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contos de fadas: a construção discursiva ea ... - ICHS/UFOP

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CONTOS DE FADAS: A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA E A<br />

APROPRIAÇÃO DE “CHAPEUZINHO VERMELHO” DE PERRAULT<br />

E GRIMM EM A “A COMPANHIA DOS LOBOS” DE ANGELA<br />

CARTER 1<br />

RESUMO<br />

NÍCOLAS TOTTI LEITE - <strong>UFOP</strong> 2<br />

“o xale vermelho que hoje tem aspecto brilhante e ominoso <strong>de</strong> sangue na neve.”<br />

(CARTER in A Companhia dos Lobos, p. 205)<br />

Este artigo é resultado do projeto <strong>de</strong> Iniciação Científica em andamento intitulado “Contos <strong>de</strong><br />

Fadas, feminismo e <strong>de</strong>s<strong>construção</strong>: a escrita <strong>de</strong> Angela Carter”, com apoio da FAPEMIG.<br />

Preten<strong>de</strong>mos traçar um paralelo entre a apropriação da “ficção dos pobres” pela burguesia ao<br />

transcreverem histórias calcadas na tradição oral, com a apropriação <strong>de</strong> Angela Carter (1940 –<br />

1992) dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais. Para isso analisaremos as versões <strong>de</strong> “Chapeuzinho<br />

Vermelho” transcritas por Perrault e pelos irmãos Grimm comparando-as com o conto “A<br />

Companhia dos Lobos” <strong>de</strong> Angela Carter, publicado no livro O quarto do Barba Azul (1979).<br />

Ao reescrever os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, Carter não subverte apenas a função das personagens<br />

femininas, criticando, assim, a cultura patriarcal e a passivida<strong>de</strong> que a elas são <strong>de</strong>stinadas,<br />

mas também re-elabora algumas funções do gênero <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>.<br />

Palavras-chave: Contos <strong>de</strong> Fadas, Construção Discursiva, Apropriação, Angela Carter.<br />

ANGELA CARTER, A LOBA<br />

Angela Carter (1940-1992), ficcionista e ensaísta prolífica, foi uma das escritoras <strong>de</strong><br />

língua inglesa mais instigantes e originais do final do século XX. Em The Bloody Chamber<br />

(1979) 3 percebemos um pouco do que foi sua criativida<strong>de</strong>. No livro, encontram-se <strong>contos</strong> em<br />

que o conteúdo advém <strong>de</strong> <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais do século XVII, XVIII e XIX. A autora<br />

britânica, com seu feminismo idiossincrático, ressignificou os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> e muitos <strong>de</strong><br />

seus elementos, incorporando à sua prosa uma linguagem altamente sofisticada e robusta.<br />

Carter, ao se apropriar <strong>de</strong> histórias folclóricas, tem consciência <strong>de</strong> que está<br />

modificando princípios e i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong> uma cultura que vigorou por muito tempo: o<br />

1<br />

Esta pesquisa está sendo orientada pela Profa. Dra. Maria Clara Versiani Galery e co-orientada pelo Prof. Dr.<br />

Adail Sebastião Rodrigues-Júnior.<br />

2<br />

Graduando pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Ouro Preto.


patriarcalismo. Ela fez dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> uma po<strong>de</strong>rosa arma <strong>de</strong> ataque aos costumes do<br />

patriarcado, produzindo, assim, uma das releituras mais originais da literatura contemporân<strong>ea</strong>.<br />

Em entrevista à revista Marxism Today, publicada no início <strong>de</strong> 1985, Carter afirma<br />

achar interessante a qualida<strong>de</strong> com que a burguesia se apropriou da cultura dos pobres para o<br />

seu entretenimento. Os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, segundo Carter, fizeram parte da tradição oral da<br />

Europa e foram “a ficção dos pobres e dos iletrados” (p. 20). Em A Companhia dos Lobos, a<br />

escritora se apropria e <strong>de</strong>sconstrói uma das histórias folclóricas mais conhecidas por muitas<br />

culturas: Chapeuzinho Vermelho, que foi transcrita por Perrault, na França, e também pelos<br />

Irmãos Grimm, na Alemanha.<br />

O conto da escritora po<strong>de</strong> ser dividido em duas partes: na primeira, há lendas que<br />

envolvem figura <strong>de</strong> lobos e lobisomens. Elas são importantes para a <strong>construção</strong> da narrativa e<br />

contribuem para o clímax do conto. Nelas, os lobos são construídos como seres selvagens,<br />

assustadores e “<strong>de</strong> todos os temíveis perigos da noite e da floresta (...) o lobo é o pior porque<br />

não dá ouvidos à razão” (p. 200).<br />

Na segunda parte nos é <strong>de</strong>scrita a história <strong>de</strong> uma menina que insiste em atravessar o<br />

bosque em pleno inverno para levar uma cesta contendo comida para a sua avó, e encontra no<br />

meio da floresta um belo jovem com o qual fica conversando. A adolescente que, até então,<br />

carregava uma faca para se proteger das “feras”, entrega-a junto com o cesto para o rapaz,<br />

uma vez que ele tinha uma espingarda. Os dois se separam após uma aposta em que se o<br />

jovem chegasse primeiro à casa da avó, ganharia um beijo da protagonista. Ao chegar antes da<br />

adolescente, ele, então, mostra sua outra face (a <strong>de</strong> um lobisomem), e <strong>de</strong>vora a velha<br />

reumática. A menina que <strong>de</strong>morara no caminho para se certificar <strong>de</strong> que o belo jovem<br />

ganharia a aposta, chega à casa da avó e fica <strong>de</strong>sapontada ao ver apenas a “velha” sentada<br />

perto da lareira. Mas, o jovem logo se revela e atira a colcha fora. A menina que não vê sua<br />

avó na casa percebe que está em perigo, mas <strong>de</strong>ixa o medo <strong>de</strong> lado, uma vez que ter medo não<br />

adiantaria nada. O conto termina com os dois na cama da vovozinha, on<strong>de</strong> a heroína “dorme<br />

em paz e docemente (...), entre as patas do lobo afetuoso.” (p. 213).<br />

Preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar neste artigo que ao comparar os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> Chapeuzinho<br />

Vermelho, transcritos por Perrault e pelos Irmãos Grimm, com A Companhia dos Lobos <strong>de</strong><br />

Angela Carter, percebemos neste último a subversão <strong>de</strong> funções i<strong>de</strong>ológicas e estruturais em<br />

relação àquelas apresentadas pelos <strong>contos</strong> tradicionais. Para <strong>de</strong>monstrar quais as i<strong>de</strong>ologias e<br />

as características presentes nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais faz-se necessário apresentar um<br />

3 Nesta pesquisa, investigamos a tradução <strong>de</strong> “O Quarto do Barba Azul” (1999) feita por Carlos Nougué.


eve panorama da importância das figuras femininas para o surgimento e para a consolidação<br />

<strong>de</strong>sse gênero e como os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> foram apropriados pela burguesia.<br />

A hipótese que se levanta neste artigo é a <strong>de</strong> que o caráter subversivo <strong>de</strong> Carter atribui-<br />

se não à consumação do ato sexual que existe entre Chapeuzinho Vermelho e o lobo, mas à<br />

sensualida<strong>de</strong> que paira entre os dois. No conto, a protagonista não se <strong>de</strong>ixa ser <strong>de</strong>vorada pelo<br />

lobo como nas histórias antigas; na verda<strong>de</strong>, ela se entrega ao lobo. Neste artigo levantamos<br />

algumas questões que serão objeto <strong>de</strong> investigação mais sistemática ao longo da pesquisa.<br />

A CONFECÇÃO DO CAPUZ VERMELHO<br />

Em uma época mo<strong>de</strong>rna os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> assumiram funções civilizadoras e<br />

didáticas. Escritores como Charles Perrault e Jacob e Wilhelm Grimm, ao transcreverem<br />

histórias calcadas na tradição oral, não só procuravam consolidar a literatura vernácula e<br />

sistematizar a unida<strong>de</strong> cultural dos povos <strong>de</strong> suas respectivas nações, como também alertar as<br />

pessoas sobre os vários perigos da vida. À luz da feminilida<strong>de</strong> nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, analisar a<br />

trajetória i<strong>de</strong>ológica que constitui a personagem Chapeuzinho Vermelho nos enredos dos<br />

<strong>contos</strong> analisados neste artigo significa analisar como a posição das mulheres na socieda<strong>de</strong> se<br />

modificou <strong>de</strong>ntro da socieda<strong>de</strong> no <strong>de</strong>correr dos séculos.<br />

Os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> se consolidaram a partir do século XVII, com a publicação <strong>de</strong><br />

Histoires ou contes du temps passé (1697) <strong>de</strong> Perrault. Percebemos, ao analisar <strong>contos</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>fadas</strong> <strong>de</strong> Perrault e dos irmãos Grimm, que a presença das figuras femininas também está<br />

associada ao contexto cultural em que foram escritos. O modo como as mulheres são<br />

representadas na maioria <strong>de</strong>sses <strong>contos</strong> nos revela certas estereotipias; geralmente elas são<br />

princesas, <strong>fadas</strong>, bruxas, madrastas, mães, filhas, etc., e são <strong>de</strong>scritas como ingênuas,<br />

passivas, sempre a espera <strong>de</strong> seus príncipes encantados. Essa representação mostra-nos que<br />

tais personagens são construídas a partir <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />

patriarcal.<br />

De acordo com Marina Warner, em seu minucioso estudo sobre os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> Da<br />

Fera à Loira (1999), o gênero começa a se <strong>de</strong>stacar na França no século XVII, antes mesmo<br />

<strong>de</strong> Perrault, com escritoras como Marie-Catherine d’Aulnoy e Marie-J<strong>ea</strong>nne L’Héritier. As<br />

précieuses, como ficaram conhecidas, eram mulheres que frequentavam salões on<strong>de</strong><br />

aconteciam círculos literários, em que histórias folclóricas eram contadas e escritas. Conforme<br />

Warner, elas apresentavam um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> celibato, o que as impulsionou a serem consi<strong>de</strong>radas


mulheres anômalas, subversivas <strong>de</strong>ntro da or<strong>de</strong>m do Antigo Regime. Além <strong>de</strong> suas histórias<br />

terem sido esquecidas ou apagadas pelo gran<strong>de</strong> sucesso <strong>de</strong> Perrault, elas foram satirizadas por<br />

Molière em Lês précieuses ridicules (1697) e Les femmes savantes (1699).<br />

Perrault, que frequentava esses círculos literários, não hesitou em tomar a causa das<br />

précieuses como po<strong>de</strong>mos notar em seus <strong>contos</strong>, principalmente em Chapeuzinho Vermelho,<br />

em que insere uma moral adjacente ao conto, advertindo as menininhas para não conversarem<br />

com certos “lobos”. Dessa forma, embora as précieuses tenham sido negligenciadas pela<br />

História, elas influenciaram diretamente as obras mais conhecidas <strong>de</strong> Perrault e, por isso, em<br />

seu livro o autor cria uma arquetípica contadora <strong>de</strong> histórias: A Mamãe Gansa.<br />

A partir do século XVIII, o interesse pelos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> passou a ser gran<strong>de</strong>, pois o<br />

público infantil foi seduzido por essas narrativas curtas. Como afirma Warner (1999), os<br />

livreiros e tipógrafos, tendo em mente as censuras dos pais, expurgaram muitas das histórias,<br />

fato que fez com que as manifestações do grotesco e do brutal, muito comum a essas<br />

narrativas e ao folclore, fossem suprimidas para agradar aos pedagogos e aos editores. Como<br />

nos afirma Angela Carter na introdução <strong>de</strong> 103 Contos <strong>de</strong> Fadas (2007), a eliminação <strong>de</strong><br />

certas expressões “pesadas” contribuiu para que o divertimento universal dos pobres se<br />

transformasse em passatempo da burguesia, principalmente das crianças burguesas.<br />

Marina Warner (1999) nos relata alguns <strong>de</strong>sses elementos grotescos que existiam na<br />

versão oral <strong>de</strong> Chapeuzinho Vermelho, mas que foram suprimidas por Perrault. Segundo ela,<br />

o lobo usa <strong>de</strong> ardis para levar a heroína a comer um pedaço <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> sua avó e a beber um<br />

pouco <strong>de</strong> sangue da velha, mas a criança, ao final, consegue se safar, recusando-se a <strong>de</strong>itar na<br />

cama com o pretexto <strong>de</strong> urinar. O lobo, então, amarra uma corda ao pé da menina, que ao<br />

chegar ao bosque, consegue se livrar do nó da corda e foge.<br />

Assim como Perrault, os irmãos Grimm, no final do século XIX, na Alemanha,<br />

também transcreveram histórias advindas da tradição oral. Tendo como principal fonte uma<br />

mulher chamada Doroth<strong>ea</strong> Viehnmann, eles também excluíram e acrescentaram elementos<br />

que habitualmente não havia nas versões orais. Conforme a psicanalista Dra. Clarissa Pinkola<br />

Estés, no prefácio <strong>de</strong> uma coletân<strong>ea</strong> que faz dos <strong>contos</strong> dos irmãos Grimm (2005), ao<br />

transcreverem as histórias folclóricas os autores alemães acrescentaram uma versão judaico-<br />

cristã <strong>de</strong> Deus em alguns dos <strong>contos</strong> mais antigos, o que nos mostra que <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> são<br />

impregnados <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias dos autores e da época em que se inseriam. Portanto, são<br />

atribuídos aos <strong>contos</strong> folclóricos crenças e i<strong>de</strong>ologias <strong>de</strong> seu tempo e <strong>de</strong> sua nação. Uma<br />

característica marcante <strong>de</strong>ssas histórias é a transformação a que seus enredos estão sujeitos,


ocasionados pela mudança das crenças <strong>de</strong> cada escritor. A respeito disso, Angela Carter no<br />

prefácio <strong>de</strong> 103 Contos <strong>de</strong> Fadas afirma que “qualquer um po<strong>de</strong> se apropriar <strong>de</strong> uma história<br />

e modificá-la” (2007, p.15).<br />

Essas histórias calcadas na tradição oral <strong>de</strong> diversas regiões foram responsáveis por<br />

dizer ao seu público o que era “certo” e o que era “errado”, <strong>de</strong> acordo com os preceitos <strong>de</strong><br />

suas respectivas épocas. Ao perceberem como os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> são carregados <strong>de</strong> crenças,<br />

escritores como Angela Carter, Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Guimarães Rosa, Marina<br />

Colassanti, Robert Coover e outros, se apropriaram <strong>de</strong> histórias consagradas com o intuito <strong>de</strong><br />

rever tais crenças. Como procuramos <strong>de</strong>monstrar, as figuras femininas exerceram um papel<br />

fundamental, seja <strong>de</strong>ntro dos enredos, como na história <strong>de</strong> Chapeuzinho, seja para a<br />

consolidação e <strong>de</strong>senvolvimento do gênero <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> com as précieuses e Angela<br />

Carter. Segundo Warner (1999), os <strong>contos</strong> folclóricos<br />

(...) moldam intensamente a memória nacional; suas versões poéticas<br />

cruzam-se com a História, e na atormentada busca contemporân<strong>ea</strong> por<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nativa, subestimar a influência <strong>de</strong>les sobre valores e atitu<strong>de</strong>s<br />

po<strong>de</strong> ser tão perigoso quanto ignorar mudanças <strong>de</strong> r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong> históricas. (<br />

WARNER, 1990, p. 450).<br />

Da mesma forma em que, no século XVII, as précieuses fizeram dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong><br />

uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> protesto ou, pelo menos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar i<strong>de</strong>ias estabelecidas, no século XX,<br />

não foi diferente. Sob uma perspectiva mo<strong>de</strong>rna, os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> ofereceram para muitos<br />

escritores contemporâneos um território <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> não só para expressarem suas crenças,<br />

mas também suas revoltas. Como afirma Warner, protestos e <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> são parceiros <strong>de</strong><br />

longas datas.<br />

Ao estudar as formas para <strong>de</strong>terminar as constantes e as variantes dos <strong>contos</strong><br />

folclóricos russos, o eminente formalista Vladimir Propp, em seu ensaio intitulado “As<br />

Transformações dos Contos Fantásticos” (1928), afirma que embora os <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong><br />

apresentem algumas características diferentes, como aparências, ida<strong>de</strong>s, sexos, estado civil,<br />

etc., eles r<strong>ea</strong>lizam durante o curso da ação os mesmos atos. Carter, em The Bloody Chamber,<br />

brinca com os limites e, ao mesmo tempo, com a liberda<strong>de</strong> das transformações dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>fadas</strong>, atualizando-os, principalmente, em relação ao modo como as mulheres passaram a ser<br />

vistas no século XX. A seguir, analisaremos algumas <strong>de</strong>ssas “variantes” que estão presentes<br />

nos <strong>contos</strong> da escritora.


CORRENDO COM OS LOBOS<br />

Ítalo Calvino, em Seis Propostas Para o Próximo Milênio (1995), ao se pronunciar<br />

sobre a “rapi<strong>de</strong>z”, afirma que a principal característica dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> é a economia <strong>de</strong><br />

expressão, uma vez que, nesse gênero, os <strong>de</strong>talhes inúteis são negligenciados. Ou seja,<br />

(...) as peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta<br />

apenas o essencial; é sempre uma luta contra os obstáculos que impe<strong>de</strong>m ou<br />

retardam a r<strong>ea</strong>lização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo ou a restauração <strong>de</strong> um bem perdido (...)<br />

(CALVINO, 1995, p. 50).<br />

Mas em Carter não vemos essa economia nas palavras. Como nos afirma Marina<br />

Warner (1999), nos <strong>contos</strong> da autora britânica, <strong>de</strong>paramos-nos com uma prosa híbrida, sendo,<br />

ao mesmo tempo, elaborada e vulgar. Angela Carter, ao atualizar os conteúdos daquilo que<br />

um dia foi “a ficção dos pobres e iletrados”, nos mostra uma linguagem <strong>de</strong>licadamente<br />

complexa, artificial e rebuscada.<br />

Conforme Cristina Bacchilega, em “An Introduction to the ‘Innocent Persecuted<br />

Heroine’ Fairy Tales” (1993), os discursos narrativos dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais<br />

limitam o papel das mulheres a “mães” e “filhas”. O fato dos narradores dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong><br />

serem geralmente em terceira pessoa e também por essas histórias terem sido transcritas por<br />

homens, contribuíram para que as personagens femininas fossem construídas a partir <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ologias patriarcais. Nessas narrativas, na maioria das vezes as heroínas não têm voz. Suas<br />

inocências e perseguições que geralmente sofrem são construídas sob a i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> aristocrática, em que a heroína está disponível para ser salva pelo herói. No fim da<br />

jornada do príncipe encantado, haverá uma mulher esperando por ele, com a qual irá se casar<br />

e possuí-la sexualmente.<br />

Angela Carter, em The Bloody Chamber, <strong>de</strong>sconstrói todas essas características<br />

advindas <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> patriarcal por meio das quais as personagens femininas foram<br />

constituídas <strong>discursiva</strong>mente nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais. Suas heroínas não são frágeis<br />

nem inocentes, mas ambivalentes e, em alguns <strong>contos</strong>, elas têm a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar as<br />

suas próprias histórias. Percebemos, portanto, que as personagens femininas nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong><br />

Carter não são construídas <strong>de</strong> uma maneira simplista como nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> <strong>de</strong> outrora. A<br />

complexida<strong>de</strong> psicológica e a audácia que a elas são atribuídas <strong>de</strong>marcam suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Dessa forma, a escritora britânica, ao <strong>de</strong>senvolver suas personagens, nos mostra os <strong>de</strong>sejos<br />

femininos mais profundos.


Através da comparação entre a versão francesa e a alemã <strong>de</strong> Chapeuzinho Vermelho<br />

com A Companhia dos Lobos, po<strong>de</strong>mos perceber que Carter, além <strong>de</strong> subverter a função das<br />

personagens femininas, criticando, assim, a cultura patriarcal e a passivida<strong>de</strong> que a elas são<br />

<strong>de</strong>stinadas, re-elabora algumas funções do gênero <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, tais como, a economia das<br />

palavras, como fora afirmado anteriormente, a presença da sensualida<strong>de</strong> em seus <strong>contos</strong> e a<br />

<strong>construção</strong> <strong>discursiva</strong> das personagens, como explicitaremos a seguir.<br />

DESAMARRANDO O XALE VERMELHO<br />

Chapeuzinho Vermelho é uma história em que é narrada a trajetória <strong>de</strong> uma menina muito<br />

bonita, mas ao mesmo tempo ingênua, que <strong>de</strong>ve levar uma cesta contendo bolo e manteiga<br />

para sua avó, que mora do outro lado da floresta. Ao analisar <strong>discursiva</strong>mente os <strong>contos</strong> <strong>de</strong><br />

Perrault e dos irmãos Grimm, verificamos que há entre as histórias características particulares<br />

que possibilitam interpretações diferentes. Nesta parte do artigo, preten<strong>de</strong>mos comparar os<br />

<strong>contos</strong> em foco, analisando algumas <strong>de</strong>ssas características e mostrando como Carter re-<br />

elabora tais elementos.<br />

Assim como na versão dos Grimm, a Chapeuzinho Vermelho <strong>de</strong> Perrault é construída<br />

<strong>de</strong> uma maneira simplista e categórica. A <strong>de</strong>scrição inicial da protagonista feita por um<br />

narrador heterodiegético nos mostra como algumas atribuições que são dadas a essa heroína,<br />

como por exemplo, a beleza e a ingenuida<strong>de</strong> constroem a personagem <strong>discursiva</strong>mente.<br />

Aten<strong>de</strong>ndo a um pedido <strong>de</strong> sua mãe, Chapeuzinho vai à casa <strong>de</strong> sua avó. Diferentemente da<br />

versão alemã, no conto <strong>de</strong> Perrault não há nenhum tipo <strong>de</strong> advertência ou alerta por parte da<br />

mãe. A menina, ao passar pelo bosque, encontra o lobo que “teve muita vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comê-la,<br />

mas não ousou, porque havia por ali alguns lenhadores na floresta” (p. 67). A “pobre<br />

menina”, que não sabia o quão perigoso era conversar com um lobo diz a ele para on<strong>de</strong> vai. O<br />

lobo, então, vai para casa da “ingênua avó”, que é enganada e <strong>de</strong>vorada. Quando chega à casa<br />

da avó, a menina teme, ao ouvir a voz grossa do lobo, “mas <strong>de</strong>pois achou que era só um<br />

resfriado” da velha. Chapeuzinho, sob o pedido da falsa avó, tira a roupa e se <strong>de</strong>ita na cama.<br />

Após um envolvente diálogo, a menina é <strong>de</strong>vorada pelo lobo e o conto termina.<br />

Nos diversos <strong>contos</strong> que escreveu, Perrault insere uma moralida<strong>de</strong>, que segundo<br />

Mariza Men<strong>de</strong>s, em “Em busca dos Contos Perdidos” (2000), ele atribui como sendo o


elemento fundamental da fábula e a razão pela qual elas <strong>de</strong>vem ser feitas. Como veremos a<br />

seguir a moral do conto <strong>de</strong> Perrault nos revela a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> oculta do lobo:<br />

Percebemos aqui que as criancinhas,/Principalmente as menininhas/ Lindas,<br />

boas, engraçadinhas,/ Fazem mal <strong>de</strong> escutar todos que se acercam,/ (...) Se<br />

um lobo mau então as coma, e bem./Digo lobo, lobo em geral, /Pois há lobo<br />

que é cordial/ Mansinho, familiar e até civilizado/ Que, gentil, bem<br />

educado,/ Persegue donzelas mais puras (...) / Quem não sabe, infeliz, que<br />

esses lobos melosos, /Dos lobos todos são os bem mais perigosos?<br />

(PERRAULT, 2004, p. 75)<br />

Dessa forma, o verda<strong>de</strong>iro lobo é o homem civilizado, bajulador e sedutor. Para<br />

Marina Warner (1999), Perrault “vira a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> costumeira do lobo <strong>de</strong> cabeça para baixo e<br />

o situa próximo <strong>de</strong> si, em vez <strong>de</strong> distante e como o Outro.” (p. 215). A autora afirma que se<br />

não houvesse em suas transcrições a inserção da moral, e não soubessem da sua afinida<strong>de</strong><br />

com as précieuses, dificilmente os seus contemporâneos associariam o lobo a um homem<br />

refinado do século XVII. Bruno Bettelheim em A Psicanálise dos Contos <strong>de</strong> Fadas (1990)<br />

afirma que Perrault não <strong>de</strong>sejava apenas entreter seu público, mas apresentar uma lição <strong>de</strong><br />

moralida<strong>de</strong> específica. O psicanalista afirma ainda que a moral do escritor francês ocasiona a<br />

perda <strong>de</strong> significações possíveis, pois fica óbvio que o lobo não é um animal, mas uma<br />

metáfora. Portanto, a moralida<strong>de</strong> do conto <strong>de</strong> Perrault nos mostra como <strong>de</strong>vemos interpretar o<br />

conto. Chapeuzinho Vermelho é uma história que narra, antes <strong>de</strong> qualquer coisa, a travessia<br />

<strong>de</strong> uma criança à maiorida<strong>de</strong>, ou a perda da inocência <strong>de</strong> uma criança.<br />

O conto dos irmãos Grimm inicia-se <strong>de</strong> forma semelhante. Uma característica<br />

diferente se encontra na fala da mãe que adverte a menina para que não saia do caminho e<br />

nem se <strong>de</strong>more. “Quando a menina chegou à floresta, encontrou o lobo. Mas não sabia que ele<br />

era um animal malvado, por isso, não sentiu um pingo <strong>de</strong> medo.” (p. 285). Ela, então, conta<br />

ao lobo para on<strong>de</strong> vai e ele pensa: “Essa criaturinha será um bom petisco. Bem mais gostosa<br />

que a velha. Preciso ser esperto e abocanhar as duas” (p. 285). Persuadida pelo lobo a pegar<br />

flores para sua avó, Chapeuzinho se <strong>de</strong>mora pelo caminho e sai da trilha, <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo,<br />

assim, sua mãe. Imediatamente, o lobo vai à casa da avó e a <strong>de</strong>vora. Quando Chapeuzinho<br />

Vermelho chega à casa da avó, percebe algo estranho e fica apreensiva. Ao se aproximar da<br />

cama da avó a heroína percebe que a velha estava diferente.<br />

Em seguida, há o diálogo entre a menina e o lobo que nos dois <strong>contos</strong> em questão<br />

constituem o clímax. Após dizer: “Mas, vovó, que <strong>de</strong>ntes gran<strong>de</strong>s a senhora tem.” e o lobo<br />

respon<strong>de</strong>r: “É para comê-la melhor, minha querida”, a menina é <strong>de</strong>vorada. O final do conto,


entretanto, é diferente em relação à <strong>de</strong> Perrault, pois passava por ali um lenhador que ouviu o<br />

roncar da velha e achou aquilo estranho. Entrou na casa e ao ver o lobo dormindo, disse: “E<br />

não é que o encontro aqui, seu velho pecador! – exclamou. – Faz bastante tempo que venho<br />

procurando você” (p. 287). O lenhador pega a espingarda, mas lhe ocorreu que talvez o lobo<br />

tivesse <strong>de</strong>vorado a velha, com uma faca, então, abre a barriga do lobo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saem<br />

Chapeuzinho e sua vovozinha são e salvas. A menina trouxe umas pedras com as quais<br />

rech<strong>ea</strong>ram o lobo, quando o animal acordou e tentou correr, caiu morto. O conto se finda com<br />

a seguinte reflexão <strong>de</strong> Chapeuzinho: “Quando minha mãe proibir, nunca mais vou sair<br />

pass<strong>ea</strong>ndo pela floresta enquanto eu viver.” (p. 287).<br />

Para Mariza Men<strong>de</strong>s, no livro Em busca dos Contos Perdidos (2000), o fato da versão<br />

francesa não ter um final feliz contribui para que o conto seja caracterizado não como um<br />

conto <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, mas um conto <strong>de</strong> advertências. Além disso, ela nos lembra que no conto <strong>de</strong><br />

Perrault, diferentemente no dos Grimm, a menina não <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ce à mãe, que, por sua vez,<br />

não lhe faz nenhuma advertência. No conto dos Grimm, entretanto, a mãe adverte a menina<br />

para que an<strong>de</strong> rápido e que não se afaste do caminho, mas ela a <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ce e, como punição,<br />

é <strong>de</strong>vorada.<br />

Angela Carter inicia o conto A Companhia dos Lobos com uma inversão. Ao invés <strong>de</strong><br />

caracterizar a protagonista, a autora nos apresenta uma série <strong>de</strong> lendas que qualificam a<br />

personagem masculina, o anti-herói: o lobo. Nessas lendas, o narrador heterodiegético além<br />

<strong>de</strong> caracterizar o lobo como um ser feroz, astuto e como a “personificação carnívora”,<br />

também nos mostra a sua outra face, a <strong>de</strong> um lobisomem.<br />

O lobisomem vive cerca <strong>de</strong> sete anos, mas, se lhe queimarmos as roupas <strong>de</strong><br />

homem, con<strong>de</strong>namo-lo a ser lobo pelo resto da vida; por isso as velhas<br />

daqui pensam que se protegem atirando um chapéu ou avental a um<br />

lobisomem, como se as roupas fizessem o homem. (...) (CARTER, 1999, p.<br />

204)<br />

Angela Carter, através <strong>de</strong>ssas lendas, mostra o quão mal o lobo/lobisomem po<strong>de</strong> ser, o<br />

que, <strong>de</strong> certa forma, potencializa o clímax do conto que vai se manifestar no final da história.<br />

Como fora dito anteriormente, a escritora britânica constrói sua personagem<br />

modificando o discurso que caracterizava uma protagonista <strong>de</strong> <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> dos séculos<br />

XVII, XVIII e XIX. Po<strong>de</strong>mos ver isso logo no começo da segunda parte, quando, em pleno<br />

inverno, a menina <strong>de</strong> “espírito indômito” insiste em atravessar o bosque para levar o cesto à


sua avó. A menina tem certeza que as “feras” não irão lhe fazer mal e, para se proteger, coloca<br />

uma faca no cesto. Como nos é <strong>de</strong>scrito, ela sempre fora amada <strong>de</strong>mais para sentir medo e a<br />

(...) tão bonita e caçula temporã, teve todos os mimos da mãe e da avó, que<br />

lhe fez o xale vermelho que hoje tem aspecto brilhante e ominoso <strong>de</strong> sangue<br />

na neve. Os seios começam a <strong>de</strong>spontar; o cabelo parece linho, tão louro<br />

que mal forma sombra na testa; as faces são <strong>de</strong> um escarlate e branco<br />

emblemáticos, e já lhe começaram as regras, esse relógio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la que<br />

dará sinal uma vez por mês. (CARTER, 1999, p. 205)<br />

Enquanto nos <strong>contos</strong> dos escritores <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais a Chapeuzinho Vermelho é<br />

<strong>de</strong>scrita categoricamente como bela, sem haver nenhuma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> sua beleza, no conto da<br />

escritora britânica a beleza da heroína nos é mostrada, com os seus <strong>de</strong>talhes mais íntimos.<br />

Além disso, po<strong>de</strong>mos verificar como a protagonista <strong>de</strong> Carter é ousada, pois mesmo sabendo<br />

os perigos que a floresta representa, ela insiste em levar a cesta para avó.<br />

A protagonista fica impressionada com um jovem que encontra na floresta, pois<br />

“nunca tinha visto um rapaz tão fino, não entre os rústicos palhaços da al<strong>de</strong>ia natal” (p. 206).<br />

Ele, que tinha no bolso uma bússola, garante a heroína que chegaria à casa da avó antes <strong>de</strong>la.<br />

A garota, que sabia que se saísse do caminho ou se per<strong>de</strong>ria imediatamente ou seria atacada<br />

por lobos, pergunta ao rapaz se ele não tem medo <strong>de</strong>sses animais. Ele, então, dá uma<br />

palmadinha no cano da espingarda que carrega e sorri. Os dois <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m fazer disso uma<br />

aposta e como prêmio o jovem pe<strong>de</strong> à garota um beijo. Ele vai pelo matagal e leva consigo o<br />

cesto da menina, mas ela que se esquecera <strong>de</strong> ter medo dos animais, “queria <strong>de</strong>morar no<br />

caminho para ter certeza <strong>de</strong> que o lindo rapaz ganharia a aposta” (p. 207).<br />

Em seguida, a avó da jovem nos é <strong>de</strong>scrita como<br />

“idosa e frágil, [em que] três quartos da vovozinha estão dominados pelo<br />

falecimento que a dor nos ossos lhe promete, e ela está quase pronta para<br />

ren<strong>de</strong>r-se inteiramente.” (p. 208)<br />

Bateram na porta. Fingindo ser a neta da velha, o rapaz entra na casa; ao ver o cesto <strong>de</strong> sua<br />

neta, a avó pergunta: “Oh, meu Deus, o que você fez a ela?” (p. 209). O jovem então se <strong>de</strong>spe<br />

da roupa humana e “A última coisa que a senhora <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> viu neste mundo foi um jovem,<br />

olhos como cinza, nu como veio ao mundo, aproximar-se da cama” (p. 209). Ele, após acabar<br />

com ela, lambeu a beiçada e vestiu-se rapidamente, tal qual estava a velha quando ele entrou.<br />

Por conseguinte, ele queima o cabelo da velha que não se podia comer, guarda os ossos numa<br />

caixa e, cuidadosamente, troca os lençóis ensanguentados por novos.


Ao chegar à casa da avó, o narrador afirma que “talvez [Chapeuzinho] estivesse um<br />

pouco <strong>de</strong>sapontada por ver apenas a avó sentada ao lado da lareira” (p. 210), mas o rapaz logo<br />

tira a colcha fora e salta para a porta, trancando-a. A menina não podia esten<strong>de</strong>r a mão para<br />

pegar a faca que estava no cesto, pois ele tinha os olhos fixos nela. A menina exclama: “Que<br />

olhos gran<strong>de</strong>s você tem! – São para te ver melhor!” (p. 210), e pergunta: “On<strong>de</strong> está minha<br />

avó?”, ao que o homem respon<strong>de</strong>: “Aqui não há mais ninguém, só nos dois, meu amor.” (p.<br />

211). Nisso, elevou-se um<br />

uivo <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> lobos; ela sabia que os piores lobos são peludos na<br />

parte <strong>de</strong> baixo e teve um arrepio apesar do xale encarnado, que ela<br />

aconchegou mais a si como se a pu<strong>de</strong>sse proteger, embora tão vermelho<br />

como o sangue que teria <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramar. (CARTER, 1999, p. 211).<br />

A menina chega perto da janela para ver os lobos que estavam a uivar e fala: “Está tão<br />

frio, coitadinhos! – disse ela. – Não admira que uivem assim.” (p. 211). Nessa fala,<br />

percebemos que a protagonista não sente medo dos lobos, mas pena. Em seguida, ela tira o<br />

xale “da cor dos sacrifícios, da cor das menstruações, e, uma vez que o medo não a ajudava<br />

em nada, <strong>de</strong>ixou-o <strong>de</strong> lado” (p. 211), ou seja, ela, por um lado, <strong>de</strong>spiu-se do medo e, por<br />

outro, abandonou o receio <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r sua inocência, representada no xale, vestimenta que<br />

simbolizava a tradição cultural <strong>de</strong> sua época. Após a protagonista tirar sua roupa, ela vai ter-<br />

se com o rapaz, tira-lhe a blusa e afirma: “Que braços gran<strong>de</strong>s você tem!” e ele respon<strong>de</strong>:<br />

“São para abraçá-la melhor!” (p. 212). Como po<strong>de</strong>mos ver em seguida o diálogo entre<br />

Chapeuzinho e lobisomem continua:<br />

“(...) ela <strong>de</strong> livre vonta<strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>u o beijo <strong>de</strong>vido.<br />

- Que <strong>de</strong>ntes gran<strong>de</strong> você tem!<br />

Ela viu-lhe a queixada cobri-se <strong>de</strong> baba (...) mas não vacilou nem quando<br />

ele disse:<br />

- São para te comer melhor!<br />

A menina <strong>de</strong>satou a rir, sabia que não era carne para ninguém comer. Riulhe<br />

em cheio na cara, tirou-lhe a camisa e atirou-a no fogo, na esteira <strong>de</strong><br />

fago da roupa que ela própria tinha <strong>de</strong>spido.”. (p. 212)<br />

A sensualida<strong>de</strong> que paira entre as personagens é construída através das falas dos<br />

diálogos dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais, mas que ao serem pronunciadas por estas<br />

personagens e nesse contexto, apresentam outro sentido. A menina, ao invés <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-se ser<br />

<strong>de</strong>vorada pelo lobisomem, nesse conto, o seduz assumindo, assim, as iniciativas <strong>de</strong> sua<br />

iniciação sexual. Dessa forma, a protagonista se distancia das “heroínas inocentes


perseguidas”, como Bacchilega (1993) caracteriza as protagonistas dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong><br />

tradicionais. Em seguida, a seguinte cena nos é <strong>de</strong>scrita:<br />

As chamas dançaram como as almas na noite <strong>de</strong> Walpurgis 4 , e os velhos<br />

ossos <strong>de</strong>baixo da cama começaram um terrível matraqu<strong>ea</strong>do, mas ela não<br />

lhes <strong>de</strong>u atenção.<br />

Carnívoro personificado, só a carne imaculada o acalma. (p. 213)<br />

Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar essa passagem ambígua, pois não sabemos se Chapeuzinho foi<br />

<strong>de</strong>vorada pelo lobo ou não. Mas, a ambiguida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>sfeita na passagem seguinte, em que<br />

Chapeuzinho e Lobisomem se encontram na cama da vovozinha, on<strong>de</strong> a heroína “dorme em<br />

paz e docemente (...), entre as patas do lobo afetuoso.” (p. 213).<br />

Ao comparar o final do enredo <strong>de</strong> A Companhia dos Lobos com os <strong>de</strong> Chapeuzinho<br />

Vermelho transcritos por Perrault e pelos Irmãos Grimm, po<strong>de</strong>ríamos afirmar, a princípio, que<br />

eles divergem entre si. Enquanto no conto <strong>de</strong> Perrault e dos irmãos Grimm a protagonista é<br />

<strong>de</strong>vorada, sendo que no último ela é salva pelo caçador, no <strong>de</strong> Carter, a Chapeuzinho dorme<br />

entre as garras do “lobo afetuoso”. Po<strong>de</strong>-se interpretar o ato <strong>de</strong> “<strong>de</strong>vorar” sob inúmeras<br />

formas, como por exemplo, uma relação sexual ou uma apropriação do Outro em ato<br />

canibalístico. Outras interpretações po<strong>de</strong>riam ser arroladas nessa análise, mas a nós interessa<br />

apenas como Carter explicita algo que nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais são parcialmente ou<br />

totalmente camuflados.<br />

Na versão <strong>de</strong> Perrault, alguns indícios nos levam a acreditar que o ato <strong>de</strong> “<strong>de</strong>vorar” a<br />

Chapeuzinho Vermelho é, na verda<strong>de</strong>, a consumação do ato sexual. No conto francês, se não<br />

bastasse o fato <strong>de</strong> Chapeuzinho se <strong>de</strong>spir para <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>itar na cama com o lobo, Perrault faz<br />

questão <strong>de</strong> inserir à moralida<strong>de</strong> a associação do lobo mau com um homem. Em contrapartida,<br />

no conto dos irmãos Grimm, a consumação do ato sexual não é tão evi<strong>de</strong>nte quanto na versão<br />

francesa. No conto alemão, percebemos que o “ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar” a Chapeuzinho é, na verda<strong>de</strong>,<br />

um castigo pelo fato da menina <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer a sua mãe quando saiu do caminho. Nesse caso, a<br />

4 “A noite <strong>de</strong> Walpurgis (<strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> Maio para 1 <strong>de</strong> Abril) é uma festa europeia, sobretudo <strong>de</strong> tradição germânica,<br />

que foi acusada pela Igreja <strong>de</strong> ser “<strong>de</strong>dicada à magia e ao culto do diabo”, mas que era, na r<strong>ea</strong>lida<strong>de</strong>, uma festa<br />

<strong>de</strong> alegria dramática.“Walpurgis” é um nome <strong>de</strong> inspiração pagã, que provém <strong>de</strong> “Wal” (que significa pilha <strong>de</strong><br />

mortos ou campo <strong>de</strong> batalha) e “bergs” (proteger), ou, segundo uma outra interpretação etimológica, <strong>de</strong> “Purag”<br />

(castelo ou cida<strong>de</strong> fortificada, que é <strong>de</strong>fendida na batalha, ou, segundo outros, castelo dos mortos). Remete,<br />

portanto, para os <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros soldados que enfrentam as forças disformes que am<strong>ea</strong>çam a “cida<strong>de</strong>”, a or<strong>de</strong>m, a<br />

forma.”<br />

In: http://ofogodavonta<strong>de</strong>.wordpress.com/2009/05/01/a-noite-<strong>de</strong>-walpurgs/<br />

Acesso dia 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009.


simbologia <strong>de</strong> consumação sexual é atenuada. Devemos ressaltar ainda que o conto dos<br />

irmãos Grimm, ao apresentar um final feliz, dá a oportunida<strong>de</strong> para Chapeuzinho apren<strong>de</strong>r a<br />

lição e se vingar do lobo. Ao comparar as duas versões o psicanalista Bruno Bettelheim<br />

afirma que<br />

Enquanto no relato <strong>de</strong> Perrault a ênfase recai sobre a sedução sexual, na<br />

estória dos Irmãos Grimm dá-se o oposto. Nela, não se menciona nem direta<br />

nem indiretamente nenhuma sexualida<strong>de</strong>: isso po<strong>de</strong> estar sutilmente<br />

implícito, mas, essencialmente, o ouvinte tem <strong>de</strong> completar a idéia, para<br />

compreen<strong>de</strong>r a estória. (BETTELHEIM, 1990, p. 189)<br />

Segundo Marina Warner (1999), o encantamento dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> oculta<br />

interesses, crenças e <strong>de</strong>sejos sob imagens brilhantes e sedutoras, que são em si uma forma <strong>de</strong><br />

camuflagem, e permite ousar dizer o que se <strong>de</strong>ve calar.<br />

Em a Companhia dos Lobos, a subversão <strong>de</strong> Carter não está no fato <strong>de</strong> haver a<br />

r<strong>ea</strong>lização do ato sexual entre o lobo e a Chapeuzinho, pois, como vimos, a relação está<br />

presente, mesmo que <strong>de</strong> forma camuflada, nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais. A transgressão do<br />

enredo <strong>de</strong> Carter está no fato <strong>de</strong> ser explicitado algo que nos <strong>contos</strong> tradicionais existe apenas<br />

<strong>de</strong> forma alusiva. Enquanto no conto <strong>de</strong> Perrault e dos irmãos Grimm o jogo <strong>de</strong> sedução entre<br />

Chapeuzinho e lobo é parcialmente ou totalmente omitido, no conto <strong>de</strong> Carter a sedução além<br />

<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>nte é fundamental para o <strong>de</strong>sfecho. Além disso, a transgressão do enredo <strong>de</strong><br />

Angela Carter consiste na atitu<strong>de</strong> da protagonista, em seduzir e persuadir o lobo com a sua<br />

beleza, invertendo, assim, a função lobo mau-predador e Chapeuzinho Vermelho-presa. No<br />

conto <strong>de</strong> Carter, a protagonista não exerce a função da heroína perseguida, uma vez que ela<br />

não é mais a presa. Outra característica que na análise se torna evi<strong>de</strong>nte é a <strong>de</strong> que o ato <strong>de</strong><br />

“<strong>de</strong>vorar”, em A Companhia dos Lobos, não é visto como um castigo à heroína,<br />

diferentemente dos <strong>contos</strong> tradicionais.<br />

Por fim, uma característica divergente entre os <strong>contos</strong> aqui analisados, e que talvez<br />

seja a mais notória, é a mudança do título <strong>de</strong> Chapeuzinho Vermelho para A Companhia dos<br />

Lobos. Na versão francesa, se compararmos este conto com os outros <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> cujos<br />

títulos são os nomes que as protagonistas são chamadas como A bela adormecida no bosque<br />

ou Cin<strong>de</strong>rela ou o sapato <strong>de</strong> vidro que se encontram no livro <strong>de</strong> Perrault, percebemos que<br />

essas histórias têm finais felizes em que as heroínas terminam casadas, diferentemente do que<br />

acontece com Chapeuzinho, que acaba <strong>de</strong>vorada pelo lobo. Ou seja, não há um príncipe<br />

encantado que irá salvá-la e <strong>de</strong>spozá-la como há nos outros <strong>contos</strong>. Na versão alemã, embora<br />

a protagonista seja salva pelo lenhador, o <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong> Chapeuzinho não é igual ao <strong>de</strong>


Cin<strong>de</strong>rela ou a A Bela Adormecida. O lenhador que ao se <strong>de</strong>parar com o lobo na casa da<br />

vovózinha, pensou que ele po<strong>de</strong>ria ter <strong>de</strong>vorado a velha. Surpreso ficou, quando abriu a<br />

barriga do lobo e saiu <strong>de</strong> lá não só a avó, mas também a menina. Chapeuzinho, mesmo após<br />

se vingar do lobo, não tem um final semelhante ao das outras protagonista dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>fadas</strong>, pois ela termina sozinha. No conto <strong>de</strong> Carter, é como se a escritora não quisesse dar o<br />

mesmo fim solitário para sua protagonista, pois em seu conto, a protagonista não só termina<br />

na cama da avó, on<strong>de</strong> dorme em paz nas “guarras do lobo afetuoso”, mas também na<br />

companhia dos selvagens e ferozes lobos.<br />

Conclusão<br />

Através <strong>de</strong>ste artigo, traçamos um paralelo entre a apropriação da “ficção dos pobres” pela<br />

burguesia para o seu entretenimento a partir do século XVII e a apropriação <strong>de</strong> Carter dos<br />

<strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> tradicionais no século XX, para atualizar a posição i<strong>de</strong>ológica sobre as figuras<br />

femininas. Portanto, o que une todas essas protagonistas <strong>de</strong> xales vermelhos é que esses<br />

<strong>contos</strong> nos mostram como a mulher era vista nos séculos passados e como sua posição <strong>de</strong>ntro<br />

da socieda<strong>de</strong> mudou no <strong>de</strong>correr dos séculos. Diante <strong>de</strong>ssas mudanças, Carter necessitava<br />

atualizar as velhas tradições dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>.<br />

Como <strong>de</strong>monstramos, ao se apropriar dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>, Angela Carter não só<br />

ressignificou o modo <strong>de</strong> olhar as personagens femininas, como também re-elaborou várias<br />

características do gênero <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong>. Além disso, a escritora britânica não tem pudores<br />

em evi<strong>de</strong>nciar a sensualida<strong>de</strong> que paira entre Chapeuzinho e lobo, que nos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong><br />

tradicionais era subentendida. A ousadia é uma característica não só dos <strong>contos</strong> <strong>de</strong> <strong>fadas</strong> <strong>de</strong><br />

Angela Carter, como também <strong>de</strong> todas as suas obras, o que impulsionou o enorme sucesso <strong>de</strong><br />

uma das escritoras britânicas mais consagradas do século XX.<br />

Referência Bibliográfica<br />

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