ordem.<br />

Para Nietzsche (1987) o esquecimento é um poder sem o qual não se<br />

pode alcançar nenhuma forma de felicidade. O esquecimento permite prolongar


a sensação da felicidade, pois se uma felicidade diminuta puder estender-se,<br />

então, ela valerá mais do que uma grande felicidade que fosse apenas<br />

transitória. Tanto nas felicidades menores quanto nas maiores, o que define<br />

essencialmente uma felicidade é: “o poder esquecer ou, dito mais<br />

eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-<br />

historicamente” (NIETZSCHE, 1987, p.22). Conhecer a felicidade é também<br />

tornar os outros felizes e, para fazê-lo, é necessário esquecer o passado, para<br />

livrar-se da vertigem e do medo e colocar-se no “limiar do instante” e para<br />

neste manter-se “como uma deusa de vitória (...) é possível viver quase sem<br />

lembrança, e mesmo viver feliz (...) mas é inteiramente impossível, sem<br />

esquecimento, simplesmente viver” (NIETZSCHE, 1987, p.22).<br />

O esquecimento, neste caso, não é um esquecimento passivo, como<br />

uma memória que se apaga com o passar do tempo. Então, o esquecimento de<br />

que se fala aqui é ativo, somente essa atividade nos coloca numa relação<br />

direta com a felicidade através da dialética das dimensões do tempo acima<br />

resumida. Vejamos isso com mais calma.<br />

Para Nietzsche, esquecer ativamente é o que permite afirmar a vida. O<br />

esquecimento não é passivo, no sentido de que ele não é a artimanha do<br />

ressentido que não suporta mais viver e que por isso enxerga no tempo uma<br />

panacéia para suas dores; o esquecimento ativo é uma questão de exercício,<br />

esquece-se por vontade. Porém, essa atividade do esquecimento é de difícil<br />

acesso, não apenas porque ela implica uma mudança na relação com o tempo;<br />

ela é igualmente afetada por certas vicissitudes históricas.<br />

Com efeito, na história da humanidade, o esquecimento acabou por ser<br />

paralisado ou entorpecido, pois a felicidade se tornou passiva (1998, p.29).


Esse entorpecimento, segundo Nietzsche, surge de uma inversão da relação<br />

entre o esquecimento e a memória, que, a princípio, se afigurava positiva e<br />

saudável. Historicamente, o esquecimento teria de vir antes da memória, pois<br />

para todo animal, para toda a vida, o mais importante é o ar fresco da<br />

felicidade. Porém, enquanto animal, ao contrário dos outros animais, o homem<br />

passaria por uma imposição paradoxal; é que ele deveria conciliar o<br />

esquecimento com a capacidade de fazer promessas. É esse paradoxo que<br />

torna o animal humano, de acordo com Nietzsche. O esquecimento, nesse<br />

homem ativo, é interrompido episodicamente pela memória para que ele possa<br />

afirmar e manter uma promessa contraída, no entanto, o exercício e a<br />

execução dessa promessa dependeriam da força do esquecimento.<br />

A convivência paradoxal entre o esquecimento e a memória altera a<br />

relação do passado com o presente, pois prometer não é apenas um “não-<br />

mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida”, mas é o “não-mais-<br />

querer-livrar-se, um prosseguir querendo o já querido, uma verdadeira memória<br />

da vontade (...) sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer”<br />

(NIETZSCHE, 1998, p.148). A faculdade do esquecimento permite então que o<br />

passado e, portanto, as promessas nele contraídas e mantidas na memória não<br />

se tornem pesos e imposições, já que se pode “prosseguir querendo o já<br />

querido”.<br />

O esquecimento não é só uma vis inartie, como crêem os<br />

espíritos superfinos; antes é um poder ativo, uma faculdade<br />

moderadora, à qual devemos o fato de que tudo quanto nos<br />

acontece na vida, tudo quanto absorvemos, se apresenta à<br />

nossa consciência durante o estado da “digestão” (que poderia<br />

chamar-se absorção física), do mesmo modo que o multíplice<br />

processo da assimilação corporal tão-pouco fatiga a


consciência. Fechar de quando em quando as portas e janelas<br />

da consciência, permanecer insensível às ruidosas lutas do<br />

mundo subterrâneo dos nossos órgãos; fazer silêncio e tábua<br />

rasa da nossa consciência, a fim de que aí haja lugar para as<br />

funções mais nobres para governar, para prever, para<br />

pressentir (porque o nosso organismo é uma verdadeira<br />

oligarquia): eis aqui, repito, o ofício desta faculdade ativa, desta<br />

vigilante guarda encarregada de manter a ordem física, a<br />

tranqüilidade, a etiqueta. Donde se colige que nenhuma<br />

felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhum<br />

gozo poderia existir sem a faculdade do esquecimento<br />

(NIETZSCHE, 1998)<br />

Então, o paradoxo do esquecimento e da lembrança, na sua forma mais<br />

simples é o seguinte: deve haver uma imbricação entre esquecer e lembrar –<br />

imbricação esta que se embotou historicamente – onde esquecer é a condição<br />

de se viver um presente em relação ao qual o passado é um “não mais querer<br />

livrar-se” ao invés de um “não mais poder livrar-se”.<br />

Vamos, em seguida, a algumas questões e apontamentos para um<br />

suposto conceito de amizade, destacando, outra vez, o paradoxo que a envolve<br />

com o problema do sentido em nossa contemporaneidade.<br />

Por que se fica amigo de alguém?<br />

Ora, o que nos apaixona no amigo pode ser algo singular ou banal, mas<br />

é sempre um traço que nos desafia, porque foge a uma explicação totalizante.<br />

Isso nos conquista e, então, chegamos à conclusão de que passamos a ser<br />

amigos de alguém, e que é essencial que a outra parte também o seja. Cada<br />

um pode se lembrar de seus próprios amigos, de como uma amizade começou.<br />

Eu, por exemplo, um dia estava passando por um período muito triste. Sem<br />

mais nem menos, um sujeito que era apenas meu colega disse que precisava


que eu atravessasse certo pátio da escola, fingindo que conversávamos, como<br />

se nos entendêssemos há muito tempo. Atendi a seu pedido maluco! Ora, eu<br />

não fiquei sabendo se aquele gesto tinha algum propósito concreto, de<br />

interesse particular do colega, e que só ele sabia, ou se era um puro delírio. Eu<br />

nunca fiquei sabendo, nem perguntei, mas a partir de então eu já sabia que era<br />

amigo dele e que isso não poderia ser mudado, que era independente de mim.<br />

Praticar aquela pequena loucura com ele me colocou em um outro mundo e, de<br />

repente, eu estava menos infeliz. As amizades começam sempre quando<br />

somos tomados por essas forças estranhas, mesmo que o acontecimento seja<br />

tranqüilo e nem tão estranho como o que me tornou amigo de outro nesse<br />

episódio aqui resumido.<br />

Outra pergunta: ser amigo muda historicamente? Há modos históricos<br />

de ser amigo?<br />

Sempre se escreveu muito sobre a amizade no Mundo Antigo. Ela<br />

sempre foi um princípio sem o qual seria impossível pensar; também não era<br />

possível viver em um mundo democrático sem que as relações tivessem um<br />

quê de igualdade, como numa reunião de amigos; da mesma forma, amizade<br />

entre os antigos sempre foi considerada um meio de conhecer a si mesmo,<br />

sem ter um amigo era impossível saber a verdade sobre si, etnão, a amizade<br />

era uma espécie de exercício ascético. Bem, não somos mais gregos, nem<br />

cristãos, nem somos pessoas do século XIX, então, necessariamente nossas<br />

amizades não podem acontecer como se fôssemos gregos, cristãos ou<br />

pessoas do séc. XIX. Por isso é importante compreender o que os antigos<br />

sabiam sobre a amizade, mas isso não resolve nosso problema.


O que mais caracteriza a amizade hoje em dia, creio eu, é que tudo o<br />

que podemos trocar com os amigos, os momentos, as lembranças, as idéias,<br />

os risos, quase tudo, está mais ou menos codificado. Então, as amizades se<br />

povoam de um sentimento de que não há nada de novo a se viver, suas forças<br />

se exaurem. Não que a amizade em outros tempos não tivesse seus<br />

desgastes, seu anticlímax e suas traições, mas hoje em dia ela é contaminada<br />

por uma espécie de cansaço que atinge as relações de um modo geral. É<br />

estranho! As possibilidades e os meios de se fazer amigos se ampliaram muito<br />

e quase sempre fazemos amizades com grande rapidez e variedade, mas há o<br />

problema de como continuá-las sem que o referido cansaço das relações<br />

sobrevenha. O grande desafio em ser amigo hoje em dia é como fazer para<br />

nos desvencilharmos desse sentimento de vazio, por mais amplas e<br />

numerosas que sejam nossas amizades, quer elas envolvam ou não outras<br />

relações como a casamento, a convivência com um filho, ensinar um aluno ou<br />

a internet, por exemplo.<br />

Isso implica que ser amigo hoje passe, muitas vezes, por uma espécie<br />

de silêncio, ser amigo não é falar nem trocar experiências ou ter o ombro que<br />

conforta, mas sofrer de amnésia junto com alguém. É a condição de não<br />

cairmos no abismo de termos de viver isso e aquilo, de termos que sentir isso<br />

ou aquilo, para provarmos que se tem um amigo. Esse não era um problema<br />

dos gregos, nem dos cristãos medievais, muito menos de meus avós, suspeito<br />

que não era também o de meus pais.<br />

Então o que chamar de amizade, em nosso tempo?<br />

Eu diria que a amizade é a expansão das relações, de qualquer relação,<br />

para além de suas supostas codificações. Esse conceito de amizade pode ser


praticado sem muita dificuldade, já que existem uma série de relações que não<br />

se ajustam a este ou aquele padrão. Aliás, as relações desviantes são até mais<br />

numerosas que as relações codificadas, penso eu. Mais é difícil enxergá-las,<br />

pois são sempre mais provisórias e transitórias do que aquelas que tomamos<br />

pela verdadeira amizade. Isso não quer dizer que elas sejam efêmeras;<br />

provisório aqui significa que elas acontecem de costume num corpo a corpo<br />

com as outras, à sombra daquelas mais codificadas e estabelecidas. As<br />

relações provisórias são como subprodutos das outras, mais codificadas ou<br />

das quais esperamos mais.<br />

Por exemplo, se eu crio uma criança que não é meu filho biológico.<br />

Certo, eu posso adotar essa criança. Essa é a situação normal; existe um<br />

processo judicial de adoção no fim do qual eu serei o pai, de direito, daquela<br />

criança. Mas e se o caso não for de adoção, se os pais que são conhecidos,<br />

parentes, pedissem que a suposta criança more em nossa casa, comigo e com<br />

minha verdadeira família, até que seus verdadeiros pais resolvam tal<br />

dificuldade financeira ou outra? Como vou resolver isso? Eu não sou pai legal,<br />

como manter uma criança assim em minha casa: ela não pode viajar sem<br />

permissão, não posso matriculá-la numa escola sem autorização do<br />

responsável? E na hora de responder pelo desempenho escolar dela, internar<br />

num hospital, etc.?<br />

Do ponto de vista social e institucional, esse é um tipo de relação que<br />

coloca os envolvidos numa espécie de vácuo ou silêncio. Se observarmos bem<br />

ao nosso redor, essa e muitas outras situações evocam algo semelhante<br />

àquele antigo compadrio, só que nós já não vivemos em um mundo onde essa<br />

relação teria uma motivação religiosa ou paternalista, como outrora. São,


portanto, situações provisórias que ficam sufocadas por uma legalidade que<br />

não dá trégua, apesar de que, em seu caráter provisório ela não seja menos<br />

necessária. A amizade, num sentido amplo, é aquilo que nutre essa<br />

necessidade do provisório.<br />

Mas, além da provisoriedade, em que mais a amizade, hoje, tem a ver<br />

com o silêncio e menos com a convivência falante ou confessional, como no<br />

passado?<br />

Vejamos um exemplo contemporâneo.<br />

O filósofo Deleuze e o escritor Dionys Mascolo trocaram algumas<br />

poucas cartas em 1988; nelas temos encontramos uma reflexão sobre a<br />

maneira se é amigo em nosso tempo (DELEUZE, 2003). Eles estão de acordo<br />

sobre o fato de que amizade continua sendo a condição para pensar e para<br />

procurar o prazer da companhia, entretanto, os amigos não são mais como os<br />

os gregos que se encontravam para conversar em torno de um determinado<br />

objeto ou assunto cujo conceito se queria conquistar. Ser amigo não significa<br />

mais necessariamente estabelecer um diálogo, já que a amizade penetrou uma<br />

área movediça onde é difícil para dois ou mais amigos caminharem. Isso<br />

acontece, pois o diálogo que se trava livremente entre amigos está cercado por<br />

uma louca produção de discursos que penetra e exaure o próprio veio inventivo<br />

da amizade. Como diz Deleuze de modo peremptório: “estamos trespassados<br />

de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira<br />

nunca é muda nem cega” (DELEUZE, 1977, p. 177).<br />

Os diálogos da amizade são inseminados por regimes discursivos<br />

gerados alhures e que capturam sua produtividade a fim de endurecer<br />

dispositivos de controle. Enfim, a quantidade demente de falas e imagens


espreita o diálogo entre amigos e por isso mina a capacidade que a amizade<br />

tinha de promover o conhecimento de si, a discussão cidadã e o exercício do<br />

pensamento. Em meio a esses percalços, ser amigo é uma tarefa que começa<br />

a passar por percursos anômalos, aparentemente paradoxais, pelos quais ser<br />

amigo é passear com o amigo por zonas de penumbra e de silêncio, visto que,<br />

hoje, não é necessário, nem recomendável, assevera Deleuze, “que se fale<br />

com o amigo, que se partilhe lembranças com ele, mas, ao contrário, é com ele<br />

que se passa por provas como amnésia, a afasia, necessárias a todo<br />

pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 107).<br />

Esse silêncio, muitas vezes, não é sinônimo de nada dizer. Eu me<br />

lembro agora de um exemplo literário que pode dar uma idéia do que significa<br />

“passar por provas como a amnésia”. Um dos personagens de Kafka escrevia<br />

cartas para sua noiva ou namorada, não lembro exatamente. Escrevi-as, não<br />

para fazer um relatório se sua vida e, por isso, ficar mais próximo ou mais<br />

familiar com relação à amada. Ele contava a ela seus sonhos, minuciosamente,<br />

fossem eles estranhos ou sem sentido. E ainda instruía a moça a não<br />

responder-lhe no sentido de interpretá-los; não lhe interessava saber a verdade<br />

que anunciavam ou que estaria por trás de sua atividade onírica. Ele pedia que<br />

a namorada relatasse seus próprios sonhos, principalmente porque os que ele<br />

lhe havia contado teriam um efeito necessário sobre os dela, causando uma<br />

espécie de difusão onírica. Essa é a espécie de diálogo onde se promove uma<br />

amnésia como linha de fuga que se coloca para as amizades contemporâneas.<br />

Mas, é claro, que as amizades, mesmo as íntimas, envolvem inserção em<br />

instituições socialmente estabelecidas e isso complica o problema que aqui<br />

descrevemos de forma um tanto simples.


Então, o paradoxo da amizade e do silêncio na sua forma mais simples é<br />

o seguinte: a amizade, inclusive para exercer o pensamento, deve passar pela<br />

prova do silêncio e da amnésia, tendo em vista a quantidade demente de falas<br />

e de imagens nas quais está imersa e nas quais o amigo é ofuscado.<br />

O problema de falar a verdade também está envolvido em certas<br />

circunstâncias que põem em evidência a clássica discussão a respeito de<br />

sentido histórico. Afinal, qual o sentido de dizer a verdade e como isso afeta<br />

nossa existência, historicamente falando?<br />

Em suas pesquisas a respeito do Mundo Antigo, em um de seus últimos<br />

textos, Foucault (1983) mostra que, durante a Antiguidade Greco-Romana e<br />

até os primeiros séculos da Era Cristã, existiam regras culturalmente vigentes a<br />

respeito de dizer a verdade (parrhesia – etimologicamente, “dizer tudo”). Isso<br />

significa que alguém que diz a verdade não pode se esconder atrás de<br />

qualquer efeito retórico, pois precisa dizer exatamente o que tem em mente,<br />

sem nada omitir. Então, o falante não pode esconder nada do ouvinte, ele<br />

precisa se aproximar o máximo possível do que está pensando, o sujeito que<br />

diz pela sua boca coincide com a consciência que pensa dentro dele, com sua<br />

opinião. Dessa forma, a parrhesia, falar a verdade difere de convencer alguém<br />

de uma verdade. A parrhesia, portanto, não é, em primeira instância, uma<br />

relação do falante com sua audiência, na qual ele levaria em conta as opiniões<br />

daqueles a quem fala mesmo que não fossem as suas próprias, procurando<br />

retoricamente precaver-se de reações contrárias para melhor convencer seus<br />

ouvintes. Antes de qualquer coisa, a parhesia é uma relação do falante com o<br />

que ele diz; é um exercício de si para consigo mesmo através da fala.


A partir dessas primeiras observações, pode-se pensar que a parrhesia<br />

era um exercício de disciplina individual, uma espécie de fala consigo mesmo<br />

ou oração meramente sussurrada. Mas, na verdade, falar a verdade envolvia<br />

uma atividade coletiva, pois na relação entre o falante e sua audiência estava<br />

pressuposta uma diferença social e por isso mesmo a verdade era perigosa<br />

para quem a proferia. Além disso, a parrhesia deve distinguir-se da mera<br />

verborragia daquele que fala desatinadamente para um plenário, perante o qual<br />

fazer o uso da palavra é prerrogativa em uma democracia. Ela distingue-se<br />

igualmente da confissão de quem abre a palavra e descreve em detalhe todos<br />

os movimentos de seu coração, supondo que a confissão, nesse sentido, o<br />

aproximaria de Deus. A parrhesia, então, não seria nem um direito democrático<br />

nem um exercício cristão.<br />

Para nós, quer dizer, hoje, um falante qualquer possui uma crença ou<br />

opinião e procura provar que ela é verdade através da reunião de provas que<br />

confiram à sua opinião o caráter de evidência. Ele procura prová-lo, antes de<br />

tudo, para si mesmo. Somente a partir dessa operação mental será possível<br />

fazer com que uma crença corresponda à verdade. Já, quanto à parrhesia dos<br />

Antigos, a operação não era mental, mas verbal, através da fala o falante sabia<br />

que sua opinião coincidia com a verdade e não tinha dúvida de que estava na<br />

posse da verdade. O falante não tinha de provar que o que dizia era verdade<br />

através de uma operação mental, pois a prova de que ele tinha acesso à<br />

verdade eram qualidades morais. E ele devia dispor destas, não apenas para<br />

garantir-lhe acesso à verdade, mas também para ter a autoridade de comunicá-<br />

la a outras pessoas. Por isso a maior prova de que o falante diz a verdade era<br />

a coragem de dizer algo diferente do que a maioria acreditava, de modo que


não é totalmente correto afirmar que aquele que fala a verdade prova que o diz,<br />

pois ele é apenas reconhecido pelo público como sendo capaz desse ato.<br />

A coragem de dizer a verdade não era a única qualidade moral pela qual<br />

se reconhece aquele que realmente fala a verdade, já que a prova da verdade<br />

implicava sempre um perigo ou risco para aquele que a proferia. Por exemplo,<br />

quando falamos a um amigo a verdade, apesar de que isso possa ferir seus<br />

sentimentos e, até, deturpar ou destruir nossa amizade, estamos praticando<br />

uma espécie de parrhesia, isto é, nós temos de ter a coragem de falar apesar<br />

do risco que ela acarreta. Nesse sentido, falar a verdade também é uma<br />

relação para consigo mesmo, pois quem fala escolheu o risco de dizê-la ao<br />

invés de acomodar-se em um mundo onde a verdade permanece calada; o<br />

falante não pode conviver com a ideia de que é falso para consigo mesmo.<br />

A parrhesia requeria coragem e trazia um risco, como dissemos, porque<br />

ela contrariava a audiência ou o interlocutor com uma verdade que este não<br />

queria ouvir. Nesse sentido, isso pode se confundir, por exemplo, com a<br />

autoridade de um professor. Eu, falando aqui de cima, com meus títulos e<br />

experiência, ao ensinar Filosofia estaria praticando uma espécie de parrhesia,<br />

pois eu sei que o falo é verdade. E eu corro o risco de ser constestado, algum<br />

pode vir e demonstrar que aquilo que venho falando é besteira e que existe<br />

outra verdade maior e mais evidente. Mas, como vimos, a parrhesia não é uma<br />

questão de demonstração da verdade. O professor fala e deve falar verdade,<br />

mas, como ele tem autoridade com relação aos alunos ou sua audiência os<br />

riscos são menores ou são minorados por sua posição proeminente. Então,<br />

não temos parrhesia quando o falante ocupa posição de maior poder que seu<br />

interlocutor. Pelo contrário, aquele que fala a verdade tem sempre menos


poder do que seu interlocutor. É uma condição de dizer a verdade, tem de<br />

haver um degrau social ou de status: o falante tinha de provocar a ira ou ferir o<br />

interlocutor, pois a verdade que ele profere atinge a própria posição de poder<br />

de quem ouve. Pela mesma razão, a parrhesia é pouco praticada por aqueles<br />

que estão por cima; aqueles que têm algum poder, certamente, podem falar a<br />

verdade, mas pouco arriscam com isso. A verdade sempre vem debaixo,<br />

daquele que está em posição de inferioridade.<br />

Com todas essas características principais, a atividade de falar a<br />

verdade nos conduz a um paradoxo. É que sua prática não significa apenas<br />

que aquele o enunciador e o interlocutor mudam sua opinião, pois eles mudam<br />

também seu modo de vida. Sendo assim, só se pode dizer que temos uma<br />

verdade, no sentido grego da parrhesia, quando a verdade tem um efeito<br />

prático sobre a conduta de nossa vida, quando a verdade dita, que contraria ou<br />

provoca a ira do interlocutor, leva a um outro conhecimento ou a uma verdade<br />

para além daquela que foi colocada em cheque. Então, o paradoxo de falar a<br />

verdade e mudar, na sua forma mais simples é o seguinte: só há verdade<br />

quando, ao mesmo tempo, deixa-se de ser aquilo que se é e torna-se<br />

diferente; ou, ainda, falar a verdade não leva a uma estabilidade, mas a<br />

uma mudança no modo de ser.<br />

A questão dos paradoxos acima descritos e, portanto, do sentido<br />

histórico dos mesmos, como aventamos inicialmente, é o de seu caráter<br />

operatório. Afinal, como garantir que esses paradoxos funcionem na prática?<br />

Como explicar sua vigência?


A memória, a amizade e a verdade podem ser definidas como relações<br />

que acontecem entre indivíduos. E, se elas são um problema histórico não<br />

devem dizer respeito apenas a relações entre indivíduos isolados, uma vez que<br />

tais relações precisam ter validade para multidões. Por isso, vamos nos<br />

aproximar de uma, assim chamada, teoria das multidões, a fim de indicar a<br />

legitimidade de se pensar a memória, a amizade e a verdade. O mais<br />

importante, como se observará, é que a teoria das multidões nos permite<br />

entender os três termos paradoxais, isto é, o esquecimento, o silêncio e a<br />

mudança como estando intrinsecamente ligados, respectivamente, à memória,<br />

à amizade e à verdade. E isso basta para entendermos de uma maneira<br />

diversa o paradoxo contido naqueles pares de termos.<br />

Multidão é um conjunto de indivíduos em uma coleção independentemente de<br />

sua ordem ou arranjo. Por exemplo, [A, B, C] e [C, B, A] são as mesmas coleções<br />

porque elas têm a mesma multidão, embora diversamente organizadas (CP 1 6.648-651).<br />

"Por uma coleção", diz Peirce, "eu quero dizer qualquer coisa que é u'd por tudo que<br />

tem uma certa qualidade ou descrição geral, e por nada mais" (CP 4.170). Se qualquer A<br />

é uma unidade ou indivíduo de B, então A é u de B (A é unidade de B) ou,<br />

reciprocamente, "B é u'd por A" (ibidem.), ou seja, B é um todo que tem A como sua<br />

unidade. Mas B só é uma coleção se partilha com A certa qualidade comum, de modo<br />

que se A tem alguma qualidade a, então B é u’d por A através daquela determinada<br />

qualidade.<br />

As unidades de uma coleção não pertencem necessariamente ao mesmo<br />

"universo de discurso" (CP 4.171), de forma que tipos diferentes de unidades<br />

1 PEIRCE, C.S.. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Ed. by: C. Hartshorne & P. Weiss<br />

(v. 1-6); A. Burks (v. 7-8). Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-58. 8 v; abreviado a partir de<br />

agora como CP, seguido do número do volume e após o ponto, o parágrafo correspondente, de acordo<br />

com notação consagrada pelo uso.


constituintes são possíveis, principalmente, há unidades em uma coleção que possuem<br />

identidade distinta, enquanto outras não a possuem, na medida em que se comportam<br />

como meras possibilidades. As coleções com unidades que detêm identidade individual<br />

são "coleções discretas" (CP 4.175) Comparativamente, pode-se dizer que as coleções<br />

discretas são maiores ou menores, mas se a coleção não corresponde a nenhuma<br />

existência extensivamente determinável, isto é, cujas unidades tenham identidade<br />

individual, então ela cessa de ser uma coleção discreta para formar uma multiplicidade<br />

contínua, isto é, cujas unidades não têm distinção individual. Tendo em vista esses<br />

fundamentos para uma teoria das coleções e multidões, podemos fazer uma primeira<br />

aproximação com os conceitos aqui discutidos. Memória, amizade e verdade formam<br />

coleções discretas, posto que suas unidades, os indivíduos mantêm identidade distinta.<br />

Já esquecimento, silêncio e mudança formariam multiplicidade contínuas onde as<br />

unidades não possuem identidade individual, posto que são passagens de estados, de<br />

combinações e recombinações, de ritmos e encontros, que se desprendem da compleição<br />

discreta formadas pela memória, amizade e verdade, respectivamente.<br />

Essas associações são preliminares e francamente insuficientes, pois se a teoria<br />

das multidões é de fato útil quanto à qualificação de nossos paradoxos de partida, então<br />

ela precisa explicar de que modo se dá a gênese da memória, amizade e da verdade em<br />

uma coleção discreta de indivíduos. Da mesma forma, precisamos saber como funciona<br />

a multiplicidade contínua e qual seu comportamento com relação à coleção discretas. É<br />

que as coleções discretas não estão definitivamente separadas das multiplicidades<br />

contínuas, pois um tipo específico de coleção discreta abriga unidades que, embora<br />

individualmente distintas, o são apenas vagamente, como se fossem a premonição das<br />

multiplicidades contínuas. Em outras palavras, esse tipo especial de coleção discreta –<br />

determinada, mas menos definida - vive dentro de outras coleções discretas.


Na verdade, a fronteira entre coleções discretas e multiplicidades contínuas é<br />

mais difícil de traçar do que fizemos parecer na primeira abordagem, por isso certa<br />

precisão terminológica e conceitual se faz necessária, como alertáramos. Há coleções<br />

discretas, por um lado, que incluem unidades sem identidade individual misturadas com<br />

outras individualmente distintas; por outro lado, há coleções discretas que só possuem<br />

unidades sem identidade assinalável. A tarefa mais complexa e estimulante sobre a<br />

teoria das multidões de Peirce, que aqui tomamos como referência será o<br />

estabelecimento destas progressões entre coleções discretas, pois isso envolve<br />

essencialmente o problema das relações que geram e regram as multidões, tendo em<br />

vista o caso, como assinalamos, de multiplicidades contínuas, como a do esquecimento,<br />

do silêncio e a da mudança vivendo dentro de coleções discretas, como a da memória,<br />

da amizade e da verdade.<br />

As coleções discretas são discriminadas segundo suas regras matemáticas de<br />

formação, de acordo com a terminologia peirceana, em: "enumerável", "denumerável",<br />

"abnumeral ou pós-numerável", visto que discreto significa que as unidades da coleção<br />

possuem identidade, mesmo que esta seja apenas genérica ou aproximadamente<br />

designada. Quanto à coleção enumerável, ela poder ser descrita principalmente através<br />

de três características:<br />

a) uma coleção enumerável partilha o mesmo caráter a despeito de seus<br />

diversos arranjos;<br />

b) a mais importante característica, que uma coleção enumerável partilha<br />

com outra qualquer, é a propriedade lógica que assegura “que se uma<br />

coleção enumerável for contada, o processo de contagem eventualmente<br />

chegará ao fim pela exaustão da coleção” (CP 4. 184; NEM 3.49).


c) a parte de uma coleção numerável não pode ser maior e tem de ser menor<br />

com relação ao todo do qual ela é parte.<br />

Em uma coleção de amigos, por exemplo, tendo em vista critérios estatísticos, a<br />

multidão poderia ser dividida em tantas coleções enumeráveis capazes de agrupar seus<br />

indivíduos. Por exemplo, poderíamos ter uma coleção dos homens e mulheres brancas,<br />

dos homens e mulheres negros e dos homens e mulheres mestiços, se o critério de<br />

contagem fosse étnico. Da mesma forma, teríamos coleções enumeráveis segundo um<br />

critério religioso: amigos católicos, protestantes, evangélicos, seguidores de cultos<br />

afros, budistas, etc. Outras coleções poderiam ser formadas de acordo com quantas<br />

identidades fossem possíveis, a fim de definir as unidades constituintes discretas em<br />

uma coleção. Poderíamos dizer que uma maioria seria representada por uma dessas<br />

coleções definidas segundo critérios diversos, dado que, por exemplo, em um país onde<br />

a maioria numérica da população fosse branca e católica, então o padrão representativo<br />

seria dado por uma das coleções em face das demais possíveis.<br />

Mas, sabemos que para as complexas redes sociais isso não é verdade, pois o<br />

alinhamento das relações de amizade transgride coleções discretas tão simples como as<br />

enumeráveis. Os negros são amigos de brancos, os católicos de protestantes, etc. Sendo<br />

assim, precisamos entender como se formam relações concretamente em situações mais<br />

complexas que as possíveis em coleções enumeráveis , pois neste caso é como se os<br />

indivíduos somente tivessem entre si traços identitários como traço de união.<br />

Em situações mais complexas, as relações de amizade são formadas por um<br />

equivalente geral através da axiomatização das unidades de cada coleção enumerável<br />

considerada para sua composição. Quanto a esse tipo de formação, é preciso<br />

entendermos como se constitui uma coleção denumerável.


A coleção denumerável tem uma regra de formação simples. Tomemos a<br />

coleção de todos os números inteiros, colocando-os em uma linha (1,2,3,…) e para cada<br />

número seja associado seu dobro (2,4,6…) A coleção dos dobros é uma parte a coleção<br />

de partida, uma vez que cada número da segunda coleção, cada dobro, é um número<br />

inteiro (todos os números pares possíveis). Assim, o todo e a parte estariam numa<br />

relação de um para um, de modo que o todo e a parte seriam iguais. Essa nova situação<br />

escapa às propriedades que caracterizam as coleções numeráveis, por isso a igualdade<br />

entre a parte e o todo é chamada de “coleção denumerável” (CP 4.188; NEM 3.52-53).<br />

Uma relação de amizade, numa sociedade complexa, forma-se como uma<br />

coleção denumerável, embora a regra de formação não seja tão simples quanto no<br />

exemplo anterior. A coleção que forma a amizade no sentido denumerável não é igual à<br />

dos traços identitários de cada coleção enumerável de partida (brancos, negros,<br />

mestiços, etc; prontentas, católicos, seguidores de religiões afro, budistas, etc.). Ela é,<br />

propriamente, uma coleção dessas unidades cuja regra de reunião não é étnica nem<br />

religiosa, já que os brancos podem ser amigos de negros e os budistas de protestantes,<br />

etc. Essa regra de formação obedece, naturalmente, aos grupos de opinião que formam<br />

correntezas dentro do conjunto de todos os possíveis amigos (enumeráveis). A coleção<br />

denumerável da amizade é um estado momentâneo das coleções enumeráveis que<br />

formam o universo de indivíduos que podem ser amigos. Ela conjuga a estabilidade das<br />

unidades com plena identidade, nos grupos discretos, com combinações e<br />

recombinações passageiras que rompem essa identidade e a tornam vaga. Nesse sentido<br />

é que a parte e o todo são iguais. A parte, a maioria, é uma transformação denumeral do<br />

todo de partida.<br />

Obviamente, o espectro de variação denumeral depende das combinações e<br />

recombinações das unidades enumeráveis (identidades distintas). A amizade é uma


flutuação em torno desses pontos discretos. Mas, o que acontece com o silêncio, como e<br />

por que pode ele se tornar um agente de desarranjo, mesmo da amizades menos<br />

simplistas ilustradas pela relação denumeral? Qual a necessidade do silêncio dentro das<br />

coleções discretas, como multiplicidade contínua que passa por dentro delas?<br />

Diversamente, seja dos arranjos enumeráveis seja dos denumerávis, coleções<br />

pós-numeráveis ou abnumerais possuem como sua principal característica a seguinte<br />

regra: que a partir de uma primeira unidade colocada na extremidade esquerda de uma<br />

linha horizontal, a próxima unidade para o lado direito teria as mesmas características,<br />

mas isso não seria verdade para todas as unidades que viriam depois. O silêncio<br />

participa da amizade em uma coleção abnumeral, pois esta não exclui os indivíduos,<br />

mas os coloca numa relação tal que a regra de formação denumeral não mais funciona,<br />

desfazendo amizades axiomatizáveis em fluxos de opinião. Peirce chama a primeira<br />

coleção abnumeral de “coleção primoposnumeral” e a define assim:<br />

Há algo que é verdadeiro para a primeira unidade e que se é<br />

verdadeiro para qualquer unidade é sempre verdadeiro para a<br />

próxima unidade à direita, que, no entanto, não é verdadeiro para<br />

todas as unidades (CP 4.201)<br />

Isso significa que na coleção primoposnumeral a regra de formação transgride a<br />

amizade denumeral, pois a primeira unidade e a seguinte à direita apresentam caráter<br />

denumerável, mas as multidões que formam essas duas primeiras unidades estão<br />

relacionadas de tal forma que a partir da terceira unidade não há características<br />

partilháveis. Estas outras unidades são abnumerais, pois se soltam das coleções<br />

denumeráveis e se tornam independentes. Elas não são mais a igualdade entre o todo e a<br />

parte como na relação denumeral e por isso não flutuam em torno das unidades<br />

enumeráveis de partida. A coleção pósnumeral é o conjunto das regras de combinações<br />

e recombinações das unidades enumeráveis quando essas regras são consideradas


exteriores e anteriores às coleções denumeráveis e enumeráveis cujas unidades elas<br />

possam vir a relacionar. Então ela é a coleção das relações por elas mesmas,<br />

configurando um conjunto fluido ou transformacional. A coleção pósnumeral não<br />

possui mais elementos cuja identidade seja distinta, como para as coleções enumeráveis,<br />

e não misturam unidades que possuem identidade individual discreta e outras com<br />

identidade individual vaga, como na coleção denumerável da maioria. Ela só possui<br />

unidades desse último tipo. Esse é o silêncio em uma multidão.<br />

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DELEUZE, G. Correspondance avec Dionys Mascolo, in Deux Regimes de<br />

Fous: textes et entretiens 1975-1995, édition preparée par David Lapoujade.<br />

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25/10/2009.<br />

NIETZSCHE, F. W. Considerações Extemporâneas. In: Obras incompletas (Os<br />

Pensadores). Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova<br />

Cultura, 1987.<br />

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução<br />

Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 1998.<br />

PEIRCE, C.S. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. (CP) Ed. by: C.<br />

Hartshorne & P. Weiss (v. 1-6); A. Burks (v. 7-8). Cambridge, MA: Harvard<br />

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PEIRCE, C.S. The New Elements of Mathematics. (NEM) Ed. by Carolyn<br />

Eisele. Haia; Paris: Mouton Publishers; Atlantic Highlands, NJ: Humanities<br />

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