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Uma operação nada matemática<br />
Os desafios de verter o sentido, o tom, a vida de palavras de <strong>um</strong> idioma para outro.<br />
Por Luciana Veras | Ilustração Rodrigo Silveira<br />
reportagem<br />
Diz a história que São Jerônimo deu à luz a primeira Bíblia em latim. A Vulgata, publicada por volta do ano<br />
400, é até hoje referendada pela Igreja Católica. Concebidos em aramaico e hebraico, antes os textos cristãos<br />
haviam apenas sido passados para o grego. Ao imortalizar as Sagradas Escrituras na <strong>língua</strong> de Roma, ele se<br />
tornou o patrono da tradução. Na acepção teórica, o ato de traduzir é <strong>um</strong>a transferência de palavras, frases<br />
e orações de <strong>um</strong> idioma “de partida” para <strong>um</strong> “de chegada”. Uma operação exata, quase matemática. Na prática,<br />
contudo, a tradução não se restringe à fidelidade, à matriz ou à transformation de, por exemplo, <strong>um</strong>a<br />
edição em inglês de Rei Lear, de William Shakespeare, para o português. Para especialistas, escritores, leitores<br />
e, acima de tudo, tradutores, ela é <strong>um</strong> renascimento. Uma criação. E <strong>um</strong>a homenagem.<br />
Writer and translator Modesto Carone – the main responsible for the translation of the oeuvre of Franz Kafka<br />
in Brazil – who for the past twenty-four years has been immersed in the universe that the Czech writer of The<br />
Metamorphosis, The Trial, and Letter to His Father (all published in Brazil by Cia. das Letras publishing house in 1997)<br />
erected in German–, reminds us that “Goethe believed in the existence of two kinds of translation. One aimed at<br />
making the original work an integral part of the literature to which it was being translated. The second advocated<br />
that the target language should get as close as possible to the source language, thus creating a third language.”<br />
“Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o<br />
original pela tradução é impraticável.” (Modesto Carone)<br />
O argentino Jorge Luis Borges foi o primeiro tradutor<br />
dos densos e atormentados escritos de Kafka na<br />
América Latina. “Kafka possui beleza em qualquer lugar,<br />
mas na tradução de Borges havia a elegância de<br />
<strong>sua</strong> própria literatura. Aquilo não era Kafka, era Borges.<br />
Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir<br />
o original pela tradução é impraticável. O que se<br />
busca é <strong>um</strong>a correspondência entre as duas <strong>língua</strong>s.<br />
As traduções de Borges são belíssimas”, <strong>com</strong>pleta Carone,<br />
ele mesmo author de vários livros.<br />
As várias vidas de <strong>um</strong> texto<br />
Se para Carone a tradução literal não existe diante da<br />
impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a impossibilidade<br />
de se reproduzir, letra a letra, <strong>um</strong>a construção<br />
semântica e <strong>um</strong> conjunto de significados, que<br />
se reinvente o desafio. “A questão é a maneira pela<br />
qual o tradutor consegue – ou não – captar o h<strong>um</strong>or,<br />
a lástima, a sutileza, o que Walter Benjamin chamaria<br />
‘a vida’ do texto original”, <strong>com</strong>enta a acadêmica norte-<br />
americana Karen Sotelino, Ph.D. em literatura pela<br />
Universidade da Califórnia <strong>com</strong> <strong>um</strong>a tese sobre a ambiguidade<br />
da linguagem das memórias em Machado<br />
de Assis e tradutora para o inglês de Lavoura Arcaica<br />
(Cia. das Letras, 1989), do brasileiro Raduan Nassar<br />
(à espera de <strong>um</strong>a decisão editorial para ser publicado).<br />
“Acredito que Benjamin está certo: traduzir é fazer<br />
renascer <strong>um</strong> texto. Se não acreditasse nisso, não<br />
me dedicaria à arte de tradução. Traduzir é <strong>um</strong>a das<br />
maneiras mais sérias de homenagear <strong>um</strong> texto e seu<br />
autor”, continua.<br />
No intuito de c<strong>um</strong>prir <strong>sua</strong> missão, o profissional deve<br />
se preparar. “Os requisitos básicos são o conhecimento<br />
mais amplo possível da <strong>língua</strong> a ser vertida,<br />
sensibilidade para o tom em que o texto foi escrito e<br />
boa capacidade de expressão na <strong>língua</strong> de chegada”,<br />
explica o journaliste e crítico de cinema José Geraldo<br />
Couto, tradutor de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema<br />
Americano (Cosac Naif, 2004), de Martin Scorsese, e<br />
Fora do Lugar (Cia. das Letras, 2004), de Edward Said.<br />
No meio do caminho, alguns dilemas. “Além das dificuldades<br />
técnicas pontuais de encontrar os termos<br />
exatos, há a dificuldade geral, agravada em certos<br />
casos, de encontrar a ‘embocadura’, o tom, algo<br />
que vai além do mero sentido das palavras. Às<br />
vezes, é preciso sacrificar a literalidade para<br />
buscar <strong>um</strong>a aproximação <strong>com</strong> o estilo,<br />
<strong>com</strong> o ritmo, <strong>com</strong> o sabor do original”,<br />
pontua.<br />
60 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural<br />
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