De quando é preciso saber perder... o paciente Hirschhorn Gheller ...
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INTRODUÇÃO<br />
<strong>De</strong> <strong>quando</strong> <strong>é</strong> <strong>preciso</strong> <strong>saber</strong> <strong>perder</strong>... o <strong>paciente</strong><br />
1<br />
<strong>Hirschhorn</strong> <strong>Gheller</strong>, Julio<br />
Atendi Cristiano durante treze anos, período em que aspectos importantes de<br />
onipotência, idealização, defesas maníacas, ressentimento e inveja foram<br />
trabalhados, embora obviamente não tenham sido erradicados de sua<br />
personalidade.<br />
Portava o diagnóstico psiquiátrico de transtorno bipolar e <strong>quando</strong> começou a<br />
análise já estava devidamente controlado por medicação. A interrupção do<br />
processo analítico se deu numa <strong>é</strong>poca em que seu segundo casamento se<br />
estabilizara. Apesar de ainda ostentar plenas condições para trabalhar deixou<br />
de lado qualquer tipo de atividade profissional, preferindo aproveitar<br />
integralmente a aposentadoria. Retirou-se dos nossos encontros como quem<br />
quisesse se aposentar por completo, at<strong>é</strong> de pensar.<br />
REENCONTRO, REINÍCIO da ANÁLISE e SOFRIMENTO PSÍQUICO<br />
Sete anos depois voltou ao meu consultório. Tinha sido abandonado pela<br />
mulher após quinze anos de relacionamento, o que desencadeou novo<br />
episódio depressivo. A perda da companheira, a quem vinha se dedicando com<br />
exclusividade, representava um golpe brutal. Abdicara de qualquer projeto<br />
pessoal para cuidar de sua jovem amada. Incentivara e auxiliara Vitória,<br />
funcionando como um verdadeiro mecenas.<br />
Inconsolável, não conseguia entender o motivo da súbita decisão, comunicada<br />
como sendo fruto de infelicidade. Para quem se dedicara tanto – montando um<br />
apartamento, custeando despesas da casa, cursos, viagens, carro, ajudando<br />
nos estudos de pós-graduação e depois no estabelecimento profissional da<br />
jovem – a partida dela representava uma tremenda ingratidão.
Ainda esperançoso por uma reviravolta insistiu em <strong>saber</strong> de suas razões, at<strong>é</strong><br />
que ela confessou ter se envolvido com outro homem no ano anterior. A<br />
revelação foi um novo choque e significou uma terrível ferida narcísica.<br />
Tomado de repulsa, resolveu se separar, tratando logo de vender o<br />
apartamento, dividir os bens, mudar-se e tentar se desligar de Vitória. Não<br />
suportava mais dormir na cama do casal, nem viver no espaço que dividiram.<br />
Num rompante de fúria jogou fora fotos, bilhetes, cartas, registros de um tempo<br />
mais feliz.<br />
As tratativas legais e práticas para concretizar a separação o mantiveram<br />
ocupado e ativo por alguns meses, tempo suficiente para que Vitória chegasse<br />
a sinalizar o seu arrependimento, acenando com a possibilidade de<br />
reconciliação. Para ele, no entanto, a traição era imperdoável. Nunca mais<br />
poderia confiar nela.<br />
Para piorar a situação começou a apresentar intensos tremores,<br />
diagnosticados como efeito colateral do lítio, rem<strong>é</strong>dio que tomava há trinta anos<br />
e que estabilizara o seu quadro de oscilações entre depressão e mania. Foi<br />
necessário alterar o seu esquema medicamentoso. Nenhum dos novos<br />
esquemas teve muito êxito. Voltou a oscilar de um polo a outro com frequência.<br />
Na análise debatíamo-nos com o aspecto mais profundo de sua melancolia,<br />
evidenciado pela incapacidade de criar alternativas para se reorganizar na vida.<br />
Minhas tentativas de abrir espaço mental para investimento eram infrutíferas.<br />
Num período de relativa melhora tomou as providências para internar um irmão<br />
doente que, apesar dos esforços dos m<strong>é</strong>dicos, veio a falecer. A perda do irmão<br />
foi mais um golpe. Atentou para a questão da passagem do tempo. Afinal,<br />
Vitória talvez tivesse fugido para não conviver com o seu envelhecimento.<br />
<strong>De</strong>pois de instalado na nova casa teve que se haver com o vazio e a<br />
dificuldade de encontrar objetivos que o mobilizassem. Ainda rememorava os<br />
tempos em que conhecera Vitória. Era casado, já com filhos na faculdade. Ela<br />
era rec<strong>é</strong>m-formada e tamb<strong>é</strong>m casada. Conheceram-se e apaixonaram-se<br />
arrebatadoramente, iniciando um tórrido relacionamento extraconjugal. O<br />
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marido dela descobriu o caso depois de um ano. <strong>De</strong>sencadearam-se então as<br />
duas separações.<br />
Cristiano vivera antes um casamento tedioso e sem sentimento amoroso.<br />
Al<strong>é</strong>m disso, tinha sofrido dissabores e desilusões nas suas aspirações a uma<br />
carreira universitária. Juntar-se a uma mulher jovem e bonita representava um<br />
triunfo compensador para seus sentimentos de frustração. Agora ele<br />
experimentava as dores de ser rejeitado e substituído.<br />
UM ESBOÇO de RECUPERAÇÃO e RECAÍDA<br />
Resolveu aprender a fazer uso de computador, instrumento que desconhecia<br />
completamente at<strong>é</strong> então. Enfim se interessava por uma nova atividade.<br />
Começou a se comunicar com amigos e colegas antigos, enviando e-mails.<br />
Uma colega do tempo da faculdade, por quem nutrira uma paixão platônica, foi<br />
a eleita para comunicações mais frequentes. À medida que a intimidade<br />
crescia, trocavam músicas, poesias e confidências. Ela vivia com o marido sob<br />
o mesmo teto, mas se dizia separada de fato. Cristiano começou a se<br />
entusiasmar, fantasiando com a expectativa de um affair. Lia os e-mails em<br />
sessão, como se quisesse o meu apoio para seus esforços de conquista.<br />
Ansioso para encontrá-la, cercou-a de mensagens românticas.<br />
Não percebeu que ela não era tão direta nas respostas, um provável sinal de<br />
ambivalência. Excitado, cobrava mais transparência. Certo dia enviou um e-<br />
mail e não obteve resposta rápida. Im<strong>paciente</strong>, ligou para a casa da amiga e<br />
conversou com sua filha, desrespeitando um trato pelo qual telefonemas<br />
seriam evitados. Foi a conta para que ela pusesse fim às suas pretensões.<br />
<strong>De</strong>monstrando frieza e contrariedade, disse-lhe com todas as letras que<br />
preferia manter a relação no nível de amizade.<br />
Novamente rejeitado, achando que ela o havia incentivado para depois recuar,<br />
Cristiano encheu-se de ódio e cortou o relacionamento com ela.<br />
A partir de então foi novamente deprimindo, perdendo o apetite, o sono e o<br />
interesse por qualquer coisa. Começou a emagrecer a olhos vistos. Passava os<br />
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dias remoendo o passado, sem energia para nada. Nas sessões só falava do<br />
seu mal-estar, da falta de recursos para custear seus tratamentos, do receio de<br />
não mais conseguir melhorar. Minhas falas não geravam movimento mental.<br />
Relembrei dos tempos anteriores da análise em que ele cunhou uma frase que<br />
representava o modelo de sua relação com os outros, <strong>quando</strong> tocado por<br />
insucessos profissionais e amorosos: Vomito para o mundo! Assim expressava<br />
um misto de frustração, raiva, ressentimento e inveja. Seu ódio o colocava<br />
numa posição de pretensa autossuficiência, em que não precisaria de nada,<br />
nem de ningu<strong>é</strong>m. Este seria, segundo Segal (1988), um exemplo de operação<br />
da pulsão de morte, veiculada pela inveja.<br />
Temi que Cristiano quisesse vomitar definitivamente para o mundo. Era<br />
evidente a retração de investimento, característica da função desobjetalizante<br />
do narcisismo negativo postulado por Green (2008).<br />
A atitude predominante era simbolizada por ficar sentado e imóvel durante<br />
horas. Parecia aguardar passivamente pelo fim. Eu sabia que ele estava<br />
tomando uma alta dose de antidepressivos, mas a resposta aos rem<strong>é</strong>dios era<br />
precária. Apático, escutava minhas palavras e permanecia em silêncio, sem<br />
conseguir associar. A postura, a fala lenta e monocórdia e a falta de fluência do<br />
pensamento davam a impressão de que ele estava submetido a forças<br />
provenientes de um inconsciente soterrado, sede de inscrições de experiências<br />
tão primitivas que não alcançam representação (Marucco, 2007).<br />
As identificações projetivas de teor mortífero me afetavam. Impotente, eu me<br />
sentia pressionado a dizer algo que o ajudasse a sair do nó emocional em que<br />
se encontrava. Conhecendo o seu aspecto mais violento, comecei a temer que<br />
ele pudesse sair do plano da autodestrutividade passiva para a ativa. Seu<br />
discurso transmitia a sensação do declínio irreversível, que o deixava arrasado.<br />
Uma hipótese foi se configurando em minha mente. Os tremores haviam se<br />
intensificado novamente, sua mímica era pobre e a marcha dificultosa. Supus<br />
que um problema orgânico estivesse se instalando. Talvez um quadro de<br />
Parkinson, enfermidade que pode cursar com um componente de depressão,<br />
merecesse uma avaliação especializada. Assim sendo, pedi – pela primeira vez<br />
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desde o início de nosso trabalho – para falar com seu filho. Falei com ele por<br />
telefone e diante de Cristiano. Sugeri uma consulta com neurologista e que os<br />
filhos ficassem em contato mais próximo com ele.<br />
Esta foi nossa última sessão. Seu filho o levou para uma temporada no interior,<br />
onde poderia ter companhia constante e boa alimentação. <strong>De</strong>pois de um mês,<br />
sem melhora relevante, foi trazido de volta e encaminhado ao neurologista.<br />
Falou comigo após a consulta. O diagnóstico de Parkinson tinha sido realmente<br />
confirmado. Abriu mão dos horários comigo, dizendo que não teria condições<br />
de vir mais. <strong>De</strong>ixei-o à vontade para voltar <strong>quando</strong> pudesse.<br />
Perguntei-me sobre o que o impedia de frequentar a análise, justo <strong>quando</strong><br />
poderia estar mais fragilizado. Minha conversa com a família pode tê-lo<br />
perturbado, fazendo-o entrar em contato com a perspectiva de dependência.<br />
Esta nova realidade talvez fosse muito difícil de aceitar e minha atitude a<br />
evidenciou.<br />
COMENTÁRIOS FINAIS<br />
Penso ter compreendido as ideias de Bion em relação aos conceitos de<br />
capacidade negativa e sem memória e sem desejo (Zimerman, 2004). Tento<br />
evitar que lembranças anteriores e conhecimentos teóricos interfiram no<br />
momento da sessão. Procuro estar disponível para o que surge, evitando<br />
“atropelar” os <strong>paciente</strong>s com a pressa em achar respostas. Não faço<br />
expectativas de que eles tomem determinado direcionamento na vida, nem que<br />
me gratifiquem de modo especial.<br />
Como analista, contudo, considero fundamental o interesse pelo analisando.<br />
Não sou indiferente à sua sorte. <strong>De</strong>sta maneira, <strong>quando</strong> a conjectura sobre a<br />
enfermidade neurológica tomou corpo para mim, senti necessidade de falar<br />
com o filho de Cristiano. Ainda mais, por recear que ele pudesse desenvolver<br />
ideias suicidas. Enfim, eu me deparava com o limite para minhas possibilidades<br />
analíticas. Não sei se ele voltará. Só espero que não entregue os pontos antes<br />
da hora e que possa lutar para sair do fundo do poço.<br />
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RESUMO<br />
Um longo percurso de análise chega a um momento crucial. O analista, diante<br />
do intenso sofrimento do <strong>paciente</strong> e em vista da pouca efetividade de suas<br />
falas, toma a direção que lhe parece necessária para ajudá-lo. O resultado da<br />
intervenção acaba sendo a interrupção do processo, mas tamb<strong>é</strong>m abre novas<br />
possibilidades terapêuticas, um fio de esperança em um quadro que tendia à<br />
estagnação. O texto apresenta um trabalho de elaboração a posteriori, que<br />
serve de apoio ao luto do analista pela perda do <strong>paciente</strong>. Trata da implacável<br />
passagem do tempo, do envelhecimento e adoecimento e de como se refletem<br />
no psiquismo. O conflito do analista diante dos limites de sua eficácia<br />
terapêutica tamb<strong>é</strong>m <strong>é</strong> enfocado. Estes limites se acentuam à medida que se<br />
depara com manifestações clínicas que sugerem a ação da pulsão de morte,<br />
narcisismo negativo e de uma esp<strong>é</strong>cie de inconsciente soterrado.<br />
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