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Uma das funções do escritor lusófono é garantir a continuidade do português<br />
Cremilda ressalta que lusofonia é muito mais <strong>um</strong>a questão<br />
de conhecer a si mesmo e ao outro. “O que facilita é<br />
nos conhecermos e, principalmente, nos reconhecermos<br />
dentro da diferença e da diversidade da fértil diáspora<br />
que espalhou a <strong>língua</strong> portuguesa pelo mundo. Quando<br />
vemos as especificidades da literatura de Mia Couto,<br />
em Moçambique, de Nélida Piñon, no Brasil, e de Teolinda<br />
Gersão, em Portugal, <strong>com</strong>preendemos que a <strong>língua</strong><br />
é o espelho das culturas, de <strong>sua</strong> diversidade. O fato de<br />
Portugal não ter tido, a exemplo de outros países, <strong>um</strong>a<br />
academia real da <strong>língua</strong> fez do português <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> não<br />
centralizadora, o que, à luz da história, é <strong>um</strong>a bênção.”<br />
O que nos une é o que nos separa<br />
Com <strong>um</strong> programa que pretende atuar em tantas<br />
frentes, o projeto lusófono institucional de organizações<br />
<strong>com</strong>o a CPLP, <strong>com</strong>o não poderia deixar de ser,<br />
apresenta <strong>sua</strong>s fragilidades. Uma delas é o exagerado<br />
foco em Portugal e no Brasil. As críticas ao país são<br />
tantas que se fala até n<strong>um</strong>a “brasilofonia”, que seria<br />
<strong>um</strong>a tentativa colonialista contemporânea de sobrepor<br />
os interesses brasileiros aos dos demais países<br />
da <strong>com</strong>unidade no uso do português.<br />
Esse debate tem se intensificado <strong>com</strong> a recente<br />
entrada em vigor do Acordo Ortográfico<br />
da Língua Portuguesa. A poetisa e artista<br />
plástica portuguesa Ana Hatherly<br />
afirma ter dúvidas<br />
quanto à eficácia imediata do acordo, mas acrescenta<br />
que “<strong>um</strong>a das funções relevantes do escritor – neste<br />
caso, do escritor lusófono – é contribuir para a continuidade<br />
e a dignidade de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> tão antiga e tão<br />
prestigiada <strong>com</strong>o é o português”.<br />
Para o escritor e crítico literário português Arnaldo<br />
Saraiva, a <strong>língua</strong> e <strong>sua</strong> difusão devem estar a serviço<br />
do ser h<strong>um</strong>ano e não o contrário. “Se é natural o empenho<br />
na <strong>língua</strong> materna, também parece perigosa a<br />
tentativa de sobrepô-la a <strong>língua</strong>s maternas de outros,<br />
sobretudo se <strong>com</strong> ela não vai a luta por <strong>um</strong>a sociedade<br />
mais democrática, mais rica e mais justa.” Saraiva<br />
lembra que o português já foi <strong>língua</strong> imperial e <strong>língua</strong><br />
franca no Oriente. “Não se trata de colocar [o idioma]<br />
de novo a serviço de alg<strong>um</strong> projecto imperial, mas de<br />
afirmar a dignidade e a cultura nunca devidamente<br />
reconhecida das nossas <strong>com</strong>unidades, e fazer <strong>com</strong><br />
que [a <strong>língua</strong>] seja também <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento valioso<br />
para a melhoria do mundo.”<br />
Outra questão, <strong>com</strong>o coloca Costa, é a distância entre<br />
a teoria e a prática dessa suposta aproximação:<br />
“Quando se fala em lusofonia, pensa-se muito no mar<br />
português, no imaginário daquele país, nas <strong>sua</strong>s dores<br />
<strong>com</strong>o <strong>um</strong> ex-império e nos sentimentos belos ou<br />
confusos que isso tudo causa. Prefiro a associação de<br />
quem fala português no mundo não <strong>com</strong>o lusofonia,<br />
voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes que falam português<br />
pelo mundo. A <strong>língua</strong> portuguesa não é de luso, mas<br />
de todos os que a usam”.<br />
Essa opinião é <strong>com</strong>partilhada<br />
por Mia Couto, crítico<br />
ardoroso do projeto lusófono no âmbito<br />
institucional. “Somos nós que falamos<br />
e escrevemos em <strong>língua</strong> portuguesa todos os<br />
dias. E aqui reside <strong>um</strong>a das muitas inverdades<br />
quando se fala de lusofonia. Boa parte dos 20 milhões<br />
de moçambicanos não fala português. Não<br />
são lusófonos. Se a cidadania que buscamos passa exclusivamente<br />
pelo idioma, esses meus <strong>com</strong>patriotas<br />
estão excluídos. Precisamos de <strong>um</strong>a lusofonia suficientemente<br />
plural para poder ser falada nas <strong>língua</strong>s que<br />
são as nossas. Como diz Eduardo Lourenço [ensaísta<br />
português]: o que importa não é apenas a <strong>língua</strong> que<br />
falamos mas <strong>com</strong>o somos falados por essa <strong>língua</strong>.”<br />
Relações de familiaridade<br />
Talvez <strong>um</strong>a das respostas desse distanciamento das nações<br />
falantes de <strong>língua</strong> portuguesa entre si e também<br />
de parte do mundo resida no fato de que nenh<strong>um</strong> dos<br />
membros da CPLP está entre os índices desejáveis de<br />
desenvolvimento h<strong>um</strong>ano, o que demonstra que as<br />
questões de aproximação passam por agendas muito<br />
mais <strong>com</strong>plexas que simplesmente o encontro e a<br />
simplificação das diversidades linguísticas.<br />
Saraiva vê na internet e na universidade o <strong>com</strong>eço de<br />
ações mais palpáveis de aproximação entre as múltiplas<br />
culturas lusófonas. “A internet está a fazer milagres,<br />
mas conviria aproveitar mais as instituições culturais e<br />
a televisão, os jornais e as revistas para que as classes<br />
médias se familiarizassem <strong>com</strong> autores que só chegam,<br />
quando muito, a escassas elites. Urge criar em Portugal<br />
<strong>um</strong>a grande biblioteca brasileira. E convirá multiplicar<br />
os encontros de autores, até em festivais.”<br />
Certamente, falta para a desejada integração lusófona<br />
sentir a respiração ofegante, entremeada de sintaxes<br />
muito próprias, de sotaques diversos, de modos<br />
muito únicos de se falar a <strong>língua</strong> mais que plural que<br />
nasceu em Portugal. Falta ainda <strong>com</strong>preender o que o<br />
poeta Manuel Bandeira chamou de “<strong>língua</strong> errada do<br />
povo/<strong>língua</strong> certa do povo”, o português gostoso do<br />
cotidiano das gentes.<br />
A grafia dos depoimentos de participantes de outras<br />
nacionalidades foi preservada.<br />
Leia na Continu<strong>um</strong> On-Line entrevista <strong>com</strong> o escritor<br />
Mia Couto.<br />
58 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 59