11.04.2013 Views

Cada um com a sua língua

Cada um com a sua língua

Cada um com a sua língua

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O homem que abdicou das palavras<br />

Por Diogo Sponchiato | Ilustração Hare Lanz<br />

área livre<br />

Abdicou das palavras <strong>com</strong>o quem para de beber cerveja. Talvez estivesse bêbado quando ditou a aposta. Os<br />

<strong>com</strong>panheiros de bar nunca acreditaram na proposta de Jorge. Mas ele a fez. Fez para si, porque sabia que<br />

de <strong>sua</strong>s entranhas não brotariam revoluções. Usou os amigos e os quatro ou cinco copos de cerveja <strong>com</strong>o<br />

álibi para dar força ao seu plano egoísta. Sabia que não era o primeiro nem o último a fazê-lo. E ninguém<br />

atentou às <strong>sua</strong>s últimas palavras.<br />

Jorge se achava mais <strong>um</strong> lobo da estepe. Não tinha nem 50 anos, mas se portava feito <strong>um</strong> velho car<strong>com</strong>ido<br />

por <strong>um</strong> tempo sem alterações. Considerava-se o melhor entre os alunos e o pior entre os professores. Nunca<br />

publicou <strong>um</strong> livro, ele que se via intelectual, <strong>com</strong> os óculos na ponta do nariz adunco, o cigarro no canto<br />

direito da boca, <strong>um</strong> ou dois livros presos à axila. Tantas poesias confinadas no armário, prisioneiras do pó. E<br />

<strong>um</strong> romance que o fogo da lareira dilacerou, após <strong>um</strong>a noite regada a puro malte escocês. Não que fosse<br />

pusilânime, mas ciente de que o mundo não se importaria <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s insossas palavras e débeis ideias. Seus<br />

textos não refletiam a originalidade que, <strong>um</strong> dia assegurou ele, habitava <strong>sua</strong> mente. Jorge era o intelectual<br />

que estaria sempre prestes a nascer, mas nunca nasceria.<br />

Nesse impasse, decidiu-se pelo aborto. Cansou-se da prosa, esse mar artificial; enfastiou-se da poesia, esse<br />

riacho de extremos, antíteses e falsidades. Rasgou os jornais, a interpretação barata da realidade estúpida<br />

que vivia. Cobriu <strong>com</strong> <strong>um</strong>a lona <strong>sua</strong> exígua biblioteca, repleta de exemplares emprestados e nunca lidos,<br />

afinal, ele sempre preferiu os livros <strong>com</strong>prados pelo próprio bolso. Ao espreitar <strong>um</strong> vol<strong>um</strong>e de contos de<br />

Machado de Assis, colocou-se no lugar do alienista, mas logo cuspiu a lembrança. Árduo trabalho o de mandar<br />

ao inferno, ao vazio, ao nada, tudo o que havia lido. Adeus a personagens e mundos. Adeus ao tempo<br />

construído por frases. Sua meta era se desvencilhar das palavras.<br />

Aposentou-se da leitura. E maior esforço despendeu para renunciar aos diálogos do cotidiano, essas coisas<br />

aparentemente insignificantes, mas que são os verdadeiros tijolos do conhecimento h<strong>um</strong>ano. Suou para<br />

transformar os pedidos de café na padaria em singelos gestos e interpretações. Tornou-se <strong>um</strong> ator de filme<br />

mudo. Logo se viu posicionando os dedos em “v” e levando-os à boca. Minutos depois, estaria <strong>com</strong> <strong>um</strong> novo<br />

maço de cigarros. Preteriu todos os bons-dias, obrigados e rituais de reciprocidade que, há alg<strong>um</strong> tempo,<br />

saíram de moda na urbe. Abnegou o céu, evitando os outdoors e as fantasias sugeridas pelas nuvens.<br />

Extinguiram-se as poucas amizades. O telefone antigo<br />

fora arrancado, a caixa de correio lacrada, o rádio de<br />

pilha chutado e a televisão relegada à calçada. Deixou<br />

n<strong>um</strong> ferro velho o fusca, herança da esquecida família;<br />

evitaria assim os xingamentos que tanto praticava<br />

no trânsito. Sobretudo, sofreu para abster-se dos filhos<br />

da puta, cacetes e putas que o pariu. As topadas no pé<br />

da cama não eram respondidas. Ao esbarrar <strong>com</strong> <strong>um</strong><br />

jovem desatento na rua, retribuía apenas <strong>um</strong> olhar. Os<br />

olhos tornaram-se delatores; deles, saíam calados todos<br />

os impropérios. As relações h<strong>um</strong>anas se apagavam, mas<br />

ele sobrevivia. Tentou se acost<strong>um</strong>ar, simplesmente.<br />

O primeiro ano calado e fechado aos discursos alheios<br />

fora <strong>um</strong>a sucessão de crises. Como desde o princípio<br />

temeu, embora não proferisse as palavras, elas continuavam<br />

vivendo em seu pensar. As reflexões, as lembranças,<br />

os anseios e os sonhos sempre negados estavam<br />

lá, dentro daquela cabeça careca, construídos<br />

e consolidados por meio de substantivos, adjetivos e<br />

verbos, <strong>um</strong> infinito de verbos.<br />

Contorcia-se, espancava as têmporas tentando expulsar<br />

as palavras. Pensou em desistir, mas resistia.<br />

De repente, <strong>sua</strong> mente entrava em transe e observava<br />

a tênue diferença que residia entre esses<br />

dois verbos: desistir e resistir. Lágrimas vertiam<br />

daqueles olhos esbugalhados, enquanto<br />

<strong>um</strong> “d” se transformava em “r” e, <strong>com</strong>o<br />

<strong>um</strong> relâmpago, ocorria o movimento<br />

inverso.<br />

Certa noite, para obliterar as letras e mergulhar no rio<br />

do sono, sorveu, ansioso, duas garrafas de pinga. Caiu<br />

e adormeceu. Acordou no meio da madrugada devolvendo<br />

ao mundo aquilo que só os canaviais poderiam<br />

conceber. Jorge, esse nome que, todos os dias, se desenhava<br />

em <strong>sua</strong> mente, quis se valer do vômito para<br />

expurgar as palavras que pulsavam em <strong>sua</strong> cabeça.<br />

Tomou banho, para lavar-se das sílabas e do cheiro de<br />

álcool. Sentou-se na cama e persignou-se, <strong>um</strong> velho<br />

hábito que era menos fé do que mania. Dessa vez, ao<br />

<strong>com</strong>pletar o sinal da cruz, Deus invadiu-lhe o cérebro.<br />

Antes tivesse se endereçado ao coração. “D”, “E”, “U”,<br />

“S”. Essas letras pululavam, emergiam e submergiam,<br />

metamorfoseavam-se, apagavam-se <strong>com</strong>o <strong>um</strong> vagal<strong>um</strong>e<br />

que some na imensidão da noite e estouravam<br />

feito <strong>um</strong> rojão. Ele pensou estar diante de <strong>um</strong>a revelação.<br />

Decerto era <strong>um</strong> castigo. Estava a ponto de gritar,<br />

de urrar, mas manteve o silêncio e pensou que Deus,<br />

tão menosprezado em <strong>sua</strong>s antigas conversas filosóficas,<br />

havia sentido pena. Três anos tentando fazer de seu<br />

mundo a negação do verbo. Três anos seculares. Uma<br />

guerra cujas trincheiras estavam dispostas dentro de si.<br />

Desarmado, desalmado, Jorge já avistava a derrota.<br />

Enxergou a morte travestida de abecedário e deixou<br />

de sair de casa. Uma semana esgotando as cervejas. A<br />

única semana em que as palavras não o perturbaram.<br />

Talvez profetizasse o início de <strong>um</strong> fim. Se no princípio<br />

era o Verbo, ao fim somente caberia o silêncio. Um silêncio<br />

antecipado. Um silêncio ambíguo. Vencedor e<br />

vencido; necessário e egocêntrico.<br />

No último dia daquela última semana, percebeu que as palavras<br />

já re<strong>com</strong>eçavam a borbulhar. Sentiu a morte tocar-lhe as<br />

costas. Olhou-se no espelho e viu-se no meio de <strong>um</strong>a ponte<br />

em cujas extremidades se opunham a palavra e a morte.<br />

Subitamente, sentiu <strong>um</strong>a intensa dor no peito. E, n<strong>um</strong><br />

rodamoinho de imagens e nomes que assaltou seu<br />

pensar, pegou <strong>um</strong> papel escondido debaixo da cama.<br />

Ele previa o momento.<br />

Gritou, gemeu,<br />

pediu perdão aos<br />

homens, aos verbos e a Deus. Praguejou,<br />

recitou <strong>um</strong> soneto. Suc<strong>um</strong>biu<br />

<strong>com</strong> <strong>um</strong> dicionário explodindo na mente. Para<br />

Jorge, a morte não era a maior derrota.<br />

Em seu túmulo não havia seu nome, tampouco <strong>um</strong> epitáfio.<br />

Uma lápide lisa. Poucos <strong>com</strong>pareceram ao enterro.<br />

Um funcionário da funerária dirigiu-se a <strong>um</strong> dos antigos<br />

amigos e entregou-lhe <strong>um</strong> papel. O amigo abriu <strong>um</strong>a folha<br />

de caderno já amarelada pelos anos e reconheceu a caligrafia<br />

de Jorge, tão perfeita <strong>com</strong>o nos tempos em que escrevia<br />

poemas no colégio. O verbo derradeiro c<strong>um</strong>pria <strong>sua</strong> ação.<br />

Talvez as palavras não o rodeariam mais. Talvez seu livro se<br />

fecharia sob o som do silêncio e à luz da escuridão.<br />

Diogo Sponchiato é jornalista.<br />

24 Continu<strong>um</strong> Itaú Cultural Participe <strong>com</strong> <strong>sua</strong>s ideias 25

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!