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Cada um com a sua língua

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tam apenas<br />

nos fins de semana<br />

para visitar os parentes. “Não<br />

é mais <strong>com</strong>o antes, que ficavam em<br />

casa trabalhando na roça. Eram famílias<br />

tão n<strong>um</strong>erosas que, quando iam à missa, enchiam<br />

a igreja. Se havia serão, jogava-se baralho,<br />

cantava-se, <strong>com</strong>ia-se batata-doce, amendoim, pipoca.<br />

Era bonita a nossa vida assim”, lembra Antônia<br />

Carolina Bortoluzzi, 82 anos, que mora <strong>com</strong> o irmão,<br />

seu Ângelo, 75. Língua e religião, <strong>com</strong>o ela sugere,<br />

conviviam em paz: “A missa era em latim, mas o padre<br />

fazia o sermão em dialeto. Era difícil alguém falar português”.<br />

A portentosa igreja, <strong>com</strong> capacidade para<br />

cerca de 300 pessoas, foi reformada recentemente. A<br />

casa de retiro das irmãs, que já foi <strong>um</strong> internato, agora<br />

recebe turistas, e o seminário dos padres também já<br />

viveu dias mais movimentados. A geração deles é a<br />

última a dominar o vêneto. Os filhos <strong>com</strong>preendem,<br />

mas, na maioria das vezes, não falam. Os netos, nos<br />

melhores casos, sapecam apenas alg<strong>um</strong>as palavras.<br />

O dialeto também virou coisa de idosos.<br />

48 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 49<br />

Antônio e Amadeu, membros da família Cielo, durante ensaio musical<br />

Outras falas<br />

Os Bortoluzzi foram a família mais n<strong>um</strong>erosa a desembarcar<br />

por lá, e Paolo Bortoluzzi – primo do avô<br />

paterno de dona Antônia e seu Ângelo –, a figura<br />

mais importante da história local. Espécie de líder<br />

<strong>com</strong>unitário, foi quem mandou trazer da Itália os primeiros<br />

dois padres. A influência era tão grande que o<br />

local foi chamado inicialmente de Vale dos Bortoluzzi.<br />

Depois da chegada de outras famílias e de muita<br />

discussão, além da intervenção pacificadora de <strong>um</strong><br />

sacerdote, decidiu-se rebatizá-lo <strong>com</strong> o nome atual.<br />

O vêneto, entretanto, não é o único dialeto de Vale<br />

Vêneto. Há <strong>um</strong>a minoria de imigrantes que vieram da<br />

região de Friuli-Venezia Giulia, no extremo Nordeste<br />

italiano, a leste da região do Vêneto. O dialeto que<br />

trouxeram de lá é outro, o friulano. Enquanto o vêneto<br />

se assemelha mais ao italiano padrão, o friulano<br />

tem influência de localidades fronteiriças, <strong>com</strong>o<br />

o alemão e o esloveno. O tempo se encarregou de<br />

integrar os imigrantes vindos das duas regiões. Houve<br />

casamentos mistos e seus descendentes se orgulham<br />

de dizer que falam vêneto, friulano e português.<br />

Nem sempre foi assim. Como os dois grupos, literalmente,<br />

nem sempre se entendiam, o senso de convivência<br />

obrigou os imigrantes friulanos a aprender o<br />

dialeto da maioria de seus vizinhos. A recíproca, claro,<br />

não era verdadeira. Até hoje os moradores das duas<br />

procedências chamam o dialeto vêneto de “italiano”,<br />

<strong>com</strong>o se o friulano fosse <strong>um</strong> idioma estrangeiro. As<br />

provocações <strong>com</strong>eçavam já na infância, <strong>com</strong>o conta<br />

Archilino Guido Venturini, 80, neto de imigrantes que<br />

vieram da <strong>com</strong>una de Gemona del Friuli: “Às vezes<br />

dava até rolo, aquelas briguinhas de gurizada. Jogavam<br />

pedras uns nos outros, mas no dia seguinte estava<br />

tudo bem”. Sua esposa, Ana Maria Forsin Venturini,<br />

63, recorda-se de <strong>um</strong>a típica rixa familiar: “Quando a<br />

vó falava <strong>com</strong> minha mãe sobre assuntos que não<br />

queria que as crianças entendessem – por exemplo,<br />

se alg<strong>um</strong>a vizinha ganhava nenê –, falavam em friulano.<br />

E minha outra vó dizia: ‘É <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> tão estúpida<br />

que não existe nenh<strong>um</strong> livro sobre isso’ ”.<br />

Talvez por isso os Venturini exibam <strong>com</strong> tanto orgulho<br />

o material que recebem de <strong>um</strong>a associação internacional<br />

dedicada à divulgação da cultura friulana. É<br />

<strong>um</strong>a coleção de livros, todos escritos no dialeto, alguns<br />

dedicados a ensiná-lo. Mas não adiantou para<br />

estimular os filhos a aprender. A maioria nem mora<br />

mais por lá. Um deles trabalha em São Paulo, outros<br />

dois se mudaram para Mato Grosso do Sul para cultivar<br />

arroz. Restou José, 23, que cursa matemática<br />

em Santa Maria. E depois da faculdade? “Acho que o<br />

melhor é voltar para casa mesmo”, responde. Ele alega<br />

que a profissão não tem futuro, diz que precisaria<br />

fazer mestrado e doutorado, mas parece motivado<br />

mesmo por <strong>um</strong> sentimento de que alguém precisa<br />

ficar para cuidar da família e da terra. É <strong>um</strong>a escolha<br />

rara entre os jovens de Vale Vêneto. A volta não significa<br />

<strong>um</strong> retorno ao dialeto. “Eu entendo tudo,<br />

mas não falo. Meus irmãos também não falam<br />

muita coisa. Acho que não houve muito<br />

incentivo por medo de que a gente<br />

não fosse aprender o português<br />

correto na escola”, diz.

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