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A escritora, pensadora e crítica norte-americana Susan<br />
Sontag discorreu sobre “os paradoxos ideológicos<br />
embutidos no exercício da tradução” em <strong>um</strong> dos<br />
ensaios reunidos no livro Questão de Ênfase (Cia. das<br />
Letras, 2005). O motivo: em Sarajevo, durante a guerra<br />
dos Bálcãs, ela dirigiu <strong>um</strong>a montagem teatral de Esperando<br />
Godot, pelo dramaturgo irlandês. peça escrita<br />
em francês e em inglês de Samuel Beckett, No palco,<br />
os atores falavam em servo-croata. No livro, a indagação<br />
de Sontag: “O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À<br />
literatura? À <strong>língua</strong>? Ao público?”.<br />
“Ele é <strong>um</strong> mediador necessário. Sem a tradução, não<br />
conheceríamos As 1001 Noites”, responde Carone –<br />
que destinou dois anos e meio a O Castelo, tempos<br />
después de ter morado em Viena e lá estudado germanística<br />
para estrangeiros, o que o direcionou a<br />
Kafka no original. “Sempre existe grau de perda em<br />
qualquer tradução. Talvez só <strong>um</strong> italiano do século<br />
XIV fosse capaz de fruir em <strong>sua</strong> plenitude de A Divina<br />
Comédia, de Dante, mas a h<strong>um</strong>anidade seria culturalmente<br />
mais pobre se não existissem as traduções<br />
para as mais diversas <strong>língua</strong>s”, acrescenta Couto.<br />
Acertos e desacertos<br />
Por <strong>um</strong> lado, os tradutores cultuam o trabalho de seus<br />
pares. “As traduções de Constance Garnett e Rosemary<br />
Edmunds da obra de Leon Tolstói são muito boas.<br />
Às vezes, ao ler o trabalho de Garnett (Anna Karenina)<br />
e de Edmunds (Guerra e Paz), tinha que me lembrar<br />
que era tradução. Ao mesmo tempo, elas criaram <strong>um</strong><br />
ambiente suficientemente estranho para estimular<br />
a estética do desconhecido. Ou seja, <strong>um</strong> texto bem<br />
escrito no original carrega o tradutor”, observa Karen<br />
Sotelino. “A primeira tradução francesa do difícil Ulisses<br />
foi feita por Valery Larbaud <strong>com</strong> a colaboração do próprio<br />
James Joyce”, cita Carone. “Na poesia, traduções<br />
maravilhosas são as reunidas por Augusto de Campos<br />
em O Anticrítico (Cia. das Letras, 1986). Na prosa, as<br />
traduções do russo de Boris Schnaiderman e as traduções<br />
do inglês de Paulo Henriques Britto são admiráveis”,<br />
en<strong>um</strong>era Couto.<br />
Por outro lado, admitem equívocos e desacertos.<br />
“Em Madame Bovary, de Flaubert, traduzia-se ‘l’amour<br />
fou’ por ‘amor louco’, quando <strong>um</strong>a tradução de maior<br />
sensibilidade seria ‘<strong>um</strong>a paixão enlouquecedora’ ou<br />
mesmo ‘<strong>um</strong>a paixão’ ”, pondera Carone. O cinema<br />
é <strong>um</strong> campo no qual, para infelicidade geral, a má<br />
translation é recorrente. La Peau Douce (a pele doce)<br />
e Baisers Volés (beijos roubados), de François Truffaut,<br />
viraram, respectivamente, Um Só Pecado e Beijos Proibidos.<br />
Em 1992, <strong>um</strong> filme que nos Estados Unidos havia<br />
sido intitulado Leap of Faith (livremente, <strong>um</strong> salto<br />
de fé) chegou ao país <strong>com</strong>o Fé Demais Não Cheira Bem<br />
(Richard Pearce, 1992). Em março deste ano, quando<br />
a adaptação do cineasta paulista Fernando Meirelles<br />
para Ensaio sobre a Cegueira (Cia. das Letras, 1995), romance<br />
de José Saramago, estreou na Espanha, o autor<br />
português reclamou do título local – Às Cegas. Sua<br />
alegação: os personagens, cegos por <strong>um</strong>a condição<br />
física, não pertencem ao sentido implícito na expressão<br />
usada pelos espanhóis.<br />
Outro exemplo recente é dado pela tradutora Débora<br />
Baldelli, <strong>com</strong> anos de experiência em tradução<br />
cinematográfica, inclusive na coordenação do departamento<br />
de legendagem em duas edições do Festival<br />
do Rio. “O filme Sim Senhor (Peyton Reed, 2008) é<br />
baseado no livro Yes Man. Na verdade, o significado<br />
é O Homem do Sim, <strong>com</strong>o o personagem é chamado<br />
no livro. Portanto, Sim Senhor não faz o menor sentido”,<br />
situa. Para cinema, DVD e television, a tradução<br />
é mais econômica, dada a escassez de espaço. “Infelizmente,<br />
existe <strong>um</strong> limite de caracteres que deve ser<br />
respeitado. A quantidade na legenda eletrônica não é<br />
a mesma das cópias <strong>com</strong> legendas queimadas, nem<br />
da exibida em programas de TV. É sempre <strong>um</strong> grande<br />
exercício de síntese”, contextualiza Débora.<br />
Síntese, escolha, estudos, dedicação... A rotina de <strong>um</strong><br />
tradutor é repleta de palavras – <strong>com</strong>o não? – que determinam<br />
os r<strong>um</strong>os de seus trabalhos. Há confrontos,<br />
claro. Carone julga a profissão “importante e indispensável”<br />
e “mal paga”. Karen elege a pressa “a grande inimiga<br />
da tradução, pois o tradutor, em muitos casos,<br />
tem <strong>um</strong>a carreira acadêmica e outros <strong>com</strong>promissos<br />
e precisa ganhar a vida”. E Couto crê que <strong>sua</strong> experiência<br />
<strong>com</strong>o jornalista pode atrapalhar “justamente pela<br />
tendência ao texto objetivo e despojado, que nem<br />
sempre é o que a obra de origem pede”.<br />
“O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À <strong>língua</strong>?<br />
Ao público?”(Susan Sontag)<br />
Entretanto, o que seria da literatura, da civilização, da<br />
vida sem eles? Sem a tradução, os brasileiros não apreciariam<br />
Henri Stendhal, Ivan Turguêniev, Julio Cortázar,<br />
Umberto Eco, William Faulkner, Virginia Woolf, Hermann<br />
Hesse, Salman Rushdie e tantos outros. Sem a tradução,<br />
Machado de Assis não seria <strong>um</strong> genius universal e<br />
Guimarães Rosa não teria esboçado, em <strong>um</strong>a carta de<br />
1963 a seu tradutor italiano, <strong>um</strong>a lírica e simbólica definição<br />
para dois ofícios-irmãos: “Eu, quando escrevo<br />
<strong>um</strong> livro, vou fazendo <strong>com</strong>o se o estivesse ‘traduzindo’<br />
de alg<strong>um</strong> alto original, existente alhures, no mundo<br />
astral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, por<br />
exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando<br />
nessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’-traduzem para<br />
outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência,<br />
se não foi o tradutor quem, de fato, acertou,<br />
restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu<br />
desvirtuara...”.<br />
Na Continu<strong>um</strong> On-Line leia entrevista <strong>com</strong> o tradutor<br />
Modesto Carone.<br />
62 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural<br />
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