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Cada um com a sua língua

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A unificação da <strong>língua</strong> portuguesa aproximará o Brasil dos outros países lusófonos? O Acordo Ortográfico da<br />

Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro último, além de normatizar o uso escrito do idioma, traz em seu bojo<br />

implicações históricas e antropológicas. Seria esse doc<strong>um</strong>ento capaz de promover <strong>um</strong>a união mais coesa entre<br />

oito povos dispersos em três continentes? Nações irmãs, mas em muito estranhas entre si, seus laços por vezes<br />

circunscrevem-se aos limites da diplomacia. Seria a <strong>língua</strong> capaz de superar essa barreira?<br />

Esforço de “universalização”<br />

Por Roberto DaMatta<br />

arena<br />

Os elos entre visões de mundo e seu modo de expressão mais potente, fluido, permanente e fundamental –<br />

a linguagem articulada, falada ou escrita – são problemáticos. Sem <strong>um</strong> suporte material – <strong>um</strong>a escrita e <strong>um</strong>a<br />

literatura – as <strong>língua</strong>s desaparecem <strong>com</strong> os seus falantes. A expressão “<strong>língua</strong> morta”, usada para designar<br />

linguagens cifradas, utilizadas em campos específicos, <strong>com</strong>o o do direito e da filosofia, é <strong>um</strong>a contradição<br />

em termos. Pois essas <strong>língua</strong>s estão mais vivas do que muitos idiomas que, devido ao contato cultural, têmse<br />

esvanecido sistemática e tragicamente do mapa da h<strong>um</strong>anidade. Isso nos dá, talvez, <strong>um</strong>a noção mais<br />

precisa da importância de <strong>um</strong>a padronização da <strong>língua</strong> na <strong>sua</strong> dimensão escrita, <strong>com</strong> todas as dificuldades<br />

e limitações que ela apresenta aos seus usuários, sejam eles nativos, sejam estrangeiros, analfabetos ou<br />

instruídos. Pois <strong>um</strong>a <strong>língua</strong> escrita unifica-se revelando – <strong>com</strong>o tem ocorrido <strong>com</strong> a reforma do português<br />

– os seus arbítrios. Estes nada mais são do que as escolhas de sons e sentidos que todos os códigos de<br />

<strong>com</strong>unicação h<strong>um</strong>anos, <strong>com</strong>o meios de contato projetados para fora e independentes do organismo e<br />

dos códigos genéticos que regem o mundo da biologia, expõem. Pois todas as <strong>língua</strong>s h<strong>um</strong>anas escolhem,<br />

distinguem e excluem sons e modos de <strong>com</strong>binar cadeias sintáticas e semânticas que formam seu léxico e<br />

<strong>sua</strong> gramática.<br />

Por esse motivo, entendo que o acordo de reunir, n<strong>um</strong> único protocolo, a dimensão escrita de <strong>um</strong>a mesma<br />

<strong>língua</strong> falada por oito nações localizadas em continentes diversos é algo muito importante. Trata-se de <strong>um</strong><br />

esforço de “universalização” do português. O acordo ortográfico – ainda que remeta às nossas dificuldades<br />

mais elementares de reaprender a escrever o português, daí alg<strong>um</strong>as das reações à novidade – traz no seu<br />

eixo <strong>um</strong>a padronização da forma ou do material que carrega o pensamento, os valores e os hábitos, n<strong>um</strong><br />

sistema capaz de juntar n<strong>um</strong> mesmo código as inevitáveis e mais do que importantes variações culturais<br />

e sociais, bem <strong>com</strong>o históricas, que separam os países falantes do idioma. Penso que isso o redime de <strong>um</strong><br />

paulificante reaprendizado da <strong>língua</strong>.<br />

Roberto DaMatta é professor de antropologia da PUC/Rio e professor emérito da Universidade de Notre<br />

Dame, Indiana, Estados Unidos. Autor de livros sobre sociedades indígenas do Brasil e a sociedade brasileira<br />

e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.<br />

ilustração Liane Iwahashi<br />

O desacordo ortográfico<br />

Por João Pereira Coutinho<br />

Não é preciso ter lido os românticos para saber que a <strong>língua</strong> é o produto de <strong>um</strong> povo, e não de<br />

alguns sábios que resolvem decidir que existe apenas <strong>um</strong>a forma correcta de falar, escrever e<br />

pensar em português.<br />

O primeiro problema <strong>com</strong> o Acordo Ortográfico <strong>com</strong>eça aqui: tomando <strong>com</strong>o base duas pronúnciaspadrão<br />

– a brasileira e a portuguesa –, os sábios de ambos os países chamaram a si a tarefa hercúlea<br />

de “unificar” a <strong>língua</strong>, <strong>com</strong>o se isso fosse desejável. Não é. Ao ignorar os outros falantes do português,<br />

a atitude revela prepotência perante povos terceiros e alegadamente “inferiores”.<br />

Não existem donos de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. Ela pertence a quem a fala, <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s variações fonéticas e<br />

ortográficas. O caso não é singular: o inglês, o francês ou o espanhol possuem variações linguísticas<br />

e geográficas que nunca puseram em causa <strong>sua</strong> importância no mundo. A diversidade é <strong>um</strong>a<br />

força, não <strong>um</strong>a fraqueza.<br />

Mas a natureza aberrante do acordo não está apenas na forma desrespeitosa <strong>com</strong>o se tratam<br />

tradições linguísticas que devem e merecem ser protegidas. Como cidadão português, existe <strong>um</strong>a<br />

razão suplementar para me opôr a ele. E essa é estritamente linguística.<br />

De acordo <strong>com</strong> os pais do acordo, a “unidade da <strong>língua</strong>” só se consegue quando a ortografia de<br />

base alfabética for <strong>um</strong>a transcrição fonética o mais fidedigna possível. Assim se entende a obsessão<br />

de eliminar certas consoantes mudas, <strong>com</strong>o o “p” de “adopção” ou o “c” de “actor”.<br />

Essa obsessão assenta em novo erro. O facto de existirem certas consoantes mudas nas palavras<br />

do português de Portugal <strong>com</strong>eça por representar <strong>um</strong>a pegada etimológica de inegável riqueza<br />

para o estudo de <strong>um</strong>a <strong>língua</strong>. O “p” de “adopção” não é <strong>um</strong> mero arcaísmo: é <strong>um</strong>a expressão de<br />

história e de identidade. Mas não só: o “p” permite aos portugueses abrir a vogal que antecede a<br />

consoante, funcionando assim <strong>com</strong>o importante indicador fonético.<br />

A discussão ignora alg<strong>um</strong>as dessas idéias. E até os opositores do acordo, pelo menos em Portugal,<br />

parecem ter preferido considerações nacionalistas (e economicistas) que passam ao largo do<br />

real problema: persistem em dizer que ele apenas serve os interesses económicos do Brasil, que<br />

acabará por ter posição dominante no mercado livreiro em todo o mundo de <strong>língua</strong> portuguesa.<br />

Ainda que isso seja verdade, o problema principal não está na economia; está no reduto histórico,<br />

filosófico e cultural. Aceitar o acordo será aceitar <strong>um</strong>a imposição artificial sobre a mais singular construção<br />

h<strong>um</strong>ana. Será <strong>com</strong>pactuar <strong>com</strong> <strong>um</strong>a intromissão arbitrária na nossa mais profunda h<strong>um</strong>anidade.<br />

João Pereira Coutinho é jornalista português, escritor e autor de Avenida Paulista (Editora Record,<br />

2009). Escreve semanalmente para a Folha de S.Paulo.<br />

Este artigo foi escrito <strong>com</strong> as regras ortográficas utilizadas em Portugal antes do atual Boom, acordo. de Lúcio Carvalho<br />

28 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 29

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