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Foi <strong>um</strong> esforço tremendo<br />
para impor a <strong>língua</strong> portuguesa<br />
em todo o território nacional. Quando os<br />
portugueses chegaram ao Brasil havia cerca<br />
de 1,2 mil <strong>língua</strong>s indígenas na região. Hoje, são<br />
180. O português ganhou enfim <strong>sua</strong> unificação –<br />
por outro lado, a diversidade linguística permanece.<br />
As razões são diversas: primeiro, houve resistência dos<br />
povos dominados, claro, que mantiveram muitas de <strong>sua</strong>s<br />
expressões e palavras. Segundo, o português trazido pelo<br />
colonizador não era <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> homogênea, havia variações<br />
dependendo da região de Portugal de onde ele vinha.<br />
Sem contar os diversos momentos de chegada dos<br />
portugueses, que foram se encontrando <strong>com</strong> muitas outras<br />
nacionalidades no Brasil, o que ia produzindo diversidades<br />
linguísticas que caracterizam falares diferentes.<br />
Em São Paulo, por exemplo, houve primeiro o encontro<br />
linguístico de portugueses <strong>com</strong> índios. Depois,<br />
vieram os negros da África, os italianos, os japoneses,<br />
os alemães, os árabes, todos <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s <strong>língua</strong>s. O resultado<br />
é que na mesma cidade é possível encontrar<br />
modos de falar <strong>com</strong>pletamente distintos. “O português<br />
falado, hoje, no Brasil, resulta de <strong>um</strong>a série de<br />
mudanças determinadas por fatores de natureza linguística<br />
e histórico-cultural que se vão apresentando<br />
ao longo do tempo”, afirma Silvia Brandão, professora<br />
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Alguns exemplos: o “s” chiado (quase <strong>um</strong> “x”) dos cariocas<br />
nasceu <strong>com</strong> a transferência da família real portuguesa<br />
para a cidade em 1808, que produziu no Rio<br />
<strong>um</strong>a versão peculiar da pronúncia lisboeta. Em Santa<br />
Catarina, o sotaque cantado é influência direta da<br />
forte imigração de portugueses da ilha de Açores. Já<br />
Pernambuco ganhou a forte pronúncia do “r” <strong>com</strong>o<br />
herança da longa presença holandesa no Recife.<br />
Vôte, pru mode e oxente<br />
É a fala do Nordeste<br />
Se o sujeito é valente<br />
Também é cabra da peste.<br />
Segundo Antonio Houaiss, professor, diplomata, filólogo<br />
e lexicógrafo, a variedade de sotaques do Brasil<br />
não só enriquece a <strong>língua</strong> <strong>com</strong>o é sinônimo do seu<br />
domínio territorial. Houaiss cost<strong>um</strong>ava dizer que a<br />
nossa <strong>língua</strong>, depois de tantas influências, se tornou<br />
nova, algo que poderia se chamar de “brasileiro” e não<br />
mais “português”.<br />
O curioso é que, há muitos anos, antes da lei do Marquês<br />
de Pombal, existiu, sim, <strong>um</strong>a “<strong>língua</strong> brasileira”<br />
por aqui. Era o nheengatu, ainda falado em alguns<br />
pontos do Brasil, <strong>com</strong>o na fronteira <strong>com</strong> o Paraguai e<br />
no Amazonas. A <strong>língua</strong> foi criada no século XVI pelos<br />
jesuítas, especialmente pelo Padre Anchieta, que era<br />
linguista. Para se entender <strong>com</strong> os índios, classificou<br />
o tupi e criou <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> que não era nem de português,<br />
nem de índio. Eram ambas. Só falava português<br />
mesmo quem fosse estrangeiro, ou seja, os portugueses.<br />
Herdamos muitas palavras dessa <strong>língua</strong>, tais <strong>com</strong>o<br />
abacaxi, jururu, cipó. E o ex-presidente Fernando Henrique<br />
Cardoso, quando usou a expressão “chega de<br />
nhenhenhém”, estava falando nheengatu.<br />
No Centro-Oeste o “candango”<br />
Come “Maria-Isabel”<br />
Sua dança é o fandango<br />
Se é de fora é tabaréu.<br />
O nheengatu ajudou muito a formar, por exemplo, o<br />
popular sotaque caipira. De acordo <strong>com</strong> José de Souza<br />
Martins, professor de sociologia da Universidade<br />
de São Paulo, os índios tinham dificuldades em falar<br />
<strong>um</strong>a série de palavras portuguesas, sobretudo aquelas<br />
<strong>com</strong> a letra “r”. Mulher, colher e orelha eram ditas<br />
<strong>com</strong>o “muié“, “cuié“ e “oreia“. A partir daí veio o chamado<br />
“r” retroflexo, aquele “r” dobrado que, <strong>com</strong> a letra “i”,<br />
resulta naquele jeito de falar “cairne” e “poirta”, característico<br />
do interior de São Paulo.<br />
Muita gente considera esse sotaque <strong>com</strong>o <strong>um</strong> jeito<br />
de falar equivocado. Martins deixa claro que se trata<br />
de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> dialetal, e não de <strong>um</strong> erro. “O caipira<br />
inventa algo que ele entenda, só isso. Por exemplo, fizemos<br />
<strong>um</strong>a pesquisa no interior em que perguntávamos:<br />
‘Você concorda ou não concorda?‘. Muita gente<br />
não entendia. Até que mudamos a pergunta: ‘Você<br />
concorda ou disconcorda?‘ ”. Daí entenderam.<br />
Lá no Sul é trilegal<br />
Ver <strong>um</strong> guapo de bombacha<br />
Tem china e tem bagual<br />
Ai tchê, tudo se acha.<br />
Justamente por esse julgamento de achar errado o<br />
modo de falar do outro existem muitos preconceitos<br />
em relação aos sotaques brasileiros. O sujeito abre a<br />
boca e quem ouve já imagina de onde ele veio, <strong>sua</strong><br />
classe social e assim por diante. Especialistas dizem<br />
que boa parte desse preconceito se dá por causa da<br />
tentativa de uniformizar os sotaques dos apresentadores<br />
de televisão conforme o padrão das duas maiores<br />
capitais, Rio de Janeiro e São Paulo.<br />
É <strong>com</strong>o torcer o nariz quando o mineiro abandona<br />
alg<strong>um</strong>as palavras no meio do caminho ao perguntar<br />
“ôndôtô?” em vez de “onde eu estou?”. Ou ainda<br />
o “s” dos cariocas ou o “oxente” nordestino. “Embora,<br />
do ponto de vista linguístico, não haja<br />
forma errada de falar, os indivíduos atribuem<br />
julgamentos de valor a determinadas<br />
características linguísticas.<br />
Como acontece<br />
em relação a outros aspectos da vida social, a forma<br />
de falar de grupos menos prestigiados socialmente<br />
acaba por ter alguns de seus traços estigmatizados”,<br />
explica Silvia Brandão.<br />
A boa notícia é que esse estigma pode desaparecer<br />
caso o sotaque caia, literalmente, na boca do povo. “A<br />
partir do momento em que <strong>um</strong> traço, antes restrito a<br />
<strong>um</strong> grupo, se difunde e atinge a fala da maioria dos<br />
indivíduos, ele deixa de ser socialmente marcado.”<br />
No Norte tem xirimbaba<br />
Animal de estimação<br />
Matrinxã e maniçoba<br />
Servem de alimentação.<br />
A difusão de <strong>um</strong> modo de falar é algo realmente fascinante.<br />
E isso acontece, muitas vezes, não apenas a<br />
partir de <strong>um</strong> sotaque <strong>com</strong>o também de <strong>um</strong>a só pessoa.<br />
É o que se chama de “idioleto”, ou seja, o conjunto<br />
dos usos de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> próprio de <strong>um</strong> determinado<br />
indivíduo. <strong>Cada</strong> pessoa, além de apresentar, na<br />
<strong>sua</strong> maneira de falar, o seu sotaque, usa a <strong>língua</strong> de<br />
<strong>um</strong>a forma peculiar. Quem não se lembra da <strong>língua</strong><br />
inventada pelo Muss<strong>um</strong>, de Os Trapalhões, que fazia a<br />
criançada morrer de rir quando dizia “Ai, Cacildis!”. Rapidamente,<br />
o idioleto de Muss<strong>um</strong>, <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> própria<br />
terminada em “s”, misturada ao seu sotaque carioca, se<br />
difundiu. Tanto que até hoje muita gente fala (em tom<br />
de brincadeira, claro) <strong>com</strong>o ele.<br />
Muss<strong>um</strong> adotava <strong>um</strong> jeito específico de falar, e não<br />
gírias, que são palavras, termos ou expressões que, de<br />
tanto usadas, podem até entrar no dicionário. “Foi o<br />
que ocorreu, por exemplo, <strong>com</strong> as novas acepções de<br />
vocábulos <strong>com</strong>o broto, grilo, legal, bacana, entre outros”,<br />
lembra Silvia Brandão. Agora é esperar para ver<br />
o que será incorporado <strong>com</strong> o advento da internet,<br />
que usa <strong>um</strong>a linguagem escrita semelhante à falada.<br />
O que Machado de Assis acharia disso?<br />
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