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lasar segall e seu conceito de expressionismo - Unicamp

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LASAR SEGALL E SEU CONCEITO DE EXPRESSI-<br />

ONISMO: DESDOBRAMENTOS NA EUROPA E NO<br />

BRASIL<br />

Cláudia Valladão <strong>de</strong> Mattos*<br />

Ao imigrar para o Brasil no final <strong>de</strong> 1923, Lasar Segall<br />

passou a ocupar uma posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ntro do<br />

cenário da arte mo<strong>de</strong>rna em São Paulo. Ele foi recebido<br />

como um representante “legítimo” das vanguardas<br />

européias e nessa posição procurou exercer, paralelo à sua<br />

pintura, um papel pedagógico junto ao público. Em 1924,<br />

o senador Freitas Valle, que o havia ajudado a realizar suas<br />

duas exposições em 1912/13 no Brasil, o convida a<br />

ministrar duas palestras sobre arte mo<strong>de</strong>rna em sua<br />

residência na Villa Kyrial. Essas palestras, que receberam<br />

os títulos <strong>de</strong> “Sobre Arte” e “O Expressionismo” foram<br />

publicadas posteriormente na Revista Brasil e no Estado <strong>de</strong><br />

S. Paulo, respectivamente, 1 e são uma fonte importante<br />

* Claudia Valladão <strong>de</strong> Mattos é doutora em História da Arte pela Universida<strong>de</strong> Livre <strong>de</strong><br />

Berlim e pós-doutora pelo Instituto Courtauld <strong>de</strong> Londres. É autora dos livros Lasar Segall, São<br />

Paulo, EDUSP 1996; Entre Quadros e Esculturas. Wesley e os Fundadores da Escola Brasil, São Paulo,<br />

Discurso Editorial, 1997; O Brado do Ipiranga, São Paulo, EDUSP, 1999 (em co-autoria com<br />

Cecîlia Salles Oliveira) e Expressionismo e Judaísmo. O Período Alemão <strong>de</strong> Lasar Segall (1906-1923),<br />

São Paulo, Perspectiva, 2000. Tem também diversos artigos publicados, entre eles dois textos<br />

<strong>de</strong>dicados ao tema do <strong>expressionismo</strong>: “Histórico do Expressionismo” e “A escultura<br />

expressionista”, in J. Guinsburg (org.), O <strong>expressionismo</strong>, São Paulo, 2002. É professora <strong>de</strong> História<br />

da Arte do Departamento <strong>de</strong> Artes Plásticas do Instituto <strong>de</strong> Artes da <strong>Unicamp</strong> e participa do<br />

Projeto Temático Programa Cicognara e a constituição da tradição clássica, da Fapesp.<br />

1 O texto “Sobre Arte” foi publicado pela primeira vez na Revista Brasil, São Paulo, n. 25 p. 102,<br />

jun. 1924. Enquanto o texto “O Expressionismo” permaneceu inédito até 1958, quando foi<br />

publicado no suplemento literário do jornal O Estado <strong>de</strong> S. Paulo <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1958. Os<br />

dois textos foram aqui citados da sua reedição recente na coletânea Lasar Segall . Textos, Documentos<br />

e Exposições, Mu<strong>seu</strong> Lasar Segall, São Paulo, 1993.<br />

1


para a compreensão do pensamento <strong>de</strong> Lasar Segall. Além<br />

<strong>de</strong>ste material, outros dois textos, escritos por volta <strong>de</strong><br />

1920, dão testemunho das idéias <strong>de</strong> Segall neste período.<br />

O presente trabalho visa realizar uma interpretação<br />

<strong>de</strong>sses textos <strong>de</strong> forma a explicitar a leitura singular que<br />

Lasar Segall fez do Expressionismo em sua obra. Tal leitura<br />

é marcada pelo repúdio aos <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong> cunho<br />

nacionalista do movimento, nos anos que suce<strong>de</strong>ram<br />

o pós-Primeira Guerra na Alemanha. Neste período, <strong>de</strong>senvolveu-se,<br />

entre uma parcela da vanguarda alemã, uma<br />

leitura conservadora do Expressionismo, fundamentada<br />

na idéia <strong>de</strong> “espírito alemão” (<strong>de</strong>utsche Geist) e manifesta <strong>de</strong><br />

forma particularmente evi<strong>de</strong>nte no elogio <strong>de</strong>sses artistas<br />

ao Gótico como arte essencialmente alemã e aparentada<br />

ao Expressionismo. Para Lasar Segall, um artista ju<strong>de</strong>u <strong>de</strong><br />

origem russa, tal compreensão do movimento<br />

expressionista só po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rada equivocada e ele<br />

pôs-se a lutar por uma <strong>de</strong>finição universalista do termo. A<br />

análise <strong>de</strong>talhada dos textos <strong>de</strong> Segall nos parece um exercício<br />

particularmente rico, pois nos permite revelar uma<br />

dimensão política em sua produção pictórica anterior às<br />

gran<strong>de</strong>s representações ligadas ao tema da Segunda Guerra<br />

Mundial, complementando as leituras mais “psicológicas”<br />

que costumam marcar a recepção da obra do artista<br />

<strong>de</strong>ste período.<br />

De forma geral, não reconhecemos uma “obra teórica”<br />

<strong>de</strong> Lasar Segall no sentido próprio do termo. Suas<br />

reflexões estéticas espelham em gran<strong>de</strong> parte idéias amplamente<br />

aceitas entre os expressionistas. Elas fundamentam-se<br />

basicamente nas teorias <strong>de</strong> Wilhelm Worringer 2 e<br />

principalmente <strong>de</strong> Wassily Kandinsky, cujos textos “Über<br />

2 Sobre a recepção do pensamento <strong>de</strong> Wilhelm Worringer entre os expressionistas ver<br />

BUSHART, Magdalena, Der Geist <strong>de</strong>r Gotik und die expressionistische Kunst, Munique, 1990.<br />

2


das Geistige in <strong>de</strong>r Kunst” e “Über die Formfrage”, ele colocava<br />

acima <strong>de</strong> sua pintura. Escreve Segall no texto “O<br />

Expressionismo”:<br />

“[...] as obras literárias <strong>de</strong> Kandinsky, ‘O Espiritual na Arte’ e ‘O<br />

Problema <strong>de</strong> Formas’ (sic), têm uma importância extraordinária.<br />

As suas palavras, que possuem um caráter científico, são, na minha<br />

opinião, mais fortes do que suas obras <strong>de</strong> pintura.” 3<br />

O texto “Sobre Arte”, evi<strong>de</strong>ncia a apropriação que<br />

Segall faz da concepção dualista <strong>de</strong> Worringer, que via no<br />

“naturalismo”, por um lado, e na “abstração”, por outro,<br />

as duas formas básicas <strong>de</strong> expressão da relação do Homem<br />

com o mundo através da arte. Da mesma forma que<br />

para Worringer, também para Segall o “naturalismo”, ou<br />

melhor, o impulso <strong>de</strong> copiar as formas da natureza, nasceria<br />

<strong>de</strong> uma relação harmônica com o mundo, enquanto<br />

que a “abstração” <strong>de</strong>rivaria do temor e da angústia diante<br />

dos po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>sconhecidos da mesma, levando ao recolhimento<br />

e à aspiração a uma situação estável, eterna e<br />

imutável. Diz Segall:<br />

“Nas épocas que possuem um profundo sentimento do mundo e<br />

do inconcebível do ser, a arte é metafísica e não óptica. Em épocas<br />

quando domina uma concepção racionalista do mundo, um ponto<br />

<strong>de</strong> vista materialista, a arte torna-se óptica. Nas primeiras, há o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> livrar-se do jugo da terra, a se<strong>de</strong> do suprasensível, a<br />

tendência à abstração; nas segundas, o sentimento <strong>de</strong> satisfação do<br />

mundo, a tendência ao naturalismo.” 4<br />

Seguindo o esquema <strong>de</strong> Worringer, Segall opõe em<br />

seguida no texto a arte “das gran<strong>de</strong>s épocas” - arte dos<br />

primitivos (arte negra), arte dos egípcios, arte bizantina -<br />

às épocas <strong>de</strong> “<strong>de</strong>cadência” - arte grega, Renascimento e<br />

3 SEGALL, Lasar “O Expressionismo”, Lasar Segall Textos, Depoimentos e Exposições, op.cit., p. 39.<br />

4 SEGALL, Lasar, “Sobre Arte”, I<strong>de</strong>m, p. 31.<br />

3


todas as manifestações artísticas que se seguiram, até o<br />

Impressionismo - , filiando finalmente a arte mo<strong>de</strong>rna 5 à<br />

primeira, com as palavras:<br />

“De repente compreen<strong>de</strong>u-se a impotência da arte durante muitos<br />

e muitos séculos. Dominou-se o sentimento <strong>de</strong> medo do largo e<br />

profundo abismo que se estendia entre nós e as gran<strong>de</strong>s épocas e,<br />

<strong>de</strong> repente, encaramos as obras <strong>de</strong> arte primitivas, dos egípcios,<br />

bizantinos, da Ásia Oriental, arte medieval, com um sentimento <strong>de</strong><br />

um parentesco interior.” 6<br />

De uma forma geral, como já dissemos, a linha <strong>de</strong><br />

pensamento <strong>de</strong> Segall sintoniza-se com as formulações<br />

teóricas típicas do Expressionismo. No entanto, em um<br />

ponto central Segall distancia-se radicalmente das posições<br />

<strong>de</strong>fendidas pela maioria dos artistas <strong>de</strong> sua geração:<br />

em sua avaliação do Gótico. Diferentemente <strong>de</strong>sses, que<br />

viam no Gótico um mo<strong>de</strong>lo para a arte expressionista,<br />

Segall <strong>de</strong>scartava-o como uma forma fracassada <strong>de</strong> expressão<br />

do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abstração:<br />

“A arte gótica, embora procurasse as mesmas alturas que as épocas<br />

prece<strong>de</strong>ntes, ficou longe <strong>de</strong> atingir o mesmo grau. Falta-lhe o<br />

sentimento <strong>de</strong> uma forte necessida<strong>de</strong> interior. A técnica domina a<br />

forma, há muita coisa supérflua. Falta uma gran<strong>de</strong> construção<br />

concentrada. Falta tensão. A arte per<strong>de</strong>-se aqui em coisas secundárias.<br />

O dualismo que, na criação das gran<strong>de</strong>s épocas, se resolvia em<br />

unida<strong>de</strong>, aqui suprimiu a concentração.” 7<br />

Por trás <strong>de</strong>sta recepção diferenciada que Segall faz do<br />

5 Como Bushart procura <strong>de</strong>monstrar, Worringer incorpora uma análise das vanguardas em <strong>seu</strong><br />

sistema teórico apenas após 1911. Em Abstraktion und Einfühlung e Formprobelm <strong>de</strong>r Gotik, ele<br />

ainda <strong>de</strong>positava a esperança <strong>de</strong> um renascimento do espírito "Gótico" na obra <strong>de</strong> Hans von<br />

Marées e Adolf Hil<strong>de</strong>brand. Cf. BUSHARDT, op. cit., pp. 44-50.<br />

6 SEGALL, Lasar, “Sobre Arte” p. 35. Como veremos mais adiante no texto, esta idéia <strong>de</strong> uma<br />

ligação da arte mo<strong>de</strong>rna com a “arte das gran<strong>de</strong>s épocas”, entre as quais, para Segall, não se<br />

encontra o Gótico, é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para a <strong>de</strong>finição que Segall atribuiria ao <strong>conceito</strong><br />

<strong>de</strong> “Expressionismo”.<br />

7 I<strong>de</strong>m, p. 33.<br />

4


Gótico, revela-se sua profunda divergência em relação às<br />

posições teóricas <strong>de</strong> inspiração nacionalista freqüentemente<br />

<strong>de</strong>fendidas pelos expressionistas do pós-guerra e aproxima-o,<br />

em certos aspectos, das posições internacionalistas<br />

da primeira geração expressionista, especialmente das idéias<br />

<strong>de</strong> Kandinsky e dos artistas do Der Blaue Reiter.<br />

Magdalena Bushardt em <strong>seu</strong> livro Der Geist <strong>de</strong>r Gotik und<br />

die Expressionistische Kunst (O Espírito Gótico e a Arte<br />

Expressionista), procurou acompanhar o processo <strong>de</strong> apropriação<br />

das idéias <strong>de</strong> Worringer pelos expressionistas, mostrando-nos<br />

a transformação que elas sofreram entre 1908<br />

(data da primeira edição <strong>de</strong> Abstraktion und Einfühlung) e 1925,<br />

ao serem adaptadas para uma fundamentação teórica da arte<br />

expressionista. Segundo a autora, existiriam basicamente duas<br />

tendências interpretativas que representariam a recepção <strong>de</strong>ssas<br />

idéias, antes e após o início da Primeira Guerra. Por um<br />

lado, uma concepção mais “internacional” do<br />

Expressionismo, e, por outro, uma interpretação “racista” e<br />

“nacionalista” do mesmo. Diz Bushardt:<br />

“Os representantes da concepção internacionalista compreendiam<br />

o <strong>conceito</strong> <strong>de</strong> arte expressiva, o impulso à abstração e a uma visão<br />

espiritualizada do mundo, primeiramente como categorias supratemporais<br />

e supra-nacionais, que ligavam o Expressionismo a<br />

diferentes épocas e povos. Eles negavam-se expressamente a<br />

estabelecer uma ligação concreta com algum ponto da História. [...]<br />

A variante nacional, ao contrário, assumia uma disposição racista<br />

como constante atemporal; para esses, o Gótico, no qual eles viam<br />

o ápice da produção artística nórdica, germânica, ou alemã, tornouse<br />

a bitola da nova arte.”<br />

De acordo com a autora, esta segunda posição teria<br />

predominado sobre a primeira já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da primeira<br />

guerra:<br />

“A germanização do Expressionismo, <strong>de</strong> <strong>seu</strong>s mo<strong>de</strong>los e <strong>de</strong> sua<br />

visão <strong>de</strong> mundo, ganhou um peso inestimável com o começo da<br />

5


guerra. [...] Cosmopolitismo e Internacionalismo tornaram-se<br />

ultrapassados, mesmo para muitos <strong>de</strong> <strong>seu</strong>s antigos <strong>de</strong>fensores. Agora<br />

pensava-se em termos nacionais, quando não em termos<br />

inteiramente racistas e concentrava-se unicamente nas virtu<strong>de</strong>s dos<br />

alemães, em <strong>seu</strong>s poetas, pensadores e em <strong>seu</strong>s monumentos, como<br />

testemunhos <strong>de</strong> um passado glorioso.” 8<br />

Desse ponto <strong>de</strong> vista, Segall <strong>de</strong>ve ser aproximado da<br />

primeira geração expressionista, por sua negação do caráter<br />

essencialmente nacional da arte Gótica, mesmo que<br />

<strong>seu</strong> pensamento não se encontre inteiramente livre <strong>de</strong> reflexões<br />

nacionalistas.<br />

A negação do Gótico como uma época (e uma arte)<br />

fundamentalmente aparentada ao Expressionismo serve,<br />

no pensamento <strong>de</strong> Segall, para a sustentação <strong>de</strong> outra tese<br />

não menos singular, quanto à origem e o caráter <strong>de</strong>sse<br />

último. Segall via o Expressionismo como um movimento<br />

vivo e em <strong>de</strong>senvolvimento. Para ele - e aqui ele se apóia<br />

basicamente em Kandisky - , a arte expressionista estaria<br />

no começo do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma nova “gran<strong>de</strong><br />

época” artística e, portanto, ainda caracterizava-se por ser<br />

“uma ponte para o que <strong>de</strong>veria seguir”. 9 Ela teria nascido<br />

do profundo conflito entre “materialismo” e<br />

“espiritualida<strong>de</strong>”, típicos <strong>de</strong> sua época, e encontrava suas<br />

forças para a busca <strong>de</strong> uma harmonia neste profundo conflito:<br />

“Embora estejamos <strong>de</strong> pés firmes na terra on<strong>de</strong> domina uma<br />

concepção do mundo fortemente materialista, on<strong>de</strong> as máquinas<br />

são o principal fator do nosso progresso, <strong>de</strong> outro lado, manifestase<br />

uma forte aspiração ao inconcebível.[...] Esta luta entre instinto<br />

8 Cf. BUSHRADT, op.cit., p. 107. Após a guerra, as posições racistas e nacionalistas<br />

<strong>de</strong>fendidaspelos expressionistas sobreviveram em suas visões místico-religiosas. O Gótico foi<br />

<strong>de</strong>finitivamente eleito como o momento <strong>de</strong> florescimento da germanida<strong>de</strong> e inúmeros paralelos<br />

“espirituais” e mesmos “factuais” entre a época gótica e a expressionista foram encontrados,<br />

<strong>de</strong> forma a sustentar a idéia <strong>de</strong> um renascimento <strong>de</strong>sse espírito germânico na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

9 SEGALL, Lasar, documento inédito, sem título, arquivo do artista, Mu<strong>seu</strong> Lasar Segall/<br />

IPAHN.<br />

6


e intelecto provoca um <strong>de</strong>sejo irresistível <strong>de</strong> encontrar uma síntese<br />

<strong>de</strong>stas extremida<strong>de</strong>s e nessa direção <strong>de</strong>ve ser dirigido nosso olhar.” 10<br />

Esse mesmo dualismo, que estaria na origem “espiritual”<br />

do Expressionismo teria, no pensamento <strong>de</strong> Segall,<br />

<strong>seu</strong> equivalente geográfico. Assim, a origem do<br />

Expressionismo se encontraria em uma dupla influência<br />

das artes francesa e russa sobre a Alemanha:<br />

“O <strong>expressionismo</strong> surgiu numa hora <strong>de</strong> maior crise espiritual da<br />

humanida<strong>de</strong> e, nesse caos, ele escutava apenas a sua própria voz,<br />

que era o <strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma nova religião, <strong>de</strong> um novo homem.<br />

Os <strong>seu</strong>s primeiros profetas foram os russos, franceses e, sob<br />

influência <strong>de</strong>stes, também os alemães.” 11<br />

Da França, um país com forte tradição em arte, on<strong>de</strong><br />

os artistas “<strong>de</strong>pendiam dos gostos artísticos <strong>de</strong> <strong>seu</strong>s prece<strong>de</strong>ntes”,<br />

os Expressionistas teriam herdado a busca <strong>de</strong><br />

uma “intensa harmonia que provocasse uma forte vibração”,<br />

que “em oposição às tendências da arte russa,[...]<br />

[seria] uma compensação i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> repouso”. 12 Por outro<br />

lado, dos russos, eles teriam herdado o “profundo sentimento,<br />

a infinida<strong>de</strong>, um gran<strong>de</strong> amor à humanida<strong>de</strong> e <strong>seu</strong>s<br />

meios <strong>de</strong> expressão ilimitados”. 13 E, concluindo, Segall afirma:<br />

“Todas as tentativas dos russos e franceses na arte, quer na teoria,<br />

quer na prática, foram profundamente compreendidas pelos artistas<br />

alemães expressionistas que as <strong>de</strong>senvolveram vigorosamente.<br />

A rápida compreensão dos elementos mais importantes da arte e<br />

o trabalho <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento criaram na Alemanha uma arte<br />

específica alemã.”<br />

10 SEGALL, Lasar, “Sobre Arte”, op. cit., p. 36.<br />

11 SEGALL, Lasasr, “O Expressionismo”, op. cit., p. 39.<br />

12 I<strong>de</strong>m.<br />

13 Das características essencialmente russas, Segall comenta ainda: “Os russos, graças a sua<br />

educação e ao meio geográfico em que vivem, são justamente capazes <strong>de</strong> ultrapassar os limites<br />

dados pela tradição.” Aqui reencontramos novamente resquícios das formulações teóricas <strong>de</strong><br />

Worringer.<br />

7


Aqui fica clara a preocupação <strong>de</strong> Segall com a caracterização<br />

da arte expressionista como essencialmente alemã.<br />

Porém, ao invés <strong>de</strong> justificar o caráter nacional do<br />

Expressionismo através <strong>de</strong> um suposto parentesco entre<br />

este e o Gótico (o qual era compreendido como “mo<strong>de</strong>lo”<br />

<strong>de</strong> uma arte germânica “pura”), como fazia gran<strong>de</strong><br />

parte dos artistas <strong>de</strong> sua geração, ele negava qualquer<br />

mo<strong>de</strong>lo histórico e <strong>de</strong>fendia a idéia do nascimento <strong>de</strong> uma<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> alemã com o Expressionismo. Dentro <strong>de</strong>sta<br />

sua perspectiva, ele atribuía um papel <strong>de</strong>cisivo ao intercâmbio<br />

cultural da Alemanha com <strong>seu</strong>s vizinhos: França e<br />

Rússia. Esses dois países, que, aparentemente, possuíam<br />

para Segall uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> mais bem estabelecida que a<br />

alemã, teriam servido <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>los” para o nascimento <strong>de</strong><br />

uma arte nacional na Alemanha: o Expressionismo. A<br />

partir da confrontação <strong>de</strong> duas culturas tão diversas como<br />

a russa e a francesa, os artistas alemães teriam realizado<br />

uma “síntese”, particular e nacional.<br />

Seguindo tal raciocínio, Segall situava como precursores<br />

do Expressionismo, do lado dos franceses, Cézanne,<br />

Henri Matisse e Rousseau. Do lado russo, ele ressaltava<br />

em primeira linha a figura <strong>de</strong> Kandinsky, “pois foi ele que<br />

teve a maior influência sobre a nova geração”, e, a <strong>seu</strong><br />

lado, Alexan<strong>de</strong>r Archipenko e Marc Chagall. Como os principais<br />

artistas da “nova arte alemã”, Segall cita Paul Klee e<br />

Franz Marc: “Em sua arte, eles estão em oposição aos<br />

<strong>seu</strong>s vizinhos, <strong>de</strong> um lado sentimentais e <strong>de</strong> outro profissionais.”<br />

A negação que Segall faz do Gótico como mo<strong>de</strong>lo a<br />

ser seguido pelos expressionistas, reflete-se ainda em sua<br />

interpretação do Expressionismo. Enquanto a i<strong>de</strong>ntificação<br />

entre Expressionismo e Gótico, que se estabeleceu<br />

durante os anos <strong>de</strong> Guerra, levou, numa larga medida, à<br />

criação <strong>de</strong> uma arte cheia <strong>de</strong> “pathos” e tensão, que ex-<br />

8


pressasse acima <strong>de</strong> tudo a “agitação espiritual” do artista,<br />

a obra <strong>de</strong> Segall permaneceu largamente distanciada <strong>de</strong>ste<br />

“pathos”. Para ele, o Expressionismo <strong>de</strong>veria aspirar a uma<br />

síntese, que resolvesse o conflito profundo entre materialismo<br />

e “<strong>de</strong>sejo do transcen<strong>de</strong>ntal” que sua época estaria<br />

vivendo, ou seja, <strong>de</strong>veria ser, a exemplo das “gran<strong>de</strong>s épocas”,<br />

“dualismo que se transforma em unida<strong>de</strong>.” 14 O artista<br />

expressionista não <strong>de</strong>veria, portanto, expressar esse conflito,<br />

mas sim esforçar-se para superá-lo em sua obra, criando<br />

“um novo mundo” em formas e cores. 15 Tal aspiração<br />

ao equilíbrio e ao monumental é, em nossa opinião,<br />

componente fundamental da obra <strong>de</strong> Segall e on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong><br />

uma parte <strong>de</strong> sua originalida<strong>de</strong>.<br />

Gostaríamos <strong>de</strong> ressaltar ainda que os textos teóricos<br />

do artista são também uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> vinculação <strong>de</strong><br />

sua obra a uma <strong>de</strong>terminada tradição expressionista, iniciada<br />

pelos artistas do Der Blaue Reiter. De fato, esse aspecto<br />

evi<strong>de</strong>ncia-se claramente num trecho <strong>de</strong> <strong>seu</strong> texto “O<br />

Expressionismo”, no qual ele situa Kandinsky como “iniciador”<br />

do movimento expressionista, ao mesmo tempo<br />

em que nega qualquer importância à Brücke:<br />

“Ele (Kandinsky) viveu muito tempo em Munique, on<strong>de</strong>, com o<br />

pintor alemão Franz Marc, editou um livro significativo, O cavaleiro<br />

Azul o que se <strong>de</strong>u em 1910-1911. Antes <strong>de</strong>les, havia se formado na<br />

Alemanha pequenos grupos <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> tendências <strong>de</strong> esquerda,<br />

não reconhecidos pelos júris das gran<strong>de</strong>s exposições, justamente<br />

pelas suas tendências radicais, mas isso foram apenas fermentações.<br />

Coube a Kandinsky dizer a palavra <strong>de</strong>cisiva.” 16<br />

14 SEGALL, Lasar, “Sobre Arte”, op. cit., p. 33. Sobre a situação espiritual <strong>de</strong> sua época, Segall<br />

afirmou: “Nunca o dualismo entre o homem e o universo foi tão gran<strong>de</strong> como agora.<br />

Manifestou-se novamente uma forte vonta<strong>de</strong> artística. A nossa vida <strong>de</strong>ve tomar outras formas.<br />

Deve criar-se uma outra atmosfera artística, <strong>de</strong>ve criar-se uma comunhão colossal. Assim,<br />

estamos diante das artes das gran<strong>de</strong>s épocas, com um sentimento <strong>de</strong> parentesco interior na<br />

aspiração às formas, ao espiritual. A arte ressuscitou.” I<strong>de</strong>m, p. 36.<br />

15 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

16 SEGALL, Lasar, “O Expressionismo”, op. cit., p. 39.<br />

9


Essa filiação <strong>de</strong> si mesmo à tradição do Blaue Reiter<br />

traz um aspecto novo para a análise da obra <strong>de</strong> Segall, que<br />

permanecia até hoje ignorado pela literatura sobre o artista.<br />

Segall tem sido recebido eminentemente <strong>de</strong>ntro do<br />

contexto da Dresdner Sezession (Secessão <strong>de</strong> Dres<strong>de</strong>n) e <strong>de</strong><br />

sua ligação com a tradição da Brücke e, nesse contexto, a<br />

divergência evi<strong>de</strong>nte que sua obra apresenta em relação a<br />

esta tradição tem sido inteiramente atribuída ao fato <strong>de</strong>le<br />

ser um artista ju<strong>de</strong>u. Fritz Löffler expressou <strong>de</strong> forma clara<br />

essa tendência em <strong>seu</strong> texto para o catálogo German<br />

Expressionism 1915-1925. The Second Generation:<br />

“As gravuras <strong>de</strong> Segall, assim como sua pintura eram muito diferentes<br />

daquelas dos outros membros da Secessão. O <strong>seu</strong> <strong>de</strong>senho <strong>de</strong>licado<br />

e econômico, com temas recorrentes <strong>de</strong> uma humanida<strong>de</strong><br />

abandonada e proscrita, evoca sua terra natal mais que a situação<br />

em Dres<strong>de</strong>n e contrasta com os blocos maciços em preto e branco<br />

dos outros artistas da Secessão.” 17<br />

Como veremos, o fato <strong>de</strong> Segall ser um artista ju<strong>de</strong>u<br />

tem uma importância fundamental para a sua obra e para<br />

sua compreensão do Expressionismo, porém não no sentido<br />

usado por Löffler, que insinua um conflito entre<br />

Expressionismo e Judaísmo em Segall. Na verda<strong>de</strong>, sua<br />

origem judaica entra como um componente a mais na<br />

composição <strong>de</strong> <strong>seu</strong> pensamento teórico sobre arte e sobre<br />

Expressionismo, em particular. Isso ocorre através da<br />

idéia <strong>de</strong> uma “afinida<strong>de</strong>” intrínseca entre Expressionismo<br />

e Judaísmo.<br />

Ao longo dos anos que Segall passou na Alemanha<br />

vemos como ele concentra-se cada vez mais em temas<br />

judaicos. Ao mesmo tempo, há uma restrição da paleta,<br />

17 LÖFFLER, Fritz, “Dres<strong>de</strong>n from 1913 and the Dresdner Sezession Gruppe 1919”. In<br />

BARRON, Stephanie (org.), German Expressionism 1915-1925. The Second Generation, Los Angeles,<br />

Prestel Publisher, 1988.<br />

10


que se torna mais sóbria. Essas mudanças seguiram-se à<br />

viagem <strong>de</strong> oito meses <strong>de</strong> Segall à Vilna em 1918, on<strong>de</strong> ele<br />

entrou em contato mais direto com as novas tendências<br />

do movimento nacionalista judaico, do qual participavam,<br />

entre outros, Issachar Ryback e El Lissitzky. Esses artistas<br />

viam uma afinida<strong>de</strong> entre arte mo<strong>de</strong>rna e as características<br />

básicas da arte popular judaica, e procuravam fazer<br />

renascer na contemporaneida<strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> expressão<br />

tipicamente judaica a partir <strong>de</strong>sta i<strong>de</strong>ntificação. 18<br />

Um texto central para a compreensão da recepção<br />

que Segall fez <strong>de</strong>ssas concepções, foi escrito por ele entre<br />

1921-22, tendo permanecido inédito até hoje. 19 Nele, Segall<br />

procura estabelecer teoricamente uma vinculação essencial<br />

entre a estética expressionista, com sua valorização da<br />

expressão do “mundo interior” do artista, e as tendências<br />

18 Esse movimento artístico, um <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> tendências nacionalistas judaicas do começo<br />

<strong>de</strong>ste século, cuja expressão mais radical foi o movimento sionista, tinha <strong>seu</strong> núcleo mais<br />

representativo entre artistas russos. Em 1916, El Lissitzky e Issachar Ryback, financiados pela<br />

“Socieda<strong>de</strong> Etnográfica Judaica” <strong>de</strong> São Petesburgo, partiram em uma viagem <strong>de</strong> documentação<br />

da arte popular judaica, na esperança <strong>de</strong> colher material para a fundamentação <strong>de</strong> um “estilo<br />

nacional” do povo ju<strong>de</strong>u. A idéia <strong>de</strong> renascimento <strong>de</strong> uma cultura tipicamente judaica não<br />

<strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> estar <strong>de</strong> acordo com as tendências das vanguardas européias, especialmente do<br />

Expressionismo, que buscavam “renovar” a cultura européia “<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte”, através do exemplo<br />

da “arte primitiva”, tanto <strong>de</strong> povos africanos, quanto medievais. Ryback e Aronson, autores do<br />

texto “Die Wegen fun <strong>de</strong>r Jiddischer Malerei” (Oifgang, 1919), que discutia posições centrais<br />

<strong>de</strong>sse movimento, viam como uma das características fundamentais da arte popular judaica<br />

uma preferência pela superfície e uma tendência a evitar a impressão <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, assim<br />

como uma propensão a evitar qualquer ilusão <strong>de</strong> volume corporal em sua pintura.Também a<br />

teoria da cor que os autores <strong>de</strong>senvolvem no texto, apresenta semelhanças importantes, tanto<br />

com a pintura <strong>de</strong> Segall a partir <strong>de</strong> 1918-19, quanto com <strong>seu</strong> pensamento teórico. Segundo<br />

eles, o artista popular ju<strong>de</strong>u tinha uma preferência clara por tons profundos e escuros, e pelas<br />

cores cinza e violeta (Para uma análise do texto <strong>de</strong> Ryback e Aronson no contexto do<br />

“Renascimento Judaico” ver KAMPF, Avram, Jüdisches Erleben in <strong>de</strong>r Kunst <strong>de</strong>s 20. Jahrhun<strong>de</strong>rts,<br />

Weinheim e Berlim, 1987, p. 36).<br />

19 O texto, sem título, encontra-se no arquivo do artista no Mu<strong>seu</strong> Lasar Segall em São Paulo.<br />

Infelizmente tornou-se impossível saber para que fim tal texto foi escrito. Se <strong>de</strong>veria servir<br />

como material para uma palestra ou se consistia apenas em reflexões anotadas sem um fim<br />

objetivo. É possível que exista uma relação entre esse texto e uma carta <strong>de</strong> Jankel Adler a<br />

Segall, datada <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1922, em que o artista pedia a participação <strong>de</strong> Segall em <strong>seu</strong><br />

projeto <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> uma exposição <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us orientais (esta carta, que também<br />

se encontra no arquivo Lasar Segall, foi reproduzida no catálogo Lasar Segall 1891-1957, op. cit.,<br />

p. 37).<br />

11


expressivas “naturais” à “raça” judaica, uma vez que, segundo<br />

Segall, “Não é segredo algum que as artes realista e<br />

impressionista lhe tocam menos, pois o ju<strong>de</strong>u possui uma<br />

relação problemática com a natureza.” Segall inicia o texto<br />

com uma discussão a respeito da relação entre arte e<br />

raça:<br />

“Deve ser evi<strong>de</strong>nte para qualquer um que as diferentes raças<br />

possuem relações diferentes com a essência da arte. Sim, e que<br />

mesmo <strong>de</strong>ntro das raças, os diferentes povos possuem um instinto<br />

singular para todas as formas <strong>de</strong> criação. Os romanos criam e sentem<br />

pintura <strong>de</strong> forma diferente que os germanos. E a sensibilida<strong>de</strong><br />

plástica do oriente está muito distanciada daquela dos europeus.”<br />

Em seguida, ele situa esta questão em relação à situação<br />

particular do ju<strong>de</strong>u:<br />

“Para os ju<strong>de</strong>us, que ainda vivem profundamente a partir <strong>de</strong> <strong>seu</strong><br />

instinto racial, sua relação com as artes plásticas é difícil <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminar.”<br />

Segundo Segall, a situação “complexa” do ju<strong>de</strong>u em<br />

relação à expressão <strong>de</strong> <strong>seu</strong>s supostos “instintos raciais”<br />

teria se originado no processo <strong>de</strong> sua integração às diferentes<br />

culturas européias nas quais ele vivia: “O ju<strong>de</strong>u é<br />

ainda hoje primeiramente russo, alemão, francês”, afirma<br />

Segall. Esse processo teria levado os artistas ju<strong>de</strong>us a produzirem<br />

obras em consonância com as dos povos com os<br />

quais ele convivia, o que gerou divergências radicais entre<br />

as obras <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us, em diferentes meios culturais (França,<br />

Itália, Alemanha, Rússia, etc). Essas divergências teriam<br />

atingido um tal grau que um aspecto comum em suas obras<br />

praticamente não po<strong>de</strong>ria mais ser i<strong>de</strong>ntificado:<br />

“Há algo em comum entre artistas como Pissaro, Liebermann,<br />

Modigliani e o autor <strong>de</strong>ssas linhas, que permita apontar para um<br />

mesmo sangue? Certamente não. Enquanto um é um homem do<br />

12


olhar, com todas as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um europeu parisiense ou<br />

berlinense, o outro não cria nada com isso e vive unicamente <strong>de</strong><br />

suas visões e crenças.”<br />

No entanto, como Segall havia esclarecido no início<br />

<strong>de</strong> <strong>seu</strong> texto, esta integração do ju<strong>de</strong>u em outras culturas<br />

nunca po<strong>de</strong>ria ser total, pois a pertença à raça judaica seria<br />

um dado intransponível para os mesmos. Ao procurar<br />

meios <strong>de</strong> expressão contrários ou ina<strong>de</strong>quados à sua natureza,<br />

esses artistas estariam apenas limitando o <strong>seu</strong> próprio<br />

potencial artístico. Eles po<strong>de</strong>riam, no melhor dos<br />

casos, chegar a ser um bom artista, mas por esse caminho<br />

nunca se tornariam um expoente em sua arte: “A suposição<br />

<strong>de</strong> que o ju<strong>de</strong>u não é um homem sensório e possui<br />

uma relação pouco <strong>de</strong>senvolvida com a natureza é falsa.<br />

Impressionistas como Pissaro e Lieberman são a prova<br />

do contrário. Certo seria, no entanto, dizer que o ju<strong>de</strong>u,<br />

mesmo o que se tornou europeu, enquanto ser visual, enquanto<br />

impressionista, não possui forças para atingir a<br />

perfeição última.” 20<br />

Portanto, para <strong>de</strong>senvolver-se plenamente enquanto<br />

artista - ou seja, para produzir uma obra <strong>de</strong> valor universal<br />

- este <strong>de</strong>veria procurar os meios artísticos mais condizentes<br />

com suas inclinações naturais. Desse ponto <strong>de</strong> vista,<br />

existiriam tendências na arte mais favoráveis à expressão<br />

<strong>de</strong> características tipicamente judaicas, e outras estranhas<br />

a elas. Para Segall, o ju<strong>de</strong>u seria um ser basicamente<br />

introspectivo, que viveria essencialmente do contato com<br />

<strong>seu</strong> mundo interior, com sua fantasia. Um indivíduo que<br />

“vive mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro para fora do que <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro”.<br />

Assim, argumenta Segall no texto, seria também apenas<br />

uma conseqüência natural que, procurando seguir sua<br />

natureza, o artista ju<strong>de</strong>u se sentisse mais próximo do<br />

20 Ibi<strong>de</strong>m.<br />

13


Expressionismo do que do Impressionismo (ou <strong>de</strong> qualquer<br />

outra tendência “realista” em arte):<br />

“Deve-se <strong>de</strong>duzir que, como conseqüência, os ju<strong>de</strong>us entrem-se<br />

mais fácil e rapidamente que qualquer outro, numa relação viva<br />

com a arte expressiva, com o Expressionismo <strong>de</strong> hoje. Uma vez<br />

que <strong>de</strong>ve ser especialmente fácil trazer o ju<strong>de</strong>u para uma relação<br />

verda<strong>de</strong>ira com a arte contemporânea. [...] Acho que encontramos<br />

aqui o caso raro em que um movimento artístico encontra num<br />

grupo humano específico um solo previamente preparado pela<br />

natureza.”<br />

Porém Segall não via na coincidência entre<br />

Expressionismo e características judaicas a oportunida<strong>de</strong><br />

para a construção <strong>de</strong> uma arte judaica, como <strong>seu</strong>s colegas<br />

ju<strong>de</strong>us-russos. Ao contrário, para ele, mais importante do<br />

que o florescimento <strong>de</strong> uma tradição especificamente judaica,<br />

era a perspectiva do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma arte<br />

universal, universalmente compreensível, sobre as bases<br />

<strong>de</strong> sua experiência particular <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u. Essa idéia seria apenas<br />

uma conseqüência natural da equivalência que Segall<br />

estabelecia entre o modo <strong>de</strong> ser “tipicamente judaico” e as<br />

aspirações dos expressionistas. 21 Ou seja, com base nessa<br />

coincidência, o artista ju<strong>de</strong>u que procurasse produzir a<br />

partir dos elementos <strong>de</strong> sua própria natureza, seria “naturalmente”<br />

um expressionista sincero, e provavelmente também<br />

um expoente em sua arte.<br />

Essas idéias <strong>de</strong> Segall contribuem, no nosso enten<strong>de</strong>r,<br />

para uma nova interpretação <strong>de</strong> suas obras <strong>de</strong> temática<br />

21 Segall <strong>de</strong>fine em <strong>seu</strong> texto as características básicas dos ju<strong>de</strong>us da seguinte maneira: “Ele não<br />

compreen<strong>de</strong> o ambiente e sua própria vida com a naturalida<strong>de</strong> do homem visual, mas vive<br />

intensamente com as formas <strong>de</strong> sua própria fantasia ou força <strong>de</strong> pensamento.” E, mais adiante:<br />

“sua natureza ten<strong>de</strong> a viver as coisas pessoalmente, a ter visões e mesmo a criar <strong>de</strong> forma vaga.”<br />

A proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>finição com a <strong>de</strong>finição que ele dá, em outro texto mais ou menos<br />

contemporâneo a este, do caráter do Expressionismo é evi<strong>de</strong>nte: “O movimento expressionista<br />

preocupa-se com a individualida<strong>de</strong>, com o mundo pessoal <strong>de</strong> cada criador e com as formas<br />

que ele encontrou para a expressão <strong>de</strong> <strong>seu</strong> mundo interior.[...] O artista <strong>de</strong>ve tornar-se um<br />

ditador das leis da natureza.” Texto <strong>de</strong> Segall sem título ou data - provavelmente <strong>de</strong> 1920.<br />

14


judaica. A recorrência <strong>de</strong> temas ligados ao judaísmo em<br />

sua obra não <strong>de</strong>ve ser compreendida apenas como uma<br />

tentativa <strong>de</strong> Segall <strong>de</strong> expressar valores tipicamente judaicos,<br />

documentando uma forma particular <strong>de</strong> existência,<br />

mas também - e fundamentalmente - como uma tentativa<br />

<strong>de</strong> superação <strong>de</strong>sses elementos particulares, dos quais elas<br />

nasceram, em direção à expressão <strong>de</strong> valores “universalmente<br />

compreensíveis.” 22<br />

A tarefa <strong>de</strong> acompanhar o raciocínio que Segall <strong>de</strong>senvolve<br />

em <strong>seu</strong>s textos teóricos é por vezes árdua. Há<br />

passagens obscuras e mesmo incoerências, típicas <strong>de</strong> um<br />

pensador não sistemático. Porém, acredito que algumas<br />

idéias-chave se explicitam ao longo dos textos. Em primeiro<br />

lugar, po<strong>de</strong>ríamos dizer que, sob o impacto <strong>de</strong><br />

Worringer e Kandinsky, o Expressionismo ascen<strong>de</strong> em<br />

<strong>seu</strong> pensamento à categoria <strong>de</strong> arte “verda<strong>de</strong>ira” e universal<br />

(sendo sua manifestação contemporânea). A afinida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> alguns povos (como o ju<strong>de</strong>u) com a essência <strong>de</strong>ssa arte<br />

seria mera coincidência histórica, uma espécie <strong>de</strong><br />

“facilitador natural”, que poria tais povos, por assim dizer,<br />

na vanguarda da construção <strong>de</strong> uma arte pensada para<br />

toda a humanida<strong>de</strong>. Porém esta Arte, com a maiúsculo,<br />

po<strong>de</strong>ria igualmente ser alcançada através <strong>de</strong> uma síntese<br />

das diversas formas expressivas <strong>de</strong> diferentes povos, como<br />

ocorreu no caso da Alemanha, on<strong>de</strong> chegou-se ao<br />

Expressionismo através <strong>de</strong> um diálogo com <strong>seu</strong>s vizinhos,<br />

França e Rússia. Nesse contexto, Segall revela outra vez<br />

sua postura fundamentalmente internacionalista e <strong>seu</strong> repúdio<br />

às crescentes tendências nacionalistas e regionalistas<br />

22 Assim, um quadro como Os Eternos Caminhantes <strong>de</strong>ve ser entendido não como a caracterização<br />

do <strong>de</strong>stino específico do povo ju<strong>de</strong>u, mas como representação <strong>de</strong> uma “experiência universal<br />

<strong>de</strong> perseguição”, vivenciada por inúmeros povos em diferentes contextos culturais. O mesmo<br />

po<strong>de</strong> ser dito <strong>de</strong> um quadro como Kaddisch, on<strong>de</strong>, através da representação <strong>de</strong> um tema<br />

especificamente judaico (a reza dos filhos para os pais falecidos) Segall procurou caracterizar<br />

uma experiência “universal” <strong>de</strong> luto.<br />

15


Fig. 1 - Os Eternos Caminhantes, 1919 - óleo sobre tela,138 x 184 cm.<br />

do pós-guerra. Quadros como Eternos Caminhantes [fig. 1],<br />

A Gestante (1920), ou “Interior <strong>de</strong> Pobres” (1921/22) são<br />

a tradução pictórica precisa <strong>de</strong>ssas idéias, isto é, da manifestação<br />

<strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong> judaica posta a serviço da<br />

expressão <strong>de</strong> conteúdos universais, através <strong>de</strong> <strong>seu</strong> compromisso<br />

com uma estética expressionista.<br />

Também sua pintura do período brasileiro possui tal<br />

caráter. As mulheres do Mangue (Mulheres do Mangue na<br />

Escada, 1929), por exemplo, não apresentam nada <strong>de</strong> caracteristicamente<br />

“nacional”, como as <strong>de</strong> Di Cavalcanti.<br />

Ao contrário, apesar <strong>de</strong> suas feições negras, são tão “universais”<br />

na expressão quanto as prostitutas das ruas <strong>de</strong><br />

Berlim (Rua, 1922).<br />

As consi<strong>de</strong>rações teóricas <strong>de</strong> Segall po<strong>de</strong>m ainda lançar<br />

alguma luz sobre a questão <strong>de</strong> sua inserção no ambiente<br />

brasileiro. À diferença <strong>de</strong> muito mo<strong>de</strong>rnistas, Segall<br />

16


não consi<strong>de</strong>rava a construção <strong>de</strong> uma arte nacional brasileira,<br />

composta <strong>de</strong> elementos locais, o objetivo último <strong>de</strong><br />

uma artista brasileiro (assim como nunca lutara por uma<br />

“arte judaica”).<br />

Ele acreditava, sim, que os elementos característicos<br />

do "povo brasileiro" <strong>de</strong>veriam interagir com todas as outras<br />

manifestações artísticas (alemães, russas, judaicas, etc.)<br />

Fig. 2 - Encontro, 1924 - óleo sobre tela, 66 x 54 cm - Coleção Particular.<br />

17


com o fim <strong>de</strong> alcançar a “verda<strong>de</strong>ira” arte, que é sempre humana,<br />

universal. Segundo tal perspectiva, sua contribuição<br />

para a “arte brasileira” era vista como valiosa. Ao representar-se<br />

como negro em <strong>seu</strong> quadro “Encontro” [fig. 2], Segall<br />

não estava trocando sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaico-russo-alemã por<br />

uma brasileira, como alguns interpretaram o gesto, mas ao<br />

contrário, procurava construir uma síntese a partir <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>s<br />

múltiplas existentes entre diferentes povos. Para Segall,<br />

esta seria a condição primeira para a construção <strong>de</strong> uma linguagem<br />

inclusiva, e não exclusiva como aquela que se cunhava<br />

contemporaneamente entre a nova geração expressionista<br />

alemã.<br />

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