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2011<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />
FACULDADE DE EDUCAÇÃO<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong><br />
Letras – Ciências Humanas – Ciências Sociais<br />
Outubro – Ano 07 nº15 Vol. 2<br />
2011<br />
2011<br />
NITERÓI – RIO DE JANEIRO<br />
2011
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
ISSN 1809-3264<br />
Página 2 de 183<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> 2011 Ano 07 nº 15 – Vol. 2 – 183p. (outubro – 2011)<br />
Rio de Janeiro: <strong>Querubim</strong>, 2011 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais –Periódicos.<br />
I - Titulo: <strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> Digital<br />
Conselho Científico<br />
Alessio Surian (Universidade de Padova - Italia)<br />
Carlos Walter Porto-Goncalves (<strong>UFF</strong> - Brasil)<br />
Darcilia Simoes (UERJ – Brasil)<br />
Evarina Deulofeu (Universidade de Havana – Cuba)<br />
Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal)<br />
Vicente Manzano (Universidade de Sevilla – Espanha)<br />
Virginia Fontes (<strong>UFF</strong> – Brasil)<br />
Conselho Editorial<br />
Presidente e Editor<br />
Aroldo Magno de Oliveira<br />
Consultores<br />
Alice Akemi Yamasaki<br />
Andre Silva Martins<br />
Elanir França Carvalho<br />
Enéas Farias Tavares<br />
Guilherme Wyllie<br />
Janete Silva dos Santos<br />
João Carlos de Carvalho<br />
José Carlos de Freitas<br />
Jussara Bittencourt de Sá<br />
Luiza Helena Oliveira da Silva<br />
Marcos Pinheiro Barreto<br />
Paolo Vittoria<br />
Ruth Luz dos Santos Silva<br />
Shirley Gomes de Souza Carreira<br />
Vanderlei Mendes de Oliveira<br />
Venício da Cunha Fernandes
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
ISSN 1809-3264<br />
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SUMÁRIO<br />
01 O sistema tonal e o sistema tonal acentual nas línguas banto – Evilazia Ferreira Martins 04<br />
02 A Belle Époque: os literatos e a boêmia no Rio de Janeiro dos 1900 – Luciana Marino do<br />
Nascimento e Luís Edmundo Bouças Coutinho<br />
12<br />
03 Crase: solução ou problema? – Luciane de Oliveira Morales e Rebeca Bulcão da Silva 16<br />
04 Princípios da educação anarquista: o orfanato de Prévost – Luciano Ricardo Nascimento e<br />
Celso Kraemer<br />
23<br />
05 Letramento literário: falem meninos e meninas, nós queremos ouvi-los sobre a leitura de textos<br />
literários no ensino médio – Maria da Conceição Jesus Ranke, Hilda Gomes Dutra<br />
Magalhães, Luiza Helena Oliveira Silva e Gislene Pires de Camargos Ferreira<br />
30<br />
06 Estágio supervisionado em educação a distância: um estudo da plataforma moodle – Maria José<br />
de Pinho e Severina Alves de Almeida<br />
38<br />
07 Nódoas poéticas e impressionistas em um conto de Menalton Braff – Mariângela Alonso 45<br />
08 Formação de mediadores de leitura: imagens visivas propostas pela arte – Patrícia Colavitti Braga 51<br />
Distassi e Mary Julia Dietzsc<br />
09 Para além do corpo fabricado: possibilidades do devir em educação – Melissa Probst 62<br />
10 À luz da fonoestilística: uma possibilidade de leitura do poema Brasil, de Ronald Carvalho –<br />
Patrícia de Brito Rocha<br />
69<br />
11 Literatura, leitura e produção de textual: intersecções – Patrícia Colavitti Braga Distassi 76<br />
12 Valores na estrutura e na organização da instituição escolar: alguns pontos para reflexão –<br />
Pedro Braga Gomes<br />
90<br />
13 O cinema e a caverna: luzes e sombras da realidade e da educação – Patrícia Colavitti Braga<br />
Distassi e Adalberto Miranda Distassi<br />
96<br />
14 Do autoritário ao lúdico-crítico: o jornal Meia Hora em sala de aula – Phellipe Marcel da<br />
Silva Esteves<br />
103<br />
15 Desenvolvendo a compreensão leitora de alunos do ensino médio – Priscilla Vichinieski e<br />
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo<br />
114<br />
16 O pesquisador e seu lugar exterior: exotopia e responsi(a)bilidade – Rodrigo Acosta Pereira e<br />
José Agostinho Barbosa de Souza<br />
122<br />
17 Paraolimpíadas e políticas de inclusão: novas formas de governo dos corpos – Roseli<br />
Belmonte Machado<br />
129<br />
18 Sujeitos rave: onde o neotribal encontra o eletrônico – Sandro Bortolazzo 137<br />
19 Estado, educação e dominação social sob o olhar de gramsci, altusser e poulantzas: uma análise<br />
introdutória – Severina Alves de Almeida, Maria José de Pinho e Francisco Edviges<br />
Albuquerque<br />
144<br />
20 Programa mais educação: concepções e interfaces de monitoramento com o plano de ações<br />
articuladas – Sheila Cristina Monteiro Matos<br />
150<br />
21 Envelhecência: um conceito a ser refletido – Tania Scuro Mendes 155<br />
22 Aprendizado da lingua inglesa através das redes sociais: uma observação no site ingles verde e<br />
amarelo – Vânia Carvalho de Castro<br />
161<br />
23 Aplicação da técnica SWOT para determinar a inserção do setor de gestão documental no<br />
planejamento estratégico da Unisul – Vera Lúcia da Rosa Fernandes<br />
165<br />
24 O gaúcho e os animais sob o processo de dicionarização – Verônica Franciele Seidel 175<br />
25 RESENHA – RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto,<br />
2010 – Márcia Moreira Pereira<br />
182
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O SISTEMA TONAL E O SISTEMA TONAL ACENTUAL<br />
NAS LÍNGUAS BANTO<br />
Evilazia Ferreira Martins 1<br />
Resumo: O objetivo deste artigo é delimitar as principais características do sistema acentual e do<br />
sistema tonal-acentual no sistema nominal de duas línguas pertencentes ao grupo Banto de línguas<br />
africanas da família Niger-Congo. Analisamos as propriedades prosódicas classificatórias propostas<br />
nos estudos de Goldsmith (1984) e Charles W. Kisseberth (1984). A metodologia empregada é de<br />
base comparativa e a teoria autossegmental. Os sistemas prosódicos estudados são os pertencentes<br />
às línguas bantas: ‗Tonga‘ (tonal acentual) e Digo (língua tonal).<br />
Palavras-chave: Fonologia, Línguas Banto, Linguística.<br />
Abstract: The aim of this paper is to define the main characteristics of the accentual and pitchaccent<br />
systems, in the nominal system of two languages belonging to the Bantu group of Niger-<br />
Congo African family. We analyze the prosodic properties in the studies of Goldsmith (1984) and<br />
Charles W. Kisseberth (1984). The methodology is comparative based on auto-segmental theory.<br />
Prosodic systems studied are those belonging to the Bantu languages, Tonga (pitch-accent<br />
language) and Digo (tonal language).<br />
Keywords: Phonology, Bantu Languages, Linguistics.<br />
Introdução<br />
O presente texto apresenta as propriedades prosódicas classificatórias do sistema nominal<br />
de duas línguas pertencentes ao grupo Banto de línguas africanas da família Niger-Congo propostas<br />
nos estudos de Goldsmith (1984) e Charles W. Kisseberth (1984). Justifica-se o estudo dos sistemas<br />
nominais porque foram a partir de suas comparações que se pode estipular o proto-banto, língua<br />
que deu origem as línguas do grupo banto. As línguas deste grupo são constituídas de sistemas<br />
prosódicos muito variados, e assim, podem ser caracterizadas fonologicamente como sistemas<br />
totalmente tonais, acentuais, ou em vários níveis entre estes extremos. Desta forma, ir-se-á, neste<br />
pequeno trabalho, apresentar uma breve exposição: do sistema acentual, do sistema tonal puro, do<br />
sistema tonal acentual e da teoria autossegmental, que fundamenta a descrição dos autores acima<br />
citados. Após isto, uma comparação das análises destes autores para os dois sistemas lingüísticos do<br />
grupo Banto com ênfase nas propriedades que as caracterizam como sistemas prosódicos.<br />
O grupo Bantu<br />
A mais importante classificação genética das línguas africanas foi realizada por John<br />
Greenberg (1963) pelo método comparativo no plano fonético e no plano semântico. Ele<br />
classificou 730 línguas e identificou quatro famílias: Congo-Cordofaniana, Nilo-Saariana, Afro-<br />
Asiática e Coissan. A divisão mais recente de Heine & Nurse (2000) e Nurse & Philippson (2003)<br />
propõe quatro troncos (phyla): Nigero-Congolês (Niger-Congo), Nilo-Saariano (Nilo-Saharan),<br />
Afro-Asiático (Afroasiatic) e Coissan (Khoisan, Khoesan). Desta distribuição, as línguas Bantas<br />
constituem um subgrupo do ramo Benue-Congo do tronco Nígero-Congolês.<br />
1 Mestranda da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG na área de Lingüística Teórica e Descritiva –<br />
Linha: Organização Sonora da Comunicação Humana – Orientador: Seung Hwa Lee – Graduada em 2008<br />
pela Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES - e-mail: evilaziamartins@gmail.com
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O grupo Banto ( que significa ―os homens‖, plural de ―muntu‖, nominação proposta por<br />
W. Bleek em 1862) é constituído por 450 a 650 línguas que descendem do protobanto, língua falada<br />
provavelmente há três ou quatro milênios atrás.<br />
A estrutura silábica das línguas bantas é predominantemente aberta (CV). Quanto ao tom,<br />
elas apresentam sistemas complexos de dois tons (H = High e L= Low) que exprimem sistemas<br />
com organizações diversas, desde a organização tonal completa, como o Kikuyu, ou línguas que<br />
não apresentam nenhum sistema tonal, como o Suaíli, por exemplo. Porém, a maioria das línguas<br />
deste grupo exibe propriedades ambas de línguas tonais e acentuais em variados níveis.<br />
Acerca de seu sistema morfológico, este grupo possui dentre as línguas da família Niger-<br />
Congo o mais elaborado sistema de classes que funciona por meio de uma morfologia verbal<br />
aglutinante por prefixação.<br />
Os sistemas prosódicos acentuais e tonais<br />
Quanto à sua propriedade prosódica, as línguas do mundo podem ser dividas em dois<br />
grupos: as línguas que apresentam o sistema acentual, ou línguas que apresentam o sistema tonal 2.<br />
Não se afirma estes sistemas como ―puros‖ ou estabelecidos dicotomicamente nesta disposição.<br />
Como explica Hyman:<br />
while stress and tone represent the logical dichotomy within such<br />
typologies, it is quite clear that many languages fall in one respect or<br />
another midway between stress and tone. First, it is quite clear that stress<br />
exists in at lest some tone languages. (HYMAN, 1975, p. 230)<br />
Ainda segundo Hyman, as línguas acentuais são estabelecidas por propriedades fonéticas<br />
e/ou lingüísticas. Foneticamente, apresentam proeminência culminativa. O termo proeminência<br />
inclui stress (intensity), tom (pitch) e duração (lenght), e o termo culminativo refere-se à<br />
propriedade de apresentar apenas uma sílaba acentuada por palavra, isto é, um único acento<br />
primário. As línguas acentuais podem sobrepor essas proeminências. Assim, como exemplo, cita-se<br />
as línguas nas quais a sílaba acentuada é atraída pela sílaba mais longa da palavra, isto é, pela sílaba<br />
pesada (CV: ou CVC). O contrário também pode acontecer. Nas línguas em que a acentuação<br />
tônica é atribuída às sílabas leves (CV) o acento pode prolongá-las, exibindo, assim, como<br />
propriedade também a duração.<br />
As línguas acentuais podem apresentar proeminência livre, isto é, localizada em qualquer<br />
sílaba da palavra, ou podem apresentar sílaba com proeminência fixa, isto é, previsível. Aquelas têm<br />
o acento marcado na forma lexical, enquanto estas têm o acento previsto por regras, apresentando,<br />
deste modo, como função lingüística a capacidade de delinear os limites de palavra, já que a<br />
tendência natural dos acentos é de se localizar em bordas de palavras: no seu início (à esquerda), ou<br />
na penúltima sílaba (à direita). 3<br />
2 Hyman (1975) usa o termo stress language para se referir às línguas de sistema acentual e o termo tonal language para as<br />
línguas tonais. Às línguas tonais que apresentam organização acentual são denominadas pitch-stress. Já Goldsmith, não<br />
utiliza a nominação stress language e nem pitch-stress apenas accentual system e tonal system. Desta forma, este autor reúne, no<br />
primeiro grupo, os sistemas acentuais stress e pitch-tonal em contraposição aos sistemas tonais puros. Como este texto<br />
apresenta citação dos dois autores, utilizo a terminologia: língua acentual para stress language, língua tonal, ou tonal pura para<br />
tonal language e língua tonal acentual para pitch-stress.<br />
3 Conforme Hyman (1975), a penúltima sílaba da borda direita da palavra é preferível à última sílaba para demarcar o fim<br />
da palavra porque permite melhor percepção do tom decrescente (falling tone - HL), indício importante do final da sílaba<br />
tônica e de palavra nas línguas ―stress‖ com acento à direita, pois a transição do tom alto (H), localizado na sílaba tônica,<br />
para o tom baixo (L), localizado na última sílaba da palavra, se dará entre duas sílabas. Se o acento cair na última sílaba, o<br />
tom decrescente (HL) deverá ocorrer dentro de uma única sílaba, exigindo maior esforço articulatório e resultando na
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As línguas tonais não são culminativas e os tons podem exibir função gramatical ou lexical.<br />
Elas também podem sofrer os processos de assimilação ou dissimilação, diferente das línguas<br />
acentuadas que exibem processos de redução acentual.<br />
Dentre as línguas tonais, há um grupo de línguas que são denominadas tonais acentuais<br />
(pitch-accent), em oposição às línguas acentuais (stress-accent) já delineadas acima. As línguas<br />
tonais acentuais apresentam a propriedade culminativa, característica das línguas acentuais, no tom,<br />
isto é, elas têm uma única melodia tonal previsível que pode ser atribuída a todas as palavras<br />
(raramente, duas melodias).<br />
A Teoria Autossegmental na análise dos sistemas prosódicos<br />
A teoria autossegmental consiste na estruturação das representações fonológicas, até então,<br />
consideradas pela Teoria Gerativa padrão (1968) como um pacote (bundle) de traços distintivos, não<br />
ordenados entre si, contidos à duração de um segmento. A teoria autossegmental propõe que as<br />
representações sejam organizadas em seqüências multilineares compostas por tiers (camadas), nas<br />
quais os processos fonológicos vão atuar, modificando sua organização. Cita-se, por exemplo, os<br />
tons que estão localizados em um tier diferente dos segmentos. Os tons e as unidades sustentadoras<br />
de tom, isto é, os segmentos (geralmente vogais e, algumas vezes, consoantes soantes) são ligados<br />
uns aos outros por linhas de associação. Conforme Clements e Goldsmith (1984), isto ocorre no<br />
nível das regras de acento e no nível subjacente tonal para as línguas tonais acentuais ou apenas<br />
neste último nível para as línguas tonais puras. Depois deste nível, as regras tonais irão se aplicar (e<br />
os associam às unidades de sustentação de tons. Pode-se resumir o sistema acentual fundamentado<br />
em Goldsmith (1982), citado por Clements e Goldsmith (1984):<br />
As associações entre segmentos e tons, na Teoria Fonológica autossegmental,<br />
são governadas pelas condições de boa formação (Well-Formedness Condition -<br />
WFC) reproduzidas abaixo:<br />
(2) Well-formedness Condition (WFC) 4<br />
menor proeminência deste contorno. Desta forma, o autor afirma que não é o stress, isto é, a intensidade, que é o sinal<br />
fonético mais importante da percepção da sílaba tônica e, sim, o pitch, da mesma forma que este caracteriza as línguas<br />
tonais. O que estaria correlacionado com as línguas stress seriam as mudanças de pitch e a sua diferença das línguas tonais,<br />
uma questão lingüística, e não fonética.<br />
4 Em português, este princípio é denominado Condições de Boa Formação.<br />
i. Todas as vogais são associadas à, no mínimo, um tom.<br />
ii. Todos os tons são associados à, no mínimo, uma vogal<br />
iii. Linhas de associação não podem se cruzar
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i. All vowels are associated with at least one tone.<br />
ii. All tones are associated with at least one vowel.<br />
iii. Association lines do not cross.<br />
(3) Associação de unidades sustentadoras de tom (t) e tons (T):<br />
t t t t...<br />
T T T<br />
Estas condições não têm por finalidade excluir as representações que desviam deste<br />
padrão, e sim, ser um mecanismo utilizado pelas línguas para satisfazer estas condições universais<br />
(ver modelo de associação na figura 3, acima). Aquelas que desviam do WFC podem ser explicadas<br />
por regras adicionais que completam o WFC, como as Convenções de Associação, propostas por<br />
Haraguchi.<br />
Diferente das línguas tonais, as línguas tonais acentuais apresentam uma melodia tonal<br />
previsível, denominada Melodia Tonal Básica, que é distribuída antes do nível subjacente do tom.<br />
Nesta, um tom da melodia é designado como acentual e ligado à vogal acentuada pelas regras de<br />
acento (ver figuras 1 acima e 4 abaixo). Depois, os outros tons são associados (ver figura 5, abaixo):<br />
(4) V* (5)...t t t* t t...<br />
T* T T* T<br />
Aos outros tons que não são designados acentos, a associação às unidades sustentadoras de<br />
tom (âncoras) ocorrerá através das Condições de boa Formação no nível da representação tonal<br />
subjacente (ver figuras 1 e 5, acima). Clements e Golsmith (1984) lembram que o conceito de<br />
acento não mantém nenhuma relação particular com propriedades fonéticas, tais como o stress e a<br />
amplitude.<br />
Os sistemas prosódicos acentuais e os sistemas prosódicos tonais das línguas Bantas<br />
Tom e acento no sistema nominal de Tonga por Goldsmith (1984)<br />
Tonga é a maior língua falada em Zâmbia, país africano localizado na África Austral. Para<br />
descrever o sistema tonal desta língua, Goldsmith (1984) fundamenta-se na Teoria autossegmental<br />
acentual. Segundo ele, Tonga é uma língua tonal acentual. Para descrevê-la, o autor utiliza da<br />
aplicação de um pequeno número de regras acentuais, não tonais que precedem o nível subjacente<br />
do tom. No nível subjacente do tom (Underlying Tone Level), é designada uma melodia (HL*) com<br />
uma cópia por acento derivado (uma para cada acento presente no nível subjacente do tom). Estas<br />
melodias são ligadas com as vogais da palavra por uma regra que associa o tom Low (tom baixo,<br />
doravante L) da melodia – o tom acentuado, como é chamado, para a vogal acentuada em questão.<br />
Segundo Goldsmith, Guthrie afirma que Tonga possui três classes tonais em radicais<br />
nominais dissilábicos e Carter (1962) afirma, também, a existência de três classes tonais para radicais<br />
monossílabos. A estas classes, Goldsmith (1984) adiciona uma quarta, que apresenta o padrão dos<br />
nomes polissílabos.
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Classe A 5: Atribui um tom L* na primeira vogal de cada radical verbal.<br />
(6) - radical monossilábico<br />
6a. í + bú + sì ‗smoke‘ (nome da classe 14)<br />
6b.í + kú + pà ‗to give‘ (nome da classe 15)<br />
i + bu + si*<br />
H L*<br />
(7) - radical dissilábico:<br />
7a. í + má + kànì ‗new affairs‘ (classe 6)<br />
7b. í + mó + òmbè ‗edge‘ (classe 3)<br />
i + ma + ka* ni<br />
H L*<br />
(8) Classe B2: A mesma melodia está presente, porém o tom L não é atribuído a primeira vogal do<br />
radical.<br />
8a. í + mú + súrè ‗ox‘ (classe 1)<br />
8b. í + mó + ómbè ‗calf‘ (classe 1)<br />
i + mu + sune*<br />
H L*<br />
(9) Classe B1: radicais monossilábicos que ora apresentam padrões tonais da classe A, ora podem<br />
sofrer uma regra de apagamento de –L, sendo marcados, desta maneira como irregulares.<br />
9a. í+má+lì ou í+má+lí ‗money‘ (classe 6)<br />
i+ma+li* ou i+ma+li<br />
H L* H<br />
(10) Classe C: Classe composta por nomes que apresentam o tom L em todas as sílabas. São<br />
analisadas como não-acentuadas.<br />
10a. ì+bù+sù ‗meal flour‘ (classe 14)<br />
10b. ì+kù+tì+à ‗to pour‘ (classe 15)<br />
i+bu+su<br />
5 Todos os exemplos citados são de Goldsmith (1984).
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L<br />
(11) Classe D: Polissílabos que apresentam o padrão de melodia HLHL. Este molde sofre uma<br />
regra de simplificação de tom que reduz o tom decrescente subjacente HL para apenas L na forma<br />
superficial. Esta regra ocorre no nível das regras tonais (ver figura 11a). Abaixo ilustra-se o exemplo<br />
com a palavra àcísyà que significa ‗uncle‘ (classe 1a):<br />
11a. à* cí syà*<br />
<br />
(H) L* H L*<br />
(12) Regra de Simplificação Tonal<br />
<br />
V<br />
## H L<br />
De acordo com Goldsmith, as classes A e B apresentam melodia básica tonal HL e a classe<br />
D, HLHL. Antes da aplicação das regras tonais (por exemplo, antes da regra de simplificação de<br />
tom), todas as palavras da língua Tonga possuem a melodia básica na forma (HL) . Ela possui a<br />
propriedade de aplicação da melodia tonal por fatoração, o que a caracteriza como uma língua tonal<br />
acentuada.<br />
Tonologia nominal em Digo, por Charles W. Kisseberth<br />
Conforme Kisseberth (1984), os nomes da língua Digo podem ser divididos em três grupos<br />
tonais distintos, quando estão entre pausas, ou, quando são antecedidos por verbos que ausentam o<br />
tom High (tom alto, doravante H). O primeiro comporta os nomes compostos apenas por tons L<br />
associados às vogais (ver exemplos em 12, abaixo). O segundo grupo apresenta apenas vogais<br />
associadas a tons L na forma superficial entre pausa e após verbos com que ausentam o tom H,<br />
porém, quando recebem o morfema de locativo –ni evidenciam o tom H (High) subjacente que<br />
possuem. Este está associado a sua antepenúltima vogal do nome, sofrendo neutralização e<br />
falhando na aplicação da regra de Deslocamento de tom Alto (H). Nos locativos, como este tom não<br />
está mais associado à penúltima vogal, e sim, a antepenúltima, ele é deslocado, pela regra citada<br />
acima, para a última vogal. Depois, sofrerá a aplicação da regra de Espraiamento de tom Alto para a<br />
esquerda (Leftwards High Spread) que espraia este tom para a vogal antepenúltima (ver exemplos<br />
em 13, abaixo). O terceiro grupo apresenta um tom High associado na sua forma subjacente. Este<br />
tom não sofre neutralização. Ele é deslocado para a última vogal produzindo uma seqüência<br />
ascendente-descendente nas últimas duas vogais ou um tom alto na antepenúltima (ver exemplos<br />
em 14, abaixo). Kisseberth (1984) afirma que se este tom estiver associado à penúltima vogal da<br />
palavra, ele deve ser marcado para não sofrer a regra de Neutralização. Se não, ele deve estar<br />
localizado em outra sílaba. Por fim, ele conclui afirmando que não é necessário determinar a<br />
localização exata deste tom, apenas saber que ele se desloca para a última vogal.
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A evidência significante que Digo é uma língua tonal é observada nas seqüências formadas<br />
por verbos e nomes. A análise dos nomes falados entre pausas e em contextos mostra como as<br />
mudanças tonais ocorrem.<br />
Após os verbos formados somente por tons baixos, as três classes acima se mantiveram<br />
inalteradas, da mesma forma como quando aparecem entre pausas. Porém, após verbos com tom H<br />
(aqui, exemplificaremos apenas os verbos com um tom H) ocorrem mudanças significativas, no<br />
contexto do sintagma verbal:<br />
16) Verbo com um tom H seguido por nomes de tom L - o tom H do verbo se desloca para o<br />
nome:<br />
Neste caso, o tom H será deslocado para a última vogal do sintagma verbal pela regra de<br />
Deslocamento de tom alto. Após, ele será espraiado para a penúltima vogal, pela regra de<br />
Espraiamento de tom alto para a esquerda. Após a aplicação destas regras os verbos não<br />
apresentarão tom, como em 15a, ou apresentarão um tom H, como em 15b, mantido ciclicamente<br />
na derivação, por ser seguido por um segmento obstruinte vozeado, que, segundo Kisseberth,<br />
sustenta um tom L.<br />
17) Verbo com um tom H que sofrem neutralização entre pausas seguido por nomes apenas com<br />
tom L:
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O tom do verbo, neutralizado quando entre pausas, se realizará no nome, por meio da<br />
regra de deslocamento de tom H e depois sofrerá a aplicação da regra de espraiamento para a<br />
esquerda.<br />
A regra de neutralização não ocorrerá no verbo, com H na penúltima vogal porque esta<br />
regra apenas ocorre em alguns sintagmas, isto é, na penúltima vogal do sintagma.<br />
Acerca dos fenômenos em Digo, Kisseberth afirma que ainda há muito que se estudar,<br />
como por exemplo, a relação das obstruintes vozeadas e o espraiamento de tom alto.<br />
Considerações finais<br />
Com o objetivo de tentar identificar algumas características que diferenciam os sistemas<br />
tonais puros e os sistemas tonais acentuais das línguas bantas, foi exemplificado acima,<br />
resumidamente, pelo prisma da teoria autossegmental, os sistemas da Tonga e de Digo.<br />
Conforme Goldsmith (1984), Tonga é uma língua tonal acentual porque apresenta um nível<br />
acentual, anterior ao nível tonal, que por meio de regras acentuais, fixa um tom a um segmento, ao<br />
qual é determinado acentual e que sofre as regras acentuais. Em Tonga a melodia é HL e o tom<br />
acentuado é o L*. Esta melodia tonal é previsível e capaz de ser gerada por fatoração. Digo, porém,<br />
é classificada como língua tonal porque não há melodia previsível. Suas regras tonais fazem<br />
referência às estruturas sintáticas, como por exemplo, a regra de neutralização citada acima, que é<br />
sensível ao sintagma. Observa-se, também, que nesta língua, os tons apresentam-se completamente<br />
autônomos e separados dos segmentos e possuem a capacidade de se espraiar, característico das<br />
línguas tonais.<br />
Referências<br />
CASTRO, Y. P. de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. 2ed. Rio de Janeiro:<br />
Top Book, 2005<br />
CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH. Autosegmental studies in Bantu Tone: Introduction. In:<br />
________. Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 1-18.<br />
GOLDSMITH, J. Tone and Accent in Tonga. In: CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH, John (org).<br />
Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 19-51.<br />
KISSEBERTH, C. W. Digo Tonology. In: CLEMENTS, G.N; GOLDSMITH, John (org).<br />
Autosegmental Studies in Bantu Tone. Dordrecht: Foris Publication, 1984. p. 105-182.<br />
HYMAN, L. M. Phonology: Theory and analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1975.<br />
PETTER, M. M. T. Minicurso em Línguas Africanas e Português Brasileiro, 1-4 de mar. de 2010. 11 f.<br />
Belo Horizonte. Notas de Aula. Impresso.<br />
Enviado – 29/07/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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A BELLE ÉPOQUE: OS LITERATOS E A BOÊMIA<br />
NO RIO DE JANEIRO DOS 1900.<br />
Luciana Marino do Nascimento 6<br />
Universidade Federal do Acre<br />
Luís Edmundo Bouças Coutinho<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />
Resumo: O presente trabalho constitui um recorte de nossa pesquisa de pós-doutorado intitulada<br />
―João do Rio: pintor da vida moderna‖, realizada sob a supervisão do Prof. Dr. Luis Edmundo<br />
Bouças Coutinho, no período de 2009/2010, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da<br />
Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Neste trabalho, pretende-se tecer algumas<br />
considerações sobre a vida literária na Belle Époque carioca, com destaque para a frequência dos<br />
poetas aos cafés e confeitarias da época, enquanto espaços de sociabilidade e de vida literária.<br />
Palavras-chave: Literatura, Belle Époque, Rio de Janeiro<br />
Abstract: This paper is part of the post-doctorate work entitled ―João do Rio: pintor da vida<br />
moderna‖, under supervision of Prof. Dr. Luis Edmundo Bouças Coutinho in post-graduation<br />
program in Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. The aim of this article is do<br />
some considerations about literacy life in carioca Belle Époque with focus on cafés and delis as places<br />
of sociability and literacy life<br />
Keywords: literacy, Belle Époque, Rio de Janeiro.<br />
A cidade pode ser entendida como um polo imantado que atrai, reúne e concentra os<br />
homens. Ela é o templo onde o homem celebra e promove dia após dia a sua habilidade de interagir<br />
e reinventar o ambiente. Como ícone da modernidade, a cidade foi apreendida por muitos sujeitos,<br />
sejam eles cidadãos comuns, políticos ou poetas, sendo que estes apreenderam a cidade e a<br />
tornaram matéria de poesia lírica. Sobre o discurso dos literatos sobre a cidade, Brito Broca assim se<br />
expressa:<br />
O que constitui o principal atrativo de uma cidade é o que poderemos<br />
chamar [de] seu mito. Paris, Londres, Roma, Lisboa, Madri e tantas<br />
outras urbes do velho mundo possuem todas uma mitologia e é a<br />
literatura que as cria. São os romances, os poemas, a história numa<br />
sedimentação profunda de impressões e reminiscências que formam (...)<br />
a superestrututura mitológica das cidades. (BROCA, 1993, p. 55)<br />
A cidade moderna gerada pela urbanização de fins do século XIX/início do século XX<br />
instaurou novas formas de sociabilidade, como footing e a frequência aos cafés, sendo que parte da<br />
vida literária esteve voltada para os cafés, sendo que estes foram associados na visão dos literatos,<br />
ao progresso e à civilização. Assim, José do Patrocínio, Olavo Bilac, Coelho Neto, Guimarães<br />
Passos, Paula Nei, entre outros, eram figuras constantes nos cafés e na Confeitaria Colombo. Brito<br />
Broca nos informa que na vida literária dos 1900, havia vários grupos que se dividiam entre a<br />
Confeitaria Colombo e os cafés:<br />
Os principais cafés ―literários‖ do Rio são, entre outros, os da última<br />
década do século 19 do período áureo da boêmia: o café do Rio no<br />
6 Docente dos cursos de Graduação em Letras e do Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade –<br />
Universidade Federal do Acre. Pós-doutorado em Ciência da Literatura pela UFRJ, sob a supervisão do Prof.<br />
Dr. Luís Edmundo Bouças Coutinho, 2009/2010.
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cruzamento da Rua do Ouvidor com a Gonçalves Dias; o Java, no Largo<br />
de São Francisco, esquina de Ouvidor; o café Paris, o Café Papagaio; o<br />
Café Globo, na Rua Primeiro de Março entre Ouvidor e o Beco dos<br />
Barbeiros (...). Pontos igualmente preferidos pelas celebridades literárias:<br />
Confeitaria Colombo, na Rua Gonçalves Dias e a Confeitaria Pascoal, na<br />
Rua do Ouvidor, além de outras menos freqüentadas como a Cailteau e a<br />
Castelões. (BROCA, 1960, p. 33)<br />
A Belle Époque instaurou um estilo mundano na literatura, ao captar a cidade em seus<br />
múltiplos acontecimentos, convertendo a literatura em verdadeiro festival de atração pela vida<br />
social:<br />
O corso em Botafogo (...) torna-se até certo ponto um espetáculo<br />
literário. Os escritores vão ali colher os potins, tecer intrigas. (...) Para<br />
atrair o público, a literatura procura valer-se da fotografia, das<br />
ilustrações, identificando-se tanto quanto possível com os motivos<br />
sociais e mundanos, nas revistas da época. (BROCA, 1960, p. 30)<br />
Na perspectiva de mostrar paisagens e também atividades sociais, dentro do estilo<br />
mundano, os cafés foram por excelência, palco da vida literária dos 1900, onde a euforia pelo<br />
progresso trouxe uma grande atração pela rua. De acordo com Benjamin, foi no bulevar que se deu<br />
a assimilação do artista na sociedade (BENJAMIN, 1991, p. 59), pois é nas ruas que o artista vai<br />
buscar material para sua arte. A rua se fixou no imaginário dos literatos da Belle Époque de tal forma,<br />
que a Rua do Ouvidor, por exemplo, tornou-se o grande fetiche (NEEDEL, 1993, p. 192).<br />
Os cafés eram lugares mais democráticos do que os salões e os clubes. Espalhados pela<br />
cidade e presentes pelas principais capitais da Europa, que constituíam a idei a-matriz de nossos<br />
cafés, sendo esses estabelecimentos os substitutos dos salões para as classes médias, jornalistas e<br />
escritores iniciantes, abrigando a efervescência e a inquietação provocada pelas novas idei as. O<br />
espaço dos cafés como local de discussões literárias e culturais demarcou também os grupos de<br />
literatos. No Café Papagaio, por exemplo, reunia-se a turma da música, com Chiquinha Gonzaga,<br />
Ernesto Nazaré, Paulo sacramento, como também o grupo de Lima Barreto, Bastos Tigre, Raul<br />
Braga, Frota Pessoa, Abreu Fialho, Fernando Magalhães, Mario Pederneiras, Gonzaga Duque, Lima<br />
Campos, sendo que, segundo o cronista da época, Luis Edmundo, ―os três últimos formavam uma<br />
rodinha à parte. O menos assíduo é o Mario, grande poeta de Ronda Noturna e das Palavras ao<br />
Léu, sempre ar tímido, pince-nez de vidros pretos, um maço de jornais e revistas debaixo do braço‖<br />
(EDMUNDO, 2003, p. 339). O mesmo Luis Edmundo nos mostra em uma de suas crônicas que o<br />
café Papagaio também se tornava um verdadeiro ―refúgio de Momo‖ no carnaval e com isso,<br />
observamos como a literatura se mesclava à cultura popular e os literatos frequentadores do Café se<br />
alinhavam ao carnaval:<br />
Raul organiza préstitos. Calixto compõe estandartes.Tigre alinha<br />
canções.João Foca, um pandeiro entre os dedos, ensaia o rancho.Frota<br />
Pessoa, furiosamente, raspa um reco-reco, Fernando Magalhães barulha<br />
um chocalho, Abreu Fialho sopra um canudo de papel. É quando surge<br />
o Cordeiro Jamanta, um travesti, de baiana, duas abóboras-d`água<br />
compondo a linha de seio farto.... E o cordão cai na rua! (EDMUNDO,<br />
2003, p. 341)<br />
A atuação do literato na rua e no carnaval nos mostra que este homem de letras perdeu sua<br />
aura de ser especial e, passou a alinhar-se às manifestações das ruas e como se pode observar está<br />
em cena, portanto, o riso carnavalesco e a quebra de barreiras e a inversão da ordem que o carnaval<br />
em si representa.
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Já o café Paris tinha em sua lista de frequentadores assíduos jornalistas e escritores como,<br />
Antonio Austregésilo (poeta que assinava como Antonio Zilo), o Filólogo Carlos Góis, o escritor<br />
anarquista, Domingo Ribeiro Filho, Vítor Viana, Trajano Chacon, entre outros, como bem descreve<br />
Luis Edmundo:<br />
São oito horas da noite. As luzes do café estão todas acesas. Os boêmios<br />
começam a chegar. Lá está o Trajano Chacon, o que fundou a Ateneida,<br />
de ar majestoso, sério, arrasando o Balzac, exaltando Gogol, de tal forma<br />
a provar que a escola naturalista veio da Rússia e não da França.<br />
(EDMUNDO, 2003, p. 350)<br />
Tal qual nos cafés parisienses, ainda que, guardadas as proporções, o ambiente do café,<br />
tornava-se espaço para a recitação de poemas, conforme nos mostra Luis Edmundo, em muitas de<br />
suas crônicas. Além dos cafés, a Confeitaria cumpriu seu papel para além do espaço de rodas<br />
literárias, pois a confeitaria reunia também as famílias em certa hora do dia, como também as<br />
mulheres, que não entravam nos cafés, mas na Confeitaria, encontravam as amigas e foi a<br />
Confeitaria Colombo que melhor representava esse espaço. Entretanto, junto da Colombo, existia a<br />
Confeitaria Pascoal, que primeiramente reuniu a roda literária de Paula Nei, Bilac, Pardal Mallet,<br />
José do patrocínio, B, Lopes, Emílio de Meneses, Plácido Júnior, entre outros, que mais tarde<br />
migraram para a Colombo e sem dúvida, se tornaram o grupo mais célebre. No âmbito da<br />
Confeitaria Colombo, também se exercitavam os epigramas e a lírica satírica e foi Emilio de<br />
Meneses quem praticou essa escrita humorística e de próprio punho escreveu um epitáfio para seu<br />
túmulo, externando sua crise financeira:<br />
Morreu em tal quebradeira<br />
Que nem pôde entrar no Céu<br />
Pois só levou cabeleira<br />
Bigode, banha e chapéu. (In: EDMUNDO, 2003, p. 393)<br />
Emilio de Meneses escreveu inúmeros versos satíricos, dirigidos a alguns literatos<br />
frequentadores da Colombo, como Bandeira Júnior, Pinto da Rocha e João laje. Entretanto, Emilio<br />
de Meneses também foi alvo de pilhérias, como foi o caso de um soneto escrito por Bastos Tigre,<br />
no qual foram satirizadas sua forma física e sua ―língua fatal‖ (EDMUNDO, 2003, p. 393-394).<br />
Brito Broca ressalta que, muitos desses literatos boêmios superestimaram a anedota e ―pareciam<br />
mais empenhados em deixar anedotas do que obras‖ (BROCA, 1960, p. 38):<br />
Pelas mesas dos cafés, verificava-se o desenvolvimento de grande atividade panfletária em verso; é<br />
Bastos Tigre agredindo num soneto a elegância de Guerra Duval; é Bilac satirizando um medíocre<br />
qualquer; e Emílio de Meneses ―enterrando‖ as celebridades do dia com seus temíveis epitáfios.<br />
(BROCA, 1960, p. 38)<br />
De toda a boêmia frequentadora dos cafés, os literatos que se tornaram mais conhecidos<br />
foram José do Patrocínio, Olavo Bilac, considerado príncipe dos poetas, Aluísio de Azevedo,<br />
Coelho Neto, Guimarães Passos e Paula Ney, sendo que este último não chegou a publicar nenhum<br />
livro e tornou-se conhecido apenas pelos poemas e epigramas que escreveu e recitou nos cafés<br />
(NEEDEL, 1993, p. 223). Foi, portanto, entre os cafés e a Rua do Ouvidor que os literatos da Belle<br />
Époque ―construíram suas reputações e reinaram, rimando, declamando, fofocando e debatendo<br />
seus ideais e sonhos‖ (NEEDEL, 1993, p. 222).<br />
Frente à posição de prestígio da Colombo e de suas rodas literárias, Paulo Barreto, o João<br />
do Rio organizou um grupo de oposição, do qual fizeram parte Camerino Rocha, Vítor Viana,<br />
Mário Guaraná e outros, tendo como alvo o grupo de Bilac:<br />
Procuram hostilizar com zombarias a roda de Bilac a quem chamam de Sr. Bilac, opondo a Musa<br />
Verde (o absinto) dos poetas da Colombo, que costumam quase todos embebedar-se, o culto de
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Nietzche, o filósofo do super-humanitismo. Não conseguindo, porém, estabelecer a cisão no grupo,<br />
como pretendiam, acabam pouco a pouco, deixando a Rua do Ouvidor e passando para Gonçalves<br />
Dias. (BROCA, 1960, p. 34)<br />
Posteriormente, a boêmia literária entrou em decadência, quer seja pela morte de alguns<br />
boêmios como também pela mudança na configuração da cidade e nos parâmetros da vida literária,<br />
tendo em vista que para ocupar espaço na Academia de Letras, exigia decoro e compostura, o que<br />
fez com que muitos literatos boêmios abandonassem os cafés (BROCA, 1960, p. 9).<br />
Ainda que grande parte desses escritores boêmios não tenha sobrevivido nas hostes<br />
literárias e nem tenham se projetado para a posteridade, torna-se importante reconhecê-los como<br />
participantes da vida literária da Belle Époque carioca, como produtores de escritas sintonizadas ao<br />
panorama literário da época, inseridos na boêmia literária. Por outro lado, deve-se reconhecer a<br />
importância de se rastrear a produção literária – mesmo àquela considerada ―menor‖ – para<br />
incorporá-la ao ―caldo cultural‖ que revela a produção de uma determinada época, onde também se<br />
lê a literatura.<br />
Referências<br />
BENJAMIN, Walter. Sociologia. KOTHE, Flávio R. (Org.). 2. ed. São Paulo: Brasiliense,1991.<br />
BROCA, Brito J. A vida literária no Brasil – 1900. V.108, 2. ed. ren. e aum. Rio de Janeiro: Livraria<br />
José Olympio Editora, 1960. (Coleção Documentos Brasileiros. Dir. Octávio Tarquínio de Souza.)<br />
BROCA, Brito J. Teatro das letras. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1993. (Coleção Repertórios.<br />
Coord. Alexandre Eulálio.)<br />
EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2003.<br />
NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do<br />
século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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CRASE: SOLUÇÃO OU PROBLEMA?<br />
Luciane de Oliveira Morales<br />
Licenciada em Letras – Universidade Federal de Pelotas - RS<br />
Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior - Faculdade Anhanguera de Pelotas<br />
Aluna especial do Mestrado em Estudos da Linguagem – pela UFP RS<br />
Professora do Ensino Fundamental da rede Estadual de Pelotas.<br />
Rebeca Bulcão da Silva<br />
Licenciada em Letras – Universidade Federal de Pelotas<br />
Especialização em Didática e Metodologia do Ensino Superior – Faculdade Anhanguera de Pelotas<br />
Aluna especial do Mestrado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Pelotas.<br />
Resumo: O emprego da crase gera um desconforto para a maioria das pessoas porque não<br />
entendem a sua funcionalidade no texto. A sensação de ser um acento desnecessário, e sua<br />
utilização de difícil compreensão, faz com que a crase seja vista como mais um fator para dificultar<br />
o processo da escrita. Apresentaremos, neste artigo, duas posições sobre o uso da crase: uma na<br />
perspectiva normativa e outra com enfoque no sentido produzido, evidenciando seu caráter<br />
semântico. Após, abordaremos esse fenômeno linguístico, por meio de exemplos, constatando que<br />
se trata de uma ferramenta importante para evitar a ambiguidade no texto.<br />
Palavras-chave: crase, ambiguidade, sentido.<br />
Abstract: The use of the grave accent creates discomfort for most people because don't understand<br />
its functionality in the text. The feeling of being an unnecessary accent, and the difficulty to fully<br />
understand its use, makes it seen as another factor to hinder the writing process. We will present in<br />
this article, two positions on the use of the grave accent: a normative view and the other focusing<br />
on textual evidence of its semantic character. After we will discuss this linguistic phenomenon, by<br />
example, noting that it is an important tool to avoid ambiguity in the text.<br />
Keywords: grave accent (crase), ambiguity, direction<br />
Introdução<br />
É possível notar que a utilização da crase sempre foi e continua sendo um problema para a<br />
maioria da população brasileira. Alguns preferem omiti-la, enquanto outros a usam em excesso.<br />
Torna-se difícil memorizar tantas regras explicitadas pela gramática tradicional. Muitos usuários da<br />
língua defendem que, para evitar a inadequação, a crase deveria ser abolida. Porém, se tal fato<br />
ocorresse, traria um sério transtorno para o uso da língua, já que esse acento tem a importante<br />
função semântica de desfazer a ambiguidade. Luft (2005) afirma que as crianças intuem a utilização<br />
da crase, porém quando são ensinadas na escola, perdem tal capacidade. Isso por serem expostas a<br />
um universo ilimitado de regras e listas acerca desse acento, que se dividem em obrigatórias,<br />
facultativas, proibitivas e outros casos especiais, dificultando o domínio de seu uso.<br />
Em 2005, o assunto se tornou polêmico e o então deputado João Herrmann Neto tentou<br />
implantar o projeto de lei nº 5.154 que extinguia a crase. Para ele, a maioria das pessoas ignora a<br />
ocorrência da crase na maior parte das expressões em que ela aparece. "As ambiguidades podem ser<br />
desfeitas com o estudo e a análise do texto, sem considerar esse sinal obsoleto que o povo já fez<br />
morrer" (HERRMANN NETO 2005, apud MASSON NETO 2009, p.1).<br />
Esse posicionamento foi alvo de críticas por gramáticos e linguistas que condenaram com<br />
veemência tal projeto. Herrmann apoiou-se na crônica de Moacyr Scliar ―Tropeçando nos
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Acentos‖, na qual o escritor reclama do excesso de acentos do português brasileiro e faz menção ao<br />
uso da crase. Scliar defende que sua crônica foi interpretada equivocadamente, pois é a favor da<br />
redução dos acentos, mas acredita ser necessário um estudo linguístico mais aprofundado sobre o<br />
assunto antes de qualquer tipo de reforma ortográfica. Com base no uso da crase, Scliar menciona o<br />
fato que a população brasileira pode ser dividida em duas classes: uma minoria, que sabe utilizar<br />
com propriedade esse fenômeno fonético e a maioria, que tem medo de usá-la, conforme<br />
demonstra um trecho da crônica publicada no jornal Zero Hora (2009):<br />
Alguém já disse que os ingleses conquistaram o mundo porque não<br />
precisavam perder tempo acentuando as palavras. Pode não ser verdade,<br />
mas o gasto de energia representado pelos agudos, pelos circunflexos,<br />
pelos tremas, impressiona. E a pergunta é: para quê, mesmo? Alguém já<br />
disse que a crase não foi feita para humilhar ninguém. Tenho minhas<br />
dúvidas: acho que a crase foi feita, sim, para humilhar. A população se<br />
divide em pobres e ricos, mas também se divide em dois grupos, os que<br />
sabem usar a crase, a minoria, e a maioria que tem um medo existencial a<br />
este sinal. (...) Há duas soluções para o problema. Uma é representada<br />
por esses dispositivos de correção que hoje fazem parte dos programas<br />
de computação (mas que às vezes cometem erros lamentáveis). Outra<br />
seria uma revolução na grafia que reduzisse os acentos ao mínimo<br />
possível ou, melhor ainda, a zero. (SCLIAR 2005, apud MASSON<br />
NETO, 2009, p. 1)<br />
Conforme Luft (2005), o acento grave ( ` ) tem duas aplicações distintas. A primeira é<br />
demonstrar a fusão da preposição (a) com o artigo (a). Já a segunda serve para evitar a ambiguidade<br />
em expressões de circunstância em que a preposição aparece com substantivo feminino singular e<br />
que não deve ser confundida com o artigo. Esses dois casos serão analisados ao longo do<br />
desenvolvimento deste artigo, principalmente, o segundo deles, que será mais evidenciado pela<br />
necessidade da utilização da crase, acima de tudo, como um indicativo de clareza no texto.<br />
Serão apresentados, neste trabalho, exemplos e reflexões sobre a importância semântica do<br />
objeto de estudo, demonstrando que nem sempre é possível desfazer a ambiguidade, levando em<br />
consideração apenas o contexto. Esse fenômeno linguístico será abordado e discutido sob o<br />
enfoque semântico, diferentemente de como é apresentado nas gramáticas normativas que<br />
dificultam o entendimento e a percepção da finalidade do uso da crase.<br />
Fundamentação teórica<br />
De acordo com Coutinho (apud Almeida, 2009), no período fonético, que começa com os<br />
primeiros documentos redigidos em português, e termina no século XVI, verificava-se a existência<br />
do uso de hiato que, com o passar do tempo, se desfez em ditongo ou crase. A crase foi um<br />
fenômeno fonético significativo na evolução do latim para o português. Vale lembrar que a palavra<br />
crase provém do grego (krásis) e designa mistura, combinação, fusão. Pode-se destacar que:<br />
―Coincide este período com a fase arcaica do idioma. O objetivo a que visavam os escritores ou<br />
copistas da época era facilitar a leitura, dando ao leitor uma impressão, tanto quanto possível exata,<br />
da língua falada.‖ (COUTINHO, 1974 apud ALMEIDA, 2009, p.3)<br />
O seguinte exemplo mostra como esse processo se desenvolveu: sedēre > seder > seer ><br />
ser. No caso específico de sedere, ocorreu a síncope 7 da consoante d, que resultou na formação da<br />
7 Segundo Botelho e Leite (2006), síncope designa uma alteração fonética por supressão que ocorre no<br />
interior de uma palavra.
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vogal dobrada ee. Posteriormente, pela acomodação fonológica, houve a fusão (a crase) do e. Na<br />
escrita, o acento grave aparece na vogal (a) para indicar a contração.<br />
Sob uma perspectiva da gramática normativa, Cegalla (2002, p. 256) mostra casos em que a<br />
crase ocorre. Segundo o autor, a contração da preposição a pode ocorrer com:<br />
o artigo feminino a ou as;<br />
Ex.: Fomos à cidade e assistimos às festas.<br />
o pronome demonstrativo a ou as;<br />
Ex.: Chamou as filhas e entregou a chave à mais velha.<br />
o a inicial dos pronomes aquele(s), aquela(s), aquilo.<br />
Ex.: Refiro-me àquele fato. Poucos vão àquela ilha.<br />
Nessa esteira, Sacconi (1994, p. 214) explicita que toda fusão de vogais idênticas forma<br />
uma crase:<br />
à = crase da preposição a + o artigo a;<br />
àquilo = crase da preposição a + a primeira vogal do pronome aquilo.<br />
Sacconi (1994, p. 214) define o processo de contração como toda união de uma preposição<br />
com outra palavra, havendo perda ou transformação de fonema e diz que “a crase não deixa de ser<br />
um caso especial de contração”.<br />
Nesse sentido, Bechara (apud Machado, 2005) afirma que a extinção dos sinais gráficos é<br />
um absurdo, como é o caso da crase. E ainda Neves (apud Machado, 2005), sob uma perspectiva da<br />
gramática funcional, faz questão de frisar que para uma reforma desse tipo é necessário que seja<br />
cientificamente fundamentada e não como uma forma de facilitar o estudo.<br />
Conforme explica Luft (2005, p. 16), a crase tem a finalidade de:<br />
sinalizar uma fusão: indica que o a vale por dois (à) como, por exemplo, ―Dilma<br />
Rouseff compareceu às CPIs‖.<br />
evitar ambiguidade: sinaliza a preposição (a) em expressões de circunstância com<br />
substantivo feminino singular, indicando que não se deve confundi-la com o artigo (a).<br />
―Dilma Rousseff depôs à CPI‖. Sem a marca da crase, a frase hipotética se revelaria<br />
ambígua: Dilma destituiu a comissão parlamentar de inquérito ou apenas deu<br />
depoimento à comissão? O sinal de crase assume a importante função de eliminar a<br />
dúvida.<br />
O autor denomina o primeiro caso como índice de contração (crase); e o segundo, como<br />
índice de preposição (clareza), como veremos a seguir.<br />
Crase: índice de contração<br />
A contração ou fusão de vogais idênticas se dá o nome de crase. Trata-se do fenômeno que<br />
ocorreu com palavras que passaram do latim para o português como, por exemplo: colore> coor><br />
cor. Essa mesma contração é verificada na pronúncia das palavras compreender, caatinga etc, porém,<br />
ortograficamente, elas apresentam duas vogais ou nas expressões como em todo o mundo, começa a
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chover etc, que mantêm na escrita a independência das vogais, no entanto, na oralidade não se<br />
percebe essa independência.<br />
A gramática normativa, em muitos casos, utiliza o termo crase somente para indicar a<br />
contração da preposição (a) com o artigo (a) e com o (a) inicial dos pronomes demonstrativos<br />
aquele (s), aquela (s) e aquilo. O que se pode perceber nos seguintes enunciados:<br />
Você vai [a] (um) lugar.<br />
Você vai [a] ( ) Brasília.<br />
Você vai [a] (o) parque.<br />
O verbo ir pede a preposição [a]: você vai a algum lugar. Na primeira frase, verifica-se a<br />
presença de uma preposição [a] e um artigo indefinido (um); na segunda frase não há artigo,<br />
somente preposição, porque o substantivo próprio Brasília não admite artigo, pode-se perceber isso<br />
quando a frase é iniciada por esse substantivo: ( )Brasília é... . Já na terceira frase há, na escrita, a<br />
união de dois vocábulos [a] (o), demonstrando a junção de uma preposição [a] e um artigo definido<br />
masculino (o). Ao substituir a palavra parque por um substantivo feminino como, por exemplo,<br />
escola, nota-se a presença de uma preposição [a] e um artigo definido feminino (a), resultando então<br />
em (aa), na escrita, representado por um a acentuado (à), foneticamente denominado de crase.<br />
Você vai à escola.<br />
O mesmo acontece com o (a) inicial dos demonstrativos: você vai [a] aquela praça, que<br />
resulta em você vai àquela praça.<br />
Para simplificar o estudo da crase, analisa-se a existência da preposição (a) e do artigo ou<br />
demonstrativo (a), saída para a qual nem todos conseguem aplicar. Em alguns casos, usa-se o<br />
acento não só para a crase (fusão da preposição com o artigo), mas para a preposição, em contraste<br />
com o artigo não acentuado, o que acaba resultando no aumento do número de acentos, além de, às<br />
vezes, serem desnecessários.<br />
De acordo com Luft (2005), a melhor alternativa seria tornar o acento grave facultativo,<br />
dessa forma, o índice de erros reduziria e a preocupação escolar com a temida crase chegaria ao fim,<br />
restringindo sua utilização apenas para situações em que o contexto não esclarece a mensagem, ou<br />
seja, com a finalidade de desfazer a ambiguidade, como se pode verificar nos exemplos abaixo:<br />
Ele cheira a gasolina.<br />
Ele cheira à gasolina.<br />
O primeiro caso, ―ele cheira a gasolina‖, refere-se ao fato de cheirar ou aspirar o<br />
combustível, enquanto a segunda frase diz respeito a exalar, cheirar tal qual o produto.<br />
Luft (2005) aponta recursos (expedientes) a que se pode recorrer para que as dúvidas sejam<br />
solucionadas:<br />
Expediente gramatical: verificar a presença da preposição [a] e do artigo (a).<br />
A presença da preposição [a] ocorre na regência de alguns verbos tais como ceder, comunicar,<br />
etc, para unir palavras como corpo a corpo, máquina a vapor etc, e para indicar circunstâncias como<br />
vender a vista, aos domingos etc.<br />
A presença do artigo (a) exige três condições: deve haver um substantivo (às vezes<br />
subentendido) como à direita do [a]; o substantivo deve ser feminino, podendo antepor-se às<br />
palavras ―Falo da –‖ e deve ser usado em sentido determinado e não em sentido geral como a<br />
(aquela) criança gosta de bala/ criança (= as crianças em geral).
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Exemplo:<br />
a) Os alunos falaram à diretora.<br />
Quem fala, fala a alguém (regência), a diretora é substantivo feminino, portanto, é uma<br />
pessoa determinada. Logo: [a] (a) = à (crase).<br />
Expediente da, na, pela: procurar substituir o [a] por outra preposição,<br />
particularmente para, de, em, por. Feito isso, se terá à se o resultado for preposição<br />
+ a: para a, da, na, pela. Se a substituição da preposição for para, de, em, por, não<br />
haverá crase.<br />
Exemplo:<br />
a) Meus primos foram [a] cidade. Meus primos foram para a cidade. Logo: meus primos<br />
foram à cidade.<br />
Expediente ao: procurar substituir a palavra feminina por uma masculina. Se a<br />
substituição resultar em ao se terá (aa) à. Se o resultado for a ou o, não haverá<br />
acento.<br />
Exemplo:<br />
a) Ela ia [a] padaria. Ela ia ao supermercado. Logo: ela ia à padaria.<br />
Expediente a uma (certa): quando se pode acrescentar palavras como a esta, a essa, a<br />
aquela (=àquela) têm-se à, quando se pode acrescentar palavras como a uma, a<br />
nenhuma, a certa, a qualquer, não ocorrerá crase.<br />
Exemplo:<br />
a) Quanto [a] luta, foi sacrificante. Quanto a essa luta (ou a aquela= àquela), foi sacrificante.<br />
Logo: quanto à luta, foi sacrificante.<br />
Na gramática normativa, como é o caso da do Cegalla (2002), por exemplo, a crase é listada<br />
em casos obrigatórios, casos especiais ou facultativos e casos que não admitem a sua utilização. Há<br />
tantas regras, ao ponto que se torna tarefa árdua memorizá-las, pode-se citar, por exemplo, casos<br />
em que não ocorre a crase: antes de palavras masculinas; antes de pronomes indefinidos e<br />
pronomes pessoais e interrogativos; nas locuções formadas com a repetição da mesma palavra;<br />
antes de verbos; antes de numerais cardinais referentes a substantivos não determinados pelo artigo,<br />
usados em sentido genérico; antes da palavra casa, no sentido de lar, quando não acompanhada de<br />
adjetivo ou locução adjetiva etc. Essa abordagem não permite que o aluno compreenda o uso ou a<br />
finalidade semântica da crase, pois, em muitos casos, a presença ou ausência do artigo não é<br />
percebida, o que ocasiona maior dificuldade para dominar a escrita e causa insegurança no uso de<br />
sua própria língua.<br />
Em contraste a essa concepção prescritiva, Luft (2005) propõe, por meio de exemplos<br />
práticos e passíveis de entendimento, o uso ou não da crase em determinadas situações sob o ponto<br />
de vista semântico, ressaltando a importância desse uso, principalmente, para desfazer a<br />
ambiguidade.<br />
O acento como índice de preposição: clareza<br />
No contexto: O operário pinta a máquina, é possível notar que a frase apresenta ambiguidade,<br />
pois pode indicar que a máquina é pintada pelo operário ou o operário pinta com a máquina. Essa<br />
ambiguidade é decorrente da impossibilidade da interpretação do a como preposição ou artigo.<br />
Nesse caso, o contexto poderia auxiliar na compreensão do sentido. Na fala, geralmente há reforço<br />
do acento da preposição em oposição à atonicidade do artigo.
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Gramáticos discutem, alguns até proíbem tal acento, pois acreditam que se trata de<br />
ambiguidades ilusórias, impossíveis de ocorrer na maioria das vezes: texto escrito a máquina, ferir a<br />
faca, vender a vista etc, sendo então o acento dispensável, nesses casos.<br />
quando não se trata de crase, é facultativo o acento, embora necessário<br />
em contextos ambíguos ou de leitura embaraçosa. mas não se confunda a<br />
preposição (indicativa de instrumento, modo, fim, tempo, lugar, etc.)<br />
com legítimos casos de preposição + artigo (crase): escrever /pintar à<br />
mão = escrever /pintar com a mão; pesquisar à noite = durante a noite,<br />
pela noite. (luft, 2005, p. 29)<br />
Em contrapartida, a gramática normativa enumera várias locuções em que há utilização do<br />
acento: apanhar à mão, fechar à chave, à maneira de , à noite, à toa etc. Segundo Luft (2005), nas frases em<br />
que se tem a + substantivo feminino singular, exprimindo circunstância, acentua-se o a mesmo que<br />
seja somente preposição, pois é um acento facultativo e também índice de clareza, quando a<br />
situação é ambígua.<br />
Considerações finais<br />
Comprovadamente ineficaz, o ensino tradicional da gramática, ainda hoje desenvolvido na<br />
escola, deve ser reformulado, já que a memorização de regras e exceções, a partir de frases<br />
descontextualizadas, faz com que até mesmo os falantes nativos sintam-se inseguros em relação ao<br />
próprio idioma e passem a desenvolver aversão à língua portuguesa, principalmente com relação à<br />
escrita. Para um ensino eficaz, é necessária uma abordagem pela perspectiva textual, conforme<br />
evidenciam os autores:<br />
O objeto de estudo privilegiado no ensino de linguagem, ao<br />
abandonarmos o formalismo gramatical, deve ser o texto, na medida em<br />
que ele é, de fato, a manifestação viva da linguagem. Nesse sentido, até<br />
mesmo o ensino dos aspectos normativos estaria subordinado ao<br />
trabalho com o texto, isto é, as regras gramaticais não seriam mais<br />
ensinadas por meio de frases soltas, abstraídas de contexto, e sim na<br />
perspectiva de sua funcionalidade textual. Em outras palavras, a proposta<br />
dos lingüistas reivindica o abandono da memorização exaustiva dos<br />
conceitos e normas gramaticais em frases descontextualizadas, em favor<br />
da percepção prático-intuitiva dos fatos gramaticais presentes no texto.<br />
Em síntese, parece claro que essa mudança de visão sobre o ensino de<br />
linguagem, embora à primeira vista possa parecer apenas uma mudança<br />
de opção prática, aponta para problemas de ordem teórica acerca da<br />
linguagem que transcendem os limites da preocupação exclusiva com o<br />
seu ensino. (FARACO; CASTRO, 2000, p. 2)<br />
Pode-se concluir, então, que para estudar a crase de forma produtiva, é necessário que haja<br />
uma discussão entre professores e alunos sobre a construção de sentido no texto, as variedades<br />
linguísticas existentes e a mudança provocada pela utilização (ou não) do acento. É nesse sentido<br />
que o objetivo do educador deve ser o de subsidiar os alunos para que possam compreender o<br />
raciocínio linguístico a ser empregado.<br />
A crase é principalmente um indicativo de clareza e, segundo Luft (2005), não há nenhuma<br />
regra a decorar, para saber empregá-la basta o raciocínio (a compreensão do sentido). Além disso, a<br />
utilização adequada desse fenômeno linguístico faz com que ambiguidades sejam evitadas, ou ainda,<br />
sejam usadas, propositadamente, conforme a intenção do autor.
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É importante salientar que por não ser foneticamente perceptível, a maioria das pessoas se<br />
sente incapaz de compreender e não consegue perceber que sua apreensão deverá ser pela estrutura,<br />
pela sintaxe e pelo sentido. Porém, não se pode admitir que falantes nativos do português brasileiro<br />
se achem incompetentes e que afirmem não saber português, por não saberem utilizar a crase (e<br />
outros fenômenos linguísticos de nossa língua).<br />
Desde os primeiros anos de vida, a criança já possui o domínio da língua materna,<br />
portanto, sabe português. Cabe à escola apresentar a variedade de prestígio (a língua padrão), à qual<br />
todos os alunos têm direito e, consequentemente, a utilização dos acentos e demais fenômenos<br />
linguísticos importantes à constituição do sentido desejado.<br />
Aulas expositivas, reflexivas, com análises em textos, verificando como o sentido é<br />
construído, baseadas na intuição do falante nativo seriam de grande valia para a compreensão e para<br />
a apreensão do uso semântico da crase. Deixando de lado, assim, as listas e as regras decoradas,<br />
improdutivas e ineficientes, ainda tão valorizadas no meio escolar.<br />
Referências<br />
ALMEIDA, Miguél Eugenio. Ocorrências Ortográficas em Foral de Penella. Disponível<br />
em:. Acesso em 12 de<br />
dez. de 2009.<br />
BOTELHO, José Mário; LEITE, Isabelle Lins. Metaplasmos contemporâneos: Um estudo acerca das<br />
atuais transformações fonéticas da Língua Portuguesa. Disponível em:<<br />
http://www.filologia.org.br/cluerj-sg/anais/ii/completos/comunicacoes/isabellelinsleite.pdf><br />
Acesso em 12 de dez. de 2009.<br />
CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia<br />
Editora Nacional, 2002.<br />
FARACO, Carlos Alberto; CASTRO, Gilberto de. Por uma teoria lingüística que fundamente o ensino de<br />
língua materna. Disponível em: < http://www.educaremrevista.ufpr.br/arquivos_15/<br />
faraco_castro.pdf>. Acesso em 10 de dez. de 2009.<br />
HERRMANN NETO, João. Projeto de lei. Disponível em: . Acesso em 12 de dez. de 2009.<br />
LUFT, Celso Pedro. Decifrando a crase. São Paulo: Globo, 2005.<br />
MACHADO, Josué. Crase Fora da Lei. Disponível em:<br />
.<br />
Acesso em 22 de nov. de 2009.<br />
MASSON NETO, Ângelo. Como usar a crase sem crise. Disponível em: <<br />
http://revistaescola.abril.com.br/ensino-medio/como-usar-crase-crise-475416.shtml>. Acesso em<br />
12 de dez de 2009.<br />
SACCONI, Luiz Antonio. Gramática Essencial Ilustrada. São Paulo: Atual, 1994.<br />
Enviado – 29/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO ANARQUISTA: O ORFANATO DE PRÉVOST<br />
Luciano Ricardo Nascimento 8<br />
Celso Kraemer 9<br />
Resumo<br />
O presente texto discute a experiência de Paul Robin (1837-1912) no Orfanato de Prévost, França,<br />
no século XIX. A experiência de educação em Prévost retoma as linhas históricas do pensamento<br />
anarquista na Europa, alicerçada por pensadores como Proudhon e Bakunin. Robin foi o principal<br />
nome no que tange a educação libertária no século XIX, aplicando no dia-a-dia, as inúmeras<br />
questões educacionais que vinham sendo discutidas nos meios socialistas e anarquistas. O orfanato<br />
é considerado uma iniciativa educacional importante, dentre as diversas que se desenvolveram na<br />
Europa no século XIX e XX.<br />
Palavras-chave: Educação. Anarquismo. Paul Robin.<br />
Abstract<br />
This paper discusses the experience of Paul Robin (1837-1912) in Orphanage of Prévost, France in<br />
the nineteenth century. The experience of education Prévost takes over the historic lines of<br />
anarchist thought in Europe, founded by thinkers like Proudhon and Bakunin. Robin has been the<br />
leading name when it comes to libertarian education in the nineteenth century, applying the day-today,<br />
the many educational issues that were being discussed in the media socialists and anarchists.<br />
The orphanage is an important educational initiative, among several that have developed in Europe<br />
in the nineteenth and twentieth centuries.<br />
Keywords: Education. Anarchism. Paul Robin.<br />
Introdução<br />
O objeto de estudo do presente artigo é a experiência de Paul Robin no Orfanato de<br />
Prévost: um experimento da educação anarquista.<br />
No meio acadêmico e para grande parte da população, são inúmeras as interpretações e os<br />
termos utilizados, muitas vezes de forma equivocada, sobre os conceitos aplicados a determinados<br />
grupos ou pensamentos ideológicos; com o anarquismo não é diferente, na Europa produziu-se<br />
―uma fobia antianarquista‖ por um longo período após a revolução russa. No Brasil não foi de<br />
outra forma, conforme relata Dulles (1977):<br />
A campanha antianarquista produzida pelo PCB começou em abril de<br />
1922, com a publicação em Movimento Communista de um artigo que<br />
Canellas afirmava que os anarquistas haviam se manifestado a favor da<br />
guerra mundial e pegaram em armas para defender o ‗Czar, o rei da<br />
Inglaterra e Poincaré‘. Canellas disse ainda que milhares de anarquistas,<br />
para ‗seguiram a moda‘, ‗desataram a dizer sandices sobre a revolução<br />
russa, muitas delas copiadas de jornais ou traidores‘.(DULLES, 1977,<br />
p.160.)<br />
8Graduado em Direito pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior de Blumenau - IBES(Blumenau/SC).<br />
Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Catarinense de Pós-Graduação -<br />
ICPG (Blumenau/SC). Mestrando em Educação pela Fundação Universitária Regional de Blumenau - FURB<br />
(Blumenau/SC). e-mail: cinebludvd@hotmail.com<br />
9Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil(2008)<br />
Professor titular da Universidade Regional de Blumenau , Brasil. e-mail: kraemer250@gmail.com
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O anarquismo antes de ser posto à prova, de ser testada sua praticabilidade, ganhou<br />
inimigos em todas as camadas sociais, conforme mostra Rodrigues (1988): na burguesia porque esta<br />
tinha medo de perder suas fortunas advindas dos braços dos trabalhadores; entre os políticos e<br />
governantes por não desejarem ficar ‗desempregados‘ e assim ter de produzir seus próprios<br />
sustentos; na Igreja por receio de que as pessoas emancipadas dispensassem seus serviços, ficando a<br />
igreja desta forma ocupando um papel secundário na sociedade.<br />
Para as anarquistas, segundo Rodrigues (1988), a escola oficial tinha o mérito de ensinar a<br />
ler e escrever, mas tinha o defeito de deformar a inteligência, o caráter, condicionar os alunos à<br />
submissão e à obediência. Para os anarquistas, saber ler não era tudo. O aluno precisa aprender a<br />
verdade histórica, científica e social. O anarquista queria um ser humano educado, instruído, culto,<br />
despido de ódio, de rancor, de inveja, com capacidade para se auto- governar, gerir seus atos, ser<br />
livre e cultivar a liberdade como a vida, todos os dias<br />
Martín Luengo et al (2000) aponta que a educação libertária se forma com pessoas que<br />
sentem, pensam, vivem e raciocinam, desejando para si e para os demais a liberdade, a igualdade e a<br />
justiça social. A educação libertária resulta em uma maneira de proceder diante da vida, segundo a<br />
qual as normas que nos regem se baseiam no respeito, no autoconhecimento, na discussão para<br />
outro desenvolvimento do ambiente social.<br />
Para Gallo (1995b), na educação anarquista, Paul Robin (1837-1912), é um dos principais<br />
nomes da pedagogia libertária no século XIX, por ter sido o precursor no sentido de trabalhar, na<br />
prática, as várias questões educacionais teóricas que vinham sendo debatidas nos meios anarquistas.<br />
Toda a teoria pedagógica libertária que vinha sendo construída por importantes autores como<br />
Proudhon (1809-1865), Bakunin (1814-1876) entre outros, mesmo bastante interessante e profunda,<br />
não tinha ainda uma vinculação mais estreita como a vivência prática: tais teóricos libertários não<br />
tinham vivência mais concreta do sistema educacional, ―além de suas próprias experiências como<br />
alunos. Mesmo tendo uma aguda visão da realidade, tinham com a educação apenas uma relação de<br />
exterioridade‖ (GALLO, 1995b, p. 87). Paul Robin, ao contrário, foi professor e pedagogo,<br />
segundo Gallo (1995b) relata, conhecia com profundidade a educação, sua bases teóricas, seus<br />
sistemas e, desta forma, pode trabalhar de maneira muito mais completa e profunda a teoria e a<br />
prática de uma pedagogia libertária.<br />
A partir desses dados, o presente artigo pretende discutir a experiência do pedagogo Paul<br />
Robin no Orfanato de Prévost. Para melhor situar a experiência de Robin traçou-se as linhas<br />
históricas do pensamento anarquista na Europa. Em seguida descreve-se a experiência de Paulo<br />
Robin no orfanato de Prévost. A questão de pesquisa interroga: ‗quais princípios da educação<br />
anarquista aplicadas em Prévost e de que forma eles foram aí trabalhados?‘ Por fim, quanto aos<br />
aspectos metodológicos, a pesquisa foi exploratória, alicerçada na pesquisa bibliográfica.<br />
Anarquismo: conceitos gerais<br />
Anarquia, anarquistas e anarquismo: conceitos<br />
O anarquismo e a anarquia, de modo geral, são associados a vários tipos de desordem,<br />
contudo, eles possuem também um significado mais limitado, isto é, ―a ausência de autoridade<br />
coercitiva usada para manter a ordem social, em especial quando a autoridade é exercida pelo<br />
Estado.‖ (SILVA e MIRANDA NETTO, 1986, p. 17). Os anarquistas, portanto, não são<br />
contrários a um estilo de vida organizado, mas sim, ao uso indevido da coerção e da força para<br />
mantê-lo; é o ―estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo.‖<br />
(MALATESTA, 1999, p. 11)<br />
Segundo Gallo (2006), não é correto se falar em anarquismo, como sendo apenas um, já<br />
que são diversas as perspectivas assumidas pelos inúmeros teóricos e militantes do movimento
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anarquista, em múltiplos pontos de vista, o que determinam a impossibilidade de agrupar o<br />
pensamento anarquista em uma doutrina. Uma boa forma de se entender o anarquismo é<br />
considerá-lo um principio gerador:<br />
Defendo nesta obra que devemos, assim, considerar o anarquismo como<br />
um princípio gerador, uma atitude básica que pode e deve assumir as<br />
mais diversas atitudes particulares de acordo com as condições sociais e<br />
históricas às quais é submetido. [...] formado por seis princípios básicos<br />
de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão social,<br />
internacionalismo, ação direta, associações operarias e greve geral.<br />
(GALLO, 2006, p.10;grifo do autor)<br />
Pode-se enxergar no anarquismo como princípio gerador Gallo (2006), um paradigma de<br />
análise político-social, pois existiria assim um elo que liga entre si as diferentes práticas anarquistas.<br />
O Anarquismo assumiria diferentes formas e facetas de interpretação da realidade e de ação de<br />
acordo com o momento e as condições históricas em que fosse aplicado, pois o principio gerador,<br />
na visão de Gallo (2006), dissocia o anarquismo de uma ideologia engessada, possibilitando explicar<br />
as várias facetas em que se desdobra o pensamento anarquista.<br />
Princípios gerais da educação anarquista<br />
A educação anarquista (ou libertária) pode ser considerada uma das iniciativas educacionais<br />
não oficiais mais importantes, dentre as diversas que se desenvolveram na Europa e em várias<br />
partes do mundo no século XIX e XX.<br />
Conforme esclarece Gallo (1995a) em meio ao movimento socialista, o anarquismo trouxe<br />
suas propostas pedagógicas fundamentadas na idéia proudhoniana de que a emancipação dos<br />
trabalhadores passaria pela criação de suas próprias escolas, trabalhando as diretrizes educacionais<br />
voltadas para um caminho diferente das propostas pelo estado e pela igreja.<br />
Desse modo, defende Gallo (1995a), que uma sociedade justa deve ter uma educação<br />
igualitária; de acordo com a relação saber/poder, sistemas de ensinos diferentes correspondem a<br />
classes sociais diferentes e a conseqüente exploração das menos sábias pelas mais privilegiadas que,<br />
claro, tudo fazem para manter esta condição.<br />
Portanto, compreende-se que a educação libertária ensina cada pessoa a explorar seu<br />
poder, contudo, com uma visão contrária ao uso e abuso deste poder, estudando seus limites a<br />
partir dos parâmetros do respeito e da solidariedade. A educação libertária é caracterizada ainda por<br />
uma oferta de liberdade e conhecimentos e uma possibilidade de aprendizagem alternativa,<br />
proporcionando mudanças sociais e mudanças na formação individual.<br />
Paul Robin e o Orfanato de Prévost<br />
Desde início do século XIX, quando Proudhon (1809-1864), sistematizou o Pensamento<br />
Libertário, vários pensadores e educadores têm buscado organizar a educação segundo os<br />
pressupostos do pensamento anarquista em oposição ao pensamento capitalista e sua organização<br />
vigente na sociedade.<br />
Paul Robin (1837-1912), como inúmeros pensadores de sua época, não concordava com o<br />
ensino que era desenvolvido na sociedade. Entendia o ensino como ciência pedagógica e buscou<br />
um modelo alternativo de educação. Robin foi um contestador em sua vida profissional, entre os<br />
anos de 1861 e 1864 ocupou o cargo de professor na rede pública, dedicando-se a lecionar ciência e<br />
matemática, sua inquietude com o modelo de educação de sua época o levou a organizar visitas a
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fabricas e artesões, a ensinar seus alunos fora do ambiente mesmerizado da sala de aula, em<br />
disciplinas como botânica, astrologia e geologia, buscando uma ponte entre o ensino teórico e a<br />
riqueza da prática. Sua forma diferenciada de lecionar lhe trouxe inimizades:<br />
[...] A comunidade local, entretanto insurge-se contra seu ensino laico e<br />
critico e contra as suas posições políticas; com os superiores está também<br />
em constante atrito, pois além de seu pensamento político, não respeita os<br />
programas, formenta protestos entre os alunos e ainda trabalha com a<br />
instrução popular. (GALLO, 1995b, p. 88-89).<br />
Em 1880 surge a oportunidade perfeita para Robin, ao ser designado diretor de um<br />
orfanato, encontrou a chance que buscava para desenvolver um método anarquista de educação. O<br />
Orfanato de Prévost foi fundado em 1861 por Joseph-Gabriel Prévost(1793-1875), um rico<br />
comerciante da cidade de Cempuis, membro da sociedade espírita de Paris, um adepto das teorias<br />
de Saint Simon que , através de testamento, deixou a propriedade sob os cuidados da prefeitura<br />
local, com disposições bem claras quanto às diretrizes a serem respeitadas na educação dos órfãos:<br />
estudo laico, praticado por professores também laicos e para crianças de ambos os sexos, crianças<br />
estas que deveriam freqüentar as aulas conjuntamente. Estava criado o ambiente propício para a<br />
prática da educação integral.<br />
Entre 1880 e 1894, o Orfanato de Prévost foi administrado por Paul Robin, e se pode<br />
considerar esta a primeira experiência real de cunho anarquista na educação. Neste sentido, Robin,<br />
contribui para a implantação da educação integral, objetivando a construção de um novo tipo de<br />
sociedade, na qual fosse possível a formação total do homem; onde ele poderia ter acesso à<br />
totalidade dos conhecimentos humanos, buscando um equilíbrio entre a necessidade de constituir<br />
um ser individual e um ser social, buscando em sua experiência na cidade de Cempuis um meiotermo<br />
entre a educação intelectual, manual e moral.<br />
Floresta (2007) considera que Robin dedicou boa parte de sua vida à realização de seu<br />
projeto de educação integral. No Orfanato de Prévost pode colocar em prática as idéias que<br />
desenvolveu ao longo de sua vida como educador e pedagogo. Robin foi importante no campo<br />
teórico libertário, pois desenvolveu uma prática pedagógica alternativa ao modelo vigente na época,<br />
contribuindo para a fixação de uma pedagogia com perfil libertário.<br />
A originalidade de Robin como pedagogo destaca-se nos seguintes<br />
aspectos: métodos e instrumentos pedagógicos; a co-educação; a<br />
convivência harmoniosa entre os membros do grupo; a importância do<br />
respeito à individualidade, ao desenvolvimento próprio da criança e o<br />
lugar concedido à ciência. O enfoque dado a essas questões é de extrema<br />
importância para o período, servindo de referencial para muitos<br />
educadores posteriores, não só anarquista, mas para todos aqueles que<br />
irão apoiar a crítica à educação tradicional (FLORESTA, 2007, p. 122).<br />
Freitas e Corrêia (1998) relatam que em Prévost, Robin exercitou a educação integral e<br />
marcou a educação dos dois sexos, isto é, foi o precursor no que tange a autorizar meninos e<br />
meninas estudarem na mesma sala de aula. Robin defendia que e educação deveria ser responsável<br />
pelo desenvolvimento da todas as capacidades dos homens, seja na esfera física, intelectual ou<br />
moral. Considera que na sociedade, a educação que estava enraizada era imoral e anti-racional, uma<br />
verdadeira anti-educação. A proposta educacional de Robin dividia a educação em fases: a primeira<br />
era chamada de ‗período espontâneo‘, onde as crianças são essencialmente consumidoras; e a<br />
segunda, ‗período dogmático‘, quando a criança passa a poder ser também produtora. Assim, em<br />
Prévost havia várias oficinas, como de sapateiro, de costura, entre outras, para serem utilizadas em<br />
atividades práticas em um segundo período. Figueiroa (2007) lembra que Robin acreditava que são
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as experiências práticas que devem orientar a educação das crianças na primeira infância, de modo<br />
que qualquer conhecimento teórico apresentado a elas será fruto de sua curiosidade e interesses<br />
advindos da experiência na prática. Assim, esta primeira fase da educação centrava-se no caráter<br />
espontâneo que a criança demonstraria pelas coisas. O educar nada impunha, simplesmente<br />
aproveitava o interesse natural da criança para trabalhar atividades que tinham como objetivo<br />
sensibilizar os sentidos do corpo humano, bem como os membros do corpo e conhecimentos<br />
gerais sobre as coisas e os fatos. Assim, progressivamente:<br />
[...] as atividades partem da individualidade para a coletividade, de forma<br />
que as crianças aprendam a se socializar de maneira sadia e que consigam<br />
desenvolver atividades em grupo. Essa fase inicial se encerra quando as<br />
crianças já possuem: um repertório básico de conhecimentos, condições<br />
de uma elaboração lógica do conhecimento e uma capacidade razoável<br />
de abstração (FIGUEIROA, 2007, p. 35).<br />
Figueiroa (2007) coloca que a segunda fase da educação praticada por Robin em Prévost é<br />
denominado de dogmática. Esta segunda fase da educação integral nada mais é do que o<br />
aprendizado sistemático das diversas ciências. O ensino teórica ganha nova relevância quando na<br />
adolescência, caracterizada como última fase da proposta de Robin, os jovens participam das<br />
oficinas para desenvolver seu conhecimento prático. Os adolescentes de ambos os sexos aprendiam<br />
os diferentes ofícios, da tapeçaria à costura, todos tinham oportunidade de adquirir o conhecimento<br />
prático da manufatura, acompanhado de todos os subsídios teóricos.<br />
Gallo (1995a) chama a atenção ao fato de que as crianças passavam muito tempo ao ar<br />
livre, praticando esportes. Tal educação não admitia que fossem realizadas provas e exames como<br />
forma de classificação dos alunos, bem como não existiam castigos ou prêmios para quem se<br />
destacasse. Os alunos mais destacados, ou seja, mais adiantados, auxiliavam os outros, ou seja,<br />
praticavam a solidariedade com os outros.<br />
Gallo (1995a) destaca que na parte prática, nas diversas oficinas, os adolescentes de ambos<br />
os sexos aprendiam os diferentes ofícios, todos tinham oportunidade de adquirir o conhecimento<br />
prático, acompanhado dos subsídios teóricos. Ao final do processo de instrução via educação<br />
integral, o adolescente poderia fazer uma escolha entre os diferentes ofícios para se especializar e se<br />
aprofundar.<br />
Martins (2009) considera que a educação integral preocupava-se ainda com a saúde e a<br />
higiene das crianças. Tais crianças deveriam ter um vestuário de acordo com as normas higiênicas,<br />
tomar com freqüência banhos e ter acompanhamento de seu desenvolvimento físico. Outro<br />
aspecto da educação integral seria a educação intelectual, que deveria desenvolver com equilíbrio<br />
todas as faculdades, tais como assimilação, produção, observação, julgamento, memorização e<br />
imaginação. A educação integral também deveria desenvolver a educação moral, que deve estar<br />
pautada na justiça e nas relações sociais. Outro aspecto fundamental para a educação integral<br />
proposta por Robin era a educação literária, que deveria ser desenvolvida por meio de quatro<br />
caminhos: ouvir, ler, falar e escrever. Tais etapas estavam intimamente vinculadas umas com as<br />
outras.<br />
Floresta (2007) declara que para Robin, o período que as crianças passavam em Prévost era<br />
apenas um estágio, devendo a educação continuar por toda a vida. Assim, a experiência de Robin<br />
em Prévost colocou em prática o pensamento político-pedagógico de Proudhon e Bakunin; definiu,<br />
no exercício diário escolar, uma crítica à autoridade, à disciplina castradora, à hierarquia, à<br />
homogeneização dos indivíduos, ao individualismo, etc.
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Martins (2009) vê em Robin um intelectual que foi a expressão de seu tempo e que podem<br />
ser observadas algumas características de sua proposta pedagógica, desenvolvida em Prévost: a<br />
crença no racionalismo científico, a possibilidade de regeneração da espécie humana, a visão<br />
internacionalista e a existência de uma sociedade igualitária. Ele influenciou vários educadores,<br />
entre eles Ferrer y Guardia.<br />
Gallo (1995a) frisa que dentre todas as premissas da proposta pedagógica de Robin,<br />
algumas geraram grande polêmica, como educação mista, com ambos os sexos e o ensino racional e<br />
laico. Tais premissas geraram violentos ataques dos cristãos e conservadores, além das autoridades<br />
escolares, sendo que Robin foi perseguido e exonerado do cargo de administrador de Prévost em<br />
1894:<br />
Tal experiência, apesar do grande sucesso, suscitou muitos ataques,<br />
principalmente vindos de católicos e conservadores, que acusavam o<br />
sistema de co-educação dos sexos como ‗pornográfico‘. Robin foi<br />
perseguido e, em 1894, cede às pressões, se demitindo de Cempuis após<br />
14 anos. O exemplo de Robin inspirou outras várias experiências de<br />
educação libertária como: ‗La Ruche‘, liderada por Sebastian Faure<br />
(1858-1942), e a Escola Moderna, inspirada por Francisco Ferrer y<br />
Guardia (1849-1909) (VARGAS, 2007, p. 97)<br />
O Orfanato de Prévost perdeu assim o pedagogo que reescreveu a forma de se ver a<br />
educação, o resultado de sua obra se fez perceber em outras experiências que se seguiram e que até<br />
hoje estão lutando pela educação em uma perspectiva diferente, mais crítica e emancipadora,<br />
fazendo assim um contraponto à sociedade embasada na educação alienadora e perversa em si.<br />
Considerações finais<br />
Percebeu-se que o anarquismo é uma teoria dos anarquistas, alicerçada na liberdade, onde a<br />
produção e o consumo deveriam atender, ao mesmo tempo, às necessidades individuais e de todos.<br />
Contudo, frisa-se que o anarquismo deve ser considerado como um princípio gerador, assumindo<br />
várias formas de interpretar a realidade e maneiras de ação, conforme o momento e as condições<br />
históricas em que é vivido. Portanto, considerando-se o princípio gerador, de Gallo, diz-se que o<br />
anarquismo não pode ser visto como uma ideologia engessada, mas como uma forma de elucidar os<br />
inúmeros prismas que se desdobram no pensamento anarquista.<br />
O anarquismo debateu os problemas que assolavam a sociedade e buscou formas e saídas<br />
possíveis, num período em que inúmeros autores tinham suas crenças arraigadas na disciplina e no<br />
autoritarismo. A característica mais marcante de Prévost talvez tenha sido não converter as pessoas<br />
a uma ideologia doutrinária fixa, engessada; preferiu a liberdade individual como a melhor forma de<br />
desenvolver uma sociedade mais justa.<br />
Neste contexto, a experiência de Robin, no Orfanato de Prévost, deu vida à prática da<br />
educação anarquista durante mais de uma década. Robin aplicou e aperfeiçoou uma novidade<br />
metodológica de ensino; quebrou tabus para a época, com um ensino sem gratificações ou castigos;<br />
a convivência entre os sexos em sala de aula; um ensino racional sem a adoração ao divino; o<br />
desenvolvimento integral dos internos. Todas essas novidades instigaram críticas de uma sociedade<br />
que não conseguiu enxergar com bons olhos a quebra de tantos tabus educacionais. Robin, não via<br />
na religião a salvação e nem via no Estado o caminho para o equilíbrio social; nem acreditava na<br />
divisão de classe; intitulava-se anarquista.<br />
Referências<br />
DULLES, John W. F. Anarquistas e o comunismo no Brasil. Rio de janeiro: Nova fronteira, 1977.
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Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos/SP, 2007. Disponível em:<br />
Acesso em: 30<br />
maio. 2011.<br />
FLORESTA, Leila, Um projeto de educação integral: a experiência de Paul Robin em ‗Cempius‘.<br />
Olhares & Trilhas, Uberlândia, ano VIII, n. 8, p, 121-134, 2007.<br />
FREITAS, Francisco Estigarribia de; CORRÊA, Guilherme Carlos. Encontro de educação<br />
libertária: textos. Santa Maria: UFSM, 1998.<br />
GALLO, Sílvio. Anarquismo: uma introdução filosófica e política. Rio de Janeiro: Ed. Achiamé,<br />
2006.<br />
______Educação anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: Ed. Unimep, 1995a.<br />
______Pedagogia do risco. Campinas: Papirus Editora, 1995b.<br />
MALATESTA, Errico. A anarquia. São Paulo: Nu-Sol; Rio de Janeiro: SOMA: Imaginário, 1999.<br />
MARTÍN LUENGO, Josefa et al. Pedagogia libertária: experiências hoje. São Paulo: Editora<br />
Imaginário, 2000.<br />
MARTINS, Angela M. S. A pedagogia libertária e a educação Integral. VIII Seminário Nacional de<br />
Estudos e Pesquisas – História, Sociedade e Educação no Brasil: história, educação e<br />
transformação: tendências e perspectivas. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 30 de<br />
junho a 03 dse julho de 2009. Disponível em:<br />
<br />
Acesso em: 30 maio. 2011.<br />
RODRIGUES, Edgar. O anarquismo na escola, no teatro, na poesia. Rio de Janeiro: Achiamé,<br />
1992.<br />
______Os libertários: idéias e experiências anárquicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.<br />
SILVA, Benedicto; MIRANDA NETTO, Antônio Garcia de. Dicionário de ciências sociais. Rio de<br />
Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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LETRAMENTO LITERÁRIO: FALEM MENINOS E MENINAS, NÓS QUEREMOS<br />
OUVI-LOS SOBRE A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS NO ENSINO MÉDIO<br />
Maria da Conceição Jesus Ranke (PPGL/MELL – UFT)<br />
Hilda Gomes Dutra Magalhães (PPGL/MELL – UFT)<br />
Luiza Helena Oliveira Silva (PPGL/MELL – UFT)<br />
Gislene Pires de Camargos Ferreira (PPGL/MELL – UFT)<br />
Resumo: Objetivamos analisar, a partir das percepções de discentes, os sentidos atribuídos ao<br />
trabalho com o texto literário em aulas de literatura em um Centro de Ensino Médio de Araguaína,<br />
Tocantins. A pesquisa consiste num estudo de caso qualitativo no qual os discentes responderam a<br />
um questionário. Os depoimentos dados sinalizam que a aula de literatura, poderia se configurar<br />
num espaço para ―escapar um pouco da realidade nua e crua em que vivemos, e um modo de experimentar outros<br />
mundos, épocas e situações, sem sair do conforto de nossos quartos‖ e quiçá de nossas salas de aulas.<br />
Palavras-chave: Letramento literário. Literatura. Semiótica.<br />
Abstract:<br />
The objective is to analyze, from the perceptions of students, the meanings attributed to the work<br />
with the literary text in class of literature in a Center of the Middle School in Araguaína, Tocantins.<br />
The research consists of a qualitative case study in which the students answered a questionnaire.<br />
The testimonies indicate that the class of literature, could be a space for "escape a little of the hard<br />
reality in which we live, is a way of experiencing other worlds, times and situations, without leaving<br />
the comfort of our rooms" and perhaps in our classrooms.<br />
Key-word: Literacy literary. Literature. Semiotics.<br />
Introdução<br />
Nosso propósito neste artigo é analisar a partir das percepções de discentes como vem se<br />
constituindo o trabalho com o texto literário em aulas de literatura em um Centro de Ensino Médio<br />
de Araguaína, Tocantins.<br />
Com o embasamento teórico da teoria literária, dos estudos do campo do letramento<br />
literário e a contribuição da semiótica discursiva, acreditamos, a partir de uma perspectiva<br />
interdisciplinar, que estas duas áreas de conhecimento se interrelacionam/complementam no que<br />
diz respeito à importância dada à atividade de leitura, e, mais precisamente à leitura do texto<br />
literário, numa abordagem que faça sentido para o sujeito leitor, em nosso caso, o aluno.<br />
Dessa maneira, pretendemos que nossa pesquisa possa contribuir para a reflexão sobre o<br />
tema da leitura literária no espaço escolar.<br />
Nesse intento, procuramos problematizar a relação do jovem leitor com a leitura literária,<br />
uma vez que há atualmente uma visão bem disseminada, mas também bastante questionada, de que<br />
os jovens não gostam de ler, e, que se nas séries iniciais do Ensino Fundamental, estes demonstram<br />
prazer pelas narrativas imaginativas, pelas histórias de aventura, pela musicalidade dos poemas, na<br />
medida em que vão se aproximando do Ensino Médio – etapa em que a Literatura ganha status de<br />
disciplina curricular – revelam, muitas vezes, resistência frente às propostas de leitura.
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Metodologia<br />
Norteado por princípios qualitativos, o presente estudo teve como referencial<br />
metodológico os princípios do estudo de caso (YIN, 2005), no qual a escolha dos participantes se<br />
deu a partir de conversas informais com três professores de literatura de um Centro de Ensino<br />
Médio, de Araguaína, TO. Na ocasião, indagamos aos professores sobre alunos considerados como<br />
leitores assíduos, isto é, alunos que demonstravam em suas aulas maior gosto e familiaridade<br />
declarada pela leitura. A partir das indicações dos professores fomos autorizados a conversar com<br />
os alunos, que após serem informados a respeito do caráter do estudo, aceitaram participar da<br />
pesquisa.<br />
Nosso instrumento metodológico constituiu-se de um questionário aberto, instrumento<br />
típico de pesquisas de cunho qualitativo (YIN, 2005). Logo, as respostas dadas pelos alunos-leitores<br />
configuram-se como nosso objeto de análise. O questionário compreendeu cinco perguntas das<br />
quais selecionamos três para aqui analisarmos: (i) Este ano você leu algum livro indicado pela<br />
escola? (Se sim, qual foi? Você gostou?) (ii) Na escola, quando o professor solicita a leitura de<br />
livro(s) de literatura, qual a maior dificuldade ou facilidade que você encontra? (iii) Para você o que<br />
é literatura?<br />
Fundamentação teórica<br />
Os pressupostos teóricos dos fundamentos da teoria literária que norteiam nossa<br />
investigação apóiam-se na visão Aristotélica de literatura entendida como a arte da palavra, que<br />
caracteriza-se pela imitação, ou seja, pela mimese como significado de recriação estética da realidade<br />
(verossimilhança).<br />
Entendemos aqui literatura como um objeto estético (CULLER, 1999) ou arte que se<br />
constrói com palavras, a qual tem como finalidade despertar o sentimento estético do leitor, o que a<br />
Literatura proporciona ao leitor, só ela o faz, e esse ―prazer não pode ser confundido com nenhum<br />
outro‖ (COUTINHO 2008, p. 23).<br />
Cândido (1995) ressalta ainda que o acesso à literatura é um direito universal humano<br />
garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e, que a literatura é<br />
fundamental à vida do homem:<br />
(...) a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita<br />
sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos<br />
sentimentos e à visão do mundo, ela nos organiza, nos liberta do caos e,<br />
portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa<br />
humanidade (CÂNDIDO, 1995, p. 186).<br />
Nesse sentido, acreditamos que o ensino de literatura deve ter garantido um lugar<br />
significativo no currículo escolar, posto que a literatura além de proporcionar o alargamento da<br />
sensibilidade estética, o hábito da leitura, estímulo da imaginação e, pela catarse, apura as emoções e<br />
promove a construção de conhecimentos, ou dito de outro modo, a literatura contribui de forma<br />
significativa na formação do sujeito como cidadão (MAGALHÃES & BARBOSA, 2009).<br />
Por Letramento entendemos o que Soares (1998, p.98) define como ―conjunto de práticas<br />
socialmente construídas‖ envolvendo a leitura e a escrita, ―geradas por processos sociais mais<br />
amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de<br />
poder presentes nos contextos sociais‖.
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O letramento também pode ser pensado em relação à literatura. Paulino destaca que o<br />
letramento literário: ―como outros tipos de letramento, continua sendo uma apropriação pessoal de<br />
práticas de leitura/escrita, que não se reduzem à escola, embora passem por ela‖ (2004, p.59).<br />
Ademais, o letramento literário, pode ser compreendido como instrumento, visando a formação de<br />
um leitor ―para quem o texto é objeto de intenso desejo, para quem a leitura é parte indissociável<br />
do jeito de ser e de viver‖ (RANGEL, 2007, p.137-138).<br />
Cumpre ressaltar que o letramento literário, de modo geral, deve envolver mais<br />
especificamente o fenômeno da leitura. As habilidades de escrita literária não estão no foco desse<br />
fenômeno, e, portanto são entendidas como escolhas individuais. Como atesta Paulino:<br />
A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba<br />
escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho<br />
artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber<br />
usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto<br />
ficcional proposto (PAULINO, 2004, p.56).<br />
Pensando mais especificamente na leitura do texto literário, é importante considerarmos,<br />
como propõe Paulino, sobre suas especificidades, sem desconsiderar o que há de comum (as<br />
semelhanças) entre essa leitura e a de textos não-literários, já que, numa perspectiva<br />
contemporânea, ―todos os domínios discursivos, sem exceção, exigiriam e desenvolveriam<br />
habilidades complexas e competências sociais de seus leitores‖ (PAULINO, 2007, p. 61).<br />
Para Paulino, assim como para Soares (1998), da mesma forma que existe diversidade de<br />
textos, existe, em função desses textos, diversidade de leituras, de modos de ler. Não é suficiente<br />
defendermos a presença da diversidade de tipos e gêneros textuais na escola, se não levarmos em<br />
conta os diferentes modos de leitura, de acordo com determinadas especificidades do texto. Paulino<br />
ressalta que ―as diferenças se localizariam nos objetos lidos e se definiriam a partir deles, mas seriam<br />
também estabelecidas pelos sujeitos em suas propostas, espaços sociais e ações de leitura‖ (2007,<br />
p.56).<br />
Entendemos que os textos literários devem ser lidos – inclusive no ambiente escolar –<br />
tendo em vista a sua função estética de apurar a sensibilidade e causar prazer possibilitando ao<br />
aluno-leitor o desenvolvimento da sensibilidade, propiciando fruição uma vez que ―a literatura é<br />
arte e, como tal, demanda competências e habilidades ligadas à subjetividade, à criatividade e à<br />
sensibilidade, devendo, por isso, ser tratada com métodos e objetivos específicos‖ (MAGALHÃES,<br />
2008, p.121). Assim, para que o letramento literário seja de fato desenvolvido, a escola não deve<br />
limitar-se aos objetos lidos, mas também e, principalmente, à forma como a leitura está sendo<br />
provocada/incentivada no seu interior, sobretudo, pelos professores e realizada pelos alunos.<br />
Afirmando-se como uma teoria cujo objeto de estudo é o sentido, a semiótica de linha<br />
francesa tem orientado seus desenvolvimentos teóricos mais recentes justamente em direção à<br />
dimensão do sensível (GREIMAS, 2002). Assim, a Semiótica assume como projeto, a descrição do<br />
sentido e busca a compreensão dos seus processos de produção.<br />
De acordo com Bertrand (2003, p.24), para a semiótica o leitor é ―um ‗centro do discurso‘,<br />
que constrói, interpreta, avalia, aprecia, compartilha ou rejeita significações‖ e, portanto um coenunciador.<br />
A significação, nesse sentido, é resultante de uma construção, isto é, de um fazer. O<br />
leitor deixa de ser ―aquela instância abstrata e universal‖, ou seja, um ―receptor‖ que registra de<br />
modo passivo o que foi dito pelo enunciador. Desse modo, o leitor também responde pela<br />
enunciação, e a leitura é, então, resultante da relação intersubjetiva atualizada na linguagem.
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É oportuno destacar, que não se trata, de se atribuir qualquer sentido ao texto. É nesse<br />
sentido, que Landowski (2001) preconiza uma ética de leitura, possibilitando, assim, o encontro<br />
com a alteridade, encontro que é viabilizado pela linguagem. O autor acrescenta ainda que o ato de<br />
atribuir sentidos ao mundo é que faz emergir a própria subjetividade:<br />
Diríamos que ―compreender‖ é construir. É, portanto, fazer-ser alguma coisa:<br />
fazer-ser o mundo enquanto mundo significativo, mas também nos fazer-ser, nós<br />
mesmos, enquanto sujeitos. (...) Fazer-ser o sentido constitui, assim, uma<br />
exigência primeira em relação a nós mesmos: é a condição fundamental de nossa<br />
completude. (...) se ―construímos o mundo‖, é sempre num processo de<br />
interação com uma positividade exterior – uma alteridade – que nos desafia e<br />
que não poderia ser pura e simplesmente reduzida, em todos os casos, à posição<br />
e ao estatuto do ―objeto‖. (LANDOWSKI, 2001, p.26, itálico no original)<br />
Pensar essa construção, esse fazer-ser na leitura literária é garantir ao leitor um campo aberto<br />
para a liberdade, subjetividade e prazer, negar esse tratamento, quer do objeto literário, quer da<br />
leitura construída e sentida pelo aluno, é, de acordo com Paulino (2007:15), falta de ética.<br />
Isso posto, passemos aos depoimentos dos alunos-leitores, no intuito de analisar e refletir a<br />
partir de suas percepções sobre como a escola, no Ensino Médio, vem trabalhando com o texto<br />
literário nas aulas de literatura.<br />
Falem meninos e meninas, nós queremos ouvi-los<br />
A primeira pergunta dirigida aos discentes indagava-os sobre a leitura de algum livro, que<br />
estes haviam lido, este ano, por indicação da escola, bem como a opinião sobre a leitura. Os títulos<br />
que mais compareceram foram: Triste fim de Policarpo Quaresma; Viver de cara limpa; Macunaíma; Iracema;<br />
O Guarani; O estudante; O quinze, dentre outros. No que diz respeito às suas opiniões, o diferencial<br />
aparece por meio das justificativas sobre a obra lida. Senão vejamos:<br />
(1) /.../ Gostei, [porque] gosto de livros como ele, de ação e suspense. (J.<br />
Lenon).<br />
(2) /.../ gostei bastante, pois conta a realidade da vida e que tudo tem uma<br />
solução. (Fernanda).<br />
(3) /.../ Gostei muito, porque que é um livro muito interessante, que<br />
prende nossa atenção. (Débora).<br />
Como podemos perceber, as justificativas apresentadas pelos alunos deixam antever seus<br />
gostos e também, julgamentos sobre a obra lida. O prazer ou gosto pela leitura literária parece se<br />
estabelecer de forma significativa quando o leitor se sente capaz de se deslocar para um mundo que,<br />
mesmo não sendo o seu, lhe proporciona sensações agradáveis e nas quais o leitor se reconhece e se<br />
realiza: ―/.../ gosto de livros como ele, de ação e suspense‖; ―/.../ conta a realidade da vida e que<br />
tudo tem uma solução‖. Trata-se, portanto das apropriações pessoais de que nos falou Graça Paulino<br />
(2004), ou ainda, conforme Landowski (2001) da leitura enquanto construção de um fazer-ser no<br />
mundo enquanto sujeito. Além disso, percebe-se, através das opiniões dos jovens leitores uma<br />
estreita relação da leitura literária com seus universos afetivos, uma especificidade que é inerente ao<br />
texto literário. De acordo com os excertos examinados, notadamente, percebemos que as<br />
percepções dos discentes apontam para um trabalho de apropriação do texto literário pelos leitores<br />
no âmbito escolar.<br />
Adentrando mais nos domínios da sala de aula, a partir da percepção dos discentes, nossa<br />
segunda solicitação contemplou uma prática típica da aula de literatura, trata-se da solicitação por
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parte do professor para que os alunos leiam um livro. Tendo em vista esse questionamento, os<br />
discentes falaram sobre suas maiores dificuldades e/ou facilidades neste tipo de atividade. Senão<br />
vejamos:<br />
(4) Na maioria das vezes, a minha maior dificuldade é o tipo de linguagem.<br />
Se a linguagem é rebuscada, eu não me atraio tanto pelo livro, e normalmente o<br />
deixo de lado, mas se a estória for legal e conseguir chamar minha atenção<br />
em algum momento, eu vou até o fim, mesmo que isso demore. (Gisely).<br />
(5) Geralmente a minha maior dificuldade é o vocabulário, mas mesmo<br />
com essa dificuldade é impossível não gostar dos livros e se emocionar,<br />
rir, com suas histórias. (Rosa).<br />
(6) Por enquanto não encontrei nenhuma dificuldade nos livros<br />
solicitados pela professora. Pois /.../ tenho intimidade, familiaridade com<br />
os livros (Daiana).<br />
Como podemos observar nos depoimentos acima transcritos, assim como na maioria dos<br />
depoimentos dos jovens que responderam ao questionário, a dificuldade na leitura do texto literário<br />
está relacionada ao vocabulário e/ou linguagem, conquanto tal dificuldade não se configura como<br />
um impedimento para a leitura.<br />
Cosson (2007) na segunda parte de sua obra ―Letramento literário: teoria e prática‖<br />
apresenta estratégias sistematizadas para o ensino de literatura na escola. De acordo com o autor, o<br />
professor, juntamente com os alunos, deve explorar ao máximo as potencialidades do texto literário<br />
a fim de que o contato entre aluno e literatura seja uma busca plena de sentidos. Conforme Cosson,<br />
(2007, p.30)<br />
É justamente para ir além da leitura que o letramento literário é fundamental no<br />
processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler<br />
melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque<br />
seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro<br />
tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com<br />
proficiência o mundo feito linguagem.<br />
Para tanto o autor apresenta um método que pode ser desenvolvido em duas sequências,<br />
uma básica e outra expandida. Acreditamos que a proposta da sequência expandida pode, pelo<br />
menos, minimizar as dificuldades explicitadas por nossos jovens leitores.<br />
Nessa sequência (cf. COSSON, 2007) o autor sugere aos professores que quando da<br />
solicitação da leitura de uma obra mais extensa, estes realizem ―intervalos de leitura‖, que se<br />
assemelham às divisões (em partes) sugeridas pela leitora Sara em resposta a quinta pergunta do<br />
nosso questionário. Cosson explica que nessas aulas intermediárias, o professor pode propor<br />
atividades com textos que dialogam com a obra lida, seja por questões temáticas, seja por questões<br />
formais. Nesse intento, o professor pode levar contos, músicas, imagens dentre outros. Os<br />
intervalos de leitura podem ser momentos propícios para que o professor acompanhe o<br />
desenvolvimento da leitura pelos alunos e, também contribuir no sentido de ampliar o<br />
conhecimento dos discentes a fim tornar a leitura mais profícua, auxiliando-os, quando necessário,<br />
em suas dificuldades, como por exemplo, com o tipo de linguagem apresentada na obra que, por<br />
vezes, pode ser um fator dificultador para a compreensão global e mais rica do texto.
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Por este caminho e de acordo com as percepções dos discentes, ―a linguagem rebuscada‖,<br />
de que fala Gisely (4), ou a dificuldade com o ―vocabulário‖ informada por Rosa (5), não são, para<br />
as estudantes, fatores impeditivos ao hábito pela leitura literária, uma vez que, conforme enfatizado<br />
por Daiana (6), as leitoras têm ―intimidade, familiaridade com os livros‖ e em decorrência com a<br />
leitura.<br />
Essa intimidade parece ser estabelecida, sobretudo, pelo hábito de ler como prática<br />
freqüente, isto é, a leitura como algo familiar, ou conforme as palavras de Faria (1999 apud<br />
MAGALHÃES, 2008, p.123), ―o mundo do livro deve ser familiar para que o leitor possa fazer dele<br />
um caso pessoal‖. O caso especial que decorre, sobretudo de uma familiaridade pode ser entendido pela<br />
semiótica através da noção de hábito entendida como um fazer que se repete e ―que produz um<br />
tipo específico de contato entre o sujeito e o que ele faz‖ (OLIVEIRA, 2004, p.15). Acostumandose<br />
ao sentir desencadeado pela mesma natureza de arranjo, ―o sujeito se familiariza com ele e o seu<br />
querer senti-lo, de novo, é a volição que o faz praticá-lo‖. Assim, quanto maior a familiaridade, a<br />
intimidade, mais a continuidade do hábito é desejada.<br />
É nessa perspectiva que o hábito pode ser entendido como uma espécie de estesia que se<br />
instaura a partir do gosto, em nosso caso, a leitura, não uma leitura qualquer, mas a leitura literária,<br />
entendida, aqui, fundamentalmente como uma experiência de fruição.<br />
Não é sem razão que nas justificativas da primeira pergunta do questionário os estudantes<br />
deixam antever que através da leitura literária o mundo se projeta para esses leitores como se fosse<br />
dotado de intencionalidade e estivesse ali para ―se mostrar‖, agradá-los, para fazê-lo justamente<br />
fruí-lo. Ou no termos de Aguiar, é assim, que ―ao término da leitura, não sou a mesma de antes,<br />
porque tenho comigo os resultados da experiência vivida, equilibrada na linha que separa fantasia e<br />
realidade‖ (AGUIAR, 2007, p.18).<br />
É nessa perspectiva de hábito como estesia na qual a reiteração volitiva é constitutiva da<br />
fruição e do prazer pela leitura literária, que os discentes falam sobre o que é, para eles, literatura:<br />
(7) Para mim, literatura além de diversão é como se fosse uma fuga, rsrs.<br />
Sei que sou nova para andar fugindo, mas se existe algo que me tira da<br />
realidade sem me fazer mal e, que me ajuda a pensar melhor, sentir<br />
melhor, esse algo é a minha literatura. Espero ser assim para sempre /.../.<br />
(Sara).<br />
(8) /.../ é um jeito de escapar /.../ da realidade nua e crua em que vivemos,<br />
e um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações sem sair<br />
do conforto de nossos quartos (Samantha).<br />
(9) É uma forma de viajar sem sair de casa, conhecer outras pessoas sem<br />
nunca tê-las visto, descobrir novos lugares e situações /.../ Ao ler, a gente<br />
esquece os problemas que tanto nos perturbam e passamos a sonhar com<br />
um mundo novo, que o autor nos faz viver naquele momento, prendendo<br />
nossa imaginação em algo irreal (Gisely).<br />
Greimas (2002), na primeira parte de sua obra ―Da Imperfeição‖, destaca um tipo de êxtase<br />
denominado pelo autor de ―deslumbramento‖ que pode ser experimentado pelo sujeito nas<br />
experiências cotidianas. O ―deslumbramento‖ ocorre quando um outro-objeto provoca uma<br />
espécie de ―fratura‖, ressemantizando o dia-a-dia. É justamente essa ressemantização que o texto<br />
literário parece deflagrar, reiterando a importância do hábito como um tipo de estesia.
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Entendemos, assim, que o sentido atribuído pelos discentes à literatura, parece residir,<br />
sobretudo na imprescindibilidade do gosto que esses leitores atribuem ao gosto do contato com o<br />
texto literário, conforme afirmado por Sara ―/.../ se existe algo que /.../ me ajuda a pensar melhor,<br />
sentir melhor, esse algo é a minha literatura /.../‖. Ademais, da fala de Sara, de Samantha e Gisely<br />
depreende-se o estatuto da literatura como provocadora de um tipo especial de prazer que atualiza e<br />
ressemantiza suas vivências.<br />
Em suas definições pessoais sobre o que é literatura, Sara, Samantha e Gisely, reiteram o<br />
que disseram J. Lenon, Fernanda e Débora, no que diz respeito a uma característica inerente do<br />
texto literário que é a de possibilitar deslocamentos entre mundos ao sabor do prazer: ―/.../algo que<br />
me tira da realidade sem me fazer mal /.../‖ (Sara); ―/.../ um modo de experimentar outros<br />
mundos, épocas e situações /.../‖ (Samantha); ―/.../É uma forma de viajar sem sair de casa /.../‖<br />
(Gisely).<br />
Tendo em vista os depoimentos dos estudantes, entendemos que estes deixam antever que<br />
a aula de literatura pode garantir ao leitor um espaço a leitura literária norteado pela subjetividade.<br />
Contudo cremos que seja necessário investir em pesquisas que de forma mais aprofundada<br />
investiguem sobre qual o lugar da fruição em aulas de literatura nessa etapa de escolarização. Assim,<br />
no desejo de realizar um gesto de interpretação finalizador, para este momento, acreditamos que<br />
conseguimos colocar em discussão a questão da relação dos jovens com a leitura literária, uma vez<br />
que temos atualmente uma visão tão disseminada, mas também bastante questionada, de que os<br />
jovens não gostam de ler. O que presenciamos ao longo desta pesquisa contraria bastante este<br />
estereótipo, uma vez que encontramos leitores ávidos pelo texto literário, e mais, que esses leitoresalunos<br />
têm algo a dizer, na medida em que suas percepções apontam que a literatura e, em<br />
decorrência, a aula de literatura, poderia se configurar como um espaço para ―escapar um pouco da<br />
realidade nua e crua em que vivemos, e um modo de experimentar outros mundos, épocas e situações, sem sair do<br />
conforto de nossos quartos‖ e quiçá de nossas salas de aulas.<br />
Referências<br />
AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura e educação: diálogos. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.).<br />
Literatura: saberes em movimento. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FAE/UFMG, 2007. p.<br />
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CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995.<br />
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.<br />
COUTINHO, Afrânio. Que é literatura e como ensiná-la. In: ________. Notas de teoria literária.<br />
2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 8-15.<br />
CULLER, J. Teoria Literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca<br />
Produções Culturais, 1999.<br />
GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. São Paulo: Hacker Editores, 2002. Trad.: Ana<br />
Cláudia Oliveira.<br />
LANDOWSKI, Eric. O olhar comprometido. Galáxia <strong>Revista</strong> Transdisciplinar de<br />
comunicação, semiótica, cultura. Educ, n. 2. 2001. p.19-56.<br />
MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra; BARBOSA, Elizane de Paula S. Letramento literário na<br />
alfabetização. In: SILVA, Wagner Rodrigues; MELO, Lívia Chaves (Orgs.). Pesquisa & ensino de<br />
língua materna e literatura: diálogos entre formador e professor. Campinas: Mercado de<br />
Letras/UFT, 2009. p. 151-169.<br />
MAGALHÃES. Hilda Gomes Dutra. A importância das leituras de livre escolha na formação do<br />
leitor. Via Atlântica/USP, São Paulo, v. 14, p. 119-128, dez. 2008.
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comunicação, 2004, São Bernardo do Campo. Produção de sentido as mídias, 2004. v. 1. p. 15-30.<br />
PAULINO, Graça. Algumas especificidades da leitura literária. In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.).<br />
Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2007. p. 55-70.<br />
PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários. <strong>Revista</strong> Portuguesa de<br />
Educação. Braga: Universidade do Minho, v. 17, n 1, p. 47-62. 2004.<br />
RANGEL, Egon de Oliveira. Letramento literário e livro didático de língua portuguesa: "Os<br />
amores difíceis". In: PAIVA, Aparecida et al. (Orgs.). Literatura e letramento: espaços, suportes<br />
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SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.<br />
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, 2005.<br />
Enviado – 19/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA:<br />
UM ESTUDO DA PLATAFORMA MOODLE<br />
Maria José de Pinho 10.<br />
Severina Alves de Almeida 11.<br />
Resumo: Neste artigo analisamos a implantação do Estágio Supervisionado do Curso de<br />
Licenciatura em Biologia (EaD) via Plataforma Moodle, da Universidade Federal do Tocantins<br />
(UFT), alcançando os pólos de Araguaína, Ananás, Nova Olinda e Wanderlândia. Os resultados<br />
constatam que mesmo diante da importância do curso, é perceptível a necessidade da aproximação<br />
do educando com os meios tecnológicos, para que, ao optar por esta modalidade de ensino, esteja<br />
preparado para que possa adquirir conhecimento com qualidade. Num contexto em que a maioria<br />
dos alunos concluiu o Ensino Médio em escola pública, é responsabilidade de o Governo<br />
possibilitar o acesso desses alunos às tecnologias.<br />
Palavras Chave: Estágio Supervisionado; Educação à Distância; Plataforma Moodle.<br />
Abstract: In this article we analyses the introduction of the Supervised Traineeship of the<br />
Licenciatura Biology Course, in the kind to the distance (EaD) he was seeing Platform Moodle, of<br />
the Federal University of the Tocantins (UFT), reaching the poles of Araguaína, Ananás, Nova<br />
Olinda and Wanderlândia. The results note that even before the importance of the course, the<br />
necessity of the approximation is perceptible of educating with the technological ways, so that,<br />
while opting for this kind of teaching, it is prepared so that it can acquire knowledge with quality. In<br />
a context in which most of the students ended the High Scholl in public school, it is a responsibility<br />
of the Government to make possible the access of these students to the technologies.<br />
Key words: Supervised Traineeship; Education to the Distance; Moodle Platform.<br />
Introdução<br />
O Grupo de Pesquisa Práticas de Linguagens em Estágios Supervisionados na linha de<br />
pesquisa ―O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo da<br />
Plataforma Moodle‖ estudou e analisou o Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em<br />
Biologia, na modalidade à distância do pólo de Araguaína, da Universidade Federal do Tocantins<br />
(UFT).<br />
O trabalho se desenvolveu através de estudos sistemáticos na Universidade e do<br />
levantamento de dados através de questionários aplicados aos alunos estagiários que utilizam o<br />
ambiente virtual, Plataforma Moodle, como ferramenta essencial nas relações com os professores<br />
tutores.<br />
A proposta da Educação à distância (EAD) vai além de uma mudança no processo de<br />
ensino e representa um avanço na democratização da educação para as camadas sociais menos<br />
favorecidas. Esse modelo de educação é uma alternativa promissora para o Brasil, que com<br />
condição peculiar vem ganhando espaço e oportunizando pessoas impossibilitadas de freqüentar<br />
10 Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Palmas, e do PPGL –<br />
Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaína. e-mail: mjpignon@uft.edu.br<br />
11 Pedagoga. Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras no MELL - Mestrado em Língua<br />
e Literatura da Universidade Federal do Tocantins – UFT – e Profª. Tutora do Curso de Biologia a Distância<br />
da UFT Campus Araguaína. e-mail: sissi@uft.edu.br.
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uma sala de estudo presencial, muitas das vezes em função da distância dos grandes centros<br />
urbanos.<br />
Para Kenski (2003), até algum tempo atrás havia espaço definido para ensinar e aprender:<br />
escolas, campus universitários, bibliotecas etc. Todos precisavam estar em ―estado constante de<br />
aprendizagem‖acerca de tudo. Porém, a tela (televisão, computador), hoje, desloca as atividades de<br />
ensino para experiências e vivências virtuais em lugares, espaços, tempos e grupos sociais nos quais<br />
―as coisas acontecem‖, como no ambiente Plataforma Moodle, utilizado pelos alunos do curso de<br />
Biologia Ead, da UFT.<br />
Procurando entender o papel da plataforma Moodle e o processo de interação dos alunos<br />
estagiários com os tutores do curso, foi feito levantamento do número de alunos estagiários do<br />
pólo de Araguaína da UFT. Através de um questionário identificamos o perfil e as percepções<br />
desses alunos em relação ao estágio supervisionado.<br />
O universo da pesquisa: objetivos<br />
Objetivo geral: Analisar a implantação do Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em<br />
Biologia, na modalidade à distância via Plataforma Moodle.<br />
Objetivos específicos: a) Levantar as diferentes percepções do estágio supervisionado através dos<br />
depoimentos dos tutores e coordenadores dos pólos e alunos estagiários. b) Compreender como<br />
ocorre a interação entre o professor responsável pelo estágio supervisionado e aluno estagiário<br />
através da Plataforma Moodle.<br />
Materiais e métodos<br />
A pesquisa ―O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um Estudo<br />
da Plataforma Moodle‖ teve inicio em agosto de 2010 com a leitura de bibliografias que tratam da<br />
Educação a Distância (Ead), sua história, seu desenvolvimento na UFT e a relação do homem com<br />
os novos meios de comunicação. Nessa primeira fase de levantamento bibliográfico e leitura<br />
algumas obras identificadas podem ser citadas pela sua relevância e pelas contribuições que tem a<br />
oferecer a pesquisa. Dentre estas, destacamos o livro ―Mídia & Educação‖ de José Marques de<br />
Melo e Sandra Pereira Tosta, que aponta a relação entre esses dois temas que dão titulo ao livro, e<br />
―A Mídia e a Modernidade – uma teoria social da mídia‖, escrito por Thompson e publicado em<br />
1998, que oferece uma importante reflexão no que tange ao papel das mídias em um novo contexto<br />
de interação dentro da sociedade.<br />
Além dos livros, alguns artigos que tratam da Educação a Distância foram levantados como<br />
base teórica para o desenvolvimento da pesquisa, tais como ―A Educação a Distância no Brasil:<br />
conceitos e fundamentos‖, escrito por Marcio Mognol, professor da Faculdade Internacional de<br />
Curitiba (FACINTER) e o ―Ensaio sobre a Educação a Distância no Brasil‖ escrito por Maria<br />
Luiza Bellone, Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).<br />
Após o levantamento dessa base teórica, para conhecer o curso de Biologia foi realizada<br />
uma leitura do Projeto Político Pedagógico do curso (PPP), que rege as bases estruturais do curso e<br />
traz informações sobre o uso da Plataforma Moodle, ao longo do curso e na fase do estágio<br />
supervisionado, o qual retrata a relação entre os docentes e seus tutores e professores e o processo<br />
avaliativo. O PPP oferece ainda informações sobre as transformações que ocorreram na<br />
Universidade Federal do Tocantins nos últimos anos e retrata o processo de implantação de cursos<br />
na modalidade Ead.
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Na fase do levantamento dos dados envolvendo os pólos e os alunos estagiários do curso<br />
de Licenciatura de Biologia na modalidade à distância, surgiu à primeira necessidade de mudança<br />
nas propostas inicial do projeto de pesquisa, que definia como objeto de estudo todos os pólos da<br />
UFT que oferecem o curso de Biologia Ead. Aqui se descobre que o tempo que tínhamos à nossa<br />
disposição não era suficiente diante da vastidão de trabalho que se anunciava, sendo que um pólo é<br />
responsável por várias cidades ao mesmo tempo, e ao final ficou decidido que a pesquisa seria<br />
realizada inicialmente apenas no pólo de Araguaína.<br />
A próxima fase foi a elaboração do questionário para ser aplicado com os alunos do pólo<br />
que ficou definido como objeto da pesquisa. Inicialmente, a proposta era que o questionário seria<br />
aplicado através do ambiente Moodle, o mesmo que é usado pelos alunos na realização de suas<br />
atividades acadêmicas. No entanto, um mês após a aplicação do questionário, percebemos que era<br />
pouco o retorno que tínhamos dos questionários respondidos, o que demonstra certa fragilidade no<br />
devido uso da ferramenta. Era o momento de mais um reinventar para prosseguir a pesquisa. Em<br />
um evento presencial realizado com os alunos do estágio supervisionado do Curso de Biologia em<br />
Araguaína, o questionário foi aplicado com os alunos presentes.<br />
Resultado e discussão<br />
Aqui serão apresentados os resultados da pesquisa “O Estágio Supervisionado do Curso<br />
de Licenciatura em Biologia: um Estudo da Plataforma Moodle‖.<br />
Quando o questionário foi aplicado o Curso de Biologia Ead da UFT Campus de<br />
Araguaína contava com 150 alunos matriculados nos quatro níveis de estágio supervisionado. O<br />
questionário alcançou alunos dos pólos de apóio presencial de Araguaína, Ananás, Nova Olinda e<br />
Wanderlândia. O questionário foi aplicado com 57 (38%) dos alunos matriculados no estágio<br />
supervisionado. Destacamos que esse percentual de alunos que respondeu ao questionário é<br />
considerado significativo para a análise pretendida, uma vez que, conforme Lakatos e Marconi<br />
(1991), a média de retorno de 25% garante a representatividade das respostas.<br />
Por determinação do Projeto Político Pedagógico do Curso de Biologia Ead, da<br />
Universidade Federal do Tocantins, a prática do estágio supervisionado acontece do segundo ao<br />
quinto módulo 12. Sendo assim, nem todos os alunos que estavam matriculados na época em que o<br />
questionário foi aplicado estavam realizando estagio supervisionado:<br />
Alunos Matriculados por Pólo de Apóio<br />
Ananás, 45; Araguaína, 49; Araguaína Parfor, 20; Nova Olinda, 18 e Wanderlândia 18.<br />
De acordo com o a regulamentação do colegiado do curso de licenciatura em Biologia<br />
001/2008, o Estágio Supervisionado tem como objetivo complementar a formação do professor<br />
em Ciências e Biologia, inserindo-o nos diferentes contextos de sua futura prática profissional,<br />
ocasião em que procurará articular sua formação prévia ao cotidiano da profissão, ao ampliar a<br />
concepção estrita de sala de aula, possibilitando contemplar as diferentes dimensões do trabalho do<br />
professor.<br />
Para entendermos a importância da iniciativa da criação do curso de Biologia Ead, na<br />
Universidade Federal do Tocantins, se faz necessário conhecer o perfil social dos alunos, assim<br />
como algumas das características do seu Projeto Político Pedagógico. O curso criado em 2004, foi<br />
ao encontro das necessidades de uma região que se caracteriza pelo multiculturalismo, com uma<br />
população heterogênea, o que coloca a UFT num contexto desafiador, que é o de promover o<br />
12 Ao contrário da tradicional organização disciplinar, a organização do curso de Biologia Ead é feita através de<br />
módulos.
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desenvolvimento socioeconômico e cultural através de práticas educativas que objetivem e<br />
promovam a melhoria da qualidade de vida da população.<br />
A faixa etária dos alunos entrevistados esta entre 23 a 62 anos, sendo que apenas um dos<br />
matriculado tem mais de 60 anos, desses 40 (70%) são do sexo feminino e 17 (30%) do sexo<br />
masculino. Além de estarem cursando Biologia Ead 19 (33%) alunos revelaram que já possuem<br />
outro curso superior completo, distribuídos nas áreas de Pedagogia 03 (16 %), Geografia 01 (5%),<br />
Normal Superior 01 (5%), os outros 14 (74%) não revelaram sua formação. Do total de 57<br />
entrevistados, 48 (84%) estavam trabalhando. É perceptível a predominância da atuação<br />
profissional dos graduandos do curso de Biologia Ead, na sala de aula. Vale ressaltar que um<br />
mesmo professor atua em mais de um nível de ensino.<br />
Em 1996, aconteceu primeiro boom da Internet no Brasil, em abril do mesmo ano, nasce o<br />
UOL, do Grupo Folha, que hoje é um dos maiores provedores do mundo. Em 1997, a Internet já<br />
estava consolidada no Brasil, principalmente em relação ao conteúdo em língua portuguesa. Em<br />
1998, o número de usuários já era de dois milhões, mas a maior parte dos alunos matriculados no<br />
Curso de Biologia Ead, passaram a ter acesso à internet muito tempo depois:<br />
Tempo que os alunos têm de Acesso a Internet:<br />
De 2-6 meses, é o tempo que 05 alunos têm de acesso à internet, o que representa 9% dos<br />
entrevistados. De 1-3 anos, são 18 alunos, ou seja, 32%. De 4-6 anos, temos também 18 alunos, isto<br />
é, 32%. De 8-15 anos, o total é de 11 alunos, portanto, 19%. Vale ressaltar que 19% dos<br />
entrevistados, ou seja, 11 alunos não responderam.<br />
Sobre a importância a Plataforma Moodle a professora coordenadora de estágio do curso<br />
de Biologia Ead, revelou em entrevista que o ambiente é de fundamental importância nas atividades<br />
relacionadas ao estágio. ―Pela plataforma orientamos os estagiários, uma vez que as aulas<br />
presenciais só ocorrem nos finais de semana. Deixamos os documentos de estágio para os alunos<br />
baixarem e preencherem, também textos para leitura.‖<br />
A coordenadora de estágio do curso reforça a importância da Plataforma Moodle através<br />
do seguinte relato: ―Muito grande uma vez que parte do curso é feito a distância. Através da<br />
Plataforma, tiramos dúvidas, deixamos documentos para alunos, acompanhamos horários de aula<br />
dos alunos nas escolas, entre outras. É um importante instrumento facilitador da aprendizagem,<br />
porque as informações estão mais acessíveis e rápidas‖.<br />
Mas, como a periodicidade do acesso não é cobrado, sendo de responsabilidade do aluno a<br />
decisão do momento de estudo através da plataforma, a pesquisa revela que o uso do ambiente<br />
virtual do curso de Biologia Ead, por parte dos alunos, pode variar entre dias e semana.<br />
Periodicidade de acesso a Plataforma Moodle<br />
No que tange à periodicidade do acesso à Plataforma Moodle pelos alunos estagiários, o<br />
quadro é o seguinte: Todos os dias, 13, ou seja, 23%; Menos de duas vezes por semana, 11 alunos,<br />
isto é, 19%; Semanalmente, 33, o que representa 58%.<br />
A professora coordenadora avaliou a interação entre professores e alunos como boa, mas<br />
contou que ainda existe alguns problemas a serem superados. ―A interação entre professores e<br />
alunos é boa, mas alguns professores e alunos ainda têm dificuldades para acessar a plataforma, por<br />
causa da não familiaridade com as tecnologias, mas esses problemas têm sido superados aos poucos<br />
a cada semestre. E alguns fóruns têm muita interação‖.
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A professora, coordenadora do estágio, destacou que embora a plataforma seja um<br />
importante instrumento facilitador da aprendizagem, o seu uso de forma inadequada pode trazer<br />
prejuízos na formação dos acadêmicos. ―Na primeira turma de Biologia Ead tivemos uma evasão<br />
muito grande, acredito que não soubemos dosar bem entre as atividades a distancias e as<br />
presenciais‖. ―A plataforma é muito importante, mas não pode ser a única metodologia do curso,<br />
porque seu uso como único instrumento não resolve todas as questões‖, ressaltou a professora.<br />
De acordo com as respostas dada pelos 57 entrevistados, 37 (65%) tem facilidade de acesso<br />
na Plataforma Moodle, 05 (9%), tem dificuldade na hora de acessar o ambiente virtual do curso de<br />
Biologia Ead e 15 (26%), apenas as vezes tem facilidade no acesso. Os alunos acessam a plataforma<br />
em locais diferentes de acordo com a sua realidade, quando questionados sobre o local de acesso<br />
foram obtidas 82 respostas, sendo que os entrevistados poderiam escolher mais de uma opção, o<br />
locais onde mais se faz acesso a plataforma é da casa do acadêmico com 26 (30%) de acesso e o<br />
mesmo número de acesso foi identificado nos laboratórios dos pólos.<br />
Locais de Acesso à Plataforma Moodle<br />
Em relação aos locais nos quais os alunos fazem o acesso à Plataforma Moodle,<br />
encontramos a seguinte situação: 26 alunos têm computador em casa, o que representa 32%. A<br />
quantidade de alunos que acessam nos computadores do laboratório de informática do pólo<br />
também é de 26, ou seja, 32%. Já aqueles que dizem acessar pelo computador do trabalho são 24,<br />
ou seja, 29%; 03 acessam numa Lan House, isto é, 4%; 02 dizem acessar na casa de amigos, (2%) e<br />
01 na casa de pessoas da família (1%).<br />
Por diferentes motivos os pesquisados optaram por um curso superior, com formação na<br />
modalidade à distância, indo da falta de opção ao interesse pelo curso.<br />
Motivos que levaram os estudantes a cursar Biologia Ead<br />
Os estudantes que dizem ter escolhido um curso à distância, a partir da flexibilidade de<br />
horário totaliza 19 (33%); Os que afirmam que é por ser esta a única oportunidade são 18 (32%);<br />
Aqueles que dizer ser por interesse pelo curso são 05 (9%); 09 (11%) deram outras respostas, e 06<br />
(11%) não rsponderam.<br />
Embora os alunos tenham optado pelo curso de Biologia Ead, a coordenadora entrevistada<br />
contou que existe um interesse dos alunos por mais momentos presenciais. ―Muitos alunos<br />
demonstram interesse por mais momentos presenciais, mas tentamos dosar esses dois momentos,<br />
os a distancia ficam pra orientações e acompanhamento e solução de duvidas.‖<br />
Para 11 (19%), dos alunos, o estágio supervisionado realizado durante o curso, tem<br />
correspondido totalmente as suas expectativas, já 44 (77%) responderam que estão bastante<br />
satisfeito, apenas 01 (2%), não está satisfeito e 01 (2%) não respondeu. Quando questionado sobre<br />
em que aspectos o estágio supervisionado tem correspondido às expectativas foram dadas as<br />
seguintes respostas:<br />
Aspectos em que o Estágio Supervisionado tem correspondido às expectativas dos<br />
acadêmicos<br />
Ao serem indagados sobre os aspectos do Estágio Supervisionado no que tange às<br />
expectativas correspondidas, 19 alunos (33%) afirmaram que foi a melhoria na prática na sala de<br />
aula; 07 (12%) dizem ser a aprendizagem que melhorou; 03 alunos (5%) afirma ser a troca de
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conhecimento; 05 (9%) que foi a relação entre teoria e prática; Já 08 alunos (14%) deram diferentes<br />
respostas, e 15 alunos (26%) não responderam.<br />
Quando questionada sobre o que mais chamava sua atenção em relação ao curso de Biologia<br />
Ead, a coordenadora de estágio respondeu: ―O nível de interação dos alunos com as tecnologias de<br />
aprendizagem, porque apesar de alguns ainda apresentarem dificuldades a grande maioria lida bem<br />
com isso e aplica na sala no momento do estágio.‖<br />
O valor dado pelos alunos ao estágio supervisionado pode ser comprovado na tabela 09 que<br />
demonstra o número dos entrevistados que fariam outro estágio supervisionado:<br />
Alunos que (não) realizariam outro Estágio Supervisionado<br />
Dentre os alunos estagiários, 36 (63%) responderam que fariam, sim, outro estágio; 15<br />
alunos (26%) responderam que provavelmente fariam; 01 (2%) disse que não faria; 01 (2%)<br />
respondeu que não sabe; e 04 (7%) afirmaram que não fariam outro estágio.<br />
Quando questionada sobre o nível de engajamento dos alunos na realização do estágio<br />
supervisionado, a professora/coordenadora afirmou que é muito grande, e nas palavras dela, não<br />
tem meio estágio, se o aluno não se engajar não é possível concluí-lo. O que vem corroborar o<br />
interesse pela realização do estágio supervisionado demonstrado nas respostas dos próprios alunos.<br />
A coordenadora destacou ainda que embora a plataforma seja um importante instrumento<br />
facilitador da aprendizagem, o seu uso de forma inadequada pode trazer prejuízos na formação dos<br />
acadêmicos. ―Na primeira turma de Biologia Ead tivemos uma evasão muito grande, acredito que<br />
não soubemos dosar bem entre as atividades a distancias e as presenciais. A plataforma é muito<br />
importante, mas não pode ser a única metodologia do curso, porque seu uso como único<br />
instrumento não resolve todas as questões‖, ressaltou a professora.<br />
Conclusão<br />
A pesquisa “O Estágio Supervisionado do Curso de Licenciatura em Biologia: um<br />
Estudo da Plataforma Moodle‖, identificou que diante da realidade social em que os alunos do<br />
curso de Biologia Ead estão inseridos, a modalidade de educação a distância é uma alternativa de<br />
ampliação de ensino, rompendo barreiras sociais que impedem que o cidadão comum tenha acesso<br />
ao ensino superior.<br />
Ao mesmo tempo em que os novos meios tecnológicos oferecem avanços na expansão do<br />
ensino superior, ainda existem barreiras que precisam ser superadas. As barreiras sociais impedem<br />
muitas pessoas de fazerem um acesso de qualidade aos novos meios de comunicação, marcado pela<br />
falte de condição de se adquirir os meios tecnológicos ou a falta de habilidade na hora de usá-los, o<br />
que impede uma formação de qualidade.<br />
Ao observamos a freqüência do acesso ao ambiente virtual Plataforma Moodle, pode-se<br />
constatar que o ambiente virtual não tem um uso efetivo por parte dos acadêmicos. A professora e<br />
coordenadora de estágio supervisionado do curso de Biologia Ead, em entrevista ao grupo de<br />
pesquisa ressaltou que parte da dificuldade de acesso a ao ambiente virtual do curso decorre da<br />
relação com as novas tecnologias, tanto por parte de alguns alunos e professores, mas que de<br />
acordo com a professora esses problemas estão sendo superados. ―A interação entre professores e<br />
alunos via Plataforma Moodle, podem ser considerada boa, pois alguns professores e alunos ainda<br />
têm dificuldades para acessar a plataforma, mas esses problemas têm sido superados aos poucos a<br />
cada semestre‖.
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A deficiência no uso da Plataforma Moodle começou a ser percebida logo no inicio da<br />
pesquisa quando se propôs que os alunos respondessem um questionário aplicado por meio do<br />
ambiente e pouco retorno foi obtido. Através do questionário 33 (58%) dos alunos revelaram que<br />
acessam o ambiente apenas uma vez por semana e 11 (19%) acessa menos de uma vez por semana.<br />
Por outro lado a experiência da UFT na promoção da formação de professores através da<br />
educação na modalidade a distância, é uma iniciativa importante considerando que a instituição está<br />
inserido em uma realidade onde o número de universidades presentes nas cidades do interior é<br />
reduzido e o número de educadores da rede pública que necessitam de formação em nível superior<br />
é alto.<br />
Mesmo diante da importância do curso de Biologia Ead, ficou perceptível a necessidade da<br />
aproximação do educando desde o inicio da sua formação com os meios tecnológicos, para que no<br />
momento em que ele decida optar pela Educação a Distância, o mesmo esteja preparado para que<br />
possa adquirir conhecimento com qualidade. Nesse contexto em que a maioria dos alunos<br />
concluíram o ensino médio em escola pública, o governo tem responsabilidade de possibilitar o<br />
acesso desses alunos às tecnologias.<br />
Referências<br />
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Vozes, 1998.<br />
TOSTA, Sandra Pereira; MELO, José Marques de. Mídia & Educação. Belo Horizonte: Autêntica<br />
Editora, 2008.<br />
UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS. Projeto Pedagógico do Curso de<br />
Licenciatura em Biologia. Palmas, 2006.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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NÓDOAS POÉTICAS E IMPRESSIONISTAS EM UM CONTO<br />
DE MENALTON BRAFF<br />
Mariângela Alonso<br />
Doutoranda em Estudos Literários<br />
UNESP - Campus de Araraquara – SP<br />
Docente de Literatura Brasileira<br />
Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro-SP).<br />
Resumo: Estudo da permanência de traços líricos e impressionistas presentes na composição do<br />
conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, narrativa que faz parte da coletânea Á sombra do cipreste,<br />
publicada em 1999 por Menalton Braff. A pesquisa fundamentar-se-á nas reflexões de Jean-Yves<br />
Tadié e Ralph Freedman, entre outros.<br />
Palavras-chave: Narrativa poética; Impressionismo; Menalton Braff.<br />
Abstract: Study of the permanence of lyrical and impressionistic strokes in the composition of the<br />
tale Girl in the rain: the trackless paths, narrative that is part of the collection In the shade of cypress,<br />
published in 1999 by Menalton Braff. Research will be based on the reflections of Jean-Yves Tadié<br />
and Ralph Freedman, among others.<br />
Key-words: Lyrical novel; Impressionism; Menalton Braff.<br />
Introdução<br />
A narrativa poética ou romance lírico constitui-se em um gênero híbrido ao aproximar-se<br />
do poema em diversos aspectos. A aproximação com a poesia se dá principalmente pela presença<br />
de sonoridades, ritmos e metáforas, além do recurso da repetição. Também pelo recurso do mito,<br />
que é polissêmico.<br />
No que concerne à enunciação, nas narrativas poéticas, o ponto de vista do autor exprime<br />
o objeto, na medida em que escolhe o que narrar, da mesma forma que na poesia, quando a<br />
subjetividade é expressa. Neste sentido, a análise da narrativa poética deverá levar em conta técnicas<br />
descritivas do romance e do poema, ao mesmo tempo.<br />
As narrativas poéticas, diferentemente das narrativas realistas, trazem, como tema central,<br />
questões inerentes à condição humana. Seus personagens efetuam, muitas vezes, uma busca<br />
freqüente, de aspecto existencial. Assim, tais narrativas assemelham-se às narrativas míticas, na<br />
medida em que recriam o mundo através de símbolos. O herói assume um percurso, no qual o<br />
tempo exterior não é relevante, uma vez que o interesse recai sobre o tempo interiorizado, com<br />
suas angústias e seus gestos. O tempo torna-se assim, uma instância mítica, subjetiva, em que se<br />
instaura um processo de volta às origens, ou seja, o eterno retorno humano.<br />
Por sua vez, o espaço é caracterizado principalmente por imagens, contando com a<br />
representação de lugares específicos e simbólicos. Nestes cenários, numa relação por vezes muito<br />
estreita com a personagem, cada imagem suscita a própria subjetividade do homem. Imerso nesses<br />
lugares, o lirismo narrativo propõe uma reflexão acerca da condição humana.<br />
A difusão teórica a respeito da narrativa poética ou romance lírico foi postulada pelo norteamericano<br />
Ralph Freedman e pelo francês Jean-Yves Tadié, cujas obras ressaltam, principalmente, a<br />
condição de um gênero híbrido e dos rumos da arte.
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Em The lyrical novel, Ralph Freedman estabelece como ponto de partida para sua análise as<br />
obras de Hermann Hesse, Andre Gide e Virginia Woolf. Ele demonstra, em seus apontamentos, a<br />
existência de diversos aspectos líricos, sobreviventes da herança simbolista.<br />
A presença de uma subjetividade latente, de um ―eu‖ que se reflete continuamente,<br />
perpassa a obra dos autores escolhidos. Freedman insiste no fato de que o ponto de vista do autor<br />
seja o responsável pela descrição e recriação do mundo. Para dar vazão aos processos ocorridos na<br />
mente, o artista pode utilizar diversos recursos, tais como crônicas, diários, autobiografias __<br />
elementos muito comuns às narrativas poéticas, como forma de compreensão do estado íntimo do<br />
escritor. Neste sentido, a busca interior do narrador assemelha-se à busca de um poeta, permeando<br />
o mundo e o ser.<br />
O francês Jean-Yves Tadié, na obra Le récit poétique, estabelece a discussão dos temas das<br />
narrativas poéticas numa perspectiva estrutural. Retomando Jakobson, Tadié chama a atenção<br />
para a função poética da linguagem, ao confrontar os procedimentos da narração com a poesia. Ele<br />
observa o fato de que a função poética assume, nas narrativas poéticas, um papel bem mais<br />
relevante que a referencial:<br />
[...] il y a là un conflit constant entre la fonction référentielle, avec ses tâches<br />
d‘évocation et de représentation, et la fonction poétique, qui attire l‘attention sur<br />
la forme même du message. Si nous reconnaissons, avec Jakobson, que la poésie<br />
commence aux parallélismes, nous trouverons, dans le récit poétique, un<br />
système d‘echos, de reprises, de contrastes qui sont l‘équivalent, à grande<br />
échelle, des assonances, des allitérations, des rimes [...] (TADIÉ, 1978, p. 8)<br />
Espaço, tempo, personagem e mito relacionam-se, instaurando uma narração que cria seu<br />
próprio mundo, absorvendo os significados mais ocultos, que, num romance tradicional, não<br />
surtiriam grandes efeitos. Nas narrativas poéticas, tais significados são antes símbolos que<br />
empreendem uma viagem rumo ao autoconhecimento.<br />
O surgimento da narrativa poética ou do romance lírico encontra-se relacionado à escola<br />
romântica, cujos autores empreenderam uma reflexão sobre o processo criativo, no qual a<br />
expressão do ―eu‖ do artista revelava uma intensa subjetividade. A Modernidade, por sua vez, foi<br />
palco da presença do ―eu‖ do narrador, já praticada anteriormente pelo Romantismo e pelo<br />
Simbolismo. Ao contrário dos narradores do século XIX, a ficção moderna é caracterizada pelo<br />
emprego cada vez mais freqüente do foco narrativo em primeira pessoa.<br />
As narrativas poéticas instauram-se com a preocupação por aspectos míticos e a<br />
problemática das questões eternas. Como matéria dessas narrativas, Michel Raimond reconhece:<br />
La couleur d‘une rêverie, la grâce d‘un objet, le mystère d‘une rencontre, tout cela,<br />
qui a alimenté le roman poétique, exclut une lourde structure en même temps que<br />
l‘observation réaliste ou psychologique courante. Symptôme non négligeable de la<br />
crise du roman que ce passage du réalisme au lyrisme, dans un genre qui paraissait<br />
voué à la peinture de la réalité. (RAIMOND, 1966, p. 225-6)<br />
O poético surge, portanto, oferecendo possibilidades de questionamento, numa busca<br />
incessante e eterna. Nessa espécie de narrativa, residem questões de ordem filosófica e mítica,<br />
acerca do próprio ―eu‖. Assim, somados todos esses elementos, o presente artigo procura percorrer<br />
o perfil do conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, de Menalton Braff, acentuando nele um<br />
olhar sobretudo lírico.
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Nódoas impressionistas em uma rua industrial:<br />
O conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos pertence à coletânea de contos intitulada À<br />
sombra do cipreste, publicada em 1999 por Menalton Braff. Foi com esta obra que em 2000 o escritor<br />
conquistou o Prêmio Jabuti, concorrendo com Carlos Heitor Cony e Nélida Piñon, autores já<br />
consagrados pela crítica.<br />
Em muitos momentos, os contos de Á sombra do cipreste dialogam com as produções<br />
impressionistas do século XIX ao fazerem uso de um lirismo fixado ao estado de alma dos<br />
personagens, bem como aos aspectos memorialistas e sensoriais. Assim, a prosa de Braff desenhase<br />
a partir de traços predominantemente intimistas.<br />
Nosso objetivo não é o de enquadrar a obra de Menalton Braff na esfera do chamado<br />
Impressionismo, mas sim o de apontar a permanência destes traços no conto escolhido para análise,<br />
detectando, neste sentido, os possíveis diálogos entre os aspectos impressionistas e a prosa lírica<br />
braffiana. Para tanto, faremos primeiramente uma contextualização do movimento impressionista a<br />
fim de estabelecermos a atitude pautada no diálogo em que questão.<br />
Podemos dizer que o Impressionismo foi um dos principais movimentos da arte ocidental<br />
do século XIX e talvez de toda a modernidade. Sua técnica originou-se a partir das experiências<br />
artísticas presentes na obra de pintores como Monet, Pissaro, Morisot, Renoir, Sisley e Bazille, os<br />
quais consagraram-se como os seus verdadeiros expoentes.<br />
Tais pintores utilizavam em suas telas uma composição refinada, procurando captar a<br />
expressão direta da luz e das cores, contando, muitas vezes, com cenários ao ar livre, num<br />
acabamento perfeito. De acordo com Janice Anderson, os impressionistas ―[...] procuravam analisar<br />
a cor e o tom de um deterninado objeto o mais exatamento possível e pintar o jogo de uz sobre a<br />
superfície de objetos‖ (ANDERSON, 1997, p. 6).<br />
No campo literário o Impressionismo conta com os escritores adeptos da chamada écriture<br />
artist e aparece nas composições de Henry James, Marcel Proust, Anton Tchékcov, Jules e Edmond<br />
Goncourt, além de Joseph Conrad. Precedentemente, há tendências impressionistas nas obras de<br />
Baudelaire, Daudet, Verlaine e Rimbaud. Enquanto fenômeno literário, Arnold Hauser observa as<br />
diferenças da técnica impressionista em relação à naturalista, sinalizando: ―O impressionismo é<br />
menos ilusionístico do que o naturalismo; em vez da ilusão, fornece elementos do tema, em vez de<br />
uma imagem do todo, as várias peças que compõem a experiência‖ (HAUSER, 1995, p. 899).<br />
Trata-se, portanto, de uma expressão pautada pela sugestão dos objetos, bem como das<br />
sensações e subjetividades despertadas por eles. Assim, o Impressionismo procura atingir o<br />
momento essencial, trazidos à tona por meio do estado de alma, ou seja, a subjetividade do artista.<br />
Nestas obras, o apego à descrição sobrepõe-se à narração, procedimento justificado pela ação<br />
contemplativa ou poética, o que caracteriza o caráter eminentemente visual da composição.<br />
A escrita impressionista opera uma atmosfera poética, na qual seu projeto de escrita busca<br />
não a retratação do mundo, mas sua revelação. Tal qual o trabalho do poeta, o narrador<br />
impressionista está submerso na eterna busca pela natureza primeva das palavras e a pluralidade de<br />
seus significados por vezes já esquecidos. É o que encontramos no conto de Menalton Braff. Nele,<br />
um narrador de primeira pessoa, caminha calmamente por uma rua industrial, descrita como<br />
―melancólica e metalúrgica‖, com ―paredes sujas‖ e ―reboco carcomido‖. A cena engendra um<br />
quadro impressionista na medida em que a espacialização conta com a chuva e seus aspectos<br />
sensoriais. O cenário torna-se uma espécie de contemplação pictórica, semelhante ao pincel de um<br />
artista:
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Os primeiros pingos da chuva eu os ouvi na pureza de sua individualidade:<br />
alguns pesados, líquidos e sonorosos, pérolas que se espatifavam ao cair, e<br />
caindo levantavam o pó do passeio. Apenas os primeiros, porque em seguida<br />
desabou o aguaceiro de pingos homogêneos, massa contínua de sons sem<br />
identidade: água jorrada. Não me alcançou, pois começou a cair exatamente na<br />
hora em que cheguei à esquina e saltei para dentro do bar, feliz ainda por ter<br />
podido escapar. (BRAFF, 1999, p. 76 )<br />
De dentro do bar onde toma cerveja, este homem observa contemplativamente a rua lá<br />
fora, notando a presença de uma moça vestida de azul: ―Seu vestido azul, seco ainda, tremulava ao<br />
vento sem temer o escândalo de seu gesto nervoso‖ (BRAFF, 1999, p. 76)<br />
Por meio de uma descrição altamente plástica, o narrador introduz a moça da chuva. O<br />
estado contemplativo que toma conta do narrador remete a uma tela impressionista na medida em<br />
que tenta captar os movimentos e as cores que envolvem a moça. Neste ponto do conto de Braff é<br />
pertinente recorrermos aos apontamentos acerca do romance poético efetuados por Todorov. O<br />
teórico recorre à oposição feita por Novalis no romance Heinrich von Ofterdingen. Partindo das<br />
tendências observadas por Novalis, temos de um lado, os ―homens de ação‖, aos quais ―[...] não<br />
lhes é permitido entregar-se às reflexões silenciosas, ceder aos convites do pensamento meditativo‖;<br />
e por outro lado, os ―seres recolhidos‖, ―[...] para quem o mundo é interior, a ação contemplativa e<br />
a vida um secreto e discreto acréscimo das forças do interior [...] Esses homens são os poetas‖<br />
(NOVALIS apud TODOROV, 1980, p. 100). Tais atitudes ecoam no conto de Braff, uma vez que<br />
o aspecto romanesco cede lugar ao lírico, presentificado pelo uso da primeira pessoa. Semelhante<br />
ao papel do poeta, o narrador de Braff oscila entre o plano do enredo e as imagens da chuva que<br />
eclodem.<br />
Na perspectiva estrutural, é possível visualizar nas narrativas líricas, o plano sintagmático<br />
da narrativa, que se apresenta constantemente invadido pelo plano paradigmático da poesia. Ralph<br />
Freedman, ao postular importantes considerações acerca do romance lírico, oferece-nos um<br />
esclarecimento no que tange a esta questão:<br />
Conventionally, the lyric, as distinct from epic and drama, is seen either as an<br />
instantaneous expression of a feeling or as a spatial form. The reader approaches<br />
a lyric the way an onlooker regards a picture: he sees complex details in<br />
juxtaposition and experiences them as a whole. (FREEDMAN, 1963, p. 6)<br />
Esta concepção é importante para pensarmos o caráter impressionista apontado na obra de<br />
Menalton Braff, baseado sobretudo na contemplação interior, na criação de um mundo próprio.<br />
Esta tendência é observada nos protagonistas de romances líricos, nos quais o narrador e a<br />
personagem fundidos combinam-se para criar um ―eu‖. A cena comum de ficção ambientada em<br />
uma rua industrial torna-se uma textura do imaginário. Como bem assinala Ralph Freedman: ―The<br />
‗I‘ of the lyric becomes the protagonist, who refashions the world through his perceptions and<br />
renders it as a form of the imagination‖ (FREEDMAN, 1963, p. 271). Assim, assemelhando-se ao<br />
projeto do poeta, a narrativa braffiana revela a tentativa desesperada de captar-se a si mesma,<br />
reescrevendo os objetos e os seres, de modo que esses adquiram no texto uma nova forma:<br />
Eu caminhava apressado e descontente, olhando às vezes para o céu com a<br />
sensação de que tinha caído numa armadilha de onde não conseguiria escapar<br />
jamais. O céu que me restava era apenas uma estreita faixa cinzenta de nuvens<br />
que se moviam sem direção definida, de maneira mais ou menos frenética.<br />
(BRAFF, 1999, p.75)<br />
No conto em questão, o cenário ocupa uma posição de destaque no que tange aos efeitos<br />
de sentido percorridos pelo narrador. Nas narrativas líricas, o espaço é parte integrante de uma
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dilatação interior marcada por imagens e percepções das personagens. Por meio das imagens<br />
suscitadas, há nestas narrativas uma significativa imagem do mundo e do ser, ou seja, a<br />
representação de espaços essencialmente simbólicos. Ao caracterizar a noção de espaço, Tadié<br />
discute tais questões:<br />
L‘itinéraire, le voyage dans le récit poétique, représente ainsi la dernière étape<br />
dune évolution qui va du voyage extérieur au voyage intérieur, et du voyage<br />
intérieur à un voyage à travers ces grands espaces vacants que lês mots suffisent<br />
à engendrer . (TADIÈ, 1978, p. 67)<br />
Na perspectiva lírica, o espaço ultrapassa os limites físicos e geográficos. Baseando-se em<br />
descrições do cenário, o conto de Braff traz a construção de uma atmosfera sensorial e intimista,<br />
tão cara à técnica impressionista. Logo em seguida o leitor é surpreendido pela descrição de uma<br />
caixa de papelão que se encaminha para um bueiro. A caixa parece percorrer um itinerário<br />
inexorável e angustiante, como se houvesse uma espécie de embate:<br />
Joguei todas as minhas esperanças no momento em que a caixa chegasse àquela<br />
boca escura: sua última oportunidade. Não demorou quase nada para que isso<br />
acontecesse. De repente, a caixa tornou-se magnífica em sua muda resistência.<br />
Ela cresceu ao pressentir o perigo. Ergueu-se, altaneira, as mãos e os pés<br />
fincados nas bordas, recusando-se a aceitar passivamente o próprio fim. A água<br />
insistiu violenta, brutal, mas a caixa, apesar de trêmula, não arredava pé, não se<br />
movia. (BRAFF, 1999, p.77-78)<br />
Inegavelmente o conto de Menalton Braff é permeado por aspectos impressionistas, com<br />
frases poéticas e descrições sensoriais. A escrita impressionista imobiliza o objeto, ou seja, a caixa<br />
de papelão, transformada pelo caráter lírico da cena.<br />
O embate entre a caixa de papelão e o bueiro culmina no desaparecimento da moça, que é<br />
levada por um ônibus e roubada da visão do narrador:<br />
Em pouco tempo a água já conseguira apagar seus lindos olhos negros,<br />
transformando a boca de lábios carnudos em um risco arroxeado, deformando<br />
testa e queixo, embrutecendo o que ainda há pouco era delicadeza e harmonia.<br />
(BRAFF, 1999, p. 75)<br />
Semelhante a uma objetiva fotográfica, o olhar do narrador centra-se nos aspectos<br />
disformes da moça, fazendo com que as manchas se definem, assumindo formas e contornos mais<br />
precisos. Mais uma vez a cena ganha ares de uma pintura impressionista, sugerindo o apagamento<br />
das formas, dos contornos da moça tal como o borrão de água nas cores de um quadro.<br />
O desfecho do conto traduz o mundo circundante de que participa o narrador, situado na<br />
hostilidade de uma rua industrial, mas antes de tudo situado também como ser-no-mundo,<br />
descobrindo sua solidão e seu isolamento. Resta somente ―uma parede encharcada e de reboco<br />
arruinado‖ (BRAFF, 1999, p.78 ). Desta forma, a experiência deste narrador dá-se pelo cenário no<br />
qual reage, uma rua industrial, que curiosamente ―[...] parecia há muito ter esquecido no abandono a<br />
própria aparência: charme nenhum‖ (BRAFF, 1999, p. 75).<br />
É interessante observarmos uma espécie de circularidade presente neste final, uma vez que<br />
a cena do desfecho é semelhante a do início, fato que remete ao constante re-início da escrita e da<br />
experiência, semelhante ao circuito do ―tempo serpente‖ que morde incessantemente sua própria<br />
cauda, em movimento de eterna busca, de conclusão impossível para o narrador. Este<br />
procedimento de circularidade também é encontrado na poesia, conforme salienta Octavio Paz:<br />
―[...] apresenta-se como um círculo ou uma esfera – algo que se fecha sobre si mesmo, universo
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auto-suficiente no qual o fim é também o princípio [...]‖ (PAZ, 1995, p. 83). Ao sobrepor início e<br />
fim, o conto de Braff tem como resultado a abertura de um círculo que não se fecha sobre si<br />
mesmo, engendrando algo como um movimento espiralado, uma viagem que requer a participação<br />
do leitor pelos ―ínvios caminhos‖.<br />
Conclusão<br />
Este artigo procurou descrever e discutir a permanência de aspectos impressionistas no<br />
conto Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos, de Menalton Braff. Não pretendemos, com este<br />
trabalho, reduzir a obra braffiana como impressionista, haja vista a distância de temporalidade que a<br />
separa dos primeiros impressionistas. Mas procuramos realizar um trabalho crítico de natureza<br />
dialógica, pautando-nos na permanência impressionista sobretudo no conto escolhido para análise.<br />
Assim, a leitura crítica do texto braffiano poderá suscitar novas leituras, que com esta possam<br />
dialogar.<br />
A construção do discurso foi analisada, de modo a revelar pontos comuns à técnica da<br />
narrativa poética ou romance lírico na medida em que o autor projeta a interioridade do narrador ao<br />
observar, em uma hostil rua industrial, a moça debaixo da chuva. Com alma de poeta, este narrador<br />
busca-se a todo o momento na observação realizada: ―Ela me encarou, e seu jeito de me encarar era<br />
um pedido de socorro: seu vestido azul, marcas da chuva, grudara-se-lhe nas pernas, deixando de<br />
gesticular‖ (BRAFF, 1999, p. 76).<br />
A imagem distorcida da moça remete a uma espécie de mancha ou borrão, possibilitando<br />
ao conto de Braff o retorno à tradição impressionista do século XIX.<br />
Ao escritor impressionista interessa sobremaneira os estados de alma de seus personagens,<br />
privilegiando a análise psicológica em detrimento da narrativa centrada em peripécias exteriores.<br />
Neste sentido, além do caráter impressionista salientado, o conto de Braff também apresenta<br />
pontos de contato com as narrativas poéticas ou romances líricos.<br />
As narrativas poéticas procuram dar um sentido à vida, instaurando forças que o texto põe<br />
em jogo, como a procura por uma identidade, a força expressiva do íntimo, possibilitando ao<br />
personagem, e consequentemente, ao leitor, a realização de uma trajetória pessoal através dos<br />
textos.<br />
O narrador reconfigura o cenário nada atraente de uma rua industrial, mediante um<br />
processo de exaltação dos seus sentidos. O resultado é a construção de uma narrativa<br />
essencialmente subjetiva, lírica, beirando as raias da poesia.<br />
Referências bibliográficas<br />
ANDERSON, Janice. A arte dos impressionistas. Tradução Ruth Dutra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.<br />
BRAFF, M. Moça debaixo da chuva: os ínvios caminhos. In: À Sombra do Cipreste: contos. Ribeirão Preto, São<br />
Paulo: Fábrica do Livro, 1999.<br />
FREEDMAN, R. The lyrical novel: studies in Hermann Hesse, André Gide and Virginia Woolf. New Jersey:<br />
Princeton University Press, 1963.<br />
HAUSER , A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />
PAZ, O. O arco e a lira. 2. ed. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.<br />
RAIMOND, M. La crise du roman. 5. ed. Paris: José Corti, 1966.<br />
TADIÉ, J. Y. Le récit poétique. Paris: Presses Universitaires de France, 1978.<br />
TODOROV, T. Um romance poético. In: ______.Os gêneros do discurso. Tradução Elisa Angotti Kossovitch.<br />
São Paulo: Martins Fontes, 1980, p. 100-111. (Ensino Superior)<br />
Enviado – 05/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA: IMAGENS VISIVAS<br />
PROPOSTAS PELA ARTE<br />
Patrícia Colavitti Braga Distassi<br />
Profª Drª Faceres/USP<br />
Mary Julia Dietzsc<br />
Profª Drª /USP<br />
Resumo: O presente artigo tem como objetivos ampliar a reflexão sobre a formação de<br />
educadores, bem como sobre a utilização da arte como mediadora da formação da identidade<br />
docente por meio de imagens fecundas que propiciam a criação de imagens visivas e, possibilitam ao<br />
futuro educador, ver-se educador, preparar-se e tornar-se educador, antes de o sê-lo na prática<br />
cotidiana em sala de aula.<br />
Palavras-chave: Formação de Professores; Identidade docente; Arte.<br />
Abstract: This article aims to broaden the debate on teacher training, as well as on the use of art as<br />
mediator of identitY formation teaching through images that provide the fertile creation of the<br />
visibles images, and enable the future educator, see themselves educator, and prepare to become<br />
and educator, before be it in everyday practice in the classroom.<br />
Keywords: Teacher; Teacher identity; Art.<br />
O artigo“Formação de Mediadores de Leitura – Intersecção entre Linguagens” advém de<br />
nosso interesse pela investigação acerca da formação e da prática do professor que medeia processos de<br />
ensino-aprendizagem que visam à formação do leitor. Esse trabalho é proveniente de um percurso que se<br />
iniciou em 2003, por meio da pesquisa desenvolvida para a elaboração de nossa tese de doutorado intitulada<br />
Na estrada dos enigmas, Leituras e Linguagens: imagem e palavra em cena, a qual foi concluída em 2006. Em parte<br />
desse trabalho, empreendemos uma pesquisa de caráter teórico-prático, em que investigamos a<br />
exequilibilidade da utilização da Arte (Literatura, Pintura, Fotografia, Música, Cinema e Teatro) como<br />
mediadora dos estudos sobre a formação de professores).<br />
Os resultados por ele propostos apresentaram-se de modo muito satisfatório e, além disso, os<br />
objetivos foram superados quando reencontramos os sujeitos da pesquisa em cursos de pós-graduação e<br />
esses nos relataram que transpuseram as estratégias didáticas que foram utilizadas para sua formação<br />
enquanto leitores e enquanto professores leitores (mediação dos processos de ensino-aprendizagem pela<br />
arte) para a sua prática docente no Ensino Fundamental (1º. a 5º. Anos) e obtiveram resultados excelentes.<br />
Esse relato impulsionou-nos a dar continuidade a nossos estudos sobre a leitura e seus processos<br />
constitutivos e instigou-nos a revisitar a pesquisa anterior, para nela nos aprofundarmos e, provavelmente,<br />
extrair novas conclusões que pudessem se estender a outros docentes e auxiliá-los em seu trabalho.<br />
A fim de ilustrar e alinhavar o percurso reflexivo e investigativo que orientou a concepção desse<br />
projeto faremos, inicialmente, um breve relato de um recorte da pesquisa que serviu como uma das bases de<br />
nosso doutoramento e das conclusões suscitadas referentes à formação docente mediada pela arte e à leitura<br />
e seus processos constitutivos, bem como apresentaremos as conclusões iniciais que já obtivemos no<br />
processo de revisitação da pesquisa.<br />
Relato da Experiência Inicial: A arte como mediadora da formação do educador<br />
Uma das experiências pedagógicas que foram objeto de nosso estudo (e que influenciou a<br />
construção desse artigo) teve início quando ministrávamos, na mesma turma do Primeiro ano do extinto
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curso Normal Superior, as Disciplinas de “Comunicação, Educação e Tecnologias”, e ―Didática” e, durante as<br />
aulas, uma situação começou a se tornar recorrente: os processos de ensino-aprendizagem na disciplina<br />
“Comunicação, Educação e Tecnologias” revelavam-se mais eficientes e eficazes do que se mostravam na<br />
Disciplina de Didática_ vale ressaltar que, em vários momentos, os conceitos trabalhados na disciplina<br />
“Comunicação, Educação e Tecnologias” apresentavam um grau maior de complexidade e eram mais distantes do<br />
cotidiano dos alunos e dos conhecimentos e concepções prévias que possuíam. Esse fato estimulou ainda<br />
mais nossa curiosidade e nos levou a constatar a necessidade de uma investigação mais cuidadosa, a qual se<br />
iniciou pela análise e pela reflexão acerca de nossa prática docente, pois, os alunos eram os mesmos, assim<br />
como o professor, sua identidade e ações que antecediam as aulas eram idênticas; desse modo, haveria que<br />
se investigar o que mudava e poderia estar produzindo resultados diferentes.<br />
A hipótese mais provável era a diferença de recursos técnicos e metodológicos que empregávamos<br />
para mediar os processos de ensino-aprendizagem, pois, a Disciplina “Didática” era mediada por meio de<br />
aulas expositivas, dialogadas, trabalhos em grupo, realizados a partir de atividades mobilizadoras de<br />
pesquisa, reflexões, debates e resolução de problemas que articulavam fundamentos teóricos e necessidades<br />
educativas práticas, assim como também por atividades individuais, envolvendo pesquisa, análise e<br />
produção de textos; enquanto, isso, até pela natureza da disciplina, quando ensinávamos “Comunicação,<br />
Educação e Tecnologias”, orientados pelos norteamentos teórico-práticos apresentados por Read (2001) e<br />
Vigotski (1999), mediávamos os processos de ensino-aprendizagem pelo viés da Educação pela Arte e pela<br />
Educação Estética e, por ser assim, havia uma constante articulação entre fundamentos teóricos e várias<br />
linguagens artísticas; as aulas eram elaboradas a partir da apresentação de fundamentos teóricos, que eram<br />
exemplificados pelas analogias realizadas por meio de textos de diversas linguagens artísticas (pintura,<br />
literatura, escultura, teatro, música, fotografia, cinema) e midiáticas e da relação intertextual existente entre<br />
elas, de modo que um texto se relacionava e interferia no universo de sentidos do outro texto e, isso, parecia<br />
estimular nos alunos um sentimento de pertença às aulas, talvez provocado pela experiência estética e pela<br />
mudança da percepção e da visão de mundo que ela propicia.<br />
Sendo assim, a partir dessa hipótese, elaboramos um plano de trabalho que modificava nossa<br />
prática pedagógica nas aulas de Didática, a fim de comprovar ou refutar tal hipótese. Nesse plano de<br />
trabalho, foi de fundamental importância a afirmação de Charlot (2000:68): Toda relação com o saber é uma<br />
relação consigo próprio: através do “aprender”, qualquer que seja a figura sob a qual se apresente, sempre está em jogo a<br />
construção de si mesmo e seu eco reflexivo, a imagem de si. (2000:72)<br />
Então, pelo norteamento delineado por essas idéias e pelos efeitos que a arte tinha no processo de<br />
ensino-aprendizagem de nossos alunos na disciplina de ―Comunicação, Educação e Tecnologias‖,<br />
decidimos por uma investigar a exequibilidade da implementação da arte como figura do aprender mediadora<br />
da construção das relações com o saber e com o aprender as ciências da educação.<br />
Propôs-se, assim, a utilização da Pintura para se estudar, pensar e concretizar os estudos sobre a<br />
formação de professores, pois, desde o início dos tempos, a pintura é utilizada para retratar o humano e<br />
suas ações, além disso, são importantes elementos de registro histórico e funcionaram como direção de<br />
conduta para as gerações vindouras. Manguel em O espectador comum: a imagem como narrativa explica que:<br />
Antes das figuras de antílopes e mamutes, de homens a correr e de mulheres férteis,<br />
riscamos traços ou estampamos a palma das mãos nas paredes de nossas cavernas para<br />
assinalar nossa presença, para preencher um espaço vazio, para comunicar uma memória<br />
ou um aviso, para sermos humanos pela primeira vez (2001:30).<br />
Essa prática envolveu a sistematização de um percurso 13 que tinha como objetivo acrescentar às<br />
leituras teóricas específicas sobre a formação de educadores, às reflexões delas advindas, o encontro com as<br />
13 O resultado desse trabalho foi publicado pela <strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> por meio do artigo: Formação de Professores – As<br />
Cores da Metáfora. <strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong>. Ano 02 No. 03 – 2006.
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artes que revelam a história social por meio de suas retóricas singulares 14. É importante ressaltar que ao<br />
estabelecermos analogias entre as ciências da educação e a arte e realizarmos a leitura das obras de arte,<br />
enviesadas pela educação buscávamos a formação do homem integral, pois, para Bakthin O homem, na arte, é<br />
um homem considerado em sua integridade (2000:115) e, portanto, não pretendíamos limitar o exercício da<br />
descoberta ou do pensamento expondo conclusões particulares, bem como não nos propusemos explicar as<br />
imagens, já que, como afirma Manguel em sua obra Lendo imagens:<br />
Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca<br />
efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens ―Não explicamos imagens‖<br />
comentou com sagacidade o historiador da arte Michael Baxandall ―explicamos<br />
comentários a respeito de imagens.‖ Se o mundo revelado em uma obra de arte<br />
permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica. ―A forma‖,escreve Balzac,<br />
―em suas representações, é aquilo que ela é em nós: apenas um artifício para comunicar<br />
idéias, sensações, uma vasta poesia. Toda imagem é um mundo, um retrato cujo modelo<br />
apareceu em uma visão sublime, banhada de luz, facultada por uma voz interior, posta a<br />
nu por um dedo celestial que aponta, no passado de uma vida inteira, para as próprias<br />
fontes da expressão (2001:29-30).<br />
A apresentação das imagens tinha o propósito de ―fecundar‖ o processo de ensino-aprendizagem,<br />
pois, para Gardner em sua obra Arte, Mente e Cérebro, na leitura, as imagens que emergem dos textos<br />
literários e que são reveladas pelas obras de arte podem se tornar ―representações de imagens fecundas‖<br />
(1999:98) que fazem gerar o pensamento complexo, criativo, próprio daqueles que são ―homens integrais‖ 15,<br />
oriundos da Paideia platônica.<br />
Constata-se que nas aulas em que a as imagens estão presentes, o educador compartilha suas imagens<br />
fecundas e estimula a produção das imagens fecundas no aprendiz, o que, por conseguinte, gera uma leitura<br />
que estimula a percepção, permite a fruição, a criação, o conhecimento; enfim, uma leitura que transcende a<br />
condição de objeto de informação e transvasa em direção ao que, poderíamos, metaforicamente denominar<br />
―gravidez de idéias‖ pedagógicas, a qual é, essencialmente, mediadora da construção da identidade, da<br />
formação e da prática docente.<br />
No desenvolvimento de nossas investigações, constatamos que a arte, em suas várias manifestações,<br />
propõe, sobretudo, espelhos nos quais os sujeitos se vislumbram, negam-se, criam e recriam-se e dispersamse<br />
para dar voz a novas possibilidades, enfim, encontram-se, reconhecem-se e se superam.<br />
Observamos que, com a utilização da arte tanto nos percursos de formação docente quanto no<br />
exercício da prática pedagógica, o docente abre perspectivas consideráveis para o desenvolvimento e êxito<br />
das atividades de leitura e dos processos de ensino-aprendizagem. Isso porque segundo Charlot:<br />
A relação com o saber é relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os<br />
outros. É relação com o mundo como conjunto de significados, mas também como<br />
espaços de atividades, e se inscreve no tempo. Precisemos esses três pontos.<br />
O mundo é dado ao homem somente através do que ele percebe, imagina, pensa desse<br />
mundo, através do que ele deseja, do que ele sente: o mundo se oferece a ele como<br />
conjunto de significados, partilhados com outros homens. O homem só tem um mundo<br />
porque tem acesso ao universos dos significados, ao ―simbólico‖; e , nesse universo<br />
simbólico é que se estabelecem as relações entre o sujeito e os outros, entre o sujeito e ele<br />
14Aristóteles em sua obra ―Arte Retórica‖ define retórica como a arte de se fazer acreditar. Nesse sentido, a obra<br />
pictórica é concebida por meio de um intenso processo de elaboração realizado a partir de cores, tons, sombras,<br />
formas, que constituem imagens, as quais sugerem múltiplos sentidos e significados que nos encantam, manipulam,<br />
convencem da verdade especial, única que projeta.<br />
15 Platão define Paideia da seguinte forma "(...) a essência de toda a verdadeira educação ou Paideia é a que dá ao homem o desejo e<br />
a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento" (cit. in Jaeger, 1995:<br />
147).
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mesmo. Assim, a relação com o saber, forma de relação com o mundo, é uma relação<br />
com sistemas simbólicos, notadamente, com a linguagem. (2008:78)<br />
Notavelmente, a abordagem trouxe a análise de obras de arte para o espaço das aulas de formação de<br />
professores e auxiliou no desenvolvimento da habilidade de estabelecer relações, separações, análises e<br />
sínteses, de compreender o eco das entrelinhas de um texto, a organicidade da linguagem, a pluralidade de<br />
significados, a importância e o espaço que existe para a diversidade, enfim, ―utilizou princípios organizadores que<br />
permitiram ligar os saberes e dar-lhes sentidos‖ (MORIN,2003:22), já que o trabalho que desenvolvemos com os<br />
alunos se iniciou com a ruptura de uma postura passiva e instigou, estimulou e despertou a curiosidade que<br />
muito frequentemente é aniquilada pela instrução. O objetivo desse espaço de atividades 16 foi encorajar, instigar a aptidão<br />
interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época (MORIN,2003:22).<br />
Esperava-se, com tal procedimento, que o professor que concebe sua formação nesses moldes<br />
tivesse mais possibilidades de ensinar para a superação da fragmentação e da superficialidade, a fim de que<br />
os seus alunos pudessem ler o mundo e a si mesmos, entendendo a relação simbiótica entre as partes e o<br />
todo e, não como se tudo fosse constituído por partes esparsas, que não se relacionam, não se<br />
complementam e não interagem. Esperava-se também que ao se depararem com olhares e respostas<br />
inesperadas, inusitadas (frutos das leituras de seus alunos) aceitassem-nas, surpreendessem-se positivamente<br />
com elas e investigassem sua natureza incomum, especial, inusitada, criativa e, não raro, poética.<br />
Esperava-se, ainda, que para esses alunos, a leitura lhes propiciasse o prazer da descoberta do jogo<br />
poético, da vitória dos sentidos e, por isso, quisessem repeti-la e se habituar a ela e aos seus sabores,<br />
lembrando que segundo o pensamento de Benjamin a lei da repetição, a lei que rege o mundo dos brinquedos,<br />
é focalizada como a alma do jogo, o que dá prazer à criança; ―o mais uma vez‖ lhe dá a experiência e o<br />
retorno, e com isso, a sensação que impulsiona a vida: a busca por ter a felicidade nas mãos e a repetição,<br />
que funciona como o senhorio da experiência, permite o hábito do saboreamento das vitórias; aliás, para<br />
Benjamim Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis os hábitos.<br />
A intenção pedagógica e estética de nosso trabalho caminhou em direção contrária a daqueles que,<br />
movidos por uma visão limitada, cerceiam o leitor, sua curiosidade, sua capacidade investigativa, criativa e,<br />
portanto, sua formação integral, como bem ilustra o poema ―Vento‖ do autor Manoel de Barros:<br />
Vento<br />
Se a gente jogar uma pedra no vento<br />
Ele nem olha para trás.<br />
Se a gente atacar o vento com enxada<br />
Ele nem sai sangue da bunda.<br />
Ele não dói nada.<br />
Vento não tem tripa.<br />
Se a gente enfiar uma faca no vento<br />
Ele nem faz ui.<br />
A gente estudou no Colégio que vento<br />
é o ar em movimento.<br />
E que o ar em movimento é vento.<br />
Eu quis uma vez implantar um costela<br />
no vento.<br />
A costela não parava nem.<br />
Hoje eu tasquei uma pedra no organismo<br />
16 Termo apresentado por Bernard Charlot em sua obra Da relação com o saber, o qual se refere à ação de se<br />
mobilizar a aprender e a fazer, por que o que foi ensinado fez sentido, ou seja, promoveu, por meio do<br />
encontro entre razão e emoção, o desejo de saber algo que pareceu significante porque promoveu um diálogo<br />
interior e o interesse pelo saber exterior.
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do vento.<br />
Depois me ensinaram que vento não tem<br />
organismo.<br />
Fiquei estudado. (Manoel de Barros, em “Poemas Rupestres”)<br />
Buscando caminhos possíveis para uma educação de qualidade, pretendíamos contribuir com os<br />
resultados que obtivemos e com as conclusões que elaboramos ao longo do processo e não conceber um<br />
modelo de prática docente ou de educador.<br />
Com base nisso, esse trabalho apresentou um diálogo entre arte e realidade do ensino, entre o<br />
homem e a arte que ele cria e que também o recria, o sintetiza e, às vezes, o supera, ou ensina a superar,<br />
bem como entre a Prática Pedagógica, a Filosofia e a Didática, para que, assim se pudesse fazer a Paidéia _ e<br />
a Maiêutica de educadores e de leitores e a leitura que para Barthes aparece fundamentalmente como (re)<br />
escritura (Orlandi, 1993:41) figurasse como alicerce para a aprendizagem dos vários saberes que se põem em<br />
conjunção para a formação do ser social.<br />
Em consonância com nossas intenções, tal qual foi referido anteriormente, há três anos, recebemos<br />
na condição de pós-graduandos, alguns dos sujeitos da pesquisa anterior e, alguns deles relataram que fazem<br />
a transposição do exercício referido para suas práticas docentes com crianças e obtém muito sucesso, pois,<br />
verificam o desenvolvimento de suas habilidades leitoras e de compreensão do universo em que estão<br />
inseridos, assim como também se tornam aptos a perceber e a estabelecer relações intertextuais; vários<br />
foram os relatos de superação de situações de fracasso escolar, utilizando a arte como mediadora.<br />
Mas, do ponto de vista estético, como e por que isso ocorre? O questionamento instaurado nos<br />
chamou a atenção para a necessidade de contribuirmos, em uma dimensão mais ampla, a priori, nos<br />
processos de formação continuada de professores de nossa comunidade, a fim de oferecermos-lhes mais<br />
uma possibilidade de apropriação dos saberes e práticas sobre leitura.<br />
Para tanto, iniciamos um trabalho de revisitação das conclusões da pesquisa, a fim de compreendêla<br />
por outros prismas e tornar seus resultados mais abrangentes, eficientes e utilizáveis como embasamento<br />
e norteamento para pesquisas de outros estudiosos.<br />
As Conclusões da Pesquisa e a Revisitação dos Resultados: novos olhares para a produção da<br />
leitura e do discurso<br />
Na revisitação às conclusões da pesquisa realizada, ao longo desses quatro anos que sucederam a<br />
produção da tese, seja por meio do exercício enquanto docente e estudiosa das questões referentes à leitura,<br />
ou por meio do contato direto com os alunos que foram sujeitos de pesquisa na graduação e voltaram para<br />
fazer cursos de pós-graduação lato-sensu, alguns questionamentos se propuseram e, com eles, a constatação<br />
da necessidade de aprofundamentos de estudos, sobretudo no que se refere aos processos de relações entre<br />
diferentes textos e entre tais textos e leitores.<br />
A investigação tomou como ponto de partida a análise do discurso, e, como norteamento teórico,<br />
nos embasamos nos estudos de Orlandi apresentados nas obras: A linguagem e seu funcionamento: as formas do<br />
discurso (1983), Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico (1993) e Discurso Fundador (1993), pois<br />
Do ponto de vista da significação, não há uma relação direta do homem com o mundo,<br />
ou melhor, a relação do homem com o pensamento, com a linguagem e com o mundo<br />
não é direta assim como a relação entre linguagem e pensamento, e linguagem e mundo<br />
tem também suas mediações. Daí a necessidade da noção de discurso para pensar essas<br />
relações mediadas. Mas ainda, é pelo discurso que melhor se compreende a relação<br />
linguagem/pensamento/mundo, porque o discurso é uma das instâncias materiais<br />
(concretas) dessa relação (1993:12).
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Sob esse embasamento teórico (e também de outros aos quais faremos alusão adiante), analisamos a<br />
prática pedagógica anteriormente descrita e, nas conclusões delineadas, observou-se que em nossas aulas,<br />
além do desenvolvimento da dimensão teórica, científica dos conteúdos, promovemos uma articulação<br />
entre os alunos (suas histórias e memórias) e os conteúdos, que foi realizada por meio da inserção de um<br />
universo simbólico, proposto pela arte, e essa relação se configurou em um espaço de abertura e encontro<br />
entre textos e leitores, no qual se davam a leitura, a interpretação, a constituição de sentidos e,<br />
consequentemente, a aprendizagem. Acerca dessa noção de ―abertura e encontro‖ entre linguagens, leitores<br />
e textos é importante estabelecer outro dialogo com Orlandi, pois, a estudiosa explica que<br />
A esta abertura da linguagem, isto é, não há linguagem em si, soma-se o que temos<br />
concebido como a abertura ao simbólico. Antes de tudo porque a questão do sentido é<br />
uma questão aberta, pois como afirma P. Henry (1993), é uma questão filosófica que não<br />
se pode decidir categoricamente. Por outro lado, não há um sistema de signos só, mas<br />
muitos. Porque há muitos modos de significar e a matéria significante é plural. Como os<br />
sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem como os<br />
sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação diversos:<br />
pintura, imagem, música, escultura, escrita, etc. A matéria significante _ e/ou a sua<br />
percepção_ afeta o gesto de intepretação, dá forma a ele (1993:12).<br />
Ao propiciarmos o encontro, a interferência, a intersecção entre textos teóricos e textos artísticos,<br />
possibilitávamos aos alunos a compreensão e a vivência da definição de leitura de Orlandi: Ler, como temos<br />
dito, é saber que o sentido pode ser outro. Mesmo porque entender o funcionamento do texto enquanto objeto simbólico é<br />
entender o funcionamento da ideologia, vendo em todo texto a presença de um outro texto necessariamente excluído dele mas que<br />
o constitui (1993:138). Assim como também propiciamos a experiência da interpretação enquanto injunção;<br />
para Orlandi, em sua obra Discurso fundador, isso significa que face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encontra<br />
na necessidade de “dar” sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito que fala, é constituir sítios de significado (delimitar<br />
domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação(1993:64), enfim, a interpretação é constitutiva, ou seja, não há sentido<br />
sem interpretação (1993:125).<br />
Analisando-se nosso trabalho sob essa perspectiva, entendemos que nas disciplinas ―Didática‖ e<br />
―Comunicação, Educação e Tecnologias‖, os processos de leitura e interpretação eram mediados de formas<br />
consideravelmente distintas.<br />
No desenvolvimento do trabalho da primeira disciplina, os processos de ensino-aprendizagem se<br />
baseavam mais na decodificação da linguagem e na tradução dos sentidos do texto (aqueles percebidos pelo<br />
docente responsável) para os alunos, o que acaba por estimular o desenvolvimento do que Orlandi, no<br />
capítulo Leitura e Discurso Científico denomina repetição empírica e repetição formal e que abaixo definiremos:<br />
(...) há: a) a repetição empírica (mnemônica), b) a repetição formal e c) a repetição<br />
histórica (Orlandi, 1994). Na repetição empírica só há a retomada mecânica do dizer. É<br />
o efeito ―papagaio‖. Na escola isso se dá quando o aluno repete sem entender, sem<br />
formular o que é dito pelo mestre. A repetição formal, por sua vez, já põe em jogo a<br />
formulação da forma lingüística. Mas para aí. Há até ―bons‖ alunos que na prática da<br />
repetição formal ganham o reconhecimento do mestre. A repetição histórica é a que<br />
produz realmente conhecimento. É aquela em que o aluno mergulha o dizer em sua<br />
memória, o significa, elaborando sentidos que não só respondem a uma situação imediata<br />
mas lhe permite formulações outras, em outras situações de linguagem e conhecimento.<br />
Nesse caso, não só há transformação do estado de saber do aluno como ele pode mesmo<br />
deslocar o saber na memória da ciência, produzir deslocamento no arquivo. Aí ele estará<br />
produzindo ciência e não apenas ―decorando‖, ―devolvendo‖ o que lhe foi dito.<br />
Retomando-se a afirmação já referida, a fim de compreendê-la por esse mesmo prisma, podemos<br />
concluir também que a mediação dos processos de ensino-aprendizagem da disciplina ―Comunicação,<br />
Educação e Tecnologias‖ produzia resultados mais relevantes, porque nos apoiávamos nas relações e
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intersecções estabelecidas entre o texto científico, as linguagens artísticas e os efeitos metafóricos por essa<br />
interação produzidos e os efeitos metafóricos são a base da constituição do significar, já que este movimento de transferência<br />
permite que o sujeito, no deslizamento próprio dos sentidos, inscreva-se nos processos discursivos, filiando-se a redes de memória<br />
ao mesmo tempo em que se desloca (Orlandi, 2003:139) e também porque neles prevalecia a repetição histórica, a qual<br />
era mediada justamente pela injunção de linguagens.<br />
Por meio desse trabalho de pesquisa, constatamos, ainda, que quando propomos aos aprendizes a<br />
vivência de processos de ensino-aprendizagem mediados por relações intertextuais entre arte, cultura do<br />
sujeito e teorias educacionais apresentamos-lhes uma zona de desenvolvimento proximal que os mobiliza<br />
por propiciar o encontro entre o estranho e o familiar (e, por isso, um estranho interessante e significativo).<br />
Nesse momento de interação, ocorre a ação decisiva da mediação e o sujeito caminha para resolver<br />
o problema utilizando a memória, a sensibilidade, sua história, bem como os reflexos que o artista propõe<br />
de si mesmo e de sua forma especial de ver, imaginar e conceber o mundo e, então, assume a qualidade de<br />
leitor e também de co-autor; referimos ao leitor desse modo porque o leitor empresta os saberes acima<br />
assinalados à interpretação dos textos e isso lhe alça a um status de ―co-autor‖. Com a finalidade de melhor<br />
elucidar esse processo de ―co-autoria‖, retomemos a afirmação de Bakthin, em sua obra Estética da Criação<br />
Verbal: Vivenciar o autor, na própria medida em que esse este expressou através de uma obra, não é participar de sua vida<br />
interior (suas alegrias, seus desejos, suas aspirações) no sentido que vivenciamos o herói, mas é participar do escopo que orienta<br />
sua atividade com relação ao objeto expresso, ou seja, é co-criar (2000:83).<br />
Parece ser nesses espaços de encontro entre leitor e texto, de co-autoria, de co-criação<br />
possibilitados pela mediação e pela utilização da arte como mediadora que os diferentes textos se<br />
encontram, fazem e produzem efeitos, e também, parece ser na fronteira entre o texto, o desejo 17 de<br />
compreendê-lo, o ―afetamento‖, a experiência estética 18 (que a linguagem artística propicia), o empréstimo<br />
de experiências sensíveis pessoais e a compreensão racional que a leitura faz sentido, torna-se significativa e<br />
possibilita a produção e a percepção dos efeitos estéticos e de sentido de texto. Acerca da significância da<br />
leitura e à construção de sentidos, é pertinente retomarmos a afirmação de Charlot, pois,<br />
Um enunciado é significante se tiver um sentido (plano sintático, o da diferença), se<br />
disser algo sobre o mundo (plano semântico, o da referência) e se puder ser entendido em<br />
uma troca de interlocutores (plano pragmático, o da comunicabilidade). ―Significar é<br />
sempre significar algo a respeito do mundo, para alguém ou com alguém‖. Tem<br />
―significação‖ o que tem sentido, que diz algo do mundo e se pode trocar com os outros.<br />
Que será o sentido, estritamente dito? É sempre o sentido de um enunciado, produzido<br />
pelas relações entre os signos que o constituem, signos esses que tem um valor diferencial<br />
em um sistema.<br />
Ao traduzir (muito livremente) essa análise, para utilizá-la fora de seu campo, o da<br />
linguagem e da interlocução, proporei uma tripla definição: tem sentido uma palavra, um<br />
enunciado, um acontecimento que possam ser postos em relação com outros em um<br />
sistema, ou em um conjunto; faz sentido para um indivíduo algo que lhe acontece e que<br />
tem relações com outras coisas de sua vida, coisas que ele já pensou, questões que ele já<br />
propôs. É significante (ou aceitando-se essa ampliação, tem sentido) o que produz<br />
inteligibilidade sobre algo no mundo. É significante (ou, por ampliação novamente, tem<br />
sentido) o que é produzido por estabelecimento de relação, dentro de um sistema, ou nas<br />
relações com o mundo e com os outros. (2000:56)<br />
17Charlot explica que ninguém poderá educar se o aprendiz não consentir e colaborar, pois, uma educação é<br />
impossível se o sujeito não investe pessoalmente em seu processo de educação. Para o autor, toda a educação é<br />
impossível se a criança (ou adulto) não encontra no mundo o que lhe permite construir-se e ―toda educação supõe o<br />
desejo, como força propulsionadora que alimenta o processo.<br />
18 A experiência estética ocorre quando há o contato entre o sujeito e a obra de arte; esse contato, porém, é catártico,<br />
e, por isso, diante dele a visão de mundo do sujeito muda.
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Então, por estar diante de uma atividade significativa e que faz sentido, o leitor deseja se apropriar<br />
do saber, dos sentidos do texto e, no processo de mobilização 19, no ―oferecimento e encontro de si‖, mediado<br />
pela arte, o leitor compara, separa, faz análise e síntese entre o que a imagem sugere, entre o que o texto<br />
afirma e entre suas memórias, conhecimentos e concepções prévias; e, dessa forma, o leitor/aluno associa o<br />
real, o científico e o simbólico e, por meio do fazer e da fala, se reconhece como um ser singular e, ao<br />
mesmo tempo, social e, por intermédio disso, transforma-se em um ser que sabe, que aprendeu para ser. 20;<br />
nesse entremeio, a arte cumpre seu papel de ―linguagem que o artista cria para definir-se em relação aos<br />
outros‖ (Lewwis Strauss apud Gardner, 1999:43) pois, por meio desse fazer do artista, o leitor aprende, se<br />
identifica e se define, por meio da fala, para si mesmo e em relação aos outros.<br />
Em sua obra Pensamento e Linguagem (2000), Vigotski afirma que a relação entre literatura e imagem é<br />
entendida como um problema que exige a interação com o objeto, assim como também exige a fala; ou seja,<br />
a partir da observação, da interação com o objeto de arte, o leitor tem sua percepção estimulada e, dessa<br />
forma, sensações, pensamentos, sentimentos, memórias são desencadeadas e se constroem como imagens<br />
mentais e, às vezes, táteis que precisam ser verbalizadas e divididas socialmente e que, ao mesmo tempo,<br />
singularizam cada leitor.<br />
Para exemplificar essa afirmação, é pertinente retomarmos uma aula do curso de Metodologia do<br />
Ensino de Artes, na qual propusemos o desenvolvimento da percepção musical, a partir da audição da obra<br />
e da leitura de fragmentos do libreto ―As quatro estações de Vivaldi‖; ouvimos trechos da Primavera, do<br />
Verão, mas quando da audição do início do Inverno, alguns alunos disseram: ―nossa, a sala ficou fria‖ e,<br />
outros, espantados disseram ―é mesmo‖, e, de fato, tivemos a relação tátil e sensível de incômodo, causada<br />
por um vento gelado, que nos pareceu ter entrado pela janela da sala, a qual estava aberta sem causar<br />
desconforto (sensação de frio) a ninguém, desde o início da sala.<br />
Posteriormente, talvez em uma tentativa de dar ―senso‖ ao sensível, de organizar por meio de<br />
explicações lógicas, essa experiência quase subjetiva, é que as afirmações ―nossa, a sala ficou fria‖... ―é<br />
mesmo‖! foram seguidas pela análise, por reflexões e por sínteses que visavam a explicar os ―motivos<br />
estéticos‖ e físicos que, propiciaram essa percepção e sensação.<br />
À luz desse diálogo com Vigotski, pode-se afirmar que a análise literária, e, diríamos, artística, será<br />
sempre um fazer acompanhado pela fala (ou mesmo pela escrita); pois, é preciso que aquilo que foi construído<br />
internamente, a experiência estética, os pensamentos advindos disso, sejam organizados e verbalizados e,<br />
isso, exige do leitor o desenvolvimento da retórica e, consequentemente, um emaranhamento ainda mais<br />
profundo no universo da obra, articulando emoção e razão para transformá-los em linguagem verbal, em<br />
discurso lógico e coerente, em repetição histórica.<br />
Nesse exercício de leitura, o inusitado, ―o frio‖ do inverno de Vivaldi, aquilo que, a priori, funciona<br />
como a ―pedra no caminho de Drummond‖, parece emergir, ―desenvolver-se‖ da obra, com leveza singular.<br />
Esse vento ―leve 21‖ percebido, sentido pelo leitor e, depois, ―desenvolvido‖ por palavras, é criado, antes,<br />
19 Para Charlot, ―mobilizar é por recursos em movimento (...) é reunir suas forças, para fazer uso de próprio recurso (...) é também<br />
engajar-se em uma atividade originada por móbiles (móbil entendido como ―razão de agir‖), por que existem ―boas razões‖ para<br />
fazê-lo.<br />
20Para Charlot, o homem, por sua natureza prematura e inacabada precisa aprender para ser homem; e, isso ele o faz na relação<br />
com outros homens, sua existência, seus diálogos e suas criações.<br />
21 Utilizando-se o conceito de ―Leveza‖ enunciado por Calvino em sua obra “Seis propostas para o novo milênio”, no capítulo<br />
Leveza ―A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório. Paul Valéry foi<br />
quem disse [É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma]. Servi-me de Cavalcanti para exemplicar a leveza<br />
em pelo menos três acepções distintas: 1 – Um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são<br />
canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa mesma rarefeita consistência. (...) 2 – A<br />
narração de um raciocínio ou de um processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou<br />
qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração. (...) 3 – Uma imagem figurativa da leva que assuma um valor<br />
emblemático, como, na histórica de Boccaccio, Cavalcanti volteando com suas pernas esquias por sobre a pedra tumular.<br />
Há invenções literárias que se impõem à memória mais pela sugestão verbal que pelas palavras‖ (2000:28-30).
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lingüística e sonoramente, como explica Calvino ao referir-se a Dante em ―A Divina Comédia‖ e à<br />
Cavalcanti:<br />
(...) quando Dante quer exprimir leveza, até mesmo na Divina Comédia, ninguém sabe fazê-lo melhor que<br />
ele, mas sua genialidade se manifesta no sentido oposto, em extrair da língua todas as posibilidades<br />
sonoras e emocionais, tudo o que ela pode evocar de sensações; em capturar no verso o mundo em toda<br />
a variedade de seus níveis, formas e atributos; em transmitir a ideia de um mundo organizado num<br />
sistema, numa ordem, numa hierarquia em que tudo encontra o seu lugar. Forçando um pouco a<br />
oposição Poderíamos dizer que Dante empresta solidez corpórea até mesmo à mais abstrata especulação<br />
intelectual(...) (1990:28)<br />
A formação do leitor e a leitura tem, entre seus caminhos e encruzilhadas, a direção busca da leveza;<br />
ressaltando-se que busca da leveza não é a sinônimo de referencialização da linguagem; mas sim o seu<br />
contrário: a do saber maior, da amplitude da visão, da amplificação do sons, enfim, do ver e do ouvir<br />
maiores.<br />
A leitura e a produção de imagens visivas<br />
Com o propósito de discorrermos acerca de nossas conclusões acerca da leitura e da produção de<br />
imagens visivas que figurarão entre os alicerces para a concepção da identidade docente, faz-se necessário<br />
reportarmos, mais uma vez, às práticas de leitura que mediávamos, as quais procuravam aproximar os<br />
fundamentos teóricos sobre a formação docente à realidade dos alunos e isso era feito por meio de<br />
intersecções entre textos teóricos, textos literários e visuais.<br />
Nesse processo de ensino-aprendizagem, a arte propunha-se como mediadora da leitura e da<br />
formação dos graduandos, pois, por meio de tal estratégia, estimulávamos o que Calvino denomina<br />
―imaginação visiva‖, e, então, esses futuros professores mobilizados pelos sentidos simbólicos propostos<br />
pelas obras de arte, antes de sê-lo, imaginavam-se professores, sonhavam-se professores. Como afirma<br />
Calvino, referindo-se à Shakespearre, ―somos feitos da mesma matéria de sonhos‖; dessa maneira, se nossos<br />
―sonhos‖ são feitos da mesma substância, é na busca da leveza que ocorrem os encontros, a mobilização,<br />
que o ser deseja aprender, porque ―Há boas razões para fazê-lo.<br />
Retomando a discussão acerca da formação do professor, é importante pontuar que a identidade<br />
profissional, tal qual a prática docente, inicialmente, delineava-se e se alinhavava no campo da imaginação.<br />
E, esse é um lugar, segundo Dante, referido por Calvino (2000), no capítulo Visibilidade ―dentro do qual<br />
Chove‖. Calvino explica que o verso ―a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove‖ e<br />
que esse é um verso do ―Purgatório‖ de Dante; ―Estamos no círculo dos coléricos‖ e Dante contempla<br />
imagens que se formam diretamente em seu espírito (...)‖.<br />
Acerca dessa fala de Dante, Calvino explica que ―Dante está falando das visões que se apresentam a ele (ao<br />
personagem Dante) quase como projeções cinematográficas ou recepções televisivas num visor separado<br />
daquela que para ele é a realidade objetiva de sua viagem ultraterrena‖.<br />
Tal imagem literária em muito se assemelha às ações mentais, imagéticas que são desenvolvidas aos<br />
processos de mediação da construção da identidade e da prática docente de um aluno de graduação, pois<br />
(...) toda a viagem da personagem Dante é como essas visões; o poeta deve imaginar<br />
visualmente tanto o que seu personagem vê, quanto aquilo que acredita ver, ou que está<br />
sonhando, ou que recorda, ou que vê representado, ou que lhe é contado, assim como<br />
deve imaginar o conteúdo visual das metáforas de que se serve precisamente para facilitar<br />
essa evolução visiva. (2000:98)
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Segundo Calvino, podemos distinguir dois processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à<br />
imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal (2000:99). Nos cursos de formação de<br />
professores, utilizam-se os processos referidos pelo autor e, portanto, entendemos ser pertinente citar que<br />
(...) o primeiro processo é o que ocorre normalmente na leitura: lemos, por exemplo, uma<br />
cena de romance ou a reportagem de um acontecimento num jornal, e conformem a<br />
maior ou menor eficácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se<br />
desenrolasse diante de nossos olhos, se não toda cena, pelo menos fragmentos e detalhes<br />
que emergem do indistinto.<br />
No cinema, a imagem que vemos na tela passou por um texto escrito, foi primeiro ―vista‖<br />
mentalmente pelo diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidadade num set (...)<br />
Esse ―cinema mental‖ funciona continuamente em nós _ e sempre funcionou, mesmo<br />
antes da invenção do cinema_ e não cessa nunca de projetar imagens em nossa tela<br />
interior.<br />
O autor alude, ainda, que num filme, o resultado de uma sucessão de etapas, imateriais e materiais<br />
nas quais as imagens tomam forma; nesse processo, o ―cinema mental‖ desempenha um papel tão<br />
importante quanto o das fases de realização efetiva das sequências.<br />
O segundo processo pode ser exemplificado pelo que foi realizado no catolicismo da Contrareforma<br />
por Loyola, por meio das sugestões emotivas da arte sacra, com o qual o fiel devia ascender aos significados<br />
segundo o ensinamento oral da igreja,<br />
Tratava-se, no entanto, de partir sempre de uma dada imagem, proposta pela própria<br />
igreja (...) O que caracteriza o procedimento de Loyola (...) é a passagem da palavra à<br />
imaginação visiva, como via de acesso ao conhecimento dos significados profundos.<br />
Aqui também tanto o ponto de partida quando o de chegada, estão previamente<br />
determinados; entre os dois abre-se um campo de possibilidades infinitas de aplicações da<br />
fantasia individual, na figuração de fantasia individual (...) O próprio fiel é conclamado a<br />
pintar por si mesmo nas paredes de sua imaginação aos afrescos sobrecarregados de<br />
figuras, partindo das socilitações que a sua imaginação visiva consegue extrair de um<br />
enunciado teológico ou de um lacônico versículo bíblico (2000:102).<br />
É interessante referir, por meio das avaliações institucionais realizadas no âmbito dos cursos de<br />
licenciatura, que as aulas consideradas mais interessantes para os alunos (segundo seus relatos em avaliações<br />
do curso) funcionam como propulsoras desse cinema mental que é gerado seja por meio de ilustrações<br />
promovidas por filmes, imagens, música, pinturas ou exemplos do cotidiano pedagógico dos professores ou<br />
de colegas que relacionam as teorias que estão vivenciando nas escolas em que trabalham como estagiários<br />
ou professores; ou seja, eles se interessam e dizem aprender melhor naquelas que se mostram estimuladoras<br />
da imaginação visiva; que lhes propicia o vislumbramento do futuro, no qual planejarão projetos, aulas,<br />
sequências didáticas, processos de ensino-aprendizagem e avaliações. Apesar disso, quase sempre, as aulas<br />
se erigem sob a árida apresentação de teorias científicas, escritas com uma linguagem pouco familiar, em<br />
especial aos ingressantes, o que dificulta a criação de imagens mentais.<br />
Para Calvino “Mesmo quando lemos o livro científico mais técnico ou o mais abstrato dos livros de filosofia,<br />
podemos encontrar uma frase que inesperadamente serve de estímulo à fantasia figurativa” (1999:105). No entanto, quase<br />
sempre, o aluno não sabe, em sua experiência enquanto leitor, de tal possibilidade.<br />
E, talvez, por isso, torna-se difícil compreender e conceber novos fundamentos teóricos. Além<br />
disso, ao tentar aprender e executar os processos de compreensão, separação, análise, síntese, o futuro<br />
professor, não raro, tem dificuldades em relacionar suas experiências anteriores com a escola (que é em sua<br />
essência distinta da proposta atual) aos norteamentos de identidade e prática docente apresentados pelo<br />
curso de formação superior e, por isso, torna-se um desafio vivenciar uma aprendizagem significativa que<br />
lhe permita a superação da realidade anterior, é como se ―chovesse na fantasia‖ dos futuros professores e,
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isso lhes propiciasse a sensação ou a consciência da travessia do purgatório, assim como a dificuldade de<br />
nele permanecer, o que muitas vezes, os faz recorrer às velhas concepções e práticas, inadequadas para os<br />
contextos nos quais, hoje, estão inseridos.<br />
Considerações finais<br />
A luz de nossos estudos teórico-práticos concluímos que é preciso lidar com a imaginação para que<br />
ela leve ao conhecimento da realidade; mas é preciso ver a verdade, ainda que, às vezes, indiretamente, por<br />
meio de múltiplas lentes; é possível, por meio da arte, vê-la como que por um espelho, com certo<br />
afastamento e domínio racional, porque como nos lembra o próprio Calvino, ―Para decepar a cabeça da Medusa<br />
sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só<br />
pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho” (1990:16).<br />
Esse exercício configura-se em um recurso relevante para o professor que tem a tarefa de ―traduzir‖<br />
o material novo e não-existente (texto teórico) para a linguagem própria da experiência do aprendiz e futuro<br />
educador. A imagem artística, nesse caso, funciona como espelho e ―imagem fértil‖ para criação das imagens<br />
visivas de cada aluno e para a formação de sua identidade e de sua prática docente.<br />
Bibliografia<br />
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Fontes,2000.<br />
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RIOS,T.A. Compreender e ensinar- por uma docência da melhor qualidade. São Paulo: Cortez, 2001.<br />
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_____________.Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />
_____________. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes,1999.<br />
_____________ Psicologia Pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed, 2003.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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PARA ALÉM DO CORPO FABRICADO:<br />
POSSIBILIDADES DO DEVIR EM EDUCAÇÃO<br />
Melissa Probst<br />
Mestre em Educação (FURB)<br />
Graduanda em História – licenciatura (UNIASSELVI)<br />
Integrante do Grupo de Pesquisa ―Saberes de Si‖<br />
(PPGE – Mestrado em Educação / FURB)<br />
Professora do Núcleo de Educação à Distância<br />
Departamento de Pedagogia – UNIASSELVI.<br />
Resumo<br />
A palavra ―corpo‖ é tão utilizada no cotidiano que, aparentemente, não há necessidade de se refletir<br />
sobre o seu significado. Esse trabalho, que tem base na dissertação de mestrado ―Corpo, Devir e<br />
Educação‖ e das discussões realizadas junto ao Grupo de Pesquisa ―Saberes de Si‖ caracteriza-se<br />
como teórico e pretende, discutir algumas concepções de corpo forjadas ao longo da história,<br />
buscando compreendê-lo na prática pedagógica. Partindo do pressuposto de que o discurso escolar<br />
representa uma forma sutil de controlar e disciplinar o corpo, tem-se, como objetivos discutir os<br />
conceitos de corpo, rizoma e devir pensando possibilidades outras para a educação escolar.<br />
Palavras-chave: Corpo. Escola. Devir.<br />
Abstract<br />
The word "body" is so used in everyday life that, apparently, there is no need to reflect its meaning.<br />
This work, which is based on the dissertation "Corpo, Devir e Educação" and discussions with the<br />
research group ―Saberes de Si‖ is characterised as theorist and want to discuss some conceptions<br />
of forged body throughout history, seeking to understand him in pedagogical practice. On the<br />
assumption that the school speech represents a subtle form of control and disciplinary body, has as<br />
objective to discuss the concepts of body, rhizome, becoming and other possibilities for the<br />
thinking school education.<br />
Keywords: Body. School. Becoming<br />
Introdução<br />
O corpo tem sido, nos últimos tempos, objeto de estudo de diversas áreas do pensamento:<br />
educação, psicologia, antropologia, sociologia, etc. Essa temática tem despertado cada vez mais o<br />
interesse dos pesquisadores na intenção de conhecer o corpo para além do modo como foi<br />
concebido, ou o modo que nos permitimos conhecê-lo até o momento. Nesse sentido, esse texto,<br />
que é parte da dissertação de Mestrado intitulada ―Corpo, Devir e Educação‖ e das discussões<br />
realizadas junto ao grupo de pesquisa ―Saberes de Si‖ (PPEG/ Mestrado em Educação – FURB),<br />
visa resgatar os conhecimentos científicos, civilizadores e industriais do corpo, buscando<br />
compreendê-lo no âmbito da educação. A partir dessa compreensão inicial, objetiva-se refletir<br />
sobre o corpo na escola, a partir de outros pontos de vista que não o mecânico e utilitarista.<br />
Parte-se do pressuposto de que o corpo que se possui desde o nascimento, que cresce e se<br />
transforma ao longo dos anos, quase sempre passa a ser tratado como acessório biológico. O corpo<br />
que hoje se percebe, e sobre o qual a escola fundamenta seu trabalho, foi fabricado de modo<br />
adequado a certos regimes de produção e submissão. Nele muitas vezes não há espaço para o<br />
movimento, a criatividade, a vida. Ao contrário dessa concepção, defende-se aqui que o corpo, mais<br />
do que uma máquina produtiva ou biológica, é um espaço de relações, de experimentação. Assim,<br />
falar do corpo é um aventurar-se por um universo ambíguo, pois o ―existir no mundo‖ é<br />
essencialmente corpo. O corpo é um modo de ser no e com o mundo, desdobrando-se nas<br />
potencialidades da vida.
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Se pensar o corpo pode ser também pensar sobre as formas que o constituem, sobre<br />
modos e costumes, sobre a história e a cultura, sobre o gosto, o dever e o prazer da vida. Colocar o<br />
corpo em perspectiva é correr o risco de descobri-lo para além do corpo convencional, manipulado,<br />
passível de conhecimento e de controle. É lançar-se na imprevisibilidade, em que o<br />
desmembramento do corpo e a exploração sistemática de suas substâncias podem não trazer as<br />
respostas esperadas.<br />
Desse modo, pensar o corpo no espaço de educação escolar é pensar também nas<br />
emoções, desejos, pulsões, subjetividades. Um bom exemplo é a criança da qual fala Malaguzzi<br />
(1999), que ao mesmo tempo em que é uma, é também cem, ou seja, uma criança pode ser feita de<br />
cem possibilidades de existência no mundo; com muitas mãos, pés e movimentos; com diversos<br />
jeitos de ouvir, falar e se expressar; cheia de sonhos e alegrias; com a possibilidade de descobrir<br />
inúmeros mundos e criar outros tantos; cheia de amor, fantasias, imaginação e pensamentos.<br />
O corpo e suas múltiplas formas<br />
Estamos tão acostumados ao nosso próprio corpo pelo uso que dele fazemos no cotidiano<br />
que, aparentemente, não sentimos necessidade de se refletir sobre o seu significado. Esse corpo,<br />
porém, pode ser compreendido de diferentes maneiras. Uma dessas maneiras é ver o corpo como<br />
um conjunto de aproximadamente duzentos e seis ossos, dois metros quadrados de pele que<br />
correspondem a cerca de dezesseis por cento do peso do corpo, cerca de cento e vinte e cento e<br />
cinquenta mil fios de cabelos, seiscentos e trinta e nove músculos que são a chave dos movimentos,<br />
diversos tendões, muitas vísceras, glândulas e órgãos (olhos, ouvidos, coração, fígado, rins, esôfago,<br />
baço, estômago, pulmões, intestinos, etc.)... O sangue (hemácias, linfócitos, etc.) percorre em média<br />
noventa e seis mil quilômetros de veias e artérias espalhadas pelo corpo. Há ainda o cérebro, que<br />
além de ser o responsável pelo raciocínio, é quem controla todas as reações do ser humano.<br />
A compreensão mecanicista de corpo reduz o ser humano a uma estrutura anatômica, que<br />
é complexa sem dúvida, mas apenas uma estrutura física. O corpo humano, nessa concepção é<br />
então visto como uma máquina que, em condições naturais, funciona perfeitamente. Quando algo<br />
não vai bem, deve ser alguma "peça", órgão ou tecido que não desempenha bem sua função no<br />
conjunto da perfeita ―máquina humana‖. Esse é o modelo de corpo advindo do pensamento<br />
cartesiano. Descartes pode ser considerado um dos melhores representantes desse modelo de<br />
pensamento, que se formou nos séculos XVI e XVII. Nesse pensamento o relógio tornou-se o<br />
modelo de funcionamento do mundo, resultando na concepção mecânica do universo. Acreditavase<br />
que inclusive o Homem fosse uma espécie de máquina capaz de mover a si mesma, submetido às<br />
mesmas leis do movimento que o resto do universo:<br />
[...] julguemos que o corpo de um homem vivo difere daquele de um morto<br />
como um relógio, ou outro autômato (ou seja, outra máquina que se mova por<br />
si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos<br />
movimentos para os quais foi construído, com tudo o que se exige para a sua<br />
ação, distingue-se do mesmo relógio, ou de outra máquina, quando está<br />
quebrado e o princípio de movimento pára de atuar. (DESCARTES, 1999, p.<br />
107)<br />
Outro fator que incidiu sobre os modos de ver e pensar o corpo é, conforme nos lembra<br />
Leão (2007), a criação do conceito de ―civilização‖, na França renascentista, época em que a adoção<br />
de boas maneiras e costumes sedimentaram os modos de conduzir a vida de toda uma sociedade.<br />
Esses comportamentos, embora nascidos em uma classe social específica, foram difundidos para<br />
todas as classes sociais através dos chamados de ―manuais de civilidade‖. As marcas do prestígio e<br />
do status requeriam o controle dos gestos e posturas, o abafamento dos sentimentos e as regras de
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etiqueta, não apenas dos nobres da corte, mas de todos aqueles que vivem próximos a eles. Aos<br />
poucos, os códigos de civilidade que regiam a vida dos cortesãos foram difundidos para os demais<br />
estratos da sociedade, pelo processo de imitação, mas também de educação.<br />
Soares (1998) lembra que no contexto social da Europa do século XIX, o corpo tornou-se<br />
cada vez mais objeto de estudos e cuidados; multiplicaram-se as pesquisas sobre o movimento e sua<br />
utilização na vida cotidiana, particularmente, no mundo do trabalho. Sendo, essa Europa o lugar da<br />
formação de um novo homem e uma nova sociedade, baseada nos princípios do capitalismo. Nesse<br />
sentido, também o discurso científico sobre o corpo influenciou sobremaneira, pois, conhecendo o<br />
corpo e o funcionamento de suas engrenagens, era possível realizar o trabalho sem que o corpo<br />
fosse incorretamente utilizado, ou seja, sem que se utilizasse a força física de forma desmedida, o<br />
que acarretaria num gasto excessivo de energia.<br />
Era objetivo presente na sociedade a eficácia do movimento, para o domínio do corpo com<br />
finalidades de aplicações precisas do gesto nas guerras e nas indústrias. O corpo passou a ser<br />
concebido sob a ótica da produtividade, com necessidade de ser preparado/adestrado para a<br />
indústria. Passou então a ser pensado a partir de composições musculares e funções orgânicas. Com<br />
o conhecimento correto acerca desses mecanismos era possível afirmar ações previsíveis e<br />
controladas, voltadas para o aproveitamento do corpo enquanto utilidade para a vida cotidiana.<br />
Acredita-se, porém que essas formas (essencialmente biológicas, mecânicas ou dos<br />
preceitos civilizadores) de compreender o corpo tiram-lhe as potencialidades, a sua vitalidade e<br />
sensibilidade. Nesses modos de pensamento, as pulsões, o devir, a experimentação não fazem<br />
sentido. Compreende-se o corpo como muito mais do que uma máquina biológica racional, mas<br />
como mítico, festivo, dançante, capaz de sentir e provocar êxtase, amor e guerra. Ou, como diz<br />
Najmanovich (2002, p. 94) ―O corpo humano não é somente um corpo físico, nem pura e<br />
simplesmente uma máquina fisiológica; é um organismo vivo capaz de dar sentido à experiência de<br />
si próprio‖. Nessa perspectiva, o corpo pode ser compreendido como condição indispensável para<br />
a existência humana no mundo.<br />
O corpo na escola<br />
Para compreender o lugar do corpo na escola não basta localizá-lo simplesmente<br />
―depositado‖ na escola, pois são os fatos históricos e culturais que determinaram as formas de<br />
conceber o corpo na ação pedagógica.<br />
Pode-se dizer, que desde o seu princípio, a escola e as práticas pedagógicas vem se<br />
constituindo como elementos de modulação do corpo. Não se trata, porém, de uma negação do<br />
corpo, no sentido de ignorar a sua existência, mas sim no intuito de percebê-lo nos seus detalhes, e,<br />
através de dispositivos de disciplinamento atuar sobre esse corpo para torná-lo obediente enquanto<br />
potencialidade, reforçá-lo no sentido de torná-lo produtivo, seguindo a lógica produtiva da<br />
sociedade. Sobre esse modelo escolar, Gonçalves (2007, p. 32) ressalta que:<br />
As práticas escolares trazem a marca da cultura e do sistema dominante, que<br />
nelas imprimem as relações sociais que caracterizam a moderna sociedade<br />
capitalista. [...] A forma de a escola controlar e disciplinar o corpo está ligada aos<br />
mecanismos das estruturas de poder, resultantes do processo histórico da<br />
civilização ocidental.<br />
De modo geral a compreensão do corpo sob a ótica do mecanicismo e utilitarismo no<br />
processo educativo ainda é predominante. Nesse modelo convencional da escola, o corpo inteiro é<br />
disciplinado para que passe a seguir comandos e executar tarefas repetitivas, baseando-se ainda no<br />
modelo do capitalismo industrial. Esse complexo ritual do corpo que se efetiva no cotidiano da
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escolarização é conceituado por Foucault como método que permite o controle minucioso das<br />
operações do corpo, o regime disciplinar de poder.<br />
A escola, ao privilegiar o disciplinamento do corpo, com seus sofisticados mecanismos de<br />
controle, parece alcançar maior sucesso ainda no que diz respeito ao controle das ideias, da<br />
criatividade, das emoções, dos desejos e das pulsões, das subjetividades, enfim, da experimentação<br />
de si e do mundo que a criança realiza na experiência vivencial. Depois de escolarizada a criança<br />
sabe reproduzir, copiar, mas pouco lhe resta de capacidade crítica para pensar ou criar<br />
intelectualmente. Para Foucault (2007), a atuação da disciplina ocorre, prioritariamente, em lugares<br />
fechados, tais como escolas, hospitais, prisões, etc., que possuem uma arquitetura panóptica.<br />
As primeiras escolas foram construídas com o modelo arquitetônico das prisões para ser<br />
possível vigiar e controlar. Na contemporaneidade, mesmo que ―remodelada‖ em termos<br />
arquitetônicos, o ambiente escolar permanece favorável às práticas de vigilância: nas salas de aula as<br />
carteiras são dispostas em filas, há câmeras nos corredores e pátios, a utilização do tempo escolar<br />
(aulas de 40 ou 50 minutos, interrompidas pelo sinal, a quem todos devem responder prontamente),<br />
o currículo composto por disciplinas isoladas que obedecem a uma ordem crescente de<br />
complexidade e dificuldade intelectuais (controle sobre o que ensinar e aprender), etc. Essas<br />
tecnologias de poder disciplinar, tem como objetivo torná-lo produtivo.<br />
O discurso escolar sobre o corpo da criança representa assim uma forma sutil de controlar<br />
todas as manifestações do seu ser, com o objetivo de colocá-lo em conformidade com a ideologia<br />
vigente. A disciplina do corpo e a sua organização são elementos fundamentais utilizados para<br />
alcançar os objetivos pedagógicos. Na escola a criança é forçada, pelos dispositivos disciplinares, a<br />
tornar-se o sujeito da aprendizagem.<br />
Na escola, segundo Freire (2007), aprende-se muito melhor o hábito de sentar, do que de<br />
refletir, pois, a escola parece ser o lugar onde melhor se aprende a permanecer sentado. Compara<br />
assim, a escola com a prisão, a mesma a que Foucault faz referência. A escola, nesse caso, torna-se<br />
uma instituição panóptica. Assim, as crianças (prisioneiras da instituição escolar) tornam-se vigiadas<br />
e controladas e, aos poucos, perdem sua espontaneidade, deixam morrer seu lado criança e tornamse<br />
―alunos‖. O corpo precisa conformar-se (ou seja assumir a forma desejada) para que as idéias<br />
possam ser controladas. A escola depaupera as potencialidades da criança, seus desejos, sua<br />
autonomia, massificando-a em prol de uma coletividade. Para que se tornem ―inteligentes‖ e<br />
produtivas, é necessário que estejam confinadas, controladas, disciplinadas.<br />
Rizoma e devir: possibilidades outras<br />
Segundo Deleuze (2002), já não sabemos mais o que pode o nosso próprio corpo. Afinal, o<br />
corpo ultrapassa sempre o conhecimento que dele temos, a potência do corpo está além das<br />
condições que nos são dadas pelo conhecimento e, por mais que tenhamos consciência de certo<br />
conhecimento das potências do corpo, as potências do espírito nos escaparão.<br />
Nessa direção, Giacoia Jr. (2002) lembra da imensa ignorância que cada um tem acerca do<br />
próprio corpo, ignorância na qual se tateia às cegas e então o corpo permanece estranho,<br />
desconhecido, desprezado. Segundo o autor, há uma carência de alargamento das fronteiras da<br />
consciência e do discernimento para que se desperte a curiosidade em relação ao próprio corpo.<br />
Pensar o corpo comparado à máquina apenas empobrece e torna demasiado grosseira a dinâmica<br />
dos processos corporais. A curiosidade, a vontade de conhecer leva aos abismos e segredos do<br />
corpo, leva à realização de uma aventura ousada pelos labirintos da alma, da qual o corpo é apenas<br />
fio condutor.
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Uma forte tendência do mundo contemporâneo é igualar, ou seja, estabelecer<br />
homogeneidades padronizadas, adequadas às várias formas ―industrializadas‖ da relação com o<br />
corpo: indústria da moda, indústria da beleza, indústria da diversão, do turismo, etc. O efeito que<br />
essa ―industrialização do ser‖ produz é esvaziar de sentido cada uma das singularidades humanas.<br />
Deixamos de ser entes singulares para nos tornarmos indivíduos, cópias de um mesmo modelo,<br />
massa humana.<br />
O rizoma constitui-se em uma linha de fuga possível ao achatamento e esvaziamento dos<br />
modelos científicos predominantes em nosso tempo, os quais reduzem a vida a aspectos mecânicos<br />
de genética, pois, como dizem Deleuze; Guattari (2000), num rizoma não há começo e nem<br />
conclusão, o rizoma está sempre no meio, é conjunção, é perpendicular, é movimento transversal.<br />
A partir do conceito de rizoma o corpo é pensado para além justaposição de órgãos e suas<br />
funções isoláveis. Então, o corpo não é simples matéria, não é passividade diante do mundo: é<br />
condição humana, condição para a vida enquanto existencialidade.<br />
Devir é, conforme anunciam Deleuze; Parnet (1998, p. 10)<br />
jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça<br />
ou de verdade. Não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega ou<br />
se deve chegar. [...] Os devires não são fenômenos de imitação, nem de<br />
assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela [...].<br />
Nesse sentido, o corpo em devir, mesmo considerando-se sua estrutura biológica, é capaz<br />
de surpreender sempre, pois é formado nas interações com o mundo, ávido por informações,<br />
dotado de imaginação criadora. O corpo não é cadáver, máquina ou objeto, mas espetáculo da vida,<br />
possibilidade de subjetividades, edifício de pulsões, desejos e afetos, potencialidade criadora. O<br />
corpo em devir é paradoxal, incerto, desafiador. Mais do que invólucro da alma, é magia, risco e<br />
alegria, é ausência de fixidez, é sonho e fluidez das emoções, é possibilidade de construção de<br />
saberes, experimentações e constituição de singularidades.<br />
Pensando os conceitos de corpo rizoma e devir, temos ciência de que nem sempre é fácil<br />
relacioná-los prática pedagógica, porém, arrisca-se o palpite de que que as crianças, antes de sua<br />
matrícula na instituição escolar, vivem de forma plena o devir corporal. Para a criança, o mundo é<br />
feito de fantasias, sorrisos e brincadeiras, é lugar de expressão dos sentimentos através do lúdico, de<br />
mãos dadas com a vida. Crianças estabelecem amizades com diversas pessoas sem fazer questão de<br />
saber os seus nomes, conhecem personagens imaginários e com eles estabelecem relações<br />
divertidíssimas, acreditam que no mundo tudo é possível, encarando a vida como um mar de<br />
possibilidades.<br />
Defende-se então a ideia de que a escola poderia ser um espaço que possibilitasse uma<br />
maior mobilidade das crianças, sem que isso trouxesse qualquer prejuízo à sua aprendizagem; ao<br />
contrário, que o movimento e os desafios de construir outras formas de aprender auxiliem a criança<br />
na construção da autonomia, da inteligência e da criatividade. Nesse sentido, Kohan (2010, p. 13)<br />
lembra que<br />
Educar é passar um tempo, um conto, uma relação. A educação é questão de<br />
narrativa, não de didática. Contar não é repetir, mas restituir. Como emuma<br />
fábula. Um saber fabuloso e fabulado, que se maravilha da fábula e da vida e,<br />
nesse maravilhar-se, doa mundo à vida e vida ao mundo.
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E, embora não tendo uma receita preparada para ser aplicada imediatamente nas escolas,<br />
concorda-se com Trigo (2003) quando afirma que a música de PinkFloyd: The Wall, consegue ser<br />
um ótimo exemplo daquilo que a escola ―não deveria ser‖:<br />
Considerações finais<br />
Não se quer uma educação com controle mental, que significa livros escolares<br />
medíocres e censurados, aulas expositivas com restrições a apartes dos alunos e<br />
cerceamento de comportamento. Não se quer sarcasmos por parte dos<br />
educadores que vêem o aluno como um inferior, destinado a exclusivamente<br />
receber as informações como se estivesse fazendo um favor à plebe ignara.<br />
(TRIGO, 2003, p. 80)<br />
A escola, ao perseverar no trabalho de controle do corpo, parece alcançar sucesso no que<br />
diz respeito ao controle das idéias, da criatividade, das emoções, dos desejos e das subjetividades,<br />
enfim, da experimentação de si e do mundo que a criança realiza espontaneamente. Controlando o<br />
corpo com o objetivo de torná-lo produtivo, a escola nada tem feito além de contribuir para a<br />
concepção de homem-máquina, autômato. A idéia de corpo em devir talvez seja uma das possíveis<br />
alternativas à essa concepção... Para tanto, é preciso que a escola permita que os ―alunos‖ ali<br />
matriculados sejam ―pessoas‖, em totalidade e complexidade, capazes de ressignificar a vida como<br />
acontecimento corporal.<br />
Talvez essa pensar nessa possibilidade como proposta seja um tanto ousado, comparado ao<br />
que se tem como compreensão de corpo ao longo de séculos. Mas a vida enquanto acontecimento é<br />
além das regras que visam a generalização, o acontecimento da vida no corpo, pelo corpo e através<br />
do corpo, é construção, criação, emoções e razões, paixão e pulsão que abre à possibilidade da<br />
experimentação do mundo.<br />
O corpo, na perspectiva dos conceitos de rizoma devir é pensado como um todo<br />
integrado, que nunca está finalizando, mas que, nas interações consigo mesmo, com os outros e<br />
com a realidade que o cerca, está em contante transformação. No caso da escola, um corpo em<br />
devir refere-se ao fato de que aprender e sentir prazer não são termos opostos. É possível aprender<br />
em movimento, no contato com os outros, no espaço alheio à sala de aula, na aproximação com o<br />
mundo que existe além dos espaços de confinamento.<br />
Nas noções de rizoma e devir não existem fórmulas prontas e nem a linearidade do<br />
pensamento. Pensar nessa perspectiva significa compreender a criança na escola como um ser em<br />
constante desenvolvimento e aprendizado em constante interação com os outros, com as coisas,<br />
com o espaço. Ou seja, é compreender o corpo como mais do que instrumento, como possibilidade<br />
de ação e integração, o corpo como agente das potencialidades humanas. Tudo isso parece<br />
significativo para que a escola supere seus dilemas de ser uma instituição de seqüestro, mal<br />
suportada pelos que a freqüentam cotidianamente.<br />
Referências<br />
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________; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro:<br />
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DESCARTES, René. As paixões da alma. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural,<br />
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 34 ed. Petrópolis: Rio de<br />
Janeiro, 2007.
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
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galinhas, crianças...) In.: MOREIRA, Wagner Wey (org). Educação física & esportes:<br />
perspectivas para o século XXI. 14 ed. Campinas: Papirus, 2007.<br />
GIACOIA JÚNIOR. Oswaldo. Resposta a uma questão: o que pode um corpo? In.: LINS, Daniel;<br />
GADELHA, Sylvio (orgs). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relume<br />
Dumará, 2002.<br />
GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. 10 ed.<br />
Campinas: Papirus, 2007.<br />
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MALAGUZZI, Loris. Ao contrário, as cem existem. In.: EDWARDS, Carolyn; GANIDINI, Lella;<br />
FORMANN, George. As cem linguagens da criança. Porto Alegre: Artmed, 1999.<br />
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Regina Leite (Org.). O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.<br />
SOARES, Carmen Lúcia. Imagens da educação no corpo. Campinas: Autores Associados: 1998.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
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À LUZ DA FONOESTILÍSTICA: UMA POSSIBILIDADE DE LEITURA DO POEMA<br />
BRASIL, DE RONALD CARVALHO<br />
Patrícia de Brito Rocha<br />
Doutoranda em Estudos Linguísticos<br />
Universiade Federal de Uberlânida<br />
Profª da rede pública e privada<br />
Cidade de Patos de Minas<br />
Resumo: Este artigo tem como objetivo verificar os recursos estilísticos, sobretudo os expressivos<br />
de natureza sonora que convergem na função poética. Para tal, será feito um breve estudo acerca<br />
das possibilidades de uso dos fonemas expressivos da língua. Posteriormente, verificar-se-á o<br />
emprego desses fonemas no texto Brasil, de Ronald de Carvalho, de modo a perceber a forma de<br />
construção de seu texto, bem como a importância que a Fonoestilística assumes nessa construção.<br />
Palavras-chave: Fonoestilística, função poética, construção textual<br />
Abstract: This article aims to determine the stylistic features, especially the expressive nature of<br />
sound that converge on the poetic function. This Will do a brief study of the possible uses of<br />
expressive language phonemes. Later, there would be the use of these phonemes in the text Brasil,<br />
Ronald de Carbalho, in order to understand how to build your text, and the importance that the<br />
phonostylistics assumes this constrution.<br />
Key-words: phonostylistics, poetic function, textual construction<br />
Considerações introdutórias<br />
Um texto, sob a ótica dos estudos linguísticos, pode ser analisado sob diferentes vias,<br />
sendo, recentemente, as mais conhecidas e renomadas, a Linguística Textual e a Análise do<br />
Discurso. Diferentemente, dessas duas, um texto, principalmente, de natureza poética pode ser<br />
melhor compreendido pela Estilística, ou seja,<br />
―Bally definiu deste modo a estilística: ―Estudo dos fatos de expressão da<br />
linguagem organizada do ponto de vista de seu conteúdo afetivo, isto é,<br />
expressão dos fatos da sensibilidade pela linguagem e ação dos fatos de<br />
linguagem sobre a sensibilidade.‖ ― A estilística, ramo da linguística, consiste,<br />
portanto, num inventário de potencialidades estilísticas da língua (―efeitos de<br />
estilo‖) no sentido saussuriano, e não no estudo do estilo de tal autor, que é um<br />
―emprego voluntário e consciente destes valores.‖ (Dubois et all, 2001: 237)<br />
Diante da dimensão afetiva que envolve a produção de enunciados, mais especificamente<br />
aqui um poema, buscar-se-á fazer um inventário das possibilidades expressivas reveladoras de<br />
afetividade e de expressão da sensibilidade pela
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A Fonoestilística e sua contribuição na construção e textos poéticos<br />
A Fonoestilística<br />
A Estilística volta parte de seus estudos para os valores expressivos de natureza sonora das<br />
palavras e dos enunciados. A esses estudos dá-se o nome de Estilística do som ou Fonoestilística 22,<br />
sendo que a sua principal preocupação é o estudo dos fonemas e prosodemas, tais como a altura, a<br />
intensidade e a duração.<br />
Sabe-se que os sons da língua incitam muitas sensações, dentre elas agrado ou desagrado,<br />
além de sugerirem ideias e impressões. É interessante notar que para a Fonoestilística o que é<br />
importante é a ligação existente entre significado e significante 23, ou seja, a existência de uma<br />
correspondência entre os sentimentos e os efeitos sensoriais produzidos pela linguagem.<br />
Nessa perspectiva, Martins(1989) coloca que a distinção entre a neutralização de caráter<br />
arbitrário do som linguístico acontece em três aspectos. A primeira é a imitação sonora que se dá na<br />
onomatopeia, figura que se preocupa em traduzir sons variados através dos sons da língua. A<br />
segunda é a transferência sonora, que provoca sugestão de impressões sensoriais e auditivas através<br />
dos sons linguísticos. Por último, há a correspondência articulatória, que promove uma<br />
correspondência ente os movimentos articulatórios da produção do som e da ideia que ele exprime.<br />
É notório que os estudos da Estilística do som convirjam para a explicação dos recursos<br />
poéticos usados pelos autores na construção dos textos e, por isso, explique, sobretudo, a função<br />
poética proposta por Jakobson . Então, o potencial expressivo das consoantes e das vogais ser<br />
considerado o pilar central na construção textual que se expressa de duas maneiras, convencional<br />
ou fisicamente.<br />
As vogais 24, além de outras propriedades, podem ser apontadas como vogais orais e vogais<br />
nasais. As primeiras são os fonemas mais sonoros e livres de nosso sistema fonológico. Sob essa<br />
perspectiva, o emprego do [a], em termos estilísticos, objetiva a tradução de sons fortes, nítidos e<br />
imprimem às consoantes que acompanham essas impressões, além de que sua sonoridade dá a idéia<br />
(convencional) de claridade, amplidão e brancura. A vogal [i], por sua vez, traduz um som agudo,<br />
estridente, muitas vezes explicada por sua presença em palavras como grito, pio, apito; enquanto<br />
que, por outro lado, é imprimido a ela a noção de estreiteza , agudez em palavras como fio, fino,<br />
mini. Por último, as vogais [o] e [u] prestam-se a imitação de sons cheios e graves e ideias de<br />
fechamento e ruídos surdos, além de remeterem a ideias lúgubres e soturnas. Ainda no âmbito das<br />
vogais há as vogais nasais que exprimem sons velados e prolongados, ao passo que dão a sugestão<br />
de distância e lentidão.<br />
Continuando a tratar do potencial expressivo dos fonemas, passar-se-á agora às consoantes,<br />
que o próprio nome diz , soam junto com (as vogais).<br />
As consoantes oclusivas, [p],[t],[k],[b],[gu], são marcadas, estilisticamente, por um traço<br />
explosivo que reproduz ruídos surdos, secos, bem como batidas. Já as consoantes constritivas,<br />
[f],[v], pelo seu traço contínuo sugerem duração, o que faz com que elas expressem sons soprados,<br />
ao mesmo tempo que têm valor expressivo em palavras como: vento, fala, fofoca. As consoantes<br />
22 A Fonoestilística também é compreendida como ―(...) uma parte da fonologia que estuda os elementos<br />
fônicos que possuem na linguagem humana uma função expressiva(emotiva), ou apelativa (conativa), não não<br />
representativa (referencial).‖ (Dubois et all, 2001: 2283,284)<br />
23 Aqui parte-se da dicotomia saussureana, mas há um encaminhamento diferente do proposto por Saussure.<br />
24 No inventário aqui proposto, consoante a Martins (1989), não se pretende explorar outras características<br />
das vogais, tais como vozeamente/desvozeamento, duração, tensão. Para tanto, confira Silva(2003).
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labiodentais [s],[z] produzem sons sibilantes. As fricativas palatais expressas pelo [x],[ch] imitam<br />
sons chiados. Posteriormente, tem-se as constritivas laterais [l],[lh] e as vibrantes [R] e [r] dando<br />
idéia de deslizar, fluir e rolar. Mas, o [R] duplo também presta-se à noção de atrito, ranger, vibração,<br />
sentidos em vocábulos como roer, arranhar, arrastar. Por último, há as consoantes nasais [m], [n],<br />
[nh] que se associadas adequadamente ao texto dão a impressão de suavidade, doçura, delicadeza.<br />
A partir do exposto acima, pode-se apontar que a expressividade não acontece por si só,<br />
ela é a soma de muitos valores, dentre as quais se apontam a escolha correta dos fonemas pelo<br />
poeta, a disposição textual e o essencial, a interpretação do leitor. Em grande parte dos casos, o<br />
poeta para explorar o potencial fônico das consoantes e vogais faz um uso repetido dela, o que gera<br />
as chamadas figuras de linguagem. Diante disso, elencar-se-á: a assonância, a aliteração,o<br />
homeoteleuto, a rima, a anominação, a paranomásia e a onomatopéia.<br />
Por aliteração entende-se o processo de repetição de consoantes, enquanto que a<br />
assonância é o processo de repetição vocálica, sendo bom salientar que elas a sua existência na<br />
Estilística está condicionada à expressão de uma ideia.<br />
Outros processos de repetição sonora são o homeoteleuto e a rima. O primeiro restringe-se<br />
à repetição do final de palavras próximas, principalmente numa mesma frase, ou seja, em um texto<br />
em prosa. O segundo, por sua vez, é um recurso usado com maior exclusividade na poesia em que<br />
os finais das palavras coincidem de forma regular no fim dos versos.<br />
Interessante observar também os processos de construção denominados anominação e<br />
paranomásia. A anominação ocorre quando existe a utilização de palavras com radical iguais (beija,<br />
beijando) numa mesma frase ou em frases próximas, já a paranomásia é uma figura que tem como<br />
objetivo aproximar palavras com sonoridades análogas (cumprido,comprido).<br />
Por último, há a onomatopeia 25 que se presta, muitas vezes, a repetir fonemas e, até<br />
mesmo, palavras inteiras. Seu intuito com isso é reproduzir foneticamante ruídos ou ―sons falados‖,<br />
ou seja, segundo Martins(1989) é a transposição para a língua articulada humana de gritos e ruídos<br />
inarticulados. A onomatopeia é dividida em três níveis: acidental, propriamente dita e lexicalizada.<br />
Primeiramente, a onomatopeia acidental intenta a reprodução de um ruído, ou melhor,<br />
tentar imitar um ruído por um grupo de sons da língua. Tome-se, como exemplo, a reprodução do<br />
som do vento que leva em consideração a repetição das fricativas [f] e [v]. Além disso, a<br />
onomatopeia propriamente dita já é um objeto sonoro definido e com valor significativo dentro de<br />
uma comunidade linguística. Em textos em português, encontra-se ―au-au‖ como onomatopéia<br />
para o latido do cachorro; em inglês, a onomatopéia é ―barc-barc‖. Por último, há a onomatopéia<br />
lexicalizada, ou seja, aquela cujo significado já veicula numa frase como um termo sintático. Um<br />
exemplo clássico em português é a palavra ―bem-te-vi‖, em ―O bem-te-vi tem um belo canto.‖,<br />
onde ―bem-te-vi‖ assume posição sintática de sujeito.<br />
Em consonância com o estudo acima empreendido segue-se a análise do poema ―Brasil‖ de<br />
Ronald Carvalho, buscando nele elucidar os aspectos ora levantados.<br />
A Fonoestilística e o poema Brasil, de Ronald Carvalho 26<br />
A temática do poema em questão é mostrar a diversidade existente no Brasil e, para isso, o<br />
poeta explora os sons e a expressividade advinda deles, buscando ressaltar as ―paisagens‖ brasileiras<br />
25 A onomatopeia é alvo de discussões acerca da arbitrariedade da língua (confira Saussure()).<br />
26 É válido ressaltar que, na análise aqui proposta, os recursos prosódicos não foram explorados devido a<br />
maior dificuldade de encontrá-los em um texto escrito sem marcas evidentes.
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através das palavras. Dessa forma, o poema constitui-se em um quadro dessa realidade contada a<br />
partir da percepção do poeta.<br />
Como o poeta se propõe a mostrar o Brasil e isso ocorre através da construção sonora, ele<br />
coloca no início (da maioria) das estrofe a seguinte fala: ―Eu ouço(...)‖ e, logo a seguir, constrói os<br />
versos que remetem o leitor aos sons que ele ouve.<br />
Já na primeira estrofe, o poeta já explora um fenômeno estilístico que é a aliteração em [p],<br />
que remete à ideia de batida da palma e da pedra. Ainda nessa estrofe existe uma assonância em [a]<br />
que traduz a claridade dos raios solares, sendo que essa claridade é característica de um país tropical.<br />
Em vista disso, veja a seguinte estrofe:<br />
Na segunda estrofe,<br />
Nesta hora de sol puro<br />
palmas paradas<br />
pedras polidas<br />
claridades<br />
faíscas<br />
cintilações (CARVALHO,1960:44)<br />
Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu<br />
correndo na ponta das rochas nuas,<br />
empinando-se no ar molhado, batendo<br />
com as patas de água na manhã de<br />
bolhas e pingos verdes; ( CARVALHO,1960:43)<br />
há uma relevância sonora da palavra tropel, quando o poeta diz ouvir o som dos cavalos, pois essa<br />
palavra leva o leitor a ouvir o trotar dos cavalos, embora se o poeta tivesse substituído tal palavra<br />
por cavalgar, não teria alcançado nos leitores a mesma perspectiva.<br />
Em seguida, a melodia a que o poeta faz referência é o barulho do rio Amazonas:<br />
Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara<br />
e grave melodia, Amazonas, a melodia<br />
de tua onda lenta de óleo espesso, que se<br />
avoluma e se avoluma, lambe o barro<br />
das barrancas, morde raízes, puxa ilhas<br />
e empurra o oceano mole como um touro<br />
picado de farpas, varas, galhos e<br />
folhagens; ( CARVALHO,1960: 44)<br />
No trecho supracitado, há uma exploração de sons nasalizados, que dão a ideia da longa<br />
distância que o maior rio do Brasil percorre até chegar ao mar. Isso porque na oposição oral/nasal,<br />
as vogais nasais apresentam maior duração.<br />
Após descrever esse ambiente da Região Norte do Brasil, o poeta passa a fazer a<br />
descrição da Região Nordeste. Para exprimir a aridez dessa região e sua terra que estala ao sol<br />
ardente, o poeta explora o som da consoante [t] nas palavras terra, estala, ventre, quente que se<br />
associam em duas palavras (terra, estala) à vogal [a] , demonstrando, dessa forma, um ruído forte.<br />
Há a continuação da ideia de terra quente com a palavra ferve, que significa algo em estado muito<br />
quente, mesmo que em um contexto diferente do qual ela é usada. Além de ferver e estalar, a terra<br />
se levanta em torrões, que rolam pela estrada e pelo caminho, desfazendo-se:
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Eu ouço a terra que estala no ventre quente<br />
do nordeste, a terra que ferve na planta<br />
do pé de bronze do cangaceiro, a terra<br />
que se esboroa e rola em surdas bolas<br />
pelas estradas de Juazeiro, e quebra-se<br />
em crostas secas, esturricadas no Crato<br />
chato;( CARVALHO,1960: 44)<br />
Uma outra imagem explorada sonoricamente dá uma impressão violenta conseguida pelo<br />
emprego da aliteração dos sons surdos das oclusivas [k] e [t] empregadas com o intuito de<br />
expressar o quebrar das crostas. Anterior a isso, no verso ―que se esboroa e rola em surdas bolas‖,<br />
o poeta explora a assonância em [o] dando a noção de movimento circular das bolas de pedras e<br />
também a aliteração em [R] para contribuir na sonoridade do atrito delas com o chão.<br />
A seguir, continua a exploração da sonoridade nordestina, só que agora se fala no chiar das<br />
caatingas e, para tal, o poeta coloca um excessivo número de palavras com a vogal [i] exprimindo o<br />
som estridente dos animais, enquanto que a aliteração do [z] e do [s] produz o som do chiado:<br />
Eu ouço o chiar das caatingas – trilos,pios,<br />
pipios, trinos, assobios, zumbidos, bicos<br />
que picam os bordões que ressoam retesos,<br />
tímpanos que vibram límpidos, papos<br />
que estufam, asas que zinem, zinem,<br />
rezinem, cris-cris, cicios, cismas, cismas<br />
longas, langues – caatingas debaixo do<br />
céu! (CARVALHO,1960:44)<br />
Percebemos, então, a contraposição das duas estrofes estudadas anteriormente , visto que,<br />
mesmo num lugar árduo e seco, há também sons cantantes de animais, como o pio e o cri-cri que,<br />
de certa forma, alegram-no. Para a construção desses sons de animais, nota-se a presença da<br />
onomatopeia em ―pio‖ (som de pássaros) e ―cri-cri‖ ( som do grilo).<br />
Em ―Eu ouço os arroios que riem‖, a vibrante dupla [R] imita o barulho da possível risada<br />
do pequeno riacho no seu curso e com a aliteração ―(...) limo das leiras e das locas‖ fica nítido o<br />
fluir do regato, exprimido pela consoante [ l].<br />
A estrofe que se segue tem como base fônica as onomatopeias :<br />
Eu ouço as moendas espremendo canas, o<br />
glu-glu do mel escorrendo nas tachas, o<br />
tinir das tigelinhas nas seringueiras;<br />
e machados que disparam caminhos,<br />
e serras que toram roncos ,<br />
e matilhas de ―Corta- Vento‖ , ―Rompe-<br />
Ferro‖, ―Faíscas‖ e ―Tubarões‖ acuando<br />
Suçuaranas e maçarocas,<br />
e mangues borbulhando na luz,<br />
e caititus tatalando as queixadas para os<br />
jacarés que dormem no tijuco morno dos<br />
iguapós...( CARVALHO, 1960:44)
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Fica claro o emprego de três onomatopeias lexicalizadas nas expressões: tinir das tigelinhas<br />
(tinir), mangues borbulhando (borbulhar), caititus tatalando (tatalar) e uma onomatopeia<br />
propriamente dita: o glu-glu do mel ( glu-glu). Em vista disso, aponta-se que o emprego dessas<br />
onomatopeias dá evidência aos sons típicos do lugar descrito. Isso posto, em ―Eu ouço todo o<br />
Brasil, cantando, zumbindo, gritando, vociferando!‖, há um homeuteleuto, demonstrando, assim,<br />
os vários sons do Brasil, que mesmo tão diferentes, aos nossos ouvidos ecoa igual.<br />
A próxima estrofe constrói-se na base de um paralelismo somado a uma construção que<br />
coloca as palavras remetendo ao som que as caracterizam. Nos sete primeiros versos, há a forma<br />
SUBSTANTIVO+QUE+VERBOS, de modo que o substantivo é caracterizado sonoricamente<br />
pelo verbo. Veja na exposição abaixo:<br />
SUBSTANTIVO VERBO SONORIDADE DO VERBO<br />
Redes Balançam à – som nasalizado – dá a cadência de movimento.<br />
Sereias Apitam I – som agudo – dá a noção do canto da seria e sua<br />
delicadeza.<br />
Usina<br />
Rangem<br />
Martelam<br />
Arfam<br />
Estridulam<br />
Ululam<br />
Roncam<br />
Tubos Explodem P – explosão.<br />
R- atrito- remete ao barulho das rodas das<br />
usinas.<br />
T – batida – batidas constante dentro da usina.<br />
F- sopro-movimento constantes dos pistões.<br />
T – batida- som estridente.<br />
U- uivo - som lúgubre.<br />
R – vibração – dos motores.<br />
Rodas Batem B – batida dos martelos.<br />
Trilhos Trepidam T – batida insistente.<br />
Continuando a construção sonora do texto, o poeta coloca sons onomatopaicos<br />
lexicalizados como relincho, aboiado e mugido para identificarem-se com os sons dos animais que
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ficam nas campinas. Além disso, coloca o repique dos sinos, que lembram as igrejas, e os estouros<br />
de foguetes que lembram as quermesses para associá-los aos sons das cidades e à sua religiosidade.<br />
Veja:<br />
(...)<br />
repiques de sinos, estouros de foguetes,<br />
Ouro-Preto, Bahia, Congonhas, Sabará,<br />
vaias de Bolsas empinando número como<br />
papagaios,<br />
tumulto de ruas que saracoteiam sob arranha-céus,<br />
vozes de todas as raças que a maresia dos<br />
portos joga no sertão! (CARVALHO,1960: 45)<br />
Além de todos aspectos relacionados ao conteúdo afetivo, um último recurso identificado<br />
foi o de o poeta fazer o uso das reticências na seguinte estrofe: ― Todas as tuas conversas, pátria<br />
morena, correm pelo ar...‖, em que ele as usa para indicar a amplidão e o alcance das conversas ali<br />
descritas.<br />
Considerações finais<br />
De acordo com o apresentado no trabalho, fica claro que, como não poderia ser diferente,<br />
a função poética utiliza-se dos recursos da Estilística do som para conseguir uma maior<br />
expressividade. Muitas vezes, o leitor não reconhece esses recursos, mas a sua percepção é<br />
aumentada quando o autor faz uso de recursos que o levem, sonoricamente, a determinados<br />
significados. Especificamente no poema ―Brasil‖, percebe-se a exploração da sonoridade pelo autor<br />
em pontos interessantes, tais como na introdução das estrofes com os dizeres: ―Eu ouço (...)‖ e,<br />
logo depois, com a inserção de palavras que remetem o leitor aos sons que ele diz ouvir, levando-o<br />
a ouvi-los também. Além disso, o emprego dos recursos Fonoestilísticos serviu também para que o<br />
poeta ressaltasse a sonoridade dos lugares do Brasil, como o norte, nordeste e sudeste, o que é<br />
visível para as pessoas que possuem um conhecimento sobre as mais diversas culturas brasileiras.<br />
Conclui-se, dessa forma, consoante à Bally, que a Estilística é a ―expressão dos fatos da<br />
sensibilidade pela linguagem e ação dos fatos de linguagem sobre a sensibilidade.‖<br />
Referências bibliograficas<br />
CARVALHO, Ronald de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Agir, 1960.Coleção Novos Clássicos.<br />
pp.43-46.<br />
MARTINS, Nilse Sant‖Ana. Introdução à Estilística. São Paulo: Ática, 1989.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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LITERATURA, LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTUAL: INTERSECÇÕES<br />
Patrícia Colavitti Braga Distassi<br />
Profa. Dra. FACERES/USP<br />
Resumo: O artigo pretende mostrar que ensinar a produzir textos, longe da crença comum, não é<br />
simplesmente transmitir conhecimentos sobre definição de gêneros, modalidades e estrutura formal de<br />
produções discursivas; é sim um ato de extrema complexidade, pois exige que o leitor e, posteriormente, o<br />
produtor de textos, primeiramente, se emaranhe no tecido e na estrutura textual alheia para desvendá-los<br />
e, depois possa, finalmente, criar o próprio texto.<br />
Palavras-chave: Literatura; Mito; Ensino-aprendizagem<br />
Abstract: This article shows you how to produce texts, far from The common belief, is not simply to<br />
impart Knowledge about the definition of genres, modalities and formal structure of discursive<br />
production, but rather an act of extreme complexity, because it requires the reader and later, the producer<br />
of texts, primarily, is entangled in the fabric and textual structure unrelatde to unlock them and then can<br />
finally crete their own text.<br />
Keywords: Literature, Myth, Teaching and learning<br />
Durante o desenvolvimento de nossa pesquisa, pudemos confirmar que ensinar a produzir textos,<br />
longe da crença comum, não é simplesmente transmitir conhecimentos sobre definição de gêneros,<br />
modalidades e estrutura formal do discurso; é sim um ato de extrema complexidade, pois exige que o<br />
leitor e, posteriormente, produtor de textos, primeiramente, se emaranhe no tecido textual para desvendálo<br />
e, depois, finalmente, criá-lo e reconstruí-lo sob a luz de outras perspectivas propostas ou impostas<br />
pelas situações em que o sujeito precisa produzir textos e expressar seus pensamentos, imaginação e<br />
experiências estéticas.<br />
Seguindo essas hipóteses, partimos do fato de que, para tanto, é preciso promulgar uma relação<br />
dialética entre o conhecimento das produções artísticas da humanidade em sua multiplicidade de<br />
linguagens e processos de leitura complexa, vivência estética e convivência prática com as estruturas<br />
poéticas; produzidas nas várias dimensões da linguagem; além disso, também é necessário desenvolver o<br />
poder de recriação, de síntese e de superação da realidade; o que não é necessariamente nato e, portanto,<br />
pode ser desenvolvido.<br />
Durante o desenvolvimento de nosso trabalho, aprendemos que ensinar a produzir textos é<br />
ensinar ao indivíduo a perceber a si mesmo como ser integral, complexo, auxiliando-o a se conscientizar<br />
do seu papel enquanto ator social e a compreender que cada produção que proferir não será apenas o<br />
desenvolvimento de idéias ou fatos prenunciados por um título, será uma reação estética, cujo objetivo não<br />
é a repetição de qualquer situação real, mas a superação e o triunfo sobre ela (Vigotski, 2003:232). Enfim,<br />
compreendermos que utilizando a arte como mediadora do processo de ensino-aprendizagem é uma das<br />
maneiras de contribuir para despertar o interesse para a produção elaborada, pela compreensão de que o<br />
texto verbal (ou não) parece completar a vida e ampliar suas possibilidades, pois: A arte é antes uma<br />
organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha<br />
a concretizar-se, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida e o 27 que está por trás dela (2003:313). E, ainda, de<br />
que seu uso se justifica pelo fato de que é um instrumento capaz de promover a superação da realidade, já<br />
que:
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Do ponto de vista psicológico, a arte é um mecanismo biológico permanente e<br />
indispensável de superação das estimulações não realizadas. As emoções não realizadas<br />
na vida encontram vazão e expressão na combinação arbitrária dos elementos da<br />
realidade, antes de tudo na arte. A arte não só dá vazão e expressão a emoções várias<br />
como sempre as resolve e liberta o psiquismo da sua influência obscura. (1999: XIV)<br />
Sendo assim, compreendemos que ensinar a escrever ou criar qualquer outra forma de expressão<br />
textual transcende o ato de colocar ―os sentimentos no papel‖ como muito já se alardeou e fez, pois isso<br />
seria minorar a importância da ação que surge inicialmente como o mais forte instrumento na luta pela existência, e<br />
não se pode admitir nem a idéia de que o seu papel se reduza a comunicar sentimentos e que ela não implique nenhum poder<br />
sobre esse sentimento (1999:310), pois ela os supera; assim, é necessário propor atividades que promovam a<br />
supremacia da catarse sobre o sentimento vivo e não direcionado para a criação e, por isso, estéril.<br />
Aprendemos, ainda, que a educação norteada pelo viés artístico cumpre a função de permitir a<br />
ampliação do pensamento e das habilidades de criação, pois ensina e incita o diálogo entre o real e o<br />
imaginário e a produção advinda desse trânsito que a criança faz. Aquele que experiencia a aprendizagem<br />
deve poder realizar sua própria síntese criativa, de modo a poder se inserir nos valores sociais de forma<br />
autônoma e inteira, destinando a totalidade do seu ser à construção social e coletiva.<br />
Em sua obra Psicologia da Arte Vigotski afirma que embora ensinar o ato criador da arte seja<br />
impossível, o educador deve contribuir para sua formação e manifestação. Vale lembrar que o conceito de<br />
produtor de arte, ou de artista, que utilizamos e pelo qual trabalhamos é o conceito de artista de Read, e,<br />
por isso, buscamos a formação de um sujeito capaz de fazer com competência aquilo que lhe foi proposto<br />
e, não necessariamente, alguém capaz de fazer com genialidade aquilo que lhe foi proposto. E isso ocorre<br />
se:<br />
Através da consciência penetramos no inconsciente, de certo modo podemos organizar<br />
os processos conscientes de maneira a suscitar através deles os processos inconscientes,<br />
e todo o mundo sabe que qualquer ato artístico incorpora forçosamente como condição<br />
obrigatória os atos de conhecimento racional precedentes, as concepções,<br />
identificações, associações, etc. (...) S. Malojavi tem sua razão ao dizer que o ato<br />
artístico é ―o processo concluído, embora não acionado, da nossa reação a um<br />
fenômeno. Esse processo... amplia a personalidade, enriquece-a com novas<br />
possibilidades, predispõe para a reação concluída ao fenômeno, ou seja, para o<br />
comportamento, tem sua natureza um sentido educativo. (1999: 325).<br />
Dessa maneira, é que perseguimos por anos, a concretização de uma prática a partir da reflexão e<br />
de um percurso norteador do ensino de leitura e produção de textos, a partir dos sentidos da palavra<br />
educare. Para tanto, elegemos a arte, em especial a Literatura, como a mediadora dos primeiros sentidos de<br />
educare, que como já definimos anteriormente significa: alimentar, criar e fazer sair.<br />
Assim, a Literatura figura como adjuvante do processo de produção do discurso verbal e nãoverbal<br />
e, por apresentar em seu produto (o texto literário) o processo criador da expressão da reação<br />
estética proporcionada pela relação de artistas com sua realidade. Dessa forma, é uma manifestação<br />
artística que também ensina, e o faz por intermédio de uma didática da ilustração e das técnicas de criação<br />
aventadas por procedimentos de leitura, podemos buscar, no diálogo entre as necessidades pessoais, a<br />
vivência estética, propiciada e provocada pela arte e as manifestações culturais e artísticas da humanidade,<br />
elementos norteadores para a concepção do ato criador. A Literatura será, então, o fio que ensina e se<br />
propõe a transcender o bastidor, no ritmo da história das criações humanas.<br />
E, dessa maneira, por meio da interação e da mediação feita pelas artes, podemos encontrar o<br />
―social em nós‖ e, agora, não somente por meio da mediação da Literatura, mas, principalmente por meio<br />
das artes cênicas e visuais, devemos colocar em prática o último sentido de educare, que corresponde a fazer<br />
sair, a promover a maiêutica, ou seja, trazer à luz o produto final da percepção sensorial e do despertar de
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uma atividade mais complexa:<br />
(...) a transferência do acento principal para o momento de resposta da reação ante<br />
impressões sensoriais que chegam de fora. Nesse sentido, podemos dizer claramente<br />
que a vivência estética é estruturada conforme o modelo exato de uma reação comum,<br />
que necessariamente pressupõe a presença de três componentes: excitação, elaboração<br />
[processamento] e resposta (Vigotski-2003:229)<br />
Marcações de cena para uma performance no real<br />
Acreditamos que a produção textual é um ensaio para a produção das cenas da vida: cenas épicas,<br />
líricas e dramáticas, pois, personagens, eu-líricos e heróis constróem sua realidade por meio de seus<br />
pensamentos e de suas ações, bem como pela ausência deles, enfim, de um repertório que mescla visões<br />
promulgadas especialmente pela leitura, pelo real e pelo imaginário. Essa crença encontra fundamento no<br />
ensaio Itinerantes e Itinerários na Busca da Palavra de Dietzsch e Silva que afirmam:<br />
Importa que a criança assuma e escute o eco de sua voz e aprenda que as palavras,<br />
inclusive as suas, podem fazer diferença no mundo, seja em termos políticos, estéticos<br />
ou científicos. Percebam ainda os alunos que a escrita dá voz ao escritor, ao poeta, ao<br />
historiador, ao cientista, ao advogado, ao ecologista. Vivendo nesse mundo onde<br />
ressoam vozes de tantas personagens e diferentes pessoas, a criança vai adquirindo<br />
autoridade para dialogar com outros textos e criar o seu próprio, partindo e ensaiando<br />
em sala de aula os muitos tons que poderá ter sua própria voz (1994:62-63).<br />
A importância de se dominar os processos de composição textual assume dimensões muito<br />
maiores quando a observamos dessa maneira, pois se o sujeito não tem habilidades para imaginar,<br />
estabelecer objetivos, lidar com desejos e pesadelos e construir formas de realização ou resolução desses,<br />
ficcionalmente, (o que seria uma forma de ensaio para o espetáculo da vida futura) será ele capaz de fazêlo<br />
com excelência na sua estréia enquanto ser social, atuante em uma sociedade?<br />
Criar um texto a partir de um tema ou de uma proposta se assemelha a criar soluções para se<br />
resolver problemas em casa, no trabalho e em outras situações de atuação social. Por isso, acreditamos<br />
que um dos instrumentos mais valiosos que a escola pode oferecer para a formação e preparação do<br />
sujeito para desempenhar a sua cidadania, para evoluir enquanto homem e enquanto profissional seja a<br />
competência para ler e para produzir textos nas várias modalidades de linguagens e para torná-los ação<br />
prática para a vida. Tornar um texto ação prática significa dizer que o educador deve mostrar ao seu aluno<br />
que aquela produção tem um sentido prático, que é algo que ultrapassa o cumprimento de um objetivo e<br />
de um exercício lingüístico e atinge um sentido social. Mas, para isso, é necessário se construir um<br />
percurso em que se mescle conhecimento, sistematização, interesse, criatividade, identificação e<br />
necessidade, já que, segundo Clarice Lispector temos fome de saber de nós e grande urgência.<br />
Em nossa experiência enquanto educadora nas áreas de Literatura e Produção Textual, nos<br />
Ensino fundamental, Médio e Superior, pudemos observar que, muitas vezes, faltam, para os alunos,<br />
referências e fundamentos para o desenvolvimento da leitura e para concepção de textos verbais e não<br />
verbais. Os alunos, em grande parte das situações em que se propõe a construção textual, sentem-se<br />
compelidos_ talvez por conta de uma falsa idéia que o senso comum instaurou_ a esperar que a inspiração<br />
lhes derrame uma idéia, um texto pronto, sobre as suas cabeças.<br />
Diante disso, embasados em estudos elaborados por teóricos da teoria literária, explanaremos a<br />
sistemática de nosso trabalho, que se apresenta por meio de uma breve fundamentação teórica, extraída de<br />
exercícios de leitura, realizados em sala de aula e de estudos e da posterior produção de textos que<br />
relacionam arte e realidade.
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A Arte Flagrada em Nós<br />
O ato de se expressar se constituiu em um ―nó‖ no qual a humanidade está entranhada; é muito<br />
comum assistirmos a exibição do fracasso associada à falta de expressão, assim como também é muito<br />
comum, nós educadores, não nos responsabilizarmos por isso. Então, é precisamos antes de tudo,<br />
questionarmo-nos: como estamos desenvolvendo os processos pedagógicos estimuladores de ato do ato<br />
de expressão de nossos alunos? Quais são as linguagens que disponibilizamos para que eles construam e<br />
instalem as suas produções? Quantos leitores estamos possibilitando para apreciar suas produções a fim<br />
de estimula-los a produzir mais? Qual o sentido real, para os nossos alunos, de sua produção textual?<br />
Esses questionamentos são imprescindíveis, pois é importantíssimo para a estimulação do ato criador que<br />
haja a presença de espectadores para a obra, como podemos observar por meio das reflexões de<br />
estudiosos do ato criativo. Todo ato criador almeja encantar a platéia, a fim de corroborar essa afirmação<br />
citemos Manguel ao se referir às leituras dramáticas afirma que um dos benefícios da leitura dramática para<br />
o escritor do texto é saber que pelo menos não está falando para as paredes; e, por isso, talvez se estimule com a<br />
experiência e escreva mais. (291). O que também é afirmado por Geraldi em Unidades básicas do ensino de<br />
português:<br />
É preciso lembrar que a produção de textos na escola foge totalmente ao sentido de<br />
uso da língua: os alunos escrevem para o professor (único leitor, quando lê os textos).<br />
A situação de emprego da língua é, pois, artificial. Afinal, qual a graça em escrever um<br />
texto que não será lido por ninguém ou que será lido apenas por uma pessoa (que por<br />
sinal corrigirá o texto e dará nota para ele)? (2001:65)<br />
Assim sendo, um outro objetivo que perseguimos é dar destino a esses textos. No decorrer deste<br />
trabalho, apresentaremos várias estratégias por nós utilizadas para fazê-lo. É válido dizer que dentre as<br />
várias linguagens que utilizamos para dar destino a esses textos, as artes cênicas tiveram um papel<br />
preponderante, tanto na sua forma pura, o teatro, quanto na sua forma híbrida: vídeo, performances,<br />
apresentações orais. Essa escolha se deve ao fato de que:<br />
O gosto pela instrução depende então de muitos e variados fatores. Mas não obstante,<br />
há uma forma de instrução que causa prazer, que é alegre e combativa.<br />
Não fora esta possibilidade de uma aprendizagem divertida, e o teatro, em que pese<br />
toda uma estrutura, não seria capaz de ensinar.<br />
O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde que seja bom<br />
teatro, diverte (Brecht,2005:69).<br />
Além disso, sua função transcende a representação da realidade, pois é fruto de síntese, já que se o<br />
teatro é capaz de mostrar a realidade, tem de ser, também, capaz de transformar a contemplação dessa realidade numa<br />
fruição (2005:.206)também promove sínteses por meio das experiências que desperta.<br />
Sendo assim, o processo de leitura e produção de textos é infindável, pois a produção gera leitura,<br />
fruição, expressão e, consequentemente, um novo texto, escrito ou interiorizado; um novo texto, alimento<br />
de um novo homem, capaz e motivado para produzir e para expressar a sua produção. Acreditamos que<br />
essa prática que, por um lado, é simples, talvez seja um adjuvante na transmutação social, pois, a<br />
democratização das habilidades de expressão, com certeza, gerará uma revolução cultural e. a sociedade,<br />
para sobreviver a ela, precisar se modificar.
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Um breve colóquio com Bakthin: a questão dos gêneros na literatura<br />
“Tudo está em mudança; nada morre. O espírito<br />
vagueia, ora está aqui, ora ali, e ocupa o recipiente que<br />
lhe agradar...Pois o que existiu já não é, e o que não<br />
existiu começou a ser; e assim todo ciclo de movimento<br />
se reinicia.” (Ovídio)<br />
Ao iniciarmos o desenvolvimento dessa metodologia de ensino de produção textual,<br />
dialogávamos com os estudos de Motta em “Engenho e Arte da Narrativa (invenção e reinvenção de uma<br />
linguagem nas variações dos paradigmas do ideal e do real) 28 , que investiga e delineia o percurso da<br />
produção ficcional desde a sua origem, na antiguidade, até nossos dias. O trabalho de Motta tem por base<br />
teórica principal as obras A Natureza da Narrativa de Robert Scholes e Robert Kellog (1997) e Anatomia da<br />
Crítica Horthop Frye e constrói um estudo teórico que denominou ―árvore da narrativa‖; sintetizando de<br />
forma simplista, por meio ―dessa árvore‖, constituída por um percurso de estudos da história da literatura<br />
desde a antiguidade, o autor nos mostra como a narrativa surge e se ramifica e é recriada no decorrer da<br />
história literária. Concomitantemente, escrevíamos nossa dissertação de mestrado “Do mito à ficção<br />
romanesca: os motivos do amor e da morte e o arquétipo literário do amor imortal”. A partir desses estudos<br />
compreendemos a relação geradora que o mito estabelece com outras formas narrativas no decorrer da<br />
história da literatura. E, ao nos adentrarmos nos estudos desse processo de ramificação da criação literária<br />
e da composição da ―Árvore da Narrativa‖, observamos que poderíamos utilizar esse percurso como um<br />
caminho no ―bosque das possibilidades da escrita‖. Isso porque para Motta:<br />
O criador de uma obra literária revive o mito paradisíaco de retirar do esqueleto da<br />
árvore- mãe uma costela para a formação de sua criatura, dando-lhe vida, ao dotá-la de<br />
parte da memória do gênero artístico, com o sopro da invenção. Se a tarefa de dar a<br />
uma obra literária o direito de se ver florindo e compondo a copa da árvore-mãe de seu<br />
gênero artístico é um trabalho de difícil realização, é revigoradora a experiência de se<br />
caminhar junto com essa obra em busca de uma parte da sua infância perdida, inclusive<br />
como forma de compreendê-la melhor. Cada obra revive o seu passado perdido no<br />
jardim edênico de sua infância. (2000:3)<br />
Dessa forma, torna-se complexo e até mesmo ingênuo classificar e lidar com os textos segundo<br />
uma tipologia única, fixa, pré-definida e denominada, segundo algumas características marcantes; o fato é<br />
que os textos promovem interações entre tempos, espaços e culturas em uma extrema heterogeneidade dos<br />
gêneros do discurso e, por isso, cria-se uma consequëntemente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do<br />
enunciado (Bakhtin:2000:281).<br />
Sendo assim, a fim de não olharmos de maneira fragmentada e ingênua para a produção textual<br />
produzida no decorrer da história cultural da humanidade antes de iniciarmos a exposição alguns<br />
momentos do processo de desenvolvimento de nossa metodologia de leitura e produção textual é preciso<br />
compreender essa heterogenidade textual, segundo a teoria Bakhtiniana, que a compreende como formada<br />
por gêneros primários e secundários:<br />
Importa, nesse ponto, levarem em consideração a diferença essencial entre o<br />
gênero de discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário<br />
(complexo). Os gêneros secundários do discurso _ o romance, o teatro, o<br />
discurso científico, o discurso ideológico, etc._ aparecem em circunstâncias de<br />
uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída,<br />
principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de<br />
sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros<br />
28 Tese de doutorado defendida na UNESP- São José do Rio Preto, 1998.
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primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma<br />
comunicação verbal espontânea (2000:281).<br />
O texto ―Cobra Norato‖, criado a partir de uma lenda amazônica, mostra-nos de modo brilhante<br />
esse diálogo entre o mítico, o maravilhoso e lendário pode ser articulado e conceber um poema e que não<br />
é possível olhar para esse texto como se ele não fosse híbrido, como se fosse a forma pura de um<br />
discurso. Essa idéia foi constantemente explorada e pontuada durante os processos de leitura que<br />
motivaram a produção textual. Buscamos ensinar aos alunos que embora muitos textos estejam<br />
classificados como determinado gênero do discurso, em função de predominância de certas características<br />
_ sua essência é híbrida, complexa e a sua criação ocorreu mediante percursos profundos nas raízes da<br />
narrativa.<br />
Um outro exercício de leitura bastante interessante, tendo a observação dessa interação entre os<br />
gêneros foi desenvolvido a partir da música ―Faroeste Caboclo‖, pois o seu enredo traz nuances de todos<br />
os momentos da história da narrativa de origem oral.<br />
É importante aludir a esse processo de formação dos gêneros primários e secundários, a fim de<br />
reforçar nossa idéia de que é preciso dissecar, com nossos alunos, por meio da leitura e da análise textual,<br />
o processo de produção textual oral e escrita utilizado por outros produtores de textos, e mostrar-lhes<br />
como os textos se constituíram e reconstituíram sob a luz de diálogos, recriações, ramificações e<br />
influências no decorrer dos tempos. Essa prática se justifica pelo fato de que precisamos fazer o aluno<br />
vivenciar o processo de produção alheia, para se espelhar, adquirir segurança para construir o seu próprio<br />
discurso ou simplesmente para desmistificar a escrita, enquanto algo proveniente do maravilhoso, fruto de<br />
inspiração ou talento nato, dom derramado por divindandes.<br />
Nesse artigo, a fim de apresentarmos um recorte de nosso trabalho, descreveremos um plano de<br />
trabalho que utilizou a narrativa mítica como suporte dos processos de ensino-aprendizagem da leitura e<br />
da produção textual; desse modo, pretendemos ilustrar a forma como o sistematizamos, para o melhor<br />
aprendizado de nossos alunos e, portanto, apresentaremos uma seqüência de ações práticas, seguindo uma<br />
ordem de eleição de textos que coincide com um uma linha de terminologias construídas, utilizadas e que<br />
fazem parte do cotidiano escolar, a qual define os textos segundo características dominantes. Essa linha,<br />
inspirada na árvore da narrativa de Motta, cria a seguinte seqüência tipológica da história da literatura oral<br />
e escrita: mito/ epopéia/ tragédia/ comédia/ lenda/ conto de fadas/ contos maravilhosos/ fábula/<br />
apólogo/ romance de cavalaria e sua escolha se justifica pelo fato que:<br />
Formada pela evolução de uma linguagem artística específica, com a contribuição das<br />
obras de muitas línguas nacionais, a árvore da narrativa será retratada para<br />
acompanharmos alguns aspectos da trajetória dessa linguagem, cuja especificidade<br />
conduziu a seiva da arte aos embriões que constituíram e mobilizaram os traços dos<br />
seus paradigmas formais. Capazes de encurtar as distâncias e reduzir os tempos, mas<br />
deixando sempre uma abertura para as diferenças histórico-culturais, esses indicadores<br />
formais, na sua evolução, ao mesmo tempo que permitem redesenhar a árvore,<br />
recuperando o seu perfil genealógico, possibilitam reencontrar os elos e os nutrientes<br />
básicos de um parentesco formal nas obras que seguiram destinos próprios no processo<br />
de construção de um paisagismo local (1998:2-3).<br />
A metodologia segue, ainda, para o ensino de produção do texto narrativo contemporâneo, pelo<br />
desenvolvimento da retórica do discurso objetivo, científico, jornalístico, dissertativo; porém, nesse artigo<br />
optamos por recortar o processo e apresentá-la somente na vertente ficcional, com raiz na oralidade, na<br />
modalidade discursiva nomeada mito.
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Um estudo sobre o mito e seu deslocamento na história da literatura<br />
O percurso sistematizado para a produção do texto em prosa, na modalidade narrativa, teve início<br />
com a mitologia, já que, segundo nossos estudos, essa é a forma embrionária da narrativa. A partir dela,<br />
outras formas narrativas (ou não) são concebidas segundo tempo, história, manifestações culturais e<br />
necessidades didáticas de um povo.<br />
O mito nasce como uma narrativa de caráter sagrado, cuja finalidade é relatar acontecimentos<br />
ocorridos em um tempo também sagrado, o tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio (1972:11)<br />
Essas histórias surgem para justificar ou explicar fatos que fugiam à plausibilidade, pois os mitos<br />
narram como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, ―uma realidade passou a existir, seja uma realidade total,<br />
o cosmo, ou apenas um fragmento do mundo: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição<br />
(Eliade, 1972:11).<br />
Dessa forma, podemos afirmar que o mito será sempre a narrativa de uma “criação”, pois focaliza<br />
o momento da concepção do objeto narrado, com um relato que se pauta no modo como algo surgiu ou<br />
foi produzido e iniciou uma existência que alcança nossos dias ou, pelo menos, que lhe insere suas marcas.<br />
Na obra Aspectos do mito, o autor acima referido prossegue elucidando que a função do mito não se<br />
condensa somente em revelar as origens dos seres humanos, animais, vegetais, minerais, mas, também,<br />
como se desencadearam os acontecimentos primordiais, os quais influenciaram a natureza humana e<br />
tornaram o homem aquilo que ele é hoje, ou seja, um ser mortal (1989:17).<br />
Essa narrativa original cumpria uma função didática para o homem primitivo, à medida que, ao<br />
ensinar-lhe as histórias primordiais, ensinava-lhe a ―repetir os gestos criadores dos Seres sobrenaturais e, por<br />
conseqüência, a assegurar a multiplicação de um animal ou de uma planta‖. (1989:18-19)<br />
Assim sendo, segundo Eliade, a estrutura e a função dos mitos nas sociedades arcaicas<br />
configuram-se da seguinte forma: constitui a História dos atos dos Seres sobrenaturais; essa História é<br />
considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada ( porque é obra dos Seres<br />
sobrenaturais); o mito se refere sempre a uma criação, conta como algo começou a existir, ou como um<br />
comportamento, uma instituição ou um modo de trabalhar foram fundados; é por isso que os mitos<br />
constituem paradigmas de todo ato humano significativo; Conhecendo-se o mito, conhece-se a ―origem‖<br />
das coisas e, desse modo, é possível dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um<br />
conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, e o ritual faz com<br />
que o homem relembre o mito e o perpetue, quer narrando cerimonialmente o mito, quer efetuando o<br />
ritual a que ele serve de justificativa; de uma maneira ou de outra, vive-se o mito no sentido em que se fica<br />
imbuído da força sagrada e exaltante dos acontecimentos evocados reatualizados. (1989:23).<br />
É importante ressaltar que os mitos recordam constantemente que acontecimentos grandiosos<br />
tiveram lugar na Terra; eles fazem com que os homens resgatem esses eventos e os revivam<br />
imaginariamente, recuperando, em parte, o passado glorioso de seus antepassados, imbuindo-se de sua<br />
força sagrada, pois lembrar o passado é fortalecer-se com sua força sagrada.<br />
Malinowski afirma que nas comunidades primitivas, as histórias míticas exercem a mesma<br />
influência que a história sagrada e cristã, a qual é vivenciada também ritualisticamente, exerce influencia<br />
moral, orienta a fé e controla a conduta.<br />
Acerca dessa colocação, Mielietinski afirma que Malinowski enfoca o mito a partir da sua função<br />
pragmática, ou seja, como instrumento de solução de problemas críticos atinentes ao bem-estar do<br />
indivíduo e da sociedade, e como instrumento de manutenção da harmonia com os fatos econômicos e<br />
sociais. Malinowski sugere que o mito não é apenas uma história narrada ou uma narrativa de significação
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alegórica, simbólica. Para o crítico, ―o mito é vivenciado pelos aborígenes como uma espécie de escritura<br />
sagrada verbal, de realidade que influencia o destino do mundo e dos homens.‖ (1987:40)<br />
Lendo mitos<br />
Passado esse preâmbulo, iniciamos, junto aos alunos, em um processo dialógico, a leitura dos<br />
mitos para observar quais são seus elementos estruturais. Vale observar que nosso objetivo não é<br />
conceber um roteiro para a elaboração de um mito, mas sim de exercitar a leitura como um instrumento<br />
de investigação, de aquisição de conhecimento e de fundamentação da prática da escrita.<br />
O processo de leitura que elegemos como objeto para relatar nesse trabalho enfoca um mito<br />
cosmogônico, que nos conta como o cosmo começou a existir. No princípio reinava o caos, o<br />
fundamento do mundo, uma matéria informe. Segundo Lefreve Hesíodo descreve-o como um espaço aberto, uma<br />
extensão pura; mais tarde foi concebido como o “onde” primordial no qual todos os elementos da matéria já existiriam,<br />
embora latentes e desorganizados (1973:18)<br />
Nesse tempo primordial não havia tempo, nem espaço, nem seres, nem cheiros, nem luz, nada.<br />
Até que surge a primeira divindade sólida para organizar o universo.<br />
Como nos apontam os estudos sobre mitologia, a origem das histórias é oral, assim, muitas<br />
versões chegaram até nós transmitidas, de geração a geração, pela fala. A narrativa que escolhemos como<br />
instrumento de análise, mostra-se essencialmente dramática e, é composta por meio de uma linguagem<br />
muito poética, o que também foi levado em consideração, pois consideramos importante que o aluno<br />
tenha bastante contato com uma linguagem ―mais forte‖, como diria Bloom, pois essa oferece mais<br />
possibilidades de leitura, análise, bem como acaba por estimular a criatividade. É claro, que a mediação<br />
dessa leitura exige mais do educador, porém, as possibilidades de encantamento do leitor por meio do<br />
texto são muito mais latentes.<br />
Um outro elemento a se ressaltar é a ausência de uma delimitação temporal específica, há sempre<br />
a referência a um tempo antigo. Os elementos da natureza são personificados e divinizados nos mitos<br />
originais, como podemos observar na descrição dos referidos no texto em estudo: a Terra ―Gaia‖, a<br />
―Noite, treva profunda, Érebro, morada das sombras‖, ―Urano, o céu estrelado‖, as ―Montanhas‖, as<br />
―Ninfas‖ e ―Ponto, o Mar‖, Éter, luz que iluminaria os deuses nas mais altas regiões da atmosfera e ―Dia,<br />
claridade dos mortais, que, no espaço, se alterna com sua mãe para não cansá-la‖, Eros, o amor universal.<br />
Enquanto divindades são dotadas de um poder sobrenatural e a magia emana desse poder, os deuses não<br />
necessitam de objetos mágicos para desencadearem suas proezas, e cada um exerce uma função específica<br />
para a qual foi criado.<br />
Neste mito original, há a junção de duas divindades ―Terra e Céu‖ para o povoamento da Terra.<br />
Podemos observar que o antagonismo que propulsionaria o universo aparece expresso já na relação entre Gaia (a mãe-<br />
Terra), base sólida de todas as coisas, e Eros (o Amor), tênue princípio de todo impulso gerador (Lefreve, 1973). E,<br />
assim, essas novas personagens, preparam-se para viver seu drama ―uma raça violenta‖ animaram, deram<br />
alma ―anima‖ ao ―Palco que é o mundo‖.<br />
Vemos já nesse mito de criação a remissão à criação de personagens para encenar o drama da<br />
vida, esse povo violento, os Titãs são descritos como criaturas disformes que metaforizam a natureza<br />
humana. São eles, os ciclopes ―monstros de um olho só‖ e os Hecatônquiros ―gigante de cem braços e<br />
cinqüenta cabeças‖ sempre colocam obstáculos à ordenação da vida, representam os cataclismos que<br />
transformaram a face do mundo, preparando-o para receber as diversas espécies animais e, muito mais<br />
tarde, o ser humano.<br />
E a eles são delegadas muitas peripécias, como a façanha de Cronos, que corta os testículos do<br />
pai, tal era a sua insatisfação com o fato de Gaia gerar infinitamente e de os filhos a devastarem. A arma
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usada por Cronos, que significa tempo, foi uma foice que a própria Terra gerou. Cronos é insaciável. O<br />
tempo devora tudo:seres, momentos, destinos. Sem piedade. Sem apego ao que passou. O que importa é<br />
construir o futuro.E como Urano não morre já que é imortal, outra característica dos deuses, o que morre<br />
é o seu reino, seu domínio.<br />
Ao cairem sobre a Terra, os testículos se transformaram nas Irínias (ou Fúrias, símbolos da culpa de<br />
Cronos), os Gigantes e as Melíades. Ao caírem no mar, os sêmen do deus forma uma branca espuma, da<br />
qual nasce Afrodite (Vênus), a deusa do amor e da beleza.<br />
Neste trecho, podemos observar o germe da tragédia e da comédia, pois mãe e filho têm uma<br />
relação singular e, o filho quer matar o pai, por não suportar a existência dos irmãos devastadores, mas<br />
também por que não suporta que a mãe continue gerando infinitamente e, assim, castra o pai, impedindo a<br />
união sexual da mãe com o pai; por outro lado, Gaia, mulher vingativa forja uma foice para destruir o<br />
império de Urano, assim como o fará Medeia, mais tarde. O cômico também tem seu espaço no<br />
momento em que emerge do ato trágico de Cronos, a Vênus, a deusa do amor.<br />
Outro elemento a ser observado são as relações incestuosas existentes nos mistos cosmogônicos:<br />
Urano é marido e filho de Gaia, bem como é pai e irmão de seus filhos; Cronos junta-se a sua irmã Réia.<br />
Depois, surge Zeus, filho de Cronos, pai de todos os deuses do Olimpo e ordena o universo<br />
definidamente. E, dessa, forma: Zeus estabelecerá na Terra a base das relações entre todos os seres. Nem monstruosos,<br />
nem gigantescos, nem cegos como os primeiros filhos de GAia, os Olímpicos talvez correspondam miticamente, ao Homo<br />
Sapiens, na evolução das espécies. Ou seja: um ser consciente, falante, bípede e criador” (Lefreve,1973)<br />
Depois do nascimento de Zeus, o Olímpo será a morada dos deuses. Deus que foram<br />
concebidos à imagem e semelhança do homem, configura-se na personificação dos maiores anseios<br />
humanos: poder, imortalidade, perfeição das formas. É interessante notar que no Classicismo, apesar de<br />
ser um estilo em que a razão é predominante, os deuses aparecem poderosos, fulgurantes para representar<br />
o ideal de perfeição humana.<br />
Um outro aspecto dos deuses pagãos é que assim como os mortais, concebem ações que oscilam<br />
entre o bem e o mal.<br />
Posteriormente à leitura desses textos partimos para a produção textual que leva em conta fases<br />
de um processo que implica em: familiarização com o tipo discursivo em questão; leitura e análise textual,<br />
com fins de investigar as estratégias discursivas dessa modalidade composição textual; reflexão sobre o<br />
deslocamento temporal da história; investigação de sua existência na realidade sob a forma de outras<br />
linguagens que não sejam convencionalmente orais ou escritas; estabelecimento de diálogos intertextuais.<br />
Esse processo leva em consideração a necessidade de articulação dialética entre a cultura letrada e<br />
a cultura do aprendiz; portanto, constantemente, buscamos em um primeiro momento mostrar ao aluno o<br />
quanto essa modalidade textual está presente em seu cotidiano e que, por isso, dominá-la, conhecê-la em<br />
profundidade, é importante para a inserção social, para o desenvolvimento da autonomia e para a<br />
construção de saberes complexos que tornarão ao sujeito apto a atingir seus objetivos.<br />
Abaixo, apresentaremos uma seqüência de atividades propostas no percurso da produção textual,<br />
utilizando-se a mitologia como motivação. Vale lembrar que essas são algumas das atividades utilizadas e<br />
selecionadas para a exposição nesse trabalho; dependendo da turma, outros exercícios foram<br />
desenvolvidos; o importante é que a proposta de produção textual esteja sempre norteada sempre por<br />
quatro limiares: a leitura do texto mítico, outras linguagens presentes no cotidiano do aprendiz, a vivência<br />
do texto produzido por ele e a exposição desse texto para a comunidade, por meio de linguagens verbais<br />
ou não-verbais, privilegiando situações que possam antecipar as linguagens que terão de ser criadas na<br />
representação de papéis sociais.
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Práticas de Produção Textual<br />
I – Observar e discutir a ocorrência desses mitos na realidade para reforçar a idéia que os mitos são uma<br />
alegorização dos acontecimentos da vida do homem.<br />
II – Colocar as conclusões em um ―blog‖ da turma. A elaboração desse blog poderia se apoiar no blog de<br />
Frederic Hartley (http://oceusobreberlim.blogspot.com), pois esse nos revela um análise critico-poética da<br />
realidade e sua concepção parece dialogar com nossa metodologia de trabalho. Nesse blog há um diálogo<br />
interdisciplinar que promove a interação entre as várias artes (cinema, música, pintura, fotografia), a<br />
pesquisa e a reflexão, a partir de uma visão essencialmente crítica e criativa dos acontecimentos cotidianos,<br />
que constituem a história social. Nele, também poderão ser colocadas as produções resultantes dos<br />
trabalhos abaixo propostos.<br />
III - Roda de histórias<br />
Na obra Antropologia Estrutural Lewwis Strauss, ao relatar seus estudos em comunidades indígenas<br />
refere-se à importância das histórias para algumas comunidades; o autor conta que, em algumas tribos, o<br />
poder do contador só está abaixo do poder delegado ao chefe da tribo e para ser o contador, às vezes,<br />
estuda-se por até quarenta anos, pois o ―eleito‖ precisará conhecer todas as histórias referentes àquela<br />
comunidade, desde os primeiros ancestrais. Além disso, o poder sobre a contação oficial da história está<br />
garantido somente a aquele membro, ou a alguém que esse, por honra e mérito, tenha dado o poder de<br />
contá-la perante os outros integrantes da tribo em situações formais, ritualísticas. Nessas tribos, a história<br />
torna-se, então, talvez, o bem mais precioso que se pode adquirir ou receber.<br />
Inspirados nessa pesquisa antropológica, fizemos a inserção da contação de histórias em nosso<br />
trabalho, pois uma estratégia interessante para estimular a leitura é propor uma roda de histórias em que<br />
os alunos trazem um mito grego ou romano impresso e o conta para a turma. Nessa apresentação, é<br />
interessante que se busque explorar algumas técnicas de contação de histórias, como oscilar a entonação<br />
da voz de acordo com os acontecimentos do texto; por exemplo, se o acontecimento focalizado por algo<br />
alegre que a voz revele isso, por meio da altura, do tom agudo, se for trágico, então, que ela seja mais<br />
densa, grave. A expressão facial também deve ser explorada nesse exercício, pois é fundamental que o<br />
leitor tenha a sensação de que a história realmente ocorreu, é como se o contador fosse uma testemunha<br />
ocular dos fatos e levasse o leitor para esse espaço testemunhal.<br />
Em sua obra Contar Histórias: uma arte sem idade, Betty Coelho apresenta, sistematicamente,<br />
várias técnicas de contação e, por isso, essa obra foi uma das principais norteadoras dessa prática. Contar<br />
histórias é também uma oportunidade para que o aluno possa trazer também outros elementos que<br />
dialoguem com a sua história, seja uma pintura, uma escultura, uma fotografia ou qualquer outra<br />
linguagem que proponha uma ilustração ou uma intertextualidade com a história. Assim, eles já estarão<br />
desenvolvendo o espírito da pesquisa tão necessário ao processo de aquisição do conhecimento, bem<br />
como os exercícios intertextuais.<br />
É importante que ao propor esse tipo de exercício, o professor apresente para a sala a sua<br />
pesquisa pessoal. Assim, os alunos percebem a relação que essas histórias têm, de fato, com a realidade e<br />
o quanto precisam desse conhecimento para ler e entender várias textos que são apresentados pela mídia;<br />
essa exposição aguça-lhes o interesse, bem como os desafia a construírem suas próprias descobertas e<br />
expô-las para a sala.<br />
Vale ressaltar que como educador devemos sempre experimentar o exercício que propusemos ao<br />
aluno, assim podemos, por conhecimento causal, convencê-los do quão instigante é esse tipo de trabalho.<br />
Enquanto pesquisadora, podemos afirmar o quanto aprendemos e sobre mitologia e como ela está
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recriada e entranhada na realidade quando ―navegamos pelo Ciber-Olimpo‖ e o quanto precisamos desse<br />
conhecimento para ler e compreender os textos veiculados pela mídia eletrônica.<br />
Depois que cada aluno apresentar a sua história propõe-se que troquem os textos entre si, depois<br />
os tragam novamente para a escola, para fazermos uma coletânea de textos que ficará acessível a todos,<br />
para o uso.<br />
Abaixo, explanaremos alguns diálogos entre realidade e mitologia encontrados na internet, que nos<br />
foram de grande valia, pois causaram curiosidade, ótimas discussões e mostraram aos alunos o quanto<br />
saber essas histórias é fazer parte da democratização do conhecimento e o quanto aqueles que não sabem<br />
estão excluídos do diálogo cultural, político, globalizado que os iniciados no universo letrado travam entre<br />
si.<br />
Produzinho a partir do mito na roda de histórias<br />
Após a roda de histórias, pode-se propor várias atividades, cujos resultados serão expostos para a<br />
turma e, dependendo a natureza, para toda a escola. É interessante usar essa técnica de propor várias<br />
atividades para que o aluno escolha uma para desenvolver, assim, ele se sente com autonomia para eleger<br />
o que quer fazer e, isso, provavelmente, o motivará.<br />
Dentre os exercícios podemos citar:<br />
A) Leitura dramática e novela de rádio<br />
Depois da contação dos mitos, grupos se reúnem, escolhem um dos mitos e elaboram uma novela<br />
de rádio a partir da história. A produção dessa novela deve ser apresentada por meio da leitura dramática<br />
e da criação de sonoplastia para climatizar a história. Nos intervalos da novela, os alunos deverão criar<br />
propagandas que dialoguem com a história contada.<br />
B) Elaborar um poema a partir do mito que se contou e criar um sarau para que os poemas seja lidos ao<br />
som de música grega.<br />
C) Elaborar um desenho, uma história em quadrinhos ou uma releitura de uma pintura sobre mitologia.<br />
Posteriormente, deve-se digitalizá-la e transformá-la em um curta-metragem por meio do programa movie<br />
maker ou outro similar;<br />
D) Fazer esculturas de argilas ou massa de biscuit representando os personagens da história e seus vários<br />
movimentos. A partir dessas esculturas, a turma pode fazer um curta-metragem utilizando a técnica do<br />
―stop motion‖, que consiste em tirar várias fotos dos personagens em posições distintas, como se<br />
estivessem interagindo segundo o enredo da histórias; depois, essas fotos são colocadas no computador e<br />
apresentadas em sequência rápida; isso pode ser feito em programas simples como Power point ou, então,<br />
no programa flash.<br />
E) Pintar vasinhos de cerâmica ilustrando uma das história dos deuses.<br />
Esse exercício é interessante para se estudar, observar e construir as estruturas, os elementos e as<br />
seqüências do texto narrativo. Pois, para a pintura dos vasinhos será preciso estar os características<br />
principais da arte cerâmica grega e, posteriormente, dialogando com as concepções gregas de arte elencar<br />
os elementos como tempo, espaço, personagem, bem como a disposição dos mesmos no espaço<br />
concretizará a noção de início, desenvolvimento, clímax e desfecho e representará as seqüências. A prática<br />
deve ser iniciada por meio de uma exposição de gravuras de vasos antigos e da explicação da importância<br />
desses vasos como registro histórico-social, artístico e cultural. Uma ramificação da prática é que ao invés<br />
de fazerem a ilustração do mito original, que possam deslocá-lo para a atualidade, tal qual foi feito nos<br />
quadrinhos.
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F) Produção de propagandas a partir dos mitos<br />
A atividade de produção de propaganda tem como fundamento o mito do Minotauro e a análise<br />
das propagandas do ―Red Bull‖. Nesse exercício de leitura que se utiliza da teoria semiótica da imagem,<br />
analisamos as estratégias de manipulação e as ideologias promulgadas pela propaganda. Depois, pedimos<br />
para que os alunos escolham um dos mitos estudados e elaborem uma campanha publicitária para um<br />
produto que eles mesmos criarão. Essa campanha envolve: produção da embalagem do produto;<br />
estratégias de divulgação e observação da receptividade do produto pelo público – nesse item será<br />
necessário que elaborem ―gingos‖, propaganda para rádio, Tv, Jornais e <strong>Revista</strong>s, com linguagem<br />
adequada para cada tipo de mídia.<br />
G) Pesquisa e apresentação de seminário: o mito no cinema, na televisão e na música<br />
Para o desenvolvimento dessa atividade, utilizamos como motivação algumas cenas do filme<br />
―Matrix‖, a música ―Sampa‖ de Caetano Veloso e uma passagem de novela ou qualquer outro programa<br />
de TV em cartaz que utilize elementos mitológicos em seus enredos, o que é extremamente comum. Após<br />
a leitura intertextual dessas obras, pedimos para que os alunos, em grupo, pesquisem outras obras do<br />
cinema, da televisão e da música que se utilizem da mitologia em sua composição e as apresentem para a<br />
turma.<br />
H) Produção de um mito, utilizando as divindades como personagens e realização leitura dramática<br />
I)Encenando o advento da filosofia: pensando a realidade a partir dos mitos<br />
Essa prática tem como motivação a leitura e a reflexão do Mito de Prometeu e a apresentação de<br />
uma pesquisa em jornais e revistas feita pelo professor em conjunto com os alunos sobre: ―Outros<br />
Prometeus...‖. Ou seja, todos investigarão e refletirão sobre a existência de outros benfeitores da<br />
humanidade e quais são as conseqüências de seus atos e porque essas conseqüências existem. Após essa<br />
atividade, cada aluno escolhe a imagem de um ator social que é considerado um Prometeu e faz uma<br />
máscara representando-o. Posteriormente, deve fazer um exercício de empatia com essa personagem, e<br />
apresentar-se para o grupo como se fosse essa personagem. Para a apresentação, o educador pode<br />
estabelecer critérios para serem seguidos; nós pedimos para que os alunos falem basicamente<br />
características psicológicas, objetivos de vida e motivos da sua luta pessoal bem pelo da humanidade.<br />
Assim, a partir da análise desse mito, inicia-se a apresentação dos Prometeus da humanidade por meio de<br />
uma encenação com máscaras de papel machê.<br />
J) Livro de Mitos<br />
Para encerrar o ciclo de prática de produção textual<br />
1-Elaborar um mito sobre o surgimento da cidade em que moramos.<br />
2-Elaborar um mito sobre o nome do aluno.<br />
3-Juntar a turma em grupos, para que juntos, escrevam um mito, em forma de roteiro teatral,<br />
sobre o surgimento de algo que existe na realidade, esse roteiro deverá ser ensaiado e apresentado.<br />
No livro, estarão presentes todos os roteiros bem como as fotografias da peça.<br />
I- Leitura intertextual a parti da proposta de diálogos estabelecidos entre:Arte, quadrinhos e<br />
fotografia<br />
29 30<br />
29 Criação de Adão, 1550, Michelangelo. Afresco na Capela Sistina, Cidade do Vaticano, Roma, Itália<br />
30 A Criação do Cebolinha, 1994. Acrílico sobre tela
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V-Capas da <strong>Revista</strong> Veja<br />
31<br />
No desenvolvimento dessa atividade nossa intenção inicial era observar como a arte que dialogava<br />
com a mitologia e era utilizada pela revista Veja, já que nos lembrávamos de uma capa da revista que<br />
focalizava a Vênus de Botticcelli e da capa apresentada na atividade anterior. Tal foi nossa surpresa ao<br />
observamos que desde 1969 (data inicial de publicação do corpus a que temos acesso) a revista Veja,<br />
anualmente, sem exceções, dialoga com as imagens míticas, lendárias, fabulosas e maravilhosas criadas<br />
pelos homens ao longo de suas histórias. A revista, como nós a propusemos em nossa prática, promove,<br />
em sua interação discursiva com o leitor, constantes intertextualidades entre os gêneros textuais, com<br />
origem na oralidade, como mitos orientais e ocidentais, tragédias, comédias, epopéias, contos de fadas,<br />
fábulas, apólogos, romance de cavalaria (que denominamos árvore da narrativa).<br />
Assim, foi estimulante descobrir como a editoração da revista toma dos galhos da árvore da<br />
narrativa para produzir seus frutos, o que reforçou a necessidade de tornarmos esses textos acessíveis e<br />
domináveis para o leitor; pois, somente por meio do conhecimento profundo dessas histórias e do seu<br />
caráter didático, político, ideológico é que o leitor pode ser hábil, e enxergar as estratégias de manipulação<br />
da imprensa escrita; manipulação essa que nem sempre é promovida somente pelo texto verbal, mas o faz,<br />
principalmente por meio dos textos não-verbais nela contidos, tal qual podemos observar nas capas e<br />
também por meio da produção fotográfica que documenta as reportagens.<br />
Além disso, auxiliou-nos na argumentação de que essa fundamentação teórica, literária e prática é<br />
realmente de extrema importância na formação do produtor de textos.<br />
Esse percurso que a revista faz anualmente pela história da narrativa será delineado no decorrer<br />
do trabalho e à medida em que expusemo-nas aos aprendizes.<br />
(Veja 01/01/98) (Veja 07/04/04) (Veja 28/08/02) (Veja 30/05/01) (Veja 30/02/03)<br />
31 Foto extraída do site: www.olhares.com
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(Veja 24/12/03) (Veja 31/10/01) (Veja 2/07/00) (Veja 30/05/01)<br />
Considerações Finais<br />
Por meio de nossos estudos e experiência pedagógica, concluímos que a Literatura figura como<br />
adjuvante do processo de construção do discurso verbal e não-verbal, por apresentar em seu produto (o<br />
texto literário) o processo criador e a expressão da reação estética, proporcionada pela relação de artistas<br />
com sua realidade.<br />
Dessa forma, a Literatura é uma manifestação artística que também ensina, e o faz por intermédio<br />
de uma didática da ilustração e das técnicas de criação, que deverão ser aventadas por procedimentos de<br />
leitura e análise textual.<br />
Sendo assim, neste trabalho, relatamos como utilizamos o texto mítico para nortear a concepção<br />
do ato criador de nossos aprendizes, para assim, cumprir o último objetivo de educare, que é ―fazer sair‖<br />
textos criativos e bem elaborados, a fim de que essa experiência possa funcionar como ponto de partida<br />
para o desenvolvimento do trabalho dos professores responsáveis pelo desenvolvimento dos processos de<br />
leitura e de produção e, que possam fazê-lo a partir do mito ou de outros gêneros literários.<br />
Bibliografia:<br />
DIETZSCH,MJ. SILVA, M.A.S.S. Itinerantes e itinerários na busca da palavra. Cad. Pesq., São Paulo, n.88, p.55-<br />
63, fev.1994.<br />
_____________.(org.) Espaços da Linguagem na Educação. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,1999.<br />
ELIADE, M. Mito e Realidade. Trad.de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, l972.<br />
__________. Aspectos do mito. Trad. de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />
FRYE, N. Anatomia da Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.<br />
GERALDI, J.W. (ORG.) O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,3ª. Ed, 2001.<br />
_____________. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />
MIELIETINSK, E. M. Os arquétipos Literários. Trad. Aurora F. Bernardini, Homero<br />
Feitas, Arlete Cavaliere. Cotia, São Paulo. Ateliê Editorial, 1998.<br />
_________________. A poética do mito. Trad. de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro:<br />
Forense universitária, 1987.<br />
MOTTA, S. Engenho e Arte da Narrativa (invenção e reinvenção da linguagem nas variações dos paradigmas<br />
do ideal e do real. Tese de doutorado. São José do Rio Preto, 1998.<br />
READ, H. A Educação pela arte. São Paulo, Martins Fontes, 1982.<br />
SCHOLES R., KELLOG, R. A Natureza da Narrativa. Trad. Gert. Meyer. São<br />
Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1997.<br />
VYGOTSKI,L.S. Psicologia Pedagógica. Trad. Claudia Schileing. Porto Alegre: Artmed, 2003).<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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VALORES NA ESTRUTURA E NA ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO ESCOLAR:<br />
ALGUNS PONTOS PARA REFLEXÃO<br />
Pedro Braga Gomes 32<br />
Resumo: Este artigo consiste no objetivo de auxiliar na identificação do cotidiano social e escolar<br />
através de alguns pontos de reflexão da organização e das linhas condutoras da política em<br />
educação, ensino e aprendizagem que ocorrem na escola e fora dela.<br />
Palavras Chaves: Cotidiano social e escolar, política em Educação ensino e aprendizagem e<br />
avaliação.<br />
Abstract: This article consists at the reflection of availing at its detection from the everyday society<br />
and school right through a few points as of reflection in the organization of the lines bearer from<br />
the education, I school and apprentice plumber than it is to occurring at school and abroad from it.<br />
Key-words: Everyday society life and from the school, politics and apprentice and assessment.<br />
―A EDUCAÇÃO é permanente não porque certa linha ideológica<br />
ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam.<br />
A EDUCAÇÃO é permanente razão, de um lado da finitude do<br />
ser humano do outro, na consciência que ele tem de sua finitude.<br />
Mais ainda, pelo fato de, ao longo da História, ter incorporado à<br />
sua natureza não saber que vivia, mas saber que sabia e, assim,<br />
saber que podia saber mais. A EDUCAÇÃO e a formação<br />
permanente se fundem (...), o ser humano jamais pára de Educarse<br />
(...). A melhora na qualidade da EDUCAÇÃO implica na<br />
formação permanente dos Educadores. E a formação<br />
permanente se funde na pratica de analisar a prática. É pensando<br />
a sua prática que, naturalmente com a presença de pessoal<br />
altamente qualificado, que é possível perceber embutida na<br />
prática uma teoria não percebida ainda, pouco percebida ou já<br />
percebida, mas pouco assumida.‖ Paulo Freire – Política e<br />
Educação.<br />
Neste começo da minha reflexão penso que é relevante uma digressão da história, pois<br />
assim ela mesma poderá eficazmente nos auxilia a apontar caminhos para o estudo da organização e<br />
autonomia da instituição escolar e diferentes métodos que foram adotados no ensino educacional<br />
brasileiro, inseridos nos binômios: sociedade – educação.<br />
A sociedade grega exemplificou para nós do ocidente valores altamente significativos. A<br />
Filosofia Grega é até hoje para nós mortais do mundo ocidental referência para os estudiosos da<br />
área das humanidades como um todo. A sua cultura nos vem mesmo a si impor ao domínio<br />
romano e se perpetuar de diferentes maneiras.<br />
O pensamento de Platão influenciou grandemente a concepção teológica cristã. Sendo este<br />
traduzido para a Igreja pelo Santo Agostinho, partindo de uma concepção de dois mundos<br />
32 Filósofo e Professor. Mestre em Educação. Membro do núcleo de estudo e pesquisa sobre a pedagogia do<br />
sujeito-NEPEPES (www.nepepes.com.br). Contato: ocuidado@hotmail.com.
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existentes no pensamento, a saber: através da gnosiologia, ele elaborou a sua filosofia e a<br />
fundamentou na existência de dois mundos que a denominou de dualismo ontológico. Esta filosofia<br />
permanece até o nosso tempo, em especial atenção para nós ocidentais.<br />
A cultura grega é um marco histórico do saber e do conhecimento caracterizados, por<br />
vezes, até mesmo como erudição.<br />
A Universidade ocidental é um exemplo destas expressões e teve sua origem na<br />
―quadrivium‖ da idade média ou medieval: filosofia, direito, teologia e medicina.<br />
As conquistas da Europa pelos bárbaros estabeleceram outra perspectiva: o poder dos<br />
aletrados, aqueles que não tiveram qualquer contato com o conhecimento, segundo a tradição<br />
grego-romana, mas que impuseram o seu modo de ver e de agir e alteraram os rumos de sociedade<br />
e de países.<br />
A instrução e o ensino passaram então a ter algum sentido social, quando se iniciaram os<br />
fundamentos da economia e do Estado moderno. Na sociedade daquele tempo, onde o status<br />
advinha da hereditariedade, a instrução formal era considerada supérflua.<br />
Com uma exceção inicialmente do clero, que, obrigava ao celibato, não poderia ter status<br />
abertamente hereditário. Faltando utilidade social, não havia porque ensinar a ler aos camponeses<br />
servos da gleba, ás mulheres, nem mesmo aos nobres. Só estudavam aqueles que iam dizer a missa<br />
em latim e que não teriam seus cargos definidos por serem filhos daqueles que já exerciam essa<br />
profissão.<br />
De contra partida, os reis e potentados precisavam julgar, exercer o poder hoje atribuído ao<br />
judiciário. Necessitavam de pessoas que soubesse e fosse capaz de interpretar as leis a fazer<br />
contabilidade dos seus impostos. A escola como podemos perceber não tinha status social. Seu<br />
objetivo era criar uma linha de transmissão da ideologia que manteria a sociedade e o ―status quo‖ a<br />
serviço dos nobres senhores<br />
As constantes mudanças históricas entre os séculos XV – XVI abalaram toda ordem<br />
instituída. O mercantilismo, os grandes descobrimentos e os inventos interferiram profundamente<br />
na organização da sociedade. Era necessário para a burguesia encontrar novos caminhos para a<br />
manutenção do ―Status quo.‖<br />
Com as teses do liberalismo, como vimos anteriormente, de individualismo, liberdade,<br />
igualdade, oportunidades iguais, propriedades e democracia, foram eficientemente assumidas e<br />
perduraram revigoradas para o exercício do poder.<br />
Na sociedade de hoje, a psicologia dos dons, nesta trilha justificou suficientemente a<br />
dominação ideológica mediante a teoria da diferenciação das aptidões e das capacidades individuais.<br />
Os indivíduos são naturalmente diferentes, por isso são destinados a exercícios de pápéis sociais<br />
também distintos. Neste particular o pensamento de Platão assumiu um papel de fundamental<br />
importância.<br />
A diversificação das escolas para os ricos e outro modelo para a classe dos dominados,<br />
garantiu então a manutenção da hierarquia social. A descriminação escolar manteve e incrementou a<br />
segregação social. Dispositivos presentes na legislação expressam esta ideologia, a saber:
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―Somente a escola básica é pública e obrigatória‖ – o que vale dizer que<br />
somente a sub escola é direito de todos;<br />
Ensino técnico para formar mão de obra braçal ou de exceção e o<br />
superior para formar cidadãos para a concepção;<br />
Atividades reduzidas nas escolas e nos currículos escolares de modo a<br />
permitir que a diferenciação social se faça em estudos fora da escola.<br />
Uma outra característica da época é a do uso do livro didático como veículo de transmissão<br />
de conhecimento científico, aberto a todos os cidadãos que possam ler. As enciclopédias tentaram<br />
colocar toda a ciência como um músico tem a partitura. Mesmo sem saber compor uma partitura o<br />
músico pode reproduzi-la. O professor com um bom livro didático pode fazer uso seguindo-a<br />
como uma partitura, podendo-se assim ensinar qualquer coisa e chegar a um maior número possível<br />
alunos ao mesmo tempo.<br />
A escola recebe os aspectos da fabrica de formação técnica e profissional e de escada de<br />
ascenção social. O professor como funcionário do Estado, deve repassar a ideologia das aptidões e<br />
selecionar os mais adequados para seguir adiante.<br />
Com uma forte influência de uma educação européia, de maneira especial à francesa, até o<br />
inicio dos anos 60 do século passado, o Brasil passou a receber, a partir de então, influencia do<br />
ensino norte americano.<br />
Com a formação da sociedade americana formada pela erradicação da sociedade européia,<br />
se constituíram numa unidade de vida. Tomando e ocupando a terra tomada aos índios podiam<br />
produzir a riqueza, desenvolvendo o trabalho árduo e mediante a exploração da mão de obra<br />
escravizada.<br />
A necessidade de uma mão-de-obra especializada para o avanço da produção econômica,<br />
fez com que se criassem novas formas de agir. Os novos colonos recém chegados da mesma<br />
maneira que os primeiros tomaram as terras indígenas assumissem seus próprios negócios. Fez<br />
necessário instalar uma nova formação de tal forma que os novos colonos estivessem impedidos de<br />
exercer senão a de trabalhos nas fábricas e nas fazendas.<br />
Uma escola de tempo integral devia abranger toda a população infantil, sem exceção de<br />
ninguém, para que não ficasse semente da forma de vida anterior. Onde todas as crianças na escola,<br />
os seus genitores pudessem trabalhar nas fábricas. Todas estando estudando o dia todo<br />
aprenderiam a ser apenas operários e funcionários, empregados obedientes e servis.<br />
Com relatos que nos chegam da época, os reformadores estabeleciam que:<br />
―um dos mais importantes objetivos do sistema escolar centrado no Estado era<br />
formar a nova classe trabalhadora para o crescimento industrial. As escolas<br />
deveriam imbutir os padrões de comportamento relevantes para os trabalhos<br />
nas fábricas ao invés dos necessários ao trabalho nas fazendas e no artesanato‖.<br />
Antonio Maria Alves de Siqueira – História da Filosofia da Educação (1948,<br />
p. 25).<br />
O padrão de relevância para o trabalho nas fábricas era o senso de tempo e de autoridade.<br />
Os reformadores imaginaram que se as crianças pudessem ser doutrinadas a freqüentar as escolas<br />
regularmente e compreender a importância da pontualidade, poderia deste modo chegar no horário<br />
estabelecido ao trabalho. Se pudesse responder ao sistema de atribuição de pontos da sala de aula e<br />
submeter-se à autoridade do professor tornar-se-iam trabalhadores obedientes. A escola toma então<br />
a feição atual. É a sala de aula, é a recepção da fábrica.
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Esta influência chegou ao Brasil por várias portas. No final do século XIX e começo do<br />
século XX, através de missões protestantes que fundaram escolas. Através de acordos de assistência<br />
técnica. Mas ela mesma se torna patente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em<br />
1961, com a queda do latim, a substituição do francês pelo inglês e introdução, ao menos formal, da<br />
orientação educacional.<br />
O objetivo, não declarado, é o da linha de montagem. Professores rapidamente treinados<br />
para repassar conhecimentos pré-estabelecidos em forma de planejamentos constituídos de<br />
objetivos estratégicos, técnicas e controle de comportamentos observáveis e mensuráveis.<br />
O professor como o operário fabril, é uma peça na engrenagem pré-projetada por<br />
especialistas: execute sua função e será por ela remunerado. O professor-operário recebe cada vez<br />
menor salário, qualifica-se cada vez menos, faz greve é reprimido com corte do salário e pela<br />
polícia. É transferida para o empresário privado a tarefa de administrar essa mão-de-obra aviltada.<br />
As ―melhores escolas‖ são freqüentadas pelos mais abastados. Freqüentar escola pública de<br />
ensino fundamental e médio é para proletários. Ser aluno de escola pública é ―passar recibo no<br />
atestado de pobreza, é o caminho seguro para o fracasso no vestibular e na vida‖.<br />
Comparativamente a escola por sua vez se organiza e se estrutura dessa forma. As crianças<br />
ingressam na escola mais cedo. Os alunos ficam crescentemente mais tempo na escola, fazendo,<br />
sistematicamente as mesmas coisas. O calendário escolar tem sido prolongado, mesmo sem as<br />
condições mínimas de atuação de alunos e professores dentro das escolas.<br />
Com isso aumentaram – se as exigências e controle de freqüência de alunos e professores e<br />
consequentemente a todos os demais servidores que nelas se integram. Aumento crescente da<br />
burocracia no sistema educacional dentro e fora da escola, o que vale dizer de hierarquia,<br />
subordinação, dependência e padronização.<br />
Os regimes escolares, principalmente no ensino infantil, fundamental e médio, são<br />
padronizados, embora se anunciem que cada escola deva elaborar seu regimento interno conforme<br />
as suas necessidades; as verbas para escolas públicas para capital e custeio, manutenção e expansão<br />
do ensino e de atuação da escola cuidam de anular a autonomia apalavradamente concedida.<br />
Considerando tais elementos pode-se dizer que as instituições escolares ou chamadas de ensinos do<br />
pré-escolar à universidade têm similares referencias de organização e que as diferenças ficam por<br />
conta do nível das classes sociais atendidas e das atividades que exercem.<br />
As Universidades e as Escolas Técnicas e outras têm níveis diferentes de autonomia se<br />
comparadas com as demais instituições públicas de ensino fundamental e médio, no entanto estão<br />
se integrando rapidamente à política governamental liberal expressa nos preceitos e conceitos de<br />
―(dês) construção do patrimônio público‖ e de se fazer cada vez mais um ―Estado mínimo‖.<br />
O incremento do empresariado no ensino a partir dos anos 60, principalmente, tem<br />
produzido instituições, redes de ensino e de escolas com novas facetas. A política governamental de<br />
forçar uma aposentadoria precocemente e da proibição de contratar docentes aposentados para<br />
estas instituições, principalmente as públicas, têm contribuído enormemente com as instituições<br />
privadas e empresas que contratam professores e pesquisadores aposentados, na sua grande maioria<br />
doutores com uma larga experiência internacional.
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Com isso o corpo docente das Universidades Públicas até este momento sobrepujou em<br />
titulação e formação ao das instituições privadas, no entanto, não serão necessários mais do que<br />
alguns poucos anos para que este quadro se reverta com mais intensidade e o que é mais grave, sem<br />
qualquer custo para os cofres das instituições privadas. Será que esta foi à estratégia liberal? Penso<br />
que sim.<br />
O capital, ou qualquer outro nome que se queira atribuir ao sistema em que a exploração,<br />
acumulação, concentração e empobrecimento da população são crescentes, e o liberalismo que<br />
conduz a descriminação e exclusão social, fragmentação do trabalho, hétero gestão e dominação<br />
constituem o ―ambiente‖ em que se vive, mas não são necessariamente determinantes da ação<br />
educativa.<br />
A organização escolar, as metodologias e a avaliação em particular, ao mesmo tempo em<br />
que produzem a ideologia dominante e a reforçam, por sua vez, produzem e incrementam uma<br />
dimensão institucional que responde aos interesses imediatos de poderes que os dirigem e<br />
consequentemente, que predominam na sociedade.<br />
Foram introduzidas avaliações na universidade, no ensino fundamental e médio<br />
respectivamente, que determinam de certa maneira as novas estruturas institucionais e da sua<br />
própria autonomia organizacional.<br />
O Exame Nacional de Ensino Médio, comumente chamado de ENEM, cujos resultados<br />
estão sendo utilizados no ingresso do ensino superior e ENADE, aplicados aos graduados ao final<br />
do Curso de Graduação por amostragem, certamente acabarão por produzir uma nova modalidade<br />
de ensino, de curso, e de instituição de ensino médio e superior, conforme os dados divulgados<br />
recentemente pelo MEC (2011).<br />
Os cursinhos, preparatórios para o concurso do vestibular influenciou profundamente a<br />
organização do ensino médio no Brasil. Certamente estas instituições criaram cursos preparatórios<br />
para estes fins, ―o ENADE‖ na graduação é só uma questão de tempo.<br />
Cursos estes, que muito provável irão alterar a organização e o ensino de graduação, e irão<br />
ainda determinar a padronização do ensino fundamental, médio, em médios e longos prazos.<br />
O resultado na minha avaliação é o da mediocrização mais ainda do ensino e da<br />
aprendizagem e muito contribuirão para a sujeição das instituições educacionais aos objetivos e<br />
metas econômicas e ―políticas assumidas‖, na feliz expressão do Professor João Gualberto<br />
Carvalho de Meneses, pelos nossos governantes.<br />
Consequentemente o ensino médio deixará ainda mais de ter o seu objetivo próprio e<br />
passará a ser preparatório para a ―avaliação seriada‖, como tem sido preparatório para o concurso<br />
vestibular, visando ao ingresso no ensino superior. A perspectiva danosa de seleção, que criou o<br />
concurso vestibular, agora passa a ser natural.<br />
Portanto, as discussões até aqui ditas, têm como objetivo principal auxiliar a identificação<br />
no cotidiano social e escolar a da sua autonomia e organização nas linhas condutoras da educação,<br />
do ensino e da aprendizagem que ocorrem na escola e fora dela. O cotidiano escolar, não somente<br />
os anúncios oficializados apresentam as finalidades e os objetivos que realmente estão sendo<br />
buscados na educação e no ensino nas instituições.<br />
Carecemos da visão profética, da mesma de que teve Anísio Teixeira, Mario Pires Azanha,<br />
Paulo Freire, Caio Prado, Florestan Fernandes entre outros, que acreditaram na possibilidade de<br />
todos os homens serem capazes de conduzir a própria vida em sociedade como iguais em direitos.
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Por uma educação que possibilite aos jovens a iluminação necessária para conduzir o sentido<br />
humano da própria existência.<br />
Isto não é diferente do que disse o nosso Mestre Jesus (apud GOMES, 2008, p.11):<br />
―Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância‖ (Jo 10,10),<br />
―vós sois a sal da terra e luz do mundo‖ (Mt5, 13 ss).<br />
Não é humano e nem justo desconsiderar o futuro, não é cidadania, esquecer o destino da<br />
nossa juventude. Como bem disse Padre Antônio Vieira, é o momento de reafirmar ―não vos peço<br />
mendigando, mas vos exijo raciocinando‖.<br />
Conclamamos, pois, em nome do Estado Democrático de Direito, dos vinte e cinco anos<br />
quase da nossa Carta Magna de 1988, dos sessenta anos dos Direitos Humanos no Brasil e em<br />
nome da História, em nome da esperança que a todos nos alimenta, em nome da razão,<br />
conclamamos educadores e governo, administradores públicos e família, sociedade organizada e<br />
cidadãos, encontremos caminhos e projetos para cuidar da nossa juventude.<br />
A educação não prepara para segui-la, mas preparam os escolhidos, os que nela se<br />
predisponham a cuidar e a colocar o outro, os indefesos e os menos favorecidos como prioridade<br />
de vida. Daquilo que não se conhece e não se abre a conhecer não se pode amar, assim nos ensinou<br />
SANTO AGOSTINHO. E que tempos mais tarde se tornou bandeira da grande humanista de que<br />
o século XX conheceu HANNAH ARENDT e que até bem pouco tempo esteve entre nós de<br />
―pensar e agir pelo amor do mundo‖.<br />
Ocupando boa parte de seu tempo na busca de experiências políticas, procurando as<br />
brechas que poderiam vir revolucionar a política da era moderna. Como ela mesma disse tempos<br />
depois: ―o poder começa onde o verdadeiro segredo e o oculto se apresentam ou se manifesta‖.<br />
Este é o pacto primordial que padece de alguma enfermidade, é o de não ser objeto de<br />
afeição de cada morador desta terra abençoada por Deus. O país do futebol, do carnaval e da beleza<br />
natural entre outras. E neste sentido o autor de o Pequeno Príncipe nos deixou um grande<br />
ensinamento ―somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos‖.<br />
Referências<br />
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais Introdução aos Parâmetros<br />
Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF. 1997. Primeiro e Segundo ciclos do Ensino Fundamental;<br />
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais;<br />
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino<br />
Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias – Filosofia, Sociologia e História. Brasília, MEC/SEB, 2006;<br />
MEC/SEF. 1997. Primeiro e Segundo ciclos do Ensino Fundamental. Programa Educação Inclusiva:<br />
Direito à Diversidade – MEC – SEESP/Brasília/DF – 2007;<br />
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Artigos: 5º; 37º ao 41º; 205º<br />
ao 214º; 227º ao 229º. Brasília. DF Senado 1988;<br />
Lei Federal nº 9.394, de 20/12/96 – Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional;<br />
Lei Federal nº 8.069, de 13/07/90 – Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Artigos 53 ao 59<br />
e artigos 136 ao 137;<br />
SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o ensino<br />
de Filosofia para o Ensino Médio. São Paulo: SE, 2008<br />
(www.rededosaber.sp.gov.br/portais/portals/18/arquivos/prop_filo_comp red_md_20_03.pdf), 10 de<br />
fevereiro de 2011;<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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O CINEMA E A CAVERNA: LUZES E SOMBRAS DA REALIDADE E DA EDUCAÇÃO<br />
Patrícia Colavitti Braga Distassi<br />
Profª Drª FACERES/USP<br />
Adalberto Miranda Distassi<br />
Prof. Msc. FACERES<br />
Resumo: O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o cinema e seu papel mediador na sala<br />
de aula. Ao investigarmos o cinema, podemos observar que ele transcende a condição de narrativa<br />
verbo-visual e alcança patamares elevados dentro do universo da educação, da arte, da crítica, da<br />
comparação de situações e do espelhamento da realidade social. Para ilustrar essa afirmação,<br />
fizemos uma recorte do obra ―A Sociedade dos Poetas Mortos‖ e propusemos uma leitura<br />
comparada entre ela e o Mito da Caverna de Platão.<br />
Palavras-chave: Cinema; Sociedade dos Poetas Mortos; Mito da Caverna; Educação.<br />
Abstract: This paper presents a reflection on cinema and its mediating role in the classroom. By<br />
investigating the filme, we see that it transcends the verbal-visual narrative and reacjes high levels<br />
within the realm of education, art, criticism, and comparison situations mirroring social reality. To<br />
illustrate this afirmation , we made a CUT of the filme ―The Dead Poets Society‖ and proposed a<br />
comparative readinf betwenn it and the Myth of Plato´s Cave.<br />
Keywords: Cinema; Dead Poets SocietY; Myth of the Cave; Education.<br />
Um dueto de imagens: cinema e escola<br />
Ao olharmos de maneira investigativa para o objeto ―cinema‖ 33, podemos observar que em<br />
uma sociedade ele se revela de maneiras distintas, dependendo da situação em que está inserido ou<br />
que pretende representar ou refletir, possibilitando, dessa forma, visões didáticas, informativas,<br />
epistemológicas da realidade e da arte, as quais se configuram em possibilidades de conhecimento a<br />
partir de uma experiência dada.<br />
Assim, segundo o Prof. Dr. Amaury C. Moraes 34, o cinema pode ser compreendido como<br />
objeto de arte, à medida que possibilita uma ―experiência estética‖, entendendo-se como tal, tudo<br />
aquilo que modifica o foco de nosso olhar para a realidade; enfim,a partir do contato com o objeto<br />
de arte, nossa percepção de mundo é transformada. Há também o cinema que se propõe a entreter;<br />
esse tipo de manifestação cinematográfica reproduz o mundo, não o sintetiza por meio da arte e,<br />
conseqüentemente, não nos possibilita um olhar especial para o universo que nos circunda. E, por<br />
fim, vale citar os filmes de entretenimento e arte, os quais, apesar da sugestão do entretenimento,<br />
propiciam a reflexão.<br />
No contexto escolar, o sentido da inserção do cinema deve se construir pela consciência da<br />
necessidade de se propiciar aos alunos uma experiência estética, pela necessidade de se apresentar e<br />
de se conhecer o mundo de forma diferente bem como pelo desejo de buscar o prazer no encontro<br />
dos sentidos implícitos e explícitos do filme.<br />
Assistir a um filme e desvendá-lo é treinar o olhar de descoberta, é poder analisar a visão da<br />
sociedade em relação ao flagrante do cotidiano que compõe o enredo, é poder se distanciar para<br />
observar que a cena que está fora do quadro ―realidade‖ influencia a cena que está dentro do<br />
quadro ―ficção‖; fora do quadro pode estar uma razão sociológica, psicológica ou poética, e dentro<br />
dele, está a concretude figurativa da sociologia, da psicologia, a própria poética.<br />
33 Estamos nos referindo ao cinema que se constrói a partir de um processo de intensa elaboração.<br />
34 MORAES, A.C. Anotações da aula do curso Linguagem, Cultura e Educação. São Paulo: USP, 2003.
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Por isso, o cinema se propõe não somente como fonte de entretenimento, reflexão ou<br />
experiência estética, mas também como fonte de pesquisa, pois, o objeto de pesquisa deve referir-se<br />
a uma situação dada na realidade e o filme capta essa situação. Então, como objeto de pesquisa, ele<br />
pode ser utilizado como:<br />
_ Tese: levar e comprovar a mensagem.<br />
_ Espelho: representação da realidade.<br />
_ Arte: síntese e superação da realidade.<br />
_ Crítica: pretensão de mudar uma situação.<br />
_ Comemoração: valorização de um tipo de educação.<br />
_ Comparação: educação comparada.<br />
No entanto, ainda hoje, cinema e televisão apresentam-se como objetos estranhos em sala de<br />
aula, pois, apesar de terem (dependendo da escolha feita pelo professor) as funções intelectuais<br />
acima aludidas, não são entendidos pela sociedade como fonte importante de conhecimento<br />
epistemológico e ontológico.<br />
Há, ainda, professores, que por falta de informação, utilizam o filme em sala de aula apenas<br />
como entretenimento, gerando a idéia equivocada de que a escola se propõe a estender o<br />
divertimento e o entretenimento proporcionados, para o aluno, pela sua casa, para a sala de aula;<br />
assim, a ausência de um planejamento pedagógico em que se inclui o filme aleatoriamente, exclui-se<br />
a função didática ou epistemológica do diálogo que esse propõe com o real, gerando a insatisfação<br />
dos pais e o prejuízo do processo educacional.<br />
Sendo assim, é válido ressaltar que é preciso fazer, antes da projeção do filme, a elaboração<br />
de um plano de trabalho, com objetivos claros relacionados ao filme, utilizando-o como mediador<br />
do processo de ensino-aprendizagem de conteúdos específicos; deve-se expor para os alunos os<br />
objetivos didáticos da atividade, dentre eles, a necessidade do contato com a experiência estética e,<br />
por fim, uma avaliação, a qual pode se configurar em um trabalho de reflexão, a elaboração de um<br />
painel, a pintura de um quadro, a criação de uma obra de arte tendo o filme como motivo<br />
inspirador, a montagem de um documentário, enfim, uma estratégia de avaliação em que as<br />
informações e ideias geradas pela obra transfigurem-se em sabedoria e em ação prática por ela<br />
gerada.<br />
Ao focalizarmos nosso olhar para a relação cinema X escola, alguns questionamentos são<br />
suscitados: ―Como o imaginário social representa a escola?‖, ―Qual é a idéia de representação que<br />
esse imaginário social faz da escola?‖<br />
Os filmes, inicialmente, configuram-se como ―reflexo‖ da visão que a sociedade tem da<br />
escola, sobre o que ela é, ou deveria ser e, em um segundo momento, eles podem também propor<br />
―influências‖, e, a partir daí, mudam a concepção, a percepção do receptor, possibilitam a<br />
―experiência estética‖.<br />
Há construções cinematográficas que pretendem ser mais reflexo e outras apresentam mais<br />
possibilidades de influência, cabe ao professor analisar seus objetivos (levando em consideração as<br />
necessidades da transferência de sua cultura letrada e o universo do aluno) e o (s) filme (s) eleitos<br />
para seu trabalho e, somente a partir daí, propor uma relação dialética entre conteúdo teórico e o<br />
filme.<br />
Essa relação dialética tem o filme como aliado para a complementação das aulas; para<br />
motivação das discussões sobre as representações; para a utilização dele como elemento de análise;<br />
reflexão e posterior montagem de ―relatório de observação‖ de estágio; para trabalhar a filosofia da
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educação: ―Quais são os sentidos da educação‖? ―Quais são os motivos da tarefa docente? ‖, ―Qual<br />
é a educação que se espera?‖.<br />
Dessa, forma, o cinema se propõe como um elemento facilitador e como importante<br />
elemento de ilustração, investigação e análise científica; e sua contribuição para tanto para a<br />
formação do professor quanto para a do aprendiz tem importância singular, já que ele concretiza e<br />
expõe figurativamente as visões que a sociedade tem do universo. É função do professor,<br />
conhecer as finalidades desse elemento e utilizá-lo em sala de aula como recurso didático e não<br />
apenas como fim pedagógico sem objetivos específicos.<br />
Sendo assim, pretendemos utilizar o filme ―Sociedade dos poetas mortos‖ como um<br />
importante elemento para comprovar que as histórias cinematográficas podem exercer uma função<br />
didática e oferecer contribuições ao processo de formação do professor e do aprendiz.<br />
É relevante dizer que não pretendemos fazer uma análise do filme e, sim, um recorte do<br />
mesmo e observar como o cinema revela, por meio de uma retórica ilustrativa, a visão de uma<br />
sociedade sobre os atores do contexto escolar: professor, alunos, direção, ensino. Como<br />
poderemos observar, essa visão da sociedade revelada pelo filme termina por estabelecer uma<br />
relação dialógica, intertextual com o mito platônico, presente no livro VII da República de Platão,<br />
deslocando-o e apresentando-o sob novas nuances, porém, ilustrando a tese do filósofo.<br />
Em 1959 na Welton Academy, uma escola em que a tradição é palavra e ato de ordem,<br />
―templo‖ educacional que é freqüentado exclusivamente por rapazes, um ex-aluno, John Keating<br />
se torna o novo professor de literatura, mas, logo seus métodos não ortodoxos de incentivar os<br />
alunos a pensarem por si mesmos e perceberem que aprender pode ser um prazer, cria um choque<br />
com a direção do colégio.<br />
Keanting fala aos seus alunos, por conta de uma motivação dos mesmos sobre a uma espécie<br />
de sociedade secreta a "Sociedade dos Poetas Mortos", na qual se pode exercer o arquetípico<br />
―Carpe Diem‖, lema que o professor ensina. Nessa sociedade, os jovens se reuniam habitualmente<br />
para ler versos e vivenciar, por meio da literatura, suas paixões e anseios. Os alunos, inspirados pela<br />
conduta do professor, reativam as reuniões em uma caverna indígena.<br />
Dessa forma, ao ressuscitar esses hábitos, o professor incentiva os jovens a seguir os<br />
próprios instintos, a conceber a autonomia para decidir seus destinos. Mas, habituados a ver a luz,<br />
os meninos resistem ao destino pleno de interdições que seus pais impõem. Um deles, por<br />
exemplo, pretende tornar-se ator de teatro, contrariando a vontade do pai, que o quer na advocacia.<br />
No entanto, embora as novidades implementadas pelo mestre agradem a maior parte dos<br />
alunos (como assistir às aulas ao ar livre, jogar futebol impulsionados pela força literária e arrancar<br />
dos livros didáticos as páginas consideradas inúteis ou prepotentes) as medidas não são bem<br />
recebidas pela direção da escola, que as castra exemplarmos.<br />
O filme contrapõe o desejo e a instauração da liberdade de ser e de existir aos rígidos códigos<br />
de conduta que regem as instituições educacionais tradicionais e retrógradas.<br />
A sociedade da caverna<br />
Como já referimos anteriormente, o filme ―Sociedade dos poetas mortos‖ retoma o mito<br />
platônico, mas o desloca para outros espaços e formas.<br />
No mito, o espaço em que ocorre a repressão é a caverna e fora dela estava a luz, a<br />
liberdade de ser, sentir, pensar, enfim, de olhar a realidade, de conhecer o bem e a verdade. No
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entanto, no filme, há uma irônica inversão de sentidos, provocada pela configuração dos espaços,<br />
pois a caverna é reconfigurada e assume novas formas: a caverna é a tradicional escola ―Welton<br />
Academy‖, lugar onde deveriam estar a luz e a Verdade, o Conhecimento, o mundo das idéias;<br />
enquanto o espaço da libertação é a caverna indígena para onde os meninos vão, a fim de entrar em<br />
contato com o mundo das idéias e contemplar a luz do dia e da noite; dessa maneira, a caverna se<br />
reconfigura e deixa de ser somente uma caverna onde uma luz que vem do alto incide e ilumina o<br />
cabeça do personagem que está presidindo a reunião, para tornar-se a verdadeira realidade.<br />
Dessa forma, se o espaço subterrâneo ―a caverna indígena‖ significa o espaço em que o<br />
homem chegou após sua ascensão e que poderá exercer o direito ao ―carpe diem‖, a escola está<br />
num plano ainda mais inferior, é ela o mundo demoníaco, comprovado pelo trocadilho<br />
―Infernooton‖ aludido pelos jovens.<br />
O filme é iniciado por uma significativa seqüência de cenas: primeiro, o que se vê é<br />
escuridão total, o que sugere que os sentidos sugeridos pelas trevas terão importância fundamental<br />
no enredo; depois, a escuridão é rompida por uma luz artificial, uma vela acesa protagoniza a<br />
imagem; uma luz que vai iluminar as sombras, figuras de meninos pintadas nas paredes do colégio,<br />
próxima imagem flagrada pela câmera; é interessante notar que essa imagem em harmonia com o<br />
som das vozes emitidas pelos meninos, dá verossilhança à cena, criando a sensação de que as<br />
sombras estão falando; e como é a câmera que se desloca pelo espaço, tem-se também a sensação<br />
de que os meninos pintados caminham.<br />
Como não há luz maior, só se pode ver aquilo que é iluminado pela luz artificial, e nosso<br />
olhar é dirigido pela lente, é como se estivéssemos presos por grilhões e só nos fosse permitido<br />
olhar para frente; nesse momento, uma visão panorâmica da situação que se apresenta e, então,<br />
ficamos concentrados, com o olhar fixo nas imagens e, percebemos que se funde, às gravuras da<br />
parede, uma cena protagonizada por um adulto que veste uma criança (um aluno da escola)<br />
exatamente como estão vestidos os desenhos na parede, e esse menino é um sujeito completamente<br />
passivo à sua condição.<br />
Posteriormente, o filme nos apresenta um amplo e organizado salão em que os meninos<br />
adentram; nesse espaço, configura-se, de fato, na alegoria da caverna, nele, os meninos são<br />
recebidos na escola e conhecem as quatro palavras de ordem: ―Tradição, Honra, Disciplina,<br />
Excelência‖, que compõem uma espécie de estigma que sofrerão: a necessidade de obedecer a<br />
dogmas que são transmitidos de geração a geração e desmontam sua individualidade, o que é<br />
corroborado pela imagem dos antigos acendendo a vela dos novos, parecendo metaforizar o<br />
sistema de hierarquia e de honrarias aludidas por Platão, bem como a doação da possibilidade de<br />
visão por meio de uma luz frágil e artificial; desse modo, os homens, de geração em geração são<br />
aprisionados e condenados a ver a partir de um ―sol artificial‖ (a vela) que ilumina sombras ao invés<br />
da imagem verdadeira das coisas.<br />
Segundo nos diz Giddens, apud Hall (1997):<br />
A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo<br />
qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado,<br />
presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados nas práticas<br />
sociais recorrentes. (...) o passado é venerado e os símbolos são<br />
valorizados porque contêm e perpetuam a experiência das<br />
gerações.(p.15).<br />
Essa massificação dos sujeitos por meio de um código de conduta gerido por essas palavras<br />
de ordem, Hall (1997) denomina como uma "estratégia discursiva" em que:
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tradições que parecem ser antigas são muitas vezes de origem recente inventada<br />
(...); tradição inventada significa um conjunto de práticas de natureza ritual ou<br />
simbólica que buscam inculcar valores e normas de comportamentos através da<br />
repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado<br />
histórico adequado (p.58).<br />
A essa estratégia discursiva não importa o quão diferentes seus membros possam ser em<br />
termos de classe, gênero ou raça, pois, estarão representados como unidade de identidade através<br />
do exercício de diferentes formas de poder.<br />
Posteriormente, o professor Keating é apresentado como um ex- aluno do colégio que agora<br />
está entre os seus como mestre. Mas Keating é uma figura que se oporá à bandeira da interdição<br />
que, literalmente, é levantada nesse ritual de iniciação ao qual estamos aludindo: Tradição. Keating<br />
é um educador que não se enquadra enquanto formador, a partir de um conceito de educação<br />
desejada por esses pais que escolhem o colégio porque ele é, tradicionalmente, o melhor elemento<br />
de acesso à universidade. Para os pais, bem como para os diretores a idéia de educação pretendida<br />
é a que Durkheim, citado por Gadotti (1996) se refere:<br />
(...)a educação se definia como a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que<br />
não se encontravam preparadas para a vida social. A educação tem por objetivo suscitar e<br />
desenvolver (...) certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela<br />
sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança se destine.(p. 115).<br />
Sua prática é baseada em modernos métodos de ensino de literatura, ele busca ensinar os<br />
jovens a pensar, e, por meio da poesia, de novas formas de ver e de ouvir as imagens - aprendendo<br />
com elas, compreendendo a sua didática, ouvindo seus ensinamentos – como podemos observar na<br />
cena em que os meninos são apresentados às fotos dos que passaram pela escola; nesse momento, o<br />
professor conscientiza os meninos que as fotos são apenas imagens, imagens que ensinam ―Carpe<br />
Diem‖; o sentido especial dessas imagens é que elas propiciam ―experiência estética‖, elas visam a<br />
revelar e promover, nos que as vêem, o desejo de viver intensamente, desejo esse que já estava<br />
incrustados em suas almas e agora estão apenas tendo eco.<br />
É como se o professor quisesse, por meio desse exercício, iniciar a transição dos jovens para<br />
uma nova compreensão do real; e, a voz que os meninos ouvem, não é o eco de suas próprias<br />
vozes, mas um chamamento que assume características sobrenaturais e se mescla à voz real do<br />
professor.<br />
Dessa forma, Keating parece assumir para a maioria dos meninos uma condição divina, ele<br />
parecerá, para esses, a entidade celestial que tira o homem da caverna e, por ser assim, sua conduta<br />
será a do líder, que alguns estudos compreendem como autoritarismo; mas que compreendemos<br />
como autoridade, dada por sua condição de ser superior, que tem como função conduzir e tirar da<br />
caverna aqueles que estão apegados a ela; e, como nos mostrou Platão, não há modos de se fazer<br />
isso sem uma certa força: “Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o<br />
pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os<br />
objetos cujas sombras via outrora”.<br />
Depois dessa aula, um grupo de meninos vislumbra a possibilidade de ascensão e saem da<br />
caverna em direção à ―Sociedade dos Poetas Mortos‖. Então, novamente, observa-se uma a<br />
presença de um diálogo com o mito: a sombras são novamente focalizadas e os meninos se libertam<br />
fugindo da escola e se embrenhando em um rito de passagem que se compõe pelo caminhar na<br />
escuridão da floresta “Fui à floresta porque queria viver profundamente”, pela passagem por um arco e pela<br />
chegada à caverna indígena, o espaço no qual os meninos compreenderão o que é sombra e saberão<br />
contemplar o real.
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Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
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O ápice da libertação é atingido quando um dos alunos, que conhecia o drama da interdição<br />
provocada pela família e pela sombra do irmão genial, consegue superar a condição de não ter feito<br />
o poema e, portanto, vence a interdição que se instaurava em seu ser e consegue se expressar,<br />
compondo um poema diante dos amigos; momento em que o professor ajoelha-se diante do aluno,<br />
contemplando o momento ímpar de ter conduzido o jovem ao mundo das idéias.<br />
No entanto, Neill, personagem romântico, queria ser ator, mas tem seu sonho castrado pelo<br />
autoritarismo paterno, não resistindo à interdição do pai, suicida-se. Interditando a própria vida, o<br />
jovem revela que não soube sair da caverna como saíra o filósofo, pautando seus atos, ainda que<br />
transgressores, pela razão e acaba por um viés deturpado corroborar a afirmação do diretor: “É um<br />
risco encorajá-los a serem artistas”, o que se torna um pretexto para a interdição da visão da luz da noite<br />
e do dia para os meninos e para a demissão de Keating: “acaso não causaria o riso, e não diriam dele que,<br />
por ter subido ao mundo superior, estragar a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse<br />
soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?‖ (p.321)<br />
Considerações finais<br />
Em síntese, concluiu-se que o filme ilustra o perigo salientado por Platão, pois, se para os<br />
jovens, o educador é o ―deus‖ que os tira da caverna, para a direção, ele é o filósofo que, ao voltar<br />
trazendo o que vira no mundo das idéias, será aniquilado pela mediocridade, pois, Keating, era um<br />
ex-aluno, era um ex - habitante da caverna, e como tal não era possível admitir sua ascensão; suas<br />
idéias sofreriam a deturpação, suas práticas, a interdição, e se isso não fosse o suficiente, sua morte<br />
talvez fosse necessária, a qual é ilustrada pela metáfora da demissão do professor. No entanto,<br />
alguns de seus alunos, percorrem o caminho ascendente e ―sobem nas carteiras‖ para protestar a<br />
demissão do mestre, mostrando que desenvolveram a faculdade do pensamento e do<br />
posicionamento como cidadãos, que saíram da caverna, objetivo maior de Platão, ao compor a<br />
alegoria que transcende tempo, espaço e concepções pedagógicas.<br />
Dessa maneira, por meio do filme ―A Sociedade dos Poetas Mortos‖, podemos concluir que<br />
o cinema, enquanto objeto de arte cumpre a sua função estética e promove a síntese e a superação<br />
do real; compara duas formas de educação, a tradicional e a inovadora; comemorando a última;<br />
porém, de modo crítico e educativo, reafirmando os perigos já salientados por Platão; desse modo,<br />
o filme também é utilizado como uma tese, pois, traz a comprova a mensagem platônica, que por,<br />
ser atemporal e universal, figura como espelho da realidade.<br />
Bibliografia<br />
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SCHOLES R., KELLOG, R. A Natureza da Narrativa. Trad. Gert. Meyer. São<br />
Paulo: MacGraw-Hill do Brasil, 1997.<br />
Sociedade dos poetas mortos<br />
Nome Original: Dead Poets Society<br />
Versão em Português: Sociedade dos Poetas Mortos<br />
Duração: 129 min.<br />
Direção: Peter Weir<br />
Roteiro: Tom Schulman<br />
Elenco: Robin Williams, Robert Sean Leonard, Ethan Hawke e Josh Charles<br />
Música: Maurice Jarre<br />
Fotografia: John Seale<br />
Gênero: Drama<br />
Ano: 1989<br />
Enviado em 03/08<br />
Avaliado em 15/10
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DO AUTORITÁRIO AO LÚDICO-CRÍTICO: O JORNAL<br />
MEIA HORA EM SALA DE AULA<br />
Phellipe Marcel da Silva Esteves<br />
Precisamos das crianças como professoras, não como alunas. Elas têm<br />
muito a contribuir para a revolução lúdica porque sabem brincar<br />
melhor do que os adultos. Adultos e crianças não são idênticos, mas<br />
vão se tornar iguais por meio da interdependência. Somente a<br />
brincadeira pode acabar com o conflito de gerações. (BLACK, 2006,<br />
p. 44)<br />
A proposta deste trabalho é uma intervenção prática e teórica no ensino de língua<br />
portuguesa, tendo como fundamentação a Análise do Discurso Francesa (Pêcheux e Orlandi) —<br />
doravante AD. Partamos da epígrafe de Black: os colégios, segundo o autor, são reproduções<br />
adaptadas de edificações voltadas a trancafiar prisioneiros e loucos. Neles, não se desfruta da<br />
riqueza do material lúdico proporcionado e produzido pelas crianças, com suas controvérsias — no<br />
sentido de ser contra o verso, o verbo, a palavra —, dúvidas ao óbvio, xeque aos princípios. Não que o<br />
óbvio, o evidente e o ideológico não existam com a/na criança... eles estão lá, vivos, inconscientes,<br />
mobilizando escolhas, estruturando dizeres; mas o trabalho de divisão da interpretação do mundo<br />
ainda está incipiente. 35 É mesmo difícil definir quem é ou quem não é criança, claro, e a discussão<br />
aqui não é essa. Caminhamos na seguinte premissa: o ludismo em potencial do ambiente escolar —<br />
considerando-se esse espaço discursivo como um aparelho ideológico em que se encontram tantas<br />
crianças, tantos interlocutores em contato com tantas e diverso(a)s mat(r)izes ideológico(a)s — se<br />
transforma em autoritarismo, numa relação de poder em que os efeitos de sentido se dão regidos<br />
por uma política de silenciamento. Esclareçamos que essa política de silenciamento (ORLANDI,<br />
2007) não significa apenas um ―calar‖ da voz do outro, mas uma injunção ao dizer de determinada<br />
forma, ao dizer que suscita determinados sentidos: ―O autoritarismo poderia ser considerado (...)<br />
como uma espécie de ―narcísea social‖, já que deseja, procura impor (pelo poder, pela força) um<br />
sentido só para toda a sociedade. (...) se obriga a dizer ―x‖ para não deixar dizer ―y‖‖ (ORLANDI,<br />
2007, p. 80-81). Nesse sentido, ainda que reconheçamos a sugestão de Freire como fundamental,<br />
ela se mostra insuficiente para uma maior circulação de sentidos no espaço escolar:<br />
(...) reconhecer nos outros — não importa se alfabetizandos ou participantes de cursos<br />
universitários; se alunos de escolas do primeiro grau ou se membros de uma assembléia<br />
popular — o direito de dizer a sua palavra. Direito deles de falar a que corresponde o nosso<br />
dever de escutá-los. (...) Mas, como escutar implica falar também, ao dever de escutá-los<br />
corresponde o direito que igualmente temos de falar a eles (...), falar com eles (...). Dizer-lhes<br />
sempre a nossa palavra, sem jamais nos expormos e nos oferecermos à deles, arrogantemente<br />
convencidos de que estamos aqui para salvá-los, é uma boa maneira que temos de afirmar o<br />
nosso elitismo, sempre autoritário. (FREIRE, 2009, 26)<br />
Não se trata apenas de permitir que os alunos falem e os professores os escutem, trocando<br />
ideias. Isso inclusive é permitido num contexto autoritário. O silenciamento não se dá apenas no<br />
calar absoluto, mas no exigir falar aquilo que se deve falar. Em um artigo precisamente sobre o<br />
discurso pedagógico, Orlandi (1996, p. 15) considera que ele se trata de um discurso autoritário —<br />
35 Os muitos ―por quê‖s são exemplos bem claros disso, assim como as constantes questões em relação às<br />
circunstâncias que um adulto consideraria óbvias: ―Mamãe, a Disney é legal?‖ ―É claro que sim, meu filho.‖<br />
Mas por quê? Por que não é possível a Disney não ser legal?
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de polissemia 36 contida, ou seja, em que não se permite, inconscientemente, o benefício da<br />
metáfora, do deslizar de sentidos. Na tipologia de discursos elaborada por Orlandi, existem ainda<br />
dois outros discursos: o polêmico, cuja polissemia é controlada; e o lúdico, cuja polissemia é aberta.<br />
Ainda que os planos lúdicos em Orlandi e Black sejam diferentes — respectivamente, um é relativo<br />
a uma maior possibilidade de circulação de sentidos, com injunções reduzidas e o ―diferente‖<br />
atravessando o discurso; o outro é relativo à própria brincadeira, lato sensu, que se contrapõe ao<br />
trabalho —, iremos aqui aproximá-los, com o objetivo de aprofundar uma proposta de Orlandi:<br />
Em uma sociedade como a nossa, tenho observado que o lúdico é o desejável, é<br />
o que vaza, pois o uso da linguagem por si mesma, ou seja, pelo prazer —<br />
atestado pela linguagem e não pelo psicológico —, entra em contraste com o<br />
uso para finalidades mais imediatas, comprometidas com a idéia de eficiência e<br />
resultados práticos. No lúdico, a informação e a comunicação dão lugar à função<br />
poética e à fática. Assim, em nossa sociedade, segundo o que temos<br />
considerado, o lúdico é a ruptura, ocupa um lugar marginal, ao contrário do<br />
polêmico e do autoritário (ORLANDI, 1996, p. 84)<br />
Isso não significa dizer que, com essa ruptura promovida pelo lúdico, ter-se-á uma solução<br />
a todos os problemas político-ideológicos do plano socioeconômico brasileiro, nem mesmo do<br />
plano educacional. Ganha-se, no entanto, uma circulação maior de sentidos controversos, contrahegemônicos;<br />
em oposição, em co-ocorrência. Seria a tal polissemia aberta, diametralmente oposta<br />
ao autoritarismo promovido pelo espaço tradicional da escola.<br />
Segundo Pêcheux, Haroche & Henry (2008), a inscrição dos sujeitos nas formações<br />
discursivas — as matrizes de sentido que constituem semanticamente nossas palavras — existentes<br />
numa formação social se dá através de mecanismos inconscientes: ―as palavras ―mudam de sentido‖<br />
ao passar de uma formação discursiva a outra‖ (PÊCHEUX, HAROCHE & HENRY, 2008). Embora<br />
tentemos controlar o sentido daquilo que dizemos, algo escapa, algo que se relaciona a uma<br />
memória daquilo que já foi dito e daquilo que já foi silenciado. A tomada de posição pelo sujeito<br />
não é livre de sua inscrição nas formações discursivas constantes de sua formação social, embora se<br />
tenha a impressão de que se é a origem do dizer, de que o sujeito é a origem de si mesmo no<br />
processo interlocutório.<br />
A noção de ―ato de linguagem‖ traduz, de fato, o desconhecimento da<br />
determinação do sujeito no discurso. Permite, ainda, dizer que, na verdade, a<br />
tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um ―ato originário‖ do<br />
sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na<br />
forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-tranverso, isto é,<br />
o efeito da ―exterioridade‖ do real ideológico-discursivo, na medida em que ela<br />
―se volta sobre si mesma‖ para atravessar. Nessas condições, a tomada de<br />
posição resulta de um retorno do ―Sujeito‖ no sujeito, de modo que a nãocoincidência<br />
subjetiva que caracteriza a dualidade sujeito/objeto, pela qual o<br />
sujeito se separa daquilo de que ele ―toma consciência‖ e a propósito do que ele<br />
toma posição, é fundamentalmente homogênea à coincidência-reconhecimento<br />
pela qual o sujeito se identifica consigo mesmo, com seus ―semelhantes‖ e com<br />
o ―Sujeito‖. O ―desdobramento‖ do sujeito — como ―tomada de consciência‖<br />
de seus ―objetos‖ — é uma reduplicação da identificação, precisamente na<br />
medida em que ele designa o engodo dessa impossível construção da<br />
exterioridade no próprio interior do sujeito. (PÊCHEUX, 2009, p. 159-160)<br />
36 Lembrando que o conceito de polissemia, em Orlandi, não significa apenas a capacidade de uma palavra ter<br />
vários sentidos, mas a possibilidade de instauração de um outro sentido, não dominante, no discurso: ―O<br />
Diferente: nas mesmas condições de produção imediatas (locutores e situação) há no entanto um<br />
deslocamento, um deslizamento de sentidos (Polissemia). (ORLANDI, 1998, p. 15)‖
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Sendo assim, embora nossa a estruturação de um texto possa se dar, até certo ponto, de<br />
forma consciente, não é possível se assenhorar, domar os sentidos de tudo aquilo que dizemos,<br />
falamos, escrevemos. Visto dessa maneira, não é possível que se simplesmente escolha a que rede<br />
de sentidos se filiar e a que filiar a materialidade linguística produzida subjetivamente — esse é um<br />
processo que, embora envolva escolhas, sim, do sujeito, é estruturado sobre uma malha de dizeres<br />
outros, muitas vezes inacessíveis, e que constituirão o sentido. É preciso, no entanto, que se<br />
combata frontalmente, na figura de educadores, um Discurso Pedagógico cercado de circularidades,<br />
de axiomas, de ―é porque é‖, e assim deve ser. Em outras palavras, a crítica teórica a esse modelo de<br />
ensino tradicional com que estamos acostumados já é uma forma prática de se estimular a diferença<br />
de opiniões e o aflorar de novos sentidos para o fazer educativo.<br />
Para isso, nossa primeira proposta — que deriva de uma pesquisa feita a partir de 2008 —<br />
37 é inserir no âmbito escolar a leitura daquilo que se considera como jornalismo popular: aquele<br />
voltado às classes populares imaginadas como tal. Enfatizamos que o objetivo aqui não é encontrar<br />
acriticamente o artigo 32º da Lei de Diretrizes e Bases, que determina que no ensino fundamental se<br />
deve conquistar ―o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno<br />
domínio da leitura, da escrita e do cálculo‖ (BRASIL, 2010; negrito nosso). A leitura não é<br />
entendida, na Análise do Discurso, como uma capacidade adquirida e dominada/domada durante o<br />
percurso escolar, mas como um efeito-leitor, ou seja: a articulação entre as diferentes memórias —<br />
a discursiva, que são todos os dizeres já formulados; a institucional, que circunscreve os arquivos<br />
que recuperam e materializam a memória discursiva, de forma a algumas coisas não serem<br />
esquecidas; e a metálica, que tem a ver com a quantificação eletrônica de dados sem historicidade,<br />
apenas armazenados — de forma a os sentidos serem definidos ideologicamente (ORLANDI,<br />
2001) nos interlocutores, em suas distintas posições-sujeito.<br />
A leitura do jornal Meia Hora de Notícias — escolhido nessa pesquisa de 2008 — em sala de<br />
aula proporcionaria, portanto, uma circulação de sentidos sobre aquilo que se fala sobre<br />
determinadas classes sociais, a saber, aquelas relacionadas a um imaginário de povo. Por isso, esse<br />
projeto — de fato, essa nossa proposta de intervenção escolar pela Análise do Discurso — pode ser<br />
implantado tanto em colégios da rede pública quando da rede particular, visto que os dizeres sobre<br />
a sociedade afetam qualquer estudante, nessa fase de profundo alinhamento ao aparelho ideológico<br />
de Estado que é a escola. Com essa intervenção no discurso pedagógico, não se busca o que é<br />
unânime e ―ponto-morto‖ na palavra dos alunos, mas um discurso escolar lúdico-crítico, com<br />
polissemia aberta; ou seja: o ―imexível‖ e os ―vespeiros‖ deixam de ser monossêmicos e passam a<br />
ter várias possibilidades de sentido. O ensino formal prevê que o aluno faça leituras sobre o que são<br />
classe sociais, o que é democracia, o que é povo, e não raro essas categorias são apresentadas como<br />
conteúdos fechados, caixas trancadas que não cabem ser abertas pelos estudantes. Contudo, dentro<br />
dessa repetição de sentidos, dessa monovalência, pode vir a romper o diferente. 38 Assim, admite-se<br />
aquilo que Orlandi chama de plural: ―O plural, o que varia, não é o que tem defeito, o que não é<br />
correto. É o cerne mesmo da nossa capacidade de linguagem. Estamos sempre às voltas com<br />
versões. Por que uma e não outra? Eis a questão‖ (BARRETO & ORLANDI, 2006).<br />
Para se chegar a essa pluralidade de sentidos, a AD faz um percurso das condições de<br />
produção de determinado discurso; no caso, o discurso jornalístico do jornal Meia Hora de Notícias.<br />
É através desse percurso que será possível compreender o funcionamento da ideologia nesse jornal.<br />
37 Denominada A translação de sentidos entre língua e classe social, contemplada com uma bolsa Capes, no<br />
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e orientada por Vanise<br />
Gomes de Medeiros.<br />
38 Lembrando que a Análise do Discurso Francesa não trabalha com a palavra como se ela tivesse um sentido<br />
imanente, mas em suas possibilidades e injunções semânticas. Em outras palavras, como já foi mencionado, a<br />
palavra só ganha seu sentido dentro de determinada formação discursiva, que é a base material da ideologia<br />
por excelência.
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E, tendo em mãos/mente 39 as condições de produção de um discurso, podemos enveredar pela<br />
análise do funcionamento até mesmo das formas gramaticais de um discurso. Não se trata,<br />
entretanto, de se fazer uma análise sintática tradicional, formal e descritiva, explicitando, por<br />
exemplo, uma oração subordinada adverbial e sua oração principal. Trata-se, sim, de entender os<br />
sentidos sendo constituídos por meio dessas funções sintáticas, e de que forma a subordinação,<br />
mais uma vez por exemplo, constitui já um processo ideológico, e não apenas gramatical — na<br />
verdade, o gramatical já é ideológico, e não há exterior e interior nesse caso: um é constituído<br />
mutuamente pelo outro.<br />
Meia Hora de Notícias; memória de sentidos<br />
Todo jornal é produzido relativamente a um leitor imaginário, inscrito. É buscando se<br />
aproximar dele que o jornal mobiliza seus recursos; entre eles, os linguísticos:<br />
(...) a instituição jornalística não funciona sem leitores, e se ela busca atraí-los como<br />
consumidores, há que se considerar que todo jornal noticia para segmentos determinados da<br />
sociedade, produzindo para uma imagem de leitor suposta a tal segmento. Esta imagem, por<br />
sua vez, pode ser depreendida, na própria prática do discurso jornalístico: no „como se diz‟ já<br />
se encontra embutido o „quem vai ler‟. (MARIANI, 1998, p. 57) [negritos nossos]<br />
Segundo Mariani, a forma como a língua será mobilizada já diz muito sobre a imagem<br />
daquele que, imagina-se, lerá o jornal. Ao mesmo tempo que na instituição jornalística fala-se ao<br />
leitor com determinada língua, vão sendo veiculados, circulados, produzidos os sentidos sobre esse<br />
sujeito-leitor; aquele que imaginariamente corresponde ao público-alvo de determinado veículo de<br />
comunicação. Trata-se, logo, de um teatro de imagens, em que instituição e leitor cambiam sentidos<br />
a todo momento. Esse teatro de imagens que envolve os leitores leva em conta, entre outros<br />
quesitos, dois âmbitos abordados por Antonio Gramsci:<br />
Os leitores devem ser considerados de dois pontos de vista principais: 1) como<br />
elementos ideológicos, ―transformáveis‖ filosoficamente, capazes, dúcteis,<br />
maleáveis à transformação; 2) como elementos ―econômicos‖, capazes de<br />
adquirir as publicações e de fazê-las adquirir por outros. Os dois elementos, na<br />
realidade, nem sempre são separáveis, na medida em que o elemento ideológico<br />
é um estímulo ao ato econômico da aquisição e da divulgação. (2006, p. 246)<br />
Sendo assim, entre as características de leitor imaginadas pela instituição jornalística, estão<br />
as questões de valores e ideias — lembrando que ideologia, para Gramsci, significa conjunto de ideias<br />
representativas de dado grupo social, o que não diverge totalmente da noção de ideologia<br />
formulada no âmbito da AD, a saber: ideologia é o conjunto de sentidos que se apresentam em<br />
dadas formações discursivas como evidentes, como inevitáveis e naturais, embora sejam frutos de<br />
gestos interpretativos — que conduzem a classe, e as questões econômicas. Trocando em miúdos, a<br />
forma como a instituição jornalística imagina seus leitores leva em conta, entre tantos outros<br />
sentidos, os surpostos valores e o esperado poder aquisitivo. A classe social, assim, é um fator<br />
primordial no leitor inscrito em qualquer jornal: faz-se o jornal para um público imaginário<br />
específico que não corresponde à formação social, mas ao que se imagina ser determinado grupo<br />
social. Se um jornal como o Meia Hora de Notícias se afirma como popular — conforme veremos na<br />
primeira sequência à frente —, ele se enquadra num tipo de discurso, o do jornalismo popular. Para<br />
a Análise do Discurso, um tipo de discurso não é uma forma autônoma com determinado fim<br />
sociocomunicativo estável, mas uma dada materialidade que ao longo de sua historicidade vai<br />
cristalizando seu funcionamento. Segundo Orlandi, ―A consideração do tipo como parte das<br />
condições de produção é fundamental (...) a relevância dos fatores que constituem as condições de<br />
significação de qualquer dizer é determinada pelo tipo de discurso‖ (ORLANDI, 1996, p. 198). Para<br />
39 Nessa brincadeira entre as palavras mão e mente, preconizamos que o trabalho intelectual não precisa ser<br />
distante do trabalho corpóreo, como defendia o próprio Antonio Gramsci em seus Quaderni.
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se analisar, portanto, o Meia Hora de Notícias, deve-se lembrar que, entre suas condições de<br />
produção, entra o tipo de jornalismo em que se enquadra. Comecemos a analisar de que forma o<br />
tipo de discurso jornalismo popular cristaliza seu funcionamento, a partir do anúncio da primeira<br />
edição do jornal Meia Hora feito no site de sua empresa mantenedora, a mesma do jornal O Dia:<br />
SD1: Uma publicação popular, agradável e moderna<br />
Ainda segundo Gigi Carvalho, MEIA HORA chega com um objetivo muito definido.<br />
―Já temos um grande jornal, O DIA, publicação qualificada e respeitada. Queríamos<br />
expandir nossos negócios e democratizar a informação. A partir desse desejo, surgiu<br />
MEIA HORA‖, explica. O diretor de mídia impressa, Eucimar de Oliveira, acrescenta:<br />
―O novo jornal, embora seja popular, traz um grau de qualidade de informação<br />
pouco comum em publicações do gênero. Tanto do ponto de vista gráfico como de<br />
texto. Teremos um jornal absolutamente útil, interativo, moderno, vibrante e<br />
companheiro do leitor. Tudo isso apresentado de maneira agradável e moderna‖,<br />
garante Eucimar. (O DIA ON-LINE, 2009)<br />
As orações subordinadas adverbiais concessivas apresentam uma peculiaridade importante<br />
na constituição de sentidos dos discursos. Elas são o encontro, no fio discursivo, de uma memória<br />
do dizer tal, não negando-a totalmente, mas permitindo-a materialmente: ―O enunciado<br />
concessivo‖ estabelece um vínculo ―entre um exterior do discurso e o discurso em vias de se<br />
constituir, relação que a análise do discurso problematizou por meio das noções de pré-construído,<br />
de interdiscurso, de saberes partilhados e de estereótipo discursivo‖ (GARNIER & SITRI, 2008, p.<br />
93), sem que a concessão fosse encarada como um procedimento ―estratégico‖ de construção<br />
textual de um jornal ou de um site. Ao contrário: a concessão — embora possa ter sido escolhida<br />
pelo autor como forma de se escrever determinado texto — aponta para um construto ideológico<br />
que não é transparente, mas opaco em toda a sua extensão semântica. Sendo assim, o trecho<br />
destacado na sequência discursiva 40 1 aponta para uma memória do que seja um jornal popular, e<br />
mesmo para o que seja a categoria de nomes qualificados por ―popular‖: coisas de baixa qualidade,<br />
resumindo. Esse sentido de jornal popular ressoa um prévio, no manual de redação jornalística do<br />
jornal O Dia:<br />
SD2: Uma base sólida o suficiente para garantir um retorno sem maiores danos à<br />
principal de nossas vocações: o jornal popular, com todas as características e conceitos<br />
éticos agregados ultimamente. Popular no sentido de ser feito para o povo. O que<br />
não significa ser vulgar, trivial, ordinário. Muito ao contrário. Paulinho da Viola,<br />
Chico Buarque, Martinho da Vila e Caetano são populares. Mas de talento inconteste.<br />
O Corsa é um carro popular, mas com injeção eletrônica e outros recursos de que<br />
mesmo alguns carros mais luxuosos ainda não dispõem. Como os fãs dos<br />
compositores e os admiradores do carrinho, os leitores do DIA estão em todas as<br />
classes sociais. Mas o jornal conserva seu compromisso com a massa popular,<br />
devendo, portanto, aprimorar suas características gráficas e linguagem específica. (O<br />
DIA, 1996, p. 10) [sublinhas e negritos meus]<br />
Ao se dizer ―O que não significa ser vulgar, trivial, ordinário‖, novamente remete-se a uma<br />
memória discursiva de que remete-se, o sentido de popular a essas características, ainda que se as<br />
negando nessa sequência. Entendendo: se há a necessidade de negar, é porque esses são sentidos<br />
afirmados. Tais qualificações são ressaltadas pela conjunção ―mas‖, que funciona de forma análoga<br />
(ainda que com diferenças) às construções concessivas. Tanto o caso de oração coordenada (SD2)<br />
quanto o de subordinada (SD1) apresentam um modelo de argumentação baseado em evidências<br />
ideologicamente apresentadas: de que o que é popular é ruim, de má qualidade — tanto que, na sd2,<br />
40 Na tradição da AD, as sequências discursivas são abreviadas como SD.
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há a necessidade de se mencionarem exemplos de coisas populares ―boas‖. Caso um professor<br />
quisesse trabalhar essas sequências em sala de aula, ele deveria tomar cuidado com dois aspectos<br />
distintos: a) não é o jornalista, nem mesmo a instituição jornalística, que procura vincular esses<br />
sentidos a palavras como ―popular‖, entre outras — o jornalista escolhe como escrever, ele de fato<br />
atua na materialidade linguística, mas alho lhe escapa —; b) o sentido negado pela concessiva e pela<br />
adversativa não é aquilo que alguns chamam de ―normal‖, mas filiado a uma conclusão, como já<br />
dissemos, ideologicamente evidente, aparentemente natural: ―A ―normalidade‖ seria o reflexo de<br />
um saber partilhado, ―de uma visão preestabelecida da relação entre os elementos confrontados‖,<br />
isto é, um dado não-lingüístico comumente apreendido pela noção de tópos (lugar comum/verdade<br />
geral)‖ (GARNIER & SITRI, 2008, p. 96). Além de tudo, a imagem institucional do Meia Hora<br />
sobre seus leitores (populares) pressupõe uma ―linguagem específica‖, conforme negritado na SD1,<br />
uma língua diferente. Isso também entra no imaginário do que vem a ser ―popular‖ para o jornal<br />
em análise.<br />
Amaral (2005), também ancorada na Análise do Discurso, defende que<br />
no processo de a imprensa se fazer popular, ela adota formas culturais consagradas<br />
historicamente como populares, que trabalham com uma determinada visão sobre<br />
quem são as camadas populares, o que gostam, como vivem e o que<br />
consomem. (2005, p. 7; 9) [negritos meus]<br />
Esse imaginário consagrado sobre o que é popular agrega não apenas o como se diz, ou seja, a<br />
forma linguística de tratamento do leitor, mas também os gostos, os costumes e os atos de<br />
consumo que, conforme Garnier e Sitri, constituem um ―saber partilhado‖ por todos, um consenso<br />
ideológico sobre o que vem a ser popular: um gesto de interpretação sobre o sujeito que se imagina<br />
como popular, sobre uma classe social e sobre uma língua que se imagina ser dessa classe social.<br />
Essa autoria, já desde o anúncio da chegada do jornal Meia Hora, promove, como defende Orlandi,<br />
diferentes modos de leitura: ―O sujeito e o sentido, ao se constituírem, o fazem na relação entre o<br />
mundo e a língua, exostos ao acaso e ao jogo, mas também à memória e à regra‖ (ORLANDI,<br />
2004, p. 141).<br />
Pois bem: se a regra faz parte do funcionamento discursivo da maioria dos jornais, o jogo<br />
talvez marque o funcionamento do Meia Hora. Em suas capas, o humor é muito mais do que um<br />
recurso, que uma estratégia de vendas — como determinada pragmática poderia preferir —: o<br />
humor é o modus operandi de uma materialidade repleta de sentidos ora afirmados, ora negados. E de<br />
onde vem esse jornal, um fenômeno de vendas do grupo O Dia?<br />
Em 17 de setembro de 2005, o grupo de comunicação O Dia o lança. Até 1998, O Dia era a<br />
única publicação autodenominada popular com grande circulação no Rio de Janeiro. Em 1996, esse<br />
jornal sofreu uma reforma gráfica e ―de conteúdo‖, 41 que procurava desvincular a antiga imagem<br />
que os cariocas faziam do diário, que perdurava desde 1990 (ano em que O Dia foi comprado por<br />
um novo proprietário), segundo seu manual de redação.<br />
Acontece que, em 1998, O Globo assume que vinha perdendo compradores das classes B, C<br />
e D para o jornal O Dia, e decide lançar um rival que atuasse no mesmo segmento de mercado que<br />
seu concorrente. Então surge o jornal Extra, depois de uma pesada campanha de publicidade<br />
televisiva, marcada por uma pesquisa de mercado aberta ao público em que se indagava do leitor<br />
qual o nome que ele gostaria de dar ao seu jornal. Depois de selecionados — pela empresa<br />
controladora do jornal, o Infoglobo — os títulos finalistas, eles foram colocados numa votação<br />
novamente aberta, e Extra saiu vencedor. Assim, surgiu a publicação com o lema ―O jornal que<br />
41 Entre aspas porque é o termo utilizado pela própria imprensa. Uma reforma gráfica e de conteúdo sugere<br />
uma suposta mudança na relação imaginária que os leitores e os jornalistas fazem da instituição jornalística.
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você escolheu‖. O sentido de democracia, de liberdade de escolha, predomina na campanha do<br />
jornal. Por sete anos, o Extra dividiu a liderança do segmento de mercado com O Dia, até que,<br />
numa nova jogada de marketing, a empresa controladora deste último jornal lançou o Meia Hora de<br />
Notícias, como forma não apenas de competir com o Extra, mas de trazer uma proposta ―agradável<br />
e moderna‖, como vimos na SD1, ao mercado midiático carioca e de expandir os lucros da empresa<br />
— o Meia Hora é sensivelmente mais barato que O Dia e que o Extra, o que o torna consumível por<br />
mais faixas de mercado.<br />
O Meia Hora constrói um leitor imaginário que se relaciona parafrasticamente ao leitor<br />
imaginário anos antes construído no manual de redação de seu predecessor, o jornal O Dia — que,<br />
meses depois, ainda em 2005, sofre uma outra reforma e passa a competir com os ―jornais de<br />
referência‖ cariocas: O Globo, Jornal do Brasil etc —, um leitor popular que recebe ao mesmo tempo<br />
sentidos de ―merecedor‖ de uma qualidade que é trazida pelos jornais, e ao mesmo tempo essa<br />
qualidade não é esperada, como vimos nas marcas adversativas e concessivas. Esse funcionamento<br />
do jornalismo popular é significativo de uma produção em que circulam alguns sentidos negativos<br />
que dizem respeito a classe social, a povo, uma vez que, para se predicarem qualidades positivas a<br />
ele, é necessário que um conectivo adversativo ou concessivo seja incluído no fio discursivo,<br />
delimitando um contraste entre o que há de bom no popular e aquilo que já se espera, ainda que<br />
inconscientemente, dele: sentido impresso no já-dito, numa relação interdiscursiva.<br />
Segundo Mariani (1998), cabe ao<br />
discurso jornalístico organizar e ordenar cotidianamente os acontecimentos, de modo a<br />
mostrar que pode haver mais de uma opinião/explicação para o fato em questão, mas nunca<br />
um fato diferente do que foi relatado. § Em uma palavra, a imprensa deve desambigüizar o<br />
mundo. Assim, nos jornais se reassegura a continuidade do presente ao se produzirem<br />
explicações, ao se estabelecerem causas e conseqüências, enfim, como já dissemos<br />
anteriormente, ao se didatizar o ‗mundo‘ exterior e o tempo em que os fatos acontecem.<br />
(MARIANI, 1998, p. 63)<br />
Desambiguizar. Essa é a palavra-chave para o funcionamento do discurso jornalístico, para<br />
Mariani. A didatização do mundo, o explicar os fatos como se fossem eles providos de um sentido<br />
único e claro; como se os acontecimentos jornalísticos fossem apriorísticos; como se, por si<br />
mesmos, eles fossem passíveis de publicação em jornal; como se tivessem um mérito diferencial no<br />
continuum espaço-tempo. Essa naturalidade, quando o professor de língua portuguesa leva o jornal<br />
Meia Hora para a sala de aula, por exemplo, pode instaurar um autoritarismo, visto que, nas<br />
condições de produção do Discurso Pedagógico, o certo é o que marca. E o jornal pode funcionar<br />
como a instância do certo em sala de aula, o que é perigoso:<br />
O ―certo‖ se torna ―verdadeiro‖ na consciência da criança. Mas a consciência da<br />
criança não é algo ―individual‖ (e muito menos individualizado): é o reflexo da<br />
fração de sociedade civil da qual a criança participa, das relações sociais tais<br />
como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc. (GRAMSCI, 2006, p.<br />
44)<br />
O sujeito, para Pêcheux, é imerso num teatro da consciência, de onde afirma ―eu vejo, eu<br />
penso, eu falo, eu te vejo, eu te falo‖, mas, junto a esses movimentos, existe todo um falar do<br />
sujeito, um falar ao sujeito (PÊCHEUX, 2009, p. 140). Assim, em Gramsci 42 se percebe bem que<br />
esse ―certo‖ que é ofertado à criança já na sala de aula — estamos lendo discursivamente o autor<br />
italiano —, quando deslocado parafrasticamente para ―verdadeiro‖, não é fruto individual e<br />
42 Esclareçamos que Antonio Gramsci não foi um analista do discurso, mas um jornalista e pensador marxista<br />
que muito contribui aos estudos sociais.
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originário da consciência da criança, mas resultado da inscrição em dada formação discursiva. Esse<br />
funcionamento se repete diariamente nas escolas e instituiões fundamentais, médias e superiores.<br />
Assim, se um professor lê de forma acrítica o jornal Meia Hora em sala de aula, alguns de seus<br />
―certos‖ sobre o que é popular — como as classes sociais populares não contarem com grande<br />
qualidade, independentemente de quê — acabam se tornando verdades: como já explicamos, o<br />
funcionamento da ideologia promove a crença de que aquilo que é construto social é evidente,<br />
natural, imutável.<br />
Adentrando um outro aspecto: olhando as manchetes e as promoções do Meia Hora,<br />
perpetua-se um outro sentido de popular, num imaginário de que agrada ao popular/povo certos<br />
objetos de consumo. Na pesquisa alentada aqui, em que as edições dos meses de julho a setembro<br />
de 2008 foram analisadas, o Meia Hora periodicamente abre aos seus leitores a oportunidade de<br />
participar de campanhas em que brindes são ganhados mediante a compra de tantos exemplares de<br />
jornal e a coleção de selos numerados em cada edição. As promoções do jornal fazem parte da<br />
imagem que o Meia Hora, como instituição, faz de seu público-leitor, e indicam o que o veículo de<br />
comunicação imagina ser desejado pelos seus compradores. A partir disso podemos reconhecer<br />
alguns sentidos desse imaginário. Nos três meses de análise, a maior parte dos brindes das<br />
promoções foi relacionado a um sentido de pornografia, às vezes aliada a alguma comicidade (Gatas<br />
do Baralho foi uma promoção repetida duas vezes no período pesquisado, e ainda teve uma variação:<br />
Gata da Hora Playboyzinhas), de família (merendeira + kit lanche, concomitante, por um bom tempo, à<br />
segunda edição da promoção das Gatas do Baralho), esporte (Boné das Olimpíadas), consumo de<br />
eletrônicos (celular grátis, com a promoção Sua cartela vale a pena), estímulo à educação (promoção<br />
Meia Bolsa, em convênio com a universidade Unicarioca). Como Mariani (1998) e Gramsci (2006) já<br />
ressaltaram, o fato de que os leitores são consumidores não pode ser ignorado, portanto, os<br />
sentidos sobre o consumo também devem ser levados em conta. O consumidor popular imaginado<br />
pelo Meia Hora se interessa por pornografia, família, esportes, formação profissional. E em geral há<br />
uma preocupação em atrelar também as promoções a um caráter jocoso, de chiste, de trocadilho,<br />
como no nome da promoção Gatas do Baralho, em paronímia com ―gatas do caralho‖. Essa mesma<br />
comicidade é o que marca também as manchetes do Meia Hora, em seu funcionamento discursivo<br />
— na tipologia de discursos enumerada por Orlandi (1996) e já mencionada neste trabalho, o<br />
discurso do Meia Hora é do tipo polêmico, já que abre suas manchetes com várias possibilidades de<br />
sentido, mas as controla nos subtítulos, como na sequência a seguir:<br />
SD3: Vai te catar (manchete de 15 de julho de 2008)<br />
Está em jogo aqui a homofonia entre as palavras ―catar‖ e ―Qatar‖, o que remete a dois<br />
campos semânticos distintos e também implica um imaginário sobre o leitor do Meia Hora.<br />
Começamos aqui a entender o procedimento de mobilização da ―linguagem específica‖ da ―massa<br />
popular‖, como proposto na SD2.<br />
No dicionário Houaiss, 43 na definição da expressão ―ir-se catar‖, se a categoriza como de<br />
uso ―informal‖. Seria o modo ―informal‖ de pedir que outrem não amole ou que vá embora. A<br />
43 Em visita a redações de jornais, assessorias de imprensa e editoras, foi percebido que esse é o dicionário<br />
mais usado entre os profissionais. Não poderíamos abandonar esse feito, visto que pensar no Houaiss<br />
(impresso ou eletrônico) enquanto dicionário que é consultado como forma de os jornalistas reconhecerem as<br />
formas linguísticas e os sentidos dominantes é entendê-lo como tecnologia de gramatização equiparada aos<br />
próprios manuais de jornalismo no espaço discursivo do jornal. É o dicionário que, como os manuais, dá as<br />
diretrizes a serem seguidas na redação jornalística. Através de suas definições e categorizações, encontraremos<br />
alguns dos sentidos que vão-se imbricando de forma a ―editar‖ com que língua o jornalismo popular escreve,<br />
levando-o a um leitor popular imaginário. Não afirmo aqui que a cada manchete o jornalista consulte o<br />
dicionário Houaiss em busca de determinadas categorias de palavras, mas essas mesmas categorias, essas<br />
rubricas, bem como os significados, vão caucionando um imaginário da ―linguagem específica‖ das ―massas<br />
populares‖.
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linguagem das massas populares é dotada de uma informalidade, para o jornalismo popular —<br />
informalidade, assistematicidade, desorganização etc.. Segue a essa manchete, contudo, um subtítulo<br />
(SD4), que retorna à manchete como um ilusório fixador de sentidos, solucionador da ambiguidade<br />
(que seria, na ética–norma–jornalística, um problema):<br />
SD4: Caio Júnior esnobou os dólares que os árabes ofereceram para tirá-lo da Gávea<br />
e preferiu lutar pelo hexa do Brasileirão com o Mengão. Fla agora tenta segurar<br />
artilheiro Marcinho (subtítulo da manchete de 15 de julho de 2008, negrito meu)<br />
Podemos ao menos propor perguntas, de forma analítica e crítica, a partir de algumas<br />
manchetes — perguntas que poderiam ser feitas por um professor em sala de aula, tornando<br />
novamente cheio de sentidos, e não monossêmico, o discurso pedagógico... e mesmo o jornalístico,<br />
cujo funcionamento é desambiguizar o mundo, conforme Mariani (1998) discute. Então vejamos<br />
mais um caso em que, a partir da materialidade linguística, temos um vislumbre do imaginário de<br />
popular e de uma memória discriminatória que condena não apenas a homossexualidade, mas torna a<br />
violência banal.<br />
Num sentido de desaprovação da relação sexual homossexual, a edição do Meia Hora de 11<br />
de julho de 2008 faz uso de um recurso: um balão com aspecto explosivo. A partir desse balão,<br />
chegamos à SD5.<br />
SD5: Pelo menos não eram travecos (balão da matéria principal de 11 de julho de<br />
2008, negrito meu)<br />
O jogador de futebol Marcinho havia, segundo o jornal, participado de uma orgia e não<br />
pretendia usar proteção sexual com as prostitutas, tendo agredido uma das mulheres. Há, em SD5, a<br />
construção discursiva do referente Marcinho através da figura não silenciada e explícita do jogador<br />
Ronaldinho, que fora parar nos meios de comunicação tempos antes por supostamente ter se<br />
envolvido com transexuais que se prostituíam. Ameniza-se, com a expressão ―pelo menos‖, a<br />
agressão de Marcinho, personagem da manchete: embora ele tenha participado da orgia e tenha ido<br />
parar na delegacia por comportamento violento, pelo menos não havia tido parte em nenhuma relação<br />
homossexual. Em toda capa do Meia Hora, vai-se formando a imagem de um leitor e também a<br />
imagem de seus ―valores‖ culturais, de suas discriminações: dos sentidos que se opõem a outras<br />
formações discursivas e ideológicas. Aqui entra em jogo a discriminação sexual. A<br />
homossexualidade seria, para as massas populares imaginadas na instituição jornalística, mais<br />
condenável que a agressão física. E a violência, em todo caso, não é condenada, ao contrário de<br />
uma suposta homossexualidade. E por que, podemos perguntar aos alunos, essa violência é<br />
silenciada em detrimento ? Por que, indo mais além, o que explode na manchete (por meio de um<br />
recurso gráfico) é a discriminação contra o homossexualidade, e não a condenação da violência a<br />
quaiquer que seja a categoria profissional, gênero, sexo? Na Análise do Discurso, é importante não<br />
apenas adentrar no que foi dito e nos implícitos, como também no que deixou de ser dito em<br />
detrimento daquilo que foi parar no dizer material: assim podemos averiguar o funcionamento da<br />
ideologia no discurso, em sua dominância.<br />
Lendo o Meia Hora de Notícias, com seu funcionamento de comicidade e mesmo de riso,<br />
podemos perceber que ser engraçado não basta para que um discurso seja lúdico. A polissemia<br />
aberta, a imensa e transbordante possibilidade de sentidos na construção discursiva dos referentes,<br />
passa, sim, por uma brincadeira — sempre inevitável quando se trabalha nos vários sentidos<br />
possíveis para as palavras, nos devires das formações ideológicas —, mas esse é apenas o estágio<br />
incipiente. Do riso ao deslindar das (supostas) evidências ideológicas, questões devem ser feitas, em<br />
meio ao cômico, à brincadeira, mas também a muita crítica.
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Trabalhar com o Meia Hora em sala de aula é um procedimento extremamente válido, tal<br />
como com poemas, músicas e romances. O jornalismo integra a esfera em que vivemos, e é um<br />
campo discursivo repleto de sentidos que se podem nos apresentar como únicos e indubitáveis. Por<br />
isso mesmo a inserção de um veículo como esses na escola se faz não apenas útil, como necessário<br />
não a uma compreensão, mas a uma perspectiva crítica da realidade daquilo que chamamos de<br />
Brasil. Interlocutor em um discurso hegemonicamente autoritário, o professor toma um veículo de<br />
grande circulação carioca (o jornal Meia Hora tem preço baixo e uma campanha de divulgação<br />
extremamente bem-sucedida) e transforma o discurso pedagógico não num dizer meramente<br />
brincalhão — lúdico nos sentidos lidos na epígrafe de Black —, mas num discurso lúdico-crítico,<br />
abrindo uma miríade de possibilidades de leitura e de compreensão de como as classes sociais,<br />
principalmente as populares — que não são uma só nem homogêneas, a despeito do imaginário<br />
jornalístico —, são pensadas, identificadas e rechaçadas. Muitas vezes, com a desculpa de fazer o<br />
leitor rir, o rechaço acaba fazendo parte da produção de sentidos do jornal, e nem mesmo o<br />
percebemos em meio às gargalhadas, o que indica o funcionamento mais do que bem-sucedido da<br />
ideologia. O maior perigo é cair fascismo do riso, que pode matar a poesia aos tiros, às facadas, às<br />
porradas...<br />
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O DIA ON-LINE. ―Jornal Meia Hora: útil, vibrante, interativo, moderno e companheiro dos<br />
leitores. Tudo por apenas R$0,50‖. Portal de informações sobre o lançamento do jornal Meia Hora<br />
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PÊCHEUX, Michel. ―Delimitações, inversões, deslocamentos‖. Trad. José Horta Nunes. In:<br />
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PÊCHEUX, Michel, HAROCHE, Claudine; HENRY, Paul. ―A semântica e o corte saussuriano:<br />
língua, linguagem, discurso‖. Trad. Roberto Leiser Baronas e Fábio César Montanheiro. In:<br />
Linguasagem. 3. ed. São Carlos: UFSCar, 2008.<br />
Recebido – 19/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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DESENVOLVENDO A COMPREENSÃO LEITORA<br />
DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO<br />
Priscilla Vichinieski<br />
Acadêmica do curso de Letras<br />
Universidade Estadual do Centro-Oeste<br />
UNICENTRO Irati PR<br />
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo<br />
Mestre em Estudos Lingüísticos<br />
Universidade Estadual do Centro-Oeste<br />
UNICENTRO – Irati PR<br />
Resumo: Atualmente, questiona-se muito a respeito das práticas de leitura em sala de aula, as quais<br />
geralmente se fundamentam na concepção de que ler é extrair significados expostos na superfície<br />
do texto. Partindo desse pressuposto, este artigo tem por objetivo elaborar e discutir uma proposta<br />
para o desenvolvimento de leitura crítica no Ensino Médio a partir da noção bakhtiniana de<br />
compreensão responsiva ativa<br />
Palavras -chave: Leitura crítica. Compreensão responsiva ativa. Capacidade leitora.<br />
Resumen: En la actualidad existen dudas sobre la propia práctica de la lectura en el aula, que por lo<br />
general se basan en el concepto de que la lectura es la de extraer significados expuestos en la<br />
superficie del texto. Con base en este supuesto, este trabajo tiene como objetivo elaborar y discutir<br />
una propuesta para el desarrollo de la lectura crítica en la escuela secundaria de la noción bajtiniana<br />
de entendimiento sensible activos<br />
Palabras clave: lectura crítica. Comprensión de respuesta activa. La capacidad de los lectores.<br />
Introdução<br />
Muitas são as teorias que afirmam que o ato de ler está além de uma simples decodificação<br />
do texto. No entanto, no dia a dia da sala de aula isso não ocorre, ao contrario, o que observamos<br />
são alunos cada vez mais desmotivados, devido ao fato de que quando há o ensino de leitura no<br />
espaço escolar, ele é realizado de maneira ineficaz, visto que é praticado apenas como uma meta a<br />
ser preenchida pelo currículo da escola, e neste geralmente consta a leitura como algo que deve ser<br />
somente decifrado, sem levar em consideração a diversidade da leitura, a qual certamente conduzirá<br />
o aluno à variadas interpretações, contextualizando-as, de maneira que ele consiga não apenas<br />
decodificar as palavras como também ampliar a sua visão de mundo, sendo assim, um leitor ativo<br />
que dá sentido ao texto.<br />
Partindo desse pressupostos acima, esta pesquisa será baseada nas teorias de Bakhtin<br />
(2003); Rojo(2002) e Solé (1996), os quais enfatizam a leitura como um dos fundamentos na<br />
construção de um leitor eficiente e na formação de um cidadão crítico, formador de opiniões, o<br />
qual está vinculado a realidade como um todo, enfim a sociedade com a qual nos defrontamos.<br />
A natureza responsiva ativa da compreensão<br />
A leitura é considerada uma atividade fundamental a ser desenvolvida pela escola. É por<br />
meia dessa prática que há a possibilidade de constituição de um cidadão crítico, participante ativo<br />
da sociedade. Por isso, torna-se fundamental que as aulas de leitura instiguem o aluno a não só
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
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apreender as informações contidas na superfície do texto, mas também a refletir, a avaliar e a emitir<br />
um juízo de valor acerca do que é veiculado no texto. Sendo conduzida dessa maneira, a leitura<br />
permite que o indivíduo conheça o mundo e atue sobre ele, em busca de uma transformação. De<br />
acordo com Silva:<br />
Estabelecida a relação de conhecimento entre o homem e o mundo, deve-se<br />
investir no crescimento individual do sujeito-leitor com vistas à formação do<br />
leitor adulto ou maduro. Por leitor maduro, entende-se aquele que não somente<br />
decodifica e parafraseia um texto, mas o lê ativa e criticamente (1997, p.86).<br />
Assim, formar um leitor ―maduro‖ é um desafio para a escola de hoje, ainda arraigada em<br />
práticas de leitura como decodificação e extração de significados do texto. Nessa perspectiva,<br />
documentos oficiais como os PCN's – Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa<br />
(BRASIL, 1998) e as DCE's – Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná<br />
(PARANÁ, 2008) e diversas pesquisas desenvolvidas no âmbito da Linguística Aplicada vêm<br />
demonstrando que os estudos de Bakhtin sobre a compreensão responsiva podem inspirar novos<br />
contornos para as práticas leitoras no contexto da sala de aula de modo a propiciar o<br />
desenvolvimento do aluno-leitor.<br />
Bakhtin (2003, p 54) afirma que ―toda compreensão de um texto falado ou escrito implica<br />
uma responsividade e um juízo de valor‖. Assim sendo, o leitor sempre oferece uma réplica ao<br />
texto, avaliando, refletindo, comparando, discutindo, concordando ou não com as ideias e pontos<br />
de vista do autor. Ainda para Bakhtin:<br />
que<br />
Qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo, deve conter já o germe<br />
de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a<br />
evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo<br />
evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação<br />
a ela, encontrar seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra<br />
da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos<br />
corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais<br />
numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é nossa<br />
compreensão(2003, p.136).<br />
Em estudos sobre a compreensão responsiva bakhtiniana, Angelo e Menegassi afirmam<br />
Bakhtin/Volochinov, ao estabelecerem a compreensão como necessariamente<br />
ativa, evidenciam com isso que toda atitude responsiva é ativa e trazem novos<br />
dados para os estudos sobre a prática leitora, postulando ser ela ativa, postura<br />
associada à visão de língua em sua totalidade, ou seja, no interior das relações<br />
sociais (2011).<br />
Assim, entendemos que na leitura ativa o leitor dialoga com o texto lido, formando as<br />
contrapalavras, isto é, toma as palavras do autor (suas ideias, suas visões de mundo, seus<br />
conhecimentos) para a constituição das palavras próprias (as ideias, as visões de mundo, os<br />
conhecimentos próprios). ―A compreensão é uma forma de diálogo, ela está para a enunciação<br />
assim como a réplica está para a outra no diálogo, compreender é opor à palavra uma<br />
contrapalavra.(BAKHTIN, 2003, p.98)‖. Portanto, ler significa apresentar uma contrapalavra ao<br />
texto; esta encontra-se vinculada à compreensão responsiva ativa, visto que é através da união de<br />
ambas que se tem a oportunidade de construir um cidadão crítico, ativo que participa das relações<br />
sociais, um indivíduo que toma uma atitude responsiva em relação a si e às situações cotidianas.
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Observamos que as noções bakhtinianas de compreensão responsiva ativa vêm<br />
repercutindo nos documentos oficiais e nas propostas de ensino de leitura nas escolas. De<br />
acordo com as DCE's,<br />
(...) a leitura é vista como um ato dialógico, interlocutivo. O leitor, nesse<br />
contexto, tem um papel ativo no processo de leitura, e para se efetivar como coprodutor,<br />
procura pistas formais, formula e reformula hipóteses, aceita ou rejeita<br />
conclusões, usa estratégias baseadas no seu conhecimento linguístico, nas suas<br />
experiências e na sua vivência sociocultural (PARANÁ, 2008, p.71).<br />
Com esse pressuposto, pode-se afirmar que um dos aspectos necessários para que se<br />
constitua a leitura réplica é que leitor se torne co-produtor, ao usar sua bagagem de conhecimentos<br />
prévios para interagir com o texto, procurando pistas, levantando e analisando hipóteses,<br />
avaliando/ formando pontos de vista e opiniões diversos.<br />
De modo semelhante, nos PCN's destaca-se a leitura como ―um processo no qual o leitor<br />
realiza um trabalho ativo de construção do significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu<br />
conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua‖ (BRASIL, 1998,<br />
p.41) Assim, um dos deveres da escola é formar um leitor ativo, que interaja segundo suas próprias<br />
diretrizes, com relação direta ao mundo.<br />
Diversos estudiosos da Linguística Aplicada, ao tomarem os pressupostos bakhtinianos,<br />
discutem a necessidade de a escola desenvolver a leitura réplica. Rojo afirma que:<br />
(...)ler é escapar da literalidade dos textos e interpretá-los, colocando-os em<br />
relação com outros textos e discursos, de maneira situada na realidade social, é<br />
discutir com os textos, avaliando posições e ideologias que constituem seus<br />
sentidos, é enfim trazer o texto para a vida e colocá-lo em relação com ela.<br />
(ROJO, 2002, p.36)<br />
Dessa forma, é possível visualizar a leitura por um outro viés, no qual o sujeito, passa a ser<br />
não somente um leitor de textos escritos, como também um leitor de mundo.<br />
Para Angelo e Menegassi, é preciso que a escola ensine o leitor a assumir uma postura<br />
responsiva ativa:<br />
Nesse caso, o leitor vai além das linhas, para julgar, questionar o que foi lido e<br />
compreendido, estabelecendo a noção de leitura réplica (Rojo, 2009; Menegassi,<br />
2010a). No contexto escolar, a formação e o desenvolvimento desse tipo de<br />
leitor pressupõem atividades que instiguem o aluno à reflexão, que lhe<br />
possibilitem produzir, avaliar, debater as visões e ideias do mundo a partir da<br />
interação com o autor, via texto (2011).<br />
Partindo dessas discussões, chega-se à conclusão de que a escola precisa criar caminhos<br />
alternativos para que o leitor em formação aprenda a discutir, avaliar e apresentar contrapalavras<br />
aos pontos de vista e visões da realidade a partir do diálogo ativo com o autor e o texto. A leitura,<br />
assim, torna-se fonte de informação e formação cultural, na qual constituímos nossos próprios<br />
valores e visões sobre o mundo com o qual nos defrontamos.<br />
Desenvolvendo a leitura ativa no Ensino Médio<br />
Para que haja a constituição de leitores ativos e ―maduros‖, como diz Silva (1997), é preciso<br />
que o leitor coloque toda a sua bagagem de conhecimentos prévios para que, interagindo com as<br />
pistas apresentadas pelo texto, seja capaz de perceber e refletir sobre as ideias e valores defendidos
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pelo autor, constituindo as palavras próprias. Para tanto, defendemos que o trabalho com os textos<br />
deve envolver três momentos: antes da leitura, durante a leitura e após a leitura. Como ilustração dessa<br />
proposta, sugerimos alguns encaminhamentos de leitura para o poema O Bicho de Manuel Bandeira.<br />
As atividades antes da leitura têm por objetivo relacionar o conhecimento prévio dos<br />
alunos com as informações explícitas no texto a ser lido, bem como motivar o aluno para a leitura,<br />
visando, assim, a uma prática que reverta os padrões de ensino de leitura utilizados pela maioria das<br />
escolas atualmente, em que o aluno não encontra estímulo para ler. De acordo com Taglieber e<br />
Pereira, é necessário:<br />
(...) que antes de fazer a leitura propriamente dita, o professor explique de uma<br />
forma geral sobre o tema do texto, chame a atenção do aluno para certos<br />
aspectos do texto, tais como: figuras, título, gênero textual...; incentive os alunos<br />
a falarem o que já sabem por meio de questões que busquem informações<br />
acerca da vida cotidiana. (1997,p.47)<br />
Para Solé, tudo que pode ser feito antes da leitura tem a finalidade de:<br />
(…) suscitar a necessidade de ler, ajudando-o a descobrir as diversas utilidades<br />
da leitura em situações que promovam sua aprendizagem significativa.<br />
Proporcionar-lhe os recursos necessários para que possa enfrentar com<br />
segurança, confiança e interesse a atividade de leitura. Transformá-lo em todos<br />
os momentos em leitor ativo, isto é, em alguém que sabe por que lê e que<br />
assume sua responsabilidade ante a leitura, aportando seus conhecimentos e<br />
experiências, suas expectativas e questionamentos. (SOLÉ, 1996, p.114)<br />
Além disso, consideramos que antes mesmo de o aluno ter um primeiro contato com o<br />
texto, ele já seja estimulado a construir uma opinião crítica, refletindo sobre aspectos da sociedade,<br />
pois para Kleiman(2010,p.13) ―a compreensão de um texto é um processo que se caracteriza pela<br />
utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe, o conehcimento<br />
adquirido ao longo se sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento que<br />
interagem entre si, a leitura é considerada um processo interativo‖ Para tanto, sugerimos que o<br />
professor apresente as seguintes imagens para o aluno:
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Após os alunos visualizarem as imagens, propõem-se atividades que gerem<br />
questionamentos em relação à sociedade, que instiguem o aluno a inferir melhores críticas ao tema<br />
estudado, visto que as mesmas representam uma ―imagem de mundo‖.<br />
Através das gravuras, propõe-se dar continuidade as atividades de leitura crítica,<br />
incorporando ao aluno mais conhecimento e formação cultural:<br />
Em que lugar você acha que essas imagens aparecem?<br />
Qual a temática das imagens?<br />
O que é mostrado nas imagens? O que está acontecendo na sua opinião?<br />
Baseando-se nas respostas 1,2 e 3, responda as seguintes questões:<br />
a) Que valores as imagens transmitem?<br />
b) Para que as imagens sejam de fácil compreensão, que conhecimento prévio é necessário para que isso<br />
ocorra?<br />
c) Há diferenças e semelhanças com alguma outra imagem que você já viu?<br />
Para dar seguimento, sugerimos um encaminhamento de atividades durante a leitura, em<br />
busca da constituição de leitores responsivos ativos e críticos.<br />
Como proposta de trabalho, através do poema O Bicho, de Manuel Bandeira, será explorado<br />
a formação de leitores críticos, com o intuito de mudar a visão atual sobre a leitura, e esclarecer que<br />
o ato de ler não é uma atividade linear que visa basicamente observar o que está visível no texto,<br />
pois de acordo com Rangel(2007, p.28) ―a leitura está inserida na esfera social, histórica e<br />
ideológica, não se restringindo as ferramentas decodificadoras da palavra, vinculada na escola como<br />
objeto de conquista de uma prática social.‖<br />
Propõe-se portanto, explicar aos alunos o que será lido e por que será feita essa leitura, pois<br />
de acordo com Solé (1996, p.111), essa explicação ―manterá os alunos absortos da história, o que<br />
contribuíra para melhorar sua compreensão‖<br />
Assim, em um primeiro momento realizar apenas a leitura do começo do poema, pois<br />
dessa forma os alunos terão que debater sobre o final do mesmo, questionando-se sobre que bicho<br />
o poema retrata.<br />
O bicho<br />
Vi ontem um bicho<br />
na imundície do pátio<br />
catando comida entre os detritos<br />
quando achava alguma coisa,<br />
não examinava nem cheirava:<br />
engolia com voracidade.<br />
Durante a leitura, pretende-se que cada verso do poema, se recapitule, para que se<br />
estabeleça pressuposições e se formulem perguntas, pois para Solé (1996, p.118) o leitor é o<br />
responsável por ―estabelecer previsões coerentes sobre o que está lendo, que as verifique e se<br />
envolva em um processo ativo de compreensão.‖<br />
Realizar então, questões orais:<br />
1. A que bicho vocês acham que o autor se refere?<br />
2. Que local provavelmente ele vive?<br />
3. Quais efeitos de sentidos as palavras “imundície”, “catando” e “voracidade” evocam?
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Assim, podemos afirmar que há uma interação entre leitor e texto, e está poderá ser mais<br />
produtível, desde que haja estratégias de leitura que possibilitem ao leitor, ter uma maior<br />
compreensão do que será lido, pois de acordo com Kleiman(2010, p.53) ―quando falamos de<br />
estratégias de leitura, estamos falando de operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias<br />
podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do<br />
comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de resposta que ele dá a perguntas<br />
sobre o texto.‖<br />
Após, realizar a leitura completa do poema, a qual pode ser compartilhada<br />
professor/aluno, tanto em voz alta como silenciosa, verifica-se, que este é um poema que pode<br />
gerar grande criticidade dentro da sala de aula, pois é de cunho social, relata o que acontece na<br />
sociedade em que vivemos, possibilitando aos alunos uma interpretação mais ampla, não apenas<br />
decifração de códigos, mas sim, inferências e aprimoramento da leitura, visando também ao que<br />
está implícito no poema, pois Silva(1993, p.25) afirma que ―o ato de ler não se esgota na<br />
decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na<br />
inteligência do mundo.‖<br />
O bicho<br />
Vi ontem um bicho<br />
na imundície do pátio<br />
catando comida entre os detritos<br />
quando achava alguma coisa,<br />
não examinava nem cheirava:<br />
engolia com voracidade.<br />
O bicho não era um cão,<br />
não era um gato,<br />
não era uma rato.<br />
O bicho, meu Deus, era um homem.<br />
Manuel Bandeira<br />
Após as atividades ―durante a leitura‖, serão realizadas perguntas de compreensão e<br />
interpretação, nas quais ficará enfatizada a relação do texto lido com o real, pois de acordo com<br />
Micheletti (2000, p.16), ―é da leitura que brota a construção do real... o leitor salta para a vida e para<br />
o real na medida em que a leitura da palavra escrita pode conduzi-lo a uma interpretação do<br />
mundo.‖<br />
Dessa forma, a partir da interação entre conhecimento de mundo e leitura, é possível<br />
executar atividades de pós-leitura, pois como afirma Isabél Solé (1998, p.161) ―depois da leitura<br />
continuamos aprendendo e compreendendo. Propõe -se portanto, desempenhar atividades de<br />
compreensão e levar os alunos a construírem o sentido do poema com criticidade:<br />
1. Existe alguma relação entre o poema O bicho e a realidade humana? Se sim, qual?<br />
2. Qual o tema abordado no poema?<br />
3. Baseando-se nas respostas “a” e “b”, quais aspectos no poema indicam seu caráter crítico?<br />
4. De acordo com suas respostas anteriores, responda:<br />
a) Por que tal título?<br />
b) Na sua opinião, por que se abandonou o homem?<br />
c) Por que o pátio era imundo?<br />
d) Qual a relação entre os animais citados no poema com a sociedade atual? Quais efeitos de sentido eles provocam?<br />
e) Quem ganha com tudo isso?<br />
f) Há algum modo de mudar o pensamento da sociedade? Qual?
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Para finalizar, propor atividades, nas quais será checado o que os alunos compreenderam e<br />
recordam de um determinado texto, desenvolvendo um maior questionamento em relação a nossa<br />
sociedade. Para Solé (1996, p.155) ―o leitor capaz de responder perguntas pertinentes sobre o texto,<br />
está mais capacitado para regular seu processo de leitura e, portanto, poderá torná-lo mais eficaz.‖<br />
1. Como são as crianças e/ou adultos representados no poema e nas imagens?<br />
2. Por que são retratados dessa maneira?<br />
3. Como as leituras exploradas, instigam o leitor a pensar?<br />
4. Haveria outras interpretações possíveis? Quais?<br />
5. Que relações, comportamentos e valores são demonstrados tanto no poema como nas imagens? São positivas<br />
ou negativas? Explique:<br />
6. Que tipo de proximidade entre leitor, imagens e poema são estabelecidas?<br />
Como pode-se observar, todas as atividades estão pautadas na formação de um leitor<br />
crítico, nas quais o aluno não só busca as respostas explícitas como também aquelas que estão<br />
inferidas, o leitor precisa das pistas deixadas no texto para que possa compreendê-lo e chegar as<br />
respostas das perguntas.<br />
Dessa forma, como afirma Bakhtin, o aluno ativa seus conhecimentos prévios acerca da<br />
sociedade que está inserido e estes conhecimentos são ligados as informações contidas no texto,<br />
fazendo com que o mesmo construa seus próprios conceitos e pontos de vista sobre a realidade<br />
humana, implicando assim, uma responsividade e um juízo de valor ao texto lido.<br />
Portanto, podemos considerar que tanto o poema de Manuel bandeira quanto as imagens,<br />
apontam referências com o que está descrito nas DCE's e nos PCN‘s, ambas fazem com que o<br />
aluno formule e reformule hipóteses de interpretação textual e visual, relacionando-as com sua<br />
vivência sociocultural.<br />
Assim, o leitor diante de suas reflexões e julgamentos leva a temática do poema e da<br />
gravura para sua experiência de vida, produzindo o seu próprio texto, ou seja, o texto do leitor, no<br />
qual podemos considerar, como foi observado nas afirmações de Bakhtin, uma réplica das leituras,<br />
pois usou-se de um discurso anterior para formar um discurso resposta, e este, deu existência à<br />
compreensão responsiva ativa, na qual há a possibilidade de construir um cidadão crítico, que<br />
enxerga a sua frente, e que toma atitudes em relação a si e para com a sua sociedade.<br />
Conclusão<br />
Conclui-se que a leitura crítica tem grande importância no contexto escolar, visto que é<br />
através desta que pode-se formar cidadão críticos dentro de nossa sociedade, assim, o leitor passa<br />
de decifrador de códigos para um leitor ativo, o qual, além de ler, entende e opina sobre o que foi<br />
lido. E desse modo, a leitura revela-se como um mecanismo de transformação da realidade, em que<br />
o ato de ler torna-se uma atividade de conhecimento e prazer, pois a partir desta, o aluno consegue<br />
uma transformação pessoal, na qual transforma-se em um leitor crítico, opinando sobre e si e sobre<br />
o que o rodeia.<br />
Referências<br />
MICHELETTI, Guaraciaba. Leitura e construção do real: o lugar da poesia e da ficcao . Sao<br />
Paulo: Cortez. 2000<br />
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed., Porto Alegre: Artmed, 1998.<br />
KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor. Aspectos Cognitivos da Leitura. 3..ed.Campinas: Pontes,<br />
2010<br />
Kleiman, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. 3ed. Campinas: Pontes, 2010.<br />
Bandeira, Manuel. O Bicho. Rio, 27 de dezembro de 1947
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ROJO,Roxane. A concepção de leitor e produtor de textos nos PCNs: ―Ler é melhor do que<br />
estudar‖. In M. T. A. Freitas & S. R. Costa (orgs) Leitura e Escrita na Formação de<br />
Professores. 2002.UFJF<br />
ANGELO, C.M.P.; MENEGASSI, R. Manifestações de compreensão responsiva em avaliação de<br />
leitura. <strong>Revista</strong> Linguagem & Ensino. v. 13, 2011. (no prelo)<br />
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. 4. ed. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos.<br />
Brasília, DF, 1998.<br />
PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para os<br />
Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio: Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008.<br />
SILVA, O. R. K. da. O espaço para a formação do leitor crítico. In: <strong>Revista</strong> UNIMAR 19 (I): 85-<br />
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TAGLIEBER, L. K. PEREIRA C. M. Atividades de pré-leituras. Gragoatá, Niterói. 1.sem.,1997<br />
SILVA, Ezequiel Theodoro. Leitura na biblioteca e na escola. 4.ed. São Paulo: Papirus, 1993.<br />
Enviado – 22/07/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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O PESQUISADOR E SEU LUGAR EXTERIOR: EXOTOPIA E<br />
RESPONSI(A)BILIDADE<br />
Rodrigo Acosta Pereira 44<br />
José Agostinho Barbosa de Souza 45<br />
Resumo: O presente estudo objetiva apresentar uma breve discussão teórica acerca da visão do<br />
Círculo de Bakhtin acerca da metodologia em Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os escritos<br />
do Círculo, assim como de seus interlocutores contemporâneos no campo da Educação e da<br />
Linguística Aplicada. O estudo apresenta-se relevante, à medida que contribui para as discussões<br />
atuais sobre a análise do agir humano, dos discursos e dos sujeitos em suas práticas interacionais da<br />
vida social.<br />
Palavras-chave: Ciências Humanas; metodologia; Círculo de Bakhtin.<br />
Abstract: The present essay aims at introducing a brief discussion concerning the Bakhtin‘s Circle<br />
view about the Human Science methodology. To do so, we review the Circle‘s postulations as well<br />
as the contemporary researches‘ texts about this theme. The study is relevant because it contributes<br />
to the investigation of human act, the analysis of human discourse and social interaction practices.<br />
Key-words: Human Science; methodology; Bakhtin‘s Circle.<br />
Introdução<br />
O objetivo do estudo é apresentar uma revisão teórica a respeito do posicionamento do<br />
Círculo de Bakhtin acerca da metodologia nas Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os<br />
escritos do Círculo, procurando relacionar suas discussões sobre a epistemologia nas Ciências<br />
Humanas, com as explicações sobre a compreensão, a exotopia, a responsabilidade e a<br />
responsibilidade.<br />
O trabalho organiza-se da seguinte forma: na primeira seção, discutimos a respeito da<br />
epistemologia das Ciências Humanas sob o olhar bakhtiniano; na segunda seção, revisitamos os<br />
estudos dos interlocutores do Círculo a respeito do tema aqui proposto e, ao fim, em nossa terceira<br />
seção, apresentamos discussões sobre o conceito de exotopia e sua relação com o pesquisar em<br />
Ciências Humanas.<br />
As Ciências Humanas sob o olhar do Círculo de Bakhtin<br />
Bakhtin vinculava-se a um pensamento que se construia a partir da distinção entre as<br />
ciências naturais e as ciências humanas. Para Faraco (2009), esse vínculo parece ter se construído a<br />
partir das leituras de Bakhtin e o Círculo dos trabalhos de Wilhelm Dilthey (1833-1911), pensador<br />
alemão que se encontrava no centro dos debates sobre o estatuto das Ciências Humanas e Sociais<br />
no início do século XIX. Dilthey posicinou-se entre os pensadores de sua época que se colocavam<br />
contra o objetivo positivista de se reduzir as ciências em ciências da natureza. Como explica Faraco<br />
(2009) a respeito,<br />
44 Professor de Linguística/Língua Portuguesa do curso de Letras da UFRN. Coordenador adjunto do GEID<br />
– Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Discursos (UFRN-CERES-DCSH-PROEX). Pesquisador<br />
integrante das bases de pesquisa Letramento e etnografia (UFRN-PPGel) e Práticas linguísticas diferenciadas (UFRN-<br />
CERES-DCSH).<br />
45 Acadêmico do Programa de Pós-graduação em Turismo da UFRN. Bacharel em Turismo pela UNIVALI<br />
(SC).
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Segundo Dilthey, o objeto das ciências da natureza (os fenômenos naturais) é<br />
estranho ao sujeito cognoscente no sentido de que o ser humano não pode<br />
conhecê-lo por dentro, a partir do interior; já o objeto das ciências do espeírito<br />
(o mundo da cultura) não é estranho ao sujeito. É por ser o mundo da cultura a<br />
expressão de uma vivência humana que o sujeito cognoscente pode aqui<br />
conhecer de dentro o objeto, isto é, o sujeito, por pertencer ao mundo da<br />
cultura, pode senti-lo por dentro, pode ter dele uma percepção íntima, pode<br />
reviver e reproduzir a experiência dos outros seres humanos, pode penetrar em<br />
seus significados (FARACO, 2009, p. 41).<br />
Assim, enquanto o ideal metodológico das ciências da natureza é a explicação (e a relação<br />
objetiva entre os fenômenos), o das ciências do espírito (em termos diltheyianos) é a compreensão<br />
(o significado das ações humanas). Ou como discute Bakhtin (2003, p. 393), o conhecimento da<br />
coisa e o conhecimento do homem, dois limites distintos. Para o autor, a epistemologia das Ciências<br />
Humanas reside sob o âmbito do conhecimento do indivíduo, isto é, ―a ideia de Deus em presença<br />
de Deus‖ (p. 394), a ciência do espírito, em termos diltheyianos. De acordo com Bakhtin (2003), o<br />
objeto das Ciências Humanas é o ser expressivo e falante; é o estudo da necessidade livre e<br />
emotivo-volitiva do indivíduo. Nesta persectiva, o critério metodológico não está na exatidão<br />
objetiva e lógica do conhecimento, mas na profundidade da compreensão do eu para o outro. As<br />
Ciências Humanas remetem-se, dessa forma, à ―complexidade do ato bilateral de conhecimentopenetração‖<br />
(BAKHTIN, 2003, p. 394).<br />
A ideia de conhecimento-penetração é entendida por Bakhtin (2003) como a capacidade do<br />
sujeito conhecer e exprimir a si mesmo, estando, por conseguinte, diante da expressão e da<br />
compreensão da expressão, resultando na complexa dialética entre o interior e o exterior. Essa<br />
dialética, segundo o autor, se constitui, à medida que o sujeito não tem mais apenas o horizonte do<br />
meio, mas também seu horizonte próprio. É o que bakhtinianamente podemos entender como ―a<br />
interação do horizonte cognoscente com o horizonte cognoscível.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 394).<br />
Para que ocorra essa construção dialética de conhecimento-penetração, processo comum das<br />
Ciências Humanas, nos elementos da expressão se entrecruzam e se combinam duas consciências, a<br />
consciência do eu e a do outro. Assim, Bakhtin chega à sua proposição central de que o objeto das<br />
Ciências Humanas é o homem e sua expressividade nos atos do exitir-singular (BAKHTIN, 2010).<br />
Considerando o homem enquanto objeto das Ciências Humanas, Bakhtin (2003; 2010)<br />
ratifica que este, de maneira alguma, coincide consigo mesmo e é por esta razão que se encontra<br />
inesgotável em seu sentido. A formação do ser, nos diz Bakhtin, é uma formação livre, posto que a<br />
liberdade é inerente a toda expressão. No entanto, retoma o autor, o ser da expressão é bilateral: ―só<br />
se realiza na interação de duas consciências; a penetração mútua com manutenção da distância; é o<br />
campo de encontro de duas consciências, a zona de contato interior entre elas.‖ (BAKHTIN, 2003,<br />
p. 395-396). É, dessa forma, que se constitui a ideia de conhecimento-penetração.<br />
Sob essa perspectiva, Bakhtin (2010, p. 42) apresenta suas explicações sobre o teoricismo<br />
grosseiro que busca incluir o mundo da cognição teórica no existir único. Para o autor, uma<br />
caraterística comum do pensamento teórico nas Ciências Naturais é que estas estabelecem uma<br />
separação entre o conteúdo-sentido (a responsabilidade especial) de um determinado ato-atividade e<br />
a realidade histórico-cultural de seu existir, ―sua vivência realmente irrepetível‖. Por consequência,<br />
segundo o autor, o ato acaba por perder o seu valor (sua expressividade), a sua unidade de vivo (sua<br />
responsabilidade moral). Bakhtin (2010) busca entender o ato na sua totalidade.<br />
Por essa totalidade, Bakhtin (2010) entende que, o ato singular do existir único reflete-se<br />
em ambas as direções, ocorrendo a bilateralidade acima mencionada, à medida que o ato se reflete<br />
seja em relação ao conteúdo (o que o autor denomina de responsabilidade especial) e em relação ao seu<br />
existir (denominado pelo autor de responsabilidade moral). Assim, a responsabilidade especial deve ser
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um momento incorporado de responsabilidade moral do sujeito único em seu ato singular.<br />
―Somente assim se pode superar a separação entre construir a mútua penetrabilidade entre o<br />
mundo da cultura (o mundo teórico) e o mundo da vida (o mundo das ações humanas situadas).<br />
Bakhtin (2010) claramente observa que o mundo de teorias autônomas, abstratas e alheias à<br />
historicidade vivida e singular permanecem fechadas em si mesmas em suas fronteiras rigidamente<br />
limitadas e em sua autonomia justificada e inviolável, à medida que seu objeto é desvozeado,<br />
ahistórico, coisa. Entretanto, para o autor, o mundo como objeto de conhecimento teórico, busca a<br />
concretude e sua totalidade, procura pela compreensão do ato e seu valor histórico único, o que o<br />
autor entenderia como uma filosofia da compreensão (BAKHTIN, 2003, p. 396).<br />
A compreensão é vista por Bakhtin (2003) como visão do sentido, ―não uma visão<br />
fenomênica e sim uma visão do sentido vivo da vivência da expressão, uma visão do fenômeno<br />
internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido.‖ (p. 396). Uma filosofia da<br />
expressão, a expressão como campo dialógico de encontro de duas consciências.<br />
A compreensão entendida como o entendimento de seu desdobramento em atos<br />
particulares, posto que, para Bakhtin (2003; 2010), na compreensão efetiva, os atos reais e concretos<br />
se fundem à compreensão de forma indissolúvel em um processo único, mesmo que, cada ato<br />
tenha sua autonomia semântica. De acordo com o autor, a compreensão, em seu contexto<br />
dialógico-valorativo, se constitui em quatro momentos: (i) a perecepção meramente psicofisiológica<br />
do signo físico (a palavra, sua forma, seus atributos); (ii) seu reconhecimento e, portanto, seu<br />
significado reprodutível na língua; (iii) a compreensão do significado em dado contexto (imediato e<br />
amplo) e (iv) a compreensão ativo-dialógica (e sua consequente expressividade).<br />
Com isso, entendemos que a compreeensão em Bakhtin (2003) está sob a égide do sentido,<br />
entendido aqui como um potencial de sentidos (BAKHTIN, 2003, p.404), isto é, o sentido em seu<br />
contexto dialógico e valorativo, em toda sua profundidade e complexidade (BAKHTIN, 2003, p.<br />
398). O sentido a partir da antecipação do contexto e sua relação com a totalidade: os ―já-ditos‖<br />
preenchidos e as possibilidades antecipadas e, portanto, a relação dialógica com outros sentidos.<br />
Em outras palavras, o sentido, em termos de gestos interpretativos em correlação com outros<br />
gestos, e sua consequente reacentuação em um novo contexto, de fato, etapas de movimento dialógico<br />
de interpretação: ―o ponto de partida – um dado texto, o movimento retrospectivo – contextos do<br />
passado, movimento prospectivo – antecipação (e início) do futuro contexto.‖ (BAKHTIN, 2003,<br />
p. 401). É o que Bakhtin (2003) entende como a índole dialógica da interpretação, posto que, para o<br />
autor, ―toda a interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos.‖ (p. 400).<br />
Assim, diferentemente das Ciências Exatas e Naturais como formas monológicas do saber,<br />
as Ciências Humanas apresentam-se como ciências do discurso (AMORIM, 2004), e por<br />
consequencia, essencialmente dialógicas. Bakhtin (2003) explica:<br />
As ciências exatas são uma forma monológica do saber: o intelecto contempla<br />
uma coisa e emite enucniado sobre ela. Aí só há um sujeito: o cognoscente<br />
(contemplador) e o falante (enunciador). A ele só se contrapõe a coisa muda.<br />
Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido<br />
como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como<br />
coisa, porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo;<br />
consequentemente o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico.<br />
(BAKHTIN, 2003, p. 400, grifos do autor).<br />
Bakhtin (2003) discorre sobre esse ativismo dialógico do sujeito cognoscível que se<br />
pressupõe nas Ciências Humanas (ciências do espírito), entendendo que a coisa e o sujeito como os<br />
limites do conhecimento. Sob essa questão, Bakhtin entende que, ao estudar o sujeito e não a coisa,
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estamos procurando entender o pensamento sobre o mundo e o pensamento no mundo, isto é, o<br />
acontecimento do sujeito no mundo, sua participação nele e, por sua vez, sua avaliação, esta ―como<br />
momento indispensável do conhecimento dialógico.‖ (BAKHTIN, 2003, p. 400).<br />
Quanto à avaliação, Bakhtin (2003) entende como um tom, uma entonação acentuadamente<br />
expressiva, capaz de estender e deslocar-se a quaisquer palavras e expressões, determinando a<br />
tonalidade de cada consciência, ―tonalidade que serve de contexto axiológico-emocional na nossa<br />
interpretação; o que revela e se revela por meio do potencial de sentidos. Trata-se ―de fazer o meio<br />
material [...] começar a falar, isto é, descobrir nesse meio a palavra em potencial e o tom, de<br />
transformá-lo no contexto semântico do indivíduo pensante [...]. (BAKHTIN, 2003, p. 404). Além<br />
disso, para o autor, em qualquer momento do desenvolvimento da compreensão, há sentidos<br />
esquecidos de forma ilimitada, contudo, em determinados momentos sucessivos, tais sentido são<br />
recuperados e reacentudaos, vivendo em novos contextos. Como bem observa o autor: ―não existe<br />
nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo.‖<br />
(BAKHTIN, 2003, p. 410).<br />
Assim, após retomarmos os escritos bakhtinianos sobre a relação entre as ciências da coisa e<br />
as ciências do homem, procuramos construir um diálogo com interlocutores contemporâneos de<br />
Bakhtin para apresentarmos discussões outras sobre a perspectiva bakhtinana nas Ciências<br />
Humanas e sua posição sócio-histórico-cultural de entender o homem e seu discurso.<br />
Um diálogo com os “já-ditos” sobre a epistemologia nas Ciências Humanas<br />
À luz da perspectiva bakhtiniana, diferentes pesquisadores têm questionado as orientações<br />
positivistas de pesquisa em Ciências Humanas como requisito de asseguridade científica<br />
(AMORIM, 2003; 2006; FREITAS, 2003; GERALDI, 2003; PONZIO, 2009; ROJO, 2006). Em<br />
oposição a uma postura positivista, a visão sócio-histórica-cultural entende que o saber teórico,<br />
instituído epistemologicamente na esfera da ciência, precisa dialogar com concepções construídas<br />
nas práticas e relações sociais cotidianas, ―possibilitando uma permanente troca entre visões de<br />
mundo que se expressam através de registros de linguagem e de gêneros discursivos distintos‖<br />
(FREITAS et al., 2003, p. 7-8). Como pontuam as autoras:<br />
Os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica, cada vez<br />
mais elaborada, sobre a experiência humana, na medida em que são capazes de<br />
permitir que os diferentes gêneros do discurso (desde o discurso acadêmico até<br />
as formas cotidianas de expressão, através de ações, opiniões e representações<br />
sociais) possam interagir, transformando e ressignificando mutuamente as<br />
concepções, sobre o conhecimento e a experiência humanas que circulam entre<br />
as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento<br />
histórico. (FREITAS et al., 2003, p. 8).<br />
Assim, na presente pesquisa, entendemos que as visões de homem, de língua e de<br />
conhecimento presentes numa determinada abordagem epistemológica demarcam sua organização,<br />
de forma geral, metodológica e conceitual. Com isso, a posição sócio-histórico-cultural e dialógica<br />
de Bakhtin nos apresenta mudanças significativas de compreensão e desenvolvimento de estudos<br />
no campo das Ciências Humanas. Concordamos com Amorim (2003; 2004) quando a autora<br />
considera que nas Ciências Humanas se conjugam as dimensões ética e estética para resultar em<br />
outra dimensão, que é a epistemológica.<br />
Assim, situando Bakhtin nas Ciências Humanas e revisitando os estudos de Freitas (2003),<br />
entendemos que as pesquisas qualitativas de ordem sócio-histórico-cultural e dialógica pressupoem<br />
passos metodológicas que seguem as seguintes características (FREITAS, 2003, p. 27):
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(a) a fonte dos dados são os textos, compreendidos em sua situação (imediata e ampla) de<br />
interlocução, isto é, entendidos no acontecimento no qual emergem, vistos como enunciados, no<br />
sentido bakhtiniano da expressão. Em outras palavras, ―procura-se, portanto, compreender os<br />
sujeitos envolvidos na investigação para, através deles, compreender também o seu contexto‖<br />
(FREITAS, 2003, p. 27);<br />
(b) as questões de pesquisa não são dadas a priori, nem estabelecida a partir de variaveis<br />
quantificadas, mas surgem da complexidade particular dos fenômenos sócio-historicamente<br />
situados 46. ―Isto é, não se cria artificialmente uma situação para ser pesquisada, mas vai-se ao<br />
encontro da situação no seu acontecer, no seu processo de desenvolvimento‖ (FREITAS, 2003, p.<br />
28).<br />
(c) o percurso da coleta é caracterizado pela compreensão de índole dialógica, ―valendo-se da<br />
explicação dos fenômenos em estudo, procurando as possíveis relações dos eventos investigados<br />
numa integração do indivduo com o social‖ (FREITAS, 2003, p. 28);<br />
(d) ―A ênfase da atividade do pesquisador situa-se no processo de transformação e mudança em<br />
que se desenrolam os fenômenos humanos, procurando reconstruir a história de sua origem e de<br />
seu desenvolvimento‖ (FREITAS, 2003, p. 28);<br />
(e) a pesquisa deve propiciar um espaço de integração, no qual ―o pesquisador e o pesquisado<br />
tenham a oportunidade para refletir, para aprender e, por conseguinte, ressignificar-se no processo<br />
de investigação.<br />
Para Bakhtin (2003), o objeto de estudo das Ciências Humanas é o homem e seu discurso,<br />
isto é, não um sujeito abstraído de seus textos, de sua fala. ―Isto é, o homem sempre se expressa<br />
através de seu texto virtual ou real que requer uma resposta, uma compreensão. Se não há texto,<br />
não há objeto para investigação e para pensamento‖ (FREITAS, 2003, p. 29). Partindo dessas<br />
postualções sobre o metodo sócio-histórico nas Ciências Humanas e procurando relacioná-los aos<br />
achados de Bakhtin, passamos a revisiar os escritos do Círculo a respeito da exotopia, o situar-se<br />
em lugar exterior e o papel do pesquisador e seu excedente de visão.<br />
A exotopia e o distanciamento do pesquisador<br />
Levando em consideração o campo da pesquisa qualitativa, podemos entender que o<br />
pesquisador contempla o outro sob um determinado excedente de visão, isto é, o pesquisador procura<br />
entender outrem a partir de seu lugar no mundo, de sua posição singular e insubstituível. É o seu<br />
lugar definido a partir do qual emite suas apreciações e age. Bakhtin (2003) esclarece que o<br />
excedente de visão em relação ao outro, essa instância exótopica que se constrói entre mim e o outro,<br />
é sempre condicionado pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo, à medida que nesse<br />
espaço-tempo, em que me coloco como único em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros<br />
estão fora de mim. Com isso, essa constitutividade exotópica entre mim e o outro, isto é, o<br />
excedente da minha visão condicionado pelo outro em relação a ele mesmo, determinam as ações<br />
que pratico e os julgamentos que faço em relação a outrem.<br />
Além disso, essas ações éticas e juízos de valor não podem abstrair a singularidade concreta<br />
da posição que o sujeito, ao qual destino meus atos e os juízos, ocupa na existência, contudo, este<br />
outro, para quem minhas ações éticas se destinam, condiciona certa intensidade de minha atividade.<br />
Com isso, ―o excedente de minha visão em relação ao outro condiciona certa esfera do meu<br />
ativismo exclusivo, isto é, um conjunto daquelas ações internas e externas que só eu posso praticar<br />
em relação ao outro, a quem elas são inacessíveis no lugar que ele ocupa fora de mim [...].‖<br />
(BAKHTIN, 2003, p. 23). Para Bakhtin,<br />
46 Sobre a análise de gêneros, à luz da teoria bakhtiniana, Rojo, a esse respeito, esclarece: ―será sempre um<br />
estilo de trabalho mais top-down e de idas e vindas da situação ao texto e nunca um estilo bottom-up de descrição<br />
exaustiva [...]‖ (ROJO, 2005, p. 199, grifos da autora).
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O excedente de visão é o broto em que repousa a forma e de onde ela<br />
desabrocha como uma flor. Mas para que esse broto efetivamente desabroche<br />
na flor da forma concludente, urge que o excedente de minha visão complete o<br />
horizonte do outro indivíduo contemplando sem perder a originalidade deste.<br />
(BAKHTIN, 2003, p. 23).<br />
Segundo o autor, devemos entrar em certa empatia com o outro, entendermos e vermos o<br />
real axiologicamente da forma como o outro o vê, colocarmo-nos no lugar do outro, e, após termos<br />
retornado ao nosso lugar, completar o horizonte do outro por meio do excedente de visão que do<br />
nosso lugar se descortina fora do lugar de outrem, criar para este outro um ambiente concludente a<br />
partir do nosso próprio excedente de visão, do nosso conhecimento e da nossa vontade.<br />
Bakhtin (2003, p. 24) ainda explica que muitas das atitudes e estados vitais do outro podem<br />
motivar-nos a atos éticos, como uma ajuda, um acolhimento, uma atenção, uma consolação.<br />
Contudo, ressalta o autor, todo o ato ético em relação ao outro deve ser naturalmente seguido de<br />
um retorno a nós mesmos, ao nosso lugar, pois, caso contrário, estaríamos, por assim dizer,<br />
vivenciando o sofrimento do outro como se fosse o nosso próprio. ―Quando me compenetro dos<br />
sofrimentos do outro, eu os vivencio precisamente como sofrimentos dele, na categoria do outro<br />
[...].‖ (BAKHTIN, 2003, p. 24, grifos do autor). Após as explicações sobre a exotopia, passemos às<br />
considerações finais.<br />
Considerações finais<br />
O presente estudo procurou discutir teoricamente as considerações bakhtinianas a cerca das<br />
pesquisas em Ciências Humanas. Para tanto, revisitamos os escritos do Círculo de Bakhtin, em<br />
especial seus escritos sobre o método nas Ciências Humanas, questões sobre a compreensão e<br />
exotopia, além dos estudos de seus interlocutores contemporâneos sobre esses temas. Entendemos<br />
que o trabalho de pesquisa qualitativa, principalmente aquele construído à luz da relação dialógica<br />
entre o pesquisador e o pesquisado, pressupõe, por natureza, uma arena conflituosa de sentidos.<br />
Em outras palavras, como bem explica Amorim (2003, p. 12), ―assumir esse caráter conflitual e<br />
problemático da pesquisa em Ciências Humanas implica renunciar a toda ilusão de transparência:<br />
tanto do discurso do outro quanto do seu próprio discurso.‖ Neste trabalho, procuramos<br />
compreender uma faceta desses conflitos dos diferentes lugares sociais de onde discursos são<br />
produzidos e ressignificados.<br />
Referências<br />
AMORIM, M. A Contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética e<br />
epistemológica. In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências Humanas e Pesquisa:<br />
leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.<br />
______ . O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: MUSA, 2004.<br />
______ . Cronotopia e exotopia. In: BRAIT, B (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo:<br />
Contexto, 2006.<br />
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />
_________ . Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.<br />
FARACO, C.A. Linguagem e Diálogo: as ideias do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola,<br />
2009.<br />
FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção de conhecimento.<br />
In: In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências Humanas e Pesquisa: leitura de<br />
Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.
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Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
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GERALDI, J.W. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de<br />
construção da ética e da estética. In: In: FREITAS, M.T; JOBIM, S; SOUZA, S.K. Ciências<br />
Humanas e Pesquisa: leitura de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003.<br />
PONZIO, A. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Contexto, 2009.<br />
ROJO, R. Gêneros do Discurso e Gêneros Textuais: Questões Teóricas e Aplicadas. IN:<br />
MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros: teorias, métodos e debates.<br />
São Paulo: Parábola Editorial. 2005. p. 184-207.<br />
_____. Fazer Lingüística Aplicada em Perspectiva Sócio-histórica: Privação Sofrida e<br />
Leveza de Pensamento. In: MOITA LOPES, L. P. (org.). Por uma Lingüística Aplicada<br />
Indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 253-274.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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PARAOLIMPÍADAS E POLÍTICAS DE INCLUSÃO:<br />
NOVAS FORMAS DE GOVERNO DOS CORPOS<br />
Roseli Belmonte Machado<br />
Mestrado em Educação – ULBRA/Canoas RS<br />
Professora do Instituto Santa Luzia<br />
Porto Alegre RS<br />
Professora e coordenadora pedagógica da SEDUC/RS<br />
Resumo: Este trabalho resulta de uma investigação que tem por objeto de estudo as<br />
Paraolimpíadas, entendendo-as como articuladas a políticas de inclusão. Como desdobramento,<br />
também foi possível problematizar os processos de inclusão e exclusão como uma unidade e<br />
perceber as relações de imanência entre os discursos sobre Paraolimpíadas e inclusão e seus efeitos<br />
sobre sujeitos que possuem relação com esses significados. Para essa análise, vali-me das<br />
ferramentas teórico-metodológicas dos Estudos Foucaultianos, analisando como esses discursos<br />
governam os corpos dos atletas. Ao mesmo tempo, pude perceber as Paraolimpíadas como uma<br />
estratégia para incluir os sujeitos nas normas da governamentalidade neoliberal.<br />
Palavras-chave: Paraolimpíadas; inclusão; governamento<br />
Abstract: This work results of an investigation which has for aim the study of Paraolympics,<br />
understanding them as articulated to the inclusion policy. As a result, it was also possible to difficult<br />
the process of inclusion and exclusion as a unit and realize the relations of two genders between the<br />
speeches about Paraolympics and the inclusion and its effects on people who have relation with<br />
these meanings. For this analysis, I took advantages of those theoretical-methodological tools of the<br />
Foucaudian perspectives, analysing how these speeches demand the athletes‘s bodies. At the same<br />
time, I could realize that the Paraolympics as an strategy to include the people inside the rules of<br />
the neo-liberal governmentality.<br />
Keywords: Paraolympics; inclusion; government<br />
O início do jogo<br />
Antes de começar o jogo – que aqui estou significando como o desenvolvimento deste<br />
trabalho –, penso que é necessário esclarecer um ponto. Minha pretensão não é descobrir verdades<br />
ou mostrar como as coisas ―realmente aconteceram‖. Espero, contudo, que as questões que ponho<br />
em discussão colaborem para que as suspeitas sejam mantidas ou ―para desvendar as armadilhas do<br />
discurso inclusivo e experimentar possibilidades de pensar uma educação que, de fato, possa tratar<br />
com as diferenças [...]‖ (GALLO, 2009, p.11).<br />
No final da década de 1980 e no início da década de 1990, vários países passaram a integrar<br />
em suas leis formas de atender aos direitos e às necessidades das pessoas com algum tipo de<br />
deficiência. Em um âmbito geral, as duas Declarações que impulsionaram a ascensão das Políticas<br />
de Inclusão foram a Declaração Mundial sobre Educação Para Todos, de 1990, e a Declaração de Salamanca<br />
sobre Princípios, Política e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, de 1994. Essas propostas,<br />
no entanto, não podem deixar de ser olhadas de outra maneira. O crescente interesse pela vontade<br />
de colocar todos na mesma rede e na mesma lógica e a iniciativa de sensibilização de alguns países<br />
em relação às condições de vida e aos direitos das pessoas com deficiência estão ancorados também<br />
em outras situações. Lavergne (2009) traz algumas reflexões sobre isso, expondo que os grandes<br />
difusores de todo esse discurso a respeito de ―diversidade‖, ―respeito às diferenças‖, são as grandes<br />
agências internacionais, tais como OMS, UNESCO, FMI e Banco Mundial, que operam dentro de<br />
uma forma de economia política neoliberal. Aqui, porém, quero fazer a ressalva de que não é o caso
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de apontar as ―instituições como vilãs de uma conspiração‖. O que estou propondo é olhar pelo<br />
avesso esse discurso das políticas de inclusão já naturalizado. Para isso, utilizo as Paraolimpíadas e<br />
seus efeitos sobre alunos que possuem deficiência como foco de análise.<br />
Desse modo, esta pesquisa, que teve como objetivo central pensar nas Paraolimpíadas<br />
como parte das políticas de inclusão, foi desenvolvida sobre três focos de análise: a história dos<br />
Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, reportagens do jornal Zero Hora 47 dos meses de agosto e<br />
setembro do ano de 2008 e o desenvolvimento de um estudo diretamente com alunos que<br />
participam de jogos paradesportivos em uma escola dita inclusiva, através da utilização da<br />
metodologia de grupos focais. A possibilidade de realizar a análise que me propus a fazer advém da<br />
utilização de alguns conceitos chave da teorização de Michel Foucault: poder, governamento,<br />
biopoder, norma e seus correlatos.<br />
Olimpíadas e Paraolimpíadas: significados ao longo da história<br />
―... nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não<br />
significa exatamente o mesmo que ruim‖ (FOUCAULT,<br />
1995, p. 256).<br />
A apresentação da história dos Jogos busca, além de situar o leitor nas questões que estou<br />
discutindo, propiciar um panorama geral de como os discursos que hoje fomentam e legitimam<br />
alguns enunciados sobre essas competições foram sendo constituídos. Segundo Bujes (2003),<br />
inspirada em Foucault, as relações discursivas não unem entre si objetos e palavras, mas oferecem<br />
objetos aos discursos, definindo do que eles podem falar e quais são as relações que podem ser<br />
efetuadas ao se falar desse objeto. Reafirmo também que estou me valendo de um conceito de<br />
discurso da teorização de Michel Foucault, como expõe o autor:<br />
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se<br />
apoie na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou<br />
formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos<br />
assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número<br />
limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de relações<br />
de existência (FOUCAULT, 2002, p.135).<br />
De uma forma resumida, é importante destacar sobre a história das Olimpíadas, da Grécia<br />
Antiga até os dias de hoje, duas questões: uma é o fato de os campeões na Olimpíada da Grécia<br />
Antiga serem comparados aos deuses venerados naquela época e, assim, passarem a ser<br />
considerados perfeitos; a outra é a regulamentação e a fiscalização imposta aos corpos dos atletas<br />
desde então, principalmente através de índices estabelecidos. O estímulo para superar os limites<br />
pessoais e os limites do outro é o que irá balizar os Jogos Olímpicos. Há uma recorrência discursiva<br />
presente nos Jogos Olímpicos na sua constituição histórica e na sua regulamentação. Refiro-me à<br />
acentuada referência à perfeição dos sujeitos. Na Grécia Antiga, isso acontecia pela<br />
representatividade que um atleta vencedor tinha: era comparado a um deus. Nas Olimpíadas<br />
modernas, está presente na exaltação aos ganhadores, que são sempre estimulados a estar no topo.<br />
Assim, ser olímpico é bem mais do que competir, representar seu país, fazer parte de um<br />
evento de confraternização mundial ou participar do esporte de que se gosta e que se está<br />
habituado a praticar. Ser olímpico é fazer parte de toda uma rede historicamente constituída que<br />
engloba os atletas olímpicos, os marca, os define e os designa como superiores ou como perfeitos.<br />
Ser olímpico, hoje, ainda parece implicar as marcas de heroísmo e endeusamento que justificaram as<br />
Olimpíadas na Grécia Antiga, prosseguindo com a proximidade ao divino.<br />
47 Jornal produzido e editado em Porto Alegre/RS e de grande circulação na região sul.
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
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Em uma análise histórica, o primeiro registro de esportes que incluíram pessoas com<br />
deficiência remonta ao ano de 1918, na Alemanha. No entanto, a grande expansão aconteceu com o<br />
final da Segunda Guerra Mundial, pois inúmeros ex-combatentes de guerra ficaram mutilados ou<br />
com lesões na coluna vertebral. A maior parte desses combatentes era tratada no Centro Nacional<br />
de Lesionados Medulares, em Stoke Mandeville, na Inglaterra. Nesse centro, o neurocirurgião<br />
alemão Ludwig Gutmann iniciou um tratamento com seus pacientes que incluía o esporte como<br />
uma alternativa de reabilitação. Posteriormente, no ano de 1948, aconteceu a primeira competição<br />
para atletas com deficiência, a qual coincidiu com as Olimpíadas, que estavam ocorrendo em<br />
Londres. Já a partir do ano de 1960, os jogos para pessoas com deficiência passaram a acontecer na<br />
mesma cidade das Olimpíadas, porém sempre após os Jogos Olímpicos já terem ocorrido 48. O<br />
surgimento dessa competição está diretamente marcado por uma significação de superação, pois, na<br />
medida em que os competidores são doentes em reabilitação, o fato de conseguirem praticar um<br />
esporte é considerado um sinal de ―ultrapassar o esperado‖ para as suas condições. Aqui, o<br />
conceito de superação é diferente do que significa para um atleta olímpico, que é narrado como<br />
aquele que supera seus limites de ser humano e se torna perfeito ou superior. Nas Paraolimpíadas, o<br />
que é recorrente é que os atletas estão em um lugar que até então parecia estar vedado para eles.<br />
Talvez esse seja um dos motivos que fazem com que as Paraolimpíadas estejam no ―jogo‖, mas em<br />
um lugar desvalorizado, um lugar de outro, um lugar de anormalidade.<br />
Mídia e discurso<br />
Na seção anterior, procurei mostrar como se engendraram historicamente os discursos em<br />
que esses Jogos estão envolvidos. Já nesta parte busco discutir o papel e a repercussão social dessas<br />
competições nos dias de hoje, em que os significados de perfeição para os olímpicos e de superação<br />
para os paraolímpicos é cada vez mais marcado. Para isso, trago a mídia, em especial as reportagens<br />
jornalísticas, como um dos focos de análise de minha pesquisa, entendendo sua função como<br />
produtora de saberes e de sujeitos (FISCHER, 2002b). Tenciono instigar uma reflexão sobre a<br />
abordagem diferenciada que essas duas competições recebem da mídia, a qual, ao mesmo tempo em<br />
que produz as formas de pensar dos sujeitos, legitima e reforça o caráter de diferença entre esses<br />
Jogos.<br />
[...] a mídia se faz num espaço de reduplicação dos discursos, dos enunciados de<br />
uma época. Mais do que inventar ou produzir um discurso, a mídia o<br />
reduplicaria, porém, sempre a seu modo, na sua linguagem, na sua forma de<br />
tratar aquilo que deve ser visto ou ouvido (FISCHER, 2002a, p.86).<br />
Para essa parte da análise trago para discussão reportagens do Caderno de Esportes do<br />
jornal Zero Hora, fazendo um apanhado entre os dias 08/08/2008 e 24/08/2008 (época das<br />
últimas Olimpíadas) e entre os dias 06/09/2008 e 17/09/2008 (época das últimas Paraolimpíadas).<br />
Acredito que, para o tipo de análise que me propus a fazer, a seleção desse material foi pertinente,<br />
pois é representativa do que circulou nos meios de comunicação na época. As análises realizadas<br />
foram de duas ordens: a primeira, quantitativa; a segunda, qualitativa. Na abordagem quantitativa,<br />
centrei-me no número de páginas, reportagens e notas que esse jornal apresentou no momento em<br />
que estava ocorrendo cada uma das competições. Para a análise qualitativa, verifiquei os tipos de<br />
enunciados relativos a cada competição, entendendo-os como parte do discurso que, para mim,<br />
acaba por legitimar as segregações e as representações atuais que as duas competições carregam.<br />
O que busco mostrar, dessa forma, é que as reportagens (grandes ou pequenas), as<br />
entrevistas, os textos e as imagens veiculadas no corpus analítico selecionado do jornal Zero Hora<br />
têm uma estreita relação com questões de poder e regimes de verdade. ―Se um enunciado exclui [...]<br />
48 De acordo com o Comitê Paraolímpico Brasileiro. Disponível em www.cpb.org.br. Acesso em 14 de junho<br />
de 2009.
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é porque o regime de verdade do qual faz parte esse enunciado se estabeleceu para atender a<br />
determinada vontade de verdade‖ (VEIGA-NETO, 2007, p105).<br />
Ao me aproximar do material escolhido, logo de início percebi as diferenças de tratamento<br />
que o jornal Zero Hora dispensou aos Jogos Olímpicos e posteriormente aos Jogos Paraolímpicos.<br />
A primeira questão analítica é o número de páginas destinadas à cobertura dessas competições. Para<br />
as Olimpíadas, foi reservada, diariamente, uma média de cinco páginas trazendo todas as notícias<br />
consideradas relevantes para o leitor a quem esta mídia se endereça 49. Além disso, na época, esse<br />
jornal criou um caderno especial 50 com cerca de dez páginas sobre o evento que estava ocorrendo.<br />
Entretanto, esse mesmo jornal, ao realizar a cobertura das Paraolimpíadas no mesmo ano, trouxe<br />
apenas uma página diária sobre esse evento, e, muitas vezes, havia apenas uma nota em um canto<br />
de página 51.<br />
A segunda análise comparou os diversos enunciados que foram trazidos no jornal Zero<br />
Hora, os quais diferiram muito na apresentação das duas competições. Observemos como exemplo,<br />
estes dois recortes:<br />
―Com a expectativa de conquistar até oito medalhas de ouro nos Jogos de<br />
Pequim – tornando-se o nadador com o maior número de vitórias em uma<br />
única edição olímpica –, o nadador norte-americano Michael Phelps, 23 anos, já<br />
começou arrasando nas piscinas chinesas‖ (ZH, n. 15688, p.10, 10/08/2008).<br />
―Superar limites é com eles mesmos. Feiten ficou tetraplégico depois de sofrer<br />
um acidente [...]. Até aí improvável pensar que esse jovem seria grande<br />
esportista [...]. Hoje, empurra a própria cadeira de rodas, consegue dirigir e é o<br />
11° no ranking brasileiro de natação na categoria geral‖ (ZH, n. 15713, p.51,<br />
06/09/2008).<br />
Esses recortes fazem parte, respectivamente, das reportagens sobre Olimpíadas e<br />
Paraolimpíadas. Ambos se referem a atletas de natação. Há neles, no entanto, peculiaridades que<br />
acredito merecerem uma maior atenção, tendo em vista que são representativas de um tipo de<br />
enunciado presente nas demais notícias que verifiquei. O primeiro excerto relata como está o<br />
desempenho do nadador olímpico Phelps, expondo sucintamente que se trata de um atleta<br />
vitorioso, de um campeão. Já o segundo recorte traz uma reportagem sobre o nadador paraolímpico<br />
Feiten. Até esse ponto, poderíamos afirmar que são notícias equivalentes; no entanto, é na narrativa<br />
presente no segundo excerto que estão marcadas as diferenças. A intenção inicial da reportagem<br />
não está em divulgar como o atleta está se saindo nas últimas competições de que participou; ao<br />
contrário, seu propósito é expor a deficiência daquele indivíduo, tecendo comentários de como<br />
seria improvável a sua participação em um esporte. Apenas depois de caracterizar o atleta – marcar<br />
sua anormalidade – é que há uma referência ao seu desempenho no esporte.<br />
Os recortes apresentados ilustram o discurso que é recorrente na maioria das reportagens<br />
analisadas, que reafirmam a posição de cada uma das competições na história. As palavras têm força<br />
e legitimidade no momento em que estão inseridas em uma lógica e uma ordem que já possuem<br />
significados estabelecidos. Ao mesmo tempo em que reproduzem um discurso existente, elas o<br />
reforçam e o ampliam: os olímpicos são os perfeitos, os capazes, os ilustres, os que se aproximam<br />
do divino; os paraolímpicos são os que superam as suas dificuldades. Ambos estão no ―jogo‖, mas<br />
em lugares diferenciados e marcados.<br />
49 Informação obtida ao analisar os números 15684 até 15700 do ano de 2008 do Jornal Zero Hora.<br />
50 Jornal de Pequim.<br />
51 Informação obtida ao analisar os números 15713 até 15724 do ano de 2008 do Jornal Zero Hora.
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Conversações: os sujeitos entram no jogo<br />
Para analisar os aspectos referentes às relações que se estabelecem entre os discursos e os<br />
sujeitos, utilizei a técnica de grupo focal, entendida como ―um conjunto de pessoas selecionadas e<br />
reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto de pesquisa, a partir de<br />
sua experiência pessoal‖ (POWELL e SINGLE apud GATTI, 2005, p. 7). A abordagem que<br />
realizei possibilitou os aportes necessários para esta investigação, pois, através da técnica de<br />
investigação do grupo focal, foi possível uma multiplicidade de pontos de vista oriundos do próprio<br />
processo de interação entre o grupo.<br />
A escolha dos participantes teve relação com seu grau de conhecimento e de<br />
envolvimento com o meu objeto de análise. Com base nisso, selecionei, na escola em que realizei a<br />
pesquisa 52, nove alunos que julgava terem as condições necessárias para participar das discussões<br />
propostas para os grupos focais: todos possuem deficiência visual, são participantes de jogos<br />
paradesportivos na escola inclusiva em que estudam e estão em uma faixa etária aproximada, entre<br />
15 e 20 anos. As sessões dos grupos focais foram realizadas dentro da escola à qual os escolares<br />
estão vinculados. Foram realizados três momentos de discussão, com intervalos de uma semana de<br />
um encontro para o outro e com duração de cerca de 50 minutos cada um. Para a coleta de dados,<br />
foi utilizado um gravador de voz de um aparelho de MP3. Após, as sessões foram transcritas e<br />
analisadas. O que fiz foi identificar como, em suas manifestações, esses alunos (sujeitos da<br />
investigação) se posicionam em relação às questões que permeavam esta pesquisa. Em cada sessão,<br />
um tipo de material referente às Olimpíadas e às Paraolimpíadas serviu como apoio: Na primeira<br />
foram reportagens escritas, na segunda foram comerciais de TV e na terceira foi a presença de um<br />
atleta paraolímpico.<br />
Um dos temas que mereceu maior consideração dos alunos foi a mídia. Sobre esse assunto,<br />
destacaram-se falas que tinham como tema principal as diferenças de espaço midiático, tratamento e<br />
cobertura entre as competições. Ao mesmo tempo, relacionaram-se a este aspecto outros temas,<br />
como o consumo e o patrocínio. Poderia afirmar, em uma análise superficial, que se tratou de um<br />
assunto recorrente que produziu um grande volume de conversas e considerações, chegando-se ao<br />
consenso de que as Paraolimpíadas são menos valorizadas do que as Olimpíadas.<br />
Demonstração de bravura. Determinação. Superação de obstáculos. Show de superação. Essas palavras e<br />
expressões foram fortemente enfatizadas e repetidas pelos sujeitos da pesquisa no decorrer dos<br />
grupos focais. A cada momento em que eram discutidas características ou diferenças entre as<br />
Olimpíadas e as Paraolimpíadas, esses enunciados eram relacionados aos atletas paraolímpicos.<br />
Porém, em princípio, ao se analisarem apenas os enunciados, não há nada que indique que se<br />
dirigem aos atletas paraolímpicos, embora a palavra superação nos acenda um alerta, pois está<br />
presente nos discursos que se referem a esses sujeitos e passa a ser vista como ―colada‖ a eles. ―[...]<br />
anormais não são, em si ou ontologicamente, isso ou aquilo; nem mesmo eles se instituem em<br />
função do que se poderia chamar de desvio natural em relação a uma suposta essência normal‖<br />
(VEIGA-NETO, 2001, p.106). Localizá-los como anormais, resulta, no caso dos atletas<br />
paraolímpicos, de operações de ordenação, de estratégias de poder – à custa de ―oposições,<br />
exclusões, violência‖.<br />
As políticas de inclusão atuam na intenção de incluir o outro que já foi nomeado,<br />
especificado e narrado dessa maneira. Para essa lógica, não há relativização sobre esses outros, suas<br />
posições são fixas: são os deficientes, os sindrômicos, loucos, etc. – aqueles que a Modernidade<br />
vem inventando (VEIGA-NETO, 2001). Esse lugar determinado de quem são os outros, essa<br />
posição fixa de quem deve ser incluído, move táticas que governam os sujeitos que são constituídos<br />
por tal processo – sujeitos da inclusão –, que passam a se reconhecer dessa maneira estabelecida:<br />
52 A pesquisa foi realizada no Instituto Santa Luzia em Porto Alegre.
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são os outros. Um exemplo disso foram as narrativas dos alunos que participaram desta pesquisa.<br />
Suas manifestações em relação a esse pertencimento ou a essa outridade que lhes é atribuída<br />
aconteceram no decorrer de todas as sessões. Do mesmo modo, várias situações no decorrer das<br />
sessões mostram que esses alunos (sujeitos da inclusão, anormais) se percebem excluídos e/ou<br />
dignos de vergonha pela sua condição. ―Não basta ter uma deficiência para ser diferente. É a forma<br />
como os outros me olham, me significam e como me enredo nas tramas sociais que me faz ser o<br />
que o outro não é‖ (LOPES, 2007, p.29).<br />
Tal situação, no entanto, pode ser resolvida, segundo os sujeitos da pesquisa, se as outras<br />
pessoas se acostumarem com as suas deficiências e com as suas condições de anormalidade. A<br />
fórmula para esses alunos parece simples:<br />
Inclusão valorização das diferenças + direitos iguais invisibilidade da condição de anormalidade<br />
Nesse aspecto, no entanto, os alunos desconhecem que as políticas de inclusão, embora<br />
pareçam estar tentando tornar invisíveis as anormalidades, continuam marcando os sujeitos de<br />
outros modos.<br />
Paraolimpíadas e inclusão<br />
No decorrer do texto, muitas foram as diferenças expostas em relação aos Jogos Olímpicos<br />
e aos Jogos Paraolímpicos, desde a representação histórica de cada uma até os discursos que as<br />
representam. Não obstante, essas não são as únicas diferenças percebidas nessas competições, pois,<br />
por outro lado, cada uma delas se move segundo táticas e estratégias diversas. As Olimpíadas<br />
vendem as últimas tecnologias de roupas e equipamentos, colocam em destaque o país sede e suas<br />
conquistas atuais, fomentam o desenvolvimento de uma região e servem para mostrar o<br />
―congraçamento dos povos‖, destacando como todos, apesar das diferenças étnicas e econômicas,<br />
estão ―aptos a competir‖ (ainda que o quadro de medalhas mostre as diferenças gritantes sob essa<br />
aparente democracia esportiva). Já as Paraolimpíadas propõem-se a mostrar o poder humano de<br />
superar limites, indicam que o esforço pessoal depende do mérito de cada um, vendem produtos<br />
específicos para essa população e divulgam os direitos e as capacidades relativas das pessoas com<br />
deficiência. Porém, percebe-se que, embora a atuação de cada uma delas seja realizada através de<br />
estratégias diferenciadas, ambas trabalham na lógica do neoliberalismo – racionalidade centrada no<br />
consumo e na competição, em que a liberdade maximizada é condição para sua sujeição (VEIGA-<br />
NETO, 2000; SARAIVA; VEIGA-NETO, 2009).<br />
Meu segundo entendimento foi o de que, ao analisar esse discurso, percebo que ele age<br />
sobre os sujeitos numa operação que governa os corpos (FOUCAULT, 2008), localizando-os e<br />
designando-os em posições sociais diversas. É uma forma de governamento que age incluindo-os e<br />
excluindo-os simultaneamente. Essa minha observação foi confirmada quando fui a campo<br />
pesquisar os sujeitos que participam ou que, de certa maneira, estão envolvidos com as<br />
competições. Conversar com eles nos grupos focais fez-me perceber o quanto esse governamento<br />
atua de diversas formas sobre esses indivíduos: ora fazendo-os reproduzir o discurso circulante, ora<br />
fazendo com que se percebam como pessoas com deficiência e anormais que reivindicam<br />
condições de igualdade e mesmos direitos. Também é notável o quanto esses sujeitos governados<br />
pelos diversos discursos, por vezes, não percebem outras vontades agindo e responsabilizam-se pela<br />
sua posição de ―anormais‖ (FOUCAULT, 2001), ou seja, tendem a procurar qual é a sua parcela de<br />
culpa e responsabilidade por isso tudo.<br />
Assim, a partir desses entendimentos iniciais, passei a refletir de uma terceira forma:<br />
consegui compreender como esse discurso que foi constituído na história dessas competições e a<br />
forma como ele atinge os sujeitos fazem parte das políticas de inclusão da governamentalidade<br />
neoliberal que vivenciamos. Entendo que as Paraolimpíadas são uma estratégia utilizada para trazer<br />
os indivíduos para essa lógica, que pretende atingir a todos, pois há a necessidade de que os sujeitos<br />
se percebam com as mesmas condições de atuar e consumir, bem como que tenham desejo de
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permanecer nesse jogo. As Paraolimpíadas fazem parte da lógica do mercado, visto que os atletas<br />
que participam dessas competições estão em sintonia com as questões que têm valor atualmente:<br />
consomem diversos artefatos – como bolas, uniformes, cadeiras especiais –, vendem jornais,<br />
conseguem patrocínio, ocupam um espaço na mídia, etc. e se sentem inclusos, pois têm a<br />
possibilidade de ―jogar o jogo neoliberal‖. ―Inclusão na contemporaneidade passou a ser uma das<br />
formas que os Estados, em um mundo globalizado, encontraram para manter o controle da<br />
informação e da economia‖ (LOPES, 2009, p. 129).<br />
Todavia, o que acredito ser o mais importante é perceber que esses sujeitos que foram<br />
subjetivados pela lógica neoliberal são incluídos, mas não são tomados como normais. Ainda que<br />
sejam atletas, possuem outro tratamento. Para eles, ainda são destinados lugares e posições sociais<br />
diferenciadas ou de menor valor, como analisado em diversas passagens deste trabalho. Por isso,<br />
esse fervor a respeito da inclusão que acontece hoje deve ser sempre colocado sob suspeita. Não<br />
são poucas as formas pelas quais a vontade de incluir ainda carrega consigo diversas maneiras de<br />
excluir. Meu intuito aqui foi o de pensar e mostrar alguns exemplos dessa in/exclusão.<br />
Acredito que seja necessário novamente esclarecer que não sou contra o processo de<br />
inclusão das pessoas com deficiência ou contra as Paraolimpíadas. Se a questão fosse apenas emitir<br />
minha opinião (sem considerar as leituras e análises já feitas), como professora de Educação Física,<br />
diria que essa competição é extremamente válida para as pessoas que possuem deficiência, pois,<br />
além de possibilitar o acesso às atividades e exercícios físicos, também colabora para que sejam<br />
pensadas melhores condições de vida para esses sujeitos: são pensadas formas de acessibilidade, são<br />
criadas cadeiras de rodas e próteses mais adequadas, elaboram-se materiais em Braille, investe-se em<br />
cursos de Libras, etc. Porém, o que acontece é que não posso desconsiderar as leituras e análises<br />
realizadas até aqui e, assim, vejo funcionando, nos processos que ―garantem‖ melhores condições<br />
de vida para as pessoas com deficiência, a lógica insidiosa e totalizante da governamentalidade<br />
neoliberal.<br />
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VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.<br />
Enviado em 30/08<br />
Avaliado em 15/10
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SUJEITOS RAVE: ONDE O NEOTRIBAL ENCONTRA O ELETRÔNICO<br />
Sandro Bortolazzo 53<br />
Resumo: Inspirado nos Estudos Culturais, este artigo investiga as relações entre a cultura rave e a<br />
produção de certos tipos de sujeitos jovens contemporâneos. A cultura rave pode ser definida pelo<br />
conjunto de manifestações associadas à música eletrônica envolvendo componentes visuais, redes<br />
tecnológicas de comunicação, consumo de drogas e a formação de tribos. O conceito de<br />
neotribalismo proposto por Michel Maffesoli é central para pensar as tribos urbanas. A investigação<br />
contemplou uma aproximação do universo rave e a identificação dos processos de subjetivação<br />
presente nos ambientes festivos. Os jovens conectados à cultura rave absorvem uma série de<br />
artefatos, inscritos em comunidades virtuais, músicas, e são tantos os estímulos que povoam os<br />
lugares que foi possível perceber que pedagogias são praticadas para que um jovem se torne um<br />
sujeito rave.<br />
Palavras-chave: cultura rave – neotribalismo – subject<br />
Abstract: Inspired by Cultural Studies, this article investigates the relation between rave culture and<br />
the production of certain types of contemponous young subjects´. Rave culture can be defined as<br />
the set of events associated with electronic music involving visual components, communications<br />
technology networks, drug use and the formation of tribes. Neotribalism concept proposed by<br />
Michel Maffesoli is central to think about urban tribes. The reasearch completaples an approach<br />
with rave universe and the identification of subjectitivy process present in the festive atmosphere.<br />
Young people conected to rave culture absorb a number os artifacts enrolled in virtual<br />
communities, musics and there are so many stimulies that populate a lot of places thar it was<br />
possible to verify that pedagogies are practiced for a young person becames a rave subjetc.<br />
Keywords: rave culture – neotribalism – subject<br />
Introdução<br />
Você já se imaginou dançando por quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze,<br />
treze, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove e por até vinte horas seguidas? O<br />
fôlego requerido para muitas horas de exercício já é suficiente para sugerir uma reflexão sobre o<br />
volume de energia despendido por sujeitos (das mais variadas idades e de distintos lugares do<br />
mundo) que, nos finais de semana, ao som da música eletrônica, festejam o carpe-diem 54<br />
contemporâneo. Eis o ponto de partida deste estudo: o universo da cultura rave.<br />
Autores que discutem o cenário rave, entre eles Saunders (1997), Reynolds (1998) e Fritz<br />
(1999), partem do entendimento de que a cultura rave se define por um conjunto de manifestações<br />
associadas à música eletrônica, envolvendo componentes visuais e identitários, redes tecnológicas<br />
53 Jornalista, Mestre em Educação na linha de Estudos Culturais em Educação pela Universidade Luterana do<br />
Brasil e doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.<br />
54 Carpe Diem é uma frase em Latim de um poema de Horacio (poeta lírico e satírico romano, além de<br />
filósofo). Carpe Diem é popularmente traduzido para colha o dia ou aproveite o momento. É também utilizada como<br />
uma expressão para solicitar que se evite gastar o tempo com coisas inúteis ou como uma justificativa para o<br />
prazer imediato.
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de comunicação, consumo de drogas, variados estilos de sons, formação de tribos e itens de<br />
consumo.<br />
Este artigo investiga as relações entre a cultura rave e a produção de certos tipos de sujeitos<br />
jovens contemporâneos. O estudo procurou identificar as diversas pedagogias que convocam os<br />
jovens a participar e permanecer na cultura rave. O trabalho consiste também numa tentativa de<br />
tradução dos elementos inscritos em uma das culturas contemporâneas que mobilizam jovens de<br />
vários países.<br />
O caminho investivagativo da pesquisa iniciou com uma aproximação do universo rave,<br />
descrevendo-a e discutindo-a como uma movimentação pós-moderna, a partir da literatura<br />
especializada sobre o assunto, especialmente focado em dois autores o inglês Simon Reynolds<br />
(1998) e o canadense Jimi Fritz (1999). Um segundo passo na investigação levou em conta a<br />
identifação das convocações e as pedagogias direcionadas aos jovens que acabam transformando-se<br />
em aficionados pela cultura rave. O conceito de neotribalismo do sociólogo francês Michel<br />
Maffesoli é utilizado para pensar a formação das tribos urbanas contemporâneas. E como forma de<br />
aproximação desse reduto, frequentei seis festas rave, registrando e observando como se dão as<br />
interações entre os jovens. A conjunção entre música eletrônica, drogas, aparatos tecnológicos e<br />
uma multidão participando de uma espécie de transe coletivo hedonista caracteriza os eventos rave.<br />
A rave é uma festa realizada, usualmente, longe dos centros urbanos, em sítios ou armazéns em<br />
desuso, abandonados. O evento tem longa duração, variando de doze horas até sete dias. Embora a<br />
pesquisa tenha contemplado outros espaços onde a cultura rave circula, pretende-se aqui olhar para<br />
um dos elementos constituintes deste universo – as festas – já que elas representam a celebração<br />
máxima de uma cultura apresssada, instantênea e efêmera.<br />
Diversão na rave: uma cena globalizada<br />
As características da cultura rave apresentam muitas similaridades em suas manifestações,<br />
pois eventos rave que ocorrem no Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Argentina, na<br />
Austrália, nos países africanos ou mesmo nas nações asiáticas compartilham uma imensa gama de<br />
elementos comuns. Parece que a configuração do que hoje se nomeia cultura rave só tem sido<br />
possível porque temos vivenciado uma era plena da globalização onde os fenômenos culturais (de<br />
qualquer ordem) repercutem em diversos lugares do planeta. Com Canclini (2006), afirmo que os<br />
processos globalizadores não se encontram inscritos somente na esfera econômica, a globalização é<br />
também política, tecnológica, musical e cultural.<br />
A abertura da economia de cada país aos mercados globais e a processos de<br />
integração regional foi reduzindo o papel das culturas nacionais. A<br />
transacionalização das tecnologias e da comercialização de bens culturais<br />
diminuiu a importância dos referentes tradicionais de identidade. Nas redes<br />
globalizadas de produção e circulação simbólica se estabelecem as tendências e<br />
os estilos das artes, das linhas editoriais, da publicidade e da moda. Grande parte<br />
do que se produz e se vê nos países periféricos é projetada e decidida nas<br />
galerias de arte e nas cadeias de televisão, nas editorias e nas agências de notícias<br />
dos Estados Unidos e da Europa (CANCLINI, 2006, p.164-165).<br />
Diante dos processos globalizadores, constato a presença de uma parcela da juventude, que<br />
penso poder denominar de pós-moderna, marcada pelo compartilhamento de uma cultura global<br />
onde as fronteiras geográficas se revelam insignificantes ou mesmo inexistentes. Talvez uma das<br />
razões desse borramento seja o fato de que a aceleração tecnológica e o surgimento das mídias<br />
digitais foram capazes de promover uma aproximação entre os indivíduos mediante ferramentas<br />
virtuais.
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A origem das festas rave e o surgimento de uma cultura atrelada a ela geram muita<br />
controvérsia, incluindo, no mínimo, três variantes. Uma versão explica que, no final dos anos 60, na<br />
ilha de Goa (Índia), o movimento foi iniciado por hippies que escutavam na praia uma espécie de<br />
embrião da música eletrônica misturada aos elementos musicais locais. As festas realizadas em Goa<br />
tocavam uma mistura do rock psicodélico do início dos anos 70 com a música típica dos hippies.<br />
Outra versão, talvez mais aceita e comentada, é de que as raves passaram a existir a partir da segunda<br />
metade da década de 80, quando jovens se reuniam para dançar por várias horas na região portuária<br />
de Londres, na Inglaterra.<br />
De acordo com Fritz (1999):<br />
A música tocada era o acid house e as festas eram conhecidas como acid house<br />
parties. Esses eventos passaram a realizar-se a céu aberto a partir do verão de<br />
1987, marcando o nascimento do free party movement, uma progressão natural do<br />
free festival movement que era prevalente na Inglaterra naquele período [grifos<br />
meus] (p. 32).<br />
As festas eram consideradas ilegais e se propagavam através do boca-a-boca ou por flyers<br />
improvisados. No início dos anos 90, as raves foram criminalizadas, uma vez que estavam<br />
intimamente ligadas ao consumo de drogas. Este fato contribui para a difusão da ideia do evento<br />
rave como festa marginal. Mais uma versão ainda surge para marcar o início das raves. Verão de<br />
1987, Ibiza (Espanha). De acordo com Saunders (1997), entre o final de 1987 e o começo de 1988,<br />
um estilo de celebração começou a se popularizar em Ibiza — o ensolarado paraíso espanhol da<br />
elite londrina. Era uma música cheia de energia que as pessoas gostavam de dançar noite adentro<br />
sob a influência de uma droga de laboratório, o Ecstasy. O chamado ―verão do amor‖ inaugurou um<br />
momento em que se misturavam pistas de dança ao ar livre, Ecstasy e música eletrônica. Portanto, é<br />
a partir de episódios simultâneos, ocorridos em diversas partes do mundo, e com características<br />
semelhantes, que uma cultura foi sendo inventada, esboçada. Não uma cultura local, mas uma<br />
cultura híbrida, digitalizada. Em suma, uma cultura que se poderia denominar de globalizada.<br />
Pedagogias rave<br />
Ao optar pelo campo dos Estudos Culturais, adoto como ferramenta teórica o conceito de<br />
Pedagogia Cultural para pensar o movimento rave. Entendo pedagogias culturais como aquelas que<br />
atravessam a vida dos indivíduos para além das pedagogias escolares tradicionais ou das pedagogias<br />
religiosas e familiares. O ensinar e o aprender vão sendo vistos como praticados nos mais diversos<br />
lugares, não estando somente a cargo das instituições educativas tradicionais. É no entrecruzamento<br />
entre os artefatos culturais e a Educação que as Pedagogias Culturais começam a ser percebidas e<br />
consideradas um reduto de investigação (COSTA, 2000).<br />
Nas palavras de Costa (2000):<br />
Hoje, estou entendendo que programas de TV, catálogos de propaganda,<br />
revistas, literatura, jornal e cinema para citar apenas alguns exemplos dentre a<br />
parafernália de produtos culturais circulantes no nosso universo cotidiano são<br />
textos culturais que operam constitutivamente em relação aos objetos, sujeitos e<br />
verdades de seu tempo (p.37).<br />
Podemos considerar como instâncias educativas a mídia impressa, os programas de<br />
televisão, os filmes, os desenhos animados, os espaços de entretenimento e lazer. Educativos<br />
porque nos ensinam determinadas formas de ver o mundo, de pensar e agir sobre as coisas ao<br />
nosso redor. Pedagógicos porque as produções culturais, ao difundirem representações, elas<br />
mesmas vão construindo identidades, internalizando valores e condutas. Embora o universo da
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cultura rave não se encontre implicado usualmente dentro do espectro de atividades da Educação,<br />
ao considerá-lo um espaço cultural que atrai e movimenta uma grande parcela de jovens, pode-se<br />
pensar em uma determinada pedagogia que aciona mecanismos que fascinam e convocam os jovens<br />
a participar e a se comportar de determinadas formas.<br />
As aspirações, os deleites e a busca pelo bem-estar são elementos que fazem parte da cena<br />
rave, montada e composta para forjar e comportar determinados modos de ser. É dentro dessa ótica<br />
que se pode pensar em estratégias pedagógicas peculiares. Podemos enxergar as festas como um<br />
espaço pedagógico no sentido de que os sujeitos são forjados a partir de uma série de convocações<br />
próprias da cultura rave: a música, as drogas, o imperativo do gozo, a velocidade, o espetáculo e a<br />
tecnologia.<br />
Na batida eletrônica<br />
O som eletrônico nasce nos anos 50, sendo produzido em laboratório junto à evolução da<br />
microinformática. A música dita eletrônica mescla timbres, batidas, ritmos e melodia. Com a<br />
consolidação do estilo musical nas pistas de dança, surge o papel dos DJs. Principal artista da cena 55<br />
musical eletrônica, o DJ explora elementos subjetivos como espacialidade, ambientação, atmosfera,<br />
movimento, modulação. A batida eletrônica também busca levar as pessoas a percepções físicas e<br />
corporais que ―induzem‖ sensações próximas à batida do coração e ao pulsar dos músculos. O<br />
autor italiano Massimo Canevacci consegue descrever, de forma breve, o que o som eletrônico<br />
pode proporcionar.<br />
A música que altera. A música de novos transes, não mais homologáveis – de<br />
acordo com metodologias passadistas empoeiradas – aos transes folclóricos e<br />
menos ainda aos transes étnicos. Os novos movimentos techno da música<br />
constroem um corpo que se altera e que é atravessado por sons, por batidas por<br />
minuto, por ruídos pós- industriais e orquestras pós-fordistas. A rave é a morte<br />
da polis. A rave ganha da metrópole. A rave faz pulsar os corpos metrópoles<br />
(CANEVACCI, 2005, p. 54).<br />
A música eletrônica pode ser classificada de diversas maneiras e há inúmeras ramificações<br />
dentro de cada estilo e estas categorias não são, de forma alguma, absolutas. Cada estilo apresenta<br />
uma história, um formato e o respectivo desenvolvimento ao longo dos anos. Meu propósito não é<br />
engendrar por dentro dessas categorias e sim tratá-las como uma grande corrente, a eletrônica.<br />
Na obra A condição pós-moderna, Lyotard caracteriza os tempos pós-modernos pelo fim, ou<br />
melhor, pela incredulidade nas metanarrativas. Os esquemas explicativos totalizantes parecem não<br />
dar mais conta de um mundo transformado pelo novo capitalismo e pela ótica consumista. A<br />
música eletrônica, como um dos ícones centrais da cultura rave, é concebida pela montagem e (re)<br />
composição de amostras de outras músicas. De certo modo, dissolve o esquema das narrativas,<br />
fugindo do padrão início-refrão-meio-refrão-fim. O som eletrônico concentra-se em ciclos, e a<br />
estrutura repetitiva é considerada um elemento da estética eletrônica. Observando a música<br />
eletrônica enquanto construção, pode-se percebê-la como reveladora de uma condição pósmoderna.<br />
Seu som repetitivo é produzido por meios binários, ou seja, a partir da microinformática,<br />
logo, sua concepção se dá com base no uso das tecnologias digitais. E estas mesmas tecnologias são<br />
sua condição de possibilidade.<br />
55 Termo usado para denotar o conjunto das manifestações que estão acontecendo. Pode se referir à<br />
totalidade do movimento (a cena da música eletrônica), como especificar um estilo dentro dela (a cena<br />
techno, a cena trance, etc.)
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A droga e a festa<br />
Muito embora as drogas estejam presentes, e pude observar isso quando frequentei alguns<br />
eventos, as festas rave começaram a ser associadas ao consumo de drogas como o Ecstasy porque no<br />
início as festas eram chamadas de acid parties. O acid era um estilo de música que despontava no final<br />
da década de 80 e como estava intimamente ligado à ideia de psicodelia, fazia alusão ao consumo de<br />
drogas. Na visão de Reynolds (1998), a palavra rave (que significa delirar, falar com euforia) começa<br />
a despontar no início dos anos 90, reforçando uma relação da música eletrônica com o Ecstasy e<br />
práticas hedonistas. Trata-se de uma criação da mídia inglesa da época para caracterizar uma grande<br />
festa onde se reuniam milhares de pessoas. Esse movimento foi essencialmente marcado pelo<br />
consumo do Ecstasy, uma droga sintética a exemplo do LSD. A droga possui o efeito de otimizar o<br />
clima de hedonismo nas festas. A ação da droga ocorre sobre os neurotransmissores químicos do<br />
cérebro, como a serotonina, a qual é responsável pela sensação de prazer. O Ecstasy passou a<br />
receber o apelido de ―droga do amor‖ porque tem o efeito de promover uma abertura empática em<br />
relação aos demais. A própria música eletrônica discotecada nas raves, com uma textura sinestésica e<br />
seus ritmos excitantes, aumenta o efeito da droga, facilitando a libertação do corpo e um<br />
desprendimento da fala. Reynolds (1998) assim descreve alguns dos efeitos do Ecstasy.<br />
O efeito da droga é aumentar drasticamente a disponibilidade de dopamina e<br />
serotonina, neurotransmissores que conduzem impulsos eletroquímicos entre as<br />
células do cérebro. Excesso de dopamina estimula a atividade motora, aumenta<br />
o metabolismo e cria euforia. A serotonina é geralmente a reguladora do humor<br />
e do senso de bem-estar, mas em excesso, pode intensificar estímulos sensoriais<br />
e fazer com que as percepções se tornem mais vívidas, algumas vezes, ao ponto<br />
de alucinação (p.83). 56<br />
Para Saunders (1997), que contextualiza brevemente o consumo de drogas, os hippies, por<br />
exemplo, eram consumidores de maconha, droga que causava um efeito ao estilo calmante. Os<br />
punks, por sua vez, já eram adeptos do álcool e de ―drogas rápidas‖, como a cocaína e os derivados<br />
da anfetamina, responsáveis pela aceleração do metabolismo. O MDMA 57 já está totalmente ligado<br />
aos ravers, uma vez que proporciona energia, motivação e entusiasmo. Os estudos sobre o consumo<br />
de drogas entre os jovens (mas não só entre eles) causam uma certa curiosidade entre os cientistas<br />
sociais. Para os usuários, a urgência ou a necessidade do uso das drogas é simplesmente parte da<br />
diversão. As drogas representam, sem dúvida, um dos pontos mais críticos e o de maior entrave da<br />
cultura rave, e seu consumo é o aspecto mais comentado e o mais visível pela publicação em notícias<br />
nos meios midiáticos. Alguns artigos, assim como retratos dessa cultura realizados pelos meios de<br />
comunicação de massa, sugerem que o tecido moral da sociedade esteja em risco. Os<br />
frequentadores são descritos como se vivessem fora das fronteiras dos estados de ―normalidade‖,<br />
―saúde‖ e ―moralidade‖.<br />
Neotribo Rave<br />
Analisando a Cultura Rave como parte das manifestações culturais da juventude, utiliza-se o<br />
conceito de neotribalismo do sociólogo francês Michel Maffesoli (2006) para corroborar a presença<br />
do ethos de pertencimento. O autor recorre ao termo neotribalismo com o intuito de identificar os<br />
56 Do original: The drug´s effect is to dramatically increase the availability of dopamine and serotonin, neurotransmitters that<br />
conduct electrochemical impulses between brain cells. Excess dopamine stimulates locomotors activity, revs up the metabolism, and<br />
creates euphoria. Serotonin usually regulates mood and the sense of well being, but in excess it intensifies sensory stimuli and<br />
makes perceptions more vivid, sometimes to the point of hallucination. (REYNOLDS, 1998, p.83)<br />
57 MDMA (metilenodioxidometanfetamina) é um composto derivado da anfetamina que possui uma molécula<br />
semelhante a um alucinógeno com efeitos moderados que variam entre a sensação de alucinação provocada<br />
pelo LSD (ácido lisérgico) e a de excitação criada pela cocaína. Disponível em: http://www.pragatecno.com.br.<br />
Acesso em: 20/02/09
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inúmeros grupamentos da sociedade. Maffesoli (2006), quando se refere à constituição de grupos,<br />
procura salientar a ―partilha‖ de um ―sentimento‖ e suas relações de afinidades como características<br />
presente no âmbito social. O ―estar-junto‖, segundo o autor, constitui o verdadeiro cimento<br />
societal.<br />
É para dar conta desse conjunto complexo que proponho usar, como metáfora,<br />
os termos de ―tribo‖ ou de ―tribalismo‖. Sem adorná-los, cada vez, de aspas,<br />
pretendo insistir no aspecto ―coesivo‖ da partilha sentimental de valores, de<br />
lugares ou de ideais que estão, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos<br />
(localismo) e que são encontrados, sob diversas modulações, em numerosas<br />
experiências sociais (MAFFESOLI, 2006, p. 28).<br />
O universo das festas conhecidas como raves estão inseridas dentro de um ambiente onde o<br />
―compartilhar sentimentos e emoções‖ é reconhecer-se através (e junto) do outro. Não se inscreve<br />
em qualquer projeto político, não se inscreve em nenhuma finalidade e tem como única razão de<br />
ser a preocupação com um presente vivido coletivamente (MAFFESOLI, 2006).<br />
A experiência coletiva no modo de festejar dentro das festas rave estabelece relações típicas<br />
de caráter neotribal. As afinidades ali estabelecidas não se encontram baseadas em vínculos<br />
biológicos, institucionalizados, fixos ou mesmo permanentes. A reunião tribal típica do século XXI<br />
vivenciada nos eventos rave se dissolve ao término da festa, podendo ser reeditada num próximo<br />
acontecimento, com os mesmos ou com outros participantes. Consequentemente, é preciso atentar<br />
ao fato de que, mesmo sendo um agrupamento tribal disperso e móvel, ele permanece vivo ainda<br />
por algum tempo. Os jovens conectados à cultura rave, quando navegam pela internet através das<br />
comunidades virtuais e pelos sites especializados em música eletrônica, estão, de certa forma, dando<br />
continuidade à festividade e celebrando aspectos dessa cultura. Seja para tecer comentários sobre a<br />
festa, seja para planejar o próximo evento ou mesmo para baixar as fotografias e as músicas dos Djs,<br />
a reunião neotribal do tipo rave ocorre num espaço delimitado, e parece durar um tempo desejado,<br />
mas este tempo é movediço porque, às vezes, sobrevive em outros ambientes.<br />
O que tenho analisado é que esses festejos coletivos são episódios transitórios, locais e<br />
efêmeros, realizados nos finais de semana e organizados para que os indivíduos vivam aquele<br />
universo durante um período e numa esfera com sua própria orientação. A cultura rave ensina aos<br />
seus frequentadores que o prazer da dança e da celebração hedonista não pode ser adiado. A cultura<br />
rave ensina também que o espetáculo da tecnologia está a nossa disposição para ser usado, vivido,<br />
consumido, e logo depois, descartado, sem arrependimentos.<br />
Para mostrar a produção do jovem contemporâneo imerso na cultura rave, Reynolds (1998)<br />
garante que a movimentação das festas rave está em concordância com algumas características da<br />
sociedade contemporânea: a velocidade, o imediatismo, o espetáculo, o cosumo, entre tantas outras.<br />
Stephen Bertman (apud Bauman 2007) cunhou o termo ―cultura agorista‖ e ―cultura apressada‖<br />
para demonstrar a forma como vivemos em nossa sociedade. Revela também que a ideia de<br />
juventude está estreitamente ligada ao conceito de velocidade.<br />
O amor pela juventude, como o próprio poder do agora, está relacionado à ideia<br />
de velocidade. Como um tempo de vida com grande vigor, a juventude é o<br />
período de maior capacidade de mobilidade. Para simplificar, quando se é<br />
jovem, pode-se mover mais rápido do que quando se é velho e lento. E moverse<br />
é precisamente um valor da sociedade sincrônica (BERTMAN, 1998, p.50). 58<br />
58 No original: The love of youthfulness, like now´s own power, is related to the idea of speed. As the time of life with the<br />
greatest vigor, youth is the period most capable of motion. To put it simply, when we are young, we can “keep up” more readily<br />
then when we are old and slow. And “keeping up” is precisely a synchronous society values (BERTMAN, 1998, p.50).
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Portanto, nas festas que celebram a cultura rave, os fluxos de linguagens variadas como a da<br />
música, a iluminação, a moda e as performances em geral, se cruzam, vão tecendo afinidades<br />
eletivas, dão vida a espaços e configuram territórios existenciais. Territórios não perenes, mas<br />
provisórios, compostos na linha de uma cultura viajante, em movimento, e que a própria civilização<br />
legou à contemporaneidade.<br />
Aprendendo com a cena rave<br />
Inspirado em Jameson (1996), parto do pressuposto de que se existe uma cultura pósmoderna,<br />
uma economia pós-moderna, uma sociedade pós-moderna, também devem existir<br />
sujeitos pós-modernos. Portanto, foi olhando para um tipo de sujeito imerso e formatado na cena<br />
contemporânea que me voltei para a cultura e para as festas rave e, logo, também aos sujeitos que<br />
frequentam esses eventos.Quando os jovens conectados à cultura rave absorvem uma série de<br />
artefatos inscritos em roupas, imagens, músicas, comunidades virtuais, etc, eles estão mostrando<br />
que pertencem àquela cultura. Também nos revelam que estão de acordo com os códigos, tanto<br />
visuais como materiais, que compõe aquele universo. Esses jovens têm revelado suas marcas de<br />
identificação por inúmeros espaços onde esta cultura circula. É nas redes sociais online, nos festivais<br />
de música eletrônica, nas lojas especializadas, nos shopping centers, dentre inúmeros outros lugares.<br />
Como pesquisador, ao tentar me aproximar da cultura rave, fui alvo de suas interpelações e<br />
de suas pedagogias, e pude experimentar um lugar de aprendiz. Foi quando percebi que pedagogias<br />
precisam ser praticadas para que um sujeito se torne um raver. E são tantos os estímulos que<br />
povoam as festas que torna-se difícil desvinciliar-se das convoações. A cultura rave está inserida em<br />
um mundo multiplicado de incertezas, no cotidiano fragmentado em instantes efêmeros e prontos a<br />
uma satisfação do ―agora‖. Há um imperativo do gozo intenso e instantâneo, aproveitável durante<br />
o momento da festa-espetáculo e só naquele momento. Jovens que podem, com rapidez, mover-se,<br />
seduzidos pela propaganda, pelo desejo, moldado para viver sensações. ―O antigo lema carpe diem<br />
adquiriu um sentido totalmente diferente e leva uma nova mensagem: colha seus créditos agora,<br />
pensar no amanhã é perda de tempo‖ (BAUMAN, 2003, p.209).<br />
Referências bibliográficas<br />
BAUMAN, Zygmunt . Vida para consumo: transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro:<br />
Zahar, 2007.<br />
_________. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.<br />
BERTMAN, Stephen. Hyperculture: the human cost of speed. Westport: Praeger Publishers, 1998<br />
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 6. ed.<br />
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.<br />
CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas. Mutações juvenis nos corpos das metrópoles. Rio de<br />
Janeiro: DP&A, 2005.<br />
COSTA, Marisa V (Org.). Escola Básica na virada do século: cultura, política e currículo. 2 ed., São<br />
Paulo: Cortez, 2000.<br />
FRITZ, Jimi. Rave culture, an insider's overview. Canada: Smallefry Press, 1999.<br />
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.<br />
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.<br />
MAFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio<br />
de Janeiro: Forense, 2006.<br />
REYNOLDS, Simon. Generation ecstasy: into the world of techno and rave culture. New York: Little, Brown<br />
and Company, 1998.<br />
SAUNDERS, Nicholas. Ecstasy e a cultura dance. São Paulo: Publisher Brasil, 1997.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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ESTADO, EDUCAÇÃO E DOMINAÇÃO SOCIAL SOB O OLHAR DE GRAMSCI,<br />
ALTUSSER E POULANTZAS: UMA ANÁLISE INTRODUTÓRIA<br />
Severina Alves de Almeida 59<br />
Maria José de Pinho 60<br />
Francisco Edviges Albuquerque 61<br />
Resumo: Este ensaio reflete sobre Estado, Educação e Dominação Social a partir das teorias de<br />
Gramsci, Altusser e Poulantzas. O ponto de partida foi um estudo da obra de Martin Carnoy<br />
―Educação, Economia e Estado: Base e Superestrutura, Relações e Mediações‖, entendendo que,<br />
mesmo se acreditássemos que um sistema educacional de um País não tem nada a ver com o poder<br />
na sociedade, ainda assim seríamos forçados a discutir o Sistema de Governo para poder entender<br />
como se dá a educação, uma vez que nos séculos XIX e XX esta tem se tornado, indubitavelmente,<br />
uma prerrogativa do Estado.<br />
Palavras-chave: Estado; Educação. Dominação Social; Superestrutura.<br />
Abstract: This paper reflects on the State, Education and Social Domination from the theories of<br />
Gramsci, Altusser and Poulantzas. The starting point was a study of the work of Martin Carnoy,<br />
"Education, Economy and State: Base and Superstructure, Relations and Mediation, understanding<br />
that even if one believed that the educational system of a Country has nothing to do with power in<br />
society, yet we would be forced to discuss the system of government in order to understand how is<br />
education, since in the nineteenth and twentieth centuries, this has become, undoubtedly, a<br />
prerogative of the State.<br />
Keywords: State; Education. Social Dominance; Superstructure<br />
Introdução<br />
O objetivo deste ensaio é fazer um estudo sobre o papel do Estado e da educação ofertada<br />
sob sua gerência, bem como a dominação social que daí emerge. O ponto de partida são as ideias de<br />
Gramsci, Altusser e Poulantzas a partir dos estudos de Martin Carnoy (1990).<br />
Visto sob a ótica desses autores o Estado assume o papel de promotor das políticas que<br />
irão determinar o modelo de educação na sociedade, e apontam o teor ideológico que reveste a<br />
escola bem como a dominação que procede a partir de sua atuação. Além disso, apresentam a<br />
educação como forma de dominação social, alertando para o fato de que esta privilegia os já<br />
privilegiados, pois, segundo eles, pelo simples fato der não precisar conciliar trabalho e estudo, os<br />
filhos e filhas das famílias ―bem sucedidas‖ dedicam tempo integral aos estudos, além de ―pagar‖<br />
por uma escolarização de melhor qualidade.<br />
Estado, ideologia & educação<br />
Martin Carnoy (1990), analisando o papel do Estado e a Educação, reporta-se a teóricos<br />
como Marx, Engels, Gramsci, Altusser e Poulantzas, entendendo que atualmente o debate que se<br />
59 Pedagoga. Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras no MELL - Mestrado em Língua<br />
e Literatura da Universidade Federal do Tocantins – UFT – e Profª. Tutora do Curso de Biologia a Distância<br />
da UFT Campus Araguaina. e-mail: sissi@uft.edu.br.<br />
60 Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Palmas, e do PPGL –<br />
Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaina. e-mail: mjpignon@uft.edu.br.<br />
61 Professor Adjunto da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaina, e do PPGL –<br />
Programa de Pós Graduação em Letras da UFT/Araguaina. e-mail: fedviges@uol.com.br.
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
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trava entre marxistas dá-se a respeito da atuação do Estado, uma vez que ―por razões práticas,<br />
qualquer estudo do sistema educacional não pode ser separado de alguma análise implícita ou<br />
explícita dos propósitos e do funcionamento do setor governamental‖ (p. 19), e mais: a partir do<br />
momento que o poder se consolida através do sistema político de determinada sociedade, qualquer<br />
tentativa de desenvolver um modelo de mudança educacional deve, necessariamente, ter como<br />
suporte uma criteriosa reflexão e uma teoria precisa sobre o funcionamento de governo, o que o<br />
autor chama de ―Teoria do Estado‖ (IBID, p. 20).<br />
Com efeito, Carnoy nos diz que, mesmo que acreditássemos que um o sistema educacional<br />
de um País não tem nada a ver com o poder na sociedade, ainda assim seríamos forçados a discutir<br />
o sistema de governo para poder entender como se dá a educação, uma vez que nos séculos XIX e<br />
XX, esta tem se tornado, indubitavelmente, uma prerrogativa do Estado.<br />
Nesse sentido, antagonicamente se apresentam duas visões de estrutura da sociedade, uma<br />
liberal e ou neoliberal e outra marxista. A primeira se apresenta como campo de gravitação das<br />
forças produtivas detentora do capital que, por defender os interesses da classe hegemônica<br />
(burguesia), busca passar a imagem de um Estado que está a ―serviço‖ de todos. A segunda, que<br />
detém a força de trabalho, aglutina a imensa maioria da população – operários, estudantes, etc., - diz<br />
ser o Estado o representante legítimo de uma classe social específica, a burguesa e que por isso<br />
legisla em causa própria.<br />
Carnoy (1990) adverte que Marx, diferentemente de Hegel, argumentava que o Estado,<br />
produto das relações de produção, não representa o bem comum. Antes, é expressão política e<br />
ideológica da classe dominante, isto é, o Estado capitalista nada mais é do que a resposta à<br />
necessidade de mediar o conflito de classes e manter a ordem, desde que reproduz o domínio<br />
econômico da burguesia. Segundo o autor, Engels desenvolveu um conceito análogo ao dizer que o<br />
Estado tem sua origem na necessidade de controle das lutas sociais entre os diferentes interesses<br />
econômicos, e este controle é exercido pela classe hegemônica na sociedade.<br />
Portanto, o cenário que se apresenta é o de uma educação feita pela e para a classe<br />
dominante, assumindo a escola, enquanto instituição social, o papel de aparelho ideológico do<br />
Estado que irá atender, necessariamente, aos interesses do grupo que detém o poder.<br />
Nessa perspectiva Gramsci, apud Carnoy (1990), nos apresenta duas concepções de<br />
sociedade no centro das relações de produção do Estado capitalista: a sociedade civil e a sociedade<br />
política. A sociedade civil ele determina de ―superestrutura‖ da qual fazem parte as instituições<br />
sociais: igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação de massa, etc. Já a estrutura seria formada<br />
pelo governo: tribunais, exércitos, polícia, etc. O Estado aparece, então, como articulador dos<br />
(antagônicos) interesses desses dois pólos de sustentação da sociedade.<br />
Segundo Carnoy:<br />
Embora para Marx e Gramsci a natureza da sociedade civil seja a chave para a<br />
compreensão do desenvolvimento capitalista, na definição de Marx a sociedade<br />
civil é a estrutura (relações de produção), e para Gramsci a sociedade civil é a<br />
também a superestrutura representado um fator ativo e positivo no<br />
desenvolvimento histórico; é o conjunto das relações culturais e ideológicas, da<br />
vida intelectual e espiritual e a expressão política daquelas relações (CARNOY,<br />
1990:26). (GRIFO DO AUTOR).<br />
Nota-se que o papel do Estado está diretamente vinculado ao funcionamento das<br />
instituições políticas que o sustentam, quais sejam, os poderes executivo, legislativo e judiciário, ou<br />
seja, a estrutura social. Já em relação à superestrutura, a atuação está nas instituições sociais, as quais
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estão a serviço de todos, independentemente de sua classificação na hierarquia social. Dessa forma<br />
o Estado apresenta-se como um aparelho coercitivo a serviço da classe dominante e, sendo ele a<br />
estrutura, prevalece também sobre a superestrutura.<br />
Carnoy, (ibid) entende que a importância do Estado como aparelho da hegemonia<br />
apresenta-se para Gramsci, cristalizada na estrutura de classe, sendo esta definida pelas relações de<br />
produção e vinculada a estas mesmas relações. Ademais, o Estado, como instrumento da<br />
dominação burguesa, deve ser um participante ativo da luta que se trava ente as duas concepções de<br />
sociedade, política e civil.<br />
A hegemonia é para Gramsci apud Carnoy (1990) o substrato da burguesia, a qual se<br />
sustenta mediante a ação do ―intelectual orgânico tradicional‖, ou seja, aquele indivíduo que se<br />
infiltra nas instituições – tanto políticas como sociais – e trabalha para que as coisas permaneçam<br />
imutáveis. Segundo Gramsci (ibidem) este ―intelectual orgânico tradicional‖ tanto pode ser<br />
produzido no seio da classe dominante quanto da trabalhadora. Entretanto, o autor acena com a<br />
necessidade de se construir uma contra-hegemonia que cerque o Estado e estabeleça um contra<br />
ponto. Então, esta seria uma hegemonia advinda das lutas sociais, nascida da organização da classe<br />
trabalhadora, através da ação dos diferentes componentes de algumas instituições sociais, como por<br />
exemplo, os sindicatos.<br />
Com isso seria possível se produzir um ―intelectual orgânico‖, não tradicional, aquele que,<br />
criado no âmago da classe subalterna, se infiltraria nos átrios dos poderes políticos e lá defenderia<br />
os interesses de sua classe de origem. É claro que se corre o risco de esse ―intelectual orgânico‖<br />
transformar-se num ―intelectual orgânico tradicional‖ passando a defender os interesses da classe<br />
hegemônica. Contudo, não se deve cair no determinismo e parar de lutar. Antes, deve-se trabalhar<br />
no sentido de se produzir outros ―intelectuais orgânicos‖, mesmo que para isso tenha que se fazer<br />
uso dos instrumentos que a burguesia dispõe, quais sejam, os aparelhos ideológicos do Estado,<br />
como é o caso da Escola.<br />
Segundo Carnoy (1990) a base estratégica de Gramsci, na verdade, não era organizar as<br />
classes trabalhadora e campesina para engajar-se num ataque frontal ao Estado, e sim promover<br />
mecanismos de organização dessas mesmas classes, como fundamento de uma nova ordem cultural,<br />
para viabilizar os fundamentos de normas e valores no seio de uma sociedade proletária.<br />
Para ele:<br />
Essa hegemonia proletária confrontaria a hegemonia burguesa em uma guerra<br />
de posições – até que a nova superestrutura tivesse cercado a antiga, incluindo<br />
o aparelho do Estado. Somente nesse momento teria sentido assumir o poder<br />
do Estado, desde que somente a classe trabalhadora controlasse, de fato, os<br />
valores e normas sociais a ponto de poder construir uma nova sociedade,<br />
usando o aparelho do Estado (CARNOY, 1990:29).<br />
No âmbito da educação – sendo esta considerada um dos aparelhos ideológicos do Estado<br />
- dentro de uma sociedade marcada pela divisão de classes, a política educacional irá se manifestar<br />
por meio dos elementos da superestrutura, visando à infra-estrutura, procurando assegurar a<br />
produção do capital bem como as relações de trabalho e de produção que a sustenta. Aí se encontra<br />
a ação sistemática dos ―intelectuais orgânicos", tanto os ―tradicionais‖, quanto ―orgânicos‖.<br />
Carnoy (1990) assegura que é a partir da maneira como atuam estes ―intelectuais‖ que<br />
Gramsci irá discorrer acerca da escola pública. O autor acredita que para Gramsci o papel do<br />
sistema educacional burguês tradicional é desenvolver ―intelectuais orgânicos tradicionais‖ da classe<br />
dominante, infiltrando-os nas classes populares para cooptar um contingente adicional de<br />
intelectuais que dêem homogeneidade ao grupo dominante.
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Nesse sentido, a educação, a qual se traveste como democrática (SAVIANI, 2003)<br />
apresenta-se para a classe trabalhadora diferentemente daquela destinada às crianças da classe<br />
burguesa. ―O sistema escolar tem por base a divisão de classe social, a despeito da impressão que dá<br />
de que produz mobilidade ascendente, isto é, de que é democrática‖ (CARNOY, 1990:31).<br />
O autor retoma o pensamento de Gramsci ao advertir para o fato de que a escolarização<br />
ofertada pelo Estado é revestida de uma estrutura classista, sendo parte integrante do aparelho<br />
ideológico do Estado Burguês, e apresenta-se como um dos sustentáculos da hegemonia burguesa,<br />
e mais: o sistema educacional produz intelectuais que dão à burguesia ―homogeneidade e uma<br />
consciência de sua própria função, não somente quanto ao aspecto econômico, mas também nos<br />
campos político e social‖ (GRAMSCI, 1971:5) apud (CARNOY, 1990:31).<br />
Nessa perspectiva Gramsci deixa claro que a educação é uma forma de dominação social.<br />
Todavia, acredita que nem tudo está perdido e acena com a possibilidade de que, por meio da<br />
educação, a classe trabalhadora, se não puder mudar a ordem social vigente, pode, pelo menos,<br />
amenizar a situação. Carnoy (ibid) afirna que Gramsci, assim como Lênin, entende que o Partido<br />
tem vital importância na conscientização da classe operária. Porém, diferentemente de Lênin,<br />
Gramsci não aceita que as escolas públicas tivessem pequena importância no esquema de<br />
dominação da burguesia. Daí a necessidade de se construir uma contra-ideologia, a qual<br />
desenvolveria uma resistência à ideologia inculcada pelas escolas do Estado, abalando, assim a<br />
hegemonia da classe dominante.<br />
Já Altusser, conforme estudos de Carnoy (1990) leva adiante as ideias de Gramsci sobre o<br />
Estado, enfatizando os aspectos superestruturais e culturais da dominação burguesa sobre os<br />
aspectos econômicos. Consequentemente, sua concepção ―destaca o Estado Capitalista como<br />
aparelho repressivo e como aparelho ideológico da burguesia, estando, este último, intimamente<br />
relacionado com o sistema educacional‖ (CARNOY, 1999:34).<br />
Importante lembrar ainda que de acordo com esse autor, a concepção de Altusser sobre a<br />
reprodução das relações de produção é quase idêntica ao conceito de hegemonia em Gramsci, e que<br />
a mais importante instituição do Estado usada para levar adiante tal reprodução é a escola. O<br />
Estado, portanto, tem sua origem na base, sendo também a máquina de repressão que possibilita<br />
que a burguesia assegure sua dominação sobre a classe trabalhadora.<br />
Falando sobre a educação no seio da sociedade classista Altusser, diferentemente de<br />
Gramsci, acredita que a escola – parte integrante da superestrutura - não tem o poder de<br />
transformação, Assim, Altusser argumenta que:<br />
[...] a escola fornece à formação social capitalista dois dos mais importantes<br />
elementos para a reprodução de suas habilidades e a reprodução de sua<br />
submissão às regras da ordem estabelecida, isto é, a reprodução da submissão<br />
dos trabalhadores à ideologia dominante e a reprodução da habilidade de<br />
manipular corretamente a ideologia por parte dos agentes de exploração e da<br />
repressão, de tal maneira que esses agentes colaborem ―com palavras‖ para a<br />
dominação da classe superior (ALTUSSER, 1971:132-3) apud (CARNOY,<br />
1990:38).<br />
Nesse sentido a escola aparece com a dupla missão de reprodução da força de trabalho ao<br />
mesmo tempo em que contribui para a reprodução das relações de produção. ―É o aparelho<br />
ideológico do Estado que certamente tem o papel dominante nesta reprodução‖ (ALTUSSER:155-7) apud<br />
(CARNOY, 1990:38).(Grifo do autor).
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Dentre os teóricos estudados por Carnoy para desvendar as concepções de ―Estado‖ e de<br />
―educação‖ encontra-se Poulantzas, o qual provém da tradição gramsciniana que eleva a<br />
superestrutura além da compreensão da estrutura, fazendo uma leitura importante de uma teoria de<br />
sociedade.<br />
Nesse sentido Carnoy (1990) informa que para Poulantzas o papel dos aparelhos Estado<br />
(superestrutura) é manter a unidade social, legitimando a dominação de classe, reproduzindo as<br />
relações de poder e, consequentemente, as relações de classes. ―As relações ideológicas e políticas<br />
são materializadas e incorporadas, como práticas materiais, nesses aparelhos‖ (Ibid, p. 39). Desse<br />
modo, as classes sociais se definem por suas relações com os aparelhos econômicos – o lugar da<br />
produção - e os aparelhos do Estado. ―Ao mesmo tempo, o aparelho de Estado é inerentemente<br />
marcado pela luta de classes – luta de classes e aparelho do estado não podem ser separados‖<br />
(IBIDEM).<br />
Poulantzas entende que no capitalismo monopolista o Estado assume funções econômicas<br />
que não existiam no estágio competitivo, adverte Carnoy, e mais: Poulantzas vê o Estado Capitalista<br />
diferentemente de Gramsci em dois pontos importantes. Primeiramente o Estado assume a tarefa<br />
de planejar a economia – produção - e, simultaneamente, exerce as funções ideológico-repressivas –<br />
reprodução.<br />
Em se tratando da educação, Poulantzas, segundo Carnoy (1990), admite que esta seja<br />
naturalmente parte dos aparelhos do Estado, visto sob a perspectiva de sua relação com a estrutura<br />
de classes. Consequentemente, para entender o papel da educação na sociedade capitalista, torna-se<br />
necessário entender a formação social desta mesma sociedade. ―E, uma vez que essa formação se<br />
altera – passando do capitalismo competitivo para o monopolista, e deste para o atual estágio<br />
―monopolista avançado‖ – o papel da educação deve também mudar‖ (IBID, p. 46).<br />
Carnoy acrescenta ainda que Poulantzas, assim como Altusser, acredita que os aparelhos<br />
ideológicos não criam necessariamente uma ideologia, e muito menos são eles próprios os únicos<br />
e/ou principais fatores na reprodução das relações de subordinação e da dominação ideológica. No<br />
entanto Poulantzas diverge de Altusser quando se trata da divisão dos aparelhos em: econômicos,<br />
ideológicos e repressivos. ―De certo modo, todas as instituições sociais são ideológicas―<br />
(POULANTZAS, 1978:32) apud (CARNOY, 1990:46).<br />
Já a educação, segundo Carnoy (ibid), além de contribuir para a reprodução da estrutura de<br />
classe e para a reprodução das relações – via inculcação ideológica dos valores burgueses, fornece as<br />
habilidades técnicas e o “know-how” necessários à acumulação progressiva do capital. Em outras<br />
palavras, o autor está nos dizendo que os trabalhadores pagam para a educação de seus filhos e<br />
filhas e parte do retorno desses gastos serve para manter o nível da mais-valia 62, para subsidiar a<br />
taxa de lucro. Desta forma a escola não apenas distribui o conhecimento, ela o produz.<br />
Considerações finais<br />
Neste ensaio refletimos sobre Estado, Educação e Dominação Social, tendo como base<br />
teórica o pensamento de Gramsci, Altusser e Poulantzas visto sob o olhar de Martin Carnoy. A<br />
partir de uma revisão crítica sobre o legado desses teóricos, foi possível identificar o papel da escola<br />
diante da manipulação do Estado. Outra constatação é o caráter ideológico da educação,<br />
apresentando-se mesmo como fator determinante para disseminar/perpetuar a ordem hegemônica,<br />
sempre sob o prisma do controle burguês.<br />
62 Na economia marxista, o suplemento do trabalho não remunerado e que é, pois, fonte de lucro capitalista.<br />
(Dicionário Encarta, CD Rom, 2000).
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Ademais, no campo educativo, a ideologia desempenha papel crucial, aspecto corroborado<br />
por Paulo Freire (2007:125), ao dizer textualmente que ―a educação é ideológica‖.<br />
Com efeito, Freire, um contumaz opositor da globalização e do neoliberalismo denuncia o<br />
caráter ideológico aí implícito, e vem nos advertir para o fato de que o discurso da globalização que<br />
fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano,<br />
pela qual todos devemos lutar bravamente, se optamos, na verdade, por um mundo de gente. O<br />
discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao<br />
máximo mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História.<br />
O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns<br />
poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no<br />
neoliberalismo globalizante o máximo de sua eficácia e malvadez (FREIRE, 2007:128).<br />
Observa-se, portanto, que o autor denuncia o caráter excludente da globalização e, assim<br />
como Gramsci, Altusser e Poulantzas aponta também as mazelas impostas pelo capitalismo que<br />
favorece toda forma de conjugação do ser humano. Entretanto ele diverge desses teóricos quando<br />
se trata das metodologias que possibilitam interferir visando a uma mudança na estrutura social.<br />
Diante disso, podemos concluir que alguma coisa precisa ser feita com urgência, o que nos<br />
leva a admitir também nossa parcela de responsabilidade, pois, conforme evidencia Gramsci, só<br />
depende de nós, classe subalterna, criarmos os ―intelectuais orgânicos‖ para se infiltrarem nos átrios<br />
da classe hegemônica, e a partir daí, criar condições para que a ordem social por ela imposta, possa<br />
efetivamente ser revista e quem sabe, modificada.<br />
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seus feitos na Educação. PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO<br />
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Educación . Acesso: 15/01/2007<br />
SAVIANI, Demerval.. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 2003.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO: CONCEPÇÕES E INTERFACES DE<br />
MONITORAMENTO COM O PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS<br />
Sheila Cristina Monteiro Matos 63<br />
Resumo<br />
Este trabalho discute as interfaces do Programa Mais Educação do governo federal, por meio do<br />
acompanhamento e monitoramento das ações e subações empreendidas pelo Plano de Ações<br />
Articuladas em Duque de Caxias-RJ. Nas considerações finais, infere-se que garantir a centralidade<br />
da escola no planejamento das ações pedagógicas implementadas pelo Programa Mais Educação é<br />
tarefa precípua para resgatar a identidade e o clima organizacional na esfera escolar.<br />
Palavras-chave: Educação Integral. Plano de Ação Articulada. Programa Mais Educação.<br />
Resumen<br />
Este documento analiza las interfaces Programa Más Educación del gobierno federal, mediante el<br />
seguimiento y monitoreo de las acciones y sub-acciones emprendidas por el Plan de Acciones<br />
Articuladas en Duque de Caxias-RJ. En síntesis, se infiere que garantizar la centralidad de la escuela<br />
en la planificación de acciones pedagógicas implementadas por el Programa Más Educación debe<br />
ser la tarea principal para rescatar la identidad y el clima organizacional en el ámbito escolar.<br />
Palabras clave: Educación Integral. Plan de Acciones Articuladas. Programa Más Educación.<br />
Introdução<br />
O Programa Mais Educação (PME) foi inicialmente normatizado pela Portaria<br />
Interministerial Nr 17-2007 e tornou-se institucionalizado pelo Decreto 7.083, em 27/01/2010<br />
(BRASIL, 2010). Integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e é<br />
compreendido como uma estratégia do governo federal para induzir a ampliação da jornada escolar<br />
para 7 horas e a organização curricular, na perspectiva da educação integral (BRASIL, 2007b).<br />
A política de educação integral focada nesse programa tem sido compreendida na<br />
necessidade de ampliar os espaços, os tempos e as oportunidades educativas. Para tal, firmam-se<br />
parcerias com pessoas e/ ou instituições do entorno da escola, estimulando o cooperativismo e o<br />
compartilhamento de tarefas no processo de educar.<br />
As ações do PDE são fomentadas por transferências de verbas para a educação básica e,<br />
ainda, por uma assistência técnica do Ministério da Educação (MEC), por meio da adesão dos<br />
Estados, Municípios e Distrito Federal ao Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação<br />
(BRASIL, 2009). Isso é consubstanciado pelo acompanhamento e pelo monitoramento das ações e<br />
subações do Plano de Ações Articuladas (PAR).<br />
O Decreto nº 6.094/2007, que trata desse Plano de Metas Compromisso Todos pela<br />
Educação, instituiu o PAR como:<br />
Art 9º O PAR é o conjunto articulado de ações, apoiado técnica ou<br />
financeiramente pelo Ministério da Educação, que visa o cumprimento do<br />
Compromisso e a observância das suas diretrizes.(...) Art. 10 O PAR será a base<br />
63 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Foi Técnica de Campo do<br />
Monitoramento do Plano de Ações Articuladas no Estado do Rio de Janeiro nos anos de 2009 e 2010. e-mail:<br />
sheilammatos@uol.com.br
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para o termo de convênio ou cooperação, firmado entre o Ministério da<br />
Educação e o ente apoiado (BRASIL, 2007a).<br />
Dessa forma, constatamos que, por meio das ações do PAR, o governo pretende propor<br />
assistências financeiras e assessoria técnica aos Estados e municípios com o intuito de monitorar as<br />
diretrizes propostas pelo compromisso que visam à melhoria da qualidade da educação básica.<br />
Algumas questões de estudo se fazem nesse contexto: qual é a concepção ideológica do<br />
Programa Mais Educação? O que o PAR delineia sobre o monitoramento do Programa Mais<br />
Educação? Empreendemos, portanto, este ensaio para fins de discussão no leque abrangente que<br />
perpassa a política educacional no país.<br />
Assim, este ensaio tem por objetivo discutir as interfaces do Programa Mais Educação do<br />
governo federal, por meio do acompanhamento e monitoramento das ações e sub-ações<br />
empreendidas pelo Plano de Ações Articuladas em Duque de Caxias-RJ.<br />
Para tal, o estudo foi delimitado ao Município de Duque de Caxias - RJ, por ser um dos<br />
municípios que adotou o Programa Mais Educação desde setembro de 2009, e por ser monitorado<br />
pelo PAR, desde 2008.<br />
Nesse sentido, foram utilizadas como metodologias a análise documental e o estudo de<br />
caso. A análise documental, baseada em documentos oficiais, serviu para descrever o Programa<br />
Mais educação, descrever o Plano de Ações Articuladas, bem como inferir sobre as concepções<br />
ideológicas imbricadas. O estudo de caso, tendo como amostra os dados do Sistema de<br />
Monitoramento do Plano de Ações Articuladas (SIMEC), permitiu analisar as interfaces entre o<br />
PME e o PAR.<br />
Concepção ideológica do Programa Mais Educação<br />
As concepções político-ideológicas conservadoras, socialistas e liberais do Século XX<br />
subsidiaram o pensamento educacional no que concerne a visões sociais de mundo (COELHO,<br />
2009). Essas concepções são traduzidas entre si ora emblemáticas, ora dinâmicas. Entretanto,<br />
carregam em si pontos contraditórios que possivelmente serão engendrados nas práticas<br />
pedagógicas que configuram a política educacional.<br />
Dentro dessa perspectiva, o PME reflete algumas desses matizes ideológicos no atual século,<br />
com novas conjecturas e ressignificações.<br />
Para a concepção conservadora (com base no integralismo), a educação integral remetia a<br />
postulados cívicos, higienistas e políticos conservadores em que o que interessava era manter a<br />
ordem e o controle social para uma infância moralmente abandonada (KUHLMANN apud<br />
PORTILHO, 2006). Verificamos também que o interesse religioso se fazia presente para manter o<br />
status quo dentro de uma política assistencialista, legitimando ações paternalistas do Estado.<br />
Nesse ensejo, a evidência de uma construção de educação integral vinculada ao movimento<br />
integralista, apontava para uma valorização dos espaços não-formais de educação (COELHO,<br />
2005). Nessa assertiva, evidenciamos uma singularidade desse entendimento em relação ao PME,<br />
tendo em vista que as ações socioeducativas podem ser realizadas em vários espaços educativos<br />
(BRASIL, 2008c), fossem estes formais ou não-formais de ensino.<br />
Para a concepção socialista, a educação integral recai sobre aspectos de igualdade, autonomia<br />
e liberdade humana (COELHO, 2009). O PME valoriza aspectos ligados a esta concepção, como a<br />
valorização de saberes diferenciados, que são potencializados na compreensão do significado social
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
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(BRASIL, 2008b). Percebe-se, portanto, o resgate do valor da cultura do ―outro‖ na escola,<br />
propiciada por meio de projetos pedagógicos que valorizam a autonomia no pensar, no agir e no<br />
planejar as ações da jornada ampliada. Essas características podem ser indutoras para entender a<br />
autonomia e a liberdade humana.<br />
Já na concepção liberal, a educação integral defende o propósito de uma educação pública,<br />
perpassando por uma formação completa do ser humano (COELHO, 2009). Além disso, essa<br />
concepção entende que a formação completa da criança, via educação, teria como meta a<br />
construção de um adulto civilizado, pronto para o progresso e para o desenvolvimento da<br />
sociedade.<br />
Evidenciando algumas características dessa concepção no Programa Mais Educação,<br />
podemos sinalizar que a busca por um adulto civilizado é articulado por meio das proposições que<br />
configuram as práticas pedagógicas diferenciadas no contraturno, tangenciado a ampliação do<br />
tempo, espaços e conteúdos defendidos como alternativa para assegurar a formação integral do<br />
indivíduo na sociedade (BRASIL, 2008a). Vale ressaltar, ainda, que o enfoque sobre a comunidade<br />
de aprendizagem, que delineia uma rearticulação da escola juntamente com outros atores sociais<br />
(BRASIL, 2008c), é pertinente para compreender o atrelamento da educação integral refinada ao<br />
progresso e ao desenvolvimento da sociedade.<br />
Além disso, os discursos que permeiam os referenciais do programa, os quais utilizam<br />
expressões como: protagonismo juvenil, novos espaços educativos, teia social, parcerias,<br />
intersetorialidade, dentre outros, denotam questões político-filosóficas que deveriam desvelar<br />
criticamente o verdadeiro posicionamento do mesmo. Identificamos ainda neste programa que o<br />
paradigma da formação integral com a educação integral em suas interfaces (GUARÁ, 2009) vem<br />
subsidiando as ações sócio-educativas de proteção no contraturno.<br />
Verificamos, assim, que as concepções político-filosóficas que delineiam o PME perpassam<br />
por uma hibridização que ora evidencia características liberais, ora socialistas, ora políticoconservadoras.<br />
Portanto, ressignificar o que há de positivo no liberalismo, no conservadorismo e<br />
no socialismo é a tese precípua para que se entenda o desenho do Programa Mais Educação.<br />
O Plano de Ações Articuladas e suas interfaces com o Programa Mais Educação.<br />
O PAR pode ser compreendido como um planejamento de caráter plurianual, com duração<br />
prevista, inicialmente, até 2011. Esse plano iniciou com 1.016 municípios e, posteriormente, chegou<br />
há 1.827. O perfil que adequava os municípios para esse primeiro momento de execução do plano<br />
inseria aqueles com 200.000 habitantes, localizados nas capitais ou região metropolitana e com<br />
IDEB abaixo de 2,9.<br />
Esse plano organizou as diretrizes do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação<br />
em quatro dimensões: (1) Gestão Educacional, (2) Formação de Professores e Profissionais de<br />
Serviço e Apoio Escolar, (3) Práticas pedagógicas e avaliação, (4) Infraestrutura física e recursos<br />
pedagógicos (BRASIL, 2009).<br />
A seguir, um exemplo de monitoramento do PAR em Duque de Caxias que pontua a<br />
educação integral:
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PAR - Plano de Metas<br />
Monitoramento do PAR<br />
Duque de Caxias – RJ<br />
Dimensão : 1. Gestão Educacional<br />
Área :<br />
2. Desenvolvimento da Educação Básica: ações que visem a sua<br />
universalização, a melhoria da qualidade do ensino e da<br />
aprendizagem assegurando a eqüidade nas condições de acesso e<br />
permanência e conclusão na idade adequada<br />
Indicador : 2. Existência de atividades no contraturno<br />
Programa : SECAD - Programa Mais Educação (kit informativo)<br />
Ação :<br />
Período Inicial : 24/03/2008<br />
Período Final : 16/12/2011<br />
Resultado<br />
Esperado :<br />
Descrição Subação<br />
:<br />
Estratégia de<br />
Implementação :<br />
Dados da subação<br />
Unidade de medida<br />
:<br />
Expandir as atividades de contraturno nas escolas da rede,<br />
observando a articulação das atividades com o PP de cada escola.<br />
Ampliação gradativa do projeto de implantação de atividades no<br />
contraturno.<br />
1.2.2 - 2 Qualificar a equipe da SME para a implantação de<br />
atividades no turno complementar (educação integral e integrada).<br />
Estudo do material informativo do Programa Mais Educação da<br />
Secad/MEC.<br />
kit(s) de material<br />
Forma de execução<br />
:<br />
Início : 8/2008 Fim : 8/2008<br />
Status :<br />
Execução da subação<br />
Aprovada pela<br />
Comissão<br />
Assistência técnica do<br />
MEC<br />
1º Semestre de 2008 2º Semestre de 2008 Previsto Executado % Exec.<br />
1 1 100<br />
Quadro Nr 01: Interfaces do PME com o monitoramento do PAR.<br />
Fonte: www.simec.gov.br. Acesso em: 10 mar. 2010.<br />
Analisando as dimensões (3) e (4) do PAR em Duque de Caxias (SIMEC, 2010),<br />
observamos que as ações e sub-ações se materializam em diversas direções que vão ao encontro do<br />
desenho do PME. Elas enfatizam ações que subtendem desde a ampliação gradativa de atividades<br />
nos contraturnos nas escolas do município, tão quanto a qualificação dos gestores e o pessoal da<br />
secretaria de educação.<br />
Além dessas ações e sub-ações mencionadas, verificamos também outras que estão ligadas<br />
tanto ao estabelecimento de parcerias para a implementação do Programa Rádio escola, como a<br />
implementação de atendimento de alunos com dificuldades de aprendizagem, com deficiência,<br />
transtornos globais de desenvolvimento ou altas habilidades/super dotação.
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Vale ressaltar ainda que o oferecimento da formação de Comissões de Meio Ambiente e<br />
Qualidade de Vida (Com-Vidas) e implementação da agenda 21 nas escolas (SIMEC, 2010) são<br />
metas a serem concretizada em Duque de Caxias, o que denota perspectivas em favor da proteção<br />
integral.<br />
Tecendo algumas consideraçôes<br />
Este trabalho considerou a concepção de educação integral que permeia o Programa Mais<br />
Educação e, por conseguinte, utilizou do PAR como estratégia gerencial para fundamentar algumas<br />
análises e ponderações.<br />
Quanto ao PAR, este tem se tornado um mecanismo de gestão administrativa, perfazendo<br />
um sentido regulatório diante do desenho das políticas públicas gestadas no âmbito do governo<br />
federal. Embora afirmemos tal situação, o PAR tem apontado avanços que vão ao encontro de<br />
estratégias de gestão participativa, tendo em vista melhorar o redimensionamento de verbas para a<br />
Educação Básica, verificando, com mais cautela, se as mesmas foram destinadas conforme o<br />
planejamento das metas.<br />
Não obstante, o desafio está posto nas políticas educacionais cujos vieses ideológicos se<br />
distanciam de uma educação que vislumbre os verdadeiros sentidos sócio-históricos dos<br />
conhecimentos produzidos pela sociedade civil. Assim, garantir a centralidade da escola no<br />
planejamento dessas novas práticas pedagógicas do PME é tarefa precípua para resgatar a<br />
identidade e o clima organizacional na esfera escolar.<br />
Referências<br />
BRASIL. Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas<br />
Compromisso Todos pela Educação. Brasília, DF, 2007a.<br />
______. Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010. Institucionaliza o Programa Mais Educação. Brasília, DF,<br />
2010.<br />
______. Portaria Interministerial Nr 17, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa Mais Educação. Brasília,<br />
DF, 2007b.<br />
______. Ministério da Educação. Orientações gerais para elaboração do Plano de Ações Articuladas (PAR) dos<br />
municípios. Versão revisada e ampliada. Brasília, DF, nov. 2009.<br />
______. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Gestão Intersetorial do Território.<br />
Coleção Mais Educação. 1. ed. Brasília, DF, MEC, 2008a.<br />
______. Rede de saberes mais educação: pressupostos para projetos pedagógicos de educação integral: caderno<br />
para professores e diretores de escola. 1. ed. Brasília, DF: MEC, 2008b.<br />
______. Texto referência para o debate nacional. Série Mais Educação. Educação Integral. ed. Brasília, DF, MEC,<br />
2008c.<br />
COELHO, L. M. C. C. História(s) da educação integral. Em Aberto. Brasília, v. 22, nr 80, p.83-96, abr 2009.<br />
______. Integralismo, anos 30: Uma concepção de educação integral. In: V Jornada do HISTEDBR -<br />
História, Sociedade e Educação no Brasil. Instituições escolares brasileiras: História, historiografia e práticas.<br />
Sorocaba, 2005. p. 180-180.<br />
GUARÁ, Isa. Educação e desenvolvimento integral: articulando saberes na escola e além da escola. Em<br />
Aberto. Brasília, v. 22, nr 80, p.65-81, abr 2009.<br />
PORTILHO, D. B. Releitura da concepção de educação integral dos CIEPS: para além das caricaturas ideológicas.<br />
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,<br />
2006.<br />
SISTEMA DE MONITORAMENTO DO PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS (SIMEC). Compromisso<br />
todos pela educação. Relatório Público do Município de Duque de Caxias. Disponível em: <<br />
http://simec.mec.gov.br/>. Acesso em: 10 mar. 2010.<br />
Enviado – 21/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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ENVELHECÊNCIA: UM CONCEITO A SER REFLETIDO<br />
Tania Scuro Mendes<br />
Doutora em Educação- UFRGS<br />
Pesquisadora e professora na graduação e pós-graduação<br />
Universidade Luterana do Brasil<br />
Participa do Grupo de Pesquisa: Gestão do Cuidado Humano, junto ao CNPq<br />
Resumo<br />
Dados do censo brasileiro de 2010 apontam que a população que está envelhecendo aumentou, na<br />
última década, em 25%. As novas gerações que experimentam essa etapa vital não trazem<br />
necessariamente como características a aposentadoria e o afastamento do convívio sócio-cultural,<br />
mas passam a reivindicar reais e dinâmicas participações como sujeitos sociais. O Estatuto do<br />
Idoso, de 2003, representa um avanço democrático na construção da cidadania dessa categoria.<br />
Porém, o próprio conceito de idoso está se transformando, fazendo surgir um novo modo de<br />
compreender a pessoa em processo de envelhecimento. Daí a necessidade de se refletir sobre o<br />
conceito de envelhecência.<br />
Palavras-chave: Desenvolvimento Humano; Envelhecimento Humano; Envelhecência<br />
Abstract<br />
Data from the Brazilian census of 2010 indicate that the aging population has increased in the last<br />
decade, by 25%. The new generation who experience this vital step as characteristics do not<br />
necessarily bring the retirement and removal of socio-cultural interaction, but start to claim real and<br />
dynamic as social equity. The Elderly Statute, 2003, represents a breakthrough in the construction<br />
of democratic citizenship in this category. However, the very concept of elderly is changing, giving<br />
rise to a new way of understanding the person in the process of aging. Hence the need to reflect on<br />
the concept of envelhecência.<br />
Key words: Human Development; Human Aging; Envelhecência<br />
A população brasileira com idade superior a sessenta anos vem aumentando<br />
consideravelmente. Diferentemente de gerações anteriores, cujo perfil era aliar ao processo de<br />
envelhecimento a aposentadoria e o afastamento gradativo do convívio social, gerações que ora<br />
estão experimentando essa fase continuam em plena atividade social, cultural e, não raro, em razão<br />
dos baixos proventos oriundos da aposentadoria do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social),<br />
exercendo funções como profissionais de caráter informal e formal. Parte significativa delas tem<br />
maior instrução e participa, mais do que antes, de processos de educação continuada.<br />
Tais características podem ser justificadas por dados do IBGE 64 (2010) relativos à<br />
expectativa de vida da população brasileira, a qual é, em média, de 72,8 anos. Vale a ressalva de que<br />
tal expectativa em relação à população feminina é 76,7 anos e de que os estados das regiões sul,<br />
sudeste e centro-oeste apresentam expectativa de vida maior do que a média nacional, o que pode<br />
ser devido especialmente às desigualdades sociais e econômicas que são a origem da diferença desse<br />
indicador social entre as regiões brasileiras. Ao par disso, o Censo de 2010 indica que, na última<br />
década, a população com 65 anos ou mais passou de 5,9% para 7,4%, o que corresponde a um<br />
aumento de 25% dessa faixa etária. Assim, está aumentando a quantidade de pessoas que estão<br />
ficando mais tempo de vida em processo de envelhecimento e, dessa forma, precisam buscar novos<br />
modos de convivência e de atuação.<br />
64 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
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O Estatuto do Idoso, de 2003, pode representar um avanço democrático na construção da<br />
cidadania da pessoa a partir de sessenta anos de idade, especialmente no que se refere a proposições<br />
de direitos a serem respeitados. Porém, o próprio conceito e a construção social e discursiva de idoso<br />
estão se transformando, fazendo surgir modos diferenciados de compreender a pessoa nessa etapa<br />
vital, que passa a reivindicar sua real e dinâmica participação.<br />
Há que se considerar, apoiando-se em Foucault (1981), que a formação de conceitos tem<br />
lugar nos discursos e acaba, longe de ser produzida nas consciências e mentalidades individuais,<br />
impondo-se aos que tentam falar no campo discursivo. Então, os processos conceituais são<br />
produções sociais articuladas por representações culturais presentes em contextos específicos, os<br />
quais dão substrato às posições que os sujeitos ocupam na enunciação de seus discursos.<br />
Se já não são suficientes, para estes e aos novos sujeitos instruídos que brevemente<br />
engrossarão o caldo social dessa categoria, os grupos de encontro ou os bailes ―das pantufas<br />
dançantes‖, provavelmente é porque está em circulação na cultura uma construção discursiva,<br />
segundo Hall (1997), que regula condutas e a própria construção de identidades enquanto<br />
subjetividades, tendo em vista que o indivíduo é criado no social.<br />
Entre as condições sociais decorrentes dessas regularidades discursivas pode-se destacar<br />
que as pessoas em processo de envelhecimento almejam mais: sentem necessidade de aprender e<br />
continuar aprendendo 65, ter direito a lazer cultural e esportivo, atuar efetivamente em entidades,<br />
fazer parte de comunidades virtuais, defender suas causas político-sociais, de ser, sobretudo,<br />
cidadãos. Esses aspectos demandam um novo perfil de pessoa em envelhecimento que se distancie<br />
de velho (fora do prazo de validade?) e de idoso (ido; aquele que já foi?), o que implica adaptações<br />
psicossociais que se operam sobre as subjetividades.<br />
Se tais definições, velho e idoso, são problematizadas ou mesmo desprezadas no âmbito<br />
discursivo, mas presentes na configuração da vida social, novos discursos se articulam no processo<br />
de fabricação de conceitos tidos ou pretendidos como desprovidos de preconceitos.<br />
Nesse quadro de referências é produzido o conceito de envelhescente, que vem sendo<br />
veiculado no cenário atual, especialmente em fenômenos midiáticos, como peças publicitárias e<br />
novelas, que situam a pessoa, outrora considerada anciã, como ―moderninha‖, ―mais jovial‖,<br />
sintonizada com a juventude. Desse modo, artefatos culturais, como televisão, rádio, internet,<br />
estabelecem produções de relações que especificam como o envelhescente deve pensar, agir, ser,<br />
instituindo, como explica Hall (2003), sua identidade por mediações culturais.<br />
Envelhecência ou envelhescência? Quais discursos as distinguem?<br />
O ciclo vital humano que culmina no envelhecimento implica que a criança, o adolescente,<br />
o jovem adulto, o adulto de meia idade coexistam nessa etapa que, enquanto processo sempre em<br />
construção, revisita, reelabora e ressignifica tais estados estruturados e estruturantes da identidade<br />
biológica e também cultural de envelhecente, conceito este derivado, nesta acepção, de envelhecer<br />
(e, por isso, sem a escrita com SC).<br />
Assim, a criança, o adolescente e o adulto, encontrando eco nas palavras de Mendes (2010),<br />
nunca são abandonados em lugares e tempos de passados pelos quais o envelhecente transitou.<br />
Estão presentes nas novas aprendizagens e conflitos que a pessoa em processo de envelhecimento<br />
65 Veja-se o caso de universidades abertas a idosos, tais como as da PUCSP e do Centro Universitário FIEO,<br />
que direcionam trabalhos a pessoas com mais de 45 anos de idade, para discussão de variados assuntos.
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experimenta. Eterna aprendiz, tal pessoa pode reencontrar-se consigo, com seus medos, com seus<br />
anseios, bem como com sua esperança de ser enquanto perdurar sua existência.<br />
O desenvolvimento humano prossegue adentrando as elipses das espirais de cada etapa<br />
vital. Sem pedir licença, as rugas e os desequilíbrios, gradativos ou adoecidos, tornam evidente a<br />
perda do viço pela propriedade dos sistemas químicos pouco estáveis que vão se transformando no<br />
tempo. Com eles, a degeneração, inevitável e indesejada. Mais do que nunca, o poder de adaptação<br />
é condição de sobrevivência. A ambivalência entre a sabedoria elaborada no transcorrer de sua<br />
história e a diminuição das aptidões, especialmente físicas, solicitam, de formas diferenciadas, a<br />
capacidade de resiliência 66. Eis o desafio de envelhecer com qualidade de vida.<br />
Importa explicar, no entanto, que o desenvolvimento humano não implica necessariamente<br />
evolução, e sim um processo de reconstruções de etapas que se sucedem e se integram. Se conflitos<br />
e frustrações são vencidos em etapas anteriores, não significa que estejam absolutamente resolvidos<br />
na atual. O trânsito à envelhecência tem seus percalços. Embora em outro patamar da existência, a<br />
pessoa precisa experimentar situações que, talvez, já tenha suplantado, parcial ou totalmente, na sua<br />
juventude, tendo em vista, como explicita Bauman (2005), a liquidez da vida, que interage e se<br />
confunde com a cultura, sempre em movimento.<br />
Mas é com os olhos do presente que o envelhecente enxerga, como diria Pessoa (1980), os<br />
seus Eus profundos, com a ressalva de que não são individuais senão produtos de conexões entre a<br />
pessoa e a cultura contemporânea, ou, como diria Foucault (1985) a vida implica diferentes<br />
processos de subjetivação e, por isso, pode-se complementar, distende-se em processos fluidos e<br />
híbridos. Nesse sentido, esse olhar está povoado de lembranças que a memória - interativa,<br />
dinâmica e cultural - vai peneirando entre os discursos, constitutivos de significados. Essa cultura da<br />
memória pode tornar a vida mais ―viável‖ e menos sofrível, pelo menos do ponto de vista da<br />
subjetividade, que escapa da psicologização. São freqüentes as condutas de pessoas lembrarem o<br />
que desejam lembrar, mesmo que, para isso, seja necessário reinventar o enredo, a trama, as<br />
soluções na dimensão da história atual. Assim, partes do passado podem ser reconstruídas à luz do<br />
presente, permitindo-se que a trajetória seja mais suave, ou mais inteligente, ou mais emocionante,<br />
ou mais..., configurando-se, na articulação teórica de Sarlo (2000; 1997), no ―império dos<br />
sentimentos‖ em ―paisagens imaginárias‖, orientadas, pode-se aclarar, pelos discursos que circulam<br />
sobre um modo mais adaptável de bem-viver.<br />
Essa possibilidade humana de intervir na própria história, dando toques e retoques de<br />
emoção, é que pode convergir para a integridade do Eu contra a desesperança do sentir-se velho,<br />
ultrapassado e, conforme complementa Ariès (1988), à deriva e perante a morte, com o mal-estar de<br />
se encontrar, na acepção de Bauman (2004), como mais uma das vidas desperdiçadas.<br />
Apesar dos impasses, conflitos, frustrações que mesclam a existência humana, com tal<br />
sentimento de integridade pode-se compreender que, apesar de tudo, valeu e está valendo a pena<br />
66 Buscando auxílio no Aurélio (nosso amigo dicionário!), resiliência significa: ―propriedade pela qual a energia<br />
armazenada em um corpo deformado é devolvida quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica”. Esse termo é<br />
originário da física e foi adaptado ao campo das ciências da saúde, sendo relacionado inicialmente à<br />
capacidade de regeneração, flexibilidade e adaptação de pessoas que se recuperavam de doenças, situações<br />
traumáticas, catástrofes, guerras, sendo tais situações consideradas de alto risco. Observando e analisando que<br />
algumas pessoas, apesar de traumas sofridos na infância ou na fase adulta, conseguiam adaptações<br />
satisfatórias na vida, casos esses considerados exceções, é que a resiliência passou a ser motivo de estudos e<br />
pesquisas com enfoques em comportamentos de crianças, adolescentes e adultos nas mais diversas condições.<br />
No campo da psicologia, os primeiros estudos publicados envolvendo a abordagem da resiliência datam da<br />
década de 70 do século XX.
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viver. A generatividade dos seus trabalhos familiar, profissional e social fica no legado das marcas<br />
percorridas e compensa qualquer degeneração física. O passado, com suas agruras e conquistas, está<br />
presente em tais marcas. Esse ir e vir no trânsito dos tempos líquidos consoantes às premissas de<br />
Bauman (2006), as avaliações que suscitam, os posicionamentos atitudinais que sinalizam, podem<br />
contribuir para que a pessoa envelhecente, e jamais absolutamente envelhecida, reconheça-se<br />
metaforicamente na fluidez da água, que pode se deparar com obstáculos, mas sempre encontra<br />
caminhos para escoar e, assim, contornando ou se infiltrando, sua jornada prossegue...<br />
Pensando nos processos de fabricação da socialização, o infiltrar-se, no sentido de<br />
estabelecer seu pertencimento a grupos, é mais complexo do que o contornar ou, ainda, o retirar-se<br />
de cena. Mais do que abdicar de certas pseudo-convicções, exige a aceitação do novo, que é o<br />
diferente, o qual precisa ser descoberto, e do Outro, que pode ser de outra geração de idéias, que<br />
precisa ser compreendido. Não se trata de renunciar às pseudo-próprias convicções, deixando-se<br />
absorver, ilusoriamente, pela novidade ou tentar viver no presente tudo o que não se experimentou<br />
nas fases anteriores. O envelhecente não é um adolescente e, portanto, um envelhescente (agora escrito<br />
com SC), egocêntrico e imaturo, que precisa negar o presente e tentar voltar-se e voltar ao passado<br />
no afã de se apressar e viver intensamente o ainda não vivido, como, por exemplo, ser um ficante (ou<br />
seja, ficar como os jovens) em relacionamentos amorosos, ou transar (ter relações sexuais), muitas<br />
vezes sem proteção, para se sentir atualizado e atuante. E aqui vale o parêntesis explicativo:<br />
determinada categoria de homens e mulheres acima de sessenta anos constituem-se, hoje, como um<br />
dos grupos de risco em contaminação do vírus HIV. Além disso, é uma porcentagem de homens<br />
dessa idade que morrem devido a implicações cardíacas provocadas pelo uso inadequado de<br />
medicamentos que deveriam ser destinados à disfunção erétil.<br />
Por isso, é necessário problematizar o termo e os discursos sobre envelhescência, conforme<br />
textos jornalísticos e fenômenos midiáticos propõem, com a denotação de comparativo à<br />
adolescência, no sentido de reeditar comportamentos e atitudes dessa fase.<br />
Importa explicar que, até início dos anos 90, categorizava-se as fases da vida humana como<br />
a infância (até 12 anos); a adolescência (dos 12 aos 19 anos), idade adulta (dos 20 aos 59 anos) e a<br />
velhice (mais de 60 anos). Ao se reconhecer que o envelhecimento é um processo contínuo,<br />
pesquisadores, particularmente da área da psicologia e mais precisamente da psicanálise, foram<br />
constituindo uma nova categoria, entre os 45 e 59 anos: a envelhescência, a qual pode perdurar mais<br />
tempo, uma vez que essa demarcação cronológica não pode ser tão estanque e precisa.<br />
A terminologia envelhescência foi cunhada no Brasil por Berlinck na década de 90 a partir de<br />
estudos sobre a Psicopatologia Fundamental 67, sendo tomada como significante da circunstância<br />
psíquica dada no desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo, que é âmbito da<br />
temporalidade, ou, dito de outro modo, pelo encontro da alma sem idade com o corpo que<br />
envelhece. Pode-se, então, dizer que o corpo, o social e a subjetividade apresentam uma<br />
discrepância na formação da envelhscência. Segundo Soares (2006), a envelhescência constitui-se no<br />
trabalho psíquico de recriar a vivência da velhice e de pensar sobre ela, sendo um ato de<br />
subjetivação, pois, ao ser considerada como significante, pode circular por diversas significações,<br />
estabelecendo distintas saídas psíquicas para o sujeito da velhice.<br />
67 A Psicopatologia Fundamental é uma disciplina criada por Pierre Fédida, na Universidade de Paris VII –<br />
Denis Diderot, na década de 1970. Articula-se à noção de subjetividade, que prescinde da noção de sujeito<br />
enquanto ente, ou seja, como entidade concreta e agente, uma vez que, nessa abordagem, é inerente ao logos, à<br />
linguagem e esta é anterior à qualquer concepção de sujeito. Assim, a subjetividade é propriedade da própria<br />
linguagem (logos), o que escapa da objetividade. Não haveria o sujeito personalizado, ou, na visão psicanalítica,<br />
a psicologia do ego como regente do inconsciente.
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A revisão e reconstrução da história pessoal, segundo Berlinck (2000), apresentam função<br />
organizadora da subjetividade devido à possibilidade de reaparecimento de suportes referenciais<br />
para o que foi conquistado pela pessoa no transcorrer da vida e que acabou se empobrecendo no<br />
processo de envelhecimento. Esse caráter discursivo, oriundo da herança psicanalítica, agrega,<br />
como produção simbólica, as contingências do social na construção subjetiva da envelhescência.<br />
Não obstante e fora do alcance academicista, a circulação do termo envelhescente, no Brasil, é<br />
atribuída ao dramaturgo Mário Prata, que o teria utilizado, em agosto de 1993, em artigo para o<br />
Jornal O Estado de São Paulo 68. No texto, aponta-se um paralelismo entre adolescência e<br />
envelhescência nos seguintes termos:<br />
A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na velhice, assim<br />
com a adolescência é uma preparação para a maturidade. Engana-se quem acha<br />
que o homem maduro fica velho de repente, assim da noite para o dia. Não.<br />
Antes, a envelhescência. E, se você está em plena envelhescência, já notou como<br />
ela é parecida com a adolescência? Coloque os óculos e veja como este nosso<br />
estágio é maravilhoso: (...) Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhescentes,<br />
também mudamos o nosso ritmo de falar, o nosso timbre. (...) Ninguém<br />
entende os adolescentes... Ninguém entende os envelhescentes... Ambos são<br />
irritadiços, se enervam com pouco. Acham que já sabem de tudo e não querem<br />
palpites nas suas vidas. (...) Os adolescentes não entendem os adultos e acham<br />
que ninguém os entende. Nós, envelhescentes, também não entendemos eles.<br />
"Ninguém me entende" é uma frase típica de envelhescentes.(...) O adolescente<br />
ama assistir a um show de um artista envelhescente (Caetano, Chico, Mick<br />
Jagger). O envelhescente ama assistir a um show de um artista adolescente (...)<br />
Daqui a alguns anos, quando insistirmos em não sair da envelhescência para<br />
entrar na velhice, vão dizer: — É um eterno envelhescente! Mário Prata<br />
Se envelhescentes são situados na mesma perspectiva que adolescentes, podem se<br />
manifestar imaturos, impulsivos, afoitos por descobertas, ávidos por paixões talvez mal resolvidas, e<br />
tudo em uma atmosfera de naturalidade fabricada. Essa comparação enunciada nesse discurso,<br />
pulverizado pelo poder da imprensa, acaba produzindo novas subjetividades nas redes de<br />
significados que são amplificadas pelo padrão do que é considerado moda pensar e se portar. E,<br />
alimentados pela mídia, mulheres e homens que estão envelhecendo ganham nova roupagem de<br />
envelhescentes ―descolados‖, mas que aderem à esteriotipia, concebidas suas subjetividades à<br />
imagem do olhar desejante que busca um lugar no desejo do(s) Outro(s), pelo enlaçamento da<br />
necessidade de aceitação social.<br />
De modo diferenciado dessa abordagem conceitual, no processo natural do envelhecimento<br />
humano, pode-se aludir a adolescência dentro da envelhecência, sendo esta mais abrangente que<br />
aquela, pois o envelhecente já experimentou decorrências das fases adultas, adolescente e infantil<br />
nas espirais elípticas do desenvolvimento.<br />
Então, como pensar o desenvolvimento humano em novas perspectivas ao se reconstruir a<br />
infância, a adolescência e a adultez na envelhecência (e não envelhescência!), com a maturidade<br />
elaborada nos processos espiralados do tempo, o que caracteriza a competência de ser resiliente e,<br />
com isso, adaptável e resistente aos desafios atuais?<br />
68 E publicado, posteriormente, no livro "100 Crônicas", Cartaz Editorial/Jornal O Estado de São Paulo,<br />
conforme referências bibliográficas.
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Refletindo sobre o conceito de envelhecência<br />
O envelhecer biológico é um processo natural, mas o envelhecer social é um fenômeno<br />
cultural contaminado pelo que é considerado adequado, benéfico ou saudável em dado contexto<br />
histórico. Se na área da saúde, relativamente às fases da vida adulta, existem definições cronológicas<br />
e caracterizações precisas 69, nos tempos e espaços psicossociais tudo é relativizado.<br />
O envelhecente pode viver o paradoxo de experimentar novas incapacidades e<br />
possibilidades, necessitando elaborar mudanças atitudinais e comportamentais orquestradas na<br />
dinâmica cultural, a qual tem provocado transformações das representações sociais e dos<br />
significados do que é o processo de envelhecimento humano. Essas aprendizagens culturais podem<br />
ensinar que, a despeito do peso social a que foram subjugados, os envelhecentes (e não<br />
necessariamente envelhescentes!) podem ter vidas socialmente mais saudáveis.<br />
Tal processo argumentativo aponta para a necessidade de se compreender as novas<br />
gerações que transitam pela envelhecência.<br />
Referências Bibliográficas<br />
ARIÈS, Philippe. O homem perante a morte I. Sintra: Europa-América, 1988<br />
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004<br />
_____ . Vida líquida. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005<br />
____ . Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2006<br />
BERLINCK, Manoel Tosta. Psicopatalogia Fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.<br />
BRASIL Lei. nº 10.741 de 2003. Estatuto do Idoso, Brasília, 2003<br />
_____ . Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Expectativa de vida no Brasil. Disponível em<br />
http://www.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-expectativa-de-vida-no-brasil-chega-aos-728anos,474856,0.htm.<br />
Acesso em 30 de junho de 2010.<br />
Censo 2010 aponta envelhecimento da população brasileira. Disponível em<br />
http://brasilnewsbrasil.blogspot.com/2011/04/censo-2010-aponta-envelhecimento-da.html. Acesso em 2 de<br />
julho de 2011<br />
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981<br />
_____ . Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1985<br />
HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997<br />
_____ . Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003<br />
MENDES, Tania Maria Scuro. A resiliência na envelhecência. Caderno Universitário de Psicologia do<br />
Desenvolvimento e da Aprendizagem: adolescência e vida adulta. Canoas: Edulbra, 2010<br />
PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980<br />
PRATA, Mário. 100 Crônicas. Cartaz Editorial/Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, 1997, pág. 13.<br />
SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. Trad. de Rubia Prates<br />
Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: EDUSP, 1997<br />
_____ . El império de los sentimientos. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2000<br />
SOARES, Flávia Envelhescência: do social ao intrapsíquico. Disponível em<br />
http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4,42.3.3.htm. Acesso em 14 de janeiro de 2011<br />
Enviado – 28/07/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011<br />
69 Exemplo: é recomendável que mulheres tenham o primeiro filho até os trinta e cinco anos; homens devem<br />
fazer exames periódicos de próstata a partir de quarenta anos, etc.
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APRENDIZADO DA LINGUA INGLESA ATRAVÉS DAS REDES SOCIAIS: UMA<br />
OBSERVAÇÃO NO SITE INGLES VERDE E AMARELO<br />
Vânia Carvalho de Castro<br />
Graduada em Letras Inglês e Literatura inglesa<br />
Universidade Federal do Piauí<br />
Resumo<br />
O presente trabalho apresenta resultados de uma análise do processo de aprendizagem da língua<br />
inglesa através das redes sociais com foco no website Inglês Verde e Amarelo, uma rede na qual<br />
brasileiros aprendem inglês com falantes nativos. Sabendo que os softwares virtuais apresentam<br />
novas possibilidades interativas de aprendizagem, para melhor qualificar essa pesquisa, foi feita uma<br />
observação da prática de aprendizagem da língua inglesa através da realização de um questionário<br />
com 10 usuários, além da análise das respostas e das ferramentas dessa rede social.<br />
Palavras-chaves: Aprendizagem, Língua Inglesa, redes sociais.<br />
Abstract<br />
This study aims to analyze the practice of learning English as a second language through the<br />
website called Inglês Verde e Amarelo, a social network in which Brazilian people learn English from<br />
native speakers. This software introduces new virtual interactive possibilities of learning. *In order<br />
to qualify this research, it was made an observation of practice of English language skills by<br />
conducting a questionnaire with 10 users, beyond the analysis of responses and the tools of social<br />
network.<br />
Keywords: Learning, English Language, network.<br />
Introdução<br />
A Internet disponibiliza um universo muito amplo de interação em todos os campos, como<br />
também na aprendizagem de língua estrangeira. Sabendo que as pessoas estão cada vez mais<br />
integradas no mundo virtual e que as redes sociais já fazem parte da rotina de muitos seres<br />
humanos, esse meio oferece um ambiente de comunicação livre, interativa e espontânea.<br />
Em relação ao processo de aprendizagem da língua inglesa, Warschauer aponta cinco<br />
principais razões para o uso da Internet no ensino da língua: contextos autênticos e significativos;<br />
aumento do letramento através da leitura, escrita e oportunidades de publicação na Internet;<br />
interação (uma das melhores formas de se adquirir uma língua); vitalidade obtida pela comunicação<br />
em um meio flexível e de multimídia e empowerment, pois o domínio das ferramentas da Internet<br />
torna os alunos autônomos ao longo da vida.<br />
Os softwares educacionais têm objetivo pedagógico, apresentam novas formas de interagir e<br />
socializar com outros humanos e com informações, além disso, instigam os estudantes de segunda<br />
língua a descobertas constantes. Dillenbourg, Scheider e Synteta (2002) afirmam que um ambiente<br />
de aprendizagem não pode ser qualquer website educacional, e acrescenta que este pode ser um<br />
espaço que integra tecnologias heterogêneas e múltiplas abordagens pedagógicas e que pode ser<br />
utilizado pra enriquecer atividades de sala de aula ou até mesmo substituir a sala de aula.
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Nesse estudo proponho analisar e caracterizar a maneira como o site Inglês Verde e<br />
Amarelo se manifesta em relação ao aprendizado da língua alvo, identificando alguns aspectos que<br />
podem tornar o aprimoramento do idioma mais acessível e como os usuários a adquirem. Essa rede<br />
social foi escolhida para o desenvolvimento da pesquisa por apresentar um contexto rico,<br />
diversificado e crescente de recursos na língua inglesa.<br />
Para tanto, tive como base o suporte teórico da doutora pesquisadora e consultora de<br />
mídias sociais Raquel Recuero (2009) e outros importantes teóricos da área, além disso, procurei<br />
tecer considerações e esboçar reflexões sobre essa forma inovadora de aprendizagem desse idioma.<br />
As redes sociais<br />
Segundo Raquel Recuero, assistimos a um crescimento espantoso das chamadas<br />
tecnologias de comunicação nos últimos anos. Essas tecnologias tornaram-se mais rápidas, mais<br />
populares e mais instrumentalizadas no cotidiano de milhares de pessoas em todo o mundo. As<br />
redes sociais ou comunidades virtuais como denomina Raquel Recuero (2009) proporcionam um<br />
ambiente de comunicação espontânea e possuem um número de usuários que cresce<br />
acentuadamente. Elas surgem a cada dia, sempre aumentando as possibilidades de interação e das<br />
pessoas se relacionarem por meio da Internet.<br />
Os sítios virtuais como Orkut, Facebook, Twitter e outros foram desenvolvidos para girar<br />
em torno das pessoas e são um espaço amplo de circulação de informações e proporcionam um<br />
ambiente de comunicação e interação. Eles permitem o encontro entre os usuários da rede<br />
internacional de computadores e alcançaram grande popularidade entre os usuários brasileiros.<br />
Ainda segundo a pesquisadora Recuero (2009), as redes sociais não são utilizadas do<br />
mesmo modo, grupos diferentes criam sentidos diferentes para as ferramentas. Assim surgem os<br />
softwares educacionais de aprendizagem de língua inglesa, os quais apresentam ferramentas de<br />
comunicação com internautas do mundo inteiro em situações reais com foco no ensino e no uso da<br />
língua inglesa promovendo integração entre diversas áreas.<br />
O site inglês verde e amarelo e suas ferramentas<br />
Na Internet há sítios que disponibilizam um vasto campo para o ensino e aprendizagem de<br />
língua estrangeira. O website http://verdeamarelo.ning.com/ (Acesso em: 26/06/2011) criado pelo<br />
americano Christopher O'Donnell em é uma rede social diferenciada, apresenta visual moderno e<br />
de fácil manuseio é destinada a brasileiros de qualquer nível de conhecimento da língua inglesa que<br />
querem aprender ou aprimorar seu inglês, o site propõe o aprendizado da língua com falantes<br />
nativos.<br />
Registrar no site é bem simples, basta o usuário criar uma conta incluindo além de algumas<br />
informações pessoais, o email e o nível de conhecimento da língua inglesa (iniciante, básico,<br />
intermediário, avançado ou nativo).<br />
Utilizando as ferramentas do website é possível convidar membros, postar fotos, assistir<br />
vídeos com conteúdos em língua inglesa (muitos feitos pelo próprio criador do site) e participar de<br />
bate-papo em inglês. Ao clicar na ferramenta conexões o usuário pode postar conteúdo no Twitter,<br />
segundo Tadeu Carmona (2010) um misto de rede social e de microblogging no qual os internautas<br />
enviam e leem mensagens curtas conhecidas como tweets.<br />
A ferramenta Blog, localizada também na barra de menu do site permite acesso a postagens<br />
de todos os blogs conectados ao Inglês Verde e Amarelo. Através desta é possível ―curtir‖ e publicar
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na pagina do site de rede social Facebook, um sistema que segundo Recuero (2009) funciona através<br />
de perfis e comunidades.<br />
Ao clicar no link Grupos, o internauta pode escolher qual grupo de atividade online ou<br />
temática gostaria de participar, por exemplo, se escolher o grupo Aula de Pronúncia o participante<br />
pode gravar vídeos com sua pronúncia em inglês com webcam e microfone utilizando a ferramenta<br />
Eyejot, o estudante clica na palavra Reply, e há uma pequena gravação feita pelo criador da rede<br />
explicando os procedimentos, depois ao clicar na palavra Play, logo começa a gravação online. O<br />
criador do site Christopher O'Donnell gravava outros vídeos resposta com comentários a cerca da<br />
pronúncia dos estudantes enfatizando as palavras que eles tiveram mais dificuldade, os incentiva a<br />
continuar tentado e sugeria formas de melhorar.<br />
Além disso, o aprendiz pode participar de fórum de discussões sobre vários conteúdos na<br />
língua alvo.<br />
Aspectos da observação<br />
Sabe-se que o site Inglês Verde e Amarelo apresenta uma metodologia de aprendizagem da<br />
língua inglesa através do contato online com nativos e outros falantes de língua inglesa. Para<br />
analisar melhor as ferramentas, o envolvimento dos usuários e o processo de aprendizagem, foram<br />
enviadas três perguntas a 11 participantes ativos através do próprio site: “Do you think it is possible to<br />
learn English through the website Inglês Verde e Amarelo?”, “How much have you learned ever since you first signed<br />
up?” e “What tool from this website you use the most?”.<br />
Após a análise das respostas dos internautas, verificou-se que é possível sim aprender inglês<br />
pelo site Inglês verde e amarelo, mas a aprendizagem depende do próprio esforço e da pessoa que<br />
quer aprender. Observei que algumas das respostas apresentaram com alguns erros gramaticais e de<br />
digitação Vejamos algumas respostas:<br />
Usuário1: [21:44 – 02/07/2011]I think don´t so, It is posible dy yourself if you want!!<br />
Usuário2: [19:41 – 02/07/2011]Learn no, just improve and practice.<br />
Usuário3: [13:02 – 03/07/2011] I thinks is possible too improve but for new comers they need to<br />
effort themselves (…).<br />
Usuário4: [22:55 – 03/07/2011] Yes, I do. Verde e Amarelo has been a great tool for English<br />
learners. (…).People can learn from videos, chats, and blogging. However, I think it would be<br />
interesting if people could sign up more often. People should participate more effectively in the<br />
chats.<br />
As ferramentas permitem a realização de interações entre os participantes com a língua alvo<br />
nessa comunidade virtual. Quando perguntei qual ferramenta eles mais utilizavam a maioria<br />
respondeu o ―Chat‖, o bate-papo que o site oferece na tela principal. Apenas dois dos entrevistados<br />
mencionaram os vídeos, um respondeu que utiliza mais o blog. Acredito que a ferramenta ―chat‖ ou<br />
bate-papo ajuda o aluno a melhorar sua habilidade de conversação.<br />
Usuário1: [23:52 – 01/07/2011] if the chat count as a tool, is the one I've used so far!<br />
Usuário2: [19:45 – 02/07/2011] the chat platform.<br />
Usuário3: [23:16 – 03/07/2011] I usually use the chat and the blog, where I can post my articles<br />
and read about some topics that interest me the most.<br />
Usuário4: [19:45 – 01/07/2011]The chat.<br />
Através de observações gerais, percebi que pelos perfis os internautas e pelas suas respostas<br />
que eles se sentem bastante motivados a aprender a língua. Com as respostas apresentadas, eles
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aprenderam mais pronúncia, expressões da língua e vocabulário. Apenas um usuário respondeu<br />
que prefere estudar na escola ou procurar outras opções.<br />
Usuário1: [19:44 – 02/07/2011] I learned few expressions but no much(…).<br />
Usuário2: [23:03 – 02/07/2011]as I said before this site is a good place to learn english, i've learnt<br />
some expressions and also some vocabulary too.<br />
Usuário3: [23:09 – 03/07/2011] I have learned a lot about pronunciation and the use of English<br />
itself. In addition, I have learned some other teaching techniques. For me, as a teacher, I can assure<br />
it is a meaningful website and it helps a lot.<br />
Usuário4: [21:51 – 03/07/2011] it's no easy but, I prefer study at school and looking for another<br />
options.<br />
Percebi ainda que usuários que tem um nível iniciante de inglês postam mensagens em<br />
português ao adicionar outro membro da comunidade, já os que têm um nível a partir do básico,<br />
usam apenas o idioma estudado ao escrever mensagens.<br />
Considerações finais<br />
As redes sociais como recurso de aprendizagem de língua estrangeira vinculada a Internet<br />
se tomam um instrumento bastante privilegiado. Pois apresentam uma diversidade de matérias<br />
muito rica, proporcionando aos usuários situações da língua em uso em conversações reais<br />
resultando num crescimento interativo do seu conhecimento.<br />
Observou-se no presente estudo que é possível o aprendizado do idioma inglês no Inglês<br />
Verde Amarelo utilizando as quatro habilidades linguísticas, seja interagindo com as diferentes<br />
culturas através do bate-papo que o site oferece, com o contato online com falantes nativos,<br />
professores ou outros aprendizes, através da realização das atividades de vídeo com feedback, dos<br />
fóruns de discussões, ou até mesmo com a conexão com outras redes sociais.<br />
O ambiente virtual de aprendizado da língua elimina o tradicional sistema de ensino de<br />
idiomas, o aluno aprende o novo idioma sem sair de casa criando um sistema de ensino de línguas<br />
estrangeiras mediado por computador, além disso, funciona como um motivador para brasileiros<br />
que querem aprender a língua inglesa.<br />
Considerando que a língua é dinâmica, essa pesquisa abre um leque para novos<br />
questionamentos e que estudiosos de Linguística Aplicada, áreas afins e outros possam dar<br />
continuidade a pesquisas sobre as comunidades virtuais de aprendizado de língua estrangeira.<br />
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COSCARELLI, C.; RIBEIRO, A. E. (Org.) Letramento Digital: aspectos sociais e possibilidades pedagógicas. Belo<br />
Horizonte: Autêntica, 2005.<br />
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2005.<br />
RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.<br />
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http://www.jornalistasdaweb.com.br/index.php?pag=displayConteudo&idConteudo=3964 Acesso em:<br />
28/06/2011<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Aavaliado – 15/10/2011
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APLICAÇÃO DA TÉCNICA SWOT PARA DETERMINAR A INSERÇÃO DO SETOR<br />
DE GESTÃO DOCUMENTAL NO PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO DA UNISUL<br />
Vera Lúcia da Rosa Fernandes<br />
UNISUL – SC<br />
Resumo<br />
O estudo apresenta a aplicação da técnica SWOT no Setor de Gestão Documental da Unisul.<br />
Relaciona conceitos da literatura e mostra que os arquivos visam servir, acima de tudo, os interesses<br />
da economia, da ciência, da cultura e da preservação da memória. As informações contidas nos<br />
documentos representam instrumentos estratégicos que fornecem dados para o planejamento e<br />
para a tomada de decisão. A rapidez e a efetividade da transformação da informação em<br />
conhecimento constituem fatores decisivos de competitividade, atreladas esse conceito, as cinco<br />
forças competitivas de Porter (1986) na determinação da intensidade da concorrência, sendo que as<br />
mais acentuadas predominam e se tornam cruciais do ponto de vista da formulação de estratégias.<br />
Para dar ação à pesquisa foi determinado como objetivo geral examinar a aplicação da técnica<br />
SWOT visando determinar a inserção do Setor de Gestão Documental no planejamento estratégico<br />
da Unisul.<br />
Palavras-chave: Arquivo. Informação. Planejamento estratégico. Análise SWOT.<br />
Resumen<br />
El estudio presenta la aplicación de la técnica SWOT en el sector de gestión de documentos Unisul.<br />
Conceptos y programas de la literatura relacionada con los archivos de la intención de servir, sobre<br />
todo, los intereses de la economía, la ciencia, la cultura y la preservación de la memoria. La<br />
información contenida en los documentos son instrumentos que proporcionan datos para la<br />
planificación estratégica y la toma de decisiones. La velocidad y la eficacia de la transformación de la<br />
información en conocimiento son factores clave de la competitividad, vinculado este concepto, las<br />
cinco fuerzas competitivas de Porter (1986) en la determinación de la intensidad de la competencia,<br />
con la más aguda predominan y son cruciales desde el punto de vista la formulación de estrategias.<br />
Para compartir la investigación, dado el objetivo general de examinar la aplicación de la técnica<br />
SWOT para determinar la inserción de la industria de gestión de documentos en Unisul de<br />
planificación estratégica.<br />
Palabras claves: Archivo. De la información. La planificación estratégica. Análisis SWOT<br />
Introdução<br />
A preocupação com a estratégia empresarial e com a eficiência no gerenciamento da<br />
informação documental que vai impactar na percepção de valor nos serviços prestados por uma<br />
organização tem aumentado a cada dia. Desse modo, empresas e pessoas inseridas na sociedade do<br />
conhecimento tem se preocupado com a gestão da informação documental elevando-a ao status de<br />
vantagem competitiva no mercado em que atuam.<br />
A gestão documental é um dos pilares para as soluções e sistemas de gerenciamento da<br />
informação. Ela atua em todo o ciclo de vida do documento, propicia os meios que regem a<br />
produção, o processamento técnico, a manutenção e a disponibilização dos documentos de arquivo.<br />
A gestão documental propicia as condições necessárias para o correto tratamento a ser<br />
dispensado à informação. Diante dessa discussão, revela-se a importância do entendimento por
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parte dos gestores sobre a relevância da gestão da informação documental como diferencial<br />
competitivo para a organização.<br />
A partir da avaliação no ambiente interno e externo que envolve a produção e disseminação<br />
da informação documental de uma instituição de ensino superior é possível apresentar um<br />
diagnóstico da gestão da informação que permita o desenvolvimento de estratégias para a melhoria<br />
da atividade.<br />
É com base nas iniciativas e riscos envolvidos na gestão da informação que se pretende<br />
nesse trabalho demonstrar que a aplicação da técnica SWOT pode revelar as forças, fraquezas,<br />
oportunidades e ameaças internas e externas em uma Unidade de Informação e como esses<br />
resultados podem ser utilizados para inserir referia Unidade no planejamento estratégico da<br />
Instituição.<br />
Nesse norte, o estudo toma como referência o Setor de Gestão Documental da<br />
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e busca responder ao seguinte problema de<br />
pesquisa: A aplicação da técnica SWOT permite determinar a inserção do Setor de Gestão<br />
Documental no planejamento estratégico da Unisul?<br />
A motivação para investigar o assunto tematizado também se vincula à importância do<br />
tema, notadamente porque o planejamento estratégico é um instrumento de gestão utilizado na<br />
Unisul, estabelecendo parâmetros para sua eficiência e fornecendo aos gestores a linha de condução<br />
que resultam em liderança e controle no desenvolvimento de suas funções e atribuições.<br />
.<br />
Referencial teórico<br />
Arquivo centro ativo de informação<br />
O arquivo tem sob sua guarda documentos acumulados organicamente, produzidos de<br />
forma natural, no decorrer da execução de funções e atividades desempenhadas por entidades ou<br />
pessoas, independentemente da natureza ou do suporte da informação que se caracterizam por sua<br />
unicidade. É um órgão receptor, ou seja, os documentos chegam a ele por passagem natural e<br />
obrigatória e pode também ser definido como a entidade ou órgão administrativo responsável pela<br />
custódia, pelo tratamento documental e pela utilização dos arquivos sob sua jurisdição. Sua<br />
organização segue princípios gerais e se baseia na trajetória especifica de cada entidade ou pessoa,<br />
portanto exige-se conhecimento da relação entre os documentos e a estrutura/funções da<br />
entidade/pessoa.<br />
Arquivo é o conjunto de documentos que, independentemente da natureza ou<br />
do suporte, são reunidos por acumulação ao longo das atividades de pessoas<br />
físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. Ou, ainda, arquivo é o conjunto de<br />
documentos produzidos e/ou recebidos por uma organização, entidade ou<br />
pessoa no exercício de suas competências e atribuições. (BELLOTTO, 2004).<br />
Segundo Lopes (1996, p. 32) na perspectiva de valorização do conteúdo informacional dos<br />
documentos, pode-se definir o termo arquivos, no sentido de informações registradas, do seguinte<br />
modo:<br />
a) acervos compostos por informações orgânicas originais, contidas em documentos<br />
registrados em suporte convencional (atômicos) ou em suportes que permitam<br />
gravação eletrônica, mensurável pela ordem binária (bits); e<br />
b) produzidos ou recebidos por pessoa física ou jurídica, decorrentes do desenvolvimento<br />
de suas atividades, sejam elas de caráter administrativo, técnico ou científico,<br />
independentemente da idade ou valores intrínsecos.
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Os arquivos visam servir, acima de tudo, os interesses da economia, da ciência e da cultura.<br />
O Conselho Internacional de Arquivos estabelece que, dentre os seus princípios, cumpre aos<br />
arquivos facilitar o estabelecimento de políticas, procedimentos, sistemas, normas e práticas para<br />
assistir os produtores de documentos a criar e a manter documentos arquivísticos fidedignos,<br />
autênticos, preserváveis e acessíveis.<br />
Histórico da gestão documental na Unisul<br />
O tratamento técnico referente aos arquivos de caráter corrente, intermediário e<br />
permanente da Unisul foi iniciado em 1995 na Secretaria Acadêmica. Métodos foram modificados,<br />
novas técnicas foram criadas, houve um movimento para a melhoria das condições de<br />
arquivamento, conservação e disponibilização dos documentos.<br />
Em 2001, com a implantação do Setor de Gestão Documental – SGDoc todos os campi e<br />
unidades foram atendidos no que tange ao tratamento, organização, e acondicionamento dos<br />
documentos de segunda e terceira idades, visando à recuperação rápida e precisa da informação<br />
para atender à tomada de decisões administrativas, bem como a prova de direitos e raízes históricas.<br />
Compete ao SGDoc planejar e executar todas as atividades concernentes à área de arquivos<br />
no âmbito da Unisul. Destarte, deve manter a custódia, a conservação, o arranjo e a divulgação de<br />
todo o acervo documental estabelecendo e executar uma política arquivística voltada para a<br />
eficiência administrativa, avaliar e selecionar os documentos, dentro das normas legais, a fim de<br />
acondicionar e preservar a massa documental de segunda e terceira idades e, respectivamente,<br />
definir o arranjo 70, o calendário de recolhimento e as formas de empréstimo dos documentos com<br />
base nos princípios da Arquivologia.<br />
Documento como fonte de informação<br />
Conceito de documento<br />
Por vezes, o conceito de documento não está bem explícito para as pessoas. Para alguns,<br />
documentos são papéis que medeiam a vida do indivíduo na esfera pública, para outros podem ser<br />
objetos, uma proposta de trabalho ou uma correspondência. Enfim, documentos são todos os<br />
registros de atividades e funções desenvolvidas em empresas, instituições, corporações, etc.<br />
Segundo Belloto (2004) documento é informação registrada em algum tipo de suporte 71. Pode-se<br />
dizer que a pesquisa, na sua essência, é realizada em documentos.<br />
As informações contidas nos documentos representam instrumentos estratégicos que<br />
fornecem dados para o planejamento, tomada de decisões, acompanhamento, controle e viabilidade<br />
das atividades junto às empresas.<br />
Conceito de informação<br />
Segundo Tarapanoff (2001), a informação, seja no plano científico, técnico, tecnológico ou<br />
econômico é produzida de forma cada vez mais rápida. Além da gestão, os processos de criação se<br />
tornam preponderantes. Diante disso, a gestão da informação e sua utilização para produção de<br />
conhecimento se tornam elementos básicos para o desenvolvimento estratégico nas organizações.<br />
70 Denominação tradicionalmente atribuída à classificação nos arquivos permanentes. (BELLOTTO &<br />
CAMARGO, 1996).<br />
71 Suporte é o material sobre o qual as informações são registradas. São exemplos de suporte: fita magnética,<br />
papel, cd-rom, etc. (BELLOTTO & CAMARGO, 1996).
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A informação constitui a principal matéria-prima para o conhecimento, trata-se de insumo<br />
comparável à energia que alimenta um sistema. No entanto, deve estar registrada ou materializada<br />
em algum tipo de suporte, seja o papel, o disquete, o disco óptico ou um banco de dados, pois,<br />
arquivos não são compostos apenas de documentos físicos, neles encontramos todos os tipos de<br />
suporte que devem estar organizados e acessíveis.<br />
No contexto de um arquivo, a informação é gerenciada como um bem ou recurso<br />
econômico e estratégico consubstanciado em seu valor primário 72 e secundário 73. O valor<br />
secundário é adquirido posteriormente ou, noutros termos, ao término do ciclo de vida primária,<br />
sendo que alguns documentos devem ser preservados pelo seu valor histórico e informativo e<br />
servirão, nesse estágio, para a história, a memória e a pesquisa científica.<br />
Informação orgânica<br />
A informação se constitui em base para a competitividade entre as empresas, é um ativo<br />
que necessita ser gerenciado. Entretanto, significativa parte das informações que vão desempenhar<br />
função importante na estratégia das organizações é produzida por elas mesmas. Eis que nascem na<br />
mente dos profissionais que nelas atuam e são transformadas em projetos, propostas, programas,<br />
pareceres, resoluções, manuais, informativos etc., os quais são materializados sob forma de<br />
documentos que carregam em seu bojo informações estratégicas e imprescindíveis à tomada de<br />
decisão.<br />
Informação orgânica é aquela produzida dentro da organização, de forma sistemática e<br />
consistentemente, no desenvolvimento das atividades para a qual a organização foi criada. Essas<br />
informações se movimentam pela empresa e movimentam a empresa, são a mola propulsora para o<br />
seu funcionamento, estão registradas em algum tipo de suporte, geralmente o papel, configuradas<br />
em documentos, os quais são armazenados em arquivos.<br />
Para Rosseau e Couture (1994), a informação orgânica como estratégica é essencial para o<br />
desenvolvimento de qualquer organização ou, mesmo, pessoa física.<br />
Neste sentido, Lopes (1996) se posiciona dizendo que se a informação é estratégica,<br />
consiste num bem. Seguindo-se esta idéia, ela tem, como os demais bens, um valor de uso e um de<br />
troca. Uma parcela da informação produzida ou recebida pelas organizações é fundamental para o<br />
gerenciamento das mesmas; portanto, estratégica.<br />
A outra parte importante de informações para a organização são triadas, da produção<br />
externa, ou seja, criadas em sistemas ulteriores à empresa que também tem papel importante,<br />
indubitavelmente.<br />
Para McGee e Prusak (1994) a informação não se deprecia da mesma forma que os bens de<br />
capital. Em algumas circunstâncias o valor da informação é eterno: ela será tão valiosa amanhã<br />
quanto hoje. Em outras circunstâncias, o valor de alguns tipos de informação pode cair à zero quase<br />
que instantaneamente quando determinados eventos ocorrem. A expressão ―tão útil quanto às<br />
notícias de ontem‖ tem neste contexto um significado real.<br />
72 Valor primário: relaciona-se às razões de sua própria produção, considerando seu uso para fins<br />
administrativos, legais e fiscais. (BELLOTO, 2004)<br />
73 Valor secundário: diz respeito à potencialidade do documento como prova ou fonte de informação para<br />
pesquisa. (BELLOTO, 2004)
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Planejamento estratégico<br />
Segundo Fichmann e Almeida (1991) planejamento estratégico é uma técnica administrativa<br />
que, através da análise do ambiente de uma organização, cria a consciência das suas oportunidades e<br />
ameaças dos seus pontos fortes e fracos para o cumprimento da sua missão e, através dessa<br />
consciência, estabelece o propósito de direção que a organização deverá seguir para aproveitar as<br />
oportunidades.<br />
Análise do ambiente interno Universidade/Setor de Gestão Documental<br />
O mundo está em constante processo de transformações que, ao seu turno, colocam as<br />
empresas diante da necessidade de se adaptarem a um novo ambiente bastante competitivo, veloz e<br />
permeado por incertezas, ameaças e oportunidades. O conhecimento hoje é o fator de produção<br />
mais importante, deixando para trás o capital e a mão-de-obra.<br />
Diante disso, as organizações vêem-se obrigadas a alterar sua forma de atuação para<br />
responder ao mercado. Isso se reflete no crescente investimento das empresas em treinamento de<br />
seus profissionais, no planejamento estratégico, oferecendo a compreensão do ambiente externo da<br />
organização e do ambiente interno que essa mesma organização produz.<br />
As universidades contemporâneas envolvidas em seus processos educacionais precisam<br />
estar atentas às transformações que ocorrem em seu ambiente de negócio para se adaptar às<br />
mudanças que ocorrem a sua volta. Essa percepção implica monitorar o ambiente interno e externo<br />
a ela e, para tanto, é fundamental que a Instituição tenha claro seus propósitos e objetivos fixados<br />
em sua missão.<br />
Para isso, a Unisul realiza todos os anos o planejamento estratégico. Nesse sentido, vale<br />
observar que, segundo Porter (1986), a essência da formulação de uma estratégia competitiva é<br />
relacionar uma companhia ao seu ambiente.<br />
Ciente de que precisa estar atenta às mudanças e preparada para a competitividade, a<br />
UNISUL está considera que precisa gerenciar a informação documental que produz e faz circular<br />
interna e externamente. E, foi com esse propósito que criou o Setor de Gestão Documental, o qual<br />
pode ser considerado como um fator de competitividade, pois tem como missão:<br />
Gestão integral e inteligente da informação documental a curto prazo para<br />
tomada de decisão e ao longo do tempo como fonte de pesquisa e preservação<br />
da história e da memória da Unisul.<br />
Os serviços representam um significativo potencial, um importante diferencial de mercado<br />
que tem âncora no contato direto entre as organizações e seus clientes, uma realidade que os<br />
negócios de início do século XXI vieram a demonstrar em todas as economias. Esse papel central<br />
que os serviços tem assumido mostra a crescente importância da qualidade da atividade prestacional<br />
como fator chave à competitividade. Destarte, vale destacar, o serviço de seleção, organização e<br />
disponibilização da informação documental dá suporte à ação administrativa e ao planejamento<br />
estratégico.<br />
Diante disso, foram traçados os objetivos do Setor de Gestão Documental da Unisul para<br />
atingir sua meta, cujo direcionamento é:<br />
• suprir a Instituição de todas as informações necessárias ao processo de análise e tomada<br />
de decisão, de forma eficaz e econômica;
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• garantir a implementação política de avaliação de documentos para que tenham<br />
destinação adequada, uma vez cumpridos os fins para os quais foram criados;<br />
• organizar a massa documental acumulada;<br />
• liberar e reduzir o custo de espaço físico;<br />
• recuperar rápida e eficazmente a informação;<br />
• reduzir indenizações indevidas pela não localização de documento;<br />
• preservar o fundo documental da Unisul como parte integrante de sua história.<br />
As funções do Setor de Gestão Documental incluem a organização e disponibilização da<br />
informação, o estabelecimento das normas gerais de trabalho visando manter a uniformização de<br />
procedimentos, bem como orientar a seleção dos documentos de acordo com os critérios e prazos<br />
estabelecidos na Tabela de Temporalidade de Documentos, e ainda:<br />
• arquivar os documentos dentro de um plano de classificação funcional;<br />
• manter a informação documental em segurança;<br />
• prestar informações aos usuários relativas a documentos custodiados;<br />
• definir critérios de consulta e empréstimo de documentos do acervo;<br />
• elaborar instrumentos de pesquisa para tornar os documentos acessíveis à consulta e<br />
pesquisas;<br />
• disponibilizar a informação documental eletronicamente dentro de um plano de<br />
conversão dos documentos físicos em documentos eletrônicos.<br />
O Setor de Gestão Documental da Unisul, como um fator de estratégia competitiva, deve<br />
ser analisado sob os conceitos de Porter (1986) que afirma: a essência da estratégia competitiva é<br />
relacionar uma companhia ao seu meio ambiente. Embora o meio ambiente relevante seja<br />
conisderavelmente amplo, eis que abrange as forças sociais e econômicas. Nesse caso, os pricipais<br />
aspectos do meio ambiente da empesa é a indústria ou as indústrias com as quais compete.<br />
Trazendo esta afirmação de Porter para a realidade do ensino superior, percebe-se que o conceito<br />
de Porter é perfeitamente aplicável.<br />
O mesmo autor afirma, ainda, que o conhecimento dos pontos fortes e fracos de uma<br />
organização dirigem a concorrência. Não obstante, apresenta cinco forças competitivas, quais<br />
sejam:<br />
• entrada;<br />
• ameaça de substituição;<br />
• poder de negociação dos compradores;<br />
• poder de negociação dos fornecedores; e<br />
• rivalidade entre os concorrentes.<br />
Essas cinco forças competitivas determinam a intensidade da concorrência, sendo que as<br />
mais acentuadas predominam e tornam-se cruciais do ponto de vista da formulação de estratégias.<br />
As cinco forças apontadas por Porter seguem representadas na figura 1.
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Figura 1 – As cinco forças competitivas de Porter.<br />
Fonte: PORTER, 1986.<br />
Para analisar as forças, fraquezas, oportunidades e ameaças como fatores que determinam a<br />
competitividade do Setor de Gestão Documental, optou-se por aplicar a técnica SWOT.<br />
Aplicação da análise swot no setor de gestão documental da Unisul<br />
A técnica SWOT é uma ferramenta utilizada para analisar o cenário (ou ambiente) como<br />
base para gestão e planejamento estratégico nas empresas, mas podendo, devido a sua simplicidade,<br />
ser utilizada para qualquer tipo de análise de cenário, desde a criação de um blog à gestão de uma<br />
multinacional.<br />
Esse é um sistema simples para posicionar ou verificar a posicionamento estratégico da<br />
empresa no ambiente em questão. A técnica é creditada a Albert Humphrey, que liderou um projeto<br />
de pesquisa na Universidade de Stanford nas décadas de 1960 e 1970 usando dados da revista<br />
Fortune das 500 maiores corporações.<br />
Por outro lado, TARAPANOFF (2001) indica que a ideia da análise SWOT já era utilizada<br />
há mais de três mil anos quando cita em uma epígrafe um conselho de Sun Tzu (500 a.C).:<br />
―Concentre-se nos pontos fortes, reconheça as fraquezas, agarre as oportunidades e proteja-se<br />
contra as ameaças‖.<br />
Diagrama SWOT<br />
O termo SWOT é uma sigla oriunda do idioma inglês, e é um acrônimo de Forças<br />
(Strengths), Fraquezas (Weaknesses), Oportunidades (Opportunities) e Ameaças (Threats).<br />
Nessa perspectiva, a partir da análise ambiental e da determinação da missão e dos<br />
objetivos da Unidade de Informação em questão é possível aplicar a análise SWOT. Essa análise<br />
tem por objetivo identificar forças, fraquezas, oportunidades e ameaças para proposição do<br />
planejamento estratégico da Unidade de Informação, cujos benefícios de sua aplicação são:<br />
simplicidade, baixo custo, flexibilidade, integração e colaboração. Observe-se que essa técnica está<br />
baseada em dois conceitos: interno x externo e positivo x negativo.<br />
Forças e fraquezas do Setor de Gestão Documental da Unisul<br />
Referem-se ao perfil de ativos da organização e suas qualificações em relação à<br />
concorrência, incluindo recursos financeiros, tecnológicos e identificação com a marca. Essas forças<br />
e fraquezas existem dentro de todas as empresas ou em seus principais relacionamentos com
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fornecedores e clientes. Apresentam-se significativas quando orientam ou impedem a organização<br />
de satisfazer o consumidor, pois deve estar focada nos processos gerenciais ou soluções que sejam<br />
importantes para atender as necessidades do consumidor.<br />
Forças internas:<br />
• boa experiência na disponibilização da informação;<br />
• boa imagem perante o usuário;<br />
• competências técnicas;<br />
• comprometimento com o usuário.<br />
• credibilidade reconhecida pelo usuário;<br />
• custo baixo;<br />
• dificuldade na disponibilização da informação;<br />
• falta de direção estratégica;<br />
• imagem fraca, pouco conhecida;<br />
• limitação para expansão física;<br />
• linha de serviço pouco flexível;<br />
• não atingimento no cumprimento de todas as suas atribuições;<br />
• número considerável de estagiários sem experiência técnica.<br />
• número reduzido de funcionários;<br />
• parceria com outras empresas;<br />
• processos mapeados e bem definidos;<br />
• qualidade nos serviços;<br />
• recursos financeiros satisfatórios;<br />
• uso da tecnologia de GED;<br />
Fraquezas internas:<br />
• falta de direção estratégica;<br />
• não atingimento no cumprimento de todas as suas atribuições;<br />
• linha de serviço pouco flexível;<br />
• dificuldade na disponibilização da informação;<br />
• imagem fraca, pouco conhecida;<br />
• número reduzido de funcionários;<br />
• limitação para expansão física;<br />
• número considerável de estagiários sem experiência técnica.<br />
Oportunidades e ameaças<br />
As ameaças e as oportunidades definem o meio competitivo com seus riscos consequentes<br />
e recompensas potenciais. Essa situação se apresenta de certa forma fora de controle da empresa,<br />
pois, as oportunidades e ameaças envolvem assuntos que ocorrem nos ambientes externos à<br />
organização. Tanto as ameaças quanto as oportunidades não devem ser ignorados, podem ocorrer<br />
nos ambientes competitivos, sociocultural, político-legal ou interno da empresa.<br />
Ameaças externas:<br />
• novos usos para a informação documental;<br />
• novas tecnologias;<br />
• oferta de terceirização dos serviços de arquivo;<br />
• legislação pouco flexível.
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Ameaças internas:<br />
• boicote na transferência de documentos para o Setor de Gestão Documental;<br />
• criação de arquivos paralelos;<br />
• solicitação do serviço em declínio;<br />
• adoção de novas estratégias de guarda da informação documental nos arquivos correntes;<br />
• desempenho insatisfatório dos técnicos.<br />
Oportunidades internas:<br />
• desenvolvimento de uma base informacional acadêmico-administrativa que garanta<br />
acessibilidade à informação;<br />
• aperfeiçoamento do fluxo de informação administrativa e acadêmica por meio da<br />
aplicação do programa de métodos e técnicas da Arquivologia e do gerenciamento<br />
eletrônico de documentos;<br />
• desenvolvimento da estrutura informacional acadêmica que garanta a sua operação,<br />
guarda e disponibilização;<br />
• manipulação eficientemente dos recursos institucionais de informação, a fim de aumentar<br />
o seu valor para a instituição;<br />
• disponibilizar a informação para um número infinito de usuários internos e externos.<br />
Oportunidades externas:<br />
• o Setor de Gestão Documental da Unisul se apresenta como modelo para a comunidade<br />
universitária em nível estadual e nacional;<br />
• prestação de consultoria para arquivos de outras instituições.<br />
A avaliação das forças e fraquezas do Setor de Gestão Documental envolve a percepção<br />
para além dos serviços atuais, sob a ótica da avaliação dos processos gerenciais que são importantes<br />
para atender as necessidades dos clientes. A chave para o sucesso no cumprimento das metas e<br />
objetivos da Unidade de Informação depende da habilidade dessa Unidade em transformar forças<br />
em importantes capacidades, as quais são equiparadas às oportunidades do ambiente. Essas<br />
capacidades podem se tornar vantagens competitivas se proporcionarem maior valor para os<br />
usuários do que as ofertas concorrentes. Para isso, é necessário que o Setor de Gestão Documental<br />
entre no plano de estratégias da Universidade.<br />
Considerações finais<br />
Perante toda a análise feita sobre a importância da gestão da informação documental e<br />
apresentando-a como diferencial competitivo; e considerando que esta Unidade de Informação é<br />
parte integrante de uma Instituição de ensino superior, pode-se afirmar que a análise do ambiente<br />
interno e externo da U. I. revela a necessidade de inclusão desta no plano estratégico maior para<br />
que se possa aproveitar suas oportunidades, entender e gerenciar as ameaças, solidificar seus pontos<br />
fortes e agir de forma a corrigir fraquezas. Destarte, observe-se que a aplicação da análise SWOT<br />
permite com que se obtenha esse panorama.<br />
De forma geral, a análise do ambiente interno e externo mostra-se equilibrada sem<br />
predominâncias de nenhum dos pontos. O diagnóstico com o uso da análise SWOT, neste caso, foi<br />
capaz de além do conhecimento do ambiente demonstrar que a Unidade de Informação deve ser<br />
parte integrante do planejamento estratégico da Instituição, notadamente porque lida com<br />
informações gerenciais necessárias ao processo de tomada de decisão.
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Referências<br />
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Associação dos Arquivistas Brasileiros. 1996.<br />
BELLOTTO H. L. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2. ed. rev. e ampl. Rio de<br />
Janeiro: FGV, 2004.<br />
FISCHMANN, A. A.; ALMEIDA, M. I. R. Planejamento estratégico na prática. 2. ed. São<br />
Paulo: Atlas, 1991. 164 p.<br />
LOPES, L. C. A Informação e os arquivos: teorias e práticas. Niterói: ED<strong>UFF</strong>; São Carlos:<br />
EDUSFSCar, 1996.<br />
MAcGEE, J.; PRUSAK, L. Gerenciamento estratégico da informação: aumente<br />
competitividade e a eficiência de sua empresa utilizando a informação como uma ferramenta<br />
estratégica. Rio de Janeiro: Elsevier, 1994.<br />
PAES, M. L. Arquivo: teoria e prática. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002.<br />
PORTER, M. E. Estratégia competitiva: técnicas para análise de indústrias e da concorrência. 7.<br />
ed. Rio de Janeiro: Campus, 1986.<br />
ROUSSEAU, J-Y; COUTURE, C. Les fondaments de la discipline arqchivistique. Québec:<br />
Université Du Québec, 1994.<br />
TARAPANOFF, Kira. Inteligência organizacional e competitiva. Brasília (DF): UnB, 2001.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011
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O GAÚCHO E OS ANIMAIS SOB O PROCESSO DE DICIONARIZAÇÃO<br />
Verônica Franciele Seidel<br />
Graduanda do curso de Bacharelado em Letras - Português/Literaturas<br />
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).<br />
Resumo<br />
Este estudo procura refletir sobre a constituição e a instituição de sentidos capazes de revelar o<br />
imaginário sobre sujeito, língua e história através de dicionários de Língua Portuguesa e de<br />
Regionalismos Gaúchos. Consideramos o dicionário como um objeto discursivo inserido no<br />
espaço-tempo, de modo que suas evidências de sentidos são questionadas a fim de mostrar seus<br />
processos históricos de constituição, explicitando os gestos de interpretação que subjazem às<br />
formulações dos verbetes. Rastreamos as relações entre a figura do gaúcho e os animais que o<br />
circundam, como o boi e o cavalo, que podem ser visualizadas através do processo dicionarístico.<br />
Palavras-chave: dicionários, gaúcho, mito<br />
Abstract<br />
This study intends to reflect about the constitution and institution of the meanings able to<br />
reveal the imaginary about the subject, language and history through Portuguese and<br />
Regionalisms Gauchos dictionaries. In it, we consider the dictionary as a discursive object inserted<br />
in the space-time, so that their senses evidences are questioned in order to show its historical<br />
processes of constitution, explaining the gestures of interpretation that come with<br />
the formulation of the entries. We look for the relationships between the gaucho and the animals<br />
that surround him, like the ox and horse, that can be viewed by the dicionaristic process.<br />
Key-words: dictionary, gaucho, myth<br />
Introdução<br />
Este estudo procura refletir sobre a constituição e a instituição de sentidos capazes de<br />
revelar o imaginário sobre o sujeito, a língua e a história através de dicionários de Língua<br />
Portuguesa e de Regionalismos Gaúchos. Os princípios teóricos e metodológicos são baseados na<br />
Análise de Discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux, e na História das Ideias<br />
Linguísticas, representada por Sylvain Auroux, tal como são desenvolvidos no Brasil, especialmente<br />
por Eni Orlandi e José Horta Nunes.<br />
A partir dessa perspectiva, o dicionário é considerado como um objeto discursivo inserido<br />
no espaço-tempo, de modo que as evidências de sentidos dos dicionários são questionadas a fim de<br />
mostrar seus processos históricos de constituição, explicitando os gestos de interpretação que<br />
subjazem às formulações dos verbetes. Nestes, podemos observar efeitos das práticas sóciohistóricas<br />
ao mesmo tempo em que, de certo modo, constroem a sociedade, tendo em vista que o<br />
dicionário apresenta um horizonte de prospecção, o que caracteriza seu potencial transformador<br />
quando inserido em um espaço linguístico-histórico. Desse modo, é possível observar nos verbetes<br />
uma imagem da sociedade, imagem construída e parcial, que produz identificações e silenciamentos<br />
e que se projeta em um espaço-tempo.<br />
Para este estudo, os instrumentos linguísticos selecionados são o Dicionário de Regionalismos<br />
do Rio Grande do Sul, de Rui Cardoso Nunes e Zeno Cardoso Nunes (doravante Nunes), o Novo<br />
Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (doravante Aurélio), e o<br />
Nôvo Dicionário da Língua Portuguêsa, de Candido de Figueiredo (doravante Figueiredo). No intuito de
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refletir sobre a produção dos efeitos de sentidos nas relações entre língua e sujeito, observáveis no<br />
dicionário, selecionamos os verbetes que designam os principais animais que fazem parte do meio<br />
social do Rio Grande do Sul, sobretudo na área rural, tais como boi e cavalo, que auxiliam na<br />
constituição da imagem do gaúcho.<br />
A partir da análise dessas acepções nos diferentes dicionários, pretende-se a explicitação do<br />
processo de transformação que vem ocorrendo nas relações de sentido que cada verbete carrega,<br />
desde a língua colonial (Figueiredo), passando pela Língua Portuguesa do Brasil (Aurélio) até chegar<br />
à língua regionalista rio-grandense (Nunes), sendo que através das semelhanças e diferenças entre<br />
eles, é possível revelar parte da história sócio-ideológica constitutiva desses discursos. Tal percurso<br />
permite verificar de que modo as acepções contidas no dicionário de regionalismos revelam traços<br />
da formação social do gaúcho unido aos animais que o circundam desde sua origem.<br />
Tendo em vista a interface entre a sociedade e a literatura, esse processo também pode ser<br />
evidenciado no discurso literário, já que a literatura ao mesmo tempo em que é influenciada pela<br />
sociedade pode exercer influência sobre ela, modificando-a. A fim de mostrar o gaúcho em sua<br />
relação com os animais via literatura, trazemos também à tona a análise de Contos Gauchescos, de<br />
Simões Lopes Neto.<br />
O jogo entre definições e sentidos<br />
Inicialmente é importante ressaltar que o interesse por tal estudo surgiu justamente da<br />
análise do próprio verbete gaúcho contido no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de<br />
Nunes. A definição desse verbete relaciona a significação primitiva do termo gaúcho ao "roubo de<br />
gado ou contrabando" e apresenta os gaúchos, primitivamente, como "arrebanhadores de gado e de<br />
cavalos". Quanto às diferentes hipóteses para a etimologia do termo, a primeira delas faz menção ao<br />
vocábulo boi:<br />
Gaúcho. - Do ár. gaûch, proveniente do persa gauchi, boizinho, formado de gau-,<br />
"boi ou vaca", mais -chi, sifixo diminutivo, e que, por sua vez, veio do sânscrito<br />
gaúch-, "boi, gado vaccum"; este, por seu turno, é oriundo da raiz indo-européia<br />
gwo-, gwow-, "boi, vaca". Cast. ant. chaucho, com sentido equivalente (do ár. châuch,<br />
de chauoûch, "tropeiro"), a par de gauche; e este, que se documentou primeiro<br />
(séc. XVIII, foi também, ao que nos parece, a primeira transcrição árabe na<br />
forma genitiva, seguindo-se-lhe a nominativa, que prevaleceu: gaucho.<br />
Assim, a partir da importância que a acepção do verbete confere, de maneira mais incisiva,<br />
ao boi (definição e etimologia) e, de forma mais tênue, ao cavalo (definição), fez-se um levantamento<br />
de todos os verbetes no dicionário de Nunes que definissem boi ou cavalo, animais mencionados na<br />
definição de gaúcho, sendo que se consideraram apenas substantivos masculinos no singular,<br />
incluindo aumentativos e diminutivos. Como resultado, encontraram-se 23 verbetes definindo boi e<br />
49 verbetes definindo cavalo.<br />
Após o levantamento inicial dos verbetes designativos de boi e de cavalo no dicionário de<br />
Nunes, foram selecionados para análise alguns dentre esses verbetes que estivessem também<br />
presentes em Aurélio e em Figueiredo. Desse modo, dos 21 verbetes designativos de cavalo<br />
presentes nos três dicionários, foram selecionados quatro: animal, petiço, noviço e senador, e dos oito<br />
verbetes designativos de boi presentes nos três dicionários, foram selecionados dois: munício e touro.<br />
Observa-se aqui que no levantamento dos verbetes designativos de boi foram considerados também<br />
aqueles que designassem gado, já que no dicionário de regionalismos o gado é especificado e<br />
determinado como vacum: "Gado, s. O gado vacum. Quando o rio-grandense quer referir-se a<br />
outro gado que não seja o vacum, ele o especifica, chamando-o gado lanígero, asinino, muar,<br />
cavalar etc." (p. 199).
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Inicia-se então a análise dos verbetes designativos de boi/gado. Em Figueiredo, a definição<br />
que se tem de munício como um "brasileirismo" definido como "pão ordinário, que faz parte do<br />
rancho dos soldados" é retomada em Aurélio exatamente com a mesma definição, sendo que agora<br />
o "brasileirismo" é definido como a segunda acepção do verbete: "O gado de provisão alimentar da<br />
tropa ou do exército". Já em Nunes, a definição de munício apresenta apenas a acepção de Aurélio<br />
tida como "brasileirismo", ou seja, "gado de corte que segue as forças, para alimentação dos<br />
soldados". Por meio de tal definição, acentua-se a relação estreita que se dá entre o gaúcho e o boi,<br />
já evidenciada na etimologia de gaúcho, mencionada anteriormente. Percebe-se a importância que o<br />
gado adquire na alimentação do povo gaúcho, de modo que o pão presente na alimentação dos<br />
soldados passa a ser substituído pelo gado.<br />
A importância da relação entre boi/gado e gaúcho também pode ser atestada observandose<br />
o trecho que segue a definição de gado em Nunes, oriundo de Antônio Carlos Machado, Vozes da<br />
Querência, p. 29:<br />
Ao contrário do resto do Brasil, cuja colonização assentou na base da<br />
exploração agrícola, o Rio Grande do Sul nasceu e se formou à custa do gado.<br />
Tornou-se a criação desde o início, o eixo de sua vida coletiva. Já dissemos em<br />
outro lugar que a formação gaúcha sob inúmeros aspectos apresenta-se como<br />
obra exclusiva do pastoreio, da gadocracia.<br />
A definição de touro em Figueiredo e em Aurélio é bastante semelhante, sendo que os dois<br />
dicionários trazem as mesmas possibilidades de sentido para o termo: boi que não é castrado, boi<br />
bravo; homem robusto e fogoso; um dos signos do zodíaco. Em Nunes, o único sentido que<br />
permanece é o primeiro, o de boi não castrado. A essa definição segue-se uma observação: "Tanto<br />
no Rio Grande do Sul como nas Repúblicas do Prata o touro é um símbolo de força, de coragem, de<br />
valor. As brigas de touros são espetáculos soberbos que têm inspirado belas páginas na literatura<br />
gauchesca". Tal passagem reitera o laço entre o gaúcho e o animal, denotando a importância de que<br />
esse animal é investido pelo povo gaúcho: mais que um boi bravo ou não castrado, o touro aparece<br />
como um "símbolo" que auxilia na formação da cultura e das tradições gaúchas.<br />
Feita a análise dos verbetes relativos a boi, passa-se à análise dos verbetes referentes a cavalo.<br />
O vocábulo animal é definido em Figueiredo como "sêr organizado, que tem sensibilidade e<br />
movimento próprio; sêr vivo, irracional; pessoa estúpida". Tal definição é retomada em Aurélio<br />
com alguns acréscimos de sentido, a saber, "cavalo" e/ou "animal cavalar", sendo que essas<br />
acepções são apresentadas como "brasileirismos". A definição de "animal cavalar, principalmente o<br />
macho" é retomada em Nunes como "animal cavalar, especialmente o macho". Nunes especifica<br />
ainda que "ver um animal significa ver um cavalo, uma égua, um garanhão, e não um muar ou um<br />
bovino" e que o verbete "é muito empregado também na sua verdadeira acepção". Disso,<br />
depreende-se, primeiramente, que o cavalo ganha para si a acepção de animal em detrimento de<br />
outros animais tais como "muar" ou "bovino" e, depois, que haveria uma "verdadeira acepção" para<br />
o termo, ou seja, de animal no sentido genérico, como designativo de um animal qualquer. Torna-se<br />
interessante observar que é concebida, pelo próprio dicionarista, a existência de uma acepção<br />
verdadeira que não aquela apresentada por ele, trazendo à tona a consciência de uma "verdade<br />
local", de modo que o sentido funciona "localmente" e não universalmente (Foucault, 1979). Como<br />
explica Petri (2004), tratar o sentido localmente implica considerar as contradições que lhe são<br />
inerentes e constitutivas, tais como: a multiplicidade de significados que advêm de um mesmo<br />
significante e as relações entre o mesmo (continuidade) e o diferente (descontinuidade).<br />
Quanto à definição de noviço, tanto Figueiredo como Aurélio apresentam três acepções para<br />
o termo: homem que se prepara para professar numa ordem religiosa; aprendiz; inexperiente. Já<br />
Nunes apresenta como primeira acepção para o termo a de "cavalo novo" e apenas como segunda
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acepção a de "pessoa inexperiente". Percebe-se aqui o deslocamento de sentido de um termo que<br />
era usado para designar pessoas e passa a ser designativo, primeiramente, de cavalos e, apenas<br />
secundariamente, de pessoas. Tal deslocamento aponta novamente para a importância que a cultura<br />
gaúcha confere ao cavalo, animal que circunda seu meio social.<br />
A definição de petiço em Figueiredo, identificado como um "brasileirismo", que significa<br />
"cavalo de pernas curtas", em Aurélio também é identificado como um "brasileirismo" e<br />
significa "cavalo pequeno, curto, baixo" e "por extensão, pessoa de pequena estatura". Essa<br />
definição é retomada exatamente com as mesmas palavras em Nunes, o que aponta para o fato da<br />
existência de uma língua peculiar do sul, mas que não deixa de ser formada com base na língua<br />
nacional. O dicionário de Aurélio funcionaria, devido à posição que ocupa de "discurso fundador",<br />
como o detentor do discurso responsável pela construção de uma memória nacional, que<br />
inevitavelmente constitui também a memória do povo gaúcho, visto que este é parte integrante da<br />
nação. Como explica Orlandi (1993), "em relação à história de um país, os discursos fundadores são<br />
discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país".<br />
O mesmo processo pode ser encontrado no verbete senador. Figueiredo define o termo<br />
como "membro do senado", sendo que tal definição aparece da mesma forma em Aurélio, que<br />
acrescenta como segunda acepção um "brasileirismo" do Rio Grande do Sul com sentido de<br />
"cavalo muito idoso". Nunes apresenta apenas a segunda acepção de Aurélio, substituindo somente<br />
o vocábulo "idoso" por "velho".<br />
Refração e reflexão do discurso dicionarístico<br />
Através da análise exposta, evidencia-se parte das tomadas de posição dos sujeitos<br />
envolvidos na produção das obras em questão. Tais tomadas de posição revelam por sua vez<br />
diferentes modos de inscrição do sujeito na língua, sendo que se faz necessário considerar, como<br />
explica Orlandi (2002), que não existe neutralidade do sujeito e que a ideologia se revela<br />
funcionando na própria forma de organização do objeto discursivo em análise.<br />
Observando os mesmos verbetes no dicionário de Figueiredo, de Aurélio e de Nunes,<br />
percebe-se que muitas definições são retomadas, atualizando, reproduzindo e deslocando alguns<br />
sentidos. Tornam-se explícitos aqui os processos parafrásticos e os polissêmicos, norteadores do<br />
discurso. Enquanto a paráfrase baseia-se no que se mantém no dizer, trazendo estabilização, como<br />
ocorre nos verbetes munício, touro e noviço, a polissemia assenta-se na ruptura dos processos de<br />
significação trazendo, por sua vez, deslocamento, sustentando o processo de construção de sentido<br />
de petiço e senador. É essa tensão entre o mesmo e o diferente que permite a transformação dos<br />
sujeitos e dos sentidos. Por isso, Orlandi (2009) diz que "a incompletude é a condição da<br />
linguagem: nem os sujeitos, nem os sentidos, logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados".<br />
O dicionário é resultado de um processo de seleção, recorte, reformulação e retomada de<br />
questões sobre o já-dito, é a recuperação de uma memória discursiva. Segundo Orlandi (2002), o<br />
dicionário representa a completude remetendo a um verbete que, por sua vez, remete a outros, e<br />
estabelece, assim, um ―circuito fechado".<br />
O dicionário de Aurélio apresenta-se como um discurso fundador, de modo que mantém<br />
uma relação muito particular com a filiação, sustentando o sentido que surge e se sustentando nele,<br />
o que produz o efeito de sentido evidente "só poderia ser assim". Há todo um imaginário social e<br />
histórico que nos dá a conhecer a língua do Brasil, a língua nacional e oficial, a língua portuguesa,<br />
considerando que ela ―está estruturalmente ligada à constituição da forma histórica do sujeito<br />
sociopolítico, que se define assim na relação com a formação do país, da nação, do Estado‖<br />
(Orlandi, 2002, p. 21). É assim que se explicita o contraponto de se ter línguas no interior de uma<br />
língua, são línguas que promovem a heterogeneidade no interior de uma língua com o suposto
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―poder‖ de homogeneização, servindo à administração do Estado, mas, também à necessidade de<br />
administração dos saberes (Petri, 2009).<br />
Os dicionários regionalistas, como é o caso do dicionário de Nunes, segundo Horta Nunes<br />
(2006), são considerados dicionários populares, que se caracterizam por serem parciais, de modo<br />
que propõem descrever a língua dos sujeitos rurais ou regionais, em uma linguagem "diferenciada<br />
da língua erudita". Apresentam-se assim como um objeto de consulta, mas funcionam, sobretudo,<br />
como referencial de tradicionalismo e não como acúmulo de saber atualizado. São marcados pela<br />
"especificidade de um grupo social; pela crença de que haveria uma nação imaginária (no interior de<br />
outra nação)". A língua funcionaria aqui como a expressão maior de um grupo social tão específico,<br />
que se identifica como diferente no interior do mesmo (Petri, 2008). Os verbetes que estão no<br />
dicionário regionalista podem ser ou não contemplados pelo dicionário nacional, já que a língua é<br />
portuguesa no e do Brasil, plena em especificidades de várias ordens, dentre as quais estão os<br />
regionalismos (Petri, 2009).<br />
A análise em questão permite visualizar a relação que há entre o gaúcho e os animais, assim<br />
como a importância que o cavalo adquiriu no meio social do gaúcho. É importante observar que,<br />
apesar de o termo gaúcho em sua definição estar mais relacionado com boi e de este animal fazer<br />
parte da alimentação do povo gaúcho de uma maneira bastante marcante, nota-se que no dicionário<br />
em questão os verbetes designativos de cavalo são mais abundantes (23 para boi e 49 para cavalo), o<br />
que se possa justificar, talvez, justamente, pela importância que este animal tem no meio social do<br />
gaúcho. Isso se torna mais evidente quando se evoca o mito do "centauro pampeano", presente na<br />
cultura gaúcha, que atualmente recupera a união do homem com o cavalo não como um ser<br />
monstruoso, mas como um ente sobrenatural, dotado de poderes específicos, de modo que o<br />
cavaleiro (gaúcho que anda a cavalo) simboliza o centauro. O centauro pampeano constitui-se dos<br />
dois seres, homem e cavalo, que unidos constituem um centauro na sua forma simbológica e não<br />
fisiológica (Petri, 2004). Observe-se a definição de centauro no dicionário de Nunes: "denominação<br />
dada, no Rio Grande do Sul, aos gaúchos que, nas revoluções, peleavam a cavalo.// Hábil<br />
cavaleiro". A essa definição segue-se uma passagem de O cavalo e o gaúcho, de Roque Calage, que<br />
explicita o mito em questão:<br />
Por isso, amalgamados, esculpidos como num bloco único, o cavalo e o homem,<br />
que o tem preso ao tenteio das rédeas, reatam na coxilha, na mais surpreendente<br />
das realidades, a existência mitológica dos Centauros.<br />
O boi, animal que embasa a fundação do próprio termo gaúcho cedeu lugar ao cavalo, em<br />
uma relação de união em que um define e é definido pelo outro através do mito do centauro. Podese<br />
dizer que tal mito transforma o próprio gaúcho numa figura mitológica, de modo que o sujeito<br />
produz o mito e se reproduz nele. Ao levar em conta que a criação do mito se dá como resposta à<br />
necessidade de sobrevivência de um grupo social numa determinada época e num determinado<br />
espaço, é possível evocar a etimologia do termo centauro, segundo Mestica (1993), em kéntauri,<br />
aquele que mata touros, ou em Spalding (1965), picadores de cavalo e matadores de touros, e,<br />
assim, relacionar a etimologia com a formação histórica do Rio Grande do Sul. Observe-se para<br />
isso o seguinte trecho já mencionado do dicionário de Nunes: "o Rio Grande do Sul nasceu e se<br />
formou à custa do gado". O centauro seria um ser que caça e abate o gado para sua própria<br />
subsistência.
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Sociedade e literatura: o boi em Contos Gauchescos<br />
Considerando o encontro que há entre mito e literatura e que João Simões Lopes Neto<br />
ocupa um lugar de fundação do gaúcho mitológico, torna-se possível relacionar sua obra Contos<br />
Gauchescos, que teve sua primeira edição em 1912, e o estudo em questão, a fim de mostrar a figura<br />
mitológica do gaúcho em sua relação com os animais via literatura. Um dos contos desse livro, O<br />
Boi Velho, reflete a postura do gaúcho em relação ao boi, com a ressalva de que as relações entre<br />
mundo social e mundo ficcional são produtoras de "efeitos de real" no discurso literário, de modo<br />
que a representação das formas de subjetivação "revelam traços significativos da constituição<br />
identitária do gaúcho, não como um reflexo da realidade empírica, mas como um modo possível de<br />
se olhar para o mundo social e de se ouvir os "rumores" que ele produz" (Petri, 2004, p. 252).<br />
Observem-se as sequências discursivas a seguir retiradas do conto O Boi Velho:<br />
Já vê... o banheiro não era longe, podia-se bem ir lá de a pé mas a família ia<br />
sempre de carretão, puxado a bois, uma junta, mui mansos, governados de<br />
regeira por uma das senhoras-donas e tocados com uma rama por qualquer das<br />
crianças.<br />
Pois veja vancê... Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e<br />
homens feitos, foram-se casando e tendo família, e como quera, pode-se dizer<br />
que houve sempre senhoras-donas e gente miúda para os bois velhos levarem ao<br />
banho do arroio, no carretão.<br />
Então, um notou a magreza do boi... achou que era melhor matar-se aquele boi,<br />
que tinha caraca grossa nas aspas, que não engordava mais e que iria morrer<br />
atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia um prejuízo certo, no couro<br />
perdido.<br />
...os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá para mim, com<br />
remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos,<br />
tantas vezes, para a alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas,<br />
dos guajubis!...<br />
-Veja vancê, que desgraçados; tão ricos... e por um mixe couro de boi velho!...<br />
Cuê-pucha!... é mesmo bicho mau, o homem!<br />
O conto narra a história de um boi que após ter servido à família durante anos, quando<br />
velho, é morto pelo dono que não quer ter o prejuízo econômico de perder o couro do animal,<br />
única parte que ainda teria valor comerciável. Após a narração da história do conto, têm-se as duas<br />
orações finais que são trazidas na voz do narrador e que expressam um juízo de valor negativo em<br />
relação ao homem: "que desgraçados... é mesmo bicho mau, o homem!". Apesar de tal juízo de<br />
valor, a atitude do dono do boi é justificada e apoia-se no mito, na figura mitológica do gaúcho que<br />
em sua história sempre se utilizou do gado para sobreviver, vendo-o somente como um objeto que<br />
serve para se chegar a determinado fim, no caso, econômico.<br />
Esse ente mitológico, o gaúcho, que aparece através da figura do centauro representaria o<br />
conflito do homem com seus próprios instintos animais, colocando em voga as contradições entre<br />
o animal e o humano. O próprio narrador designa o homem como bicho mau, instaurando um<br />
conflito entre a natureza humana, que deveria ser constituída de benevolência, piedade e<br />
indulgência, e a natureza animal, de modo que um animal, por ser irracional, não pode ser bom ou<br />
mau, justamente por agir instintivamente. Há assim, na oração "é mesmo bicho mau, o homem!",<br />
uma transferência de sentidos que confere características humanas ao animal (a maldade) e confere<br />
características do animal ao homem (o instinto), caracterizando o misto de animal e humano que o<br />
centauro carrega. É necessário levar em conta que o mito revela modelos de uma sociedade, sendo<br />
que sua presença não garante bondade ou maldade, moralidade ou imoralidade (Eliade, 1972),<br />
como no conto em questão, em que, segundo o julgamento do narrador, depreende-se uma atitude<br />
que é considerada má. Porém, o mito assegura a não imoralidade do ato, já que esses seriam
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costumes aceitos segundo preceitos estabelecidos por determinado grupo social, em que a utilização<br />
de um animal como o boi objetivando fins econômicos é normal.<br />
Considerações finais<br />
O dicionário, se considerado como um objeto discursivo inserido em um tempo e espaço<br />
determinados, pode ser utilizado a fim de evidenciar os efeitos das práticas sócio-históricas que subjazem às<br />
formulações dos verbetes nele contidos. Ao mesmo tempo em que as práticas em questão refletem no<br />
dicionário, este atua refletindo e refratando as relações de sentido que se estabelecem na sociedade.<br />
Tendo isso em vista, as relações entre a figura do gaúcho e os animais que o circundam, como o<br />
boi e o cavalo, podem ser amplamente visualizadas pelo processo dicionarístico. Primeiramente temos o<br />
boi com sua importância evidenciada pela própria definição do termo gaúcho. Após, aparece o cavalo,<br />
mitificado através do centauro pampeano e que acaba se sobressaindo e assumindo um papel fundamental<br />
para a constituição do gaúcho, o que é tido quando analisamos a predominância de verbetes para designálo<br />
quando comparado ao boi, por exemplo.<br />
Assim, uma memória discursiva mostra que o cavalo sempre permaneceu junto do gaúcho,<br />
auxiliando-o na realização de suas tarefas, inclusive na apreensão do gado, e constituindo uma parte mesmo<br />
do que podemos denominar imagem do gaúcho. Já o boi sempre representou um meio de crescimento<br />
econômico apenas, um artefato para alimentação, o que pode ser notado também através da literatura,<br />
como no conto O boi velho, em que após cumprir um fim utilitário, é descartado pelo gaúcho.<br />
A partir disso, é possível afirmar que as relações entre memória e atualidade de um grupo social<br />
são representadas tanto via o discurso dicionarístico quanto via o discurso literário. Ambos trazem à tona<br />
um intrincado processo em que sociedade, história e língua são imprescindíveis para a compreensão da<br />
constituição e instituição de sentidos.<br />
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ORLANDI, E. P. Lexicografia discursiva. In: ORLANDI, E. P. Língua e conhecimento lingüístico. São Paulo: Cortez,<br />
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Enviado – 29/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011<br />
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RESENHA<br />
RUIZ, Eliana Donaio. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010<br />
Márcia Moreira Pereira<br />
Pós-graduação lato sensu em Tradução: Inglês-Português<br />
Universidade Nove de Julho<br />
Em Como corrigir redações na escola, a autora trata de aspectos relacionados – como o título sugere –<br />
à correção de redações e temas afins. Contudo, o título do livro poderia contar com uma interrogação,<br />
afinal uma das tarefas mais intrigantes na prática da escrita em sala de aula é a correção de redações.<br />
Como fazer? Como abordar de forma eficaz os erros e os acertos dos alunos, já que a redação implica<br />
discutir habilidades importantes para desenvolver a escrita?<br />
Eliana Ruiz procura responder a essas questões nesta obra que resultou de sua dissertação de<br />
mestrado. Por meio de exemplos práticos, a autora mostra caminhos considerados certos ou errados<br />
nessa difícil missão: corrigir redações de forma que o aluno se interesse pela escrita e possa desenvolvê-la.<br />
Com um grupo de professores e seus alunos, a autora buscou relacionar alguns tipos de<br />
correções e procurou entendê-las, utilizando sua experiência como docente, procurando fazer uma<br />
diferenciação entre redação e produção de texto e ressaltando a importância da correção pelo professor,<br />
que desempenha o papel de leitor, na medida em que o aluno desempenha o de escritor: ―correção é,<br />
pois, o texto que o professor faz por escrito no (e de modo sobreposto ao) texto do aluno, para falar<br />
desse mesmo texto‖ (p. 19). Não poderia faltar, é claro, a relevância da leitura na produção das redações:<br />
―falar em problema de redação significa falar, necessariamente, em problema de leitura‖ (p. 20).<br />
Mas para que serve a correção? Será que o aluno compreenderá aqueles rabiscos de caneta<br />
vermelha passeando sobre seu texto? Mais uma vez a autora entra em cena: ―o trabalho de correção tem<br />
o objetivo de chamar a atenção do aluno para os problemas do texto. A tarefa de corrigir é, assim, uma<br />
espécie de ‗caça erros‘, já que o professor, quando intervém por escrito, em geral dirige a sua atenção para<br />
o que o texto tem de ‗ruim‘, e não de ‗bom‘‖ (p.33). E completa: ―por essa razão, pode-se sem sombra de<br />
dúvidas dizer que a leitura feita pelo professor, via correção, não é a mesma que a leitura realizada por um<br />
leitor comum‖ (p. 33).<br />
O livro sugere outros questionamentos possíveis nessa complexa tarefa de corrigir redações: o<br />
que significam aqueles rabiscos nas redações de nossos alunos? Seriam somente rabiscos? Segundo a<br />
autora, a forma em que circulamos, riscamos, colorimos as redações são de grande importância para a<br />
compreensão do aluno, pois, por meio delas, ele pode verificar onde e como errou e, principalmente,<br />
como consertar, como aprender e como desenvolver a escrita de forma clara e precisa, tornando-se,<br />
assim, um verdadeiro ―escritor‖.<br />
Baseando-se na obra de Maria Teresa Serafini (Como Escrever Textos), a autora classifica as<br />
correções em três tipos: a indicativa, a resolutiva e a classificatória. A primeira, indicativa, consiste, segundo<br />
suas palavras, em ―marcar junto à margem as palavras, as frases e os períodos inteiros que apresentam<br />
erros ou são pouco claros. Nas correções desse tipo, o professor freqüentemente se limita à indicação do<br />
erro e altera muito pouco; há somente correções ocasionais, geralmente limitadas a erros localizados,<br />
como os ortográficos e lexicais‖ (p. 36). A segunda, resolutiva, consiste em ―corrigir todos os erros,<br />
reescrevendo palavras, frases e períodos inteiros. O professor realiza uma delicada operação que requer<br />
tempo e empenho, isto é, procura separar tudo o que no texto é aceitável e interpretar as intenções do<br />
aluno sobre trechos que exigem uma correção; reescreve depois tais partes fornecendo um texto correto‖<br />
(p. 41). Finalmente, a terceira, classificatória, consiste na ―identificação não ambígua dos erros através de
<strong>Revista</strong> <strong>Querubim</strong> – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 15 vol. 2 – 2011<br />
ISSN 1809-3264<br />
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uma classificação. Em alguns desses casos, o próprio professor sugere modificações, mas é mais comum<br />
que ele proponha ao aluno que corrija sozinho seu erro‖ (p.45). A autora ainda elenca outro tipo de<br />
correção: a textual interativa, que seriam os chamados ―bilhetes‖, aqueles que escrevemos ao nosso aluno<br />
no final de sua redação: ―quando o professor se dá conta de que, em função de uma serie de fatores (...)<br />
não basta interferir resolutiva, classificatória ou indicativamente (...), ele parte para a produção de um<br />
bilhete‖ (p. 138).<br />
Um aspecto das correções ressaltado pela autora é a importância da clareza por parte do<br />
professor na hora da correção, que deve apontar os caminhos à revisão do texto de forma clara: ―o aluno<br />
pode ou não alterar seu texto, mas, se não o fizer, por certo, será por dificuldade na execução da tarefa,<br />
ou por dificuldade na compreensão da própria correção realizada pelo professor. (p. 66).<br />
Enfim, todas essas questões e muitas outras, como a condição do professor no meio alunoredação-correção-escola<br />
são abordados neste livro que, por isso mesmo, torna-se um instrumento<br />
necessário tanto aos professores quanto aos pesquisadores do controverso tema das redações e suas<br />
correções.<br />
Enviado – 30/08/2011<br />
Avaliado – 15/10/2011