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Uma cidade tomada por livros<br />
Às vezes, Buenos Aires parece <strong>um</strong>a livraria a céu aberto.<br />
Por Rodrigo Lara Serrano, de Buenos Aires, Argentina | Tradução Josely Vianna Baptista |<br />
Ilustração Davi Calil<br />
Que tipo de vinho seria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E quanto ao pensador francês Michel Foucault?<br />
Na Eterna Cadencia, <strong>um</strong>a das livrarias mais originais de Buenos Aires, têm-se as respostas: o primeiro<br />
seria <strong>um</strong> syrah; e o segundo nada mais nada menos que <strong>um</strong> robusto malbec.<br />
Mensalmente, em <strong>um</strong>a terça-feira, ocorre no local o evento Cata de Ideas, <strong>com</strong>andado por Luis Diego Fernández,<br />
o alquimista que busca o prazer <strong>com</strong>binando filosofia e vinhos. Durante os encontros, ele e os<br />
demais participantes degustam alg<strong>um</strong>as taças e travam polêmicas – no caso do filósofo alemão – acerca do<br />
super-homem e da ausência do divino.<br />
Falando dessa mistura de enologia e filosofia, Lucio Ramírez, diretor <strong>com</strong>ercial do espaço, sorri. Para ele,<br />
mais que <strong>um</strong>a livraria, Eterna Cadencia “é <strong>um</strong>a casa tomada por escritores”. Localizado na Rua Honduras,<br />
em <strong>um</strong>a área conhecida <strong>com</strong>o Palermo Hollywood, o local é <strong>um</strong> exemplo do fervor dos portenhos pelos<br />
livros. “Estamos preparando o que batizamos de ‘serviço aspiracional’ ”, conta. “O cliente estipula <strong>um</strong> valor e,<br />
<strong>com</strong> base nele, nós lhe montamos <strong>um</strong>a biblioteca ideal.” Os funcionários da Eterna Cadencia entrevistarão o<br />
interessado, farão perguntas sobre seu cônjuge, seus filhos e amigos e, finalmente, estenderão <strong>um</strong>a ponte a<br />
<strong>um</strong> mundo onde os livros não são mais <strong>um</strong> castigo escolar. “Talvez fracassemos <strong>com</strong>pletamente”, desabafa<br />
Ramírez, abrindo <strong>um</strong> sorriso bem-h<strong>um</strong>orado.<br />
Ecos de outro tempo<br />
mirada<br />
Mas, se há <strong>um</strong>a coisa que não fracassou em Buenos Aires, é a venda de livros. E a Ávila, localizada na Rua Bolívar,<br />
no microcentro da cidade, é <strong>um</strong> bom exemplo disso. “Que eu saiba, é a única livraria do mundo que se mantém<br />
no mesmo espaço físico desde o final do século XVIII”, <strong>com</strong>enta seu dono, Miguel Ávila. “Por isso muitos turistas<br />
vêm aqui. E, às vezes, até <strong>com</strong>pram alg<strong>um</strong> livro”, acrescenta, soltando <strong>um</strong>a gargalhada.<br />
Do edifício clássico de 1830, quando ainda se chamava<br />
La Librería del Colegio, passou-se ao atual, construído<br />
em 1926. O estabelecimento, situado a duas quadras<br />
da sede do governo (a Casa Rosada), foi visitado assiduamente<br />
por quase todos os presidentes argentinos<br />
e por intelectuais. Ainda assim, para não ter de fechar<br />
as portas, a livraria se especializou em história local e do<br />
continente americano. E, no silêncio de <strong>sua</strong>s estantes,<br />
ecoa <strong>um</strong> tempo “em que o que se dizia <strong>com</strong> a <strong>língua</strong><br />
se sustentava <strong>com</strong> os colhões”, sublinha o livreiro, lembrando<br />
<strong>com</strong>o os duelos verbais de outrora terminavam<br />
em duelos <strong>com</strong> pistola ou sabre.<br />
É que − <strong>com</strong>o negar? − as palavras curam ou ferem.<br />
E as livrarias são verdadeiros Bancos Centrais de Palavras.<br />
A escritora Cecilia Szperling vê a coisa desse<br />
modo: “No sábado passado, entrou na Caleidoscopio<br />
[<strong>um</strong>a pequena livraria no bairro Belgrano R] o intelectual<br />
Eduardo Grunner, procurando por <strong>um</strong>a biografia<br />
de 1.500 páginas do escritor Osvaldo Lamborghini”.<br />
Um homem de leituras maratônicas? Não necessariamente:<br />
“Disse que gostaria de lê-la para ver o que<br />
dizia sobre ele, já que conhecia o biografado e lhe haviam<br />
dito que seu nome era mencionado no livro. Os<br />
<strong>com</strong>entários foram feitos por amigos nem <strong>um</strong> pouco<br />
contentes <strong>com</strong> o modo pelo qual foram retratados<br />
na biografia, bem <strong>com</strong>pleta e exaustiva”.<br />
Palcos de amizades e rivalidades<br />
As livrarias portenhas são redutos de grandes amizades,<br />
grandes ciúmes e grandes despedidas. A Alberto<br />
Casares – Libros Antiguos y Modernos foi testemunha,<br />
por exemplo, do adeus entre dois dos mais importantes<br />
escritores de expressão hispânica do século XX:<br />
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Isso ocorreu<br />
em 27 de novembro de 1985. No dia seguinte, Borges<br />
partiu para a Europa, onde viria a morrer em Genebra.<br />
A livraria já não fica na Rua Arenales, onde se deu a<br />
despedida, e sim na Suipacha, e Alberto Casares<br />
transformou-se n<strong>um</strong> dos organizadores da feira<br />
do livro antigo da cidade. Na edição 2008, por<br />
exemplo, Casares ofereceu <strong>um</strong> exemplar<br />
da primeira edição de Fervor de Buenos<br />
Aires (1923), de Borges, por<br />
30 mil dólares.<br />
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