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O Funcionalismo homuncular de William Lycan e a sua ...

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O <strong>Funcionalismo</strong> <strong>homuncular</strong> <strong>de</strong> <strong>William</strong> <strong>Lycan</strong> e a <strong>sua</strong> imunida<strong>de</strong> face<br />

I - Introdução<br />

aos habituais argumentos contra teses funcionalistas<br />

(Luís Horta – Março 2005)<br />

Apesar da pertinência e valida<strong>de</strong> reconhecida das tradicionais objecções à abordagem<br />

funcionalista do problema mente-corpo <strong>de</strong>sencorajarem, à partida, qualquer tentativa<br />

recorrendo a formulações <strong>de</strong>sse tipo, existem ainda acérrimos <strong>de</strong>fensores do funcionalismo.<br />

<strong>William</strong> <strong>Lycan</strong> é um <strong>de</strong>les, insistindo numa reformulação da tese funcionalista <strong>de</strong> forma<br />

muito particular, <strong>de</strong> modo a torná-la imune aos habituais ataques e dificulda<strong>de</strong>s.<br />

Na <strong>sua</strong> obra Consciousness (<strong>Lycan</strong>, 1987), é apresentada a <strong>sua</strong> proposta <strong>de</strong> funcionalismo<br />

<strong>homuncular</strong> como solução para o problema mente-corpo, cujos principais atributos serão <strong>de</strong><br />

seguida expostos.<br />

II – Níveis da natureza<br />

É consen<strong>sua</strong>l que é <strong>de</strong> facto <strong>de</strong>veras tentadora a tendência <strong>de</strong> comparação <strong>de</strong> mentes com<br />

máquinas. A gran<strong>de</strong> facilida<strong>de</strong> com que se estabelece paralelismos <strong>de</strong>ve ser portanto<br />

consi<strong>de</strong>rada e investigada com a maior atenção.<br />

Comecemos por evi<strong>de</strong>nciar a existência intuitiva <strong>de</strong> uma clara distinção entre os conceitos <strong>de</strong><br />

“matéria realizante” e “evento realizado” e <strong>sua</strong> consequente oposição. Do mesmo modo, e<br />

seguindo a dicotomia (físico/abstracto) <strong>de</strong>calcada das máquinas, existe uma forte tentação na<br />

crença <strong>de</strong> que a melhor forma <strong>de</strong> caracterizar eventos ou fenómenos mentais será através do<br />

seu princípio funcional (que melhor forma existe <strong>de</strong> caracterizar um evento <strong>de</strong> cálculo<br />

produzido por uma máquina <strong>de</strong> calcular, a não ser recorrendo ao próprio resultado da<br />

operação, resultante da função <strong>de</strong> calcular?). Neste aspecto, o funcionalismo tem o mérito <strong>de</strong><br />

anular uma das principais insuficiências apontadas à teoria da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> 1 .<br />

Apesar <strong>de</strong>sta oposição suporte/evento ser exactamente o tipo <strong>de</strong> formulação fundamental que<br />

sustenta a doutrina funcionalista convencional, <strong>Lycan</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que existe, apesar <strong>de</strong> tudo,<br />

<strong>de</strong>masiada tensão entre os conceitos. Insiste mesmo que esta distinção função/estrutura é<br />

1 Uma das principais fraquezas da Teoria da I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é o seu excessivo chauvinismo na<br />

caracterização <strong>de</strong> eventos. Uma vez que se recorre quase exclusivamente a <strong>de</strong>scrições fisiológicas, tal<br />

implica forçosamente que um <strong>de</strong>terminado evento mental po<strong>de</strong>rá ser realizável apenas por criaturas<br />

com base fisiológica semelhante, impedindo por exemplo que moluscos ou marcianos sintam dor no<br />

sentido que nós lhe atribuímos.<br />

1


particularmente nociva para a discussão do problema mente-corpo, por evi<strong>de</strong>nciar apenas as<br />

facetas mais divergentes dos conceitos.<br />

É então proposto que se <strong>de</strong>ve atacar a distinção, enfraquecendo a <strong>sua</strong> relação <strong>de</strong> oposição. A<br />

estratégia passa por negar o carácter estanque <strong>de</strong> tais classes, relativizando a aplicação dos<br />

seus conceitos. O conceito <strong>de</strong> componente física só é evi<strong>de</strong>nte quando confrontado com o<br />

conceito <strong>de</strong> componente abstracta. Logo, a distinção entre eles é completamente relativa,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do ponto <strong>de</strong> vista ou da profundida<strong>de</strong> da observação. O que é evi<strong>de</strong>nte é que<br />

existem em todas as situações, e em simultâneo, ambos os componentes. A variação dá-se ao<br />

nível do índice <strong>de</strong> participação <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>les na combinação da qual resulta a<br />

caracterização do fenómeno. É <strong>de</strong>vido a esta variação, e em situações extremas (em que a<br />

presença <strong>de</strong> um dos componentes é quase imperceptível) que se dá a ilusão <strong>de</strong> existirem duas<br />

classes estanques, com uma zona <strong>de</strong> contacto claramente <strong>de</strong>finível.<br />

Sempre que se aprofunda (ou não) o método <strong>de</strong> investigação ou se altera o ponto <strong>de</strong> vista do<br />

observador, percorre-se toda a gama <strong>de</strong> conjugações, <strong>de</strong> um extremo ao outro, à medida que<br />

se vai “materializando” (ou abstraindo) a caracterização (do quase puramente abstracto, ao<br />

quase exclusivamente físico – ou o inverso).<br />

Para sustentar esta i<strong>de</strong>ia, <strong>Lycan</strong> sugere a observação do que apelida <strong>de</strong> “níveis da natureza”.<br />

Dá como exemplo a natureza, vista através da biologia, em que po<strong>de</strong>mos evoluir<br />

infinitamente acima ou abaixo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada caracterização, com maior ou menor<br />

abstracção do fenómeno observado. Um órgão é composto por tecidos, tecidos são compostos<br />

por células, células são constituídas por membranas, núcleos, etc., por <strong>sua</strong> vez estes sistemas<br />

são ainda compostos por sistemas ainda menores, sistemas moleculares, atómicos, sub-<br />

atómicos. Acima do conceito “órgão” temos igualmente uma hierarquia que prossegue até ao<br />

infinito, ou seja, um conjunto <strong>de</strong> órgãos forma um órgão que por <strong>sua</strong> vez juntamente com<br />

outros órgãos vai formar outro órgão ainda maior. Órgãos tais como intestinos, pâncreas,<br />

estômago são constituídos por órgãos mais pequenos (glândulas, células, etc.), mas os<br />

intestinos, pâncreas e estômago formam por <strong>sua</strong> vez algo maior: o órgão digestivo, e assim<br />

sucessivamente.<br />

Existe um nível infinito <strong>de</strong> hierarquias cujas caracterizações são supervenientes umas em<br />

relação às outras. E a caracterização <strong>de</strong> cada nível é sempre efectuada relativamente a outra<br />

adjacente. Uma po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada abstracta em relação a outra inferior, e no entanto ser<br />

consi<strong>de</strong>rada vincadamente física quando comparada com um nível <strong>de</strong> abstracção superior.<br />

Através da concepção <strong>de</strong> inexistência <strong>de</strong> níveis ou hierarquias estanques, <strong>Lycan</strong> preten<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struir o dogma da estabilida<strong>de</strong> da caracterização dos componentes físico e abstracto<br />

intervenientes em <strong>de</strong>terminado fenómeno.<br />

2


Paralelamente à explicação hierárquica dos níveis <strong>de</strong> abstracção, temos a estratégia<br />

explicativa <strong>de</strong> tipo “top down”. É possível encontrar as origens e o mecanismo <strong>de</strong><br />

funcionamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado fenómeno <strong>de</strong>compondo sucessivamente as diversas<br />

hierarquias e levando a investigação até à profundida<strong>de</strong> julgada necessária. Existe portanto a<br />

intuição, segundo esta concepção, <strong>de</strong> que é possível encontrar todas as explicações físicas <strong>de</strong><br />

um fenómeno, à medida que se vão reduzindo os níveis <strong>de</strong> abstracção das caracterizações.<br />

Temos então que, segundo <strong>Lycan</strong>, o abstracto e físico coexistem em todas as situações<br />

<strong>de</strong>scritivas <strong>de</strong> um fenómeno. Do mesmo modo, a <strong>sua</strong> caracterização é relativa, já que mesmo<br />

uma <strong>de</strong>scrição consi<strong>de</strong>rada puramente fisiológica, quando comparada com uma <strong>de</strong>scrição<br />

microfísica do mesmo fenómeno (molecular, atómica ou sub-atómica), po<strong>de</strong> perfeitamente<br />

parecer suficientemente abstracta para ser qualificada até <strong>de</strong> funcional. Por último, adoptando<br />

uma estratégia “top-down”, é possível apreen<strong>de</strong>r tudo o que há para apreen<strong>de</strong>r do fenómeno<br />

físico subjacente ao evento abstracto.<br />

III - Homunculismo<br />

Concluído o processo <strong>de</strong> enfraquecimento e relativização da relação físico/abstracto ou<br />

matéria realizante/evento realizado, <strong>Lycan</strong> dá a conhecer os princípios da <strong>sua</strong> caracterização<br />

<strong>homuncular</strong> do fenómeno mental.<br />

De forma a sustentar a <strong>sua</strong> proposta para o problema mente-corpo (como veremos mais<br />

adiante), necessita <strong>de</strong> argumentos a favor <strong>de</strong> uma concepção modular dos eventos mentais.<br />

Para tal, apoia-se nas <strong>de</strong>scrições oriundas das pesquisas da inteligência artificial, em que<br />

<strong>de</strong>terminadas tarefas pretendidas são sucessivamente <strong>de</strong>compostas em sub-tarefas até serem<br />

reduzidas em tarefas elementares, <strong>de</strong> modo a ser possível máquinas reproduzirem tarefas<br />

relativamente complexas (invertendo o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>composição). Pelas mesmas razões,<br />

estabelece igualmente ligação com os princípios da psicologia cognitiva, segundo a qual os<br />

fenómenos que geram comportamento resultam <strong>de</strong> uma complexa articulação <strong>de</strong> um conjunto<br />

<strong>de</strong> sub-eventos ou fenómenos mentais mais rudimentares.<br />

Como tal, é concebível existir um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> funcionamento da mente segundo uma<br />

organização semelhante a um organograma, sendo possível <strong>de</strong>compor progressivamente cada<br />

tarefa ou evento em esquemas mais elementares <strong>de</strong> funcionamento. O organograma é<br />

caracterizado como sendo uma representação esquemática que i<strong>de</strong>ntifica os componentes<br />

intervenientes, a <strong>sua</strong> colocação relativa e o tipo <strong>de</strong> articulação com outros componentes.<br />

3


Por <strong>sua</strong> vez, cada evento ou sub-evento é <strong>de</strong>scrito como sendo semelhante a uma caixa negra.<br />

Cada caixa negra é por <strong>sua</strong> vez constituída por outro organograma que representa os sub-sub-<br />

eventos mais elementares intervenientes no sub-evento <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado evento. A estas<br />

entida<strong>de</strong>s teóricas <strong>Lycan</strong> apelida <strong>de</strong> homúnculos.<br />

Este <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que, colocando uma equipa <strong>de</strong> homúnculos mais especializados, e menos<br />

sofisticados, por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> cada homúnculo, se consegue até bloquear o fenómeno <strong>de</strong><br />

regressão ao infinito apontado por Gilbert Ryle. Este fenómeno consiste no facto <strong>de</strong>, ao<br />

explicar o comportamento <strong>de</strong> um homúnculo invocando a existência <strong>de</strong> outro(s) homúnculo(s)<br />

no seu interior, se gerar inevitavelmente uma sucessão infinita <strong>de</strong> homúnculos. <strong>Lycan</strong> não<br />

explica exactamente <strong>de</strong> que modo é efectuado esse bloqueio, já que a mesma objecção po<strong>de</strong><br />

ser reformulada <strong>de</strong> modo a questionar a valida<strong>de</strong> da <strong>sua</strong> proposta. Este parece equiparar esta<br />

estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> tipo “top-down” com um dos princípios subjacentes à <strong>sua</strong><br />

proposta <strong>de</strong> “níveis da natureza”, consistente com a existência <strong>de</strong> elementos indivisíveis e<br />

primordiais que estarão na origem <strong>de</strong> qualquer caracterização.<br />

A concepção <strong>homuncular</strong> é ainda reforçada por evidências relacionadas com o envolvimento<br />

<strong>de</strong> processos complexos e híbridos na produção <strong>de</strong> estados <strong>de</strong> dor. Recorrendo a métodos<br />

anestesiantes, é possível manipular a forma como a dor é sentida, nomeadamente o tempo <strong>de</strong><br />

reacção, o tipo e a própria intensida<strong>de</strong> da dor. Tais factos pressupõem que isto se <strong>de</strong>ve à<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bloqueio ou manipulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados módulos que compõem a dor e<br />

como tal, trata-se <strong>de</strong> um forte indício da existência <strong>de</strong> um sistema modular híbrido<br />

dissimulado que origina o fenómeno.<br />

<strong>Lycan</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> assim a existência <strong>de</strong> uma sistema <strong>de</strong> princípio modular subjacente à produção<br />

<strong>de</strong> eventos mecanismos.<br />

III – Teleologia<br />

Devido às <strong>sua</strong>s características <strong>de</strong> atribuição <strong>de</strong> aspectos funcionais à activida<strong>de</strong> mental, os<br />

princípios funcionalistas são facilmente conjugáveis com princípios teleológicos, ou seja,<br />

caracterizações ou <strong>de</strong>scrições que justificam a existência <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado processo justamente<br />

com uma causa final.<br />

O sentido teleológico pretendido por <strong>Lycan</strong> nada tem a ver com fenómenos tais como <strong>de</strong>sejos<br />

ou intenções, sendo estritamente caracterizável em termos evolutivos (do tipo: a dor é um<br />

evento com uma causa final relacionada com o sucesso da sobrevivência da espécie).<br />

O sistema <strong>homuncular</strong> funciona portanto segundo um esquema fortemente teleológico, mas<br />

cuja influência na caracterização varia ao longo dos níveis <strong>de</strong> abstracção da caracterização<br />

4


(um pouco à semelhança do que se verifica com os “níveis da natureza”). Este nível <strong>de</strong><br />

teleologia progressiva po<strong>de</strong> ser ilustrada pelo seguinte exemplo, aplicado a um objecto: a<br />

mesma fracção <strong>de</strong> espaço-tempo po<strong>de</strong> ser sucessivamente ocupada por uma colecção <strong>de</strong><br />

moléculas, um pedaço <strong>de</strong> matéria dura, uma peça <strong>de</strong> metal, uma chave, um <strong>de</strong>strancador <strong>de</strong><br />

portas, uma forma <strong>de</strong> conseguir entrar num quarto <strong>de</strong> hotel, um facilitador <strong>de</strong> incesto, um<br />

<strong>de</strong>struidor <strong>de</strong> moral.<br />

Constata-se então que num extremo temos uma caracterização extremamente fisicalista do<br />

pedaço <strong>de</strong> matéria inerte, e no outro extremo, uma caracterização fortemente teleológica. E<br />

sendo que não é possível estabelecer com rigor o ponto em que a caracterização <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

abstracta ou teleológica e passa a ser puramente materialista, conclui-se que ambos os<br />

conceitos estão sempre presentes, variando no entanto a <strong>sua</strong> participação ou incidência nas<br />

caracterizações (numa relação <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> inversa), ao longo dos diferentes níveis<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição.<br />

O princípio do exemplo anterior po<strong>de</strong> perfeitamente ser aplicado à caracterização psicológica<br />

<strong>de</strong> eventos mentais. Tomemos como exemplo o processo <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> faces <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>terminada criatura (todo o processo <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> informação, análise, comparação, etc.).<br />

A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as caracterizações puramente teleológicas (reconhecer, analisar, comparar)<br />

até às menos teleológicas e mais fisicalistas (foto-sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> substâncias, activida<strong>de</strong><br />

celular, comprimentos <strong>de</strong> onda), não <strong>de</strong>ixa nunca <strong>de</strong> ser teleológica, embora se atinjam níveis<br />

baixíssimos <strong>de</strong> teleologia quando se <strong>de</strong>screvem mecanismos quase exclusivamente físicos.<br />

É por esta razão que o mental parece ser tão distinto do físico, apesar <strong>de</strong> ser ontologicamente<br />

uma e a mesma coisa. Não existe portanto distinção rígida entre o mental, o físico ou químico.<br />

O físico ou químico só existe por oposição ao mental.<br />

<strong>Lycan</strong> resolve <strong>de</strong>sta forma o problema da existência das características sobrevenientes e da<br />

<strong>sua</strong> relação com o físico. Através da atribuição <strong>de</strong> níveis teleológicos aos diferentes estágios<br />

<strong>de</strong> um fenómeno, preten<strong>de</strong>-se assim, além <strong>de</strong> esbater a distinção abstracto/físico, remover o<br />

aparente aspecto misterioso que envolve a razão da existência <strong>de</strong> fenómenos e eventos<br />

mentais. Os nossos estados mentais fazem mais sentido quando se invoca uma causa final<br />

para a <strong>sua</strong> existência. Causa essa que se encontra no extremo da abstracção da caracterização,<br />

e que será facilmente sustentada por razões relacionadas com a evolução natural das espécies.<br />

E com esta atribuição à “função” dos eventos se procura igualmente reforçar a valida<strong>de</strong> do<br />

funcionalismo.<br />

5


IV – Bloqueio dos argumentos habituais contra o funcionalismo<br />

<strong>Lycan</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a <strong>sua</strong> abordagem <strong>homuncular</strong> e teleológica do funcionalismo anula as<br />

objecções habituais ao funcionalismo, do tipo “cabeça <strong>de</strong> homúnculos” ou “nação chinesa”.<br />

O argumento conhecido por “cabeça <strong>de</strong> homúnculos” consiste no seguinte: um corpo e cabeça<br />

exactamente iguais aos nossos, mas em cujo interior os órgãos sensoriais estão ligado a um<br />

sistema <strong>de</strong> luzes. No interior da cabeça existe um grupo <strong>de</strong> pequenos homens. Cada um<br />

possui uma tarefa, que é a <strong>de</strong> colocar <strong>de</strong>terminados mecanismos <strong>de</strong> output em funcionamento,<br />

<strong>de</strong> acordo com as instruções recebidas pelo sistema <strong>de</strong> inputs e conforme um plano<br />

previamente <strong>de</strong>finido. Consegue-se assim gerar um comportamento da criatura equivalente ao<br />

comportamento <strong>de</strong> uma criatura convencional. Neste caso teremos uma criatura com um<br />

comportamento idêntico a outra criatura convencional, mas cuja fisiologia é completamente<br />

distinta. Os <strong>de</strong>tractores do funcionalismo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que não existe ocorrência <strong>de</strong> qualia na<br />

primeira, apesar do comportamento, e como tal não é aceitável uma concepção funcionalista<br />

do mental, por não conter a forma como é sentida a activida<strong>de</strong> mental.<br />

Por outro lado, o exemplo da “nação chinesa” consiste no seguinte: se tivermos um bilião <strong>de</strong><br />

chineses comunicando via rádio (nos dois sentidos) entre eles, teremos um esquema <strong>de</strong><br />

ligações semelhante ao princípio <strong>de</strong> funcionamento neuronal do cérebro. No entanto, verifica-<br />

-se neste caso que não é <strong>de</strong> modo algum gerada mente.<br />

Opositores como Ned Block <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que se não é concebível que os exemplos da “cabeça<br />

<strong>de</strong> homúnculo” e “nação chinesa” produzam qualia e consciência, então o funcionalismo é<br />

falso, porque não leva em conta estes fenómenos (que é consen<strong>sua</strong>l existirem <strong>de</strong> facto) nas<br />

<strong>sua</strong>s <strong>de</strong>scrições. É assim supostamente <strong>de</strong>monstrado o excessivo e fatal liberalismo da<br />

doutrina funcionalista e a inconsistência <strong>de</strong>sta com a existência <strong>de</strong> objectos qualitativos.<br />

Vejamos agora <strong>de</strong> que modo a concepção <strong>de</strong>fendida por <strong>Lycan</strong> anula estas objecções baseadas<br />

na existência <strong>de</strong> qualia. Este <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que é a <strong>de</strong>satenção em relação aos níveis e ao carácter<br />

progressivo da caracterização dos fenómenos, que gera a ilusão <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong><br />

argumentos, já que estas caracterizações se encontram claramente no extremo abstracto. No<br />

seguimento <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ia, é introduzido o fenómeno que <strong>Lycan</strong> apelida <strong>de</strong> “cegueira <strong>de</strong> Gestalt”<br />

que funciona segundo o seguinte princípio: se tomarmos um neurónio como um pedaço <strong>de</strong><br />

matéria amorfa que nada mais faz do que ser condutor <strong>de</strong> corrente eléctrica, visto assim, não é<br />

concebível que este alguma vez possa produzir qualia. A existência <strong>de</strong>sta particularida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ve-se ao factor da escala <strong>de</strong> observação do fenómeno. Supondo que sejamos uma pessoa<br />

minúscula com 1/10 do tamanho <strong>de</strong> uma molécula, localizada no interior do cérebro <strong>de</strong> um<br />

indivíduo, toda a activida<strong>de</strong> física ou molecular a que assistiríamos dificilmente seria<br />

6


entendida como um fenómeno <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> qualia resultante, por exemplo, do facto do<br />

hospe<strong>de</strong>iro estar nesse momento exacto em frente a uma pare<strong>de</strong> vermelha.<br />

Do mesmo modo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que a experiência da “nação chinesa” po<strong>de</strong> efectivamente produzir<br />

algo comparável com consciência parece absurdo. Mas talvez assim seja, à semelhança do<br />

exemplo anterior, porque sejamos simplesmente <strong>de</strong>masiado pequenos para conseguirmos uma<br />

visão global do fenómeno, dos seus inputs e outputs e das <strong>sua</strong>s potencialida<strong>de</strong>s.<br />

Voltando à experiência anterior, se saíssemos da cabeça do agente e fôssemos aumentando <strong>de</strong><br />

tamanho, a dado momento começaríamos a constatar a presença do fenómeno mental<br />

resultante da sensação do agente estar sujeito a uma experiência cromática intensa.<br />

Ao atribuir-se a totalida<strong>de</strong> das atenções à micro-activida<strong>de</strong> física ou <strong>homuncular</strong>, <strong>de</strong>spreza-se<br />

totalmente a visão <strong>de</strong> conjunto. Deste modo, <strong>Lycan</strong> contorna engenhosamente este tipo <strong>de</strong><br />

objecções. A ilusão <strong>de</strong> pertinência <strong>de</strong>ssas objecções <strong>de</strong>ve-se a esse equívoco <strong>de</strong> tomarmos a<br />

parte pelo todo. E a aparente característica inacessível do fenómeno <strong>de</strong> qualia resi<strong>de</strong> no facto<br />

<strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> uma caracterização extremista do acontecimento, profundamente abstracta.<br />

É concebível que se aplicarmos uma forte dose <strong>de</strong> teleologia, reduz-se a tentação <strong>de</strong><br />

consi<strong>de</strong>rar os exemplos <strong>de</strong> block como não conscientes. Os qualia po<strong>de</strong>m existir <strong>de</strong> facto<br />

nestes casos, já que se tratam <strong>de</strong> fenómenos sobrevenientes, que só surgem aquando <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>scrição altamente abstracta e teleológica do acontecimento.<br />

A caracterização dos inputs/outputs, essenciais à tese funcionalista, é outro dos pontos frágeis<br />

da concepção, prontamente aproveitado pelos seus <strong>de</strong>tractores. Existem, neste aspecto,<br />

acusações pertinentes <strong>de</strong> excessivo liberalismo (por oposição ao chauvinismo típico da teoria<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>).<br />

Os inputs e outputs não po<strong>de</strong>m ser exclusivamente caracterizados em termos consistentes com<br />

as características humanas, mas por outro lado, não po<strong>de</strong>m igualmente ser <strong>de</strong>finidos em<br />

termos abstractos vagos (correndo o risco <strong>de</strong> contemplar ecossistemas ou sistemas<br />

económicos).<br />

Neste aspecto, <strong>Lycan</strong> volta à carga contra o bi-nivelamento ostentado pelos críticos, ou seja,<br />

só são dadas duas opções ao funcionalismo: <strong>de</strong>scrições profundamente abstractas ou<br />

exclusivamente fisiológicas. No seguimento do que foi dito acerca dos níveis da natureza e da<br />

teleologia <strong>de</strong> fenómenos, <strong>Lycan</strong> insiste que não existem apenas duas opções. Existe uma<br />

infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> caracterizações entre os extremos <strong>de</strong>finidos. Certamente que entre estas<br />

existirão níveis intermédios <strong>de</strong> abstracção, que excluam a economia boliviana mas que sejam<br />

consistentes com seres tais como marcianos, moluscos ou humanos.<br />

7


E mesmo a caracterização abstracta dos inputs/outputs não está <strong>de</strong> forma alguma num dos<br />

extremos, já que é concebível existirem conceitos ainda mais abstractos do que uma<br />

caracterização abstracta dos inputs/outputs – tais como “ocorrência”, “acontecimento”, etc…<br />

(verificando-se no entanto que lidamos com estes termos sem gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s).<br />

A estratégia seguida passa ainda pelo enfraquecimento da necessida<strong>de</strong> da caracterização dos<br />

inputs/outputs em sistemas mentais e pela tentativa <strong>de</strong> caracterização <strong>de</strong>stes em termos <strong>de</strong><br />

estrutura semântica. Pela <strong>sua</strong> extensão e complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste assunto, a <strong>sua</strong> exposição ficará<br />

para uma próxima apresentação, assim como o aprofundamento dos argumentos contra as<br />

objecções baseadas na existência <strong>de</strong> qualia.<br />

Referências<br />

<strong>Lycan</strong>, <strong>William</strong> G., Consciousness, Cambridge, MIT Press, 1987<br />

<strong>Lycan</strong>, <strong>William</strong> G., Mind and Cognition, Oxford, Basil Blackwell, 1990<br />

Maslin, K.T., An Introduction to the Philosophy of Mind, Oxford, Blackwell Publishers,<br />

2001, pp. 318-325.<br />

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