A excomunhão da freira - NEPP-DH
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01/06/2010 – O Globo p. 7<br />
A <strong>excomunhão</strong> <strong>da</strong> <strong>freira</strong><br />
Nicholas D. Kristof<br />
Finalmente temos um caso em que a hierarquia <strong>da</strong> Igreja Católica está respondendo rigorosa e<br />
velozmente à acusação de delito. Mas o alvo não é um padre pedófilo. Em vez disso, é uma <strong>freira</strong> que<br />
ajudou a salvar a vi<strong>da</strong> de uma mulher. Médicos a descrevem como uma santa.<br />
A <strong>excomunhão</strong> <strong>da</strong> irmã Margaret McBride, de Phoenix, reforça tudo o que sinto de moralmente obtuso<br />
em relação à hierarquia católica. Espero que um clamor popular possa retificar essa desfaçatez.<br />
A irmã Margaret era administradora sênior do St. Joseph’s Hospital, de Phoenix. Uma mulher de 27<br />
anos, mão de quatro filhos, chegou ao hospital no final do ano passado, no terceiro mês de gravidez.<br />
Segundo reportagens de jornais locais e relatos de alguns membros <strong>da</strong> equipe do hospital, a mulher<br />
sofria de uma séria complicação chama<strong>da</strong> hipertensão pulmonar.<br />
Isto criava alta probabili<strong>da</strong>de de que a tensão <strong>da</strong> gravidez acabasse por matá-la.<br />
“Nesse trágico caso, o tratamento para salvar a mãe iria requerer a interrupção de uma gravidez de 11<br />
semanas.<br />
A decisão foi toma<strong>da</strong> depois de consultados a paciente, sua família, seus médicos e a Comissão de<br />
Ética”, informou o hospital.<br />
A irmã Margaret integrava essa comissão. Ela não quis discutir o caso comigo, mas o bispo de Phoenix,<br />
Thomas Olmsted, decidiu que ela estava “automaticamente excomunga<strong>da</strong>” porque aprovou o aborto.<br />
“A vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe não pode prevalecer sobre a <strong>da</strong> criança”, afirmou um comunicado do escritório do<br />
bispo.<br />
Devemos lembrar que a hierarquia <strong>da</strong> Igreja Católica suspendeu padres que abusaram de crianças e,<br />
em alguns casos, expulsou-os, mas normalmente não os excomungou, permitindo que continuassem<br />
recebendo o sacramento.<br />
Desde a <strong>excomunhão</strong>, a irmã Margaret deixou seu cargo de vice-presidente e não consta mais na lista<br />
de executivos no site do hospital. Este informou que ela se demitira “a pedido do bispo” e que ain<strong>da</strong><br />
trabalha em outro setor do hospital.<br />
Fui informado sobre o caso <strong>da</strong> irmã Margaret por um conhecido que é médico do hospital St. Joseph’s.<br />
Depois do que aconteceu com a irmã, ele enviou um e-mail para os amigos lamentando a <strong>excomunhão</strong><br />
de uma “<strong>freira</strong> santa”.<br />
“Ela é uma mulher gentil, humilde, de fala mansa, cui<strong>da</strong>dosa e espiritualiza<strong>da</strong>, cujo lugar no céu foi<br />
reservado anos atrás. A ideia de que pudesse ser excomunga<strong>da</strong> após déca<strong>da</strong>s a serviço <strong>da</strong> Igreja e <strong>da</strong><br />
humani<strong>da</strong>de literalmente me provoca náuseas. Cristãos ver<strong>da</strong>deiros, como a irmã Margaret,<br />
compreendem que a vi<strong>da</strong> real é cheia de questões moralmente difíceis e rezam para que tomem a<br />
decisão certa à luz dos ensinamentos de Cristo. Somente um grupo de homens isolados e mimados, em<br />
túnicas doura<strong>da</strong>s num balcão muito acima do resto de nós, poderia negar esses dilemas”, escreveu o<br />
médico, em sua mensagem.<br />
Uma declaração do escritório do bispo não negou que a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe estivesse em perigo — embora<br />
notasse que nenhuma previsão médica é cem por cento segura. A implicação é que a Igreja teria<br />
preferido que o hospital deixasse a natureza seguir seu curso.<br />
A hierarquia <strong>da</strong> Igreja Católica tem direito a seus pontos de vista. Mas o episódio reforça a percepção<br />
dos seus líderes como rígidos, dogmáticos fora de contato com a reali<strong>da</strong>de — e muito desconfiados<br />
diante <strong>da</strong> independência do pensamento <strong>da</strong>s <strong>freira</strong>s americanas.
A irmã Margaret fez um julgamento difícil numa emergência, salvou uma vi<strong>da</strong> e foi humilha<strong>da</strong> e<br />
puni<strong>da</strong> por um raio fulminante emitido por um bispo que levou 16 anos morando em Roma e que<br />
devotou muito menos tempo ao serviço dos oprimidos do que a irmã Margaret. Compare as duas<br />
biografias e a <strong>da</strong> irmã Margaret parecerá muito mais com a de Jesus que a do bispo.<br />
“Todo mundo que conheço considera a irmã Margaret a consciência moral do hospital”, escreveu Dr.<br />
John Garvie, chefe do serviço de gastroenterologia do St. Joseph’s, em carta ao editor do jornal<br />
“Arizona Republic”. “Ela trabalha incessante e abnega<strong>da</strong>mente como exemplo vivo e campeã do<br />
cui<strong>da</strong>do apropriado e misericordioso aos doentes e agonizantes”.<br />
Dr. Garvie disse-me mais tarde, num e-mail, que santa é a palavra certa para a irmã Margaret e<br />
acrescentou: “Ela é a personificação viva de Deus em nosso hospital. Ela sempre se certificou de que<br />
nós entendêssemos que estamos aqui para aju<strong>da</strong>r os menos afortunados. Realmente não há quem possa<br />
assumir seu lugar”.<br />
Escrevi várias vezes sobre o abismo entre os líderes <strong>da</strong> Igreja Católica e as <strong>freira</strong>s, padres e leigos que<br />
frequentemente vivem a essência do Sermão <strong>da</strong> Montanha. Estes representam a grande alma <strong>da</strong> Igreja,<br />
que não tem a ver com vestes, mas com abnegação.<br />
Quando uma hierarquia em sua maioria de homens idosos agride e excomunga uma <strong>freira</strong><br />
reverencia<strong>da</strong>, que estava meramente tentando salvar a vi<strong>da</strong> de uma mãe, a Igreja me parece quase tão<br />
fora de contato com o mundo real quanto esteve nos dias cruéis e corrompidos dos Borgia, no<br />
Renascimento.