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Roçando a <strong>língua</strong> de Luís de Camões<br />
Os desafios para a construção de <strong>um</strong>a <strong>com</strong>unidade lusófona internacional<br />
Por Micheliny Verunschk | Fotos Cia de Foto<br />
Um avô contava histórias de Trancoso, na Bahia, e relatos maravilhosos de princesas e castelos fabulosos de<br />
além-mar ou de além-sonho. O outro avô, por <strong>sua</strong> vez, falava de índios e, em particular, de <strong>um</strong>a moça que<br />
virou pássaro e que até hoje canta nas noites do sertão, a “mãe da lua”. A mãe a colocava para dormir embalada<br />
na leitura de poetas românticos do século XIX. Os três, sem saber, exerciam <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> viva, capaz de<br />
se reinventar e de se lançar r<strong>um</strong>o ao futuro. Fora de qualquer pauta política, exerciam lusofonia e criaram<br />
alguém absolutamente encantado pela palavra e pelo seu poder.<br />
Ao pé da letra a palavra lusofonia significa “o que tem som luso”, ou o que soa em <strong>língua</strong> portuguesa. Para<br />
além do significado estrito, é <strong>um</strong> conceito político-cultural que <strong>com</strong>preende o conjunto de identidades<br />
<strong>com</strong>uns existentes entre os falantes do português, o terceiro idioma de origem europeia mais falado no<br />
mundo, <strong>com</strong> cerca de 230 milhões de “usuários” atualmente.<br />
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro<br />
reportagem<br />
Da própria <strong>língua</strong> e seus “produtos” mais evidentes,<br />
<strong>com</strong>o a música, a literatura e as artes em geral, passando<br />
pela gastronomia, até a preocupação <strong>com</strong> o<br />
ensino e a difusão do português pelo mundo, a lusofonia<br />
é presença política oficial desde 1996, ano de<br />
criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa<br />
(CPLP), organismo internacional que reúne Angola,<br />
Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,<br />
Portugal, São Tomé e Princípe e Timor Leste, além de<br />
nações observadoras e outras interessadas, caso da<br />
Venezuela, por <strong>sua</strong> proximidade territorial e cultural<br />
<strong>com</strong> o Brasil.<br />
Segundo projeções estatísticas, até 2050 o português<br />
será falado por mais de 300 milhões de pessoas<br />
em todo o mundo, daí a justificativa de <strong>um</strong>a<br />
integração mais eficiente entre os países lusófonos,<br />
que possa inserir programas de desenvolvimento e<br />
cooperação mútua em níveis políticos, econômicos<br />
ou culturais.<br />
Mas o que é lusofonia de fato?<br />
Fora das agendas políticas, a lusofonia viva deveria ser<br />
aquela que superasse os desconhecimentos que temos<br />
acerca de nós mesmos <strong>com</strong>o falantes do português e<br />
da sociedade contemporânea que nos cerca. Essa seria<br />
a lusofonia potente que reside na fala do povo nas<br />
ruas do Rio de Janeiro, na contação de histórias seja<br />
n<strong>um</strong> grotão da Amazônia, seja em Catió, na Guiné-<br />
Bissau, no portunhol falado na região entre fronteiras<br />
da América do Sul, nas relações íntimas<br />
que oralidade e literatura mantêm na<br />
construção e reconstrução de<br />
<strong>um</strong>a <strong>língua</strong> pulsante.<br />
Horácio Costa, poeta e<br />
professor da Universidade de São<br />
Paulo (USP), dá conta da pluralidade dessa<br />
imersão da <strong>língua</strong> na contemporaneidade:<br />
“Como brasileiro, prefiro pensar a terra ao mar.<br />
Interessa-me a fala de <strong>língua</strong> portuguesa no mundo<br />
em <strong>sua</strong>s fronteiras: no caso das Américas, o confronto<br />
entre o português brasileiro e o espanhol; no caso<br />
africano, entre a voz que fala português e o inglês da<br />
África austral”.<br />
“Prefiro a associação de quem fala português no mundo<br />
não <strong>com</strong>o lusofonia, voz de luso, mas <strong>com</strong>o as vozes que<br />
falam português pelo mundo. A <strong>língua</strong> portuguesa não é<br />
de luso, mas de todos os que a usam.” (Horácio Costa)<br />
Geralmente quando se pensa em lusofonia no sentido<br />
mais formal do termo, pensa-se também n<strong>um</strong>a suposta<br />
participação do escritor na propagação da <strong>sua</strong> <strong>língua</strong> e da<br />
cultura que ela abarca. O escritor moçambicano Mia Couto<br />
rechaça essa inc<strong>um</strong>bência: “Minha responsabilidade é<br />
escrever. E fazê-lo o melhor que posso. Não chamo para<br />
mim outras missões. Escrever é outra coisa e não pode<br />
ser sujeita a esse sentido utilitário. A <strong>língua</strong> não pode ser<br />
entendida <strong>com</strong>o o único veículo de identidade <strong>com</strong><strong>um</strong>.<br />
Existem <strong>com</strong>ponentes que por vezes esquecemos. E <strong>um</strong><br />
deles é o factor religioso”.<br />
Língua não centralizadora<br />
Nascida em Portugal e radicada no Brasil, Cremilda Medina,<br />
também professora da USP e autora de Sonha Mamana<br />
África (Epopéia; Secretaria de Cultura do Estado de São<br />
Paulo, 1987), tem <strong>um</strong>a longa trajetória no que diz respeito<br />
às relações entre os países de <strong>língua</strong> portuguesa, trabalho<br />
que se iniciou na década de 1970, quando os chamados<br />
“cinco da África” (Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe,<br />
Guiné-Bissau e Cabo Verde) se aprofundavam nas<br />
lutas pela independência e o Brasil se municiava para o<br />
que ela chama de “período épico” de luta pela queda da<br />
ditadura militar na década seguinte.<br />
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